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Fax: (015) 251-2810
Primeira edição
Cinco mil exemplares 1997
Editoração: Neila D. Oliveira
Programação visual: Manoel A. Silva
Capa e ilustração: Heber Pintos
IMPRESSO NO BRASIL
Printed in Brazil
3764/6343
Sumário
Introdução .................................................................. 7
1. “Vai-te em paz”................................................... 11
2. “Não vim chamar justos” .................................... 24
3. “Tome a sua cruz” .............................................. 37
4. “Importa-vos nascer de novo” ............................. 50
5. “Vai, e não peques mais” .................................... 64
6. “Por que duvidaste?” .......................................... 79
7. “Nem Eu tão pouco te condeno” ......................... 92
8. “Estarás comigo no paraíso” .............................. 106
Bibliografia ............................................................. 121
DEDICATÓRIA
As minhas queridas filhas:
Kéldie e Keilyn com muito
amor e carinho.
INTRODUÇÃO
“Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo
do Céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens,
pelo qual importa que sejamos salvos.” Atos 4:12

M esmo após a morte de Jesus, o templo de Jerusalém conti-


nuou a ser usado pelos cristãos primitivos como local de arr
orações (Atos 2:46). Certo dia, ao irem até lá para a oração
da tarde, Pedro e João foram surpreendidos por um coxo de
nascença, que insistentemente lhes pedia alguma esmola.
Bastante tocados pelo estado de miséria daquele pobre
homem, os apóstolos deram a ele algo muito mais precioso do que
prata ou ouro. Eles o curaram.
A notícia do milagre despertou a atenção de muitos fiéis que ali
estavam, e Pedro e João tiveram a oportunidade de dar um tes-
temunho vigoroso em favor de Jesus, por cujo poder se realizara a
cura. Antes, porém, que terminassem de falar, vieram as autoridades
judaicas e seguranças do Templo, e os levaram presos.
No dia seguinte, ao serem trazidos para o interrogatório, os
apóstolos, cheios do Espírito Santo, não se deixaram intimidar. E foi
então que Pedro, logo no início de sua defesa, proferiu as
memoráveis palavras que serviram de inspiração para o título deste
livro: “Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do Céu não
existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa
que sejamos salvos.” Atos 4:12. A intenção do apóstolo era não
apenas afirmar que fora Jesus quem curara o coxo, mas também
deixar bem claro que somente Ele recebera poder da parte de Deus
para salvar a quem quer que seja, contrariando, portanto, o deturpado
sistema de salvação pelas obras sustentado pela teologia judaica. E
essas palavras são hoje tão oportunas como o foram naquela ocasião.
Infelizmente, o ser humano tem uma tendência natural para achar
que suas obras são de alguma forma meritórias diante de Deus, e
mesmo em nosso meio essa tendência às vezes se faz presente, tanto
por causa de excessos na defesa dos Dez Mandamentos quanto por
ênfases exageradas na doutrina da santificação. De uns anos para cá,
porém, temos visto como que um ressurgimento
SÓ JESUS

da pregação sobre justificação pela fé nos círculos adventistas, e


devemos sem dúvida nenhuma dar graças a Deus por isso. Mas
corremos agora o risco de adotar uma nova tendência, a de minimizar
a santificação e a conseqíiente observância da lei divina. Não há
virtude alguma em evitar um extremo e cair no outro.
Este livro, porém, não consiste necessariamente num ataque ao
extremo do liberalismo. Estou convencido de que qualquer que seja
o motivo, a ênfase unilateral em qualquer dos aspectos da doutrina
da salvação acaba sendo prejudicial, porque sempre haverá pessoas
que se apegarão àquele aspecto em particular, pensando se tratar do
todo. A visão das árvores muitas vezes nos leva a perder de vista a
floresta. Como o contrário também é verdade, o que se buscou aqui
não foi a discussão de pontos particulares da doutrina da salvação,
mas, sim, uma visão geral da doutrina, sempre a partir de problemas
específicos que muitos de nós enfrentamos em nossa vida cristã.
Os capítulos são progressivos, e cada um deles focaliza um
problema diferente. Um episódio da vida de Cristo é então tomado
como ilustração e ponto de partida para a argumentação doutrinária
propriamente dita, que por sua vez está baseada quase que
exclusivamente nos escritos de Paulo. Em todo o livro, porém, se
buscou mais um enfoque devocional que doutrinário, justamente
para que ele pudesse de alguma forma ser útil à Igreja em suas
necessidades práticas no tocante à experiência da salvação.
As várias obras incluídas na Bibliografia foram deveras
importantes na elaboração deste livro, seja com respeito à in-
terpretação de textos, à exposição doutrinária, ou mesmo no tocante
à reconstituição do pano de fundo histórico e social dos dias de Jesus.
Dentre todas, porém, gostaria de registrar minha dívida particular
para com duas delas: En paz con Dios, de Atilio René Dupertuis, e
What Every Christian Should Know About Being Justified, de Arnold
Valentin Wallenkampf, dívida essa que em nada é menos apreciada
pelo fato de tais obras não serem citadas em notas específicas em
cada capítulo. As obras de Ellen G. White foram deixadas de fora da
Bibliografia, para não torná-la longa demais. Suas citações são
referenciadas no próprio texto.
INTRODUÇÃO

Este livro é simples e despretensioso, mas o sentimento por tê- lo


escrito é o de profunda e sincera gratidão a Deus, sobretudo porque
me considero o maior beneficiado. Mas se ele também puder ser útil
a algum leitor que deseja conhecer um pouco mais acerca do amor e
da vontade salvífica de Deus, conforme revelados nas Escrituras
Sagradas, esta será minha maior recompensa.

Wilson Paroschi
CAPÍTULO 1

“Vai-te em paz”
“E Ele lhe disse: Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz,
e fica livre do teu mal.” Marcos 5:34

E
muito comum encontrarmos nas pessoas em geral, dois po-
sicionamentos bem opostos com respeito às relações de MB cada
uma delas para com Deus.
De um lado, estão aqueles que não estão nem um pouco preo-
cupados com isso. São indiferentes para com aquilo que Deus
possa pensar acerca deles. Acham que não devem absolutamente
nada, e que, portanto, nada têm a temer.
De outro, estão aqueles que vivem atormentados pelo medo e o
sentimento de culpa. Não precisam necessariamente ter feito nada de
diferente daquilo que os outros costumam fazer, mas por uma ou
outra razão se sentem culpados, e isso faz com que percam roda a
alegria de viver. Vivem deprimidos, e às vezes até em profundo
desespero.
É o caso da mulher a quem Jesus dirigiu as palavras do texto em
epígrafe. A história é bem conhecida (Mar. 5:24-34). Ela havia ido a
Jesus em busca de cura, mas não apenas por causa dos sofrimentos
físicos e da vergonha que sua enfermidade lhe causava, senão
porque, em sua mente, a enfermidade que a acompanhava já por
vários anos era um castigo de Deus por algum pecado que havia
cometido.
E Jesus sabia disso. Ele sabia que o problema mais grave que a
atormentava era o senso de culpa. Foi por isso que não Se limitou a
curá-la. Ele fez questão de perdoá-la e de dirigir-lhe palavras de
carinho e de mais completa aceitação.

Preconceito e Discriminação

Jesus estava na cidade de Cafamaum e, como de costume, uma


grande multidão se aglomerava em Seu redor, comprimindo-O de
todos os lados (Mar. 5:21), enquanto Ele Se dirigia à casa de um
homem chamado Jairo, cuja filha se achava gravemente enferma.
11
Só JESUS

No meio da multidão havia uma mulher também enferma. Já por


doze anos ela vinha sofrendo de uma hemorragia (Mar. 5:25). Seu
sofrimento, porém, não tinha que ver apenas com sua saúde. Era bem
mais amplo, e é necessário conhecermos um pouco mais acerca das
circunstâncias incrivelmente desfavoráveis que a envolviam, para que
possamos entender melhor o que aquele encontro com Cristo
significou em sua vida.
Para começar, ela era uma mulher, e, na Palestina nos dias de Jesus,
o lugar reservado às mulheres na sociedade era tremendamente
inferior ao dos homens.
Israel era uma sociedade patriarcal, onde os homens eram os chefes
da família e do governo. Embora, aos olhos de Deus, ambos - homem
e mulher - fossem de importância igual, a verdade é que, na vida
prática, as mulheres sofriam uma discriminação absurda e muitas
vezes cruel, que começava já no instante do nascimento.
Era muito característica a alegria ao nascer um menino, enquanto
que o nascimento de uma menina era acompanhado de indiferença, e
até mesmo de tristeza. Havia inclusive uma oração que os judeus
costumavam recitar, agradecendo a Deus por não terem nascido nem
mulher, nem gentio, nem escravo.
Na casa paterna, o lugar das filhas sempre vinha depois do dos
meninos; sua formação se limitava ao aprendizado dos trabalhos
domésticos, principalmente costura e fiação. Eram proibidas de
frequentar as escolas dos rabinos.
Para com o pai, tinham os mesmos deveres que os filhos: alimentá-
lo, banhá-lo, vesti-lo, e assisti-lo quando se tornasse velho; mas, não
tinham os mesmos direitos que os irmãos. Só tinham parte na herança,
por exemplo, se não houvesse filhos homens. A idade ideal para o
casamento, segundo os rabinos, era quando a moça estivesse
fisicamente apta para isso, ou seja aos doze anos e meio; e a escolha
do cônjuge, na maioria dos casos, era feita pelo pai, sem qualquer
consulta prévia.
A esposa também estava reservado unicamente o serviço do-
méstico. Tinha que moer, cozinhar, lavar, amamentar os filhos, fazer
a cama do marido, e ajudar na própria manutenção, fiando e tecendo
a lã.
Pela manhã, tinha que se levantar antes do marido para lhe preparar
o alimento, e, na hora da refeição, tinha que permanecer em pé,
12
“VAI-TE EM PAZ”

servindo-o à mesa, enquanto ele comia.


Às vezes, era-lhe também exigido que preparasse a bacia para o
marido, ao este voltar do trabalho, e que lhe lavasse o rosto, as mãos
e os pés. Enfim, sua condição frente ao esposo era prati- camente a
mesma de uma serva frente ao seu senhor. Era obrigada a obedecer-
lhe em tudo, e os próprios filhos eram ensinados a colocar o respeito
ao pai acima do respeito à mãe.
Quanto à vida pública, preferia-se que a mulher, especialmente a
moça antes do casamento, não saísse de casa. Quando casada, se
tivesse que sair, tinha que usar véu a fim de ocultar o rosto.
A um israelita era completamente impróprio falar a uma mulher na
rua, mesmo que fosse sua esposa; até mesmo no templo, as mulheres
tinham que ficar a certa distância dos homens. Suas próprias casas,
onde passavam praticamente o dia inteiro, tinham que ter grades nas
janelas que davam para a rua, para que não fossem vistas.
Perante a lei, a mulher era considerada menor, irresponsável; o
marido podia recusar qualquer compromisso por ela assumido, e a
parte prejudicada não encontrava nenhum apoio legal.
Exceto em casos muito excepcionais, o testemunho de uma mulher
não seria aceito num tribunal.
O marido não tinha o direito de vendê-la, mas não havia a menor
dificuldade em repudiá-la. Por outro lado, os casos em que a mulher
podia pedir o divórcio eram extremamente raros.
A poligamia era permitida. A esposa, portanto, tinha que tolerar a
presença de concubinas ao seu lado. Mesmo assim, devia total
fidelidade ao marido, e, em caso de adultério, seria castigada com a
morte. Com o homem, isso raramente acontecia.
Enfim, como já dito, as mulheres no tempo de Jesus amargavam
uma discriminação absurda, cruel, e não tinham a quem recorrer. Os
próprios rabinos, que eram como que os teólogos da época,
costumavam tratá-las com desdém e um mordente sarcasmo. Era
comum ouvi-los repetir, por exemplo, a seguinte frase: “O Senhor deu
dez medidas de palavras para a humanidade; as mulheres se
apossaram de nove delas.” Ou ainda: ‘“De que parte tirarei a mulher’,
perguntou-Se o Todo-poderoso. ‘Da cabeça? Seria muito orgulhosa.
Do olho? Muito inquiridora. Da orelha? Escutaria às escondidas. Da
boca? Falaria demais. Da mào? Seria gastadora.’ Por fim, Ele tomou
uma parte bem obscura e escondida do corpo, na esperança de fazê-la
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Só JESUS

modesta.”

Um Castigo de Deus

Como se já não bastasse todo o leque de sentimentos e preconceitos


que existia contra o sexo feminino, a mulher de nossa história ainda
padecia de uma séria enfermidade - um fluxo de sangue que persistia
já por doze anos. E ser portadora desse mal naquela época, significava
estar definitivamente condenada ao isolamento total, e privada até
mesmo dos poucos afazeres a que tinha direito.
Uma antiga lei sanitária, cuja principal finalidade era preservar a
pureza e a santidade cerimonial do povo hebreu (Lev. 15:25-27), ha-
via sido levada a extremos, sendo aplicada de forma impiedosa a
quem quer que fosse, e essa pobre mulher era uma de suas vítimas.
Depois de doze anos de enfermidade, ela há muito já teria sido
banida do convívio dos amigos; já não frequentava mais o templo ou
as sinagogas; seu marido já lhe teria entregue a carta de divórcio; e,
se tivesse filhos, eles provavelmente já não estariam mais sob seus
cuidados.
Mas não pára por aí. Diz o relato que ela já havia padecido muito
à mão de vários médicos, tendo gasto tudo o que tinha, e em vez de
melhorar, só piorara (Mar. 5:26).
Havia muitos médicos em Israel, e há indícios de que as consultas
já eram caras desde aqueles tempos. A medicina da época, porém, era
bastante rudimentar e em muitos aspectos se aproximava mais da
magia do que da ciência. Vários tratamentos eram simplesmente
ridículos, enquanto que outros eram verdadeiras sessões de tortura.
Essa mulher, por exemplo, teria sido deixada numa encruzilhada
qualquer com um copo na mão por algum tempo, até que o “médico”
viesse silenciosamente por trás e lhe pregasse um susto violento, na
tentativa de curá-la. Um outro tratamento ainda mais “avançado” a
que teria sido submetida seria comer um grão de cevada encontrado
no excremento de uma mula branca. Não nos admira que, com o
passar do tempo, seu estado de saúde só piorasse.
E, para completar o quadro, havia também naquela época o
conceito de que as enfermidades eram uma espécie de castigo pelos
pecados eventualmente cometidos. Certa vez, ao encontrar um cego
de nascença, os discípulos perguntaram a Jesus: “Mestre, quem pecou,
4
“VAI-TE EM PAZ”

este ou seus pais, para que nascesse cego?” João 9:2.


Essa mulher, portanto, ainda era vítima dos dogmas e preconceitos
da teologia judaica. Além de ser cerimonialmente imunda, também
era tida como pecadora, e uma grande pecadora, porque seu mal já
persistia por vários anos. Era desprezada, marginalizada, e nada mais
havia que pudesse ser feito por ela. Vivia proscrita da sociedade,
separada de tudo e de todos. Já gastara tudo o que tinha, e a única
coisa que conseguira foi ficar ainda mais fraca, ainda mais enferma.
Qual não era o resultado de tudo isso nas emoções dessa pobre
mulher?! Quais não eram os sentimentos que predominavam em seu
coração?!
Não! Seu sofrimento não era apenas físico. Como se já não fosse o
bastante ser mulher, também era considerada imunda pela lei judaica,
e pior ainda era o estigma de pecadora. Frustração, vergonha, baixa
estima, medo e, para completar, complexo de culpa. E esse certamente
era o seu problema mais grave, e o que mais a fazia sofrer.
A idéia de ser culpada diante de Deus, e de estar pagando pelos
próprios pecados, era algo que a fustigava a todo o instante. Vivia
atormentada e, com sua saúde indo de mal a pior, já podia inclusive
achar que estivesse irremediavelmente perdida.
Um quadro patético, que dificilmente poderá ser exagerado. Talvez
faltasse muito pouco para ela entrar num estado de completo
desespero.

Todos São Culpados

Apesar de essa mulher estar sendo vítima de um ensino equivocado


- aquele que via a enfermidade como uma espécie de castigo ou
punição pelos pecados, quando muitas vezes consiste apenas numa
conseqiiência do pecado - numa coisa ela estava certa: ela era culpada
diante de Deus, porque era uma pecadora.

Embora o relato não descreva qualquer pecado que ela tenha co-
metido, a Bíblia é muito clara ao afirmar que todos os homens são
pecadores e, portanto, culpados diante de Deus. “Portanto”, diz o
apóstolo Paulo, “assim como por um só homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos
os homens, porque todos pecaram.” Rom. 5:12 (3:23).
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SÓ JESUS

Conquanto esse texto esteja falando de “morte” e não de “culpa”,


a idéia aqui presente é a de culpa. Poderíamos inclusive reler o
versículo, substituindo a palavra “morte” pela palavra “culpa”. Ficaria
assim: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a culpa, assim também a culpa passou a todos
os homens, porque todos pecaram.”
Mas com base em que podemos fazer essa substituição? É muito
simples. Todos sabemos que “o pecado é a transgressão da lei”. I João
3:4. Todo aquele que peca, portanto, toma-se culpado diante de Deus,
e, por conseguinte, sujeito ao castigo previsto na lei, que não é outro
senão a própria morte. “O salário do pecado”, diz Paulo, “é a morte”
(Rom. 6:23), e a morte eterna, a morte da eterna separação de Deus.
ok A idéia de Romanos 5:12, portanto, é a de que há uma sentença de
morte repousando sobre cada ser humano, porque todos pecaram.
Todos os homens são culpados aos olhos de Deus, e por isso estão
condenados à morte. Nesse ponto, a mulher de nossa história estava
certa, e, nesse ponto, muitos hoje em dia se equivocam, pois não lhe
dão a devida importância.
Conheci uma jovem professora, que me disse certa vez, que não
sentia necessidade alguma do sangue de Cristo, pois não se julgava
culpada de absolutamente nada. A verdade, porém, é que todos nós,
descendentes de Adão que somos, herdamos dele uma natureza moral
corrompida, um caráter pecaminoso (João 3:6), que não tem em si
mesmo a menor vontade sequer de resistir às tentações, e nem tem
poder para fazê-lo (Rom. 8:6).
O que nos torna culpados diante de Deus, porém, não é essa
tendência para pecar, e, sim, os pecados propriamente ditos que, por
causa dela, acabamos cometendo ao longo da vida. E não precisam
ser muitos. Basta um único pecado, o primeiro pecado, e já nos
tomaremos culpados.
Em outras palavras, a partir do momento em que, consciente e
voluntariamente, permitimos que nossa tendência pecaminosa
produzisse atos pecaminosos, nós como que contraímos uma dívida
diante de Deus, uma dívida de morte. E isso, infelizmente, diz respeito
a todos nós, sem exceção. “A morte”, diz Paulo, “passou a todos os
homens, porque todos pecaram.”
A comparação da morte a uma dívida é muito oportuna, porque o
que aconteceu a Adão é o mesmo que acontece a cada ser humano.
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“VAI-TE EM PAZ"

No Éden, Deus dissera: “No dia em que dela comeres, certamente


morrerás.” Gên. 2:17. E diz a Sra. White que a advertência não
implicava o fato de que Adão devesse morrer no dia exato em que
comesse do fruto proibido, mas que naquele dia a sentença seria
pronunciada. Naquele mesmo dia Adão estaria condenado à morte
{Patriarcas e Profetas, pág. 60).
Assim também acontece conosco, quando pecamos: não morremos
necessariamente, mas a sentença de morte é pronunciada.
E muitos há que se esquecem dessa verdade, dessa dívida que têm
diante de Deus, e procedem como se seu problema se limitasse apenas
ao presente - a fazer ou não isso ou aquilo - e por essa razão procuram
conquistar o favor divino e tranquilizar a própria consciência
mediante uma vida irrepreensível, de obediência e boas obras.
Todavia, mesmo que pudéssemos hoje apresentar a Deus uma
obediência perfeita, ela jamais poderia pagar nossa dívida, ou cancelar
a culpa de nossos pecados passados. E a razão é muito simples:
obediência e boas obras são exigidas de nós de qualquer modo.
Em muitos carnês de compra a prazo ou pagamentos de men-
salidades, costuma aparecer a seguinte observação: “Este pagamento
não quita débitos anteriores.” E por que não? Porque o valor do carnê
corresponde apenas à dívida daquele mês.
Assim é com nossa obediência presente. Ela não cobre a dívida que
temos diante de Deus - a culpa de nossos pecados passados - porque,
por melhor que seja, corresponde tão-somente àquilo que devemos
hoje. “Sede vós perfeitos”, disse Jesus, “como perfeito é o vosso Pai
celeste.” Mat. 5:48. A cada momento, Deus exige o máximo e o
melhor de nós, de maneira que nunca sobra para compensar erros
anteriores.
A Solução Divina

Só há uma forma de nossa dívida ser paga: “Sem derramamento de


sangue”, diz o apóstolo, “não há remissão” (Heb. 9:22), porque esse
é o próprio valor da dívida. E se nós mesmos quiséssemos efetuar o
pagamento, poderíamos fazê-lo, mas isso representaria o nosso fim,
para sempre. A morte, que é o salário do pecado, é definitiva.
Mas a grande mensagem do Evangelho é que Deus providenciou
para nós o pagamento de nossa dívida. Ele enviou o Seu único Filho
ao mundo para morrer em nosso lugar, para que nós pudéssemos
17
SÓ JESUS

viver. “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fa- zendo-Se Ele


próprio maldição em nosso lugar.” Gál. 3:13.
O que Paulo declara nesse versículo é que Cristo satisfez a justiça
que a lei exigia. Levou sobre Si a maldição de nosso pecado, e morreu
em nosso lugar, para que nós pudéssemos viver. Ao enfrentar sozinho
o Calvário, Ele pagou o alto custo de nossa dívida. Assumiu a culpa
que repousava sobre nós. Sentiu na carne toda a dor que o pecado é
capaz de provocar. Não a dor física, mas a dor da eterna separação do
Pai (Mat. 27:46). E, no último momento, quando a dor e a agonia
atingiam proporções indescritíveis, recobrou as poucas forças que Lhe
restavam, e? com voz rouca e lábios trémulos, exclamou: “Está
consumado!” (João 19:30), selando assim o Seu sacrifício vicárip.
É interessante notarmos que, se traduzida ao pé da letra, a ex-
pressão grega utilizada por Cristo nesse brado, tetelestai, signi- fica
justamente: “Pago!” ou “Está pago!” Esse era um termo comercial
muito usado na época de Jesus. Arqueólogos têm encontrado vários
recibos e notas comerciais em que aparece a palavra tetelestai, isto é,
“pago”, semelhante ao carimbo que alguns caixas ainda colocam hoje
em dia nas notas de compra após o devido pagamento.
“Está pago!”, portanto, exclamou Jesus. Esse foi o brado de nossa
liberdade, o brado de nossa redenção. Nossa dívida está paga em sua
totalidade. Ninguém mais deve absolutamente nada. A redenção do
mundo não está mais em dívida. A humanidade foi redimida para
sempre, e jamais será necessário repetir a expiação (Heb. 10:12).
Mas o fato de que a redenção obtida por Cristo é de caráter
universal não significa que ela seja automática. Isto é, não significa
que todos os seres humanos vão finalmente ser beneficiados por ela.
O que as Escrituras ensinam é que embora o sacrifício de Cristo seja
universal em seu desígnio, ele só é eficaz para aquele que crê em Jesus
como seu Salvador pessoal (João 3:16).
Só Cristo, portanto, pode resolver o problema de nossos pecados
passados, e isso Ele fez na cruz. Ele pagou nossa dívida até o último
centavo, sofreu a condenação que nós merecíamos, e agora nos
oferece graciosamente os méritos de Seu sangue. Se pela fé
aceitarmos o seu sacrifício, então, e somente então, nenhuma
condenação mais repousará sobre nós. Estaremos livres da maldição
da lei, que é a morte eterna, e a vida eterna já terá começado para nós.
“Aquele que crê em Mim”, disse Jesus, “tem a vida eterna.” João 6:47.
18
VAI-TE EM PAZ”

Mas não pára por aí. A salvação que Deus nos oferece por in-
termédio de Seu Filho não só resolve o problema de nossa culpa pelos
pecados cometidos, como também resolve o problema de nosso
caráter pecaminoso. O apóstolo Paulo declara: “Porque se nós,
quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte de
Seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela
Sua vida.” Rom. 5:10.
Não apenas a morte de Cristo, portanto, é necessária para a nossa
salvação, mas também Sua vida. Sua morte nos reconcilia com Deus,
ou seja, elimina a culpa que temos diante de Deus; e Sua vida, Seu
caráter santo e perfeito, substitui o nosso a fim de que também
sejamos tidos como santos. Isso é o que significa ser revestido com a
justiça de Cristo.
Quando aqui viveu, Cristo satisfez plenamente a todos os reclamos
da lei divina. “Tenho guardado os mandamentos de Meu Pai” (João
15:10), disse Ele, certa vez, apesar de todas as tentações e assédios do
inimigo por que passou (Heb. 4:15). “Em Sua humanidade, Cristo
formou caráter perfeito.” - Parábolas de Jesus, pág. 311. E quando O
aceitamos como nosso Salvador, Deus faz como que um lançamento
contábil, creditando a nosso favor a vida perfeita e imaculada de
Jesus.
Diz a Sra. White: “A lei requer justiça, e esta o pecador deve à lei;
mas é ele incapaz de a apresentar. A única maneira em que

19
Só JESUS

pode alcançar a justiça é pela fé. Pela fé pode ele apresentar a Deus
os méritos de Cristo, e o Senhor lança a obediência de Seu Filho a
crédito do pecador. A justiça de Cristo é aceita em lugar do fracasso
do homem, e Deus recebe, perdoa, justifica a alma arrependida e
crente, trata-a como se fosse justa, e ama-a tal qual ama Seu Filho.” -
Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 367.
Como é bela a mensagem do Evangelho! Como é maravilhosa a
redenção que Deus nos oferece por meio de Seu Filho! A morte de
Jesus é aceita em lugar da nossa, e Sua justiça é aceita como se fosse
nossa. Somos perdoados e considerados justos por Deus inteiramente
com base na morte vicária e na vida perfeita do Salvador.
Não importa quantos ou quão grandes pecados tenhamos cometido,
Deus nos perdoa e nos aceita novamente em Sua presença como se
nunca houvéssemos pecado (Caminho a Cristo, pág. 62). Trata-nos
como se fôssemos justos e nos ama com a mesma intensidade com
que ama a Seu próprio Filho. Nossas relações com Ele, rompidas pelo
pecado, voltam a estar plenamente reatadas. “Justificados, pois,
mediante a fé”, diz o apóstolo Paulo, “temos paz com Deus, por meio
de nosso Senhor Jesus Cristo.” Rom. 5:1.

Conclusão

Foi exatamente por isso que Jesus parou de repente, numa das
estreitas ruas de Cafarnaum, e fez aquela pergunta que surpreendeu a
todos os que se comprimiam ao Seu redor: “Quem Me tocou?” Mar.
5:31.
Ele sabia perfeitamente quem O tocara. “O Salvador podia
distinguir o toque da fé, do casual contato da turba descuidosa.” -- O
Desejado de Todas as Nações, pág. 344. O que Ele estava querendo,
na verdade, era dar àquela pobre mulher a oportunidade de se
identificar, para que pudesse livrá-la também do principal fardo que a
oprimia: o complexo de culpa.
Se a tivesse deixado ir sem ser notada, ela estaria fisicamente
curada, mas sua alma permaneceria arruinada pela culpa e o medo.
Por isso a pergunta: “Quem Me tocou?” Jesus fazia questão de dirigir-
lhe algumas palavras de perdão, de conforto e ânimo, para que sua
cura fosse completa. “Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz, e fica
livre do teu mal.” Mar. 5:34.
20
“VAI-TE EM PAZ"

É muito significativo Jesus tê-la chamado de “filha” , porque filho


é o que o ser humano se toma no momento exato em que aceita o
perdão de Cristo e é revestido com o manto de Sua justiça (Gál. 4:5 e
6). Não mais um pecador culpado e proscrito, mas um filho no sentido
pleno do termo, totalmente readmitido à família de Deus.
“A tua fé te salvou.” Ela se aproximara de Jesus como a única
solução para o seu problema. Crera nEle, e o resultado foi que acabou
recebendo muito mais do que aquilo que queria. Ela reconhecia a
própria indignidade, por isso veio por detrás, sem ser vista. Veio
exatamente como estava. Não trouxe nada. Não fez nada. Apenas
creu, e foi por essa razão que recebeu também aquilo de que tanto
precisava. “Vai-te em paz, e fica livre do teu mal.”
Cada um de nós tem, sim, uma culpa diante de Deus. Somos
pecadores, e estamos sob a condenação da lei. E a lembrança desse
fato, por pior que seja, é extremamente necessária, mas não para
produzir em nós aquele estado mórbido de angústia e tensão, tão
comum ao sentimento de culpa. Essa lembrança é necessária porque
consiste no primeiro passo para que sejamos perdoados. Satanás é
quem explora criminosamente a culpa que temos, de modo a produzir
em nós tal ansiedade que pode levar inclusive ao desespero.
Certa vez, uma famosa atriz de Hollywood não compareceu ao
estúdio para dar continuidade às filmagens que vinha fazendo. Depois
de várias horas de espera, foram até sua casa, e a encontraram deitada
na banheira, com os pulsos cortados, e já sem vida. Ao seu lado, um
bilhete dizia: “Não pensem que foi suicídio. Foi assassinato. Eu fui
morta por um criminoso muito cruel, o complexo de culpa. E espero
que ele seja encontrado e eliminado o quanto antes, para que não
venha a fazer mais vítimas.”
Como pastor, às vezes sou procurado por membros da igreja que
imaginam já ter ido longe demais em seus pecados, já ter pecado
contra o Espírito Santo, e que, portanto, não têm mais nenhuma
chance de perdão. São jovens ou adultos que vivem atormentados pela
culpa, e que acham não haver mais qualquer esperança para eles.
Esse, porém, nada mais é que o resultado final das artimanhas do
inimigo. Primeiro, ele tenta, induz ao pecado, e depois ainda procura
incutir no pecador a idéia de que ele já ultrapassou os limites do
perdão, e que Deus não vai mais recebê-lo de volta. Mas talvez não
haja engano maior e mais ruinoso do que esse. A Sra. White o
21
Só JESUS

descreve como sendo “o ardil especial de Satanás”. - Parábolas de


Jesus, pág. 156. Deus, todavia, não desiste de nós, mesmo diante de
nossos mais graves pecados {Fé e Obras, pág. 31). É o que
demonstram, por exemplo, as três parábolas de Lucas 15,
especialmente a do filho pródigo (Luc. 15:11-32). Numa bela
passagem, o profeta Isaías também declara: “A mão do Senhor não
está encolhida, para que não possa salvar; nem surdo o Seu ouvido,
para não poder ouvir.” Isa. 59:1.
Os resultados do sacrifício de Cristo sobre o Calvário são
completos e definitivos. Ao Jesus exclamar: “Está pago!”, Ele não Se
referia apenas aos pecados que até ali haviam sido cometidos, mas a
todos, de todos os tempos e lugares, que pesavam sobre Seus ombros
naquele instante (Rom. 3:25 e 26). Ele Se ofereceu “uma vez para
sempre”, diz o apóstolo (Heb. 9:28). A rendenção que obteve é uma
redenção eterna (Heb. 9:12) e por isso “pode salvar totalmente os que
por Ele se chegam a Deus”. Heb. 7:25.
Todos nós somos, de fato, culpados diante de Deus, mas não
precisamos mais continuar assim. Cristo pagou nossa dívida por nós,
e o pagamento foi muito mais abundante do que aquilo que
precisávamos (Rom. 5:20), de maneira que a espada da lei já não pode
mais atingir aqueles por quem Cristo morreu. A morte já não é mais
o salário que merecemos, e, sim, “a vida eterna em Cristo Jesus nosso
Senhor”. Rom. 6:23.
Basta que creiamos, que tenhamos fé, nada mais, e os benefícios de
Seu sangue serão nossos. Seremos perdoados por Deus, e aceitos
diante dEle como se nunca houvéssemos pecado. E é importante frisar
esse ponto, porque, além daqueles que imaginam já ter pecado contra
o Espírito Santo, existem também aqueles que, por causa dos defeitos
e das manchas que ainda vêem em seu caráter, não conseguem
desfrutar das alegrias da salvação, e por isso lutam, se esforçam para
melhorar, achando que somente assim poderão ter a certeza de que
estão salvos.
Esse, porém, é um dos maiores erros que alguém poderia cometer.
Deus não exige de nós que corrijamos nossos defeitos, que
eliminemos nossas imperfeições, para somente então sermos
perdoados e aceitos por Ele. “Temos de ir a Cristo exatamente como
nos achamos”, diz a Sra. White em Caminho a Cristo, pág. 31.
“Podemos ir a Ele com todas as nossas fraquezas, leviandade e
22
“VAI-TE EM PAZ"

pecaminosidade, e rojar-nos arrependidos aos Seus pés. É Seu prazer


estreitar-nos em Seus braços de amor, atar nossas feridas, purificar-
nos de toda a impureza.” - Idem, pág. 52.
O que Cristo nos oferece é não apenas o Seu sangue, mas também
a Sua vida de justiça e santidade. Ele assumiu o nosso lugar na cruz,
e também o assume ao termos que comparecer diante de Deus. Seu
caráter é aceito em lugar do nosso, de modo que, quando Deus nos
contempla, Ele vê não as manchas ou deformidades do pecado, mas o
santo e perfeito caráter de Seu próprio Filho (Parábolas de Jesus, pág.
312).
João Bunyan captou muito bem o que significa ter a Jesus como
Salvador. É como se Deus dissesse: “Pecador, tu pensaste que por teus
pecados e debilidades Eu não poderia te salvar, mas eis que Meu Filho
está ao Meu lado e Eu O vejo a Ele e não a ti, e farei contigo de acordo
com Meu contentamento com Ele.” E por isso que, como diz a Sra.
White, “não devemos estar ansiosos acerca do que Cristo e Deus
pensam de nós, mas do que Deus pensa de Cristo, nosso Substituto”.
- Mensagens Escolhidas, vol. 2, págs. 32 e 33.
Não faz diferença, portanto, quão longe tenhamos ido em nossa
vida de pecados, ou quão imperfeito seja o nosso caráter. Mesmo que
tenhamos ofendido o Espírito Santo, se nos arrependemos e voltamos
a olhar com fé para Jesus como nosso Salvador pessoal, Deus de modo
algum nos rejeita (Fé e Obras, pág. 31/
Ele nos perdoa e nos aceita em Cristo Jesus, com base naquilo que
Ele fez por nós, e então nos dirige as mais lindas palavras que um
pecador jamais poderia ouvir: “Filho, a tua fé te salvou; vai-te em paz,
e fica livre do teu mal.”

23
SÓ JESUS

sus, mas que ainda não aprenderam a confiar inteiramente em Seu


poder salvador. Reconhecem que são pecadores, querem o perdão,
mas ainda não depuseram aos Seus pés todos os fardos de pecados e
ansiedades que carregam.
Lembremo-nos, porém, de que Cristo já tomou o nosso lugar na
cruz. Levou por nós o pesado fardo de nossa culpa, e deseja agora tão-
somente que confiemos nEle e em Sua graça. Por maior que seja o
nosso pecado, se nos arrependermos e olharmos para Ele com fé, Ele
promete nos dar o perdão, e, junto com o perdão, o alívio e a paz de
que tanto necessitamos (Mat. 11:28-30). “A vida em Cristo”, diz a
Sra. White, “é uma vida de descanso.” — Caminho a Cristo, pág. 70.
CAPÍTULO 3

“Tome a sua cruz”


“Então disse Jesus a Seus discípulos: Se alguém quer vir após Mim,
a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-Me.” Mateus 16:24.

H á muitos textos nas Escrituras que infelizmente costumam ser


interpretados de forma bastante equivocada. É ■M o caso do
texto acima, que por gerações tem sido usado para destacar a
necessidade de enfrentarmos com paciência e humildade as
situações difíceis da vida, como se elas tornassem genuína a
nossa profissão de fé, o nosso discipulado cristão.
A cruz de que fala Jesus, e que precisamos tomar sobre os ombros
a fim de segui-Lo, tem sido normalmente identificada com alguma
enfermidade, nossa ou de um ente querido, ou então com
dificuldades financeiras, desemprego, problemas familiares, como o
divórcio, filhos rebeldes, um marido ranzinza, ou uma mulher
rabugenta. E há muitos que se consolam a si mesmos com o
pensamento de que se essa é sua cruz, então que assim seja! Que seja
feita a vontade de Deus!
Conquanto todo cristão às vezes tenha que renunciar a algumas
coisas e passar por provações, a cruz de que fala o texto é bem
diferente. A experiência a que Jesus Se refere aqui é muito mais
dramática e dolorosa, e está relacionada à Sua própria experiência no
Calvário, ou seja, a crucificação.
Em outras palavras, o princípio básico do discipulado cristão
segundo Mateus 16:24 não tem que ver apenas com um sofrimento
ou um problema qualquer, por mais grave que seja, mas, sim, com
algo ainda mais difícil: a própria morte. Todo aquele, portanto, que
professa crer em Jesus e ser Seu discípulo deve passar por essa
experiência, do contrário sua fé não será genuína. A verdadeira fé é
muito mais que um sentimento, uma teoria, ou uma experiência
puramente romântica. A verdadeira fé tem que ver com a morte, a
morte do eu e a completa renúncia de si mesmo.

37
SÓ JESUS

A Confissão dos Discípulos

Jesus estava nas proximidades de Cesaréia de Filipe, uma bela


cidade localizada um pouco ao norte da Galiléia, no sopé do Monte
Hermom. Aquele era um lugar predominantemente pagão, que pouco
ou nada sabia a respeito de Cristo. E Ele havia Se dirigido para lá
justamente a fim de ter um pouco mais de privacidade com os
discípulos, pois chegara o momento de lhes falar acerca dos
sofrimentos que O aguardavam.
A maior parte dos discípulos já estava com Jesus havia cerca de
três anos. Apesar disso, eles nada sabiam a respeito de Sua morte (O
Desejado de Todas as Nações, pág. 411). Tivesse Jesus feito essa
revelação logo no início, ao serem chamados por exemplo, e poucos,
se é que algum, teriam se arriscado a segui-Lo.
Chegara, porém, o momento. Mais uns poucos meses apenas, e a
obra de Cristo na Terra estaria terminada. Era a hora de decidir se
iriam com Ele até o fim, e isso incluía a morte, ou se haveriam de
desistir. Era a hora de decidir se iriam de fato entregar a vida a Jesus,
confiando nEle como seu Salvador, ou se O seguiam apenas por
interesses escusos.
Jesus, todavia, não foi direto ao assunto. Sua primeira pergunta foi
ainda bastante genérica: “Quem diz o povo ser o Filho do homem?”
Mat. 16:13. E a resposta dos discípulos mostrou que, infelizmente,
Israel não via em Jesus o Messias tão aguardado. Ao ouvir Seus
ensinos e ver os milagres que fazia, muitos havia que chegavam a
identificá-Lo com alguns dos maiores profetas do passado, como
Elias, Jeremias, ou mesmo o recente João Batista (Mat. 16:14). Não
criam, porém, que fosse o Messias.
Essa primeira pergunta, no entanto, fora apenas para despertar a
atenção dos discípulos, e prepará-los para a pergunta seguinte: “Mas
vós, continuou Ele, quem dizeis que Eu sou?” Mat. 16:15. Antes de
explicar a real natureza de Sua missão, Jesus precisava fazer com que
os discípulos confessassem sua fé. Somente se já O tivessem aceito
como o Messias prometido é que poderiam entender acerca de Seu
sofrimento e morte. E, diante da pergunta, Pedro tomou a palavra e
declarou sem qualquer hesitação: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo.” Mat. 16:16.
Declara a Sra. White que tanto Pedro quanto os demais discípulos
38
“TOME A SUA CRUZ”

desde o princípio creram que Jesus era o Messias. Mas não só eles.
Muitos outros havia que chegaram a partilhar da mesma crença,
principalmente por influência da pregação de João Batista. A fé,
porém, ainda era pequena e frágil. Quando João Batista foi preso e
morto, começaram a duvidar de que ele fosse um profeta, e, por
conseguinte, começaram a duvidar do próprio Cristo. E o resultado
foi que muitos O abandonaram, à exceção de Pedro e seus
companheiros.
A confissão de Pedro, portanto, não era dele apenas, mas “ex-
primia a fé dos doze”. - O Desejado de Todas as Nações, pág. 412.
Embora os discípulos ainda estivessem muito longe de compreender
a verdadeira natureza da missão de Cristo, eles já O aceitavam como
o Messias longamente esperado.
Os discípulos, como os demais judeus, tinham plena certeza de que
eram o povo do concerto, o povo escolhido de Deus, e por isso jamais
permitiram que as calamidades nacionais prejudicassem sua
confiança no futuro. Eles estavam plenamente seguros com relação à
vinda do Libertador.
Os constantes reveses experimentados pela nação, porém, fizeram
com que eles perdessem de vista a obra espiritual do Messias, e
passassem a vê-la unicamente em sua dimensão horizontal. O
Messias, para eles, seria apenas um grande líder político-militar que
viria para pôr fim a todo jugo e opressão estrangeira; viria para
restaurar o trono de Davi, e novamente exaltar Israel sobre todos os
reinos do mundo (Luc. 24:21; Atos 1:6).
De modo que os discípulos, ao aceitarem a Jesus como o Messias,
na verdade ainda nutriam a esperança de que Ele não permaneceria
para sempre na pobreza e na obscuridade; de que em breve Ele
haveria de assumir Sua verdadeira identidade, ocupar o trono em
Jerusalém, e estabelecer definitivamente o Seu reino. Faltava-lhes,
portanto, compreender a real natureza de Sua missão. Não obstante,
acreditavam nEle.

O Anúncio da Cruz

Somente depois da confissão de fé de Pedro e dos demais dis-


cípulos foi que Cristo começou a lhes mostrar “que Lhe era ne-
cessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos
39
SÓ JESUS

principais sacerdotes e dos escribas, ser morto, e ressuscitado no


terceiro dia”. Mat. 16:21.
Os discípulos já O aceitavam como o Messias prometido;
precisavam agora compreender a verdadeira natureza de Sua missão.
E a Sra. White informa que eles ficaram “mudos de angústia e
espanto” ao ouvir acerca de Sua morte (O Desejado de Todas as
Nações, pág. 415).
Momentos antes, Cristo aceitara e até elogiara o testemunho de
Pedro de que Ele era o Filho de Deus (Mat. 16:17), e agora falava em
sofrimento e morte?! Essa idéia, na opinião deles, não se encaixava
com Sua divina filiação; não tinha nada que ver com a obra que viera
realizar. O Messias, pensavam eles, viria para reinar, e não para
sofrer.
Ficaram confusos, preocupados, e é até provável que no mesmo
instante um sentimento de profundo temor tenha invadido o coração
de cada um deles. Será que não haviam cometido um grande erro, o
maior de toda a sua vida?!
Eles haviam deixado tudo para seguir a Jesus, e agora estavam
diante da possibilidade de que tudo aquilo pudesse não dar em nada,
absolutamente nada. Todos os seus sonhos com relação ao reino
messiânico pareciam frustrados. Por outro lado, Cristo já dera
evidências de sobra de Seu divino poder, e estavam convencidos de
que Ele era o Messias. Foi por isso que Pedro O chamou à parte e
começou a repreendê-Lo (Mat. 16:22).
Não há dúvida de que Pedro amava a seu Senhor, e estava tão
convencido de que Ele era realmente o Filho de Deus, que a única
conclusão a que chegou, foi a de que Jesus quem sabe estivesse
passando por um momento difícil do ponto de vista psicológico; uma
crise de depressão talvez.
Pode ser que Ele estivesse aborrecido e triste com alguma coisa,
daí Suas palavras pessimistas de sofrimento e morte. Mas, apesar de
sua boa intenção, Pedro acabou ouvindo de Jesus uma das mais
severas repreensões que já Lhe saíra dos lábios: “Arreda! Satanás; tu
és para Mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus,
e, sim, das dos homens.” Mat. 16:23.
Uma dura repreensão! Mas entendemos por essas palavras que na
verdade era Satanás quem buscava desanimar a Jesus e fazê-Lo
desviar-Se de Sua missão. Pedro, em seu cego amor, estava sendo
40
“TOME A SUA CRUZ”

unicamente como que o porta-voz da tentação. O príncipe das tre- vas


é que fora o autor daquele pensamento. As palavras de Cristo,
portanto, foram dirigidas, não a Pedro, mas àquele que o induzira a
tentar fazer com que o Salvador desistisse do cumprimento de Sua
missão (O Desejado de Todas as Nações, pág. 416).
Cristo, porém, não parou por aí. Além de fazer com que os
discípulos procurassem entender que Sua missão era de natureza
espiritual, e implicava Sua morte e ressurreição, Ele também disse
que se eles realmente desejassem segui-Lo, também precisariam
passar pela mesma experiência. “Então disse Jesus a Seus discípulos:
Se alguém quer vir após Mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz
e siga-Me.” Mat. 16:24.
Os discípulos não apenas esperavam que Jesus em breve Se
tomasse Rei, como também almejavam participar da glória do reino.
Viviam discutindo entre si para ver quem era o maior, a fim de que
se assentasse à direita do trono (Mar. 9:34; Mat. 20:20 e 21). Agora,
porém, Cristo fala em abnegação e morte, e o pior tipo de morte: a
morte de cruz.
Os romanos costumavam empregar a crucificação somente para
executar escravos, prisioneiros de guerra e os tipos mais vis de
criminosos. Era o mais doloroso e humilhante tipo de morte que
havia, e os discípulos a conheciam muito bem. Certamente eles já
haviam testemunhado muitas execuções por crucificação. Já haviam
ouvido os gritos de dor e presenciado a agonia dos condenados,
agonia essa que, dependendo da resistência da vítima, podia se
prolongar por vários dias.
A idéia de Jesus ter que morrer, portanto, por si só já os assustou,
mas agora essa de que eles também deveriam tomar uma cruz sobre
os ombros e acompanhar o Mestre em Seu sofrimento e morte... essa
idéia lhes pareceu particularmente pavorosa.
E não havia nenhum mal-entendido. As palavras haviam sido
suficientemente claras. Tomar a cruz e seguir a Jesus não podia
significar outra coisa para os discípulos, senão se colocar na posição
de um condenado a caminho do local de sua execução. E Cristo ainda
acrescentou: “Porquanto, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; e
quem perder a vida por Minha causa, achá-la-á.” Mat. 16:25. Não
havia dúvida. Jesus não estava falando de outra coisa a não ser de
morte.
41
SÓ JESUS

A Fé que Salva

Nesse, que talvez foi um dos momentos mais importantes que


Cristo teve com os discípulos, Ele enunciou o princípio básico do
discipulado cristão, ou o verdadeiro sentido da fé: a morte do eu, e
seu total aniquilamento.
Os discípulos pensavam haver atingido o ponto mais alto de sua
religião ao confessar sua fé em Jesus como o Filho de Deus. Esse,
porém, fora apenas o começo. Ainda tinham que entender a real
natureza de Sua missão, e, mais que isso, ainda tinham que
experimentar a morte do eu, a morte com Cristo sobre a cruz do
Calvário.
Da mesma forma, há muitos hoje em dia que aceitaram a Jesus
como o seu Salvador. São crentes sinceros, que podem não entender
muito acerca do que isso significa, mas O aceitaram de coração. E
não há nada de errado com isso, pois tal convicção é gerada pelo
próprio Espírito Santo (Mat. 16:17). Há sinceridade, portanto, mas a
fé ainda é pequena e frágil, porque lhes falta entender a gravidade de
seu pecado, o estado de miséria e obscuridade de sua alma, e o pleno
significado da morte de Cristo sobre o Calvário, que pode propiciar
perdão, reconciliação com Deus, e uma vida inteiramente
transformada.
Outros há que aceitam e entendem, mas que ainda não passaram
eles mesmos pela experiência da cruz, pela experiência da morte.
Limitam-se a um conhecimento teórico dos vários aspectos da obra
salvífica de Cristo. Confundem fé com mero assentimento
intelectual, e com isso se enganam a si mesmos com a idéia de que o
que sabem, que o conhecimento que possuem é tudo de que
necessitam na vida cristã.
Tais pessoas, na verdade, precisam com urgência compreender que
o cristianismo é a religião da cruz, e que jamais terão vida se sua fé
não os levar a passar antes pela experiência da morte, da morte com
Cristo sobre o Calvário.
O testemunho das Escrituras a nosso respeito é que todos nós
somos pecadores (Rom. 3:23), e que o salário do pecado é a morte
(Rom. 6:23). Isso significa que não há solução para o nosso problema
que não passe pela morte. Não basta, porém, que Cristo morra em
nosso lugar. Sua morte não garante auto- maticamente o perdão a
42
“TOME A SUA CRUZ”

nenhum de nós. A menos que a aceitemos pela fé, ela não nos será de
nenhum proveito.
Agora chegamos ao âmago da questão, porque a verdadeira fé,
como já salientado, não é aquela que se limita a uma mera aceitação
dos fatos, ou mesmo que chegue ao ponto de uma profunda
compreensão do que esses fatos significam. A verdadeira fé, a fé
salvadora, é aquela mediante a qual reconhecemos o egoísmo que
impregna nossos motivos, nossos gostos e predileções, e a
necessidade que temos de nos identificar com o Cristo crucificado
para que recebamos então a condenação que merecemos.
E essa identificação, essa união espiritual com Cristo em Sua
morte, em atitude de total arrependimento e entrega da vontade a
Deus, é o que nos toma acessível o perdão divino, “porquanto quem
morreu”, diz Paulo, justificado está do pecado”. Rom. 6:7. A fé que
nos dá a vida é a fé que passa pela morte, morte como símbolo de
uma profunda e definitiva negação de nós mesmos.
Sendo mais específico, essa autonegação não significa simples-
mente negar a nós mesmos certos luxos e prazeres, como jóias, carros
importados, chocolates ou queijos, embora possa incluir essas coisas.
Se estivesse limitada a isso, nossa fé seria apenas de fachada;
seríamos hipócritas, deixando de ter ou de fazer certas coisas que no
íntimo gostaríamos de estar fazendo. Tal procedimento é mais grave
aos olhos de Deus que o pecado em si. Diz a Sra. White que há mais
esperança para aqueles que pecam abertamente do que para os
hipócritas {Testemunhos Seletos, vol. 2, pág. 36).
Negar-nos a nós mesmos, portanto, significa negar ou deserdar o
nosso ego imperioso e pecaminoso, renunciando a nosso suposto
direito de seguir o nosso próprio caminho; significa voltar-nos
completamente da idolatria do eu, das idéias ou hábitos que
gostamos, mas que nos separam de Cristo, porque ocupam em nossa
vida o lugar que deveria ser unicamente dEle.
E é exatamente aqui que reside o problema, porque muitas vezes
nos contentamos em renunciar a muitas coisas, mas não chegamos ao
ponto de renunciar a tudo aquilo que amamos e que, por isso mesmo,
afasta de Cristo o coração. Não é difícil renunciar a coisas que para
nós tenham um valor secundário, mas o mandamento de o fazermos
diz respeito exatamente àquilo que nos é mais precioso (Luc. 14:25-
33), porque é isso o que nos es
43
Só JESUS

craviza e faz com que Cristo seja relegado a um segundo plano em


nossa vida, em vez de ocupar o centro de nossos interesses e afeições.
Tal atitude é absolutamente incompatível com nossa profissão de fé.
Não há como entregar apenas metade do coração a Jesus. Não há
como amá-Lo, e ainda assim continuarmos apegados a certos ídolos,
certos gostos, certas ambições (Mat. 6:24). O princípio da física,
segundo o qual dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no
espaço ao mesmo tempo, também é válido no âmbito espiritual. A
verdade é que em nosso coração existe apenas um trono. Ou Cristo
ou o próprio eu é quem o ocupa, mas Cristo só poderá ocupá-lo se o
eu estiver cravado na cruz.
Referindo-se àqueles que se entregam apenas parcialmente a Jesus
e ainda assim esperam receber a plenitude de Sua graça redentora, a
Sra. White declara: “Quase cristãos mas não plenamente, parecem
estar perto do reino do Céu, mas não podem ali entrar. Quase, mas
não completamente salvos, significa estar não quase, porém
completamente perdidos.” - Parábolas de Jesus, pág. 118.
A diferença entre a fé e a presunção, portanto, não está tanto na
natureza do sentimento que temos em relação a Cristo, mas no grau
de nossa entrega a Ele, pois “não somos filhos de Deus a menos que
o sejamos totalmente”. - Caminho a Cristo, pág. 44.
Ou morremos para o eu para que Cristo possa viver Sua vida em
nós (Gál. 2:20), ou Cristo está morto para nós.
E por isso que Paulo declara: “Os que são de Cristo Jesus cru-
cificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências.” Gál. 5:24.
Quadro algum poderia ser mais vívido do que esse: pegar um martelo
e pregos a fim de cravar nosso eu caído e doentio na cruz, e fazê-lo
morrer.

Crucificando o Eu

A metáfora da crucificação usada tanto por Jesus quanto por Paulo


para ilustrar a renúncia do eu é bastante adequada porque, em
primeiro lugar, assim como ninguém consegue crucificar a si mesmo,
assim também a morte do eu não é uma conquista pessoal.
Ninguém consegue, por si mesmo, se livrar de sua velha na- tureza
e mudar a egocêntrica maneira de viver para uma vida totalmente
centralizada em Cristo. Isso é obra do próprio Cristo em nós,
44
“TOME A SUA CRUZ”

mediante o poder do Espírito Santo.


Sozinhos, o máximo que poderíamos fazer numa cruz seria pregar
os nossos pés, mas não nossas próprias mãos. Assim também
acontece na vida espiritual. Confiados em nossa própria força, até
poderemos superar algumas de nossas paixões e corrigir alguns dos
excessos de nossa natureza. Não poderemos, todavia, submetê-la por
completo, visto não termos em nós mesmos nem poder e nem
disposição suficiente para fazê-lo {Educação, pág. 28).
Mas se recorrermos ao poder do Espírito Santo e colocarmos nossa
vontade em sujeição a Ele, então nada nos será impossível (Rom.
8:13).
Trata-se, portanto, de uma ação conjunta entre o homem e Deus.
Sozinho, o homem não pode; o Espírito Santo, por Sua vez, não força
a vontade humana. Primeiro Ele desperta em nós o desejo de
morrermos para nós mesmos (Filip. 2:13), mas é nossa atribuição
escolher fazê-lo, para que então Ele possa completar a obra (Rom.
7:18). A obra é divina, mas a responsabilidade é totalmente humana
{Fé e Obras, pág. 23).
“Muitos se perderão”, diz a Sra. White, “enquanto esperam e
desejam ser cristãos. Não chegam ao ponto de render a vontade a
Deus. Não escolhem agora ser cristãos.” - Caminho a Cristo, pág. 48.
A segunda razão pela qual a crucificação ilustra muito bem a
renuncia do eu é porque raramente alguém morre no mesmo dia em
que é crucificado. A morte por crucificação pode demorar às vezes
sete ou oito dias para ocorrer. É por isso que os romanos costumavam
deixar soldados no local da execução: para que ninguém viesse
durante a noite ou no dia seguinte e resgatasse o condenado ainda
vivo da cruz.
O mesmo acontece na vida espiritual. A morte do eu não é
instantânea, não ocorre no momento exato em que o pregamos na
cruz, razão pela qual deve haver constante vigilância de nossa parte,
para que Satanás não resgate esse eu ainda vivo da cruz e o faça mais
presente e mais forte do que nunca em nossa vida, levando-nos assim
à ruína espiritual.
Muitos há que procedem como se a salvação fosse um ato isolado
na vida. Mas devemos nos lembrar de que muitos casais que hoje
estão divorciados, um dia estiveram unidos e felizes; muitos ladrões,
viciados e criminosos que hoje lotam as penitenciárias, um dia foram
45
SÓ JESUS

pessoas livres e honestas; muitos enfermos que hoje padecem nos


leitos dos hospitais, um dia gozaram de boa saúde; e muitos daqueles
que hoje se encontram na sepultura, um dia estiveram vivos, e bem
vivos.
Assim também, muitos se perderão apesar de um dia terem estado
genuinamente salvos, apesar de um dia terem de fato tomado a cruz
sobre os ombros, subido as encostas do Calvário, e ali crucificado o
seu eu, com tudo o que ele representa. O problema é que essa
experiência ficou só no passado; não se fez acompanhar da devida
vigilância cristã de que a Bíblia tanto fala (Mar. 14:38; Luc. 21:36; I
Cor. 10:12; Efés. 6:18; etc.). Na primeira chance que teve, o inimigo
veio e, sem que ninguém o percebesse, tirou da cruz aquele velho
homem ainda vivo, fortaleceu-o, e fez com que ele voltasse a dominar
os pensamentos e as ações do indivíduo, destruindo sua fé e o
afastando definitivamente de Deus.
A salvação, portanto, não é algo que ocorre uma vez para sempre,
mas fora de nós mesmos não há absolutamente ninguém no Universo
de Deus que possa nos arrancar de Sua salvação (João 6:37). É por
isso que somos exortados a permanecer firmes e alicerçados na fé
(Col. 1:23), a não dar “lugar ao diabo” (Efés. 4:27), para que ele não
faça reviver todo o egoísmo que reside em nossa natureza carnal, e
que nos leva para longe de Deus. Um minuto de cochilo poderá nos
custar a própria eternidade.
O problema é que todo esse processo de crucificação e morte lenta
tende a ser bastante doloroso, principalmente para aqueles que por
natureza já são mais independentes e auto-suficientes. Não é fácil
abrir mão de si mesmo, dos próprios valores, desejos e propósitos, e
se entregar confiantemente à vontade de outrem, como aconteceu, por
exemplo, com o apóstolo Paulo. Submeter-se a Cristo representou
para ele uma luta íntima sem precedentes (Atos 26:14).
O homem natural não está sujeito a Deus (Rom. 8:17), e mes- mo
sob a ação do Espirito Santo é difícil para ele se libertar de todos os
liames de vaidade que o prendem a si mesmo, sobretudo porque isso
pode envolver perdas, e deixar cicatrizes profundas em sua vida.
Convém lembrar, todavia, que “Deus não exige que renunciemos
a coisa alguma cuja conservação nos seja de proveito.” - Caminho a
Cristo, pág. 46. Pelo contrário, Ele sempre o faz em relação àquilo
que, se for mantido, fortalecerá o egoísmo, corromperá ainda mais a
46
“TOME A SUA CRUZ”

nossa natureza, e nos fechará para sempre às sagradas influências de


Sua graça. Por outro lado, o que Ele tem para nos oferecer em troca
é infinitamente maior que nossas maiores ambições ou pretensões.
Isso pôde ser constatado pelo próprio Paulo, para quem a fé em
Jesus representou a renúncia de todos os valores étnicos, religiosos e
morais que haviam caracterizado a sua vida passada (Filip. 3:4-6). E
tais valores não eram para ele um simples luxo, mas uma verdadeira
obsessão (Gál. 1:13 e 14), de modo que ter que abandoná-los foi uma
experiência tremendamente difícil e que lhe deixou marcas profundas
pelo resto de sua vida (II Cor. 12:7-10). Não obstante, tudo aquilo
que para ele era “lucro”, ele veio a considerar como “perda” por amor
a Cristo. O preço que pagou foi dos mais elevados, mas nada
comparável com o bem único da presença e dádiva de seu Senhor
(Filip. 3:7 e 8).

Conclusão

Ser um discípulo de Jesus, portanto, tem o seu preço, e um alto


preço. “Se alguém quer vir após Mim”, disse Ele, “a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-Me.” Embora a salvação seja um “dom
de Deus” (Efés. 2:8), ela o é somente para aqueles que morrem para
si mesmos, que se entregam sem reservas a Cristo, e que estejam
dispostos a viver por Ele.
Diz a Sra. White: “Devemos entregar-nos a Cristo. ... Tudo que
somos, todos os talentos e habilidades que possuímos, são do Senhor
para serem consagrados a Seu serviço. Quando assim nos rendemos
inteiramente a Ele, Cristo Se entrega a nós com todos os tesouros do
Céu.” - Parábolas de Jesus, pág. 116. Tesouros esses também
chamados por Paulo de “herança” (Gál. 3:18), e que se referem a
todas as bênçãos espirituais advindas como resultado do perdão.
A salvação é, de fato, um dom gratuito de Deus, mas isso não sig-
nifica que não devemos comprá-la. “Todos vós os que tendes sede,
vinde às águas; ... vinde e comprai”, escreveu o profeta, que acres-
centou, “sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço.” Isa. 55:1.
A salvação, para ser adquirida, necessita ser comprada, mas o
preço que nos é exigido não é prata nem ouro, não é sacrifício nem
obediência, ou quaisquer outras consecuções humanas. Devemos
abandonar de uma vez a idéia de que a salvação é uma conquista
47
SÓ JESUS

pessoal, ou um prémio por uma realização qualquer. O preço de nós


exigido para que possamos tê-la é a renúncia de todas as nossas
ambições profanas e nossos gostos pervertidos; é a crucificação do
egoísmo que impera em nós, e a entrega do coração para a habitação
plena de Cristo.
A verdadeira religião é muito mais que mera teoria, um arroubo de
emoções, ou uma experiência puramente romântica. A verdadeira
religião é a escolha consciente de um novo senhorio: não mais nós
mesmos, mas Cristo, que passará a viver Sua própria vida em nós. A
vontade de Cristo será a nossa vontade; o poder de Cristo, o nosso
poder; e o amor a Cristo, a mola propulsora de todas as nossas ações.
O nosso próprio eu estará esquecido, e Cristo será tudo em nós (Col.
3:11) e para nós. Qualquer coisa diferente disso será mero
palavreado, formalidade vã, hipocrisia barata.
O senhorio de Cristo, porém, não se fundamenta sobre uma
submissão cega, ou a perda da individualidade, pois quando
morremos para nós mesmos, embora o custo envolvido nesse
processo possa ser dos mais elevados, o nosso verdadeiro ser pessoal
será descoberto, e para tal descoberta nenhum preço será realmente
alto.
E a menos que nosso verdadeiro ser seja assim descoberto, que
deixemos de nos centralizar em nós mesmos e nos centralizemos em
Cristo, poderemos satisfazer a todos os nossos desejos, alcançar todas
as nossas ambições, mas não tardaremos a ver que fizemos uma
péssima escolha. Disse mais Jesus a Seus discípulos: “Que
aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”
Mat. 16:26.
E por isso que, mesmo que o preço nos pareça alto demais, ou o
sacrifício penoso demais, não podemos evitar a cruz. Nossa salvação
passa obrigatoriamente por ela. Se não chegarmos a ver a nós mesmos
nela crucificados, conformando-nos com Cristo em Sua morte, então
jamais conheceremos o poder de Sua vida (Filip. 3:10).
A mera aceitação de Jesus como Salvador pessoal não é tudo,
como também não o é mesmo uma profunda compreensão dos vários
aspectos de Sua obra salvífica. Só seremos realmente salvos se nossa
fé nos levar a seguir os passos de nosso Senhor rumo ao Calvário, e
ali dividir com Ele o lugar na cruz, num símbolo de completa
renúncia do eu.
48
“TOME A SUA CRUZ”

Lágrimas, suspiros, resoluções - de nada adiantarão, sem uma de-


cidida entrega da vontade aos cuidados de Cristo. “Que é fé?”, per-
gunta a Sra. White. Ela responde: “É uma anuência do entendimento
às palavras de Deus que prende o coração em voluntária consagração
e serviço a Deus. ... Fé é entregar a Deus as faculdades intelectuais
[e] submeter-Lhe a mente e a vontade.” - Fé e Obras, pág. 22.
Devemos nos lembrar, porém, de que essa entrega não consiste
num ato único em nossa vida. Tão importante quanto ser crucificado
é permanecer crucificado, do contrário o velho eu poderá reviver e
reassumir o controle sobre nós. Não pode haver descanso, portanto.
Não pode haver trégua. “A luta contra o próprio eu é a maior batalha
que já foi ferida.” - Caminho a Cristo, pág. 43.
Somente por meio do correto exercício da vontade, e muita oração,
é que poderemos impedir o inimigo de raptar da cruz o nosso eu e se
apossar definitivamente dele. “Resisti ao diabo”, diz a Bíblia, “e ele
fugirá de vós.” Tia. 4:7.
Se assim o fizermos, não só estaremos sendo verdadeiros dis-
cípulos de Jesus, como também estaremos desfrutando da mais
extraordinária experiência de fé jamais outorgada a um mortal nesta
vida, que é viver a própria vida de Cristo. Por estranho que possa
parecer, em termos espirituais, morrer significa viver, viver da forma
mais plena e sublime possível. Na verdade, é o próprio Cristo que vai
viver Sua vida em nós, e então poderemos dizer, como Paulo: “Estou
crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo
vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no
Filho de Deus, que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim.”
Gál. 2:19 e 20.

49
CAPÍTULO 4

“Importa-vos nascer de novo”


“Não te admires de Eu te dizer: Importa-vos
nascer de novo.” João 3:7.

M
uitos crentes têm uma visão bastante distorcida acerca da vida
cristã. Alguns pensam que ser cristão consiste apenas ■■■ em
guardar todos os mandamentos de Deus; em não fumar, não
beber, não comer alimentos impróprios, não frequentar
lugares impróprios; enfim, limitam a conversão a uma simples
mudança no procedimento.
Embora tais pessoas possam ser absolutamente sinceras, convém
lembrar que a sinceridade não é suficiente para transformar o erro em
verdade. A obra da graça divina em nós não é tão estreita a ponto de
afetar apenas o nosso comportamento exterior. Se assim fosse, o
cristianismo não seria muito diferente de algumas religiões pagãs de
elevado conteúdo ético e moral.
A religião de Cristo, no entanto, vai muito além, e tem que ver
com uma verdadeira transformação de nossa natureza interior, uma
transformação tão profunda e completa que Cristo chegou a
compará-la a um novo nascimento. “A vida cristã não é uma mo-
dificação ou melhoramento da antiga, mas uma transformação da
natureza. Tem lugar a morte do eu e do pecado, e uma vida toda
nova.” - O Desejado de Todas as Nações, pág. 172.
Outro erro também bastante comum é o daqueles que acham que
a mudança de vida consiste numa conquista puramente humana. São
pessoas que confiaram em Jesus para o perdão dos pecados, mas que
agora procuram fazer sozinhos o restante da obra; procuram levar
uma vida correta e digna com base unicamente em seus esforços
pessoais.
Mas qualquer tentativa como essa haverá de fracassar, e a razão é
muito simples: o homem, por melhor que seja, não pode se renovar a
si mesmo. Quando muito, poderá adotar um comportamento correto,
mas mudar a própria natureza, o próprio coração, é algo que está
completamente fora do seu alcance. Somente o Deus que nos criou é
que poderá nos recriar
50
“ I M PORTA-VOS NASCER DE NOVO”

para que sejamos novamente conforme a Sua imagem. Somente


Deus, pelo poder do Espírito Santo, é que poderá fazer de nós novas
criaturas.

Um Homem em Crise

Jerusalém estava em festa. Era a semana da Páscoa, a principal e


a mais concorrida dentre todas as festividades judaicas nos dias de
Jesus.
A cidade transbordava com os milhares de peregrinos que haviam
vindo de todos os pontos do país e mesmo do exterior, a fim de
participar das comemorações. Sua população, que na época girava
em tomo dos sessenta mil habitantes, aumentava em ocasiões como
essa para quase duzentos mil, de tantos fiéis que para lá se dirigiam.
Jesus costumava estar entre esses fiéis. Pelo menos durante o Seu
ministério público é bem provável que Ele nunca tenha deixado de
celebrar a Páscoa em Jerusalém (João 2:13; 5:1; 6:4; 13:1). E ali
estava Ele, em Sua primeira participação desde que fora batizado por
João Batista, poucos meses atrás.
E logo ao chegar, um de Seus primeiros atos foi justamente
expulsar do pátio do templo todos os cambistas e comerciantes
inescrupulosos que praticavam ali um verdadeiro tráfico religioso, no
qual os pobres e pecadores eram explorados, e o perdão de Deus
reduzido ao nível de uma simples mercadoria, cujo comércio se
tomara altamente lucrativo. O pior de tudo é que os sacerdotes e
demais líderes religiosos nada faziam para pôr fim a todo aquele
esquema corrupto e desumano.
Impressionados por essa que ficou conhecida como a primeira
purificação do templo, bem como pelos milagres que Jesus fazia,
muitos dentre o povo acabaram crendo que o Messias, o Libertador,
finalmente chegara; que a longa espera havia terminado (João 1:23).
Havia, entretanto, um homem cujo nome era Nicodemos, que
estava inclinado a crer, mas que ainda hesitava em assumir pu-
blicamente a sua fé. Ele se mostrou cauteloso diante de Jesus
principalmente por causa de sua posição social, e por isso resolveu
procurá-Lo numa hora e lugar em que ninguém os visse.
Nicodemos pertencia à aristocracia judaica, e era literalmente um
príncipe em Israel. Além de ser membro da seita dos fariseus, uma
51
Só JESUS

das mais rígidas e influentes do judaísmo, ele também é descrito


como “um dos principais dos judeus” (João 3:1), o que significa que
fazia parte do conselho do Sinédrio, uma espécie de suprema corte
judaica, que deliberava sobre pratica- mente todos os tipos de
assuntos, desde aqueles de ordem religiosa até mesmo aos de ordem
criminal.
A Sra. White descreve Nicodemos como alguém de “esmerada
educação” e “dotado de talentos acima do comum”. - O Desejado de
Todas as Nações, pág. 167. Sabemos também que ele era muito rico.
A tradição nos informa que ele era um importante negociante de trigo
na Palestina, e comenta ainda acerca do luxo reinante em sua casa.
Apesar de tudo isso, Nicodemos se sentiu atraído por Cristo, e de-
cidiu procurá-Lo. Havia sinceridade em seu coração, e um forte de-
sejo de conhecer mais acerca da vontade de Deus, mas ainda recuava
da idéia de se encontrar publicamente com Jesus, um Mestre ainda
meio desconhecido. Talvez fosse um pouco humilhante para alguém
na sua posição, e os demais fariseus poderiam inclusive acusá- lo de
deslealdade, ou quem sabe até mesmo de apostasia, por causa do
envolvimento de muitos deles com o comércio do templo e o sen-
timento nada favorável que passaram a nutrir com relação a Jesus.
Nicodemos ficou sabendo que Jesus costumava passar a noite fora
de Jerusalém, num pequeno horto localizado no Monte das Oliveiras
{Idem, pág. 168), e achou que ali poderia ser um bom lugar para a
entrevista, pois teria a privacidade e a segurança de que necessitava.
Esperou então até que a cidade silenciasse no sono, e saiu em direção
ao monte.
Uma vez na presença de Cristo, suas primeiras palavras tiveram a
clara finalidade de preparar o ambiente para a entrevista
propriamente dita. “Rabi”, disse ele, “sabemos que és Mestre vindo
da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que Tu
fazes, se Deus não estiver com ele.” João 3:2.
Sem dúvida alguma, um grande elogio e muito respeitoso, mas
que ainda exprimia certo grau de incredulidade. Em sua saudação,
Nicodemos não chegou ao ponto de identificá-Lo como o Messias.
Jesus então, olhando-o firmemente nos olhos e como se lhe estivesse
lendo o próprio coração, respondeu:
“Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo,
não pode ver o reino de Deus.” João 3:3.
52
“1 MPORTA-VOS NASCER DE NOVO”

Jesus era capaz de sondar os sentimentos mais íntimos de alguém,


como se estivesse diante de um livro aberto. Ele não dependia de
palavras faladas para que pudesse avaliar os segredos de cada
coração (João 2:24 e 25), e por isso Sua resposta a Ni- codemos foi
franca e objetiva.
Ele sabia que por detrás daquela saudação elogiosa estava um
coração sincero passando por uma crise espiritual sem precedentes.
Ele sabia das lutas íntimas de Nicodemos, de sua insatisfação com o
sistema religioso deturpado da época, e do desejo de realmente estar
em paz com Deus. As palavras de Jesus, portanto, por mais
desconcertantes que tenham sido, correspondiam exatamente àquilo
que Nicodemos precisava ouvir.

Nascer de Novo

Nicodemos, porém, ainda não estava pronto para ouvir aquilo, e


jamais podia imaginar que seu problema fosse tão grave assim. A
resposta de Cristo não só o pegou de surpresa, como também abalou
as mais sólidas convicções de sua alma. Foi por isso que ele reagiu
de forma irónica, como se não tivesse compreendido o que acabara
de ouvir (João 3:4).
A figura do novo nascimento empregada por Jesus não era
realmente estranha a Nicodemos. Os rabinos da época costumavam
se referir aos pagãos convertidos à fé judaica como sendo crianças
recém-nascidas. Ele compreendeu, portanto, o que Jesus quis dizer.
O problema é que não estava nada disposto a concordar com Ele. Era
o orgulho do fariseu, diz a Sra. White, que “lutava contra o sincero
desejo do pesquisador da verdade”. - O Desejado de Todas as
Nações, pág. 171.
Havia uma crença comum entre os judeus de que o simples fato
de serem israelitas, de serem descendentes de Abraão, já era pra-
ticamente tudo de que necessitavam para terem garantido um lugar
no reino de Deus (Mat. 3:9; João 8:33 e 39), e Nicodemos partilhava
dessa crença. Além disso, ele era um fariseu, e por mais que no tempo
de Jesus houvesse muitos fariseus hipócritas e corruptos, não
podemos jamais pensar que todos fossem assim.

53
SÓ JESUS

Vários deles levavam sua religião muito a sério, pois acreditavam


que o exílio babilónico, nos tempos do Antigo Testamento, fora
causado pelo fracasso de Israel em observar a lei de Deus, e que essa
observância era um dever tanto individual quanto nacional. É por essa
razão que eles procuravam obedecer rigorosamente a todos os
mandamentos divinos, jejuavam duas vezes por semana, passavam
duas horas por dia no templo em oração, davam o dízimo de toda a
sua renda, e procuravam ajudar os pobres e necessitados. Enfim,
muitos fariseus realmente se esforçavam para viver de modo digno e
responsável diante de Deus e dos homens, porque achavam que
somente assim não voltariam a cair no desagrado divino.
E não há dúvida de que Nicodemos era um desses. Ele fazia o
possível para ser um homem bom, de boa moral e profundamente
religioso (João 7:50 e 51), daí sua dificuldade em aceitar o fato de
que precisava de um novo nascimento. Para ele, nenhuma mudança
lhe era de fato necessária. Os rabinos costumavam dizer que todo
Israel haveria de participar da era vindoura, exceto aqueles que
através da apostasia deliberada ou maldade excessiva se retiravam de
forma intencional do concerto. E esse, logicamente, não era o caso de
Nicodemos.
Jesus, porém, não procurou responder ao argumento implícito de
Seu interlocutor. Apenas reafirmou o que já dissera, só que o fez de
forma ainda mais enfática, declarando que aquele que não nascesse
“da água e do Espírito” de modo algum poderia entrar no reino de
Deus (João 3:5). Ou seja, Jesus insistiu no fato de que toda a
religiosidade e bondade de Nicodemos não eram suficientes. Ele
jamais haveria de possuir o reino vindouro enquanto não passasse
pela experiência do novo nascimento.
É interessante notarmos que Jesus não disse a Nicodemos que ele
precisava melhorar seus padrões morais ou religiosos. Eles já eram
bons, mas não eram o bastante. O que Nicodemos realmente
precisava era de um novo coração, um coração gerado pelo Espírito
Santo.
O Espírito, portanto, e não o próprio homem, é que é o Agente do
novo nascimento. É somente pelo Seu poder que qualquer
transformação espiritual autêntica e duradoura na vida do ser humano
pode se realizar. A água a que Cristo Se referiu é a água do batismo,
que por sua vez é um símbolo do novo nascimento, um símbolo da
54
“IMPOPTA-VOS NASCER DE NOVO"

regeneração espiritual, da morte e sepultamento da velha natureza e


da ressurreição para uma nova vida (Rom. 6:3-6).
Nicodemos estava confuso. Perplexo. Ele sabia perfeitamente o
que Jesus queria dizer, mas relutava em aplicar para si mesmo aquelas
palavras. Era como se toda a sua vida religiosa, tudo o que já fizera,
tudo o que era, não valesse absolutamente nada, e ele tivesse que
recomeçar do zero novamente. E Jesus, percebendo sua profunda
angústia, logo passou a explicar o porquê de estar insistindo naquilo.
Disse Ele: “O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do
Espírito, é espírito. Não te admires de Eu te dizer: Importa-vos nascer
de novo.” João 3:6 e 7.
O que Jesus estava querendo que Nicodemos entendesse é que por
melhor que ele fosse, por mais sincera e perfeita que fosse sua vida
religiosa, ele não tinha como fugir à realidade de que seu coração
ainda era carnal, de que sua natureza ainda era pecaminosa.
Ele se orgulhava de ser descendente de Abraão, mas isso em nada
alterava o fato de que também era um descendente de Adão, e que,
portanto, ainda trazia consigo a mesma natureza de Adão após a
queda: uma natureza corrompida, manchada e degradada pelo
pecado, e não havia nada que pudesse fazer a fim de reverter essa
situação.
Nicodemos precisava entender que pecado é muito mais que um
simples ato, muito mais que fazer isso ou aquilo. Pecado é uma
condição da natureza humana, daí que se quisesse de fato ver o reino
de Deus, ele precisava antes adquirir uma nova natureza, uma
natureza espiritual, uma natureza santa, o que só seria possível se, por
meio do poder do Espírito Santo, ele nascesse de novo.

A Herança de Adão

Ao Se dirigir de forma tão direta e incisiva a Nicodemos, Jesus na


verdade não estava apenas descrevendo a situação daquele fariseu
sincero, mas estava acima de tudo mostrando a dura realidade que diz
respeito a cada ser humano neste mundo subjugado pelo pecado.
Assim como Nicodemos, cada um de nós também tem uma natureza
pecaminosa, totalmente contrária à vontade de Deus. “O pendor da
carne”, diz Paulo, “é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à
lei de Deus.” Rom. 8:7.
55
SÓ JESUS

Isso significa que somos pecadores independentemente de vir a


praticar esse ou aquele ato, de transgredir esse ou aquele man-
damento. Pecado é uma condição de nossa natureza, condição essa
que se revela mediante atos pecaminosos. Em outras palavras, nós
não nos tomamos pecadores pelo fato de cometer algum pecado, mas
cometemos pecado porque somos pecadores.
E somos pecadores porque herdamos de Adão um coração pe-
caminoso em que o egoísmo substituiu o amor, um coração onde não
mais habita a santidade de Deus, e que não reflete mais a imagem
perfeita do coração de Deus (Rom. 3:23).
Adão foi criado conforme a imagem de Deus (Gên. 1:27) não
apenas no aspecto físico e intelectual, mas principalmente no aspecto
moral (Educação, pág. 15).
Isso equivale a dizer que o caráter de Adão era santo e perfeito
tanto quanto o caráter de Deus, sem nenhuma inclinação para o mal.
Após o pecado, porém, ele perdeu esse estado de inocência e
santidade, e sua natureza se tomou depravada, isto é, Adão perdeu
sua percepção moral e se tornou escravo de Satanás (Caminho a
Cristo, pág. 17).
E esse, infelizmente, foi o legado que ele acabou transmitindo a
cada um de seus filhos. Diz o apóstolo Paulo que “pela desobediência
de um só homem muitos se tornaram pecadores”. Rom. 5:19.
Os filhos e filhas de Adão vieram ao mundo não mais com um
caráter igual ao de Deus, mas igual ao de seu pai após a queda, ou
seja, um caráter pecaminoso (Gên. 5:1-3). A Sra. White declara: “Ao
passo que Adão foi criado sem pecado, à semelhança de Deus, Sete,
como Caim, herdou a natureza decaída de seus pais.” - Patriarcas e
Profetas, pág. 80.
Pecado, portanto, não é algo que contraímos ao longo da vida,
como uma doença adquirida por contágio ou um mal que é de-
senvolvido sem causa aparente. Pecado é uma herança, e é congénito.
“Eu nasci na iniquidade”, exclamou Davi, “e em pecado me concebeu
a minha mãe.” Sal. 51:1. Com isso, ele não quis dizer que fora fruto
de uma relação extraconjugal de sua mãe, mas

56
“IM PORT A-VOS NASCER DE NOVO”

que já ao nascer trazia consigo um coração pecaminoso.


Por mais que a idéia não nos seja muito simpática, precisamos
entender que pecado não é um acidente, um ferimento provocado por
um deslize qualquer. Pecado é uma doença do coração. Somos
pecadores porque nosso coração é mau, porque nosso coração não
reflete mais a santidade do coração de Deus, porque nosso caráter
está desvestido da glória do caráter de Deus.
Um escritor evangélico descreveu essa condição pecaminosa do
homem nos seguintes termos: “O sangue de Adão corre nas veias de
cada ser humano. ... Adão se rebelou contra Deus; a sua corrente
sanguínea se tornou envenenada e cada um de nós, filhos e filhas de
Adão que somos, sofre desse envenenamento de sangue.” Foi por
essa razão que Jesus disse a Nicodemos: “O que é nascido da carne,
é carne”, e enquanto não aceitarmos esse fato, estaremos obstruindo
a obra salvífica de Deus em nossa vida, e jamais haveremos de tomar
posse do reino dos Céus.
E é justamente aqui que reside o problema. Com o passar do
tempo, tem aumentado cada vez mais o número de pessoas que
resistem à doutrina bíblica do pecado, ou que pelo menos se sentem
um tanto desconfortáveis em relação a ela, sobretudo por influência
do moderno humanismo, que defende a idéia de que o ser humano é
inerente e naturalmente bom. O resultado é que, no mundo atual, o
tema do pecado já se tornou quase que totalmente obsoleto, mesmo
entre aqueles que se dizem cristãos.
Certa vez, ao assistir a uma palestra de um “famoso” teólogo
protestante, ouvi-o dizer que pecado é hoje “uma palavra rançosa”, e
que por isso deveria ser evitada.
Noutra ocasião, dirigia uma palestra a um grupo de universitários
evangélicos e, ao falar acerca da tendência pecaminosa que há no
coração humano, uma jovem muito distinta se levantou e
educadamente disse que não podia concordar comigo. Disse que não
existe nenhuma força dentro do homem chamada pecado, e que o
homem não passa de um produto do meio.
Um teólogo adventista, que muito escreveu e ensinou acerca da
doutrina da salvação, declarou: “O problema crítico na cristandade
moderna é a falta do senso de pecado diante de Deus.”
O homem moderno, com todo o seu desenvolvimento cultural e

57
Só JESUS

tecnológico, não consegue aceitar a doutrina bíblica do pecado. Im-


portantes setores da pesquisa educacional vêem o homem apenas
como um ser resultante de uma combinação de genes e cromossomos,
cuja formação é depois afetada pelo ambiente em que vive. Nesse
caso, aquilo que costumamos chamar de pecado é hoje visto apenas
como uma espécie de trauma, um condicionamento indevido, ou um
desvio de personalidade, e há inclusive pregadores que fomentam
essa idéia, ao apresentar um Cristo que é muito mais um psicólogo,
um amigo, que propriamente um Salvador.
No esforço por descobrir os princípios que regem o comporta-
mento humano, surgiu, alguns anos atrás, uma nova disciplina, a
sociobiologia, segundo a qual boa parte da moralidade humana
estaria também baseada em fatores genéticos, além dos já conhecidos
fatores ambientais. Assim sendo, tudo o que teríamos a fazer é
descobrir uma forma de alterar as bases genéticas dos seres humanos,
ou sanear o ambiente, solucionando problemas de habitação, favelas,
pobreza, desemprego e discriminação racial.
Mas precisamos entender de uma vez por todas que o homem não
é naturalmente bom, ou pelo menos neutro, como querem alguns.
Nosso comportamento não é determinado inteiramente por fatores
biológicos, e também não é o ambiente que acaba corrompendo nossa
natureza, embora as influências externas possam contribuir para es-
timular ou inibir a pecaminosidade que existe em nós (Sal. 1:1).
Nosso problema jaz em nossa própria natureza, e não no ambiente
que nos cerca. Há em cada um de nós uma predisposição natural para
pecar, e para magoar mesmo aqueles que nos amam, inclusive Deus.
Disse Jesus que é do coração que procedem os maus desígnios, os
homicídios, os adultérios, a prostituição, os furtos, os falsos
testemunhos e as blasfêmias (Mat. 5:19). Somos pecadores, portanto,
porque nascemos com um coração pecaminoso, um coração em
inimizade contra Deus (Jer. 17:9).

O Antídoto da Cruz

É por isso que, à semelhança de Nicodemos, nós também pre-


cisamos de um novo nascimento, se é que realmente temos o desejo
de um dia estar no reino de Deus.
O nascimento natural, por melhores que sejam as circunstâncias,
58
Só JESUS

não nos habilita a nos tomarmos súditos do reino de Deus, pois es-

59
“IMPORTA-VOS NASCER DE NOVO”

tamos em total desarmonia com Sua iei, e não temos em nós mesmos
nenhuma condição sequer de fazer aquilo que é do Seu agrado (Rom.
8:7 e 8). Caso fôssemos assim levados para o Céu, diz a Sra. White,
nenhum prazer haveríamos de encontrar ali. O amor e a santidade de
Deus não encontrariam eco em nossa alma. Nossos pensamentos,
interesses e motivos seriam tão diferentes que o Céu nos seria um
lugar de suplícios (Caminho a Cristo, págs. 17 e 18).
Precisamos nascer de novo, portanto, nascer da água e do Espírito,
a fim de receber uma nova natureza, uma natureza espiritual. Sem
esse processo regenerador, não temos como voltar a refletir a imagem
moral de Deus, e, como consequência, não poderemos estar com Ele
no Seu reino.
Mas como fazê-lo? Como passar pela experiência do novo
nascimento? Essa foi exatamente a pergunta que Nicodemos fez em
seguida a Jesus (João 3:9). Ao que Ele respondeu: “Do modo por que
Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do
homem seja levantado, para que todo o que nEle crê tenha a vida
eterna.” João 3:14 e 15.
Jesus ilustrou o modo pelo qual se obtém o novo nascimento com
uma história que Nicodemos conhecia muito bem, a história da
serpente de bronze.
Numa das muitas rebeliões do povo de Israel durante o Êxodo, eles
foram atacados por “serpentes abrasadoras” que infestavam o
deserto, e o resultado foi que muitos deles acabaram morrendo por
causa de suas picadas venenosas (Núm. 21:6). Os sobreviventes
apelaram para Moisés, que por sua vez apelou para Deus. E Deus o
orientou para que fizesse uma serpente de bronze, semelhante às que
haviam atacado o povo, e que a levantasse no meio do acampamento,
de modo que todos aqueles que fossem picados seriam prontamente
curados, se tão-somente olhassem para ela (Núm. 21:8).
A serpente de metal, porém, não tinha em si mesma nenhum poder
mágico ou terapêutico. Ela apenas visava a ensinar a Israel a
importante lição de que ninguém poderia se livrar a si mesmo dos
efeitos fatais do veneno. Apenas Deus poderia curá- los, e todo aquele
que dela se aproximasse, em atitude de total arrependimento e fé, e a
olhasse como a única solução para o seu mal, seria então curado.
Na verdade, aquela serpente era um símbolo do próprio Cristo, que
haveria de Se tornar maldição em nosso lugar (Gál. 3:13), seria
60
“IM PORT A-VOS NASCER DE NOVO”

levantado na cruz, de modo que todos aqueles que dEle se


aproximassem com fé e um coração genuinamente arrependido
poderiam ser curados da picada profunda e venenosa de Satanás.
A fé, portanto, era o meio pelo qual se obtinha a cura. E a fé
genuína é aquela que nos leva, em primeiro lugar, a admitir o
verdadeiro estado de nosso coração, a gravidade do mal que nos
infecta, e em seguida reconhecer que não temos em nós mesmos
nenhuma chance de cura, que precisamos do antídoto da cruz como
o único que pode neutralizar o veneno do pecado que existe em nós.
Diz a Sra. White: “Aproximando-se o pecador da cruz erguida, e
prostrando-se ao pé da mesma, atraído pelo poder de Cristo, dá-se
uma nova criação. É-lhe dado um novo coração. Toma-se uma nova
criatura em Cristo Jesus.” - Parábolas de Jesus, pág. 163.
E esse antídoto tão poderoso, capaz de mudar inclusive nossa
natureza, não é outro senão o próprio sangue de Cristo, cujos
benefícios são aplicados em nossa vida pelo poder do Espírito Santo.
Somente o Espírito pode regenerar e renovar o nosso coração (Tito
3:5 e 6). Somente Ele pode nos purificar de todo o pecado, e operar
em nós uma transformação tão profunda e duradoura, como se
chegássemos ao ponto de experimentar um novo nascimento. O
Espírito não somente nos convence de nosso pecado e nos atrai a
Cristo (João 16:8 e 9; Atos 2:37- 39), mas também é o único que pode
tornar eficaz o sangue de Cristo para cada um de nós, vivificando
assim o nosso coração carnal (Rom. 8:11).
“Ao pecado”, declara a Sra. White, “só se poderia resistir e vencer
por meio da poderosa operação da terceira pessoa da Trindade... É o
Espírito que toma eficaz o que foi realizado pelo Redentor do mundo.
É por meio do Espírito que o coração é purificado. Por Ele toma-se o
crente participante da natureza divina. Cristo deu Seu Espírito como
um poder divino para vencer toda tendência hereditária e cultivada
para o mal, e gravar Seu próprio caráter em Sua Igreja.” - O Desejado
de Todas as Nações, pág. 671.
Afinal, o plano da redenção não provê solução apenas para a culpa
que temos diante de Deus, mas também para o problema de nossa
natureza pecaminosa. Salvação significa muito mais que apenas o
perdão dos pecados; significa principalmente a restauração plena do
ser humano ao seu estado original de santidade e perfeição.
“Ser perdoado da maneira como Cristo perdoa é não somente ser
61
SÓ JESUS

perdoado, mas renovado no espírito do nosso entendimento. ... A


imagem de Cristo deve ser gravada na própria mente, coração e alma.
... Sem o processo transformador que só pode ocorrer pelo poder
divino, as propensões originais para pecar permanecem no coração
em toda a sua intensidade, para fotjar novas algemas, para impor uma
escravidão que nunca poderá ser rompida pelo poder humano. Mas
os homens não poderão entrar no Céu com os seus velhos gostos...
[e] inclinações.” - Review and Herald, 19/08/1890.

Conclusão

Embora o tema do pecado tenha se tornado um tanto impopular, e


embora ele possa ferir a nossa sensibilidade, não temos como evitar
o fato de que somos pecadores, de que temos uma natureza
pecaminosa, e que por isso precisamos de um novo nascimento. E
essa é a realidade de todos nós, sem exceção (Rom. 3:23),
independentemente de nossa raça, classe social, ou formação
acadêmica. Somos pecadores porque herdamos de Adão um coração
pecaminoso, totalmente inclinado à prática do mal.
Mesmo que uma boa educação, o exercício da vontade e o esforço
próprio consigam fazer com que vivamos de modo correto e nos
portemos como pessoas boas e honestas em vários aspectos da vida,
nada disso será capaz de mudar o nosso coração, e, portanto, de nos
livrar de pelo menos algum sentimento pecaminoso, como o egoísmo,
por exemplo.
Lutero já dizia que, depois da queda, o homem se tornou corcunda,
torto, voltado para si mesmo; alguém que rejeitou a Deus como o
centro de seus interesses, daí que até mesmo as boas obras, ou o bem
que consegue realizar, trazem consigo a tintura do egoísmo, do
interesse e do amor-próprio.

E não há nada, absolutamente nada, que possamos fazer para


reverter essa situação, por mais que psicólogos, sociólogos, biólogos
e às vezes até mesmo teólogos tentem encontrar causas puramente
acidentais para os problemas morais que afligem o homem (Jer.
13:23). Declara a Sra. White: “A fonte do coração se deve purificar
para que a corrente se possa tomar pura.” - O Desejado de Todas as
Nações, pág. 172. E mais: “É preciso um poder que opere
62
“IM PORT A-VOS NASCER DE NOVO”

interiormente, uma nova vida que proceda do alto, antes que os


homens possam substituir o pecado pela santidade.” - Caminho a
Cristo, pág. 18.
Esse poder é o Espírito Santo. Somente Ele pode avivar as
amortecidas faculdades de nossa alma, santificá-la, fazer com que ela
tenha novos desejos e propósitos, e assim nos propiciar uma vida
inteiramente nova e de acordo com a vontade de Deus. “O que é
nascido do Espírito”, disse Jesus, “é espírito.”
Mas o Espírito nada poderá fazer se não olharmos com fé para
Cristo, para o Cristo levantado na cruz do Calvário. O Espírito só
trabalha em função da cruz. Ela é o centro de Sua obra (João 16:14).
Todo aquele, pois, que tem sido vítima das próprias fraquezas, e que
já está cansado de lutar contra o orgulho, a inveja, o mau gênio, a
intemperança, ou qualquer outra tendência que o tem escravizado e
arruinado sua vida, sua vida familiar, sua vida profissional, ou mesmo
sua saúde, deve olhar com fé para Jesus, e o Espírito Santo virá e
certamente lhe dará um novo coração.
De nada adiantarão os compromissos pessoais. Eles não terão
longa duração. Nenhuma resolução haverá de perdurar. Nenhum voto
se manterá, mesmo se tomado sob intensa emoção, sob lágrimas e
suspiros. Nenhuma determinação de dominar o mal que impera em
nós terá qualquer êxito, se não for pela fé em Jesus e no poder do
Espírito Santo.
E aquele que, à semelhança de Nicodemos, ainda não sente a
necessidade de um novo nascimento, pelo fato de levar uma vida
equilibrada e honrada diante de tudo e de todos, deve se lembrar de
que será preciso bem mais do que isso se quiser de fato desfrutar das
maravilhas do reino eterno. Equilíbrio e boa reputação são virtudes
altamente recomendáveis, mas sem a obra de regeneração e
santificação que só pode ser efetuada pelo Espírito Santo “ninguém
verá o Senhor” (Heb. 12:14; Êxo. 33:20).
Embora Deus salve o pecador unicamente com base nos méritos
da vida e da morte de Jesus, a salvação em si envolve bem mais do
que apenas o perdão dos pecados. Deus não nos salva para que
continuemos sendo inerentemente pecadores, conquanto perdoados.
Ele nos salva também para que deixemos de ter uma natureza
pecaminosa, ou seja, para restaurar em nós todos os atributos morais
de que o pecado nos privou (Rom. 8:29).
63
“1MPORTA-VOS NASCER DE NOVO’’

Tal transformação, porém, só será possível se nos aproximarmos


da cruz conscientes e arrependidos não apenas do que fizemos ou
deixamos de fazer, mas também do que realmente somos em nós
mesmos, e todos nós somos pecadores. Não veremos nada em nós
mesmos de que nos vangloriar, nada que possa nos recomendar a
Deus, ou que venha porventura a agradá- Lo, mesmo que o mundo
nos veja como pessoas boas e dignas. Haveremos de nos esvaziar de
todo sentimento de vaidade e auto-suficiência, e morrer para o
próprio eu, para que possamos nascer como novas criaturas em Cristo
Jesus (Rom. 6:5). Sem morte não há novo nascimento, e sem novo
nascimento não há vida eterna (João 3:5).
Aproximemo-nos, pois, da cruz de Cristo, e nela contemplemos
pela fé Aquele que Se tornou pecado por nós (II Cor. 5:21), e que deu
a Sua vida pela nossa. A única coisa que Deus pede de nós é a fé, e a
fé genuína são os olhos que se desviam de nós mesmos e se fixam
unicamente em Jesus, no amor e no poder que Ele irradia, até que a
alma seja curada dos efeitos mortais do pecado e transformada à
imagem do próprio Salvador (II Cor. 3:18). Por isso Ele diz: “Olhai
para Mim, e sede salvos, vós, todos os termos da Terra.” Isa. 45:22.

64
CAPÍTULO 5

“Vai, e não peques mais”


“Então lhe disse Jesus: Nem Eu tão pouco te condeno; vai,
e não peques mais.” João 8:1L

0 relato da mulher adúltera, de João 7:53 a 8:11, consiste numa das


mais conhecidas e belas passagens da Escritura acerca do ■M amor
perdoador de Jesus. A maneira como o Salvador Se portou diante
do caso ilustra de forma poderosa Sua própria declaração de que não
viera para julgar, e, sim, para salvar o mundo (João 12:47). Mas não
é só isso: o relato também nos ajuda a entender um pouco melhor a
relação que existe entre o perdão que recebemos de Deus e a
obediência que Ele exige de nós.
Este é um assunto um tanto polêmico no seio do cristianismo. Uma
vez que o que salva mesmo é a obra objetiva de Cristo na cruz do
Calvário em nosso favor, não são poucos os que vêem o perdão como
algo completamente dissociado de qualquer responsabilidade moral
da parte do crente. Ou seja, ser perdoado significaria meramente ser
declarado justo, sem que nenhuma transformação efetiva ocorra em
nosso coração e, por conseguinte, sem que nenhuma mudança em
nossa maneira de viver seja realmente necessária.
Mas o tratamento que Jesus dispensou à mulher, bem como Sua
recomendação para que ela não voltasse à prática do pecado,
demonstram que, na salvação de uma alma, há mais coisa envolvida
que apenas a remissão de uma culpa, e precisamos saber o que é para
não cair no erro de adotar um cristianismo teórico, sem vida, e quem
sabe até mesmo libertino.

Uma Trama Diabólica

Amanhecia em Jerusalém o dia seguinte à Festa dos Tabernáculos,


também conhecida como festa das cabanas, que se destinava a
lembrar o tempo em que o povo de Israel vivera em tendas, durante
sua peregrinação pelo deserto, e celebrava o livramento do cativeiro
egípcio e a forma miraculosa como Deus os conduzira duran-

65
“VAI, £ NÃO PEQUES MAIS”

te o Êxodo. Era realizada após o término das colheitas, e durava sete


dias (Lev. 23:39-43). No oitavo dia, uma bela cerimonia tinha lugar
no templo, encerrando as comemorações (Núm. 29:35).
Assim como acontecia com a Páscoa e o Pentecostes, a Festa dos
Tabernáculos atraía muitos peregrinos a Jerusalém, e Jesus
costumava estar entre eles. Nessa ocasião, entretanto, já na fase final
de Seu ministério, Ele resistiu um pouco à idéia de ir até lá, por causa
da oposição dos líderes judaicos, que já havia assumido grandes
proporções. Mas acabou cedendo, embora tomasse algumas
providências para evitar qualquer publicidade desnecessária que
pudesse porventura precipitar Sua morte (João 7:3-10).
Não Lhe foi possível, porém, permanecer no anonimato por muito
tempo. Os fiéis, sabendo de Seu costume de participar das festas em
Jerusalém, procuraram-nO com tanto afinco, que não demorou para
que O encontrassem e fizessem com que Ele passasse a ensiná-los. E
tão logo Ele começou a fazê-lo, já teve que enfrentar as críticas e
àcusações dos escribas e fariseus, que não faziam nenhum esforço no
sentido de disfarçar suas verdadeiras intenções.
Durante aquela semana, o ódio e a revolta que sentiam para com
Jesus chegou ao limite, principalmente por causa da crescente
popularidade do Mestre junto ao povo em geral. Concluíram, então,
que era hora de agir. Reuniram o Sinédrio, e decidiram enviar
guardas para que O prendessem. Era o último dia da festa. Mas a
tentativa foi completamente frustrada. Os guardas voltaram de mãos
vazias, tamanha havia sido sua admiração pelo ensino de Jesus.
O episódio incitou de tal modo a ira daqueles líderes religiosos
que, naquela mesma noite, maquinaram uma trama diabólica para
capturá-Lo e fazê-Lo cair em descrédito perante o povo. Perceberam
que, se usassem a força, acabariam despertando a revolta da
multidão, pois grande era o número dos que simpatizavam com Ele.
Logo pela manhã, depois de passar a noite no Monte das Oliveiras,
Jesus voltou ao templo a fim de participar do serviço de adoração.
Muitos peregrinos também faziam o mesmo, embora a festa
propriamente dita já tivesse terminado. Era a última cerimô- nia a
que compareciam antes de iniciar o retomo para casa. Mal havia
chegado, porém, e logo um enorme grupo se formou em tomo de
Jesus, que “assentado, os ensinava”. João 8:2.
Em dado momento, um grupo de escribas e fariseus rompe a
66
Só JESUS

multidão, trazendo consigo uma mulher que havia sido surpreendida


em pecado. Eles a fazem ficar em pé no meio de todos e dizem a
Jesus: “Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. E
na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; Tu,
pois, que dizes?” João 8:4 e 5.
A intenção deles era óbvia. O mais provável é que eles haviam
contratado alguém para induzir aquela pobre mulher ao adultério
para que pudessem usá-la em sua tentativa de acusar a Jesus. Evi-
dência disso era a ausência do homem que compartilhava da culpa.
A lei de Moisés dizia que, em casos assim, os dois, homem e mulher,
deveriam morrer (Deut. 22:23 e 24), mas só a mulher estava sendo
acusada. E o fato de eles exigirem seu apedrejamento indica que ela
era noiva. Em casos de adultério, os rabinos normalmente
sentenciavam as casadas ao estrangulamento, enquanto que as
solteiras, mas já comprometidas, eram apedrejadas, num ritual que
costumava ser bastante vergonhoso, além de violento.
O procedimento comum consistia em arrastar a pessoa pelas ruas
da cidade antes de conduzi-la ao local da execução, que sempre
ficava fora da cidade. E à medida que o cortejo ia passando, mais e
mais pessoas se uniam a ele, até que chegavam diante de um barranco
previamente escolhido. A vítima era então deixada seminua, e suas
mãos amarradas atrás das costas.
A seguir, aqueles que haviam testemunhado o pecado eram
convocados. Era deles o “privilégio” de empurrar a vítima para baixo
e lançar contra ela a primeira pedra. Somente então as demais pessoas
presentes estariam autorizadas a também lançar suas pedras, selando
assim a execução. Terminado o apedrejamento, o corpo era
dependurado numa árvore qualquer até o pôr-do-sol, quando
finalmente era sepultado.
Aqueles escribas e fariseus, porém, não estavam nem um pouco
preocupados com o devido cumprimento da lei. O que eles queriam
na verdade era colocar Jesus numa situação embaraçosa, por meio da
qual pudessem acusá-Lo de alguma violação da lei, e assim
desmoralizá-Lo perante os olhos de todo o povo.

67
“VAI, E NÃO PEQUES MAIS”

Se recomendasse o perdão, Ele estaria Se colocando em clara


oposição à lei de Moisés. Com isso, não só muitos dentre os Seus
seguidores ficariam indignados, como também o próprio Sinédrio
acabaria tendo um bom motivo para condená-Lo. Por outro lado, se
recomendasse o apedrejamento, Jesus não só perderia a simpatia do
povo, do qual Se dizia um defensor, como também estaria indo contra
a legislação romana, que reservava para si o direito de aplicar a pena
de morte (João 18:31). De um jeito ou de outro, aqueles homens ali
presentes esperavam poder acusá-Lo como transgressor, e assim
destruir a Sua influência entre o povo.

A Reação de Jesus

Apesar de perceber que se tratava de uma cilada, Jesus não diz uma
palavra sequer, apenas Se abaixa e começa a escrever na areia a Seus
pés. Seu gesto despertou o interesse dos escribas e fariseus, que
podem ter imaginado que o que Ele estava escrevendo era a sentença
da mulher. Talvez Jesus estivesse imitando a atitude de um
magistrado romano, que primeiro escrevia sua sentença para depois
lê-la em voz alta. Mas estavam errados. Diz a Sra. White que “ali,
traçados perante eles, achavam-se os criminosos segredos de sua
própria vida” (O Desejado de Todas as Nações, pág. 461), e foi com
terrível espanto que eles o perceberam.
Não sabemos exatamente o que aconteceu, mas é provável que
Jesus tenha fixado o olhar num daqueles homens, o líder quem sabe,
e tenha escrito no chão algum de seus pecados ocultos. A seguir,
talvez tenha feito o mesmo com relação a um dos que arrastara a
mulher para lá. Depois com outro, e assim por diante, confrontando
cada um deles com seu próprio pecado.
A multidão ao redor deve ter notado a súbita mudança na ex-
pressão dos acusadores, e talvez tenha tentado se aproximar um
pouco mais para ver o que estavam eles olhando com tanto assombro
e vergonha. Não querendo, porém, que isso acontecesse, aqueles
líderes judaicos exigem de Jesus uma resposta, buscando a todo custo
impedir que a atenção de todos se voltasse da mulher para eles
mesmos.
Mas aqueles escribas e fariseus, com sua professada reverên-

68
SÓ JESUS

cia pela lei, ao exigirem a punição da mulher, estavam eles mesmos


se revelando declarados transgressores. Em caso de adultério, era
dever do marido, ou do noivo, mover a ação, e as partes culpadas
deviam ser igualmente punidas. Jesus, entretanto, usou as próprias
armas deles para os rebater. Como a lei determinava que, nos castigos
por apedrejamento, a primeira pedra fosse lançada pelas testemunhas
do caso, Jesus Se levantou, e olhando mais uma vez para aqueles
homens de coração hipócrita e assassino, disse: “Aquele que dentre
vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra.” João 8:7.
Abaixou-Se novamente, e continuou escrevendo.
Jesus não pôs de lado a lei dada por Moisés, nem foi de encontro à
autoridade de Roma. Ele apenas destacou o significado moral da vida
de cada um daqueles que buscavam derrotá-Lo. Os motivos mais
íntimos de seu coração haviam sido julgados, e por isso nenhum
direito tinham de exigir a condenação de quem quer que fosse.
Totalmente derrotados, começaram a se afastar em absoluto silêncio.
Todos eles, a começar pelos mais velhos, se retiraram, desaparecendo
por entre a multidão. Apenas a mulher permaneceu.
Somente agora Jesus Se levanta, e observa que nenhum dos
acusadores está mais presente; apenas as pedras a indicar no chão o
lugar exato em que cada um havia estado. Então Ele Se dirige à
mulher: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te
condenou?” João 8:10. Ainda sob o efeito do medo, e sem saber
exatamente o que a aguardava, ela responde: “Ninguém, Senhor.”
João 8:11. Isso foi tudo o que ela disse, do começo ao fim, e nessa
simples resposta deixa implícito que aceita como verdadeira a
acusação de que fora alvo. Então Jesus acrescenta as memoráveis
palavras: “Nem Eu tão pouco te condeno; vai, e não peques mais.”
João 8:11.
Aqui, dois pontos precisam ser considerados. O primeiro é que o
fato de Jesus não a condenar não significa que ela não era culpada.
Os escribas e fariseus até que poderiam ter encomendado o flagrante,
mas tudo indica que ela não fora forçada a cometer o adultério. Tanto
sua resposta a Jesus quanto a recomendação que Ele lhe deu de ir e
não pecar mais indicam sua responsabilidade no pecado, e quem sabe
em outros do mesmo gê- nero. Ela era culpada, portanto. Sentia-se
culpada, e reconhecia sua culpa, e foi exatamente por isso que Ele a
perdoou.
69
Só JESUS

O segundo ponto é que o fato de Jesus não a condenar também


não significa que Ele tenha tratado o seu pecado levianamente. Não
foi o tratamento brutal que ela recebeu daqueles que a acusavam ou
as lágrimas que banhavam o seu rosto que constrangeram Jesus a agir
com misericórdia para com ela. Ele nunca ignora ou desculpa o
pecado, por menor que seja; Sua justiça sempre o condena. Mas,
conquanto Ele condene o pecado, Ele salva o pecador (João 12:47), o
pecador que nEle confia e a Ele se entrega em genuíno
arrependimento. Foi por isso que Ele perdoou a mulher. Sua justiça
condenou a hipocrisia dos escribas e fariseus, bem como a
sensualidade da mulher. Só que, enquanto aqueles saíram com o
coração ainda mais endurecido, esta se arrependeu e confiou em Jesus
para o perdão de seus pecados.
Embora a Bíblia nada mencione acerca do nome dessa mulher, a
Sra. White parece endossar uma antiga tradição cristã não muito
reconhecida atualmente, segundo a qual teria sido Maria Madalena,
ao dizer: “Mais tarde, quando ela estava cheia de pesar, ao pé da cruz,
... seu coração foi traspassado novamente” (Signs of the Times,
30/10/1879), e sabemos que dentre as mulheres que estavam junto à
cruz, achava-se Maria Madalena (João 19:25). Sendo assim, ela já era
conhecida de Jesus (Luc. 8:2 e 3). Talvez tenha sido por isso que Ele
não a despediu sem antes adverti-la de que o perdão, além de uma
implicação espiritual, também tem uma profunda implicação ética.
Sua ordem para que ela não continuasse na prática do pecado visava
a ensinar-lhe a verdade de que o perdão divino deveria ser para ela o
início de uma nova vida, uma vida de pureza e obediência. Ou seja, o
fato de não haver sido condenada não significava de modo algum que
ela estava livre para voltar a pecar.

Perdão e Santificação

Certos segmentos do cristianismo têm adotado uma posição muito


estranha com respeito à doutrina da justificação pela fé, a de que o
perdão divino não consiste em nada mais que um simples decreto
legal a nosso favor, pelo qual somos absolvidos de toda culpa. É como
se Deus Se limitasse apenas a nos declarar justos, em vez de nos
tornar justos.
As implicações de um perdão como esse são as mais devastadoras
70
“VAI, E NÃO PEQUES MAIS”

possíveis. Além de levar o crente a subestimar a doutrina bíblica da


santificação, também faz com que ele viva na segurança de uma
salvação ilusória. Se o perdão divino não passa de mera declaração
judicial, então Deus não pode exigir nenhum comprometimento mo-
ral de nossa parte. Por conseguinte, estamos salvos, e para todo o
sempre, independentemente do que fizermos ou deixarmos de fazer.
Não nos admira que muitos pretensos cristãos adotem uma religião
puramente retórica, anémica, e até mesmo frívola.
As Escrituras, porém, de maneira alguma autorizam uma religião
assim. Nenhum pecador perdoado por Deus está livre para continuar
na prática do pecado (Rom. 6:1 e 2), isso porque o perdão divino, que
é a mesma coisa que justificação (Fé e Obras, pág. 93), é muito mais
que uma simples declaração de indulto. Ele atinge o coração do
homem. Possui em si mesmo força moral, criando na pessoa perdoada
não só o desejo, como também a capacidade de fazer o bem (João
1:12).
Diz a Sra. White: “O perdão ... tem um sentido mais amplo do que
muitos supõem. ... O perdão de Deus não é meramente um ato judicial
pelo qual Ele nos livra da condenação. E não somente perdão pelo
pecado, mas livramento do pecado. É o transbor- damento de amor
redentor que transforma o coração.” - O Maior Discurso de Cristo,
pág. 114. E não poderia ser diferente, do contrário nossa salvação
seria uma farsa. Estaríamos perdoados, mas por dentro
continuaríamos os mesmos, com o mesmo coração carnal e vendidos
à escravidão do pecado (Rom. 7:14).
Embora Deus nos aceite e nos perdoe exatamente como estamos,
Ele nunca nos deixa como estamos. Seu ato de afastar de nós as
transgressões (Sal. 103:12) também tem um aspecto subjetivo, e
envolve nossa santificação e consagração para o Seu serviço (Efés.
5:26 e 27). Calvino assim expressou esse fato: “Cristo não justifica a
ninguém que ao mesmo tempo não santifique. ... Ninguém pode
possuí-Lo, sem que seja feito participante de Sua santificação.”
E essa santificação, que tem lugar quando aceitamos a Jesus como
nosso Salvador pessoal e somos por Ele perdoados, sig- nifica não só
a quebra do que Paulo chama de “lei do pecado”, isto é, o poder do
pecado que existe em nós e que domina completamente a nossa
vontade, mas também a implantação de uma nova lei, a “lei do
Espírito”, a fim de que sejamos por Ele guiados (Rom. 8:2). “A
71
Só JESUS

religião de Cristo significa mais que o perdão dos pecados; significa


remover nossos pecados e encher o vácuo com as graças do Espírito
Santo. Significa iluminação divina e regozijo em Deus. Significa um
coração despojado do próprio eu e abençoado pela presença de Cristo.
Quando Cristo reina na alma há pureza e libertação do pecado.” -
Parábolas de Jesus, págs. 419 e 420.
E importante esclarecer, porém, que o perdão e a santificação são
na verdade experiências distintas, embora na prática estejam
intimamente ligadas. No perdão, ou na justificação, Deus nos imputa
a justiça de Cristo, nos perdoa os pecados, e nos livra da condenação
da lei, e isso ocorre no momento exato em que entregamos o coração
a Jesus. E instantâneo, portanto. Acontece que ao nos perdoar, Deus
também nos infunde a justiça de Cristo, nos livra do poder do pecado,
e nos coloca em harmonia com Sua lei. É o novo nascimento, de que
falamos no capítulo anterior, e que também consiste num ato
instantâneo, mas com a diferença de que ele desencadeia um processo
que se estende por toda a vida. Em outras palavras, ao entregar o
coração a Jesus, além de perdoados, somos também santificados, e
essa santificação inicial é ao mesmo tempo o começo de uma vida
santa. É nesse sentido que o apóstolo recomenda: “Segui ... a
santificação.” Heb. 12:14. Trata-se de um crescimento em santidade
que deve ocorrer após a conversão (Efés. 1:4; Filip. 3:12).
O perdão e a santificação, portanto, são como os dois lados de uma
mesma moeda: distintos, mas que sempre vão juntos, e por isso
mesmo são igualmente importantes. Um não tem valor sem o outro.
Embora seja verdade que a santificação dependa do perdão como seu
alicerce e ponto de partida, devemos nos lembrar de que pelo perdão
recebemos apenas o direito à vida eterna (Rom. 5:18), ao passo que
nossa habilitação para ela só é possível por meio da santificação
(Rom. 6:22). Ambas as experiências são, portanto, necessárias. É por
isso que a vontade de Deus para conosco é a nossa santificação (I
Tess. 4:3), sem a qual, diz o apóstolo, “ninguém verá o Senhor” (Heb.
12:14). In- felizmente, muitos crentes têm passado demasiado tempo
discutindo sobre o tema da relativa importância entre o perdão e a
santificação. Mas essa é uma discussão que não faz o menor sentido.
É a mesma coisa que discutir sobre se é mais importante nascer ou
viver. Quando alguém nasce, vive, a menos que nasça morto. Assim
também, ao nos perdoar, Deus nos transforma mediante a experiência
72
“VAI, E NÃO PEQUES MAIS”

do novo nascimento, para que tenhamos a disposição e o poder de


viver uma vida inteiramente nova.
Isso significa que a santificação na vida cristã não é outra coisa
senão a própria consequência, o fruto do perdão em Cristo Jesus.
Declara o apóstolo Paulo: “Agora, porém, libertados do pecado,
transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para a
santificação, e por fim a vida eterna.” Rom. 6:22. Este é um princípio
fundamental que não pode de modo algum ser ignorado sem que haja
detrimento da doutrina bíblica da salvação. Todo aquele que foi salvo
por Cristo entrou numa nova relação com Deus, e o fruto
correspondente dessa nova relação será uma vida de santidade.
Enquanto estávamos em Adão, todos nós estávamos mortos em
nossos delitos e pecados, e vivíamos “segundo as inclinações da nossa
carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos”. Efés. 2:1 e 3.
Mas em Cristo a situação é bem diferente: estamos mortos para o
pecado, e por isso devemos viver para Deus (Rom. 6:2 e 10).
A chave para que possamos compreender a vida resultante dessa
nova relação com Deus está em nossa identificação com Cristo em
Sua morte e ressurreição. O apóstolo Paulo cita o batismo, como o
resumo de todo o drama redentor. Diz ele que ser batizado em Cristo
significa ser batizado em Sua morte, de maneira que, como Ele
ressuscitou pela glória do Pai, assim também nós haveremos de
ressuscitar e andar em novidade de vida (Rom. 6:3 e 4).
Quando o crente é submerso nas águas batismais, está na verdade
sendo sepultado com Cristo. Ao sair das águas, é uma nova criatura,
com uma nova direção em sua vida, totalmente controlado pelo
Espírito de Deus. Quando Cristo morreu, todos nós morremos com
Ele, e por isso não estamos mais sob a condenação da lei (II Cor. 5:14;
Rom. 8:1). Quando Ele foi sepultado, todos nós o fomos com Ele.
Mas Ele não permaneceu na tumba. Ao morrer, Jesus não concluiu
Sua obra redentora. No plano da salvação, a ressurreição de Jesus é
tão indispensável quanto Sua morte, pois é o que garante a validade
de Seu sacrifício (I Cor. 15:17-19). Se Ele não tivesse ressuscitado,
Sua morte teria sido em vão.
Assim também deve acontecer conosco. Da mesma forma como
fomos salvos ao nos identificar com o Cristo crucificado, também
somos chamados a nos identificar com o Cristo ressur- reto. Da
mesma forma como a glória do Pai capacitou Cristo para retornar à
73
Só JESUS

vida, também o poder de Deus nos capacita para viver uma vida nova
e vitoriosa (Rom. 6:5 e 6), onde o pecado não mais tenha domínio
sobre nós (Rom. 6:12-14).

O Padrão Moral de Deus

Falar em vida nova e vitoriosa com relação ao pecado é a mesma


coisa que falar numa vida regida pelos ditames da lei de Deus, porque
“o pecado é a transgressão da lei”. I João 3:4. Em outras palavras,
assim como não é correto falar em perdão de forma desvinculada da
santificação, também não é correto falar em santificação de forma
desvinculada da lei, porque santidade não é outra coisa senão
conformidade tanto interior quanto exterior com a santa lei de Deus
(D Grande Conflito, pág. 469).
Essa declaração pode parecer um pouco estranha e ser inclusive
disputada por algumas pessoas, sobretudo por aquelas que se
acostumaram a ver a lei unicamente no contexto do farisaís- mo
judaico dos dias de Jesus. A maioria dos fariseus era irrepreensível
em sua observância da lei (Filip. 3:6), mas isso não significa, nem de
longe, que eles eram santos (Mat. 23:33), porque sua
irrepreensibilidade dizia respeito unicamente aos seus atos, enquanto
que seu caráter estava repleto de hipocrisia e de toda sorte de
iniquidade. Foi por isso que Jesus os comparou a “sepulcros caiados,
que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de
ossos de mortos, e de toda imundícia”. Mat. 23:27 e 28.
É necessário frisar este ponto. Jesus não condenou os fariseus pelo
fato de eles procurarem viver em plena conformidade com
a lei, senão porque a conformidade que buscavam era unilateral, não
envolvia o coração, que era justamente a parte mais importante (Mat.
23:25 e 26). Agora podemos entendê-Lo melhor quando Ele diz que
se a nossa justiça, ou santidade, não exceder em muito a dos escribas
e fariseus, jamais entraremos no reino do Céu (Mat. 5:20).
Não há nada de errado com a lei, portanto. O problema estava com
os fariseus, no uso parcial e legalista que eles faziam da lei, e não com
a lei em si (Rom. 9:31 e 32). “A lei é santa”, diz o apóstolo Paulo, “e
o mandamento, santo e justo e bom.” Rom. 7:12. A questão é que
conformidade meramente exterior com a lei, sem o devido respaldo
da santidade interior, é hipocrisia, e por isso nada vale, mesmo que
74
SÓ JESUS

seja perfeita, além de consistir numa ofensa ao poder salvador e


regenerador de Deus.
Ao dar a lei ao Seu povo, Deus jamais desejou que ela fosse usada
de forma tão equivocada. Longe de ser uma mera lista de obrigações
legais pelas quais Israel pudesse conquistar o favor divino em troca
de seu cumprimento perfeito, a lei era na verdade a transcrição do
santo caráter de Deus, e tinha como principal objetivo revelar e
condenar a iniquidade humana (Rom. 7:7- 13), bem como mostrar o
que Deus poderia fazer com o pecador que se arrependesse e a Ele se
entregasse com fé (Rom. 8:4).
Importa destacar, porém, que a lei já existia bem antes do Sinai.
Sendo uma expressão do caráter de Deus, ela é na verdade tão eterna
quanto o próprio Deus (Sal. 119:142 e 144). Não fosse assim, e o
pecado não teria existido, primeiro no Céu, com Lúcifer, e depois na
Terra, com Adão e Eva, pois “onde não há lei, também não há
transgressão”. Rom. 4:15. Mas ela não existia da forma como a
conhecemos hoje. Seus princípios eram conhecidos numa linguagem
positiva, e não negativa, e eram transmitidos oralmente de pai para
filho, através de gerações sucessivas. Estavam, portanto, gravados no
coração do povo de Deus, e não em tábuas de pedra, e o resultado era
uma vida de completa obediência e dedicação à vontade do Criador
(Patriarcas e Profetas, pág. 363).
Abraão, por exemplo, é descrito como tendo guardado os
mandamentos, os preceitos, os estatutos, e as leis divinas (Gên. 26:5;
17:1 e 9; 18:19).
No Sinai, porém, a lei teve que ser totalmente reformulada.

75
“VAI, E NÃO PEQUES MAIS”

Seus princípios permaneceram os mesmos, mas foram dispostos e


expressos de modo que pudessem se adaptar ao povo israelita em seu
estado de depravação e miséria (Gál. 3:19). Durante o cativeiro
egípcio, além da influência corruptora do mais crasso paganismo, o
povo de Israel também foi submetido a um tratamento por demais
desumano, o que não só eliminou como que por completo sua
sensibilidade espiritual, como também fez com que ele mergulhasse
na mais vil e profunda apostasia. Foi por isso que Deus teve que
revestir Sua lei de uma nova roupagem, do contrário a mensagem do
evangelho não surtiria nenhum efeito.
E essa nova roupagem começava já pela linguagem, que passou a
ser expressa em termos negativos e fortes para que o povo pudesse
entendê-la. Também foram usadas tábuas de pedra, como símbolo de
severidade, de condenação e morte (II Cor. 3:7). O rigor dos trovões
e relâmpagos, o monte que tremia e fumegava (Exo. 20:18 e 19), tudo
visava a fazer com que o pecado humano “se mostrasse sobremaneira
maligno” (Rom. 7:13), ao ser confrontado com a glória e a santidade
divinas. Declara a Sra. White: “Se o homem houvesse guardado a lei
de Deus conforme fora dada a Adão depois de sua queda, preservada
por Noé e observada por Abraão,... não teria havido necessidade de
que ela fosse proclamada no Sinai, nem gravada em tábuas de pedra.”
- Patriarcas e Profetas, pág. 364.
O fracasso dos descendentes de Abraão, portanto, tomou ne-
cessário o Sinai, e o que Deus buscava ali não era outra coisa senão
avivar o sentimento de culpa no coração daquele povo rebelde, e
assim fazê-lo compreender a necessidade de Sua graça (Gál. 3:24).
“A lei de Deus, pronunciada do Sinai com terrível solenidade, é para
o pecador o pronunciamento de sua condenação.” - Mensagens
Escolhidas, vol. 1, pág. 236.
Uma vaga percepção do fato de que nem tudo vai bem com o
homem não o impelirá ao Salvador. Somente quando compreende
que seus pecados são transgressões da lei dAquele que também é o
seu Juiz (Jer. 11:20) e cuja santidade não pode tolerar um único
pecado sequer (Hab. 1:13), é que ele, ao ser esse conhecimento
aplicado ao seu coração pelo Espírito Santo (João 16:8), clamará por
livramento. E era exatamente isso o que Deus esperava que
acontecesse. Sua intenção era conduzir Israel a uma experiência de

76
“VAI, E NÃO PEQUES MAIS”

arrependimento e fé, para que o Seu temor estivesse diante deles, e


eles não mais continuassem a pecar (Êxo. 20:20).
Deus queria purificar Israel de todas as suas imundícias e ini-
quidades, e lhe dar um novo coração, não mais de pedra, mas um
coração regenerado pela presença do Espírito Santo (Ezeq. 36:25 e
26). Tendo cumprido o seu papel, a lei não mais haveria de condená-
los (Gál. 3:25). Ela deixaria de estar em tábuas de pedra para estar
gravada no coração e na mente de cada um deles (Jer. 31:33). E esse
estado de santidade interior teria como fruto a obediência exterior.
Todos os estatutos e juízos divinos seriam guardados e observados,
com espírito alegre e voluntário (Ezeq. 36:27; Jer. 31:34). O ideal de
Deus para com Israel — “vós sereis o Meu povo, e Eu serei o vosso
Deus” (Ezeq. 36:28) - seria então alcançado.
A mesma coisa Deus deseja fazer hoje com cada um de nós, se a
Ele nos volvermos em busca de perdão. Não só seremos perdoados,
mas também transformados mediante o milagre do novo nascimento.
Nosso coração será santificado. Os atributos santos da lei serão
gravados em nossa alma (Heb. 8:10 e 11), de modo que passaremos
a amá-los (Rom. 7:22) e a cumpri-los em nossa experiência cristã
(Rom. 8:4). Declara a Sra. White: “No novo nascimento o coração é
posto em harmonia com Deus, ao colocar-se em conformidade com
a Sua lei. Quando essa poderosa transformação se efetua no pecador,
passou ele da morte para a vida, do pecado para a santidade, da
transgressão e rebelião para a obediência e lealdade. Terminou a
velha vida de afastamento de Deus, começando a nova vida de
reconciliação, de fé e amor.” - O Grande Conflito, pág. 468.

Conclusão

Pouco depois de sua conversão, Agostinho caminhava por uma


das ruas de Milão, na Itália, quando de repente cruzou com uma
prostituta a quem havia conhecido intimamente. Ao perceber quem
era, ela o chamou, mas ele não atendeu, e continuou caminhando.
“Agostinho”, insistiu ela, “sou eu!” Sem diminuir o passo e com a
segurança de Cristo no coração, ele respondeu: “Sim, é você, mas eu
já não sou mais eu!”

De fato, Agostinho não era mais o mesmo; era uma nova criatura.

77
SÓ JESUS

Se bem que ainda fosse muito novo na fé, ele sabia perfeitamente o
que a graça de Deus havia operado em sua vida, e também como
deveria viver a partir do momento em que a experimentara.
Essa será a experiência de todo genuíno cristão. Ninguém que é
alcançado pela graça divina continua na prática do pecado, muito
menos tem qualquer sentido a alegação de que, quanto mais
pecarmos, mais poderemos desfrutar da graça perdoadora de Deus
(Rom. 6:1 e 2). Tal enfoque, que explícita ou implicitamente é mais
comum do que podemos imaginar, consiste numa grosseira
deturpação do evangelho, e tem a clara finalidade de facilitar sua
pregação.
De nada adiantam, porém, igrejas lotadas, se seus membros
continuam irregenerados. De nada adiantam centenas de braços
levantados numa reunião de reavivamento, se os membros não se
mostram dispostos a abandonar os pecados e vícios que têm
caracterizado sua vida. A verdadeira religião não pode existir com
base numa graça tão leviana que não venhamos a valorizá- la, e
pretender que ela não exija nenhum compromisso ético de nossa
parte é reduzi-la ao nível de nossas mais vis perversões.
A graça de Deus não é mera teoria ou abstração teológica. É um
poder real que, além de nos perdoar, também nos livra do domínio
do pecado (Rom. 6:14) e nos transforma em “servos da justiça”
(Rom. 6:18). Por isso, não podemos experimentá-la e ainda assim
continuar praticando algum pecado consciente e voluntário.
Se o perdão divino não cria em nós uma nova repulsa pelo pecado,
com o qual estávamos acostumados ou que gostássemos
imensamente de praticar, conferindo-nos também um novo poder
para resistir à tentação, então é porque ainda não fomos perdoados, e
nem mesmo toda a vontade de Deus em fazê-lo será suficiente para
nos livrar da condenação. É por isso que, como disse Lutero, todo
aquele que recebeu a misericórdia de Deus por intermédio de Cristo,
mas que ainda permanece em seus velhos caminhos do mal, só pode
na verdade ter um outro tipo de Cristo.
É importante que se diga, porém, que embora o perdão de Deus
represente para nós o início de uma vida de justiça e santidade,
ninguém será salvo pelas boas obras ou virtudes decorrentes dessa
nova vida. A salvação advém quando, por meio da fé, depositamos
nossa confiança unicamente na vida e na morte substitutivas de Jesus

78
“VAI, E NÃO PEQUES MAIS”

Cristo. Pela fé, Deus nos aceita, nos imputa a justiça de Cristo, e nos
trata como se nunca houvéssemos pecado (Rom. 4:3 e 5). No
momento em que isso ocorre, estamos salvos. A questão apenas é que
“a justiça de Cristo não é uma capa para encobrir pecados não
confessados e não abandonados; é um princípio de vida que
transforma o caráter e rege a conduta. Santidade é integridade para
com Deus; é a inteira entrega da alma e da vida para habitação dos
princípios do Céu”. - O Desejado de Todas as Nações, págs. 555 e
556.
Em outras palavras, não é a santidade cristã que salva, mas não há
salvação que não resulte numa vida de santidade. Além do mais, uma
vida assim santificada e dirigida pelo Espírito Santo acaba se
constituindo numa evidência incontestável de que de fato o
evangelho “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que
crê”. Rom. 1:16. “A beleza e fragrância do caráter de Cristo
manifestadas na vida testificam de que em verdade Deus enviou Seu
Filho ao mundo para o salvar.” - Parábolas de Jesus, pág. 420.
Portanto, “vai, e não peques mais”.

79
CAPÍTULO 6

“Por que duvidaste?”


“E, prontamente, Jesus, estendendo a mão, tomou-o e lhe disse:
Homem de pequena fé, por que duvidaste?” Mateus 14:31.

a uando o assunto é santificação, uma das primeiras dúvidas que


nos vem à mente é com respeito à parte que desempenhamos
nesse processo. Alguns dizem que a santificação é um ato ex-
clusivo de Deus, totalmente isento da participação humana.
Outros, por sua vez, já parecem colocar toda a responsabilidade sobre
o ser humano, dizendo que nos tomamos santos na medida em que
fazemos aquilo que Deus ordena, e evitamos aquilo que Ele proíbe.
Na prática, porém, nenhuma dessas idéias tem se revelado correta,
e muito menos benéfica para a vida espiritual. Tenho encontrado
vários membros que se frustram ao perceber que a conversão, em vez
de colocá-los fora do alcance da tentação, parece até que os toma
mais vulneráveis a ela, e essa vulnerabilidade não é tão passageira
quanto se poderia esperar; dura o resto da vida. E com respeito
àqueles que confiaram em Jesus para o perdão dos pecados, mas que
agora acham que devem fazer sozinhos o restante da obra, de duas
uma: ou se tornam hipócritas, tentando ao máximo manter uma
aparência de santidade, ou também se frustram, ao perceber que em
si mesmos continuam tão fracos em relação ao pecado como antes da
conversão.
Não devemos, portanto, nutrir uma falsa expectativa quanto à
santificação, nem no sentido de que ela nos torna resistentes a todo e
qualquer tipo de pecado, e nem de que ela representa uma conquista
puramente humana. A tentativa de Pedro de caminhar sobre as águas
ilustra muito bem esses dois pontos. Ele poderia afundar, e de fato
afundou quando presumiu que estava em condições de prosseguir
sozinho.

Descanso Interrompido

Jesus estava próximo a Betsaida, na extremidade norte do Mar da


Galiléia, num pequeno lugar tranquilo e solitário, para

80
“PQR QUE DUVIDASTE?”

onde Se dirigira com os discípulos em busca de refúgio. Os dis-


cípulos haviam acabado de retomar de sua primeira campanha
evangelística. Estavam cansados portanto, e precisavam de algum
repouso. Mas não só eles. O próprio Jesus também desejava Se
afastar por algum tempo da agitação das multidões a fim de meditar
um pouco.
João Batista acabara de ser morto por Herodes e, ao receber essa
notícia, Jesus não teve como evitar que a tristeza e a dor tomassem
conta de Seu coração, ainda mais por saber que o mesmo fim O
aguardava. Eram as nuvens que se adensavam em torno de Seu
caminho (O Desejado de Todas as Nações, pág. 360).
Não demorou muito, porém, e a multidão logo O encontrou,
interrompendo aquele breve período de descanso (Mat. 14:13). As
pessoas vieram de perto e de longe; trouxeram os seus enfermos para
serem por Ele curados, e desejavam ouvir mais acerca dos Seus
ensinos. E aquele que deveria ser um dia tranquilo e calmo acabou
por se transformar num dos dias mais longos e agitados tanto para
Cristo quanto para os discípulos.
Já era tarde. A noite se aproximava rapidamente, mas o povo,
embora cansado e faminto, permanecia todo ali. Muitos dos que ali
estavam não haviam comido nada desde a manhã. Os discípulos
sentiram que alguma coisa precisava ser feita, então pediram a Jesus
que terminasse os trabalhos e despedisse a multidão (Mat. 14:15).
Diz a Sra. White que “Jesus trabalhara o dia inteiro sem alimento
nem repouso. Estava pálido de fadiga e fome”, e que foi na verdade
por causa dEle que os discípulos Lhe fizeram esse pedido {Idem, pág.
365).
Jesus, porém, jamais colocaria Seus interesses pessoais à frente
dos interesses daqueles a quem viera salvar. Jamais haveria de
despedir aquela multidão cansada e fraca para que Ele mesmo
pudesse descansar. E foi então que Ele operou o primeiro grande
milagre da multiplicação dos pães. Cerca de cinco mil homens, sem
contar mulheres e crianças, foram fartamente alimentados.
Todos dentre a multidão ficaram impressionados e convencidos de
que Jesus realmente era o Messias. O milagre em especial fez com
que eles O vissem como o Libertador por tanto tempo es- perado:
Aquele que podia livrar Israel do poder romano, curar os soldados
feridos na batalha, abastecer exércitos inteiros de alimento, e suprir

81
SÓ JESUS

todas as demais necessidades do povo.


Os ânimos se exaltaram. A excitação do povo atingiu proporções
nunca dantes vistas. E percebendo que alguns dos mais apaixonados
estavam a ponto de arrebatá-Lo, a fim de O proclamarem Rei (João
6:15), Jesus concluiu que estava na hora de agir e encerrar as
atividades por aquele dia. Chamou, então, os discípulos à parte e lhes
ordenou que tomassem o barco e retornassem imediatamente para
Cafarnaum, enquanto Ele ficava para dispersar a multidão.
Após fazê-lo, o relato bíblico declara que Jesus “subiu ao monte,
a fim de orar sozinho. Em caindo a tarde, lá estava Ele, só”. Mat.
14:23. Esse versículo descreve um dos aspectos mais
impressionantes da vida de Jesus. Mesmo estando cansado e abatido,
Ele jamais negligenciava os momentos de oração particular. Não
importava quão intenso e agitado fosse o dia, Ele nunca o terminava
sem antes Se colocar em íntima comunhão com Deus, buscando do
alto o alívio e o poder de que necessitava. E Ele saía desses períodos
de oração “revigorado para os deveres e provações do dia-a-dia”. -
Caminho a Cristo, pág. 93.
Enquanto isso, os discípulos faziam como o Mestre lhes havia
ordenado, apesar de contrariados, pois eles também queriam coroá-
Lo Rei. Eles também acreditavam que Jesus era o Messias prometido,
e achavam que já estava na hora de Ele iniciar aquela que julgavam
ser Sua verdadeira obra de libertação. E ao conversarem
entusiasticamente sobre os tremendos acontecimentos daquele dia,
estando com o barco já longe da praia, uma grande e repentina
tempestade desabou sobre eles. Apesar de ser noite de primavera e
de não haver nenhum indício de que o tempo fosse mudar, eles se
viram agora assustados, lutando contra ondas encapeladas e um vento
que soprava cada vez mais forte.
Por estar localizado no vale do Jordão, a duzentos metros abaixo
do nível do mar, e ser rodeado por inúmeros montes, alguns com
topos de baixa temperatura, o Mar da Galiléia está sujeito a súbitas e
violentas tempestades que se desencadeiam pelos desfiladeiros das
montanhas até penetrar nas águas do lago. E justamente naquela noite
uma dessas tempestades alcançou os discí-
pulos, que agora lutavam desesperadamente para não naufragar,
enquanto o vento forte os arrastava para longe de sua rota.
Já estavam horas e horas (Mat. 14:25) perdidos numa travessia que
82
“PQR QUE DUVIDASTE?”

em condições normais há muito já teria sido concluída, quando de


repente, no clarão de um relâmpago, eles viram um vulto estranho
que se aproximava caminhando por sobre as águas. Era Jesus, que
depois de um longo período de oração vinha em socorro de Seus
discípulos.

A Façanha de Pedro

Acontece que ao verem aquele vulto misterioso, a primeira reação


dos discípulos foi a de temor e pânico. Quem estaria naquela hora da
noite, debaixo da tempestade, bem no meio do mar, e ainda
caminhando por sobre o mar?!
Eles eram todos homens experimentados. Muitos deles haviam
sido pescadores por muitos anos, e naquele mesmo lago. Conheciam
muito bem os perigos e mistérios daquelas águas, mas naquele
momento temeram como crianças. Alguém exclamou: “É um
fantasma!” (Mat. 14:26), e todos entraram em pânico, e se puseram
a gritar desesperadamente.
Os discípulos ainda estavam presos às superstições e crendices de
seu povo. Havia uma crença comum entre os judeus de que os
demónios costumavam andar à noite, procurando fazer mal às
pessoas. Os rabinos ensinavam que era muito arriscado saudar
alguém à noite, porque podia se tratar de um demónio. E ali estava
aquele grupo de homens, já desesperados devido à tempestade, e
agora muito mais por causa do vulto misterioso que se aproximava.
Jesus, porém, ao perceber o que se passava com eles, prontamente
Se identificou e pediu que se acalmassem. “Tende bom ânimo! Sou
Eu”, disse Ele. “Não temais!” Mat. 14:27. Ao que Pedro respondeu:
“Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo, por sobre as águas.” Mat.
14:28.
As Escrituras revelam que Pedro sempre foi o mais afoito dentre
todos os discípulos. Geralmente era o primeiro a falar, o primeiro a
reagir diante de qualquer situação. E foi justamente por causa desse
espírito impulsivo, precipitado, que muitos foram os erros
que cometeu. Ele desponta nos Evangelhos como aquele discípulo a
quem o Mestre mais teve que repreender, devido à sua inconstância
e atitudes muitas vezes impensadas. Abaixo de Judas, talvez foi o
discípulo que mais decepcionou a Jesus (Mat. 26:69-75). Mas, pela

83
SÓ JESUS

graça de Deus, ele soube superar suas fraquezas. Abaixo de Paulo,


talvez foi o apóstolo que mais fez por Jesus.
“Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo, por sobre as águas.”
Na verdade, Pedro não tinha dúvida de que era Cristo. Ele conhecia
muito bem aquela voz tema e doce para confundi-la com outra
qualquer. A questão é que ele ficou tão impressionado ao ver o
Mestre caminhar sobre as águas, que um desejo enorme de também
poder fazer aquilo tomou conta de seu coração. Foi por isso que suas
palavras tiveram um tom de desconfiança: “Se és Tu!” Ele não estava
querendo provar a Cristo. O que ele queria realmente era provocá-
Lo, pois também queria caminhar sobre as águas.
E Pedro recebeu a resposta que tanto esperava. “Vem!”, disse
Cristo (Mat. 14:29), embora soubesse de antemão que o apóstolo não
teria êxito na tentativa. Jesus permitiu a demonstração de coragem
que Pedro tanto ansiava por exibir, para poder lhe ensinar a lição da
insuficiência humana que ele tanto precisava aprender.
Então Pedro fez o que ninguém jamais fizera, exceto Cristo: andou
sobre as águas. Sob a ordem de Cristo, ele pisou nas águas, e estas se
lhe tomaram firmes debaixo dos pés, e ele caminhou confiantemente
ao encontro do Mestre. Mas a aventura logo terminaria. A glória de
Pedro não duraria senão uns poucos passos.
“Olhando para Jesus”, diz a Sra. White, Pedro caminhou fir-
memente (O Desejado de Todas as Nações, pág. 381) e, enquanto
seus olhos estivessem fitos no Mestre, sua vida estaria segura, e nada,
absolutamente nada, poderia fazê-lo submergir. Não demorou muito,
porém, e o orgulho e a vaidade se lhe apoderaram do coração. A
princípio, no fervor do entusiasmo, se esquecera completamente das
ondas e do vento em seu rosto, mas logo em seguida se esqueceu
também de Jesus.
Empolgou-se com a extraordinária façanha de andar sobre as
águas, e desviou os olhos de Jesus apenas por alguns instantes, mas
já foi o suficiente. O vento ainda era forte. O mar continuava agitado,
e no meio das ondas como estava, estas o envolveram e no mesmo
instante o levaram ao fundo.
Pedro era um bom nadador (João 21:8 e 9). Durante toda a sua vida
ele havia sido pescador, e naquele mesmo lago. Mas, naquele
momento, perdeu totalmente a confiança em si mesmo. “Salva-me,
Senhor!” (Mat. 14:30) foram as únicas palavras que lhe saíram dos
84
“PoR QUE DUVIDASTE?”

lábios naquele momento de desespero.


Mas Jesus estava ali, onde sempre havia estado, ao seu lado, e
prontamente o tomou pela mão e lhe disse: “Homem de pequena fé,
por que duvidaste?” Mat. 14:31. E assim que chegaram ao barco, o
vento cessou.
Pedro já não era mais o mesmo. Toda a euforia havia passado.
Estava silencioso e de cabeça baixa. Sentia-se derrotado. “Nenhuma
razão tinha de se vangloriar sobre os companheiros, pois por causa
da incredulidade e da exaltação quase perdera a vida.” — O Desejado
de Todas as Nações, pág. 382.
Muito sugestiva é a pergunta que Cristo lhe dirigiu no momento
em que o socorreu: “Por que duvidaste?” A palavra grega aqui
traduzida por “duvidar” não tem o sentido comum de desconfiar ou
suspeitar, mas significa querer ir em duas direções ao mesmo tempo,
ou ter duas opiniões ao mesmo tempo, isto é, ter a mente dividida
entre duas idéias. Em outras palavras, Pedro não duvidou de que o
vulto era Cristo. Ele também não desconfiou de que Cristo não fosse
capaz de fazê-lo andar sobre as águas. O seu erro foi pensar que após
os primeiros passos ele já estaria apto para prosseguir por conta
própria, prescindindo do poder do Mestre.
Jesus lhe dissera para que viesse ao Seu encontro por cima das
águas, e nada poderia impedi-lo de realizar essa proeza, a não ser ele
mesmo. Enquanto seus olhos estivessem unicamente em Jesus, ele
estaria seguro. Mas no exato momento em que a visão do eu empanou
a visão do Salvador, Pedro começou a afundar. No exato momento
em que o sentimento de auto-suficiência invadiu o seu coração, seus
pés vacilaram, e o pior quase aconteceu.

O Enxerto Divino

Esse episódio da vida de Pedro ilustra muito bem aquilo que se


passa com relativa freqiiência na experiência de todo crente. Vamos
até Jesus em arrependimento e fé, confiamos que Sua graça nos
perdoa e nos faz novas criaturas, e esperamos em seguida estar
completamente livres de toda e qualquer dificuldade espiritual, ou
então ter todas as facilidades necessárias para levar uma vida
vitoriosa diante das turbulências espirituais com as quais nos
defrontamos a todo instante. Mas, nos dois casos, o resultado é
85
SÓ JESUS

sempre o mesmo: fracasso, e por vezes o desânimo.


A primeira coisa que precisamos entender, porém, é que o novo
nascimento, ao contrário do que muitos pensam, não elimina nossa
natureza pecaminosa, de modo a nos tomar imunes à tentação ou à
possibilidade de cair. Quando aceitamos a Jesus como nosso
Salvador, algo sobrenatural ocorre dentro de nós; somos regenerados,
nascemos de novo, e recebemos uma nova natureza. Diz o apóstolo
Pedro que nos tomamos “co-partici- pantes da natureza divina”. II
Ped. 1:4. Ou seja, um novo princípio passa a operar dentro de nós,
mas sem que o princípio do mal seja totalmente eliminado.
Em outras palavras, o que ocorre em nós não é um transplante de
coração num sentido absoluto e total, mas uma infusão de poder
capaz de mudar por completo a tendência de nossa vida (João 1:12),
de reorientá-la, e capacitá-la para que ela passe a buscar somente as
coisas que são do alto (Col. 3:1). Passamos a amar o que antes
desprezávamos, e a desprezar o que antes amávamos. Declara a Sra.
White: “Quando estivermos revestidos da justiça de Cristo, não
teremos nenhum prazer no pecado, pois Cristo está operando em nós.
Poderemos cometer erros, mas haveremos de odiar o pecado que
causou os sofrimentos do Filho de Deus.” - Review and Herald,
18/03/1890.
Se poderemos cometer erros, é porque nossa velha natureza ainda
continua conosco. Podemos, portanto, estar efetivamente “mortos
para o pecado” (Rom. 6:11) e ser novas criaturas (II Cor. 5:17), mas
isso não significa que o pecado esteja morto dentro de nós. É por isso
que Paulo recomenda: “Não reine ... o pecado em vosso corpo mortal,
de maneira que obedeçais às suas paixões.” Rom. 6:12. Se é possível
que ele reine, é porque está presente. “Todo cristão”, diz a Sra. White,
“será assediado pelos atrativos do mundo, pelas demandas da
natureza carnal, e as tentações diretas de Satanás.” - Testimonies for
the Church, vol. 5, pág. 102.
Cada um de nós, portanto, possui duas naturezas: a carnal, com a
qual nascemos, e a espiritual, que recebemos no instante

86
Só JESUS

da conversão; e é a presença dessas duas naturezas em nós que


explica as lutas e os percalços que com freqíiência temos em nossa
vida cristã, daí as palavras de Paulo: “Andai no Espírito, e jamais
satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o
Espírito, e o Espírito contra a carne, porque são opostos entre si; para
que não façais o que porventura seja do vosso querer.” Gál. 5:16 e
17.
Vamos ilustrar. Sabemos que um pé de limão não produz outra
coisa senão limões, que são naturalmente azedos. Acontece que é
possível cortar junto ao tronco os ramos que produzem limões, e
enxertar no tronco um broto de laranja. Por fim, quando essa árvore
produzir frutos, já não serão mais limões, mas laranjas doces e
saborosas. Algo semelhante ocorre no novo nascimento. As raízes do
mal não são tiradas; a árvore ainda é a mesma, mas um novo princípio
passa a operar, princípio este que faz com que ela produza frutos
contrários à sua própria natureza. Deus toma a pessoa tal qual ela é,
e em vez de lhe dar um novo corpo, um novo coração, Ele apenas
implanta na alma um novo princípio, uma nova natureza, por meio
do poder do Espírito Santo. Em nós mesmos continuamos sendo
pecadores, mas agora estamos capacitados para produzir os frutos do
Espírito (Gál. 5:22 e 23).
O problema é que se a árvore enxertada não estiver sob constante
vigilância, ao aparecerem os brotos do velho tronco, e serem
deixados em liberdade, eles haverão de crescer e roubar toda a
vitalidade dos ramos que produzem laranjas. Esses brotos devem ser
cortados tão logo apareçam, do contrário se fortalecerão e voltarão a
reinar.
Nem sempre, portanto, poderemos evitar que esses brotos
apareçam, mas é nosso dever evitar que se desenvolvam. Essa é a
nossa luta, a luta de todo cristão. O próprio Paulo a experimentou em
toda a sua intensidade (Rom. 7:14-23), e foi por isso que ele chegou
a exclamar em profunda angústia de alma: “Desventurado homem
que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” Rom. 7:24.
Quando ele menos esperava, lá estava um pequenino broto de sua
velha natureza, um defeito, uma inclinação qualquer, querendo se
manifestar e fazer com que ele voltasse a produzir limões.
Quer queiramos quer não, cada um de nós possui duas naturezas,
e assim será até que o Senhor, em Sua segunda vinda, nos transforme

87
SÓ JESUS

definitivamente para que voltemos a ter um corpo semelhante “ao


corpo da Sua glória”. Filip. 3:21. Somente então as raízes de nossa
velha natureza serão de todo extirpadas, e o nosso coração corruptível
se revestirá da mais absoluta incorruptibilidade (I Cor. 15:53).
O importante, porém, não é que tenhamos duas naturezas opostas,
e em constante conflito. Esta é simplesmente a realidade. O que de
fato importa é qual das duas naturezas exerce o controle sobre nós. A
carne e o espírito não podem ocupar o trono da alma ao mesmo
tempo, mas um dos dois haverá de ocupá-lo. É possível que a carne
reine; a ordem divina, porém, é para que isso não ocorra jamais
(Rom. 6:12). E se Deus assim nos ordena, é porque cada um de nós
tem algo a fazer em todo este processo, que é o processo da
santificação.

A Responsabilidade Humana

Chegamos agora a um ponto bastante delicado, que tem sido


motivo de sincera preocupação para muitos cristãos ao longo dos
tempos: a parte que nos cabe desempenhar em nossa santificação. Em
nosso meio, prevalece, de forma consciente ou não, a idéia de que o
ónus da santificação repousa quase que exclusivamente sobre o
elemento humano, e muitos há que jejuam com relativa frequência,
devolvem o dízimo de tudo quanto ganham, fazem trabalho
missionário, seguem à risca o regime alimentar, são extremamente
zelosos na guarda do sábado, na esperança de que, ao assim fazer,
estão se santificando a si mesmos. Mas esse é um grande engano, em
que pese a sinceridade de muitos dos que assim procedem.
É importante ressaltar, porém, que não há nada de errado com a
prática do jejum ou da temperança cristã, com a devolução dos
dízimos, o trabalho missionário, a guarda do sábado, ou outras
práticas previstas nas Escrituras Sagradas. Tudo isso tem o seu lugar,
e será visto na vida do crente. Erra, portanto, aquele que não o faz,
só que erra mais ainda aquele que faz disso um meio para alcançar
um estado de santidade diante de Deus.

Há dois extremos, portanto, que devem ser evitados. O primeiro é


o de pensar que a santificação é alcançada pelo esforço humano em
fazer aquilo que é da vontade de Deus. “Como recebestes a Cristo

88
“POR QUE DUVIDASTE?”

Jesus”, declara o apóstolo Paulo, “assim também andai nEle.” Col.


2:6. Ou seja, tudo é pela fé, tanto a justificação quanto a santificação;
tanto o início quanto a continuidade da vida cristã (Gál. 3:3).
Diz a Sra. White: “Quando por meio de arrependimento e fé
aceitamos a Cristo como nosso Salvador, o Senhor perdoa nossos
pecados e suspende a punição prescrita para a transgressão da lei. O
pecador se encontra, então, diante de Deus como uma pessoa justa;
desfruta o favor do Céu, e, por meio do Espírito, tem comunhão com
o Pai e o Filho. Então há ainda outra obra a ser realizada, e esta é de
natureza progressiva. A alma deve ser santificada pela verdade. E isto
também é realizado pela fé. Pois é somente pela graça de Cristo, a
qual recebemos pela fé, que o caráter pode ser transformado.” -
Mensagens Escolhidas, vol. 3, pág. 191.
O segundo extremo que também deve ser evitado é o de pensar
que a santificação é um ato exclusivo de Deus, e que é alcançada sem
a participação humana. Que é um ato exclusivo de Deus, não há a
menor dúvida (I Tess. 5:23), mas isso não significa, nem de longe,
que o envolvimento humano esteja de todo excluído. Paulo declara:
“Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor.” Filip. 2:12. E a
Sra. White acrescenta: “Que homem algum apresente a idéia de que
o homem pouco ou nada tem que fazer na grande obra de vencer; pois
Deus nada faz para o homem sem a sua cooperação.” - Idem, vol. 1,
pág. 381.
Há, portanto, uma obra que nos cabe desempenhar no processo da
santificação, e uma importante obra, pois tem que ver diretamente,
não com o que fazer para que alcancemos um nível de santidade que
seja agradável aos olhos de Deus, mas, sim, com o que fazer para que
Deus possa levar adiante Sua obra de santificação em nós. Em outras
palavras, a obra é divina, mas nós é que decidimos o que queremos
para nossa vida. Deus nos dá uma nova natureza, uma natureza santa,
e está disposto a desenvolvê-la em nós, mas nós é que decidimos se
Ele poderá ou não completar a obra, ao decidir qual das duas
naturezas queremos que prevaleça em nosso coração, se a carnal ou
a espiritual.
Como já salientado, essas duas naturezas são tão opostas, que não
podem dividir uma com a outra o trono de nossa alma. Apenas uma
haverá de ocupá-lo, a que for a mais forte. A mais fraca terá de se
submeter. E o que determina qual delas será a mais forte e qual a mais
89
SÓ JESUS

fraca é a porção de alimento que cada uma recebe ao longo do dia. A


todo momento, mediante as escolhas que fazemos e as decisões que
tomamos, podemos estar alimentando uma ou outra de nossas natu-
rezas. A natureza carnal se alimenta com coisas da Terra, com o que
falamos e fazemos, com o que vemos e ouvimos. Ao passo que a
natureza espiritual se alimenta com coisas de cima: estudo da Palavra
de Deus, oração, meditação e serviço em favor de outros.
A responsabilidade, portanto, sobre qual de nossas naturezas ha-
verá de prevalecer e ter o controle de nossa vida está toda conosco.
Se descuidamos do enxerto e alimentamos a velha árvore, os frutos
da carne não demoram a aparecer. Mas se diligentemente vigiamos,
procurando eliminar todos os brotos indesejáveis tão logo eles sur-
jam, e nutrimos o novo enxerto, então os frutos do Espírito é que se
manifestam. É por isso que o apóstolo Paulo nos adverte para jamais
darmos qualquer “ocasião à carne” (Gál. 5:13). Nossas escolhas não
nos tomam, elas mesmas, melhores do que somos. Isso é obra do
Espírito Santo (Rom. 8:11). Mas uma única escolha errada, e a obra
do Espírito já fica comprometida (I Tess. 5:19 e 22).
Essa é a luta real e constante que cada um de nós tem de enfrentar.
Até que o Senhor volte, teremos de conviver com duas naturezas.
Não pode haver, portanto, um único descuido sequer. Por menor que
seja a condescendência com o pecado, nossa natureza carnal recobra
as forças, e pode finalmente vir a dominar toda a nossa vontade
{Caminho a Cristo, pág. 33).
Se isso acontecer, tudo estará perdido, pois qual das duas nature-
zas reina é uma questão de implicações eternas (Rom. 8:13). Falando
da experiência do apóstolo Paulo, a Sra. White declara: “Paulo sabia
que sua batalha contra o mal não terminaria enquanto ele tivesse vida.
Sempre sentia a necessidade de colocar estrita guarda sobre si
mesmo, para que os desejos terrestres não lograssem minar seu zelo
espiritual. Com todas as suas forças continuava a lutar contra as
inclinações naturais.” - Atos dos Apóstolos, pág. 314.
O mesmo espírito de luta deve hoje ser manifestado por todo
aquele que está sendo santificado por Deus. As vezes, poderá ser o
caso de nos sentirmos fracos, e o desespero bater à porta de nosso
coração (Rom. 7:24), mas é nesse momento que, como Paulo,
devemos elevar os olhos de nós mesmos, fixá-los em Jesus, e então
exclamar confiantes: “Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor.”

90
“POR QUE DUVIDASTE?”

Rom. 7:25.
Jesus é o segredo da vitória. Na medida em que nos mantivermos
ligados a Ele, poderemos manter subjugada a nossa natureza carnal.
Ele mesmo declarou: “Eu sou a videira, vós os ramos. Quem
permanece em Mim, e Eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim
nada podeis fazer.” João 15:5. E o significado correto dessas palavras
não é no sentido de que os pecadores não são capazes de fazer a
vontade de Deus, embora isso também seja verdade, mas que aqueles
que já foram alcançados pela graça perdoadora de Deus nada poderão
realizar, a menos que extraiam dEle a vida e a força de que
necessitam.
Jamais devemos procurar fazer qualquer coisa por nós mesmos.
Nenhuma conquista espiritual, nenhuma vitória duradoura sobre os
brotos de nossa velha natureza será possível, se não for pelo poder de
Cristo. Do princípio ao fim da vida cristã, é Cristo quem deve operar
em nós e através de nós.

Conclusão

Pedro falhou em caminhar sobre as águas, não porque o mar estava


agitado ou porque o vento era forte, mas porque deixou de olhar para
Jesus. Após os primeiros passos, sentiu-se forte e capaz para
prosseguir por conta própria, mas no exato momento em que
esperava obter sua maior conquista, ele experimentou um de seus
maiores fracassos.
Assim também será com cada um de nós. A conversão não nos
coloca fora do alcance das crises e tempestades espirituais, e nem nos
confere poder para que possamos por nós mesmos enfrentá-las e sair
vitoriosos. Mesmo tendo entregue o coração a Jesus, a tentação ainda
encontra ressonância dentro de nós, visto que ainda continuamos com
nossa natureza carnal (Tia. 1:14). O princípio do mal permanece bem
arraigado em nossa alma. E por isso que em nós mesmos
continuamos fracos e suscetíveis a derrotas.

A primeira coisa que precisamos fazer, portanto, é enfraquecer ao


máximo nossa natureza carnal, cortando por completo todas as suas
fontes de alimentação. E isso é algo que ninguém pode fazer por nós,
nem o próprio Deus, porque depende inteiramente do exercício da

91
SÓ JESUS

nossa vontade. Deus nos dá poder para isso (Filip. 2:13), mas é nosso
dever exercê-lo, abstendo-nos de tudo aquilo que possa porventura
estimular o pecado que existe em nós. Em seguida, o que precisamos
fazer é fortalecer nossa natureza espiritual, o que só é possível
mediante a prática de coisas espirituais, como a oração e o estudo da
Bíblia. É isso o que significa permanecer em Cristo, e manter os
olhos fixos unicamente nEle.
Se assim o fizermos, estaremos então criando as condições
necessárias para que o Espírito Santo prossiga em Sua obra de nos
santificar, e podemos estar plenamente seguros de que Aquele que
começou essa boa obra em nós há de “completá-la até ao dia de Cristo
Jesus”. Filip. 1:6. Diz a Sra. White: “O Espírito Santo nunca deixa
sem assistência a alma que está olhando a Cristo. ... Se o olhar se
mantiver fixo em Jesus, a obra do Espírito não cessa, até que a alma
esteja conforme a Sua imagem.” - O Desejado de Todas as Nações,
pág. 302.
Em outra citação, ela faz o seguinte apelo: “Consagrai-vos a Deus
pela manhã; fazei disto vossa primeira tarefa. ... Esta é uma questão
diária. Cada manhã consagrai-vos a Deus para esse dia. ... Assim dia
a dia podereis entregar às mãos de Deus a vossa vida, e assim ela se
moldará mais e mais segundo a vida de Cristo.... Vossa esperança
não está em vós mesmos; está em Cristo. Vossa fraqueza se acha
unida à Sua força, vossa ignorância à Sua sabedoria, vossa
fragilidade ao Seu eterno poder. Não deveis, pois, olhar para vós
mesmos, nem permitir que o pensamento demore no próprio eu, mas
olhai para Cristo. Que o pensamento demore em Seu amor, na
formosura e perfeição de Seu caráter. Cristo em Sua abnegação,
Cristo em Sua humilhação, Cristo em Sua pureza e santidade, Cristo
em Seu incomparável amor - esse é o tema para a contemplação da
alma. É amando-O, imitando-O, confiando inteiramente nEle, que
haveis de ser transformados na Sua semelhança.” - Caminho a Cristo,
págs. 70 e 71.

92
CAPÍTULO 7

“Nem Eu tão pouco te condeno”


“Então lhe disse Jesus: Nem Eu tão pouco te condeno;
vai, e não peques mais.” João 8:11.

ma das maiores preocupações daqueles que sinceramente II têm


procurado fazer a vontade de Deus é com relação às ■m suas lutas e
dificuldades espirituais, que acabam por fim se convertendo em
pecados.
Via de regra, duas reações bem distintas podem ser observadas.
Alguns há que se acomodam à situação, alegando que não
conseguem ser outra coisa senão pecadores, que vão continuar tendo
fraquezas até a volta de Jesus, e por isso nenhum esforço fazem no
sentido de, pela graça de Deus, alcançar a vitória sobre o pecado.
Outros, por sua vez, acabam se entregando à dúvida e ao desalento,
por achar que o menor pecado sequer já é suficiente para privá-los
do amor de Deus e excluí-los do Céu.
Ambas as reações, porém, estão completamente equivocadas.
Embora, como vimos no capítulo anterior, o princípio do mal per-
maneça atuando em nós mesmos depois de termos entregue o co-
ração a Jesus, isso não significa de modo algum que devemos cruzar
os braços e permitir que o pecado, em qualquer de suas formas, nos
escravize e nos impeça de crescer em santidade. Por outro lado, a
necessidade que temos de crescer em santidade também não
significa que qualquer pecado, que porventura cometamos, já seja
suficiente para trazer sobre nós toda a ira e toda a indignação de
Deus. É o que demonstra, por exemplo, a mesma experiência de
Maria Madalena a que nos referimos no capítulo 5.
Ocorre que para podermos compreender o que aquele episódio do
templo de fato significou em sua vida, precisamos conhecer um
pouco melhor alguns capítulos de sua vida passada. E é aqui que
reside o problema, porque o relato bíblico não é suficientemente
claro ao descrever tais capítulos. Tampouco estão as informações
organizadas ou agrupadas num único lugar. Elas se acham
espalhadas nos quatro evangelhos e, na maioria das vezes, fora de
ordem cronológica e sem qualquer referência que
93
SÓ JESUS

nos deixe seguros com relação à identidade da personagem. A Sra.


White nos ajuda um pouco nesse aspecto, pois, além de fornecer
alguns detalhes adicionais, também endossa a opinião geralmente
aceita de que a pecadora que ungiu os pés de Jesus na casa de Simão
(Luc. 7:36-50) é Maria Madalena (Signs of the Times, 09/10/1879), e
que esta é a mesma Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro (O
Desejado de Todas as Nações, págs. 566- 568), o que torna um pouco
mais fácil a reconstituição de sua história. Nem sempre, porém,
poderemos evitar um discreto exercício da imaginação.

De Betânia a Magdala

Maria morava em Betânia, um pequeno povoado distante de


Jerusalém cerca de dois quilómetros e meio, na estrada que ia para
Jericó, e talvez fosse a irmã mais nova de Marta e Lázaro (João 11:1).
Ao contrário de Marta, que era expansiva, dinâmica e muito prestativa
(Luc. 10:40; João 12:2), Maria era de espírito dócil e meigo, e gostava
de ambientes tranquilos e do fraterno convívio das pessoas. Gostava
de ouvir, de aprender, e era sincera em seu relacionamento para com
todos (Luc. 10:39; João 12:3). Confiava e amava com muita
facilidade, mas nem sempre seus sentimentos eram bem
compreendidos.
Em Betânia morava também um fariseu cujo nome era Simão (Luc.
7:36 e 40), e que mais tarde seria acometido de lepra (Mat. 26:6). De
acordo com a Sra. White, Simão era tio de Lázaro (Signs of the Times,
09/05/1900), o que significa que também era tio de Maria, e por
alguma razão veio a se sentir estranhamente atraído pela própria
sobrinha. Sendo um fariseu, ele sabia perfeitamente que estava se
encaminhando para o terreno encantado do pecado, mas não envidou
nenhum esforço no sentido de dar meia-volta e evitar que o mal
amadurecesse em seu coração. O resultado foi o mais desastroso
possível: um hediondo caso de incesto, e uma vida completamente
arruinada pelo pecado.
A Sra. White declara que Simão induziu Maria a pecar (O De-
sejado de Todas as Nações, pág. 567), certamente se prevalecendo
tanto da ingenuidade da sobrinha quanto de sua pretensa autoridade
religiosa. Talvez ele tenha se apresentado a ela como um profundo
conhecedor da lei; talvez tenha racionalizado seu erro, usando todo o

94
“NEM EU TÃO POUCO TE CONDENO”

tipo de pretexto a fim de justificar sua conduta imoral e convencê-la


a ceder às suas paixões infames. Mas isso nào impediu que Maria
passasse a experimentar um enorme senso de culpa e miséria, a ponto
de nada mais fazer sentido para ela.
Sentia-se humilhada, aviltada, e talvez já nem conseguisse mais
conviver em paz com aqueles que a rodeavam e a quem tanto amava.
A rejeição de si mesma, aliada a uma provável rejeição da parte do
próprio Simão (Luc. 7:39), fez com que ela começasse a imaginar que
todos a estavam igualmente rejeitando e desprezando. Se por acaso
alguém insistisse em tratá-la bem, era porque não fazia a menor idéia
de sua indignidade. Se soubesse, não há dúvida de que também a
desprezaria - assim ela pensava.
Pode ter sido por isso que ela resolveu se mudar de Betânia. Juntou
suas coisas, e foi tentar uma nova vida bem longe dali. Em sua fuga,
acabou chegando a Magdala, uma pequena vila que ficava na praia
ocidental do Mar da Galiléia, não muito distante de Cafarnaum. E foi
a partir de então que ela ficou conhecida como Maria Madalena, ou
seja, “de Magdala”. O problema é que, conquanto conseguisse fugir
do suposto olhar de reprovação dos moradores de Betânia, ela não
teve como se livrar da lembrança do pecado, que a todo instante
martelava impiedosamente sua consciência.
Dominada por sentimentos de culpa, ela cede mais uma vez ao
pecado, só que o faz agora de forma tão intensa e profunda que era
como se o próprio inferno tivesse se apoderado de sua alma.
Oportunidades para isso não faltavam em Magdala. Ali havia, nessa
época, um acampamento do exército romano, e não é nada difícil para
nós imaginarmos Maria totalmente entregue ao vício e à prostituição,
satisfazendo aos mais baixos desejos daquela hoste de soldados
pagãos e pervertidos.
E foi nessa condição que Jesus a encontrou, numa de Suas pri-
meiras viagens à Galiléia. Maria ainda não O conhecia. Somente mais
tarde, após seu regresso para Betânia, é que Jesus viria a ser amigo
íntimo e hóspede frequente da família (Luc. 10:38-42).
Não sabemos exatamente quais as circunstâncias que marcaram
esse primeiro encontro, como Maria se aproximou de Jesus e como
Ele reagiu diante dela. É provável que ao visitar Magda- la e expor
Sua mensagem de perdão, Jesus tenha alcançado o coração enfermo
de Maria, e tenha despertado nela o desejo de cura. Ela sabia que
95
SÓ JESUS

estava doente, debilitada e entorpecida pelo efeito inebriante do


pecado. Não tinha mais qualquer esperança de recuperação. Sua auto-
estima havia sido reduzida ao mínimo pelo sentimento de culpa, o
desprezo da sociedade, e a humilhação a que era submetida por
aqueles que a tratavam como um mero objeto de prazer.
As palavras de Jesus, porém, fizeram vibrar até mesmo as cordas
mais dormentes de sua alma, e, sem a menor hesitação, ela deve ter
se prostrado aos pés do Mestre, na certeza de que seria por Ele curada.
Depositou nEle toda a fé que pôde reunir em seu frágil coração, e
imediatamente começou a sentir os efeitos daquele amor
extraordinário, um amor que suprime a dor da culpa, que neutraliza o
efeito depressivo da humilhação, que remove do coração o mal que o
infecta, e que restaura a paz e a saúde de espírito.
Mas nem tudo foi tão simples como pode parecer. A situação de
Maria era das mais desesperadoras, e Satanás não estava nem um
pouco disposto a permitir sua pronta recuperação. Jesus, porém, fez
valer Sua autoridade, e finalmente libertou-a do poder do mal. “Sete
vezes ouvira ela Sua repreensão aos demónios que lhe dominavam o
coração e a mente.” - O Desejado de Todas as Nações, pág. 568.
Maria, então, decidiu que era hora de voltar. Não deveria, de forma
alguma, continuar em Magdala. A lembrança de seus atos passados,
a pressão do ambiente, a incredulidade daqueles que a haviam visto
no fundo do poço, tudo iria dificultar sua permanência ali. E foi assim
que ela, juntamente com um grupo de outras mulheres também
“curadas de espíritos malignos e de enfermidades”, decidiu seguir por
algum tempo a Jesus e Seus discípulos, e assisti-los no trabalho de
evangelização (Luc. 8:1-3).

O Incidente de Jerusalém

O tempo passou. De volta a Betânia, Maria procurou reconstruir


sua vida e se reintegrar ao convívio dos parentes e amigos. O
processo, porém, não deve ter sido nada fácil. O próprio Si- mão, que
fora o principal responsável pela sua desgraça, continuava nutrindo
sentimentos de desconfiança e desprezo para com ela (Luc. 7:39), e
sabe-se lá quantas pessoas haviam sido por ele influenciadas a que
também a desprezassem.
Foi nesse período que Jesus Se tomou amigo íntimo da família. Seu

96
“NEM EU TÃO POUCO TE CONDENO”

primeiro contato com Maria, Marta e Lázaro em Betânia parece que


foi numa viagem cujo destino era Jerusalém, logo após a grande
campanha evangelística levada a efeito pelos setenta discípulos (Luc.
10:38). Diz a Sra. White que o coração de Jesus “estava unido por
forte vínculo de afeição à família de Betânia. ... No lar de Lázaro
encontrara Jesus muitas vezes repouso. ... Ali recebia sincero
acolhimento, pura e santa amizade. Ali podia falar com simplicidade
e liberdade perfeitas, sabendo que Suas palavras seriam
compreendidas e entesouradas”. - O Desejado de Todas as Nações,
pág. 524.
Certa ocasião, porém, quando já estava na fase final de Seu
ministério, Jesus passou por uma difícil experiência em Jerusalém, e
Maria era o centro de toda a questão. Ao estar no pátio do templo
ensinando uma pequena multidão desejosa de ouvir a Sua palavra, um
grupo de escribas e fariseus trouxe à Sua presença uma mulher que
havia sido flagrada em adultério. “Mestre”, disseram eles, “esta
mulher foi apanhada em flagrande adultério. E na lei nos mandou
Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; Tu, pois, que dizes?”
João 8:4 e 5. Para tristeza de Jesus, aquela mulher não era outra senão
Maria, que, por alguma razão, acabara novamente sendo seduzida
pelo mesmo pecado que algum tempo atrás havia manchado sua vida
e sua reputação.
Ocorre que aqueles líderes judaicos não estavam absolutamente
nada preocupados com o devido cumprimento da lei. Eles haviam
armado toda aquela situação com a única intenção de pegar Jesus em
alguma falta, e assim ter o motivo que tanto buscavam para que
pudessem prendê-Lo, não importava quem estivessem usando como
isca. E Maria foi a escolhida provavelmente por causa de seus
antecedentes nada recomendáveis.
A reação de Jesus, porém, foi a mais inesperada possível. Em vez
de responder à pergunta que Lhe havia sido feita, Ele passou a colocar
aqueles escribas e fariseus frente a frente com a iniqiii- dade que havia
neles mesmos, destacando o fato de que eles eram

97
“NEM EU TÃO POUCO TE CONDENO”

tào culpados quanto Maria, e que, portanto, não tinham nenhum


direito de exigir a condenação de quem quer que fosse. O resultado
foi que todos, sem exceção, “acusados pela própria consciência”
(João 8:9), deram meia-volta e desapareceram por entre a multidão.
Então Jesus Se dirigiu a Maria, e perguntou: “Mulher, onde estão
aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?” João 8:10. Embora
soubesse perfeitamente o que havia acontecido, Jesus fez essa
pergunta a Maria a fim de chamar sua atenção para o grande favor
que estava por lhe outorgar. Talvez a própria Maria não tivesse
percebido a retirada silenciosa daqueles que a acusavam. Talvez ainda
cobrisse o rosto com as mãos, num desejo instintivo de ocultar a
própria vergonha, e quem sabe desviar os olhos da triste sorte que a
aguardava.
Mas ao perceber que fora deixada sozinha na presença do Mestre,
e sem entender muito bem o que estava acontecendo, ela respondeu:
“Ninguém, Senhor.” João 8:11. Uma breve resposta, porém mais que
suficiente para evidenciar toda a convicção de pecado e
arrependimento que havia em seu coração naquele instante. Então
Jesus acrescentou: “Nem Eu tão pouco te condeno; vai, e não peques
mais” (João 8:11), e a vida futura de Maria Madalena revelou que
Jesus acertou plenamente em lhe dar esse tratamento. No relato
bíblico, não há qualquer indício de que ela tenha cedido mais uma vez
ao pecado do adultério. Pelo contrário, o que sabemos a seu respeito
é que ela acabou se tomando uma das mais destacadas e atuantes
seguidoras de Jesus (João 12:1-8; 19:25; 20:1-18), tanto que, segundo
o próprio Jesus, sua memória jamais seria esquecida ( Mat. 26:13).
Talvez convenha destacar, no entanto, que as palavras “nem Eu tão
pouco te condeno” não significam que Jesus tivesse como que
fechado os olhos ao pecado de Maria. Embora Ele tenha dito que não
a condenava, Sua atitude na verdade foi de perdão, e não de
condescendência. Ele a perdoou porque “sabia as circunstâncias que
lhe tinham moldado a vida” (<9 Desejado de Todas as Nações, pág.
568), e porque sabia que aquele pecado, conquanto grave, fora antes
fruto de uma fraqueza de sua parte, e não de uma atitude intencional
de praticá-lo. Ele sabia que, no íntimo, Maria ainda O amava, e
desejava servi-Lo (Luc. 7:47). Se pudesse voltar atrás, ela certamente
tudo faria para evitar que aquele ato se concretizasse.

98
só JESUS

Dois Tipos de Pecados

A forma como Jesus tratou Maria Madalena nesse episódio do


templo, consiste numa ilustração bastante apropriada de como Deus
encara as quedas e os fracassos espirituais de todo aquele que O ama
e que tem procurado honrá-Lo a cada momento da vida. Infelizmente,
é grande o número daqueles que têm sido para consigo mesmos mais
rígidos que o próprio Deus no que diz respeito à sua santificação,
impondo padrões e valores que Deus nunca impôs e nunca quis que
fossem impostos, mas quando se defrontam com a realidade de que
ainda são pecadores, o resultado é o medo e o sentimento de culpa. A
vida cristã acaba se transformando numa verdadeira tortura,
totalmente destituída da alegria e da segurança que Cristo deseja
comunicar.
Não faz muito, fui procurado por uma jovem que se debatia entre
o remorso e o medo por causa de um pecado que havia cometido.
Embora já houvesse passado três anos e ninguém na igreja soubesse,
o senso de culpa não a deixava em paz, e ela não sabia mais o que
fazer. Já havia orado a Deus e pedido perdão, mas achava que só seria
de fato perdoada se confessasse publicamente sua falta, fosse
submetida à disciplina eclesiástica, e finalmente rebatizada. Se assim
o fizesse, porém, estaria expondo seus pais, que eram bons cristãos, a
uma situação por demais constrangedora, e ela não queria de forma
alguma sub- metê-los a isso.
E não é difícil entender por que isso acontece. Por uma ou outra
razão, temos estado mais preocupados em salientar a frase “vai, e não
peques mais” do que a frase “nem Eu tão pouco te condeno”. Ou seja,
parece que nos preocupamos mais com o fruto da salvação do que
com a salvação em si, e, ao assim fazer, damos a impressão de que o
perdão de Deus está como que condicionado a uma vida de obediência
da parte do crente. Isso equivaleria a dizer que a salvação não pode
ser experimentada senão depois de alcançarmos a vitória sobre o
pecado ao longo de nossa jornada cristã, e também que um único
pecado já bas
ta para afastar de nós o perdão e fazer com que voltemos à estaca zero
diante de Deus. E essa idéia é bem mais comum do que podemos
imaginar.
Uma pesquisa realizada pouco tempo atrás com cerca de doze mil

99
“NEM EU TÃO POUCO TE CONDENO”

jovens adventistas revelou que 81% deles creêm que “devemos viver
conforme as normas estabelecidas por Deus para ser salvos”; somente
28% concordaram que não há nada que possamos fazer para a nossa
salvação. Os 72% restantes indicaram que, para ser aceitos por Deus,
temos que viver sinceramente uma vida de obediência, e 44% crêem
que “a principal ênfase do evangelho reside nas normas divinas para
uma vida correta”. A conclusão é óbvia: nossos jovens estão confusos
acerca do evangelho.
Precisamos enfatizar um pouco mais o significado da vida e da
morte de Cristo para nós (Rom. 5:10 e 11), mas também é importante
que saibamos que existem dois diferentes tipos de pecados passíveis
de ser cometidos por aqueles que já foram alcançados pela graça
perdoadora de Deus. O primeiro e o pior deles é o pecado da rebelião,
o pecado deliberado, o pecado consciente e voluntário, fruto de uma
decisão individual de praticá-lo, de contrariar a vontade de Deus, de
fazer a vontade da carne, de seguir o curso das próprias inclinações,
quando isso poderia perfeitamente ser evitado.
E esse é o pior tipo de pecado porque significa a rejeição sumária
da graça divina, o rompimento com Deus, e a preferência por um
estilo de vida totalmente contrário à Sua vontade. Nesse caso, Deus
nada pode fazer. Paulo declara: “Porque, se vivermos
deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno
conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados.” Heb.
10:26. É uma ilusão, portanto, pensar que Deus há de salvar mesmo
aqueles que rejeitam Sua graça, e que o fazem deliberadamente. Se
alguém escolhe rejeitá-Lo, não há nada que Ele possa fazer, senão
lamentar e esperar que se arrependa (Luc. 15:11-20).
Importa salientar, porém, que Paulo em Hebreus não está falando
necessariamente da apostasia aberta e declarada, embora, é claro, essa
idéia não esteja excluída. A ênfase do apóstolo é que o pecado
deliberado, voluntário, mesmo quando secreto, já significa uma
rejeição do sangue de Cristo, uma afronta a Deus,

100
SÓ JESUS

um desprezo para com o Espírito Santo. Para esse pecado, já não resta
mais sacrifício.
O segundo tipo de pecado passível de ser praticado por alguém que
já aceitou a Jesus como Salvador pessoal é o que pode ser chamado
de pecado acidental. Sabemos que nem todos os pecados são
cometidos de forma deliberada ou intencional. Também existem
aqueles que são acidentais. Gostaria, porém, de chamar a atenção para
o fato de que os pecados acidentais não são necessariamente os
pecados inconscientes, ou os pecados da ignorância, embora eles
também pertençam a esta categoria.
Isso significa que há ocasiões na vida de um verdadeiro filho de
Deus em que ele pode vir a cometer certos pecados, estar inclusive
consciente desses pecados, mas sem que eles sejam fruto de uma
rebelião contra Deus, de uma rejeição voluntária e insolente da graça
e do poder de Deus. Nesse caso, tais pecados são cobertos pelo sangue
perdoador de Cristo.
O apóstolo João declara: “Todo aquele que é nascido de Deus não
vive na prática de pecado.” I João 3:9. Embora algumas versões
digam que “todo aquele que é nascido de Deus não comete pecado”,
a melhor tradução é mesmo aquela que diz: “não vive na prática do
pecado”, ou então “não peca habitualmente”, por expressar de modo
mais correto o significado do tempo verbal empregado no texto
original. Isso significa que todo aquele que realmente passou pela
experiência do novo nascimento, que teve o seu coração renovado
pelo poder do Espírito Santo, não vai mais viver “na prática do
pecado”. I João 1:6. Pode ser que venha a pecar, mas o pecado jamais
será uma escolha ou um hábito em sua vida; será apenas um acidente,
um acidente inoportuno, indesejável e repulsivo a ele mesmo (I João
1:8). Declara a Sra. White: “Quando estivermos revestidos da justiça
de Cristo, não teremos nenhum prazer no pecado, pois Cristo estará
operando em nós. Poderemos cometer erros, mas haveremos de odiar
o pecado que causou os sofrimentos do Filho de Deus.” - Review and
Herald, 18/03/1890.

Jesus, Nosso Advogado

Ao falar que o verdadeiro cristão pode eventualmente acabar


cometendo algum pecado acidental ao longo de sua vida, não

1OO
“NEM EU TÃO POUCO TE CONDENO"

pretendo jamais dar a impressão de que não haja poder em Jesus para
resistir a toda e qualquer tentação que o inimigo colocar diante de nós
(I Cor. 10:13; Heb. 2:17 e 18). Isso seria semelhante a culpá-Lo por
nossos deslizes e fracassos espirituais, idéia essa completamente
rejeitada pelo apóstolo Paulo (Gál. 2:17). Também não tenho a
mínima intenção de insinuar que pequenos pecados ou pecados
acidentais não sejam ofensivos a Deus e possam passar
despercebidos. Diz a Sra. White: “Todo o pecado, desde o menor até
o maior, deve ser vencido pelo poder do Espírito Santo.” - Review and
Herald, 19/09/1899.
E diz mais: “Só com risco de infinita perda é que podemos
condescender com o pecado, por pequenino que seja. O que nós não
vencermos, vencer-nos-á a nós, operando a nossa destruição.” -
Caminho a Cristo, págs. 32 e 33.
A questão toda, porém, tem que ver com o modo de nossa sal-
vação. Da mesma forma como não é a obediência que nos salva, é
importante que saibamos que também não são os pecados, por assim
dizer, que nos condenam. Se os pecados condenassem, então ninguém
teria qualquer esperança de salvação, porque “todos pecaram”. Rom.
3:23. Mas, uma vez que a salvação se dá unicamente pela graça de
nosso Senhor Jesus Cristo, isso significa que aqueles que forem
condenados o serão, em última análise, não porque pecaram, senão
porque rejeitaram o oferecimento dessa graça salvadora (João 3:19;
16:9).
É por isso que entre os remidos lá no Céu vão estar pessoas que
aqui na Terra cometeram os piores tipos de pecados que nossa mente
é capaz de imaginar. O livro de Hebreus, ao nos fornecer a lista dos
grandes homens de Deus do passado, conhecidos como “heróis da fé”
(Heb. 11), não menciona ninguém que tenha sido santo no sentido
absoluto do termo, ou que a partir de um determinado momento da
vida nunca mais tenha cometido qualquer pecado. Bem pelo
contrário, todos os nomes ali mencionados são de pecadores, sendo
que alguns deles cometeram muito mais pecados, e pecados muito
mais graves, do que a maioria de nós hoje em dia. Não obstante, foram
salvos, porque souberam confiar no amor perdoador de Deus.
Algo semelhante aconteceu com o próprio apóstolo Paulo. Por
mais que se esforçasse, às vezes ele acabava sendo vítima de alguma
de suas fraquezas. Ele não queria pecar, mas, quando

1O1
SÓ JESUS

menos esperava, sua natureza pecaminosa falava mais forte (Rom.


7:20 e 21), e o resultado era uma profunda crise espiritual (Rom.
7:24). Nesse momento, porém, ele se lembrava de Jesus Cristo, e
reconhecia que o mais importante era continuar confiando no Seu
sacrifício salvador (Rom. 7:25), pois enquanto assim o fizesse estaria
seguro; nenhuma condenação repousaria sobre ele (Rom. 8:1).
O mesmo pode se dar com cada um de nós. Se realmente aceitamos
a Jesus como nosso Salvador pessoal, desejaremos obedecer-lhe em
cada momento da vida, e o menor pecado já será para nós uma
experiência por demais deprimente. Poderemos pecar, mas não
porque desejamos pecar. Se há sinceridade em nosso coração, o
pecado jamais será uma escolha, uma preferência, e muito menos um
hábito em nossa vida; será apenas um acidente, um acidente que nos
leva a sentir repugnância de nós mesmos, e uma tristeza enorme por
havermos ofendido ao nosso Deus de amor. Mas a lembrança da graça
de Jesus deve, ao mesmo tempo, ser para nós um consolo e a certeza
de que seremos perdoados. Foi exatamente isso o que o apóstolo João
quis dizer, ao declarar: “Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para
que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto
ao Pai, Jesus Cristo, o Justo.” I João 2:1.
E absolutamente correta, portanto, a nossa preocupação com a
frase “vai, e não peques mais”. Deus nos chama a todos para uma vida
de obediência e santidade, e tem poder de sobra à nossa disposição
para que alcancemos esse ideal, mas Ele conhece nossas lutas, nossas
limitações e anseios, e saberá reconhecer cada um dos pecados
acidentais que tivermos em nossa experiência cristã, por isso aceitará
de muito bom grado a intercessão de Cristo em nosso favor.
“Há os que já experimentaram o amor perdoador de Cristo, e que
desejam realmente ser filhos de Deus, contudo reconhecem que seu
caráter é imperfeito, sua vida faltosa, e chegam ao ponto de duvidar
se seu coração foi renovado pelo Espírito Santo. A esses eu desejaria
dizer: Não recueis, em desespero. Muitas vezes, teremos de prostrar-
nos e chorar aos pés de Jesus, por causa de nossas faltas e erros; mas
não nos devemos desanimar. Mesmo quando somos vencidos pelo
inimigo, não somos repe

1 02
“NEM EU TÃO POUCO TE CONDENO”

lidos, nem abandonados ou rejeitados por Deus. Não; Cristo está à


destra de Deus, fazendo intercessão por nós.” - Caminho a Cristo,
pág. 64.
Que palavras extraordinárias de conforto e alento! E importante e
necessário vencer o pecado, porém mais importante ainda é a certeza
de que, mesmo se o inimigo tiver uma vitória ocasional em nossa
vida, temos “Advogado junto ao Pai”, fazendo intercessão por nós
com os méritos de Seu próprio sangue, e esse Advogado jamais
perdeu uma única causa. Podemos confiar nEle (S.D.A. Bible
Commentary, vol. 7, pág. 948).

Conclusão

Alguém poderia, no entanto, dizer que a igreja nem sempre terá


condições de saber se o pecado de alguém é voluntário ou acidental,
e isso é plenamente verdade, porque poderá ser que um membro
apenas pareça sincero, quando na realidade está vivendo
deliberadamente em pecado. Poderemos nos enganar portanto, mas
temos que nos lembrar de uma vez por todas que não é atribuição de
nenhum de nós julgar o coração de quem quer que seja. A única
pessoa no mundo hoje autorizada por Deus para fazê-lo é o Espírito
Santo (João 16:8).
A igreja deve julgar unicamente as implicações doutrinárias,
morais e sociais do pecado. O coração, porém, é jurisdição exclusiva
de Deus. E que ninguém se engane: Seu julgamento é preciso e
infalível. Ele jamais haverá de confundir um pecado voluntário com
um pecado acidental. Deus conhece perfeitamente os segredos de
cada coração. “Cada ato”, diz a Sra. White, “é julgado pelos motivos
que o sugeriram.” - Parábolas de Jesus, pág. 316.
Por outro lado, todos aqueles que têm procurado levar a sério sua
vida cristã podem estar certos de que Deus também jamais haverá de
confundir um pecado acidental com um pecado voluntário. Embora a
salvação não seja algo que ocorra uma vez para sempre em nossa vida,
tenhamos a certeza de que é necessário muito mais que um simples
pecado acidental para nos arrancar dos braços fortes de Deus. “O que
vem a Mim”, disse Jesus, “de modo nenhum o lançarei fora.” João
6:37.

103
SÓ JESUS

As bênçãos e alegrias da salvação em Cristo são reais e podem ser


desfrutadas em sua plenitude mesmo agora. É só entendermos que
arrependimento é muito mais que um ato, um ato que sucede algum
pecado. Arrependimento é uma atitude, e enquanto mantivermos uma
atitude de arrependimento e fé, estejamos seguros de que Deus
manterá para conosco uma atitude de perdão, independentemente dos
atos isolados ou dos acidentes de percurso que porventura tivermos
em nossa vida cristã. Numa bela citação, a Sra. White declara: “Se
alguém que diariamente comunga com Deus se desvia do caminho,
se deixa de olhar firmemente para Jesus por um momento, não é
porque peque deliberadamente; pois quando percebe seu erro, volta
de novo, apressa-se a olhar para Jesus, e o fato de ter caído não o faz
menos querido ao coração de Deus.” - Review and Herald,
12/05/1896.
O segredo, portanto, como diz o apóstolo Paulo, é permanecer “em
Cristo”. Rom. 8:1. E permanecer em Cristo é muito mais do que uma
experiência teórica, abstrata ou puramente sentimental. E uma
experiência de vida, na qual reconhecemos nossa contínua
dependência dEle, de Sua graça e de Sua justiça, e haurimos
unicamente dEle, pelo exercício da comunhão, o poder de que
necessitamos para resistir às tentações que a todo momento nos
assediam. Se assim o fizermos, seremos considerados justos e
perfeitos por Deus, pois perfeição de caráter está baseada naquilo que
Cristo representa para nós. “NEle”, diz a Sra. White, “estais
aperfeiçoados.” - Fé e Obras, pág. 97.
Não há dúvida de que o resultado de uma comunhão assim será o
crescimento espiritual e uma vida cada vez mais semelhante à do
próprio Cristo. Até à glorificação, porém, estaremos sujeitos a quedas
e retrocessos em nossa vida cristã. Pequenos brotos de nossa velha
natureza poderão ocasionalmente, e sem que queiramos, aparecer e
nos levar a produzir frutos contrários à vontade de Deus. Se isso
acontecer, jamais devemos ceder ao desânimo, pois Cristo é nosso
Advogado. “Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo
para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.” I João
1:9.
Satanás bem que tentará explorar essas falhas e nos acusar diante
do trono de Deus. Essa é sua obra. Mas Cristo estará ções de Satanás,
não justificando os nossos pecados, mas dizendo simplesmente: “Meu

104
“NEM EU TÃO POUCO TE CONDENO”

sangue, Pai, Meu sangue!” - Primeiros Escritos, pág. 38.


E nada, absolutamente nada, será grave o bastante para nos
incriminar.
“Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem
os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou
antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também
intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo?” Rom. 8:33-
35.

105
CAPÍTULO 8

“Estarás comigo no paraíso"


“Jesus lhe disse: Em verdade te digo hoje, estarás comigo
no paraíso.” Luc.23:43, The Holy Bible, tradução
de George M. Lansa, 1940.

C omo Igreja, estamos profundamente identificados com a


doutrina da segunda vinda de Cristo. Embora tenhamos ou- ■■
tras doutrinas que possuem, por assim dizer, um caráter mais
distintivo, como a do sábado, da imortalidade condicional e do
santuário celestial, a doutrina da volta de Jesus é justamente aquela
que deu origem ao movimento adventista, e por isso sempre ocupou
lugar de destaque em nossa pregação e em nosso coração.
Com o passar do tempo, porém, muitos de nossos membros parece
que perderam um pouco o seu entusiasmo com relação a essa
doutrina. A aparente demora de Jesus em cumprir a promessa de Sua
volta parece ter feito com que alguns desistam de esperá-Lo, ou pelo
menos que alimentem alguma dúvida em seu coração, como um
irmão que me procurou pouco tempo atrás, e me perguntou se eu
ainda acreditava que Jesus iria de fato voltar. Adventista por mais de
quarenta anos, ele estava confuso, e já não sabia mais se continuava
aguardando a segunda vinda de Cristo, ou se desistia de uma vez.
Outro problema também bastante comum é que muitos irmãos não
compreendem devidamente a relação que há entre essa doutrina e o
plano da salvação como um todo, e o resultado é que deixam de
compreender importantes aspectos da obra salvífica de Deus em
nosso favor.
O diálogo de Cristo com um daqueles criminosos crucificados ao
Seu lado está intimamente relacionado com a doutrina da volta de
Jesus, e também nos ajuda a compreender um pouco melhor o
objetivo supremo de Deus ao enviar Seu Filho a este mundo.

Três Cruzes

Era uma sexta-feira de manhã. Jerusalém vivia o episódio mais


triste de toda a sua história. Do lado de fora da cidade,

106
“ESTAFAS COMIGO NO PARAÍSO”

numa pequena colina chamada Calvário, e diante de uma verdadeira


multidão possuída de uma fúria selvagem e fanática, três cruzes e
nelas três homens, sofrendo toda a humilhação e toda a dor que esse
tipo de morte era capaz de proporcionar. E era justamente por causa
de seus efeitos sobre o corpo e a reputação do indivíduo que a
crucificação representava a mais dolorosa, a mais cruel e humilhante
forma de execução que havia.
As origens da crucificação são desconhecidas, mas ela acabou
sendo adotada por praticamente todos os povos antigos, sobretudo
pelos romanos, que costumavam empregá-la para executar escravos
rebeldes, prisioneiros de guerra e os piores tipos de criminosos.
Embora não existam muitas informações históricas sobre o método
da crucificação em si - os escritores parecem ter evitado o assunto - o
que sabemos já é suficiente para despertar em nós a mais completa
repulsa diante de castigo tão bárbaro, pois muito mais que uma forma
de execução, a morte por cruz era uma forma de tortura. Depois de
pronunciada a sentença, o primeiro passo era submeter o condenado
a um açoite tão violento, que alguns não resistiam e acabavam
morrendo ali mesmo, amarrados ao poste do suplício, enquanto que
suas carnes eram dilaceradas pelos impiedosos golpes que recebiam.
Na maioria dos casos, porém, esse era apenas o início do sofrimento.
O passo seguinte era colocar a pesada cruz de madeira sobre os
ombros já feridos e ensanguentados do condenado, e fazer com que
ele a carregasse até o local de sua execução, que sempre ficava fora
da cidade. Ao ali chegar, ele era inteiramente despido e deitado sobre
a cruz para que suas mãos e pés pudessem ser pregados.
A descoberta recente dos ossos de um homem crucificado no
mesmo período de Jesus levanta a possibilidade de que as pernas
talvez fossem juntadas e torcidas, e depois fixadas à cruz por meio de
um único prego, que atravessava os dois calcanhares. Sabe-se
também que os homens eram crucificados com as costas voltadas para
a cruz, olhando para os espectadores, enquanto que as mulheres o
eram na posição inversa, com o rosto voltado para a cruz.
A cruz era então levantada e deixada cair num buraco no solo, e o
balanço do corpo fazia com que as carnes pregadas se rasgassem. Para
que o corpo não caísse, porém, um pequeno pedaço de madeira fixado
no meio da cruz servia de assento para a vítima, que ali era deixada
para morrer de fome, dor e exaustão. Esse método tornava a morte

107
Só JESUS

bastante prolongada, raramente ocorrendo antes de 36 horas. Há


casos de indivíduos que levaram até oito dias para morrer.
A dor logicamente era muito intensa, visto que o corpo inteiro
ficava sujeito a tensões, enquanto que as mãos e os pés, que são
massas de nervos, perdiam pouco sangue. Depois de algum tempo, as
artérias da cabeça e do estômago ficavam regurgitadas de sangue,
causando uma dor de cabeça lancinante, e finalmente a febre
traumática e o tétano se manifestavam. E na maior parte do tempo, o
indivíduo permanecia consciente, sentindo minuto a minuto toda a
intensidade da dor e a proximidade da morte, e não havia coisa
alguma que pudesse fazer. De dia, o sol forte queimava suas carnes;
as moscas o incomodavam, sem que tivesse como tocá-las. A noite,
o frio e o vento cortante tornavam sua agonia insuportável.
Quando, por alguma razão, se desejava abreviar a morte e assim
diminuir os sofrimentos da vítima, suas pernas eram quebradas a
golpes de martelo ou pedaço de pau, e o golpe de misericórdia era
dado com uma espada ou lança, geralmente num dos lados do peito.
E ao morrerem, os crucificados muitas vezes não tinham sequer
direito a uma sepultura; normalmente seus corpos eram jogados nas
valas onde se amontoava o lixo da cidade, e ali eram devorados por
abutres e animais carnívoros, o que aumentava ainda mais a vergonha
do castigo.
E ali estavam aqueles três homens. Haviam acabado de ser
crucificados, e nada mais podiam fazer, nem mesmo apressar a
própria morte, e assim diminuir o sofrimento. Até aqui, nada de
anormal, considerando-se o fato de que mortes por crucificação eram
bastante comuns na Palestina. Diz a história que somente um general
romano por nome Varo crucificou, no ano 4 a.C., cerca de dois mil
judeus acusados de sedição.
O episódio, porém, adquire um significado todo particular quando
verificamos que, nas duas cruzes laterais, estavam dois criminosos
(Luc. 23:33), que parece que eram membros de um
grupo terrorista interessado em desestabilizar o governo romano na
Judéia (O Desejado de Todas as Nações, pág. 733), e no centro estava
Jesus, ocupando a cruz daquele que talvez fosse justamente o líder
dos outros dois: Barrabás.
Eram cerca de nove horas da manhã quando foram crucificados
(Mar. 15:25). O dia e também o sofrimento de cada um deles ainda
108
“ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO”

estavam, por assim dizer, apenas começando. Não bastasse a terrível


aflição que ainda os aguardava, também teriam que suportar,
especialmente Jesus, todo o escárnio e a provocação da multidão ali
reunida.
E eles não perderam tempo. Mal os soldados haviam levantado a
cruz, e começaram feito cães enfurecidos a descarregar sobre Ele toda
a sua cólera. Sacerdotes, escribas, fariseus e a turba de coração
ingrato e empedernido zombavam do próprio Filho de Deus,
enquanto Ele agonizava sobre o madeiro. “Salvou os outros”, diziam,
“a Si mesmo Se salve, se é de fato o Cristo de Deus, o Escolhido.”
Luc. 23:35.
Os próprios soldados, que mal conheciam a Jesus, acabaram sendo
influenciados por aquele satânico frenesi, e também passaram a
zombar dEle, dizendo: “Se Tu és o rei dos judeus, sal- va-Te a Ti
mesmo.” Luc. 23:37. Mas não eram só os soldados. Até mesmo um
dos criminosos que estava crucificado ao Seu lado dizia: “Não és Tu
o Cristo? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também.” Luc 23:39. Diz a
Sra. White que “Satanás com seus anjos, em forma humana, achava-
se presente ao pé da cruz. O arquiinimigo e suas hostes cooperavam
com os sacerdotes” e as demais pessoas que ali estavam {Idem, págs.
746-749).
Jesus, porém, não murmurava queixa alguma. Não retribuía
nenhuma das maldições que contra Ele eram lançadas. Seu semblante
permanecia calmo e sereno, apesar do suor e do sangue que Lhe
banhavam a face. De Seus lábios apenas se ouvia a oração
intercessória: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”
Luc. 23:34.

O Criminoso Arrependido

A súplica de Jesus não foi em vão. Pelo contrário, o seu efeito foi
praticamente imediato. Enquanto que um dos criminosos

109
SÓ JESUS

que com Ele estava crucificado apenas se tomava cada vez mais
blasfemo e agressivo, o outro foi tocado pela calma serenidade de
Jesus e pela poderosa oração de perdão que lhe chegou aos ouvidos,
e passou a repreender o seu companheiro, dizendo: “Nem ao menos
temes a Deus, estando sob igual sentença? Nós na verdade com
justiça, porque recebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas
este nenhum mal fez.” Luc. 23:40 e 41.
O tempo entre a crucificação em si e a morte propriamente dita do
indivíduo era suficientemente longo para que ele refletisse sobre
todos os seus atos, todos os seus erros, todos os crimes que havia
cometido e pelos quais fora condenado, mas não foram necessários
senão uns poucos minutos para que um daqueles dois criminosos
reconhecesse a justiça de seu castigo.
Ele havia pecado, e muito. Havia quem sabe praticado atentados
contra os romanos, cometido homicídios, roubos e furtos, mas,
embora sabendo que em termos humanos não havia mais nada que
pudesse ser feito por ele, reconhece os seus crimes, mostra-se
arrependido e disposto a aceitar a pena imposta pela lei. O mais
interessante é que ele também mostra alguma sensibilidade espiritual.
Ele teme a Deus, e reconhece que seu sofrimento era justo.
O relato bíblico nos dá a impressão de que esse criminoso ar-
rependido provavelmente tivesse algum conhecimento prévio de
Jesus, e que agora reconhece como verazes as reivindicações
messiânicas feitas por Ele.
A Sra. White confirma essa conclusão, dizendo que ele havia visto
e ouvido Jesus, e ficara convencido de que Ele era o Messias, mas
que por fim acabara abandonando essa idéia por influência dos
sacerdotes, dos escribas e dos fariseus. Fora desviado justamente por
aqueles que eram os líderes espirituais da nação. Ela diz também que,
durante todo o julgamento, ele estivera ao lado de Jesus. Ouvira
Pilatos declarar que não via “nEle crime algum” (João 19:4);
caminharam juntos em direção ao Calvário; percebera o Seu porte
divino, e se rendera finalmente à convicção de que Ele era de fato o
Filho de Deus ao ouvir Sua oração em favor daqueles que O
ultrajavam (O Desejado de Todas as Nações, págs. 749 e 750).
E ali na cruz, em meio à mais terrível dor e agonia, ele se

110
“ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO”

lembra de tudo aquilo que havia ouvido dos lábios de Jesus; se lembra
da forma como Ele curava os doentes, atendia os necessitados,
perdoava os pecadores e, sob a iluminação do Espírito Santo, vê
nAquele Jesus ferido, ridicularizado e pregado na cruz, o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo. E num misto de esperança e
aflição, com a voz embargada pela dor e o coração partido pela culpa,
se atira com fé sobre o agonizante Salvador, e suplica: “Jesus, lembra-
Te de mim quando vieres no Teu reino.” Luc. 23:42.
Podemos imaginar a emoção de Jesus naquele momento. As
lágrimas a brotarem de Seus olhos banhados pela dor. A alegria a
inundar o Seu coração partido pelo sofrimento ao ver, mesmo ali,
naquele cenário sórdido e repulsivo, naquele lugar onde os anjos
choravam e os demónios se regozijavam, uma alma arrependida e
crente que clamava por perdão.
Os discípulos haviam fugido. Aqueles que apenas uma semana
atrás haviam entoado “Hosana ao Filho de Davi” (Mat. 21:9) agora
zombavam e escarneciam dEle. Muitos a quem Ele havia socorrido e
ajudado, agora O injuriavam. Quão reconfortante não deve ter sido
para o Salvador aquela simples, mas genuína declaração de fé, aquela
súplica de entrega e arrependimento! E a resposta foi imediata. “Em
palavras repletas de amor e compaixão, Jesus disse: Em verdade te
digo hoje, estarás comigo no paraíso.” Luc. 23:43.
No mesmo instante em que essas palavras foram pronunciadas, diz
a Sra. White, um “brilhante, vívido clarão penetrou a escura nuvem
que parecia envolver a cruz”. Era Jesus que, mesmo em Sua
humilhação, estava sendo glorificado. Os homens podiam açoitá-Lo,
coroá-Lo de espinhos e crucificá-Lo; podiam derramar o Seu sangue,
blasfemar dEle e ultrajá-Lo, mas não tinham como impedi-Lo de
perdoar pecados, de salvar a todos aqueles que se volvessem a Ele em
arrependimento e fé (O Desejado de Todas as Nações, pág. 751).
“Em verdade te digo hoje”, disse Jesus, “estarás comigo no
paraíso.” Ele não prometeu ao criminoso que ambos estariam juntos
naquele mesmo dia no reino de Deus (João 20:17), embora a maioria
das versões bíblicas que usamos digam isso. O que temos aqui é um
problema de tradução, e tem que ver com a correta pontuação do
texto. O advérbio “hoje” na verdade deve modificar a expressão “te
digo” e não o verbo “estarás”, e foi usado por Jesus para dar ênfase à
importância do momento.
SÓ JESUS

Essa interpretação é a que está mais de acordo com outras


passagens da Escritura (João 20:17), particularmente aquelas que
declaram que os justos não herdarão o reino de Deus senão por
ocasião da segunda vinda de Cristo (Mat. 16:27; 25:31 e 34; Apoc.
22:12; etc.), e também é a que está mais de acordo com o próprio
contexto, pois ao que tudo indica o criminoso pediu a Jesus que Se
lembrasse dele quando viesse, e não quando entrasse, no Seu reino
(Luc. 23:42). O verbo grego por ele usado em sua súplica foi
erchomai, que significa simplesmente “vir”; se ele quisesse dizer
“entrar”, provavelmente teria usado o verbo eiserchomai.
Assim, o criminoso estava olhando para o futuro, para aquele dia
em que Jesus haveria de voltar para o estabelecimento definitivo de
Seu reino. Mas Jesus lhe respondeu: “Em verdade te digo hoje”, ou
seja, neste dia, “neste dia em que você se arrependeu e creu”, “neste
dia em que estamos prestes a morrer”, “neste dia, em meio a toda esta
humilhação, a toda dor e agonia por que passamos”, “neste dia de
aparente derrota e fracasso, Eu lhe garanto: ‘estarás comigo no
paraíso’”.

Promessa de Glória

As palavras de Jesus ao criminoso arrependido nos colocam diante


de um tema de particular importância, a segunda vinda de Cristo, e a
conseqiiente glorificação de todos aqueles que O aguardam.
Infelizmente, o tema da glorificação tem sido pouco explorado em
nosso meio. Falamos que Jesus em breve vai voltar, conhecemos as
profecias que apontam para Sua segunda vinda, sabemos descrever
os últimos eventos em ordem cronológica, esperamos um novo Céu
e uma nova Terra, mas parece que nossa atenção está mais voltada
para o tempo em que essas coisas vão acontecer do que para elas
mesmas, e é por isso que alguns acabam desanimando diante do
aparente prolongamento desse tempo de espera. A pressa tem
desviado nossos olhos do real signi
“ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO”

ficado da glória, e ela já não nos parece mais tão atrativa. Passamos
a desejá-la, mas não pelo que ela vai significar para nós, senão apenas
por causa dos problemas que hoje enfrentamos. E como, com o passar
do tempo, muitas vezes nos acostumamos a esses problemas, ou então
os superamos, a glória acaba perdendo um pouco de seu fascínio.
Também é bastante comum encontrarmos pessoas que vêem a
glorificação apenas como uma transformação isolada e sem maiores
implicações, ou seja, que não sabem como relacioná-la com o todo
do processo da salvação. A graça de Deus, porém, não atua em nossa
vida mediante fases distintas e independentes umas das outras, mas,
sim, mediante um processo contínuo. Embora, do ponto de vista
didático, talvez seja válido falar em justificação, santificação e
glorificação, e embora cada uma dessas fases possua características
próprias, a verdade é que, na prática, elas estão tão intimamente
ligadas a ponto de se poder dizer que a justificação é a santificação
iniciada, e a glorificação, a santificação completada. Isso significa
que a glória para nós começa no exato momento em que aceitamos a
Jesus como Salvador pessoal.
Mas, em que exatamente consistirá a glorificação? Para responder
a essa pergunta, precisamos antes compreender qual o significado do
termo “glória” nas Escrituras Sagradas. Os autores bíblicos em geral
empregaram esse termo de diferentes maneiras, para expressar
diferentes conceitos, sendo que o mais importante deles é aquele que
está relacionado com o próprio Deus, e que diz respeito ao Seu caráter
e à Sua presença, conforme revelados ao ser humano, especialmente
na pessoa e na obra de Jesus Cristo (João 1:14; Heb. 1:3). Ou seja,
glória é uma espécie de resumo dos atributos morais e pessoais de
Deus.
Quando, portanto, Isaías diz que o homem foi criado para a glória
divina (Isa. 43:7), isso significa que, diferentemente das demais
criaturas, o homem foi criado segundo a imagem e a semelhança do
próprio Deus (Gên. 1:26), e o foi “tanto na aparência exterior como
no caráter”. — Patriarcas e Profetas, pág. 45. Ou seja, tal como saíra
das mãos do Criador, o homem como que encarnava algo do caráter
e da pessoa de Deus, da glória de Deus, e em sua existência deveria
continuamente, e da forma mais plena possível, refletir essa divina
glória.
Diz a Sra. White: “Deus criou o homem para a glória divina, para
113
Só JESUS

que depois de passar pela prova e aflição, a família humana pudesse


chegar a ser uma com a família celestial. O propósito de Deus era
repovoar o Céu com a família humana, se houvesse demonstrado
obediência a cada palavra divina. Adão haveria de ser provado para
ver se seria obediente, como os anjos leais, ou desobediente. Se
houvesse suportado a prova, teria instruído seus filhos unicamente na
senda da lealdade. Sua mente e seus pensamentos teriam sido como a
mente e os pensamentos de Deus. Seu caráter teria sido moldado de
acordo com o caráter de Deus.” - S.D.A. Bible Commentary, vol. 1,
pág. 1.082.
O pecado, porém, fez com que Adão e toda a sua descendência
perdessem esse santo privilégio. “Todos pecaram”, diz Paulo, “e ca-
recem da glória de Deus.” Rom. 3:23. A imagem divina, tanto interna
quanto externa, que o homem possuía foi de todo arruinada pelo
pecado. O corpo físico degenerou, e se transformou num “corpo
corruptível” (I Cor. 15:53), num “corpo de humilhação” (Filip. 3:21).
O caráter se tomou pecaminoso, corrompido, completamente
destituído de qualquer força moral (Rom. 3:10-18; 8:7; Efés. 2:3).
Mas a raça humana não foi deixada sem esperança. “Por infinito
amor e misericórdia foi concebido o plano da salvação, concedendo-
se um tempo de graça. Restaurar no homem a imagem de seu Autor,
levá-lo de novo à perfeição em que fora criado, promover o
desenvolvimento do corpo, espírito e alma para que se pudesse
realizar o propósito divino da sua criação - tal deveria ser a obra da
redenção.” - Educação, págs. 15 e 16.
E é exatamente a glorificação que tomará isso possível. Ela será o
ponto culminante do plano da salvação. A imagem perfeita do
Criador será toda restaurada (Rom. 8:29), e nós tomaremos a
desfrutar da mesma glória de que dispúnhamos no princípio, antes da
entrada do pecado. Enfim, a imagem do celestial substituirá em todos
os seus aspectos a imagem do que é terreno (I Cor. 15:49). O
propósito original de Deus para com cada um de nós será então
alcançado, e para todo o sempre. “Os últimos traços da maldição do
pecado”, diz a Sra. White, “serão removidos, e os fiéis de Cristo
aparecerão ‘na beleza do Senhor nosso Deus’, refletindo no espírito,
alma e corpo, a imagem perfeita de seu Senhor.” - O Grande Conflito,
pág. 645.

114
“ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO”

É importante destacar, porém, que a salvação provida por Deus não


se limita apenas ao ser humano, mas é extensiva também ao restante
da criação, igualmente afetado pelo pecado. A transgressão de Adão
e Eva teve conotação global. Quando eles pecaram, a Terra caiu, e
por isso foi amaldiçoada (Gên. 3:17 e 18). O resultado é que toda a
Natureza tem estado a sofrer as consequências do pecado. Diz Paulo:
“Toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora”
(Rom. 8:22), a mesma criação em relação à qual Aquele que mais
entende de estética e beleza no Universo exclamara um dia que tudo
“era muito bom”. Gên. 1:31.
Martin Buber, um filósofo judeu, declarou: “Vivemos num mundo
irredimido.” Mas não será assim para sempre. Paulo faiou da
“esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da
corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus”. Rom. 8:21.
E para que não ficasse apenas no nível da esperança, o Senhor
também lhe concedeu o privilégio de poder constatar por si mesmo
que essa restauração será uma realidade (II Cor. 12:2-4).
Vem o dia, portanto, em que os filhos de Deus, libertados de tudo
o que é mortal, serão exibidos ao Universo com a mesma glória para
a qual foram criados. Nesse dia, toda a criação será igualmente
redimida de sua escravidão atual, e participará da gloriosa e eterna
liberdade dos filhos de Deus.

Glória e Comunhão

Quando falamos em glorificação, há um importante detalhe que


jamais deve ser esquecido, pois tem que ver com seu propósito
supremo. Em vez de um fim em si mesma, a glorificação será na
verdade um meio pelo qual Deus haverá de restaurar aquilo de mais
precioso e enobrecedor que existe no Universo: a livre comunhão
entre criatura e Criador (Maranata - O Senhor Vem! [Med.
Matinais/1977], pág. 347).
O propósito de Deus ao criar o homem e colocar nele Sua divina
glória não era outro senão prepará-lo para que pudessem desfrutar um
com o outro da mais íntima comunhão possível. Tanto é assim que o
primeiro dia completo de Adão e Eva ficou perpetuado na história
humana como dia por excelência de comunhão com o Criador (Gên.
2:1-3; Isa. 58:13 e 14). Não tivesse o homem sido criado à imagem e

115
SÓ JESUS

à semelhança de Deus, e nenhuma comunhão direta e pessoal entre


eles seria possível. A prova disso é a situação em que vivemos desde
a queda. Levando-nos a pecar, Satanás fez com que perdêssemos o
direito de refletir a glória divina, ou seja, nossa igualdade moral com
o Criador, e o resultado é que estamos hoje tão separados de Deus
quanto a Terra está separada do Céu (Isa. 55:8 e 9; 59:2).
Glória e comunhão, portanto, são dois elementos inseparáveis.
Perder um significa privar-se do outro. Quando Adão e Eva, após
comerem do fruto proibido, “ouviram a voz do Senhor Deus, que
andava no jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do
Senhor”. Gên. 3:8. E, ao ser perguntado sobre o porquê dessa atitude,
Adão respondeu: “Ouvi a Tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive
medo e me escondi.” Gên. 3:10.
Na verdade, não foi a nudez física que provocou a fuga, mas a
espiritual. Ao notar a retirada da veste de luz que o rodeava, Adão
começou a sentir uma intuição pelo pecado, e percebeu naquele
momento sua alma ser desvestida da glória da santidade - sua
semelhança moral com o Criador - e o resultado foi que não mais
podia “enfrentar o olhar de Deus e dos santos anjos”. - Patriarcas e
Profetas, pág. 57. Com o desaparecimento da glória divina, a
comunhão estava fatalmente interrompida.
Tempos mais tarde, quando Moisés ousou pedir ao Senhor que lhe
mostrasse Sua glória, Ele respondeu: “Não Me poderás ver a face,
porquanto homem nenhum verá a Minha face, e viverá.” Êxo. 33:18-
20. E é justamente essa situação de desacordo e afastamento que a
glorificação haverá de mudar. Seremos transformados segundo a
imagem e semelhança do próprio Salvador glorificado (Filip. 3:21),
para que possamos estar novamente em Sua presença e na presença
santa de Deus. “Agora vemos como em espelho”, diz Paulo,
“obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte,
então conhecerei como também sou conhecido.” I Cor. 13:12.
Esse é o propósito da glorificação, e de todo o plano da redenção.
Não foi senão para que pudesse nos ter novamente ao Seu lado, para
que pudesse voltar a viver em íntimo companheirismo conosco, que
Jesus Se dispôs a vir a este mundo e morrer em nosso lugar (João
14:3; 17:24). E assim como esse relacionamento é o sonho tão
acalentado do Salvador, o supremo anelo de Seu coração, ele também
será para nós a experiência mais linda, mais gratificante, e mais

116
“ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO”

enobrecedora de toda a eternidade: uma fonte perene de vida e de


felicidade. Em outras palavras, o Céu só será um Céu por causa da
presença de Cristo, e da comunhão que poderemos manter com Ele.
Há uma bela passagem do apóstolo João que diz: “Contemplarão
a Sua face, e nas suas frontes está o nome dEle.” Apoc. 22:4.
Particularmente considero essa profecia como uma das mais
significativas de toda a Escritura. Ela descreve a intimidade e a
confiança mútua que haverá entre o Salvador e os redimidos. Estes
trarão nas próprias frontes o nome de Cristo, ou seja, a perfeição e a
santidade de Seu caráter, e por isso poderão contemplar o Seu rosto;
poderão contemplar a Sua divina glória sem que haja nenhum véu de
permeio, e sem que ela lhes represente qualquer ameaça (Êxo. 34:29-
35). “A principesca dignidade do caráter cristão refulgirá como o Sol,
e os raios de luz do rosto de Cristo refletir-se-ão sobre os que se pu-
rificam assim como Ele é puro.” - Maranata - O Senhor Vem! [Med.
Matinais/1977], pág. 347.
Foi exatamente essa a promessa que Jesus fez ao criminoso
arrependido naquela manhã de sexta-feira no monte Calvário, ao
dizer-lhe “estarás comigo no paraíso”, e é essa a promessa que Ele
estende hoje a cada um de nós. Essa é a promessa de glória que
precisamos elevar ao nível de uma profunda convicção pessoal, pois
a condição de seu cumprimento em nossa vida permanece a mesma:
“Se creres”, disse Jesus, “[se tiveres fé] verás a glória de Deus.” João
11:40.
A fé sempre foi e continua sendo o único meio pelo qual o ser
humano pode lançar mão dos benefícios da cruz. É a única maneira
pela qual podemos nos achegar a Deus, e descansar na certeza de que
nossa salvação será um dia completada. Devemos nos animar,
portanto, com o pensamento de que os nossos melhores dias são
justamente aqueles que estão diante de nós. A glória nos aguarda!
Falando acerca da volta de Jesus, a Sra. White faz o seguinte apelo:
“Olhai para cima, olhai para cima, e deixai que a vossa fé aumente
continuamente. Permiti que essa fé vos guie pelo caminho estreito
que, através dos portais da cidade de Deus, conduz ao grande além,
ao amplo e ilimitado futuro de glória destinado aos remidos.” -
Testemunhos Seletos, vol. 3, págs. 433 e 434.
E hoje é o tempo de firmarmos nossa fé e nossa esperança em
Jesus, e na promessa de Sua volta. Embora o próprio Jesus tenha dito

117
SÓ JESUS

que voltaria sem demora (Apoc. 3:11; 22:7, 12 e 20), e embora


saibamos pela segura palavra da profecia que de fato estamos vivendo
os últimos instantes da história deste mundo, temos que nos lembrar
de que a ênfase das Escrituras não está tanto no tempo da volta de
Jesus, mas no preparo que hoje devemos ter para que possamos
encontrá-Lo.
“Hoje”, diz o apóstolo Paulo, “se ouvirdes a Sua voz, não en-
dureçais os vossos corações.” Heb. 4:7. E Pedro, depois de descrever
a vinda do Senhor e dizer que Ele não retarda a Sua promessa,
declara: “Deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento
e piedade, esperando e apressando a vinda do dia de Deus.” II Ped.
3:11 e 12.
Não haverá outra oportunidade futura em que poderemos nos
preparar para a eternidade. Não haverá outra oportunidade em que
poderemos cumprir os requisitos de fé, de entrega, e de preparo do
coração para que possamos estar para sempre ao lado do Salvador.
“Tudo com que temos que nos haver é este dia de hoje. Hoje devemos
ser fiéis ao nosso legado. Hoje devemos amar a Deus de todo o
coração, e ao nosso próximo como a nós mesmos. Hoje é que nos
cumpre resistir às tentações do inimigo, e pela graça de Cristo
alcançar a vitória. Isto é vigiar e aguardar a vinda de Cristo. Devemos
viver cada dia como se soubéssemos ser ele nosso último dia na
Terra.” - O Cuidado de Deus [Med. Matinais/1995], pág. 169.
Afinal, a certeza que Jesus deu àquele criminoso ao Seu lado de
que estariam juntos no paraíso, e que Ele quer dar também a cada um
de nós, é uma certeza para ser hoje recebida na alma, para ser hoje
acolhida com fé, a fim de que tenhamos força e perseverança ao
enfrentar as crises finais da história deste mundo. “Em verdade te
digo hoje, estarás comigo no paraíso.”

118
“ESTARES COMIGO NO PARAÍSO”

Conclusão

O reino da glória será uma realidade. O paraíso edênico será todo


restaurado, e haveremos de desfrutar para sempre da companhia de
nosso querido Salvador, longe de qualquer problema, de qualquer
mágoa, de qualquer dor que hoje nos deprime e nos faz sofrer (Apoc.
21:3 e 4). Até mesmo a lembrança dos problemas passados deixará
de existir (Isa. 65:17). E isso não é uma fábula, uma utopia, ou mera
especulação. Será tão real como reais são as virtudes desse reino que
hoje já se fazem presentes na vida de todo aquele que confiou em
Jesus para o perdão de seus pecados, e que permanece nEle (Heb. 6:5;
Luc. 17:20 e 21). A experiência da santificação revela que os poderes
da glória já operam em nossa vida (II Cor. 3:18). E por isso que
podemos ter paz, apesar das lutas (João 14:27), esperança, apesar dos
problemas (Heb. 10:23), alegria, apesar das lágrimas (II Cor. 6:10 ),
e perseverança, apesar das tribulações (Rom. 5:3).
O segredo, portanto, é permanecer em Cristo. Se permanecermos
nEle, Ele permanecerá em nós, e nos dará a certeza de que mesmo
agora já somos considerados como legítimos cidadãos do reino (Col.
1:13). “Cristo em vós”, diz Paulo, “é a esperança da glória.” Col.
1:27. E logo mais a glória será para nós a mais plena realidade. Não
demorará muito para que ouçamos dos lábios do próprio Cristo as
doces palavras: “Vinde, benditos de Meu Pai! Entrai na posse do
reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.” Mat.
25:34.
Esse será um momento glorioso, tão glorioso que as palavras
humanas sequer podem descrever. Será um momento de reencontro,
reencontro de amigos que há muito tempo não se viam, de parentes
que estavam separados pela morte, dos filhos de Deus de todos os
tempos e lugares, e de todos eles com o querido Salvador. Será um
momento significativo e único na história do Universo. Depois de
milhares de anos de pecado e afastamento, a raça humana finalmente
retorna ao seu lar original, de onde nunca deveria ter saído. Nesse dia,
a última lágrima será derramada; a última dor, sentida; o último
inimigo, vencido (I Cor. 15:54 e 55), e assim poderemos estar “para
sempre com o Senhor”. I Tess. 4:17.
Em palavras carregadas de emoção, a Sra. White descreve esse
momento da seguinte forma: “Ecoa nos ares um exultante clamor de

119
Só JESUS

adoração. Os dois Adões estão prestes a encontrar-se. O Filho de


Deus Se acha em pé, com os braços estendidos para receber o pai de
nossa raça - o ser que Ele criou e que pecou contra o seu Criador, e
por cujo pecado os sinais da crucificação aparecem no corpo do
Salvador. Ao divisar Adão os sinais dos cruéis cravos, ele não cai ao
peito do seu Senhor, mas lança-se em humilhação aos Seus pés,
exclamando: ‘Digno, digno é o Cordeiro que foi morto!’ Com ternura
o Salvador o levanta, convidando-o a contemplar de novo o lar
edênico do qual, havia tanto, fora exilado.” - O Cuidado de Deus
[Med. Matinais/1995], pág. 172.
E todos nós podemos participar desse momento de glória. Basta
que, como aquele criminoso arrependido, nos entreguemos com fé a
Jesus, reconhecendo nossos pecados, nossa culpa e nossa inteira
necessidade de Sua graça. Basta que olhemos com fé para Ele, e
exclamemos do mais profundo de nosso ser: “Jesus, lembra-Te de
mim quando vieres no Teu reino.” Se assim o fizermos, no mesmo
instante Ele falará mansamente ao nosso coração, e dirá: “Em verdade
te digo hoje, estarás comigo no paraíso.”
Com essa certeza na alma, e desejosos de que esse dia logo chegue,
nós O aguardaremos. Mesmo diante de lutas e dificuldades, nós O
aguardaremos. Mesmo que sejamos tentados a desaminar, nós O
aguardaremos. Mesmo que a espera nos pareça longa demais, nós O
aguardaremos, e oraremos ainda com mais fervor: “Vem, Senhor
Jesus.” Apoc. 22:20. Amém.

120
Bibliografia
(As obras de Ellen G. White são citadas em referências bibliográficas específicas dentro de
cada capítulo.)
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