Você está na página 1de 8

Luta de Classes e Contemporaneidade

Crise de acumulação e movimentos sociais: insurreições a partir da década


de 1960 e crise do regime de acumulação intensivo-extensivo1
Mateus Vieira Orio2

Resumo: Este estudo se empenha em fazer uma breve análise dos movimentos sociais que
emergiram durante a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo, principalmente a
insurreição de Maio de 68 em Paris, contribuindo assim com uma compreensão da concretude
deste movimento como a síntese de múltiplas determinações e, portanto, relacioná-los à
determinação fundamental da sociedade, ou seja, o modo de produção. E assim contrapor ao
paradigma dos Novos Movimentos Sociais e principalmente aos ideólogos intitulados pós-
modernos, reafirmando a luta contra a degradação da vida na sociedade burguesa.

Palavras chave: Movimentos Sociais, Maio de 68, crise de acumulação.

Os movimentos sociais iniciados no final da década de 1960 e que se seguiram nas


décadas seguintes tiveram grande relevância social e grande repercussão nos debates
acadêmicos que se desenvolvem até os dias atuais. Tamanha foi a repercussão nos círculos
acadêmicos que os respectivos movimentos foram atribuídos como uma nova maneira de
realizar protestos assim como inauguraram um novo paradigma científico de análise de
movimentos sociais e até da sociedade como um todo: o paradigma dos Novos Movimentos
Sociais.
O que instiga ao presente estudo é a compreensão destes movimentos, em especial o
Maio de 68, no interior da totalidade das relações sociais, ou seja, buscar a compreensão da
concretude destes fenômenos como a síntese de múltiplas determinações e, portanto,
relacioná-los à determinação fundamental da sociedade, ou seja, o modo como os seres
humanos produzem e reproduzem suas condições materiais de existência: o modo de
produção. Por isso consideramos a crise de acumulação do modo de produção capitalista
como estritamente relacionada com as lutas sociais delimitando enfim o tema desta pesquisa
em: Crise de acumulação e movimentos sociais: insurreições a partir da década de 1960 e
crise do regime de acumulação intensivo-extensivo.

1 Texto referente { apresentaç~o de comunicaç~o no Semin|rio Tem|tico nº 7: “Emancipação humana e as


articulações entre as lutas sociais” do II Simpósio Nacional Marxismo Libert|rio a se realizar de 9 a 11 de maio de
2012 na Universidade Federal de Goiás.
2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás e mestrando em Sociologia pelo Programa de

Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás com apoio financeiro da CAPES.

119
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário

Este estudo tem como objetivo fazer uma breve análise dos movimentos sociais que
emergiram durante a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo, principalmente a
insurreição de Maio de 68 em Paris, contribuindo assim com uma compreensão mais
aprofundada da análise de movimentos sociais em contraposição ao paradigma dos Novos
Movimentos Sociais e principalmente aos ideólogos intitulados pós-modernos.
Partindo entao da definiçao de Nildo Viana (2009) podemos definir regime de acumulaçao como:

[...] um determinado estagio do desenvolvimento capitalista, marcado por


determinada forma de organizaçao do trabalho (processo de valorizaçao),
determinada forma estatal e determinada forma de exploraçao internacional.
(Viana, 2009, p. 29-30).

Desta forma, um regime de acumulação específico é expressão da luta de classes


contemporânea em uma correlação relativamente estável seja no âmbito da organização da
produção ou mediada pelos Estados Nacionais de modo a influenciar as relações
internacionais. Além disso, a mudança no regime de acumulação provoca mudanças gerais na
sociedade, pois a cada novo regime de acumulação surgem diferentes expressões culturais,
ideológicas, etc. (Viana, 2009).
Após a acumulação primitiva de capital inicia-se o primeiro regime de acumulação
propriamente capitalista: o regime de acumulação extensivo, caracterizado, grosso modo, pela
extração de mais-valor absoluto, o estado liberal e o colonialismo. Então inicia-se, após a crise
do primeiro, no final do século 19, o regime de acumulação intensivo que, em linhas gerais,
trazia o taylorismo e a ampliação do mais-valor relativo, o estado liberal-democrático e o
neocolonialismo. E o regime de acumulação intensivo-extensivo se inicia após a Segunda
Guerra Mundial. (Viana, 2009).
É importante ressaltar que o que move a sucessão de regimes de acumulação, ou seja, o
que movimenta o capitalismo é a luta de classes. E para cada regime de acumulação
correspondem lutas específicas envolvendo principalmente as classes fundamentais:
burguesia e proletariado, e também as demais classes. Estas duas classes são fundamentais,
porque, como dito anteriormente, o modo de produção da vida material é fundamental na
existência humana, afinal não é possível sobreviver sem satisfazer as necessidades básicas
como comer, vestir e se abrigar. E o ser humano só é humano em relação (Marx, 1984), para
produzir e reproduzir sua vida ele precisa transformar a natureza e por isso o trabalho é a

De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II 120
Luta de Classes e Contemporaneidade

condição de mediação entre homem e natureza. O que acontece no modo de produção


capitalista é que os seres humanos que produzem os bens materiais necessários para a
reprodução da vida não têm a posse dos meios para o fazê-lo (ferramentas, matérias primas,
etc.) e nem, tampouco, ficam com o que produzem, pois seus produtos pertencem aos seres
humanos que têm a posse dos meios de produção e vendem os produtos no mercado de uma
maneira que é peculiar ao capitalismo. Os primeiros seres humanos aludidos acima
constituem a classe proletária e os últimos a classe burguesa, as demais classes gravitam em
torno da produção se apropriando de parte dela para sobreviverem e isso se dá de diversas
formas as quais não entraremos aqui. E por agora basta dizer que estas duas classes são
fundamentais por estarem no seio da produção da vida.
Enfim, o regime de acumulação intensivo-extensivo é marcado pela extensão do
capitalismo a quase totalidade do globo terrestre, o surgimento das multinacionais, o
chamado Estado de Bem-Estar Social e o imperialismo oligopolista. O mais-valor é extraído de
maneira extensa e intensificada: marcadamente mais-valor relativo nos países desenvolvidos
e mais-valor absoluto nos países subordinados. Surge então a resistência a este regime:

Na esfera da produção, a resistência ao fordismo é ampla nos países imperialistas,


desde o absenteísmo, às greves, até as revoluções e experiências revolucionárias
demonstram isso. O maio de 1968 francês e alemão, as greves selvagens na Itália no
início da década de 1970 são exemplos extremos. Na esfera da sociedade civil, a
expressão de organizações e concepções revolucionárias ganham força e amplitude. O
autonomismo, situacionismo, anarquismo, conselhismo etc. crescem e se espalham
por toda a Europa e Estados Unidos. Os movimentos contra a Guerra do Vietnam nos
EUA, os movimentos pacifistas, anti-nuclear e também o movimento ecológico ou
ambientalista [...] se espalham por quase todos os países da Europa, Estados Unidos e
também em alguns países periféricos. (Maia, 2011).

O Maio de 68 se destaca então como um grande expoente dos movimentos sociais do


período da crise do regime de acumulação intensivo-extensivo. Neste movimento estudantes e
trabalhadores reivindicavam desde reformas integradas, limitadas ao modo de produção
capitalista e à sociedade capitalista chegando até a preceitos revolucionários que
consideravam que a própria sociedade moderna deveria ser rejeitada. A radicalidade do

121
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário

movimento – é importante ressaltar – é tamanha a ponto de que as exigências mais profundas,


aquelas revolucionárias, foram espontaneamente majoritárias (Solidarity, 2003).
Os avanços que este movimento trouxe são vários e precisam ser aqui relembrados. Os
estudantes manifestantes compreendiam a necessidade da expansão do movimento aos
setores populares, principalmente aos trabalhadores, pois eles tinham a consciência – de um
tipo espontâneo, advindo da própria luta presente – do papel essencial dos trabalhadores na
sociedade. Ainda que algumas minorias interesseiras utilizassem disso para descreditar a
ação estudantil (Solidarity, 2003).
Neste movimento, inúmeras vezes, partidários foram chamados de oportunistas por
conta da contradição, que então se tornara evidente, entre suas posturas contemporâneas e
suas atitudes anteriores no âmbito governamental. O movimento foi uma prova de que os
trabalhadores não eram interessados somente em futebol, televisão e corrida de cavalos
(Solidarity, 2003), mas que poderiam reconhecer e usar a sua força. A luta revolucionária
evidencia – e neste caso de maneira profunda – a falta de sentido da vida moderna, evidencia
que na degradação da vida moderna só a luta faz sentido. A percepção de que só a frente
sindical é que pode aglutinar trabalhadores individuais é solapada, a crença de que os
partidos são os únicos veículos de ação política é derrubada na prática.
A ocupação da Sorbonne e do Censier representaram uma verdadeira explosão
intelectual de cunho revolucionário em que os mais diversos assuntos da vida cotidiana
(desde as maneiras de ensino na Universidade até a repressão sexual e formas políticas de
organização) e as respectivas categorias que tradicionalmente os explicavam/ justificavam
foram postos em questão em acalorados grupos de discussão. As expressões artísticas
floresciam em meio a incansáveis avanços políticos. E isso tudo representou um grande
volume de compreensão da sociedade burguesa e suas mistificações, assim como deu vazão a
diversos anseios de indivíduos reprimidos, que até então não haviam tido oportunidade de se
manifestar, alimentando assim o fogo oculto da revolução social. (Solidarity, 2003).
A clareza política (a clareza do discurso com relação ao que acontecia na prática), a
clareza democrática (o respeito às concepções do outro) e, além disso, a clareza de
organização das Assembles Générales3 impedia que qualquer discurso dogmático se
impusesse sobre o coletivo de manifestantes, favorecendo à resolução de questões práticas e

3 Assembleias Gerais.

De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II 122
Luta de Classes e Contemporaneidade

ao avanço da consciência revolucionária. E por isso, as minorias revolucionárias, ainda que


importantes para os debates, não procuraram e nem puderam impor suas vontades.
(Solidarity, 2003).
A necessidade de produzir informações sobre o que estava acontecendo fez os
manifestantes superarem suas diferenças políticas em virtude das ações práticas. As ideias
dos manifestantes eram algumas poucas proposições direcionadas ao rápido e autônomo
desenvolvimento da luta da classe trabalhadora, consistiam em

[...] uma campanha pelo constante controle da luta de baixo para cima, pela
autodefesa, pela gestão operária da produção, pela popularização da concepção de
conselhos operários, e que explicava a todos a enorme importância, em uma situação
revolucionária, das exigências revolucionárias, da atividade auto-organizada, da
autoconfiança coletiva. (Solidarity, 2003, p. 72).

“Praticamente todos os setores da sociedade francesa se envolveram em certa


medida.” (Solidarity, 2003, p.104). Todos os princípios hier|rquicos foram questionados,
afirmaram a possibilidade da autogestão democrática, denunciaram o monopólio da
informação e criticaram os pilares da civilização: a divisão entre trabalho intelectual e manual,
a sociedade do consumo, a fetichização da universidade e da ciência. Foi um movimento que
trouxe à tona o potencial criativo, em que houve uma tomada de consciência muito célere e
vasta. Um momento de radicalização, crítica profunda e abalo das mistificações. Um
movimento que buscou extirpar as formas obsoletas de organização da luta. Foi um
movimento que denunciou as organizações burocráticas como aparelhos mantenedores, até
as últimas consequências, do atual regime.
O paradigma de análise sociológica dos novos movimentos sociais surge, segundo Gonh
(1997), a partir da alegação de que o paradigma marxista (chamado clássico ou ortodoxo) é
inadequado para explicar os movimentos sociais a partir da década de 1960 na Europa. Isso se
deve porque segundo os ideólogos dos novos movimentos sociais o marxismo privilegiaria as
explicações macrossociais desprivilegiando os domínios da política e da cultura em prol da
economia.
O referido paradigma é um modelo teórico baseado na cultura que nega a visão
funcionalista e rejeita o conceito de Marx de ideologia como falsa consciência. Além disso, este

123
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário

paradigma nega a vanguarda partidária em favor do coletivo difuso, vendo os participantes de


ações coletivas como atores sociais, privilegiando an|lises “microssociais” e compreendendo o
poder para além da esfera do Estado. A recusa de partidos e sindicatos se daria devido à crise
dos canais tradicionais de participação da democracia ocidental. Nesta análise ações coletivas,
interação social e atores sociais são categorias centrais, além de cultura e identidade. (Gohn,
1997)
Conforme Viana (2009) com as mutações nos regimes de acumulação e com as
mudanças culturais que surgem neste processo, são criadas novas ideologias. A partir disso
afirmamos que o paradigma sociológico dos novos movimentos sociais é uma destas
ideologias que surgem no regime de acumulação intensivo-extensivo:

[...] a essência do modo de produção capitalista não muda com os regimes de


acumulação, pois estes são formas de manifestação histórico-concreta daquele. No
entanto, a mudança do regime de acumulação promoveu, por exemplo, mudanças
culturais que atingiram até a interpretação do pensamento de Marx. (Viana, 2009, p.
128)

E isso quer dizer que as mudanças culturais influenciam na forma como interpretamos
as ideias e também na forma como as ideias influenciam as ações. Por isso concluímos que o
surgimento do paradigma dos novos movimentos sociais é uma ideologia que se constrói a
partir da crítica de interpretações do pensamento de Marx e da atribuição de ideias ao
marxismo. Nestes termos, indo adiante na crítica, podemos considerar que o paradigma dos
novos movimentos sociais é uma nova linguagem que amortece o impacto da realidade
ocultando o aumento da exploração e da miséria que ocorre a partir do final da década de
1960 durante a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo.
Karl Jensen (1996) se propõe a desenvolver uma definição precisa de movimentos
sociais considerando que a questão da definição era até então o grande problema teórico da
análise dos movimentos sociais. Segundo Jensen o que se movimenta na sociedade são grupos
sociais e a alteração que sofrem é histórica. Para este autor é preciso entender a constituição
dos grupos sociais para compreender a causa dos respectivos movimentos sociais. Estes
surgem, segundo o autor, no interior de determinadas relações sociais onde se origina a

De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II 124
Luta de Classes e Contemporaneidade

necessidade de uma ação coletiva por parte de um conjunto de pessoas que possuem aspectos
em comum. Estes aspectos podem ser biológicos, culturais / ideológicos, condição social, etc.
Um movimento social causa mudanças tanto no grupo social que lhe dá origem
(consciência, experiência) como no conjunto da sociedade (mudança social), assim como no
próprio desenvolvimento do movimento. Jensen diz ainda que para haver movimentos sociais
é preciso haver uma complexa divisão social do trabalho a ponto de criar grupos sociais
diversos com interesses diversos e elevada consciência social. E que para haver movimento
social é preciso ter uma consciência coletiva e ações coletivas regulares. O autor conclui então
que as condições para a existência de movimentos sociais se situam na sociedade capitalista e
que eles não existem antes dela. (Jensen, 1996).
De acordo com Jensen a pesquisa sociológica sobre os movimentos sociais é ideológica,
nela os movimentos sociais são definidos pelos seus objetivos. Os grupos sociais de origem
são esquecidos, obscurecendo as especificidades dos movimentos. Por fim ele afirma que os
movimentos sociais surgem graças à alienação generalizada do ser humano no modo de
produção capitalista e as respectivas questões só poderão ser resolvidas efetivamente –
excetuando os movimentos sociais burgueses – na luta aliada ao proletariado contra o
capitalismo, essencial para a vitória do processo revolucionário.
Assim como Karl Jensen, consideramos que todo movimento social é derivado da luta
de classes e por isso o paradigma dos novos movimentos sociais tem o objetivo de deslocar a
visão da luta de classes para situar-se em torno de uma pluralidade de agentes com
características diversas e ideias autônomas, ocultando assim o acirramento da luta de classes
no período observado.
É possível até mesmo relacionar a reação do Partido Comunista Francês no Maio de 68
com a reação dos ideólogos ditos pós-modernos (grandes influenciadores do paradigma dos
Novos Movimentos Sociais). O discurso – devido a falta de uma análise que compreenda as
múltiplas determinações dos movimentos sociais, de maneira a abranger a totalidade da
sociedade – defende a reforma em detrimento da revolução, defende a impossibilidade de se
fazer revolução, nestes discursos a revolução não existe, a baderna é condenável, o trauma da
revolução implica que não se deve fazer revolução, não desta forma, a revolução é algo que
deve vir passivamente, um processo longo.

125
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário

Por isso, para concluir, reafirmamos os avanços que ocorreram em Paris no Maio de
1968, avanços estes que foram esquecidos após a derrota da insurreição, apontando para um
longo período de refluxo. É preciso, pois, superar as concepções ideológicas que obscurecem a
realidade opressora da nova forma de acumulação capitalista e trazer de volta os avanços
daquele movimento, que compreendem uma forma de reafirmar a vida em detrimento da
degradação da vida na sociedade burguesa.

Referências

GOHN, Maria da Glória. O paradigma dos novos movimentos sociais In: ______. Teoria dos
movimentos sociais: Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.

JENSEN, Karl. Teses Sobre os Movimentos Sociais. Revista Ruptura, Goiânia v. 3, n. 4, jan.
1996.

MAIA, Lucas. Crise de acumulação e ideologia: a emergência da questão ambiental. Estácio de


Sá – Ciências Humanas, Goiânia v. 2, n, 5, p. 99-115, 2011.

MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1985.

SOLIDARITY. Paris: Maio de 68. São Paulo: Conrad Livros. 2003.

VIANA, Nildo. O capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida, SP: Idéias & Letras,
2009.

De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II 126

Você também pode gostar