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* Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté; doutor em Direito Penal e livre-docente em Direito
do Trabalho pela Universidade de São Paulo; doutor em Direito Processual pela Universidade de
Lisboa; professor-associado II do Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo; membro titular da cadeira nº 83 da Academia Nacional de Direito do
Trabalho. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0028206539888072. E-mail: dunkel2015@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-2845-5966.
** Juiz Titular da 6ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto (SP); doutor em Direito do Trabalho e da Segu-
ridade Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM), na Espanha – título revalidado pela
Universidade de São Paulo (USP); mestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela UNESP;
professor contratado do Departamento de Direito Privado da USP de Ribeirão Preto (2017 a 2019) e
da Escola Judicial do TRT-15. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0681875255841345. E-mail: jaribeiro10@
hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7532-2766.
impacts of AI, recognizing it as the most characteristic of all the typical technologies
of the so-called 4th Industrial Revolution. Scrutinizing especially the possible negative
implications in the world of labour, the article still proposes alternatives “de lege
lata” and “de lege ferenda” based on the list of fundamental human rights already
integrated into the universal constitutional culture, such as the right to work and the
right to disconnect from work.
KEYWORDS: Artificial Intelligence. Right to Work. Right to Disconnect from Work.
Duration of Work.
1 – Introdução
A
chamada Inteligência Artificial – AI – ainda é uma ilustre desconhecida
da grande maioria dos humanos, que talvez a entendam como uma
entidade sobrenatural quando ouvem pela primeira vez essa expressão.
Contudo, seus efeitos, positivos e negativos, já se fazem sentir no tecido social,
em todas as formas de relações humanas, jurídicas ou não. E, por óbvio, seus
efeitos deletérios no mundo do trabalho e das relações jurídicas que lhe são
inerentes já se mostram aterrorizadores, ainda que praticamente todos os traba-
lhadores não tenham se dado conta das ameaças que se avizinham, tampouco
os sindicatos, que continuam pensando estratégias para o chão de fábrica.
Urge, portanto, que comecemos a investigar os contornos científicos e
práticos dessa “entidade”, suas repercussões para o Direito do Trabalho e buscar
definir estratégias adequadas de luta para amenizar os seus efeitos perversos
no chamado mercado de trabalho – não para impedir o uso da IA, o que seria
uma luta absolutamente inglória – e para a própria organização social.
Por certo que já houve várias “revoluções” industriais e/ou econômicas
no curso dos últimos séculos. E, como apregoam os defensores do progresso
científico e tecnológico, nunca houve a devastação de empregos e da coesão
social como os humanistas, filósofos e sociólogos denunciaram. A economia
– ou o capitalismo – em geral sempre se realinhou de acordo com a nova reali-
dade, surgiram novas formas de empreendimento e de trabalho humano e, após
alguns anos de turbulência, tudo voltou à normalidade, como que num passe
de mágica surgido das mãos invisíveis do (livre) mercado.
Contudo, como advertem vários estudiosos, a IA vai proceder a uma
mudança de percurso sem precedentes – isso já está ocorrendo, em verdade –,
propiciando a substituição das ações e do trabalho humano em escala expo-
nencial (crescimento exponencial), como se um insidioso vírus desse origem
a uma terrível pandemia, em termos biológicos. Não será uma epidemia de
covid-19, mas será igualmente assustadora a ação invisível da IA no mundo do
trabalho, com reflexos “pandêmicos” para a paz social, porque a desigualdade
1 TOTVS. O que é inteligência artificial? Como funciona, exemplos e aplicações. Disponível em: https://
www.totvs.com/blog/inovacoes/o-que-e-inteligencia-artificial/. Acesso em: 8 mar. 2021.
2 Ibidem.
3 Ibidem.
4 MARR, Bernard. Mind-blowing things artificial intelligence can already do today. Forbes. Nov. 11,
2019. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/bernardmarr/2019/11/11/13-mind-blowing-things-
artificial-intelligence-can-already-do-today/?sh=5d6110136502#392488186502. Acesso em: 20 mar.
2021.
5 RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo: Makron Books, 1996. p. 63 e ss.
6 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Curso crítico de Direito do Trabalho: teoria geral do Direito do
Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2013. Seção 1.3.
bom legado, porém, não nos interessa neste estudo. Como se dá com todos os
fenômenos da técnica, a inteligência artificial comporta-se como a deusa Janus:
duas faces unidas pelo dorso, mas visando a horizontes opostos. Eis o que ora
nos interessa: investigar os efeitos perversos do uso intensivo da Inteligência
Artificial no mundo do trabalho (alguns deles). É o que veremos a seguir.
8 SANTOS, Leon. Revolução 4.0: quarta revolução industrial já está em vigor e deve mudar a realidade
que conhecemos. RBA – Revista Brasileira de Administração, ano 30, n. 132, p. 22-27, set./out. 2019,
p. 24.
9 HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras,
2016. p. 322.
15 Ibidem, p. 329.
ramo do Direito, que se consolidou no início do século XX. Por isso, o instituto
jornada de trabalho é absolutamente central para a compreensão dessa temática.
De modo que não se pode duvidar, jamais, da centralidade do trabalho (também)
no mundo contemporâneo e, por consequência, da jornada de trabalho como
um dos dois institutos mais característicos do Direito Laboral – o outro é o
salário, como é sabido.
Entretanto, a doutrina neoliberal, que se tornou hegemônica no final do
século XX, afirma, de modo enfático, que o trabalho já não tem a mesma im-
portância que no passado e, ademais, que o Direito do Trabalho seria uma das
causas das crises que assolaram o mundo a partir da década de 1970.
Isso não é verdade! Pelo contrário, uma boa regulamentação da jornada
de trabalho, com limites rígidos de tempo de labor e com uma redução equânime
para que todos – ou quase todos – possam ter seu sagrado direito ao trabalho
atendido, é medida que se impõe e talvez a única que se mostre, ao fim e ao
cabo, plenamente eficaz contra a investida da IA sobre os trabalhos humanos.
Por isso, ao contrário de ressuscitar fórmulas ultrapassadas – ou de criar
fórmulas que não resolvem o verdadeiro problema –, o que necessitamos para a
solução da interminável crise que começou em 2008 – e se agrava a cada dia com
a pandemia da covid-19 – é promover o necessário planejamento econômico
e social, no qual se implemente, efetivamente, “uma adequada consideração
do valor trabalho”16.
Qual deve ser, então, o objetivo principal de uma proposta de planeja-
mento econômico e social? Dentre tantas medidas igualmente importantes, no
campo do Direito do Trabalho, há de ser uma luta constante pela limitação (e/
ou redução) da jornada de trabalho.
Com efeito, o pontapé inicial deve ser uma luta sem trégua, de todos,
contra o excesso de trabalho por parte de uns e a ausência deste direito funda-
mental para outros.
Será um retorno às lutas novecentistas, o que pode até causar a impres-
são de um desajuste contextual e histórico. Ocorre que o capitalismo e sua
frenética busca por acumulação, ainda que não se perceba, têm conduzido as
relações de trabalho em alguns setores econômicos e principalmente nos países
em desenvolvimento a uma situação semelhante à do período conhecido por
Revolução Industrial. Vejam-se os efeitos drásticos da Reforma Trabalhista
promovida pela Lei nº 13.467/2017 (contrato de trabalho intermitente e tantas
25 GRAU, Eros Roberto. Mercado, Estado e Constituição. Boletim de Ciências Económicas. Coimbra:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2004. v. XLVII. p. 111-112.
26 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros,
1993; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2009.
27 TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Inteligência artificial, smart contracts e gestão do
risco contratual. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (Coord.). O direito civil na era
da inteligência artificial. São Paulo: RT, 2020.
28 STEFANO, Valerio de. The rise of the just-in-time workforce: On-demand work, crowdwork, and labor
protection in the gig-economy. Comparative Labor Law & Policy Journal. Champaign: University of
Illinois College of Law, 2015. v. 37.
30 KONDER, Carlos Nelson; KONDER, Cíntia Muniz de Souza. Transumanismo e inteligência artificial.
In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (Coord.). O direito civil na era da inteligência
artificial. São Paulo: RT, 2020.
31 ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo:
Boitempo, 2018. p. 34 e ss.
razão ou pretexto para que os órgãos judiciários passem a praticar uma política
de non liquet sistemático, marginalizando juridicamente uma massa cada vez
mais dominante de trabalhadores digitais (teletrabalhadores, trabalhadores on
demand, taskers, etc.). Recuperando Canotilho, há que se extrair das normas ju-
rídicas – nomeadamente as constitucionais – a sua capacidade de aprendizagem,
pela qual são aptas a captar a mudança da realidade e se abrem às concepções
cambiantes de “verdade” e de “justiça”, como deve ser32.
E, por essa vereda, torna-se tecnicamente possível e socialmente justo
extrair dos arts. 2º e 3º da CLT o conceito normativo de subordinação objetiva,
que se estabelece a partir da vinculação da atividade laboral com os objetivos
sociais da empresa; ou de subordinação estrutural, que se estabelece a partir
da inserção do trabalhador em um empreendimento de cuja concepção não
participa, mas à qual passa a se integrar, como elemento necessário, em diversas
dimensões (organização, dinâmica, cultura). A ideia de subordinação estrutural
já tem acolhida indiscutível na jurisprudência nacional (v., e.g., TST, AIRR n.
2138-96.2012.5.03.0005, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, j. 18.12.2013).
Ademais, pode-se mesmo divisar as características da própria subordina-
ção clássica em alguns modelos de aplicativos, desde que se compreenda que as
“ordens” agora se desumanizam, prescindindo do elemento humano de ligação
entre o agente subordinante (= o empregador) e o sujeito subordinado (= o em-
pregado). Nessa linha caminhou a 1ª Turma do TRT da 3ª Região, ao reconhecer
o vínculo empregatício entre o reclamante, motoboy entregador, e a empresa de
aplicativo iFood (v. TRT 3, Proc. 0010761-96.2019.5.03.0008-RORSum, 1ª T.,
Relª Desª Alves Pinto, j. 10.6.2020). Para reconhecer a subordinação jurídica,
a relatora se valeu, p. ex., do teor da declaração subscrita eletronicamente pelo
trabalhador (reclamante), de que constava a possibilidade de sofrer punição
caso ficasse fora de área e não realizar o login durante tempo relevante (= poder
punitivo). Observou ainda constar do manual do entregador, na cláusula oitava,
a previsão de que “a iFood poderá reter pagamento ou descontar de remune-
rações futuras devidas ao entregador montantes destinados ao ressarcimento
de danos à empresa, aos clientes finais ou aos estabelecimentos parceiros”. E,
quanto ao poder fiscalizatório, registrou que, ao contrário do que alegava a
iFood em sua contestação,
“(...) há um padrão de qualidade traçado pelas empresas de pla-
taforma de entrega de mercadorias, sendo a fiscalização realizada por
meio das avaliações dos clientes. Trata-se, pois, de uma inegável expres-
32 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999. p. 1.085.
36 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.
37 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Por um processo realmente efetivo: tutela processual de direitos
humanos fundamentais e inflexões do due process of law. São Paulo: LTr, 2016.
6 – Considerações finais
7 – Referências bibliográficas
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