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Aluno: Marcus Vinicius Pires dos Reis

Biopolítica: diálogos entre Negri e Foucault

Introdução

O presente trabalho, apresentado como requisito para a conclusão da

disciplina Sujeito Político e emancipação, busca demonstrar as relações entre o

pensamento de Michel Foucault e Antonio Negri. Mais especificamente, procura-

se traçar aproximações e rupturas entre os dois pensadores no uso que fazem

do conceito de biopolítica. Para tanto, será realizada uma breve retomada da

trajetória intelectual e militante de Negri, ressaltando aspectos históricos e

teóricos que aproximaram o pensamento de ambos os autores destacados neste

trabalho.

Toni Negri, operaísmo e altermundismo

Nascido em 1933, em Pádua, Itália, Antonio Negri – ou Toni Negri – possui

uma trajetória de ativismo e produção filosófica cuja relevância está

intrinsicamente ligada ascensão de dois momentos da luta de classes e das lutas

dos movimentos sociais. A princípio, Negri ganhou destaque como uma das

principais figuras do operaísmo italiano, uma corrente teórica e política que

esteve no centro das movmentações e lutas sociais na Itália entre as décadas

de 1960 e 1970.

Posteriormente, Toni Negri esteve associado ao ciclo de lutas conhecido

como movimento anti-globalização ou altermundista, que teve como palco

diferentes lugares,tanto no Sul quanto no Norte globais. Neste trabalho, não será

pormenorizada a trajetória feita por Negri entre esses dois momentos, porém

serão realizadas algumas conexões entre aspectos da história desses ciclos de


luta e elaborações teóricas a respeito delas. O princial intuito aqui é o de elucidar

o sentido da utilização por parte de Negri do conceito foucaultiano de biopolítica.

Lutas sociais e interpretação teórica na Itália do pós-guerra

Surgido em um momento de expansão industrial na Itália, o operaísmo

pode ser pensado como uma forma de leitura e intervenção/organização política

na realidade italiana feita a partir de uma interpretação orignal da obra de Marx.

Nesse sentido, o pensamento de Negri, Raniero Panzieri, Mario Tronti e outros

contributores do operáismo propuseram um marxismo que se afasta tanto das

proposições da III Internacional quanto do marxismo ocidental. Longe de uma

tendência ao dogmatismo do pensamento marxista ligado à União Soviética,

porém também diferente de expoentes de reformulações críticas do pensamento

de Marx, como os intelectuais da Escola de Frankfurt, o operaísmo estava

calcado também em rupturas políticas e teóricas em relação à esquerda italiana.

Inicialmente ligados a organizações sindicais, ao Partido Comunista

Italiano (PCI) e ao Partido Socialista Italiano (PSI), os fundadores do operaísmo

se agruparam em torno da revista Quaderni Rossi, cuja primeira edição data de

setembro de 1961. Preocupados em compreender as transformações ocorridas

na esfera da produção industrial italiana, como a entrada em cena de um novo

contingente de operários migrantes que deixavam o ambiente rural do sul da

Itália, rumo às cidades e plantas industriais do norte do país.

No âmbito da Quaderni Rossi e da Classe operaia – periódico surgido

após uma cisão teórico-política no interior da primeira - foram elaboradas

inovações metodológicas, teóricas e conceituais que marcaram o operaísmo.

Por meio da enquete operária, método de pesquisa militante junto aos operários,
foram identificadas e discutidas novas formas de luta do renovado operariado

italiano. As investigações junto aos operários levaram a formulações conceituais

como a do operário massa, que da conta dos trabalhadores sem qualificação,

submetidos aos métodos tayloristas de racionalização do trabalho e

profundamente desidentificados tanto em relação às suas ativudades laborais

quanto às tradições de enfrentamento cultivadas pelo movimento operário

italiano. A renovação teórica que acompanha a emergência do novo contigente

demográfico e subjetivo do operariado segue o tensionamento e posterior

ruptura entre setores do operaísmo e da classe trabalhadora com as estruturas

sindicais e partidárias da esquerda italiana

Inspirado por novas leituras de passagens marxianas dos Grundrisse e de

O Capital, Mario Tronti introduz um deslocamento teórico de grande importância

para o desenvolvimento do operaísmo. Segundo Turchetto (2004), para Tronti a

principal contradição do capitalismo deixa de ser aquele entre forças produtivas

e relações sociais de produção e passa a figurar como a oposição entre o

processo de produção que ocorre na fábrica e o processo de valorização

localizado na sociedade.

Ainda segundo Turchetto, Tronti observa a um processo de progressiva

expansão da fábrica sobre da sociedade, que ocorreria pela proliferação do

mercado de serviços e por medidas como a terceirização. No entanto, apesar de

notar ao avanço da intersecção entre as esferas da produção e da circulação (ou

produção e valorização, como mencionado anteriormente), Tronti afirma a

primazia da fábrica sobre o social. Dessa maneira, o ponto central de

antagonismo e lócus principal da luta anticapitalista permanece na fábrica.

Porém, segundo Negri (1988), a relação entre fábrica e sociedade passou por
transformações associadas ao avanço da luta de classes e consequentes

reestruturações no capital.

Autonomia operaia, operário social e fábrica difusa

De acordo com Negri, é justamente no seio das lutas protagonizadas pelo

operário massa que podem ser encontradas as forças transformadoras da

composição da classe trabalhadora e das estruturas da produção capitalista. Se

durante o fim da década de 1960 – principalmente no episódio conhecido como

o “Outono Quente”, em1969 - as lutas operárias demonstraram seu potencial

inovador e combativo, a contraofensiva do capital levou o antagonismo entre

capital e trabalho a novas searas.

As greves levadas a cabo à sem o apoio e mesmo enfrentando a oposição

de sindicatos, a utilização de métodos como a sabotagem e refreamento

voluntário da produção, ocupação de fábricas e outras formas de luta conduzidas

pelo operário massa foram respondidas pelo capital. A segmentação da classe

trabalhadores em diferentes categorias e regimes de trabalho, aumento da

mobilidade e demissões que criaram ambientes de trabalho mais atomizados

estão entre as medidas de reorganização capitalista frente à ofensiva do operário

massa. No entanto, a dinâmica impulsionada pela ação da classe trabalhadora

contra o capital não estancou e transformações ulteriores foram constituídas.

Do ponto de vista da história do movimento operário e das lutas sociais

na Itália,de acordo com Wright (2017), essas tranformações estão relacionadas

à emergência da Autonomia, uma nova configuração dos movimentos políticos

em ação na Itália na década de 1970. Wright (2017, p. 140) utiliza a ideia de um

arquipélago de grupos ideologicamente dispersos e radicalmente orientados à


esquerda para caracterizar essa “área” política largamente responsável pelos

principais embates políticos da esquerda italiana daquela época. Nessa “área”

da Autonomia, o operário fabril permanece atuante, porém é acompanhado por

movimentos da juventude, feministas e outros grupos que estendiam os escopo

de enfrentamentos para além da tradicional esfera da produção. Novas

reivindicações, que entravam no campo da sexualidade e moralidade, novos

métodos de luta, encampados nos territórios das metrópoles italianas,

expandiram os confrontos sociais para fora dos muros das fábricas e do campo

estritamente econômico.

Esse é o contexto em que se pode compreender as formulações de Negri

a respeito de uma nova composição da classe trabalhadora e da interligação

ainda mais intrincada entre fábrica e sociedade. Na perspectiva teórica articulada

por Negri, emerge uma nova figura subjetiva na classe operária, o operário

social, atuante na fábrica social difusa.

Um dos prinicipais operadores teóricos utilizados por Negri para distinguir

essa nova configuração subjetiva, política e econômica é o conceito de

subsunção real do trabalho ao capital. A subsunção do trabalho ao capital é uma

condição necessária para o processo de acumulação capitalista, pois através

dela é produzida a mais-valia. No entanto, Marx distingue dois momentos dessa

subsunção: a formal e a real.

No momento de subsunção formal do trabalho ao capital são

evidenciadas algumas condições para a efetivação da exploração capitalista do

trabalho, como a separação entre os trabalhadores e meios de produção e o

estabelecimento do comando do capitalista sobre o processo laborativo. Com a

subsunção formal, o trabalho deixa de ser um meio de produção de valores de


uso e passa a ser orientado para a criação de mais-valia. Processos de trabalho

preexistentes ao capitalismo passam pela subsunção formal sem que haja

grandes mudanças em sua forma. Por exemplo, camponeses que anteriormente

cultivavam arroz como valor de uso e passam a cultivá-lo para uma agricultor

proprietário. Já no momento de subsunção real do trabalho ao capital, que ocorre

em sociedades propriamente capitalistas, há uma mudança na natureza do

trabalho. Essencialmente transformado, o trabalho é aplicado à maquinaria,

ciência e tecnologia integradas ao processo de produção. Se com a subsunção

formal a mudança na organização do trabalho possibilita a extração da mais valia

absoluta, na subsunção real do trabalho ao capital ocorre a produção de mais

valia relativa.(Marx, 1978, p. 51-55)

Negri toma de Marx o conceito de subsunção real do trabalho para denotar

expansão intensiva do capital, na qual a primazia do conhecimento socialmente

acumulado e aplicado à produção colapsa a divisão entre esferas da produção

e da reprodução. Ou seja, de acordo com Negri (1988, p. 111-114) na fase de

subsunção real, o trabalho é socializado e o valor é extraído tanto do trabalho

produtivo quanto do reprodutivo em um fluxo contínuo que atravessa o cotidiano.

Extendida por todo tecido da sociedade, a fábrica difusa se prolifera pela

metrópole, onde o antagonismo entre trabalhador social e capital também abarca

toda a vida.

O percurso que acompanha as transformações entre o trabalhador massa

e o trabalhador social, com a mediação teórica do conceito de subsunção real, é

primordial para a compreensão da utilização do conceito de biopolítica por Toni

Negri. O contato de Negri com a obra de Foucault ocorre ainda durante o final
da década de 1970, porém o conceito de biopolítica só adentraria o corpo teórico

de Negri na década de 1990.

Biopolítica por Foucault

Trabalhado por Foucault a partir da décdade de 1970, o conceito de

biopolítica, possui uma ampla história pregressa1, na qual diferentes autores

buscaram chamar atenção para relações entre política e vida biológica.

Especificamente em Foucault, o termo começa a ser utilizado em 1976, em a

História da Sexualidade e foi também durante os cursos ministrados pelo filósofo

no College de France.

Nesses trabalhos, Foucault elabora uma analítica do poder que ultrapassa

limites de seus trabalhos anteriores, como Vigiar e Punir (1975). Nessa obra, o

filósofo francês desenvolve a ideia de poder disciplinar, que, grosso modo,

trataria-se de um conjunto de estratégias e táticas exercidas em instituições

como prisões, escolas, hospitais e quartéis como meios de produção de sujeitos

docilizados e úteis às autoridades políticas e econômicas da França em

modernização. Apesar de dissemadas por múltiplos espaços institucionais as

táticas do poder disciplinar possuíam como alvo o corpo individual, atuando em

um nível de controle dos gestos, posturas e movimentos, transformando massas

informes em corpos organizadamente distribuídos pelo espaço e comportados

de acordo com as normas.

No entanto, em trabalhos subsequentes, Foucault avança para tratar do

poder que se exerce não só no nível individual, mas que encontra na regulação

da vida de toda uma população seu objeto. De acordo com Foucault (2002), a

1
Para uma genealogia do conceito,ver CANDIDO, (2013), p. 145-154.
biopolítica surge em um momento do século XVIII, no qual a população aparece

enquanto um problema de governo. A partir de então, o poder passou a se

preocupar com formas de garantir, estender e otimizar a vida. Ferramentas como

a estatística e a demografia são primordiais para o exercício da biopolítica,visto

que fornecem meios de conhecimento para a intervenção sobre esse corpo esse

corpo social. No paradigma biopolítico enunciado por Foucault, atuando sobre a

matéria vital da população, o imperativo do poder é fazer viver e controlar vida.

Ao considerarem o uso que Negri (em companhia de Michael Hardt) faz

do conceito,Rabinow e Rose (2006) destacam a especificidade da formulação

de Foucault de biopolítica:

Seria útil relembrar que quando Foucault introduziu o termo, no final

desuas aulas no Collège de France de 1975-6 – Em defesa da

sociedade (2002) –, ele foi preciso quanto ao fenômeno histórico

que estava buscando apreender. Ele os enumerou: taxas de

natalidade e o início das políticas de intervenção sobre elas;

assuntos de morbidade, nem tanto as epidemias, mas as

doenças que são rotineiramente predominantes em uma

população particular e sugam seu esforçoexigindo intervenções

em nome da higiene pública e novas medidas para coordenar

a assistência médica; os problemas da idade avançada e os

acidentes aserem tratados através de mecanismos de

seguridade; o problema da raça e oimpacto sobre ele das

condições geográficas, climáticas e ambientais, notavelmentena

cidade. (RABINOW; ROSE, 2006, p.31 e 32).


Em crítica frontal à apropriação de Negri do conceito, os autores citados

acima buscam sedimentar tematica (a saúde humana), geográfica (Europa) e

históricamente (séculos XVIII e XIX) a acepção foucaultiana de biopolítica. No

entanto, semelhante ao que fizera com categorias marxianas, Negri faz uma

utilização da biopolítica inspirada em Foucault, porém insere esse ideia em seu

próprio percurso intelecutual, alagando o sentido orginalmente proposto.

Biopolítica por Negri

Rabinow e Rose (Ibid.,p.32) criticam Negri (e Hardt) por em Império,

estender indevidamente o conceito de biopolítica como algo que “expressa como

um controle que se estende ao longo das profundezas das consciências e

dos corpos da população” (Hardt e Negri,2000, p. 24 apud RABINOW; ROSE,

2006, p. 32). No entanto, apesar de Império ser uma obra posterior a formulações

como a do operário social, ao analisarmos a forma como Negri o compreende, é

possível constatar uma continuidade com o percurso de reflexões do italiano.

De acordo com o próprio Negri:

Eis como surge o biopolítico: como vida posta a trabalhar e,

portanto, como política ativada para organizar as condições

de controle e exploração social na dimensão da vida. Dizia-

se em termos marxistas: o capital ‘subsumiu’ a sociedade

inteira. (NEGRI, 2016, p. 93).

Como nos ensaios da década de 1980, o conceito de subsunção aparece

aqui novamente, porém reposto e retrabalhado sob a categoria de biopolítica. O

conceito de inspiração foucaultiana aparece então na obra de Negri para dar

conta de tendências que eram destacadas pelo filósfo-militante desde o período


da Autonomia operaia. Retomando, as reestruturações ocorridas entre o fim da

década de 1960 e decorrer de 1970 tinham posto em cheque a divisão entre as

esferas de produção e reprodução do valor, que então passava a ser extraído

não só no contexto da fábrica, mas em todo o corpo social. Considerando que

essas tendências se aprofundaram com o advento do pós-fordismo, a ideia de

subsunção real passa ganhar ainda mais sentido.

O conceito de biopolítica aparece então para dar conta da subsunção de

toda a sociedade, que passa a integrar o circuito do valor e se submete à

autoridade do capital. A materia vital humana que aparece em Foucault como

objeto do controle biopolítico é reconsiderada por Negri enquanto integrante

indelével e fonte de antagonismo no interior do capitalismo financeiro global. No

entanto, é importante destacar que a utilização do conceito de biopolítica por

Negri vem acompanhada de uma reformulação a respeito da subjetividade

política no interior do capitalismo contemporâneo. Muito embora não haja mais

espaço para tecer considerações a esse respeito, é importante demarcar que –

tanto quanto entre a subsunção real do trabalho e a biopolítica, entre o

trabalhador social e a multidão (o conceito de classe atualmente utilizado por

Negri) existem mais fios de continuidade do que de ruptura.

Bibliografia:

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Boitempo, 2004.
CANDIDO, Luiz Felipe Martins. Genealogia da biopolítica: uma leitura da

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WRIGHT, R. Storming Heaven. Class Composition and Struggle in Italian

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