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Colecção: Travessias

Georgina Silva dos Santos


Direcção: Maria da Graça A. Mateus Ventura
Instituto de Cultura Ibero-Atlântica

Livros Publicados:
- Negreiros Portugueses na Roía das índias de Castela (1541-1556)
Maria da Graça A. Mateus Ventura
- Portugueses no Descobrimento e Conquista da Hispano-América OFÍCIO E SANGUE
- Viagens e Expedições (1492-1557)
Maria da Graça A. Mateus Ventura A IRMANDADE DE SÃO JORGE E A INQUISIÇÃO
- Camas e Condes da Vidigueira - Percursos e Genealogias NA LISBOA MODERNA
Ivone Maria Correia Alves
- Elites Mineiras Setecentistas - conjugação de dois mundos
Virgínia Maria Trindade Valadares
- Ofício e Sangue — A Irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna
Georgina Silva dos Santos

Actas das Jornadas de História Ibero-Americana


- Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista
- A União Ibérica e o Mundo Atlântico
- O Barroco e o Mundo Ibero-Atlântico
- As Rotas Oceânicas (Sécs. XV-XVH1)
- A Definição dos Espaços Sociais, Culturais e Políticos
no Mundo Ibero-Atlântico (definais do séc. XVIII até hoje)
- Portugal e Brasil no Advento do Mundo Moderno
- O Mediterrâneo Ocidental: Identidades e fronteira
- As Novidades do Mundo: conhecimento e representação na Época Moderna
- Os Espaços de Sociabilidade na Ibero-América (sécs. XVI-XIX)

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Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação ÍNDICE

Santos, Georgina Silva dos, 1967- AGRADECIMENTOS 9


Ofício e sangue : a Irmandade de S. Jorge e a Inquisição
na Lisboa Moderna. (Travessias ; 5) PREFÁCIO 11
ISBN 972-772-545-7
INTRODUÇÃO 15
CDU 255
005
261
CAPÍTULO I-SÃO JORGE DE BOA MEMÓRIA 29
1. Proteger e defender:
o papel atribuído aos mártires pela piedade popular 30
2. As variantes do mito de São Jorge 35
2.1. São Jorge Mártir 36
Título: Ofício e Sangue 2.2. São Jorge e o Dragão 43
A irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna
3. Conquistar e civilizar: São Jorge no tempo da Reconquista 50
Autor: © Georgina Silva dos Santos
Edição: © Edições Colibri / Instituto de Cultura Ibero-Atlântica 4. São Jorge de boa memória 53

Revisão: M.a Fernando Araújo 4.1. São Jorge, patrono português 59


Capa: Ricardo Moita 4.2. São Jorge na Casa de Avis 68
Depósito legal n." 225 565/05 4.3. São Jorge no Corpo de Deus 78
Tiragem: 750 exemplares
CAPÍTULO II-HOMENS DE FERRO E FOGO 101
1. A bandeira de São Jorge em Lisboa 109
Patrocínios
1.1.0 corpo de ofícios do estandarte 110
FAPERG
e 1.2. Os redutos da bandeira 117
Padre Vitor Milícias, OFM 1.3. As leis e os saberes dos ofícios de ferro e fogo 124
1.4. Os mecanismos extrajudiciais de controle:
Lisboa, 6 de Maio de 2005 a devoção ao orago protetor 132
Georgina Silva dos Santos

2. As leis gerais do estandarte 146

2.1. Os estatutos do estandarte 149

3. A reforma dos ofícios de 1771 154

CAPÍTULO III - HOMENS DE COMPROMISSO 163

1. O compromisso dos irmãos de São Jorge 168

1.1. Favas pretas e favas brancas:


Para Jorge, meu pai (in memoriam)
os critérios de admissão na confraria 178

1.2. Defuntos, pobres e enfermos: as obras de misericórdia


dos irmãos de Jorge 189

1.3. Os doze trabalhos dos irmãos de São Jorge 191

2. Irmãos de sangue limpo 204

2.1. Nem mouro, nem mulato, nem judeu: a vulgarização do conceito


de cristão-velho nos redutos tradicionais da bandeira de São Jorge 213

2.2. Familiares e barbeiros: a natureza do vínculo entre os irmãos


de São Jorge e o Santo Ofício 216

CAPÍTULO IV - MESTRES NA ARTE DE SANGRAR 231

1. Humores sãos e humores doentios: os fundamentos do discurso médico


para a sangria 236

2. A arte dos barbeiros 242


2.1. Barbeiros cirurgiões e barbeiros sangradores 251

2.2. "Barbeiros flebotomanos" e cirurgiões sangradores 267

3. As dores do cárcere 284

CONCLUSÃO 303

FONTES E BIBLIOGRAFIA 307


AGRADECIMENTOS

Apresentado à Universidade de São Paulo como tese de Doutorado


em Novembro de 2002, este livro é fruto de uma longa investigação e
não teria sido possível sem o apoio de instituições, professores, amigos e
de minha família.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES-
-Brasil) devo o financiamento de toda a pesquisa, quer no Brasil, quer em
Portugal. Ao Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (ICIA), responsável por
esta edição, e, em particular, à sua presidente Maria da Graça Ventura,
sou grata pelo apoio. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro (FAPERJ) sou grata pelo patrocínio de parte desta edição,
através do programa "Primeiros Projetos". Ao Padre Vitor Melícias
expresso aqui minha gratidão pela confiança que depositou no meu tra-
balho.
À Laura de Mello e Souza, minha orientadora, agradeço especial-
mente pela acolhida na USP, pelo crédito profissional e pelo estímulo
intelectual, para realizar e concluir este trabalho.
Em São Paulo, também sou grata aos professores Flávio Campos,
Leila Mezzan Algranti, Marina de Mello e Souza, Vera Ferlini e Ulpiano
Bezerra de Menezes, que acompanharam, em momentos distintos, o meu
percurso no Doutorado.
Aos colegas do Departamento de História da Universidade Federal
Fluminense, minha confraria de ofício, agradeço pela dispensa de minhas
atividades docentes para realizar esta investigação. Sou grata, particular-
mente, a Ana Maria Mauad, Carlos Addor, Daniel Aarão Reis Filho, Gui-
lherme Pereira das Neves, Luciano Figueiredo e Rachel Soihet, Rogério
Ribas e Ronald Raminelli pelo incentivo e sugestões. Francisco Carlos
Teixeira da Silva, ora Titular na UFRJ, também me apoiou muito, desde o
tempo em que ministrava História Moderna na UFF.
Em Portugal, minha investigação teria sido muito mais difícil sem o
carinho dos amigos e sem a cooperação dos arquivistas. Aos amigos
Maria Júlia Ferreira, Felipe Verde e António Jorge Afonso agradeço pelo
apoio. A Robert Rowland, pelo desafio. A Caio Boschi pelas palavras de
incentivo. No Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa, contei com a
10 Georgina Silva dos Santos

ajuda do historiador Francisco Jorge Matos e com o auxílio da bibliotecá-


ria Isabel Ribeiro Mira, incansável em atender minhas inúmeras solicita-
ções. No Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, em Vila Viçosa, João
Ruas teve a generosidade de dilatar o horário para a cópia das fontes. No
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, contei com a competência de PREFACIO
Carla, Hélio, Luiz e Maria do Céu. A Torre do Tombo, além dos docu-
mentos, me proporcionou um ambiente de intensa troca intelectual e soli-
dariedade. James Wadsworth e Marco António Ferrer forneceram-me
preciosas indicações bibliográficas. Virgínia Valadares, amiga querida,
dividiu comigo a alegria de cada descoberta. Na cantiga popular, São Jorge assentou praça na cavalaria, e o fato
De volta ao Rio, Mônica Caetano Gonçalves auxiliou-me imensa- de ser um de seus companheiros traz felicidade. Poucos santos são tão
mente com o Banco de Dados. Beatriz Kushnir, amiga de muitos anos, cultuados no Brasil quanto ele, nem tão onipresentes: imagem de gesso
esteve sempre presente. Edmundo Pinheiro e José Pessoa foram de sempre vigilante nos nichos que ornam varandas domésticas, estabeleci-
inestimável competência na composição das imagens. mentos comerciais, hospitais; figura pintada nos calendários, folhinhas ou
A Carlos Alberto, William, Julianna e, especialmente a Lena, minha medalhas esmaltadas a penderem do pescoço dos fiéis; espírito encarnado
mãe, e a Ronaldo, meu marido, agradeço a paciência, a ajuda e o amor em outros "cavalos", estes humanos, e pronto a descer em terreiros de
em todas as horas. umbanda e candomblé. São Jorge cruza fronteiras religiosas, étnicas,
sociais; carrega tradições múltiplas, move-se no mapa da terra e no do
céu, atende a esfera temporal e a espiritual. Não deve ser à toa que está na
Lua, visível a olho nu, misturando justamente o reino deste mundo com o
do outro.
Santo forte, impregnado no cotidiano e no imaginário brasileiros,
São Jorge é figura de lenda, um "santo literário" sem existência compro-
vada. Mesmo assim, ou talvez por isso, tem enorme apelo simbólico e foi
t escolhido pela dinastia de Avis quando esta subiu ao trono de Portugal,
!:após convulsões que quase puseram fim à autonomia ante Castela. O santo,
desde então, se confundiu com a monarquia, e quando a questão era de
ferro e fogo, lá vinha ele, em procissão ou estandarte, assegurar a domi-
nação portuguesa. Da antiga metrópole passou para a colónia: não em
ginete, mas em navio de carreira, acomodado entre governantes, burocra-
tas, padres da Companhia, degredados, camponeses pobres, vacas, carnei-
' ros, pipas de azeite, pregos e barris de pólvora.
Ofício e Sangue — a Irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lis-
boa Moderna é a tese de doutorado de Georgina Silva dos Santos, defen-
dida no Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no ano de 2002. O São
Jorge mítico acha-se aqui representado em toda a sua força e complexi-
dade, mas o assunto principal pertence mesmo ao cotidiano concreto dos
homens: a irmandade de São Jorge de Lisboa, entre os séculos XVI e
XVIII, quando nela se desenvolveu, "à sombra da devoção do santo", um '
"modelo de organização confraternal" que influenciou os oficiais de fer-< ;
reiro, sangrador, barbeiro, cutileiro, amieiro, todos aqueles, enfim, que í
12 Georgina Silva dos Santos

'exerciam ofícios de ferro e fogo e que, até este momento, nunca haviam/
imerecido um tratamento historiográfico. A documentação utilizada é vas-<
ta, variada, original, mas também muito esparsa, e, para compulsá-la, a
autora trabalhou em inúmeros arquivos portugueses, vencendo obstáculos
e dificuldades. A escolha foi consciente: Georgina queria dar voz aos
membros da corporação, detetar os conflitos em que se envolveram, SIGLAS E ABREVIATURAS
reconstruir trajetórias de vidas aparentemente sem importância, o que só
seria possível se dispusesse de tipos documentais múltiplos.
à documentação extensa e original não possibilitaria, contudo, o tra-
balho que aqui está sem a imaginação histórica de Georgina. Realizando
um estudo que se encontra na intersecção da análise social, política e cul-
tural, consegue mostrar, de modo admirável, o imbricamento do Santo ACMC - Arquivo da Câmara Municipal de Coimbra
Ofício no tecido da sociedade, o que nem sempre é fácil de fazer. A
Inquisição abrigava em suas procissões e autos-de-fé alguns dos membros ACML - Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa
da irmandade de São Jorge, como barbeiros sangradores, o que era mani-
ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo
festação inequívoca de stalus social e religioso, naquele mundo e naquele
lugar. Esses homens, por sua vez, aluavam no interior dos cárceres, aten- BNL - Biblioteca Nacional de Lisboa
dendo prisioneiros: não apenas os que adoeciam como os que se estropia-
vam na tortura, e que carecia reavivar para se extrair confissão. A irman* MBCB - Museu-Biblioteca da Casa de Bragança
dade, afinal, aplicava aos seus membros as disposições restritivas dos
; estatutos de pureza de sangue. Seria preciso acrescentar algo para eviden-
ciar a cumplicidade entre instituições no Portugal moderno? Neste senti-
do, e por estes motivos, os capítulos 3 e 4 do trabalho, "Homens de Com-
promisso" e "Mestres na arte de sangrar", parecem-me modelares e
decisivos.
O livro de Georgina Silva dos Santos não trata, portanto, do São Jor-
ge a que o Brasil se acostumou, mas daquele que os portugueses erigiram
em símbolo e ao qual deram uma irmandade para que apadrinhasse. Tra-
ta, sobretudo, dos homens de São Jorge: não sua corte, que o santo era
bravo o suficiente para prescindir dela, bastando-lhe o cavalo que corco-
veava e uma lança pontuda para enfiar na goela do dragão; mas de
homens de verdade, com nomes e sobrenomes comuns, para quem a
importância maior residia no fato de integrarem uma corporação profis-
sional ambígua e agora melhor compreendida. Escrito no Brasil e por
uma brasileira, Oficio e Sangue mostra, portanto, um São Jorge eminen-
temente lusitano, mas nem por isso menos importante para se entender o
São Jorge que, ainda hoje, rjovoa nosso dia-a-dia.

São Paulo, Abril de 2005

Laura de Mello e Souza


Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO

; Fundada em Lisboa no ano de 1558, a irmandade de São Jorge este-


|ve restrita até o presente ao domínio das narrativas, lendas e costumes
í que integram a história da capital portuguesa. O caráter factual e descriti-
vo das obras produzidas pela historiografia olisiponense, em fins do
século XIX e na primeira metade do século XX, reduziu esta associação
confraternal, formada por mesteirais que compunham a corporação dos
ofícios de ferro e fogo, a uma simples coadjuvante das aparições de São
Jorge na procissão de Corpus Christi e dos autos-de-fé realizados pelo
Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. Desta feita, apesar de ser a única
irmandade de ofício a participar dessa cerimónia inquisitorial e ser cons-
tituída pela organização profissional que congregou o maior número de
mesteres na Lisboa Moderna, nenhum estudo a elegeu até agora como
objeto de reflexão.
A ausência de um trabalho investigativo que explicasse o interesse
devocional desses oficiais mecânicos por São Jorge, eleito padroeiro de
Portugal no reinado do primeiro monarca da dinastia de Avis (1385),
e/ou que desvendasse o vínculo entre esses mesteirais e a Inquisição de
Lisboa, deve-se, em parte, às características assumidas pela historiografia |
portuguesa durante o Estado Novo (1926-1974) e, em parte, às lendas e 1
corruptelas criadas pela olisipografia.
A censura perpetrada pela ditadura salazarista apartou pesquisadores
e universidades portuguesas dos centros de investigação internacionais,
confinou as linhas de pesquisa aos temas relacionados à formação da
nacionalidade e direcionou a produção académica lusa para os períodos
da Alta Idade Média, dos Descobrimentos e da Restauração, durante cin-
co décadas. Enquanto nos países além-Pirineus, particularmente na Fran-
ça, a Escola dos Annales defendia uma história-problema e reconhecia na
interdisciplinaridade um veio para ampliar os ângulos de observação,
introduzindo novos objetos de análise, valorizando novos núcleos docu-
mentais, e na Inglaterra, Edward P. Thompson redefinia o conceito de
classe social, amplificando o papel das condutas culturais na Formação
da Classe Operária Inglesa, alguns dos intelectuais portugueses partiam
para o exílio, muitos serviam a gosto a exaltação dos sentimentos nacio-
16 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 17

nalistas que justificavam o império colonial, enquanto outros reagiam à um papel fundamental na construção da narrativa histórica, a obra de
historiografia do regime, esforçando-se para alinhar a produção académi- Júlio de Castilho inaugurou uma linha historiográfica voltada para a esfe-
ca aos grandes centros de pesquisa, como Virgínia Rau. ra urbana, embora marcada por uma abordagem essencialmente descriti-
A Revolução de 25 de Abril certamente arejou este quadro, facul- va, que se transformou em tradição graças à pena de Gomes de Brito,
tando aos historiadores debruçarem-se com largueza sobre novas áreas de João Pinto de Carvalho (Tinop) e Eduardo Freire de Oliveira.
estudo. Entretanto, o desprezo imputado aos oficiais mecânicos do perío- Freire de Oliveira não foi propriamente um historiador, mas marcou
do moderno, o tímido interesse sobre as associações de entreajuda onde definitivamente a olisipografia. Nascido em Pernambuco, em 1841, o
estes homens estavam inseridos e o silêncio sobre o papel desempenhado filho de um dos diretores da Alfândega de Lisboa fez uma carreira de
por estas irmandades na construção da identidade social destes trabalha- sucesso nos quadros do concelho. Ingressou como escriturário, passou
dores urbanos ainda fazem das corporações de ofício e das confrarias logo depois a contador e no prazo de duas décadas chegou a diretor do
nascidas destas agregações uma grande lacuna na historiografia lusa. Arquivo Municipal. À frente deste cargo, empreendeu, em grande escala,
Muito embora os historiadores portugueses contemporâneos asseverem , a publicação de fontes para a história da cidade, organizando coletâneas
que a história local e a regional estão entre as grandes tendências da pro- j que se tornaram basilares para qualquer estudo sobre Lisboa, quer por
dução académica atual, os estudos sobre a Época Moderna concentram-se expressarem a riqueza do acervo da Câmara, quer pelas longas notas eru-
em torno da história rural, do poder político e das instituições régias, ditas que escreveu para introduzir cada fonte3.
sejam as Misericórdias ou a Inquisição 1 . "A primeira série desses documentos foi trazida a público entre 1856
O descompasso entre as pesquisas históricas desenvolvidas nos e 1859, nos Anais do Município de Lisboa, e compreende testemunhos
pólos científicos europeus e nas universidades portuguesas, em 2/3 do desde o foral afonsino de 1179 até às consultas do Senado no século
século XX, embotou o desenvolvimento de uma história urbana afinada XVIII. Em 1860, Freire de Oliveira organizou a publicação de outro
com uma perspectiva teórica transdisciplinar, baseada em séries docu- periódico, o Archivo Municipal de Lisboa, editado até 1885, com o obje-
mentais, que se servisse de uma metodologia capaz de contrastar os tivo de reproduzir todos os documentos de antiguidade do Município que
dados retidos em vários fundos arquivísticos e possibilitasse a elaboração pudessem "interessar à ciência ou a curiosidade pública". Neste conjunto,
de um quadro interpretativo mais sensível às tensões que constróem a incluiu cartas régias, regimentos, assentos do Senado e posturas sobre as
dinâmica histórica. O resultado deste entrave ficou impresso na historio- procissões. Porém, foram, de fato, os dezessete volumes da coletânea
grafia sobre Lisboa, que fez uso da mesma abordagem utilizada por Júlio documental intitulada Elementos para a História do Município de Lisboa
de Castilho (morto em 1919), ao longo de décadas, e que somente no (1882-1911), na qual reuniu "todos os documentos importantes e curio-
último terço da centúria passada apresentou sinais de regeneração. sos" que andavam dispersos e ignorados no arquivo da cidade, a obra
A ênfase nos feitos régios que tiveram como cenário a Lisboa Anti- mais significativa deste documentalista4.
ga, o interesse pela vida cortesã nos palácios, o culto aos traços pitores- O rigor usado na transcrição das fontes e a magnitude do trabalho
cos que faziam o dia-a-dia dos lisboetas do passado, a preocupação com asseguraram a credibilidade e a enorme circulação desta publicação, ao
as transformações ocorridas no espaço citadino e a evolução das institui- longo de uma centúria. Mas á interpretação literal de alguns de seus
ções sediadas na urbe marcaram a olisipografia, desde Júlio de Castilho, documentos deu origem a verdadeiras lendas, comprometendo a princípio
o primeiro historiador português a ocupar-se desta história local, até Fer- futuras investigações. A irmandade de São Jorge foi vítima de um desses
nando Castelo-Branco (1926)2. equívocos, que passaram indefinidamente de uma geração a outra, sem
Tributária da revolução historiográfica capitaneada por Alexandre qualquer questionamento.
Herculano (1810-1877), que rejeitou o acaso e o providencialismo na Ao transladar as fontes relativas à festa do Corpo de Deus, em Lis-
reconstituição dos fatos históricos e atribuiu à documentação municipal \boa, e comentar a participação do padroeiro no cortejo religioso, Freire

1 Cf. TENGARRINHA, José. (org.). A Historiografia Portuguesa Hoje. São Paulo: Huci-
tec, 1999, p. 10; MATTOSO, José. "História Regional e Local". A Escrita da História. 3 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Editorial Enciclopédia. Lisboa-Rio de
Lisboa: Estampa, 1988, pp. 169-180. Janeiro, vol. 19, pp. 360-361.
2 BRANCO, Fernando Castelo. Breve História da Olisipografia. Amadora: Oficinas da 4 OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para História do Município de Lisboa. Lis-
Livraria Bertrand, 1980, p. 23. boa: Typographia Universal, 1882, Tomo l, folha sem número.
IS Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 19

de Oliveira reproduziu a notícia histórica que acompanha o Novo regi- Seria uma falta grave atribuir somente a Freire de Oliveira a autoria
mento do Estandarte de São Jorge elaborado pelos oficiais da corporação da lenda que aprisionou as provas da devoção a São Jorge ao regimento
dos mesteres de ferro e fogo, em 1767, na qual os devotos registraram a' de sua corporação de ofício e os oficiais mecânicos que zelavam por seu
perda do compromisso da irmandade durante o incêndio que se seguiu ao culto em Lisboa ao terreno das curiosidades. O arquivista pode ter sido o
terremoto de 1755. A notícia transcrita pelo diretor do Arquivo Municia; principal agente desta corruptela. Mas, deve-se buscar na leitura ingénua
\, no primeiro volume dos Elementos, acompanha realmente o regula? dos autores olisiponenses e na linha de investigação que adotaram as
\mento da corporação de ofício, contudo não afirma em tempo algum quej grandes matrizes deste equívoco que atravessou um século.
a irmandade de São Jorge permaneceu sem compromisso indefinidamen- Ribeiro Guimarães também registrou a mesma notícia ao tratar da
te. Entretanto, os pesquisadores compreenderam assim o texto. festa do Corpo de Deus na capital portuguesa, vinte anos após Freire de
Involuntariamente, Freire de Oliveira foi o maior propagador da Oliveira publicar pela primeira vez a referida fonte. O funcionário da
inexistência desta fonte, posto que a coletânea organizada para comemo- Biblioteca Nacional não foi exatamente um olisipógrafo. Porém, insere-
rar o centenário do Marquês de Pombal correu de mão em mão, desde -se, como o arquivista da Câmara Municipal e o próprio Júlio de Casti-
sua primeira edição. Em 1884, o próprio Júlio de Castilho enviou ao lho, na segunda geração do Romantismo português. Isto é, entre os auto-
arquivista uma carta cumprimentando-o pelas "vinte três cadernetas" res que, influenciados pelo enciclopedismo das luzes, deixaram de se
recém-impressas. Entusiasmado com o lançamento, elogiou-o pelas "eru- ocupar apenas com os acontecimentos do Estado, com os passos da famí-
ditas anotações", declarando que o tinha como um dos seus "mais lia real e passaram a discutir em jornais e revistas um conceito de nação.
authenticos, e mais illustres informadores histórico-literários", e comuni- Em busca do "sentimento arqueológico popular", publicaram em fascícu-
cou-lhe que tencionava aproveitar na sua obra Lisboa Antiga, em vias de los temas da história geral, anedotas, viagens, filosofia, moralidades,
publicação, muitas notícias veiculadas ali5. poesias, usos e costumes, sentenças e antiguidades do povo português7.
Júlio de Castilho não mentiu. No volume intitulado Bairros Orien- A miscelânea que deu origem ao Summario de Varia Historia, de
tais, registrou sua visita ao "celebérrimo São Jorge" na igreja da fregue- Ribeiro Guimarães, em 1874, compõe-se de oito volumes que tratam de
sia de Santa Cruz do Castelo, no dia 12 de Junho de 1884, e descreveu ji narrativas, lendas, biografias, descrições de templos e monumentos,
sua emoção ao surpreender, "com olhos de arqueólogo e de bom lisboe- i1 estatísticas, costumes civis, políticos e religiosos de outras eras. A obra
ta", "o ensaio semi-religioso, semi-teatral", horas antes da saída do santo abrange todo o território luso e encerra um dos estudos mais consciencio-
no préstito do Corpo de Deus. Para esclarecer aos leitores que aquela sos sobre a história da procissão do Corpo de Deus. Neste ensaio, Ribeiro
"reunião exclusivamente democrática" remontava ao tempo dos primei- Guimarães se vale da documentação municipal disponível para historiar o
ros reis portugueses e traduzia um "sentimento arqueológico popular", o evento e para resgatar as fases do préstito em diversas cidades portugue-
fvisconde recorreu à notícia histórica anexada ao Novo regimento dó sas. Cabe dizer, todavia, que constata mais do explica. Ao deter-se em
Estandarte de São Jorge, publicado por Freire de Oliveira nos Anais do
-Lisboa, informa aos desavisados que a presença de São Jorge no cortejo
Município de Lisboa (1857) e reeditado nos Elementos para a História .
era uma "recordação do valoroso e insigne mestre de Avis" e que a ban-
do Município de Lisboa (1882). Com base neste material, narrou a ori- /
deira (corporação) do santo era formada de gente "muito honrosa", pois
gem do culto a São Jorge em Portugal, a fundação da paróquia sob a ;
era "cláusula indispensável para a admissão de qualquer homem nos res-
invocação do mártir em Lisboa e informou que os homens dos ofícios de :
pectivos ofícios de sua irmandade, saber ler e escrever bem". Por fim, em
ferro e fogo eram os responsáveis pela guarda de sua imagem. Para dar;
um breve parágrafo, declara para depois silenciar: "só uma cousa
crédito à exposição, destacou que a fonte, composta para suprir outra:
afeia[vá] a sua história', conduzia os penitenciados nos autos-de-fé, pos-
análoga incendiada no terremoto, era uma das "mais genuínas para a his-
to que nestes actos não ia o estandarte de S. Jorge, mas a irmandade ia
tória do culto a São Jorge"6. i
precedida da cruz"8.
5 Carta do Exm.° Sr. Visconde de Castilho dirigida ao coleccionador dos "Elementos para
a História do Município de Lisboa". OLIVEIRA, Freire Eduardo. Ibidem, 1885. Tomo 2, 'TORGAL, Luís Reis. "Antes de Herculano...", in MENDES, José Maria Amado et alli.
p. IV. História da História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 31.
6 CASTILHO, Júlio de. Lisboa Antiga - Bairros Orientais. Lisboa: S. Industriais da Câma- 8 GUIMARÃES, J. Ribeiro. Summario de Varia Historia - narrativas, lendas, biogra-
ra Municipal de Lisboa, 1938, vol. 12, p. 100. 2.° edição revista, ampliada e com anota- phias, descripções de templos e monumentos, estatísticas, costumes civis, políticos e
ções do Engenheiro Augusto Vieira da Silva. religiosos de outras eras. Lisboa: Casa de Rolland & Semiond, 1974, vol. 4.
20 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 21

O comentário de Ribeiro Guimarães sobre o informe extraído do Enquanto Vieira da Silva mapeava o solo e o subsolo lisboetas, loca-
Novo regimento da corporação de ofícios de ferro e fogo expressa um lizando antigas plantas- urbanas e termas romanas, Pastor de Macedo
desconforto que revela outra das razões que levaram os estudiosos portu- revisitava templos, pessoas e lugares em Lisboa de lês a lês e Ferreira de
gueses a negligenciar o estudo dessa irmandade, mas a valorizar a parti- Andrade historiava os Palácios Régios, dividindo com Roberto Dias Cos-
cipação de São Jorge na festa do Corpo de Deus. Embora Alexandre Her- ta o interesse pelas freguesias de Lisboa.
culano já tivesse trazido a público os três volumes da História da Origem A eleição de uma unidade administrativa da Igreja como campo de
e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1857), nenhum his- investigação e o encontro com as fontes retidas em seus arquivos foi, de
toriador coevo ou posterior ao mestre atreveu-se a abordar novamente o fato, um avanço. Trouxe à tona as confrarias nascidas nos limites de cada
tema na sequência dos anos. As palavras do autor do Summario de Varia paróquia, estimativas do número de fogos em cada centúria, pequenos
Historia não deixam dúvidas de que sua geração reconhecia na Inquisi- relatos sobre seus moradores, entretanto não deu azo a nenhum estudo
ção um capítulo vergonhoso da história lusa. Como a imagem da irman- substantivo sobre quaisquer destas questões. A bem da verdade, a obra de
dade de São Jorge estava associada diretamente às atrocidades do Santo Dias Costa sobre A Paróquia de São Jorge de Lisboa e a de Ferreira de.;
Ofício, permaneceu em parte ligada à face ignóbil do passado lusitano. Andrade sobre A freguesia de Santa Cruz da Alcáçova de Lisboa consti-|
Todavia, como a figura de seu orago e protetor recordava o esforço e a tuem um amplo repositório de informes, exatamente como a obra do\
tenacidade dos primeiros príncipes, reafirmando a tese do próprio Hercu- mestre Júlio de Castilho.
lano de que o reino formara-se através da revolução e da conquista9, O vício em recorrer às coletâneas documentais consagradas havia
todos os estudos concentraram sua atenção para a presença de São Jorge mais de uma geração e uma abordagem essencialmente descritiva condu-
na principal procissão portuguesa em detrimento de seus devotos. ziram a um subaproveitamento dos fundos paroquiais e das fontes relati-
O peso dos próprios mitos e a necessidade de sublinhá-los para rea- vas às irmandades que estes pesquisadores localizaram. Dias Costa con-
firmar um discurso que costurasse as bases de uma identidade nacional sultou livros de obrigações e normas de partilha do cartório da igreja de
repercutiram frontalmente no perfil da historiografia olisiponense. As São Jorge de Arroios e teve acesso aos estatutos de algumas confrarias
marcas deixadas na topografia e na toponímia de Lisboa, no período situadas nos limites da paróquia, como a dos Homens Cegos do Menino
muçulmano e após a Reconquista cristã, as sucessivas alterações no tra- Jesus e a do Santíssimo Sacramento. Mas restringiu-se a historiar suas
çado da muralha medieval que envolvia a cidade, a formação de fregue- fundações e a comentar circunstancialmente seus compromissos. Ocu-
sias intra e extramuros e a evolução da arquitetura tornaram-se os temas pou-se antes em datar as origens do culto ao Corpo de Deus, ao orago da
preferenciais da olisipografia. paróquia, descrever sua sede, comentar a disposição dos altares, as datas
A obra de Vieira da Silva traduziu muito bem este espírito. Em e os gastos com suas reformas, ignorando solenemente o perfil dos devo-
1898, motivado pelas imprecisões contidas na Lisboa Antiga de Júlio de tos do lugar. Neste sentido, acresceu muito pouco aos trabalhos realiza-
Castilho, o engenheiro publicou o resultado de seu estudo sobre O Caste- dos por Ribeiro Guimarães, Júlio de Castilho e Gomes de Brito, seus
lo de São Jorge, no qual reconstituiu a história do castelejo e recompôs principais interlocutores11.
parte a parte as alterações feitas em suas portas e barbacãs, com base em Ferreira de Andrade não fez diferente quando se deteve na freguesia
plantas originais, crónicas régias, achados arqueológicos e seus conheci- de Santa Cruz do Castelo (de São Jorge). Lançou mão da mesma aborda-
mentos de Engenharia10. O livro inaugurou uma série de monografias e gem utilizada por Dias da Costa. Recorreu aos estudos já consagrados de
artigos do autor sobre a arquitetura militar e defensiva da capital e sobre Vieira da Silva e Júlio de Castilho e entremeou aqui e ali alguns dados
as construções erguidas no seu entorno. Neste conjunto, destacam-se extraídos dos livros paroquiais, dando a conhecer a vida de um ou outro
A Cerca Moura de Lisboa (1899), As Muralhas da Ribeira de Lisboa morador e algumas doações à igreja do Castelo, para reforma do templo
(1900) e a Cerca Fernandina (1948-1949). após o terremoto. Deteve-se na origem do culto ao santo que dá nome à
alcáçova e incluiu um breve comentário sobre a irmandade de São Jorge.
Embora tenha localizado as atas de algumas reuniões dos irmãos depois
9 CATROGA, Fernando. "Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico", in MEN-
DES, José Maria Amado et alli. Ibidem, p. 71.
10 SILVA, Augusto Vieira da. O Castelo de São Jorge. Lisboa: Tipografia da Empresa 11 Cf. COSTA, Roberto Dias. A Paróquia de São Jorge da Cidade de Lisboa. Lisboa:
Nacional de Publicidade, 1937, 2." edição. 'Sociedade Industrial de Tipografia, 1939, pp. 23, 26 e 55.
22 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 23

\o cataclismo, Ferreira de Andrade reconstituiu o histórico da associação ciado tanto denuncia o desconhecimento do teor das fontes publicadas
j através da famigerada notícia publicada por Freire de Oliveira e identifi- pelo advogado, como evidencia a ausência de trabalhos que se ocupem
cou o Novo regimento do Estandarte de São Jorge como o regulamento das corporações de mesteres e do universo religioso dos oficiais mecâni-
'da irmandade, quando, na verdade, a fonte publicada nos Elementos trata cos. São imprecisões que demonstram como o estudo das confrarias por-
das regras que regiam a corporação de ofício e não das normas da asso- tuguesas é ainda incipiente; sobretudo, quando se considera a pluralidade
i ciação confraternal a que deu origem12. Em resumo, confundiu uma fonte documental dos arquivos portugueses e o legado da história local, que, se
com outra, instaurando uma confusão que até o presente não foi desfeita. não realizou grandes análises sincrônicas ou diacrônicas, deixou de
Pelo contrário, foi reafirmada pelos poucos historiadores que se propuse- herança indícios preciosos e temas a tratar.
ram a se aproximar do mundo ainda insondado das irmandades lisboetas, Teresa Rodrigues foi sensível ao apelo das fontes paroquias semi-
apesar de Franz-Paul Langhans ter fornecido uma imensa contribuição -aproveitadas por seus predecessores e reconheceu no rol dos confessa-
para desfazer este equívoco. dos, nos registros de óbitos, de casamento e batismo um caminho profí-
Bacharel em Direito, Franz-Paul de Almeida Langhans coligiu e cuo para desvendar o cotidiano dos lisboetas do passado, os fluxos
publicou, entre 1943 e 1946, os regimentos de todas as corporações de migratórios que justificaram a macrocefalia de Lisboa e evidenciaram a
ofício de Lisboa e todos os acrescentamentos (emendas) feitos a estes sua afirmação como capital económica, política e cultural de Portugal, no
regulamentos que se encontravam em posse da Câmara Municipal. A início dos Tempos Modernos. Situada na fronteira entre a história social
coletânea abarca a documentação das associações de mesteres desde o e a demografia histórica, a obra da historiadora alinha a olisipografia aos
século XVI até o século XVIII e constitui uma das principais fontes de grandes temas do saber histórico. Ao encontrar Lisboa numa perspectiva
consulta para a história dos oficiais mecânicos da capital portuguesa. A de longa duração, inova na forma e revela questões de fundo que fazem
despeito de ter agrupado textos inéditos, nenhum olisipógrafo propôs-se a jus à importância desta cidade, que foi o epicentro de um Império Ultra-
discutir seu conteúdo à época e a bem da verdade, até o presente, sua marino e o palco principal da crónica régia e republicana.
única análise é assinada por Marcelo Caetano, que prefaciou os dois Em Cinco Séculos de Quotidiano, a professora da Faculdade de
volumes da edição e, à guisa de introdução, situou espacial e temporal- Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa apresenta
mente estas fontes e com o auxílio de cartas provenientes da chancelaria uma síntese de suas pesquisas sobre as crises de mortalidade na capital,
régia procurou dar sentido ao conjunto da obra e apontar alguns traços do nos séculos XVI e XVII, sobre o nascimento e a morte na Lisboa oito-
modelo de organização dos trabalhares urbanos da Lisboa Moderna13. centista e sobre o olhar dos cronistas estrangeiros para a cidade no sete-
A falta de apetite científico para perscrutar esta vastidão documen- centos15. Trata-se, é certo, de um livro de divulgação, mas também é cer-
tal, que, por ironia, veio ao mundo para embasar um dos projetos come- to que rompe com a construção do dia-a-dia lisboeta inaugurado por
morativos do Estado Novo, infundiu a reprodução de um erro crasso: o Castilho e revisitado por Fernando Castelo-Branco, em seu livro Lisboa
de tratar indistintamente bandeiras e irmandades e, por conseguinte, o de Seiscentista16.
i confundir os regimentos da. corporação com os compromissos das confra-; A obra de Teresa Rodrigues é, entretanto, rebento de uma empreita-
'Vias de ofício. Ferreira de Andrade não foi o único a cometer este equívo- da solitária. A historiadora compartilha os índices de natalidade e os
co. Os poucos autores portugueses da atualidade que se propuseram a níveis de nupcialidade que averiguou, discute o modelo familiar à luz das
estudar as associações de entreajuda na Época Moderna, recorrentemente relações de género e explora os laços de compadrio na área urbana. Mas,
citam em suas notas de rodapé a coletânea de Franz-Paul Langhans como em contrapartida, não tem interlocutores que lhe informem sobre as ati-
uma fonte relativa às irmandades de ofício14. Este tratamento indiferen-
de Santa Maria Madalena de Montemor-o-Velho: subsídios para a sua história", in
12Cf. ANDRADE, Ferreira. A freguesia de Santa Cruz da Alcáçova de Lisboa. Lisboa: Confrarias, Religiosidades e Sociabilidades: sécs. XV a XVIII. Lusitânia Sacra - revis-
Ed. Câmara Municipal, 1954, p. 38. ta do centro de estudos de história religiosa, Universidade Católica Portuguesa, 1995.
2." série, tomo 7, pp. 18 e 61.
13 LANGHANS, Franz-Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos - subsídios para a
sua história. Com um estudo do Prof. Dr. Marcelo Caetano. Lisboa: Imprensa Nacio- 15 RODRIGUES, Teresa. Cinco Séculos de Quotidiano - a vida em Lisboa do século XVI
nal, 1943-1946, 2 vols. aos nossos dias. Lisboa: Ed. Cosmos, 1997.
16 CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa Seiscentista. Lisboa: Livros Horizonte, 1990,
"t Cf. PENTEADO, Pedro. "Confrarias Portuguesas da Época Moderna: problemas, resul-
tados e tendências da investigação" & SILVA, Mário José Costa da Silva. "A Confraria l.1 edição em 1956.
Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 25
24

vidades profissionais da Lisboa Moderna. Não conta com nenhum autor po de investigação da história social e da história cultural, pois privilegia
que lhe diga sobre a trajetória dos muitos oficiais mecânicos que viu nas- os traços comuns de um grupo social, as relações de oposição e de
cer ou morrer ou que lhe apresente o rosto dos homens e mulheres que dependência entre seus indivíduos, e considera os mecanismos de classi-
alimentaram as levas migratórias que descreve. Os habitantes dos bairros ficação e hierarquização que orientaram suas práticas cotidianas,jj)s sím-
populares da zona central da cidade, sejam a Alfama ou a Mouraria, são bolos e os mitos que integravam seu universo de representações17 J
apenas os aguadeiros e os serviçais da nobreza referidos por Castelo- {$. opção deliberada por uma história que revelasse o rosto dos ofi-
-Branco. Nos cinco séculos de vida lisboeta que examina não há pescado- ciais mecânicos que compunham a irmandade de São Jorge, que aden-
res, ferreiros, latoeiros ou sapateiros. Há, é verdade, barbeiros e cirur- trasse os espaços em que habitavam e trabalhavam, que desvendasse a
giões, mas apartados dos sangradores como se fossem ofícios díspares. teia de relações sociais em que estavam inseridos, obrigou à procura des-
Se os oficiais mecânicos não existem neste estudo como sujeitos his- tes mesteirais em vários fundos arquivísticos de Lisboa e de fora da capital7
Este livro ancora-se sobre os três núcleos documentais onde estes
tóricos economicamente ativos e pensantes, tampouco existem como
mesteirais deixaram suas falas registradas, quer como integrantes da cor-
devotos, como criadores ou recriadores de regras de convívio. Entretanto,
poração de ofício, quer como devotos de São Jorge, quer como vizinhos,
Teresa Rodrigues apresenta São Jorge, orago da bandeira e da irmandade
parentes, companheiros de trabalh§ ou funcionários das instituições
dos homens de ferro e fogo, ricamente adornado, montado sobre um cor-
régias às quais estavam vinculados.^ reconstituicão desta face do passa-
cel, roubando a atenção dos espectadores na procissão do Corpo de Deus,
e noticia que neste cortejo, atrás de sua montaria, seguiam as confrarias do lisboeta é feita, portanto, através da documentação da Câmara Muni-
de Lisboa. Não diz quais ou quantas eram, sequer que papel exerciam na cipal de Lisboa, das fontes do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa e do
vida da cidade ou quem afinal financiava a aparição do santo no séquito e Novo Compromisso da irmandade de São Jorge que, ao contrário do que
se costuma pensar, existe e permanece sob o abrigo do Museu-Biblioteca
por que o fazia. Neste sentido, é mais lacónica do que quaisquer de seus
da Casa de Bragança, em Vila Viçosa, no Alentejo^
predecessores. Mas seu contributo noutras matérias é incontestável e
A localização deste precioso manuscrito setecentista entre os livros
deve-se com justeza sublinhar sua produção.
que pertenceram ao último rei português, D. Manuel II (1889-1932), não
V_Com efeito, pode-se afirmar, sem cometer qualquer exagero, que a surpreende. (São Jorge passou a ser objeto de um culto dinástico depois
mão-de-obra masculina e livre que construiu Lisboa e a reconstruiu de D.João I (1357-1433) elegê-lo advogado do exército lusitano, no
depois do terremoto foi esquecida pela historiografia lisboeta, quiçá por- ensejo da batalha que opôs portugueses e castelhanos nos campos de
tuguesa. Salvo o esforço muito meritório de Franz-Langhan e o conclame Aljubarrota, em 138$) A vitória lusa nesta peleja empurrou para o futuro
de Marcelo Caetano nos idos da década de quarenta, destacando a rele- a União Ibérica e garantiu a Portugal um rei nativo, jí fim de perpetuar a
vância deste filão ainda inexplorado pelos trabalhos académicos, quase memória deste feito, o primeiro monarca de Avis introduziu o mártir na
nada se disse sobre o temaA procissão mais importante da Igreja portuguesa, fê-lo patrono e defensor
A carência de uma pesquisa que explicasse a devoção dos oficiais do Reino e entregou os cuidados de seu culto aos mesteirais cujos ofícios
mecânicos por São Jorge e/ou que revelasse o vínculo entre esses mestei- eram imprescindíveis ao funcionamento das tropas. Ou seja, aos ferreiros,
rais e o Santo Ofício deixou encoberto o processo de transformação de ferradores, barbeiros, cutileiros, armeiros, aos quais foram se juntando^na
um mártir, que era alvo de um culto dinástico, em uma entidade popular e sequência dos anos, outros mesteirais que lidavam com ferro e com fogoj
deformou certas conclusões sobre o alcance do ideário inquisitorial entre Os reis de Avis zelaram de perto pela observância desta devoção e
os trabalhadores urbanos da sociedade lusa do Antigo Regime. transformaram-na em uma tradição, mantida mesmo durante o domínio
(Oficio e Sangue tem o objetivo de romper este silêncio que apartou filipino e reavivada com toda pompa e circunstância com a dinastia de
os oficiais mecânicos da história portuguesa. E um estudo sobre a irman- Bragança. O primeiro capítulo deste livro, "São Jorge de Boa Memória",
dade de São Jorge de Lisboa. Circunscreve-se entre os séculos XVI e recupera justamente a génese desta devoção entre os reis portugueses e
XVIII e analisa o modelo de organização confraternal desenvolvido à
sombra da devoção a São Jorge e a influência deste modelo sobre o perfil
dos homens que exerciam os ofícios de ferro e fogo. Ocupa-se dos sabe- 17 LEQUIN, Yves. "História Social", in BURGUIERE, André (org.). Dicionário das Ciên-
res e crenças que integraram o sistema de valores destes mesteirais e que cias Históricas. Rio de Janeiro: Imago, p.717; CHARTIER, Roger. A História Cultural
- entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 23.
forjaram sua identidade social. Insere-se, portanto, na interseção do cam-
26 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 27

analisa como e porquê a imagem deste mártir, um santo de "canonização pendência e a rivalidade entre eles e demonstra-se como a organização
literária", colou-se ao imaginário político luso, transformando-se num confraternal formada ao redor do culto a São Jorge impôs-se às assem-
ícone de culto para os monarcas lusitanos e numa entidade popular entre bleias da bandeira como um fórum legítimo para controlar a concorrência
os demais segmentos da sociedade. Para tanto, cotejam-se as três varian- entre os ofícios e a representação política de cada mester, no âmbito do
tes do mito de São Jorge que circularam na Idade Média e demonstra-se concelho.
porque a legenda em que o santo enfrenta o dragão traduziu, como Os ofícios líderes da bandeira de São Jorge tiveram um papel deter-
nenhuma outra, o caráter guerreiro, colonizador e civilizador da dinastia minante neste processo. No exercício do mester mais afamado do estan-
dos Descobrimentos. Com base na correspondência mantida entre os reis darte, barbeiros de barbear e de guarnecer espadas estiveram à frente das
e os concelhos e na análise comparativa dos regulamentos das procissões trinta e uma profissões que compunham a bandeira de São Jorge no sécu-
do Corpo de Deus de diversas cidades portuguesas, demonstra-se como a lo XVI e conservaram esta prerrogativa mesmo após a reforma dos ofí-
realeza perenizou no tempo sua destinação à glória e à conquista, ao unir cios, do século XVIII. Autores dos regimentos mais antigos da corpora-
o santo às datas de maior vulto do calendário religioso e ao ligá-lo à ção, os barbeiros foram os primeiros a converterem suas faltas em cera
memória afetiva das festas de Corpus Christi de cada concelho. para o santo em seus regulamentos e interferiram decisivamente no desti-
A presença do padroeiro na procissão do Corpo de Deus conservou no da corporação, porque foram os grandes mentores das regras que
um padrão de representação que suplantou distâncias entre uma comarca regiam a associação de entreajuda dos mesteres de ferro e fogo.
e outra, mas comportou diferenças regionais.|Embora o "estado" de São "Homens de Compromisso" demonstra, a partir da análise do Novo
Jorge fosse composto invariavelmente dos homens de ferro e fogo de Compromisso da irmandade de São Jorge, a importância do culto ao
cada lugar, nos municípios massacrados pelos cercos castelhanos, o mártir para os oficiais mecânicos da bandeira. Revela a variante do mito
investimento para sua aparição suplantou os demais. Eis o caso de Lis- de São Jorge evocada pelos irmãos, as cerimónias da cidade de que
boa, cidade em que o santo emprestou seu nome ao paço régio e tornou- faziam parte e o papel desempenhado pelos barbeiros na elaboração dos
-se orago de uma corporação de ofício e de sua irmandadej A análise do estatutos desta confraria, que facultava àqueles que eram familiares do
relato de viajantes estrangeiros, dos cronistas régios e os estatutos do Santo Ofício o livre acesso à associação confraternal.
Novo regimento do Estandarte de São Jorge permite que se comprove a A facilidade concedida aos cristãos-velhos para o ingresso na
longevidade da devoção ao mártir na capital portuguesa e os cuidados irmandade acabou encorajando, na sequência dos anos, à candidatura dos
dos oficiais de ferro e fogo para garantir a participação do santo neste oficiais de ferro e fogo à milícia do Tribunal. Com base no Termo assi-
cortejo cívico-religioso. nado pelos irmãos que participaram da redação do Compromisso e nos
i,O desvelo dos irmãos de São Jorge de Lisboa com o padroeiro processos de habilitação ao cargo de familiar da Inquisição de Lisboa,
decerto evidencia o apego devocionista ao mártir. Porém, toma-lo como reconstitui-se a trajetória de alguns dos mesteirais da corporação, desde a
uma expressão religiosa desprovida de qualquer outro interesse numa fundação da irmandade até à elaboração dos estatutos da confraria. Reve-
bandeira que reunia mais de mil homens no século XVI, que enfrentou o la-se a identidade, a parentela, a procedência geográfica desses irmãos de
crescimento populacional da capital e as vicissitudes de um terremoto, São Jorge, demonstra-se o papel da irmandade na construção de sua iden-
seria reduzir em demasia o papel de um orago protetor para uma associa- tidade social e religiosa e, mediante o tratamento quantitativo dispensado
ção confraternal numerosa e de ingresso compulsório. / às habilitações, observa-se o nível de inserção de cada ofício no quadro
O capítulo "Homens de Ferro e Fogo" recupera a vida destes oficiais de familiares do Santo Ofício.
mecânicos em sua lida diária, discute a hierarquia entre as profissões da (A supremacia numérica e a constância de candidaturas dos barbeiros
corporação e identifica as principais tensões que permeavam seu cotidiano. de barbear ao Tribunal, ao longo do período, denotam uma relação distin-
Com base nos percentuais extraídos dos recenseamentos quinhentistas, ta entre estes profissionais e a Inquisição. Com base na análise das peti-
nomeadamente o de João Brandão de Buarcos e Cristóvão de Oliveira, na ções que estes homens encaminharam ao Tribunal demonstra-se que estes
análise dos regimentos de cada profissão, de seus acrescentamentos, das oficiais mantinham um vínculo duplo com a Inquisição: além de familia-
normas que regiam o estandarte e dos alvarás régios concedidos à irman- res, aluavam como barbeiros e sangradores em seus cárceres?!
dade, localiza-se a sede da confraria, os redutos da bandeira nas fregue- |O domínio da técnica de cura mais difundida na Idade Média e nos
sias da cidade, descreve-se as técnicas peculiares a cada ofício, a interde- Tempos Modernos e a habilidade conferida por um saber que se encon-
28 Georgina Silva dos Santos

trava nos limites entre as artes mecânicas e as artes liberais garantiu aos
barbeiros sua liderança no corpo de ofícios da corporação e acabou por
associar a imagem da irmandade à qual pertenciam às instituições régias
onde prestavam atendimento médico e às cerimónias que patrocinavam,
como os autos-de-fé realizados pelo Santo Ofícior. jSubmetidos nestes
espaços a normas disciplinares estranhas às regras originais da corpora- CAPÍTULO I
ção, os barbeiros foram os principais agentes na subtração da distância
entre essas casas e as culturas de ofício do estandarte de São Jorge.
SÃO JORGE DE BOA MEMÓRIA
O último capítulo deste estudo demonstra como os barbeiros leva-
ram para o interior da agremiação os princípios que norteavam as regras
regimentais das instituições e porque os demais mesteirais da bandeira
assimilaram este discurso e reproduziram esta prática. "Mestres na Arte "Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge, para
que meus inimigos tenham mãos e não me toquem. Tenham
de Sangrar" recupera o tipo de serviço oferecido pelos barbeiros à popu-
pés e não me alcancem. Tenham olhos e não me vejam".
lação lisboeta e identifica as tensões que enfrentaram e construíram por
sobreviverem de uma técnica que paulatinamente passou às mãos dos Oração a São Jorge - domínio público.
cirurgiões. Com base nos regulamentos de duas instituições régias onde
aluaram em larga escala, o Hospital Real e o Santo Ofício, nas habilita-
ções que encaminharam à Inquisição para exercerem a função de barbei- Presente no Ocidente e no Oriente Próximo desde a Antiguidade
ros dos cárceres, nas petições enviadas pelos cirurgiões para trabalharem Tardia, a devoção aos santos disseminou-se à sombra da experiência reli-
nestas instituições e nos tratados sobre a arte de sangrar do século XVII giosa dos primeiros cristãos e ganhou imensa força na Era Medieval,
demonstra-se a inserção dos líderes da bandeira de São Jorge no principal quando os governantes laicos anuíram à religião católica e legislaram a
centro hospitalar de Lisboa, nas prisões, e a evolução da rivalidade vela- seu favor, coibindo a expressão religiosa de origem pagã. Ligadas inti-
da que mantinham com os cirurgiões, dentro e fora destes núcleos. Utili- mamente à trajetória do credo católico e ao projeto eclesiástico de uni-
zando os requerimentos que os presos enviaram ao Tribunal, discute-se o versalizar o cristianismo, sua génese e evolução orientaram a construção
atendimento que prestavam aos sentenciados do Santo Ofício e sua do conceito de santidade, formulado e reformulado pela Igreja, ao longo
importância para avalizar a comutação ou o perdão das penas dos conde- de sua história. Mas, se o seu berço encontrou-se na redefinição da rela-
ção com a morte pretendida pelo catolicismo, seus ícones estiveram
nados.
sujeitos à cena política, às conjunturas económica e social, expondo-se a
(jinfim, Oficio e Sangue resgata uma face da vida lisbonense maltra- diversos usos e leituras em resposta à marcha do tempo.
tada pela historiografia. Seus protagonistas são oficiais mecânicos, egres- Agentes capazes de encurtar a distância entre o sagrado e o profano,
sos em sua maioria de fora da capital, homens que a demografia histórica entre o ápice e a base da sociedade, portanto, em relações que se pautam
lusa dilui num coletivo anónimo e sem forma, porque insiste em afirmar pela verticalidade e encerram, frequentemente, interesses divergentes, os
que as vagas migratórias só podem ser reconstituídas com as fontes lega- santos circulavam em pólos culturais distintos no Ocidente cristão.', Inte-
das pelo século XIX. São gente simples, devotos de um santo que não se gravam tanto o sistema de crenças das elites laica e religiosa, como aque-
sabe ao certo se existiu, mas a quem confiavam sua proteção e sua sobre- le dos segmentos populares rurais e urbanos, graças ao seu caráter dialó-
vivência material. São criaturas de seu tempo, ora inconformadas com o gico e à função medianeira que lhes era atribuída^ \nstrumentos capazes
pouco prestígio imputado aos trabalhadores manuais, ora pactuantes do de sublimar diferenças sociais e superar diversidades regionais, mantive-
discurso excludente e perverso da Inquisição. Atento ao ritmo das con- ram, desde tempos primevos, uma união estreita com o espaço físico
junturas e aos valores que construíram a estrutura mental do Antigo onde seus restos mortais estavam depositados, ou onde a invocação de
Regime português, este estudo analisa o alcance das tecnologias discipli- seus nomes havia operado milagres, beneficiando a comunidade. Assim,
nares desenvolvidas pelo Estado luso e seu impacto no modelo das asso- ligaram-se às cidades e às monarquias que detinham sua jurisdição, aos
ciações de ofício da Lisboa Moderna. J clérigos de uma abadia e aos grupos leigos organizados em confrarias^
30 Georgina Silva dos Santos Oflcio e Sangue 31

Na Baixa Idade Média portuguesa, a devoção aos santos foi expres- coes com o destino da alma, entregue ao sono eterno da morte, mas
siva e constituiu, como em toda a Europa, um eixo em torno do qual gra- temendo que os manes voltassem para perturbar os vivos, a cada ano, em
vitava a piedade popular. Por força de seus reis e rainhas, e em razão do fevereiro, realizavam as parentálias, ocasião em que levavam oferendas
apelo da própria Igreja, homens e mulheres entregaram-se ao cuidado de às tumbas dos membros de suas famílias1. Esta cerimónia fúnebre inte-
seus cultos. O percurso destas ações devocionistas, atrelado à cadência grava o cotidiano, inscrevia no tempo presente a afirmação do inevitável,
das crenças, a estímulos de revitalização repentina ou à aparente timidez atenuando a angústia que precede o pesar. Mas era, antes, a asserção das
do que é perene, definiu as diretrizes na escolha dos intercessores em cir- circunstâncias do que uma expectativa de remissão2. O contato entre
cunstâncias difíceis, fossem cataclismos do espírito ou tragédias coleti- vivos e mortos restringia-se aos dias de sacrifício propiciatório, pois os
vas. despojos funerários eram depositados fora das cidades, distantes do con-
Eclipsados por uma conjuntura favorável a outras evocações, ou vívio diário3.
convocados pela mesma motivação, os santos padroeiros sustentaram a Corrente no espaço geográfico onde a palavra cristã se alastrou, os
aproximação entre a realeza e seus súditos e entre a monarquia e a cris- ritos fúnebres pagãos adquiriram outra perspectiva quando a rígida fron-
tandade. Eleitos segundo os intentos de cada reinado, mas preservados teira que apartava a vida presente e o sono eterno rompeu-se pela pro-
segundo o projeto de cada dinastia, formaram uma plêiade de advogados messa de ressurreição. Associando aquelas práticas antigas à mensagem
celestes, em que cada patrono, portador de atributos específicos, consti- da Boa Nova, os cristãos mantiveram, desde os tempos primevos, uma
tuiu um dos registros da atuação política régia, incorporando-se à sua profunda veneração por seus entes falecidos, justificada pela esperança
memória. na ressurreição da carne. Reunindo-se à volta das tumbas e sepulturas
i A devoção a São Jorge em território lusitano insere-se neste quadro. para externar sua dor diante da perda de parentes e amigos, cumulavam
Eleito protetor e defensor de Portugal no início do primeiro reinado da de cuidados seus restos mortais e organizavam ágapes ao pé de seus
dinastia de Avis, o santo juntou-se à crónica régia destes dias, incrustou- sepulcros. A crença em uma vida no além-túmulo, renovada periodica-
-se na memória afetiva lusa, através das cerimónias de cunho religioso e mente, unia vivos e defuntos em uma comunhão perene, subtraindo da
cívico, e vinculou-se à toponímia das conquistas, quando os navegadores morte a face repugnante que mantivera entre os romanos e inspirara seus
portugueses ganharam os mares e exibiram, diante dos povos, a feição ritos fúnebres para domá-la.
guerreira e conquistadora de sua liderança e seu projeto colonizador e O conteúdo escatológico da mensagem cristã, assentado sobre a
civilizador. Cultuado pelos católicos desde a Época Antiga, São Jorge espera de um juízo final em que o joio e o trigo seriam apartados com
conservou, ao longo das eras, o papel atribuído aos mártires pela piedade base na profissão de fé de cada homem ou mulher, impulsionou a apro-
popular. \. Proteger e defender: o papel atribuído aos mártires pela piedade ximação com os cristãos mortos, senhores de uma história extraordinária.
Identificados pelo menosprezo da própria integridade física, ao defender
os princípios da fé cristã, os mártires distinguiram-se por sua excepciona-
lidadè/jSe todos foram santificados e chamados a serem santos por inte-
popular grarem a assembleia de fiéis4, estes heróis e heroínas demonstraram sua
adesão ao Novo Testamento resistindo aos suplícios impostos àqueles que
A fé na ressurreição dos corpos, propagada pelo discurso cristão, propagavam o Evangelho, nos dias em que o culto oficial opunha-se ao
injetou no circuito de crenças da Antiguidade Tardia outra postura diante cristianismo. Haviam combatido o bom combate e, por isso, conquistado
da morte. A promessa de um reino nos céus para os bem-aventurados e a vida eterna. Seguindo a exortação de São Paulo, deram o seu testemu-
justos após o passamento ofereceu uma resposta distinta às leis impostas 1 SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de Mitologia Greco-Latina. Belo Horizonte:
pela natureza e promoveu uma atitude semelhante em relação aos defun- Itatiaia, 1965, p. 200.
tos, cujo culto deu origem a uma elite de desencarnados. 2 VEYNE, Paul. "O império Romano", in VEYNE, Paul (org.). História da Vida Privada -
A prática de celebrar a memória dos mortos não foi, todavia, uma do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 210-216.
invenção do cristianismo. Antes de seu advento, os romanos já juntavam 3 ARIES, Philippe. O Homem diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981,
suas lágrimas ao pranto cadenciado e estrondoso das carpideiras, cul- vol. l, pp. 34-35.
tuando seus antepassados com festins. Não nutriam, é certo, preocupa- 4 (1 Cor. 1-3) m A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
Ofício e Sangue 33
32 Georgina Silva dos Santos

nho de fé (martyria), como Cristo Jesus (martyrêsantos) diante de Pôncio O costume de fazer das ermidas e de seu perímetro a nova morada
Pilatos, numa bela profissão de fé (homologian). Embora todos os cris- dos mortos teve vida longa no Ocidente cristão. Mas o enraizamento des-
tãos devessem dar sua prova de adesão ao_credo, o martírio era uma gra- ta prática teria, por certo, padecido de vivacidade, se em seu nascimento
a crença popular, que distinguia mal a alma do corpo e o corpo glorioso
ça especial, particular, conferida por Deus5. .\s nos mesmos cemitérios dos pagãos, e depois em necró-
do corpo carnal, não insistisse na capacidade dos mártires velarem pela
poles cristãs, os mártires tornaram-se alvo de culto, catalisando as aten- integridade dos defuntos, repelindo os profanadores9.
ções da comunidade, porque logo se passou a crer que os alimentos (À crença no poder protelar e defensor destes cristãos excepcionais
expostos à proximidade de seus corpos, saturados de um poder divino, passou da tradição oral ao suporte escrito quando o clero católico, inspi-
eram imantados com uma benção especial6^ O impacto desta devoção rado pelo culto de suas relíquias, fixou em martirológios e legendas a
repercutiu na topografia das cidades e a antiga antítese que opunha as vida destes santos, para edificar sua memória e promover sua devoção10.
áreas da vida pública àquelas onde estavam os mortos foi suplantada7. Entretanto, não era incomum que as relíquias precedessem o santo e des-
Se o costume antigo fixara o campo funerário nos arrabaldes do sem origem à construção de uma personagem que justificasse a existên-
espaço urbano, o culto aos mártires transgredia os limites impostos ante- cia de um culto. Produzidos com critérios distintos de classificação, con-
riormente, redefinindo sua ocupação e sentido/Convertendo velhas zonas tudo, partes de um mesmo corpo literário, aqueles monumentos da
mortuárias em lugares de veneração, a devoção, nascida da experiência mitologia cristã nasceram no Oriente, ainda na Antiguidade Tardia, e
religiosa dos primeiros cristãos, acabou por reformular o conceito de san- multiplicaram-se no Ocidente, a partir do século V.
tidade e derrubar as barreiras entre um culto privado, restrito a particula- Com características eminentemente populares, tanto por sua proce-
res, e um culto público, extensivo a toda comunidade cristã e sob o con- dência quanto por sua destinação, a legenda era, inicialmente, o relato da
paixão do mártir, que, alheio à precisão histórica, era lido na ocasião de
troleLeclesiástico"i sua festa, isto é, no aniversário de sua morte, dia em que se comemorava
\Q caráter espontâneo desta expressão religiosa fez dos mártires
grandes instrumentojS-xle conciliação entre o culto tradicional dos túmulos sua entrada na corte celeste11. Visava instruir os pregadores na composi-
e a fé na ressurreição^Transforrnou-os, simultaneamente, em agentes de ção dos sermões e unificar uma versão do testemunho de fé legado pelos
domesticação da morte e em suporte de práticas sincréticasTljara que não primeiros santos do catolicismo. Todavia, atinente à própria evolução do
fugissem inteiramente ao seu domínio, a Igreja instituiu em Roma a cáte- conceito de santidade, que traria para o seio da elite de mortos produzida
dra de São Pedro, celebrada no mês de Fevereiro. Deste modo, introduzia pelo catolicismo outras personagens, o termo abrigaria outra acepção no
em seu calendário litúrgico uma cerimónia concorrente aos antigos ritos século XIII e passaria a designar as coletâneas que incluíam, além dos
atos dos mártires, a biografia de fundadores de ordens monásticas, mon-
fúnebres, realizados na mesma data, com o intuito de esvaziar seu sentido
jas, nobres, reis e rainhas canonizados.
original e trazer para o interior do templo o culto nas necrópoles, "pro-
Ocupando-se de matéria semelhante, porém, contendo ou não dados
clamando-se capaz de preservar a memória dos mortos"8.
A veneração aos mártires nem por isso perdeu sua força. A constru- biográficos, os martirológios reuniam uma lista de festas, dispostas em
ordem cronológica com uma rubrica topográfica, fossem locais ou gerais.
ção de basílicas e capelas, próximas aos túmulos que eram motivo de
Enquanto aos primeiros pertenciam o conjunto de festas de uma igreja
adoração, cresceram em número e.tamanho para abrigar seus corpos san-
particular ou de um grupo eclesiástico restrito, os últimos eram compila-
tos e os peregrinos que lá iam ter., O redirecionamento do lugar de culto
ções que encerravam as comemorações religiosas em um nível mais
operado pela Igreja, que se impôs como guardiã de suas relíquias, fez dos
abrangente, tratassem de um reino, um império ou toda a Cristandade12.
templos católicos o núcleo do novo cemitério ad sanctos^

5 MANGO, Cyril. "O Santo", in CAVALLO, Guglielmo. O Homem Bizantino. Lisboa: Pre- 9 ARIES, Philippe, op. cit., p. 37.
sença, 1998, p. 245. 10 DELEHAYE, Hippolyte. Lês Légendes Hagiographique. Bruxelles: Société dês Bollan-
6 GIORDANO, Oronzo. Religiosidad Popular en Ia Alta Idade Media. Madrid: Editorial distes, 1927, pp. 2-3.
Credos, 1983, p. 113. 11 ld. ibid.,pp. 10-11.
7 BROW, Peter. The cult of lhe sainís - ils rise andfunction in Latin Christianity. Chi-
12 DELEHAYE, Hippolyte. "La critique dês martyriologes", in Cinq Leçons sur Ia Mél-
cago: Chicago University Press, 1981, pp, 4-5. hode Hagiographique. Bruxelles: Société dês Bollandistes, 1934, p. 43.
8 BROW, Peter. "A Antiguidade Tardia", in VEYNE, Paul, op. cit., p. 272.
34 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue- 35
'J

Fruto da interação entre a criação anónima popular e o circuito sim, de "um conjunto de crenças e valores que articulava todas as instân-
letrado e erudito, a literatura hagiográfíca ganhou a animação dos sermo- cias do universo, gerando um sentimento de segurança diante das forças
nários que expunham para uma audiência analfabeta, bem como frequen- da natureza e dos mistérios do mundo, como faziam todas as mitologias
tou a mesa dos copistas e a biblioteca dos párocos de aldeia, circulando para as sociedades arcaicas"17. ~;
através da "letra e da voz", em "níveis culturais" diferentes13. Desafiando Inserido em uma mitologia, o mito é um relato sincrônico, por
as distâncias entre os segmentos sociais, as fronteiras entre o rural e o extensão, retém, através de símbolos e figuras de linguagem, o ambiente
urbano e as especificidades dos universos masculino e feminino, a hagio- cultural de sua formação e/ou adoção18. Sujeito a variações, ele integra o
grafia fazia parte de um repertório comum nas áreas que abraçaram o processo histórico e simultaneamente é um nicho onde a própria história
cristianismo no período medieval. Ao veicular as legendas e as festas em se abriga. Se a atmosfera mental dos "mundos arcaicos não chegou até
honra dos santos, tornou-se um dos sedimentos do que Hilário Franco nós dialecticamente nas crenças explícitas dos indivíduos, conservou-se
Júnior definiu como "cultura intermediária", ou seja, o denominador nos mitos, nos símbolos e costumes que, apesar de todo o género de
comum a pólos culturais distintos14. degradação, deixam ver seu sentido original", tenham eles um destino
(Protagonistas das legendas e motivo dos martirológios, portanto, local ou adquiram valências universais 19 .
inscritos no calendário litúrgico, os santos mártires compunham o rol dos \O mito de São Jorge, presente nas legendas e nos martirológios des-
mitos hierofânicos cristãos15. A despeito de terem funcionado como ins- de a Época Antiga, manteve consigo o sentido do lugar de produção que
trumentos da ação evangélica, não eram resultado de uma mitologia cris- o criou, mas também se expôs às adaptações do itinerário que percorreu,
tianizada, inseriam-se em um conjunto diacrônico próprio: a mitologia prestando-se, como todo o discurso, a apropriações'.
cristã. \o destaca o medievalista brasileiro, o cristianismo foi gestado

em um enquadramento mental que se ordenava a partir de estruturas 2. As variantes do mito de São Jorge
míticas. Por isso, tornou-se dependente delas. Por isso, desenvolveu "um
vasto sistema de representações mentais, verbais, gestuais e imagísticas" Conta-se que o culto a São Jorge teve como berço o Oriente Próxi-
que mediavam a compreensão do universo, atribuindo-lhes um sentido. mo e que, nas últimas centúrias da Antiguidade, homens e mulheres cur-
Deste modo, ainda que a teologia medieval tenha oposto história e mito, varam-se à sua devoção. As primeiras referências à sua veneração remon-
'.j/tornando este um relato fantasioso herdado da Antiguidade pagã - tam ao quinto e sexto séculos da era cristã e falam de seus santuários nas
enquanto tentava, através da exegese, racionalizar e historicizar as narra- províncias romanas de Édessa, Tracônia, Tessalônica, Egito, Síria e nas
tivas bíblicas, despindo-lhes de qualquer cunho mitológico —, para os cidades de Atenas e Diáspolis, no caminho de Jerusalém20.
demais cristãos medievais, os poderes mágicos e os dons sobrenaturais, A prática de saudar sua memória e a crença em suas relíquias não se
expressos na legendas e que conferiam aos santos um caráter sagrado, restringiu, porém, aos territórios orientais. No século VI, o culto ao már-
hierofânico, eram verdadeiros16. tir penetrou no Ocidente, atravessou as águas do Mar Egeu e do Adriático
[P cristianismo não foi, portanto, o autor de uma maquiagem que fez e aportou em Roma; vencendo as distâncias impostas pelo mar Tirreno,
dos santos os sucessores dos deuses pagãos, como defenderam alguns, chegou à Sicília. Ultrapassando os limites da Península Itálica, cravou-se
nem tampouco resumiu-se a um conjunto de dogmas que serviu de esteio no interior do continente europeu, chegando à Gália, onde, segundo Hip-
à ideologia da elite laica e religiosa da Idade Média. Tratava-se, outros- polyte Delehaye, foi-lhe erguida uma basílica. Esta trajetória impôs ao
legendário São Jorge e à sua paixão colorações diferentes.
13 LÊ GOFF, Jacques. "Cultura clerical e Tradições Folclóricas na Civilização Merovín-
gia", in Para um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980, p. 207.
14 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1996, p. 35. 17 FRANCO JÚNIOR, Hilário, op. cit., p. 53.
15 Usa-se aqui a expressão de Mircea Eliade, que reúne no termo "hierofania" todos os
18 FRANCO JÚNIOR, Hilário, op. cit., p. 48.
atos de manifestação do sagrado. Cf. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano - a 19 ELIADE, Mircea. Tratado da História das Religiões. Lisboa: Asa, 1994, p. 36.
essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, s/d, p. 25. 20 DELEHAYE, Hippolyte. Légendes Grecques dês Saints Militaires. Paris: Librarie
'6 FRANCO JÚNIOR, Hilário, op. cit., pp. 45-67. Aplhonse Picard et Fils, 1909.
36 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 37

2.1. São Jorge Mártir furaram a cabeça. A seguir, São Jorge foi suspenso, sua cabeça foi posta
sobre um braseiro e introduzida em uma peça de arame. Reconduzido ao
Durante a Alta Idade Média, coexistiram três versões sobre o martí- cárcere, o santo teve outra visão, cuja descrição é omitida. Mas a legenda
rio de São Jorge. A mais antiga tem como base os fragmentos de um tex- revela que, na manhã seguinte, o rei Magencius jurou tornar-se cristão se
to grego, datado da centúria anterior à expansão de seu culto na Europa. São Jorge pudesse transformar em frutos as vinte e duas medidas de
Sem qualquer precisão histórica, o relato apresenta a sequência de atos bebida que se encontravam ali. O milagre se realizou, entretanto Magen-
que conduziram o santo ao martírio, revelando as torturas a que foi sub- cius não se converteu. Fez sacrifícios a Apoio e como recompensa pelo
metido pela adoção do cristianismo em um ambiente em que as autorida- feito, o mártir foi torturado. Seu corpo foi partido em duas partes e logo
des adoravam os deuses greco-romanos. depois foi jogado em um caldeirão de chumbo e cal. Pela segunda vez, o
Nesta variante, a legenda de São Jorge inicia-se no tempo em que os Senhor, ao lado de S. Miguel e seus anjos, ressuscitou-lhe e São Jorge,
cristãos eram ameaçados com terríveis punições por Graciano, imperador então, retornou à prisão.
dos persas [sic]. Conta que, certo dia, por um édito, Graciano convocou, Mais uma vez, abruptamente, o relato insere outras personagens,
sem que se saiba exatamente o porquê, setenta e dois reis e que São Jorge porém, aqui, para que o santo demonstrasse outras faces de seu poder
foi convidado pelo imperador a oferecer sacrifícios aos ídolos. Diante do miraculoso. Assim, uma mulher implorou-lhe que intercedesse a favor de
chamado, o santo deu a conhecer sua crença e negou-se a adorar os deu- seu filho que se encontrava ameaçado por um animal. São Jorge atendeu
ses. Frente à recusa, o imperador ordenou que fosse suspenso e torturado. aos rogos da mãe, fazendo o bicho desaparecer. Mas o peditório prosse-
Forçaram-no a meter os pés em calçados forrados com pregos pontiagu- guiu. Outra intermediação foi requisitada ao santo. O rei Tranquilinus
dos e, em seguida, atingiram-no na cabeça com um martelo, deixando seus solicitou a São Jorge que ressuscitasse os mortos que repousavam nos
miolos à vista. São Jorge suportou calado as torturas e foi levado à prisão, sarcófagos havia mais de quatrocentos e sessenta anos. O milagre concre-
onde permaneceu com uma imensa pedra sobre o peito. Ali, diz o autor, o tizou-se e o mártir batizou os ressuscitados.
Senhor apareceu-lhe para confortá-lo e anunciou-lhe que sua paixão dura- Reintroduzido em cena, o imperador fez conduzir o santo até à viúva
ria sete anos, mas revelou que as atrocidades não lhe causariam mal algum, mais pobre da localidade, para que São Jorge lhe pedisse o pão que não
pois iria morrer e ressuscitar três vezes antes de falecer realmente. tinha como oferecer. Ao sair para obter a doação, um anjo auxiliou a
Como lhe afirmara o Criador, no dia seguinte São Jorge foi condu- mulher e ela pôde então exibir ao santo uma mesa farta. Nesta altura,
zido novamente à presença do imperador que, após repreendê-lo, o reen- conta o relato, a viúva trouxe à presença do mártir seu filho, que era sur-
viou para a prisão, mas continuou maquiando novos desafios ao mártir. do e paralítico. São Jorge o restabeleceu.-Chamado outra vez ao palácio
Convocou, então, todos os magos da terra e um certo Atanásio apresen- para novos suplícios, o mártir foi conduzido ao alto de uma montanha
tou-se. Não se sabe ao certo se para provar sua perícia ou por lhe terem onde foi exposto às aves de rapina. Os soldados que lá o deixaram, ao
requerido, o mago dividiu um touro ao meio, usando uma fórmula mágica. retornarem, foram surpreendidos. São Jorge teve sua terceira ressurrei-
Posto na presença de São Jorge, deu-lhe para beber uma poção e prometeu ção. Após o milagre, os militares converteram-se ao cristianismo e o san-
to batizou a todos.
ao mártir converter-se ao cristianismo caso ela não surtisse nenhum efeito.
A narrativa recoloca, mais uma vez, São Jorge frente ao seu algoz. O
Foi o que se passou. Cumprindo a palavra, Atanásio apresentou-se ao
imperador insistiu novamente para que ele fizesse oblação aos seus ído-
imperador, que lhe condenou à morte e ordenou que se preparasse para o
los. O mártir o faz acreditar que o faria no dia seguinte. Neste ínterim,
santo uma roda equipada com pontas e gládios. O mártir foi atado à engre-
anuncia o relato, a Imperatriz Alexandra foi instruída pelo mártir sobre os
nagem e talhado em duas partes. Neste instante, conta a legenda, a mesa
dogmas cristãos. Na hora prevista, São Jorge foi levado a cumprir os
onde estavam os setenta e dois reis que assistiam à cena foi, inesperada-
mente, atingida por um raio e São Jorge ressuscitou. Diante do ocorrido, sacrifícios prometidos. A viúva, cujo filho o santo havia curado milagro-
samente, derramou-se em lamentações. Entrementes, o deus Apoio em
Anatólio, mestre da milícia, converteu-se juntamente com os seus solda-
pessoa apresentou-se ao mártir. Desafiando-o, disse-lhe que o santo não
dos. Assim como o mago perdera sua vida, todos foram degolados.
passava de um anjo caído. Reagindo ao dito, a terra se abriu aos pés do
Sem precisar quando e onde, a narrativa informa que o tribunal se mártir e o ídolo foi tragado por ela, enquanto as demais imagens do tem-
restabeleceu e o santo foi submetido a novas torturas. Foi virado para plo deitaram por terra com um mero sopro de São Jorge.
uma chapa de chumbo fundido, coberta com sessenta pregos que lhe per-
38 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 39

Após o feito, o mártir foi reconduzido pela guarda do imperador à A ênfase no poder imanente das relíquias manteve-se nas outras ver-
prisão. Por fim, foi submetido à sua última tortura, ao epílogo de sua pai- sões da legenda de São Jorge, porque a declaração de Pasicrato foi man-
xão. O imperador assinou sua sentença de morte e o santo foi conduzido tida pelos copistas, a despeito da distância cronológica entre elas e das
ao suplício da porta de ferro. Ali, na hora derradeira, o santo pediu que o alterações e inclusões, que modificaram a fisionomia geral da narrativa
fogo do céu devorasse o imperador e seus asseclas. A prece foi atendida e para dar-lhe historicidade.
eles foram consumidos como todos os pagãos à sua volta. Ao fim de seus Escrito em 916, portanto, num tempo em que o cristianismo já se
atos, conta a legenda, o mártir rezou por todos os fiéis e perguntou a impunha como a religião oficial do Ocidente, este segundo relato atesta
Deus o que aconteceria àqueles que invocassem o seu nome. O Senhor as variações a que esteve sujeito o mito de São Jorge e radiografa alguns
respondeu-lhe que suas relíquias seriam honradas, assim como suas ves- dos elementos estruturantes da espiritualidade em fins da Alta Idade
timentas e que elas supririam toda a sorte de necessidades. Média. Redigida na centúria seguinte a instituição do dia de Todos os
No limite de sua extensão, a versão mais antiga da legenda de São Santos, data do calendário católico que deu especial relevo à salvação
Jorge declara a que veio: justificar e promover o culto ao mártir e às suas dos fiéis defuntos, a narrativa prescinde dos detalhes que caracterizam a
relíquias. O autor identifica-se como uma testemunha de todos os episó- anterior, fortemente vincada com os tons vermelhos de um martírio cons-
dios da vida do "mestre Jorge", o que lhe autoriza a divulgar o martírio e tituído por uma cadeia de torturas atrozes.
a trazer a público o contingente de convertidos por obra do santo, cujo Nesta segunda legenda, São Jorge foi um tribuno do exército impe-
montante atingira a casa dos "trinta mil e novecentos homens, além da rial, nobre e rico, natural da Capadócia, que aderiu à fé cristã. Ao saber
imperatriz Alexandra." que Diocleciano, assistido por Magêncio, enviara um édito a todos os
A imprecisão deste relato de Pasicrato, que não se preocupa em governadores e magistrados e convocara o Senado para exterminar a reli-
datar ou estabelecer uma sequência narrativa que explique a introdução gião cristã e restabelecer os culto aos deuses pagãos, o valente soldado
de personagens e ambientes, não lhe retira a coerência interna. Recorren- preparou-se para o bom combate e distribuiu todos os seus bens aos
do a uma descrição minuciosa dos suplícios e à hipérbole de números e pobres. Diante do tribunal do imperador, do Senado e do exército, con-
volumes, um artifício que se tornará corrente nos relatos hagiográficos e fessou-se cristão. Magêncio interrogou-lhe e Diocleciano o exortou a
nos contos populares, sua intenção é, em primeira instância, reforçar a imolar aos deuses. A recusa provocou a ira do imperador, que o feriu
crença na ressurreição dos corpos, atestar o poder da providência divina, cruelmente. São Jorge, no entanto, manteve-se firme. Foi então enviado à
que prescreve o destino e a paixão de cada cristão, e o caráter medianeiro prisão, onde o conservaram sob uma imensa pedra.
dos santos mártires, capazes de intervir nos acontecimentos, operando Na manhã seguinte, preparam-lhe uma roda cheia de gládios e o
milagres, por serem senhores de um poder sobrenatural. mártir pôs-se a rezar enquanto a engrenagem se movia e o seu corpo era
Decerto influenciada por um culto preexistente, esta versão dos atos desfeito em pedaços. Mas, na décima hora, São Jorge ouviu uma voz
de São Jorge atribui às suas relíquias um caráter sagrado. Note-se que a celeste. Um anjo do Senhor libertou-o e o santo então saiu à procura do
fronteira entre a magia, empregada pelo mago, e os feitos extraordinários imperador que oferecia sacrifícios a Apoio. Diocleciano não o reconhe-
realizados pelo mártir são ténues. Ambos produzem o mesmo resultado: ceu de pronto. Depois, mandou-lhe prender. Duas testemunhas, Anatólio
transformam a matéria, tratem-se de seres vivos ou coisas. Mas, enquanto e Protoleon converteram-se e, por isso, foram condenados à morte. A
Atanásio lança mão de um instrumento de mediação - sua poção mágica -, imperatriz Alexandra seguiu o exemplo: declarando-se convertida, reti-
São Jorge utiliza o próprio corpo, que aliás é imune aos efeitos da bebe- rou-se do palácio.
ragem do mago e capaz de, com um único sopro, derrubar os ídolos
Por ordem do imperador, São Jorge foi acometido com novas torturas.
pagãos. Apto a curar, a resistir aos tormentos mais cruéis, a morrer e res-
Sob a guarda de soldados, foi imerso em uma fossa de cal para que a subs-
suscitar três vezes, este corpo - e o que a ele toca - torna-se, aos olhos do
tância corroesse-lhe as carnes. Mas, para surpresa de todos, após três dias,
autor da legenda e para a sua audiência, um corpo glorioso, saturado de
o santo foi retirado a salvo. Como as outras testemunhas de seus prodígios,
poder21, por isso, digno de adoração.
os soldados converteram-se e proclamaram a grandeza do Deus dos cris-
tãos. Os suplícios, contudo, não cessaram. Após o acontecido, o mártir foi
condenado a andar sobre o fogo com calçados repletos de pregos. Em meio
2' ELIADE, Mircea, op. cif., p. 27. ao tormento, uma voz dos céus foi ouvida e S. Jorge foi salvo. Reconduzi-
40 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 41

do à prisão, o imperador acusou-o de magia e Magêncio, então, pediu-lhe três mais conhecidos, Gabriel, Rafael e Miguel, em virtude das delibera-
que ressuscitasse um morto. Dirigindo uma prece a Deus, São Jorge fez ções do concílio romano de 745, já gozavam das honras de um culto
com que o milagre se completasse. Mas, como pagamento, foi remetido de especial e encontravam-se esculpidos na cantaria das igrejas. No entanto,
volta ao cárcere. Ali, um agricultor que atendia por Glicério, temendo a observa-se que esta segunda legenda de São Jorge elimina a figura do
morte de seu boi, implorou o seu socorro. Por intermédio de S. Jorge, o arcanjo Miguel, com efeito o mais popular entre os anjos, lembrado
animal foi restabelecido e ante a graça alcançada o lavrador converteu-se como o guardião do paraíso e o intercessor dos homens no juízo final. O
ao cristianismo. Sua alegria, no entanto, teve um tempo contado. Ao intei- caráter por demais imaterial dos anjos concorreu com o apelo de uma
rar-se do ocorrido, Diocleciano o condenou à morte. devoção calcada sobre as relíquias, cujo poder de reduzir a distância
Na tentativa de dissuadir o santo a persistir na fé cristã, o imperador entre o mundo dos vivos e dos mortos a piedade popular reconhecia e
conduziu São Jorge ao templo pagão. O mártir, entretanto, perseverou e sobre as quais atribuía propriedades curativas.
ao fazer o sinal da cruz fez tombar todos os ídolos. Diante do feito, a O culto aos fragmentos de um corpo excepcional conservou-se
imperatriz interveio a seu favor. Mas, recusando seus apelos, Diocleciano durante a Idade Média como o indicador de uma expressão religiosa vin-
pronunciou a sentença de morte do mártir. Antes que sua paixão chegasse cada pelo cunho imanente dos objetos sagrados. Presente nas práticas
ao fim, São Jorge rezou e foi então decapitado. devocionais dirigidas aos mártires desde tempos remotos, manteve-se
Indício de um discurso religioso que pretende apartar os atos dos como um traço definidor da relação entre os fiéis e os santos. Ao contrá-
mártires de uma interpretação fantasiosa e aproximá-los de um testemu- rio do que defende Richard Kieckhefer, o vínculo entre os devotos e os
nho verosímil, este segundo relato emudece o mago, retira de cena os reis seus intercessores celestes não se limitou a uma relação de "imitação e
da Pérsia, seu imperador, as aparições de Deus, a sucessão de ressurrei- respeito"23.
ções, as mães e seus filhos ameaçados pela sorte. Economiza o número O culto às relíquias, uma referência banal na literatura hagiográfica,
de seus suplícios, reduz o cômputo de convertidos, dispensa as aves de desenvolveu, como diz André Vauchez, um "código sensorial" próprio24.
rapina e as semelhanças com as aflições de Prometeu. Em contrapartida, Fosse pela incorruptibilidade do corpo, pelos óleos, pelo sangue que pro-
dá a conhecer a origem geográfica do mártir, sua profissão, seu status duzia, pelo delicioso olor que emanava, ou ainda pela irradiação vinda de
social e as condições que o conduziram à perseguição. Seu adversário é seus ossos, atestava-se o poder sobrenatural de um santo.
uma personagem histórica e sua esposa deixa de ter uma participação Deve-se dizer, no entanto, que a Igreja esforçou-se para disciplinar o
meramente figurativa para aproximar-se das cristãs da nobreza bizantina, culto às relíquias e para conter a febre que alimentava sua procura, esta-
que se comoveram com o cristianismo. belecendo, no século VIII, o costume de recitar as litanias dos santos e
Redigida nos dias em que o catolicismo já havia redefinido seus cri- organizando um ciclo de festas em honra à Virgem, aos apóstolos, aos
térios para atestar a santidade, reconhecendo na nobreza uma predisposi- evangelistas, à Santa Cruz e ao próprio São Miguel. Vauchez vê nestas
ção para conquistá-la e nas práticas ascéticas um meio para atingi-la, esta diligências um esforço do clero para "cristianizar a atmosfera de sacrali-
versão, também atenta à piedade popular, reconsidera o destaque atribuí- dade difusa que marcava as práticas da religiosidade popular"25, no
do, anteriormente, aos anjos, arcanjos e aos rivais detentores de um poder entanto, sublinha que neste embate desenvolveram-se uma série de "para-
mágico. Deste modo, concentra em torno do protagonista, um nobre tri- liturgias". As benzeduras e exorcismes lideravam esta lista. Enquanto as
buno do exército romano que se havia despido de todos os seus bens primeiras referiam-se à bênção dos instrumentos de trabalho, dos alimen-
materiais, todas as ações sobrenaturais. tos e a fórmulas especiais que mostravam eficácia na proteção contra as
Sinal de que a função medianeira dos seres alados da mitologia cris- calamidades naturais, os animais selvagens e os riscos de viagem; os
tã, tão caros à vida religiosa ao raiar da Época Medieval, mostrava-se últimos eram usados para exterminar a enfermidade, sobretudo os surtos
acanhada ante a crença na intermediação dos santos, o relato suprime a
presença dos anjos e mesmo dos arcanjos, os únicos dentre estas figuras
23 KIECKHEFER, Richard. La Magia en Ia Edad Media. Barcelona: Editorial Crítica,
espirituais a possuir um registro individualizado. Vistos comumente 1992, p. 89.
como "génios protetores das comunidades e detentores de poder"22, os 24 VAUCHEZ, André. "Santidade", in Enciclopédia Einaudi. Mythos/Logos, Sagra-
do/Profano. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 295.
22 VAUCHEZ, André, op. cit., pp. 26-27. 2' VAUCHEZ, André, op. cit., p. 28.
42 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 43

psicóticos, por meio do sinal da cruz e outros elementos rituais, a fim de vilhoso na cultura cavalheiresca em oposição aos gostos e modos da cul-
expulsar o demónio, gerador de todo o mal físico e moral. tura eclesiástica28. A literatura hagiográfica respondeu a este fenómeno
A legenda de São Jorge, datada do século X, é, com efeito, um regis- cultural, que interferiu diretamente na composição do elenco de milagres
tro deste movimento que condicionou o domínio do sagrado às atuações e na imagética de São Jorge.
dos profissionais da fé católica e dos santos, em que a Igreja apresentou-se
como um "grande reservatório de poder mágico, capaz de ser empregado
para uma série de finalidades seculares"26. Os milagres de São Jorge, neste 2.2. São Jorge e o Dragão
relato, abandonam o apego à hipérbole de números e volumes, aos feitos
fantásticos como o de ressuscitar quatrocentos e tantos mortos e batizá-los, A terceira variante do mito de São Jorge encontra-se na Legenda
para aproximar-se de um padrão de exigências mais mundano como o Áurea, coletânea hagiográfica organizada por Jacopo de Varazze, arce-
pedido do lavrador que teme perder seu boi. Para que o milagre assuma a bispo de Génova (1236-1298)29. Prenhe dos ingredientes do folclore tra-
veracidade pretendida, a narrativa revela, ao contrário da primeira versão, dicional que acompanharam a evolução do conceito de santidade, a obra
o nome do agricultor, para que se conheça a identidade dos beneficiados. do dominicano é um misto de textos litúrgicos, bíblicos, hagiográficos,
Recordando que as legendas eram a base dos sermões, portanto, o cristãos e pagãos30. Neste corpus literário, o relato de São Jorge assume
suporte escrito pelo qual o mito era veiculado na assembleia de fiéis, uma consistência histórica inovadora, seja pela introdução dos dados
pode-se perceber que os atos do mártir, assim com os de outros santos, biográficos de suas personagens, seja pelas ponderações acerca da vera-
funcionaram como um apoio pedagógico ao clero, para tentar, sem gran- cidade de sua paixão.
de êxito, discernir religião e magia. Se na primeira legenda era o mago a Antes de iniciar a narrativa, o douto religioso prossegue a identifica-
partir um touro ao meio, utilizando-se de seus conhecimentos mágicos, ção do santo. Discorre sobre a derivação de seu nome e informa que o
na versão seguinte é o próprio São Jorge o acusado de dominar estes Concílio de Nicéia (325) incluiu a "história de São Jorge entre as obras
saberes. Há, no entanto, uma diferença sutil entre as ações de S. Jorge e apócrifas", devido aos diferentes relatos que circulavam acerca de seu
de Atanásio. O santo é apresentado como um aliado, como um advogado martírio. Esclarecendo que o martirológio de Beda31 situa em Lida, lugar
das causas diárias que atravessam a vida de qualquer cristão. Enquanto o próximo à cidade persa de Diáspolis, o nascimento do mártir - embora
mago destrói um touro, o santo intervém a seu favor, assegurando-lhe seu muitos afirmem que morreu por ordem de Diocleciano e Maximiniano,
meio de vida. Salva-lhe o boi, auxiliar precioso na labuta diária, um ani- alguns por obra do imperador persa em presença de "oitenta reis" e
mal associado à bondade, à força pacífica, à capacidade de trabalho e ao outros, ainda, nas mãos de Daciano -, o dominicano recupera alguns
sacrifício, como o boi da visão de Ezequiel e do Apocalipse27. elementos abandonados pela segunda versão e adiciona outras referências
Sabe-se que a tradição vetero-testamentária exerceu uma imensa à biografia do mártir.
influência durante a Alta Idade Média, mas os ingredientes de seu mara-
vilhoso, assim como o das fontes greco-romana, céltica e germânica,
foram intimidados nos relatos hagiográficos produzidos pelo clero. A 28 LÊ GOFF, Jacques. O maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edi-
intenção de introduzir São Jorge num quadro espacial e temporal repri- ções Setenta, 1985.
miu estes elementos fantásticos presentes na narrativa de Pasicrato. 29 "San Jorge", in SANTIAGO DE LA VORÁGINE. La Leyenda Dorada. Madrid. Alianza

Recorde-se que o epílogo da paixão de São Jorge é marcado na primeira Forma, 1996, pp. 248-253. Edição castelhana baseada na versão latina publicada por
Graesse em 1845, que segundo consta realizou até o presente a transcrição mais fiel ao
legenda com uma façanha digna de Sansão, capaz de despertar nos espíri- texto original.
tos uma imensa sedução. Não obstante, nas centúrias seguintes, com o 30 SOUZA, Néri de Almeida. A Cristianização dos mortos: a mensagem evangelizadora
desenvolvimento da literatura cortês, assiste-se a uma irrupção do mara- da "Legenda Áurea " de Jacopo de Varazze. Tese de Doutorado, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 1998, vol. l, p. 56.
31 Monge, teólogo e historiador, natural da Nortúmbria. Viveu entre 672 e 735. Entre as
26 THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia - crenças populares na Inglaterra, muitas obras que escreveu, encontra-se seu famoso martirológio, fonte para muitos
séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 50. outros, inclusive o Flors Sanctorum, o mais famoso no género. LOYN, Henry. Dicio-
27 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: nário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1989; DELEHAYE, Hippolyte,
JoséOlympio, 1993, p. 137. op. cit., p. 59.
44 O Sebastianismo. Política, Doutrina e Mito (Sécs. XVI-XIX) Ofício e Sangue 45

maravilhoso pagão. O destaque atribuído ao caso é de tal monta que o


que lhe trouxessem todos os livros que encontrassem sobre a História
autor abre sua versão da legenda de São Jorge, justamente, com ele. Não
daquele imperador33.
há como não suspeitar da grandeza do impacto provocado nos leitores e
Estamos num tempo que em Portugal se imprimem o poema maior
ouvintes contemporâneos, afeitos a narrativas desta natureza.
da epopeia quinhentista portuguesa, Os Lusíadas, de Luís de Camões e, o
seu contemporâneo, Segundo Cerco de Diu, de Jerónimo Corte-Real. Será Lembrando que o protagonista foi um tribuno da Capadócia, o
que o jovem monarca português aspira a ser o herói aurorai, que vive para a dominicano conta que, em certa ocasião, chegou à cidade de Silca, uma
acção e para a honra? Aquele que surge, como enuncia Daniel Madelénat: província da Líbia, onde havia um lago tão grande que mais parecia um
"Dépourvu d'hiatus entre un mói et une persona, entre conscience libre et mar. Ali escondia-se um dragão de tamanho e força descomunais, que
corps aliene"34. Ou é aquele que num Estado Moderno/ num Estado regu- mantinha as gentes do povoado amedrontadas, e que há muito tentavam
lado é o sábio guerreiro, servidor de uma nação, aquele que se corporiza na capturá-lo, em vão. Todos que lá iam ter, partiam fortemente armados, no
tratadística do herói num tempo em que a épica floresce. entanto, voltavam apavorados. O monstro era incrivelmente pestífero, de
D. Sebastião procura na voz do autor da Jornada a África cumprir a tal modo que seu odor ultrapassava as muralhas da cidade. Para mante-lo
caractereologia do rei aúlico, aquele que se consubstancia como o espelho à distância e ter sob controle a gula e a ira do dragão, os habitantes de
universal de todas as maximidades, o que procura ser: "(...) emulo Silca deixavam, diariamente, junto ao lago, duas ovelhas para evitar que
comum de todos os heróis a quem é centro de todas as proezas, e equivo- o animal chegasse à muralha, em busca de alimento, e seus humores féti-
que-se o aplauso em brasões com eminente pluralidade: o afortunado, dos contaminassem o ambiente, causando a morte das gentes.
pela felicidade; o animoso, pelo valor, o discreto, pelo engenho; o catoli- A fome desmedida da fera, ao fim de certo tempo, fez esgotaram-se
císsimo, pelo seu céu; o destemido, pela sua airosidade; e o universal, por os rebanhos. Para salvar a cidade da ameaça do monstro, os moradores
tudo."35 A disforia do presente plasma-se, contudo, na gramática laudató- acordaram oferecer, no lugar dos carneiros, água, comida e uma pessoa
ria desta crónica do príncipe. O autor, revelado como Fernando de Gois que seria designada por sorteio. Quase toda a população já havia sido
Loureiro, impõe o tom eligíaco, redimindo o seu rei de todas as culpas e devorada, quando, um dia, a sorte apontou a filha do rei. Aflito, desespe-
imputando-as aos mestres. O seu príncipe é o que, pela educação: "(...) rado, o líder ofereceu suas riquezas, toda a sua prata, todo o seu ouro e
não contente com a gloria de seus mayores quis alterar seu assocego, e até metade de seu reino, para que outra pessoa lhe tomasse o lugar. A
perturbar o repouso e quietação de seus vassalos e finalmente procurar oferta, em contrapartida, não suscitou voluntários. O rei pediu, então, que
sua ruina na desnecessária perigosa e difícil conquista de reinos o sacrifício fosse adiado por oito dias, para que pudesse chorar sua des-
alheios."36 Ele é aquele que, face ao perigo, no calor da batalha: "(•••) uio graça. Ao final do prazo, o povo exigia que a princesa fosse levada para
morrer diante de si tantos e tam bons fidalgos deseioso de acabar com trás das muralhas, onde se encontrava o monstro, para satisfazer seu ape-
elles Se meteo nos maiores perigos mas de todos seu animo inuenciuel o tite. O rei então, despedindo-se da filha, confessou-lhe que sonhara con-
tirou com uida."37 O seu desempenho no combate é o do intrépito miles vidar para suas bodas todos os príncipes da região e que imaginara ador-
christianus. nar o palácio com margaridas para ouvir a música dos órgãos e címbalos
Até o nosso português, cativo em Fez, intenso crítico do rei, embora na ocasião. Sem mais nada a fazer, vendo-a partir, deixou-se tomar por
contestando permanentemente as suas decisões militares, lhe reconhece o uma torrente de lágrimas.
valor no combate. Para ele, os portugueses são o exemplum. No fim Enquanto caminhava para cumprir seu destino, a princesa encontrou,
daquele 4 de Agosto de 1578: "(...) andavam muitos outros pela batalha, inesperadamente, São Jorge. O tribuno indagou-lhe o motivo de seu pran-
desarranjados, buscando El-Rei tão afervoradamente que foi coisa mara- to. A donzela revelou-lhe seu drama e, de pronto, São Jorge dispôs-se a
ajudá-la. Agradecendo o auxílio, a jovem advertiu ao soldado que nada
era possível fazer. Surpreendendo os dois, uma entregue às lamúrias e
33 Cf.Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d'el- ReiD. Sebastião, p. 69.
outro ao consolo, o dragão precipitou-se sobre eles. De um salto, São
34 Daniel Medelénat, L 'épopée. Paris, PUF, 1986, p. 55.
Jorge montou em seu cavalo, empunhou sua lança e, numa carreira, cra-
35 Cf. Baltasar Gracián y Morales, op. cit., p. 77.
vou a arma no monstro. Amarrando-o com a ajuda da princesa, o guerrei-
36 Cf. Jornada del-rei dom Sebastião à África -Crónica de dom Henrique, p. 17.
ro conduziu-o até os limites da muralha. Diante do quadro, temendo que
n Ibidem, p. 116. a fera se soltasse, o povo apavorou-se. São Jorge tranquilizou a todos e
46 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 47

disse-lhes que concluiria o feito se todos abraçassem a fé cristã. Com a o dragão é, antes, de natureza material, psicológica e social do que um
promessa de salvação, os moradores converteram-se e foram batizados triunfo religioso.
um a um pelo santo. São Jorge, então, desembainhou sua espada e matou As semelhanças entre a legenda do bispo de Paris e a legenda de São
o dragão. Jorge são inequívocas. Como São Marcelo, o mártir também derrotou o
À guisa de esclarecimento, antes de encerrar o episódio, Jacopo de dragão, protegendo toda uma vila ameaçada pelo monstro. Se o santo
Varazze informa que o santo converteu, nesse dia, vinte mil homens, afo- parisiense era, por exigência dos ofícios divinos, um asceta, o santo mili-
ra mulheres e crianças. Acrescentou que o rei, agradecido, mandou tar também tinha uma conduta casta; em nenhuma das versões o mártir
erguer uma enorme igreja, dedicada a Santa Maria e a São Jorge, onde tem uma companheira. Se um derrotou seu medonho rival com o cetro, o
uma fonte abundante de água milagrosa brotou e quantos enfermos dela outro o fez com a espada. Exercendo a liderança em uma situação extre-
beberam, quantos viram-se curados. ma, ambos aplacaram uma força contrária à vida e que mantinha as cida-
Concluindo o ato, o dominicano acrescenta que, em recompensa, o des reféns do medo.
rei oferece-lhe uma imensa fortuna. O "fidelíssimo Jorge, defensor de O futuro selou para estes heróis um destino de lenda, um lugar cati-
Cristo", todavia, não aceitou e pediu que fosse dada aos pobres. Antes de vo no imaginário medieval. Mas, com justeza, fez o mesmo para seu
partir, recomendou que protegesse os templos do senhor, assistisse dili- antagonista, sem o qual jamais seriam vitoriosos. Como aqueles, o dra-
gentemente aos ofícios divinos e respeitasse os sacerdotes. Por fim, des- gão também revive o triunfo dos desbravadores e civilizadores. Associa-
pediu-se do rei com um beijo de paz e se foi da cidade. do às potências criadora e ordenadora, ligou-se aos símbolos régios, aos
Resultado do sincretismo entre o cristianismo e os mitos de origem episcopais e ao emblema de comunidades militares durante a Idade
pagã, portanto, sujeita a empréstimos, associações, inversões e reinterpre- Média. Oriundo dos ritos folclóricos destinados a atrair as forças fecun-
tações que caracterizam este processo cultural, a legenda de São Jorge dantes, migrou destes cortejos para multiplicar-se nos relatos hagiográfí-
alterou seu conteúdo pelo esforço da Igreja, mas também por força de cos, unindo-se à imagem de um santo, ou a um espaço geográfico especí-
outros mitos. Lugar-comum nos relatos hagiográfícos, o argumento que fico, onde aquele era o patrono. Em muitos casos, nas festas realizadas
opõe um herói-santo ao dragão tinha antecedentes de sucesso. Uma de para o padroeiro, ou naquelas em que sua imagem integrava o séquito,
suas referências remonta ainda à época merovíngia, como se verifica na agigantaram-se, ganharam individualidade e até um nome próprio, como
estória de São Marcelo de Paris33. em algumas procissões portuguesas35.
Escrita por Venâncio Fortunato em 576, cento e quarenta anos após A despeito do "caráter plurifuncional" que o dragão manteve nas
a morte de S. Marcelo, a biografia relata uma série de episódios milagro- tradições populares, sabe-se que a cultura eclesiástica arranjou seu casa-
sos, a fim de justificar a autoridade do bispo, pois as raras informações mento com a figura do demónio, em fins do século XI. Isto é, num perío-
orais que o autor recolhia insistiam em sua origem medíocre, incompatí- do em que as ordens monásticas já se haviam afirmado como a "van-
vel com a posição que ocupava enquanto integrante do alto clero secular, guarda espiritual da cristandade" e sua postura asceta e suas práticas de
via de regra composto por membros da aristocracia. A carreira do protago- mortificação já se tinham incorporado ao conceito de santidade, favore-
nista é, então, descrita, abusando de uma série de feitos sobrenaturais que cendo, aos membros do clero regular e àqueles que lhe seguissem o
têm como ápice sua vitória sobre o dragão, um monstro que aterrorizava a exemplo, a obtenção da canonização.
população nos arredores de Paris. No confronto com a fera, "São Marcelo No elenco dos milagres destes santos monásticos ou de seus segui-
o submete ao seu poder de essência natural e o faz desaparecer"34. dores, a literatura hagiográfica registrou a manutenção de um corpo
Como explica Jacques Lê Goff, numa era na qual os conflitos arma- incorruptível, fonte de um odor agradável, característico da santidade36.
dos eram corriqueiros, a soleira do bispo sempre foi uma referência de Na margem diametralmente oposta, o dragão de São Jorge da Legenda
proteção para a população. Sendo o chefe terrestre de uma comunidade Áurea era de uma pestilência capaz de matar os habitantes do povoado.
urbana, São Marcelo é o vencedor do inimigo público. Sua vitória sobre
35 Cf. BRAGA, Teófllo. "As Festas do Calendário Popular", in O Povo Português nos
seus Costumes, Crenças e Tradições. Lisboa, Dom Quixote, 1994, vol. 2, pp. 206-209.
33 LÊ GOFF, Jacques. "São Marcelo de Paris e o Dragão", in LÊ GOFF, Jacques. Para um 36 SANTOS, Georgina Silva dos. "Os Milagres do Adeus", in SANTOS, Georgina Silva
Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980, pp. 221-261.
dos. A Senhora do Paço. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense,
3" Ibid., p. 222. Niterói, 1995, pp. 209-226.
48 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 49

Observa-se, deste modo, que a intenção do autor era mesmo contrapô-lo garantir o consenso, porque seu perfil conservava na raiz uma certa
ao mártir37, caracterizando pela sinestesia a santidade de São Jorge e ambiguidade.
aproximando-o dos paradigmas hierofânicos do século XIII. Aliás, um Ao apresentá-lo, Jacopo de Varazze procura esclarecer o significado
tempo que deu origem às ordens mendicantes, à dos pregadores e que de seu nome e aponta três possibilidades. Uma, a partir da composição
convidou os laicos, mulheres e homens, a encontrarem a santidade atra- dos termos geos (terra) e orge (cultivo) e as duas outras formadas sobre
vés da caridade. Dias distintos daqueles em que a senha para entrar na os radicais gerar (sagrado,) e gyon (arena). A primeira dá origem à pala-
elite dos mortos era o martírio. vra "agricultor", "cultivador da terra", e as restantes às expressões "arena
São Jorge superou estas exigências porque, ao longo da elaboração santa" ou "santo lutador". Em se tratando de um mártir, e levando-se em
de sua historicidade, dialogou com outros mitos. Neste sentido, é uma conta as legendas que procuraram dar conta de sua biografia, os dois
construção coletiva, operada pela cultura eclesiástica e pelas matrizes últimos significantes etimológicos são pertinentes. Mas o primeiro é, cer-
folclóricas. Ao contrário dos demais santos medievais, sua paixão não se tamente, estranho ao conceito de santidade desenvolvido pelo Ocidente.
enquadra em um dossiê com juramentos de fiéis sobre o Evangelho, sua Recorde-se as diligências do clero para justificar a autoridade de São
canonização é "literária"38. Por tratar-se de um mito cristão, esteve sujei- Marcelo de Paris e a insistência das legendas de São Jorge para descrevê-
to a variações oníricas, o que elimina distinções rígidas entre magia e -lo como um homem do alto escalão imperial. O preconceito a favor dos
religião, superstição e idolatria e, em última instância, entre o sagrado e o nobres na concessão da santidade era intrínseco à santidade medieval.
profano. Aliás, dicotomias mais estranhas às categorias do pensamento Remontava ainda à Alta Idade Média e às estratégias da Igreja para ali-
mítico do que as sistematizações conceituais e esquemas convencionais39. ciar a nobreza laica a aderir ao catolicismo. Nem mesmo na Baixa Idade
O mito de São Jorge, semelhante a outras narrativas hagiográficas, Média, quando o convite à caritas animava às práticas religiosas, ele foi
serviu a propósitos diferenciados, no decorrer da história do cristianismo. abolido. Afinal, na economia da caridade, só os mais ricos podiam cons-
Ao analisar a evolução de sua historicidade a partir dos elementos iso- truir obras pias monumentais e só estes estavam no alto clero.
morfos que lhe asseguraram existência e longevidade, procurou-se Como sugere a etimologia de seu nome, São Jorge recordava em sua
demonstrar que suas variantes corresponderam a condicionamentos cultu- evoção os laboratores, aqueles que, no modelo tripartido da sociedade
rais específicos. Os mitos, por certo, dialogam entre si; mas esta comuni- medieval, expiavam a culpa humana por serem herdeiros do pecado de
cação é presidida pela estrutura material e mental que os agentes sociais Adão. Mas, simultaneamente, por tratar-se de um "santo lutador", um san-
constróem, afirmam ou refutam. to militar, situava-se no limite das duas primeiras ordens deste esquema tri-
A Legenda Áurea decerto contribuiu para a divulgação de sua ima- funcional, entre oratores e belatores, entre clérigos e guerreiros. Neste sen-
gem, sobretudo no que tange à refrega entre o santo e o dragão, pois era tido, a construção de seu mito foi bastante fiel ao que era corrente nos
uma mina hagiográfica que animava as mentes dos jograis medievais e as relatos hagiográficos da Idade Média. Não se estranha, porém, que além de
preleções dos párocos40. Portanto, era usada no púlpito, mas também cir- ter-se tornado o protetor dos cavaleiros, armeiros e dos militares em geral,
culava nas praças e mercados. No entanto, a permanência de seu culto e a e em algum momento também o tenha sido dos lavradores41.
eficácia simbólica que adquiriu encontraram-se em sua capacidade de O padroeiro dos "guerreiros e camponeses" serviu a propósitos dis-
tintos ao longo da história do cristianismo. Na Idade Média, respondeu
3' VAUCHEZ, André. "Liturgy and Folk Culture in the Golden Legend", in VAUCHEZ, muito de perto aos interesses da aristocracia militar, ávida por riqueza e
André. The Laity in the Middle Ages - religious beliefs and devotional practices. Notre prestígio. A narrativa do herói santo vencendo o dragão funcionou como
Dame: University of Notre Dame, 1993, p. 138. um suporte às aspirações da cavalaria, num tempo em que a concepção
38 DELEHAYE, Hippolyte, op. cit., p. 75. tripartida da sociedade ditava uma separação entre religiosos e laicos,
39 GIORDANO, Oronzo, op. cit., p. 127. favorecendo os primeiros em detrimento dos últimos.
40 O sucesso da Legenda Áurea ficou patenteado no número de edições da obra após o O segundo grande impulso do culto ao santo ocorreu, justamente,
advento da imprensa (1455-1456), já que as primeiras obras publicadas foram justa-
mente aquelas de maior êxito no período medieval. A obra teve 88 edições latinas; 18 quando o processo de arroteamento dos campos anunciava a dinamização
francesas, 5 inglesas, 2 alemãs, 2 tchecas, 13 flamengas e 6 italianas, tendo, com efei-
to, um alcance continental. Cf. FEBVRE, Lucien & MARTIN, Henri-Jean. O Apareci-
mento do Livro. São Paulo: Unesp-Hicitec, p. 360; ZUMTHOR. Paul. A Letra e a Voz - 41 TAVARES, Jorge Campos. Dicionário de Santos. Porto: Lello & Irmãos Editores
a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 151-152. 1990, p. 204
50 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 51

da economia, os potentados feudais já se haviam consolidado no Ociden- do Oriente e que depois receberam guarida nos palácios régios, igrejas e
te e as lutas intestinas pela aquisição de terras comprometiam a rede de mosteiros, encontravam-se os de São Jorge. Reproduzindo uma prática
vassalagem que estruturava o feudalismo. Em reposta ao quadro econó- nascida no século VIII, quando a violação dos túmulos operada pelos ata-
mico e político que oprimia a pequena nobreza, e às tentativas frustradas ques germânicos criou o hábito de dividir o corpo dos santos44, os guerrei-
de conter a disputa entre senhores e vassalos, as Cruzadas direcionaram ros cristãos que foram à Terra Santa externaram uma devoção já presente
para fora do território europeu, através de um objetivo comum, a violên- no Ocidente e que reconhecia no santo militar um de seus vértices.
cia e o orgulho consentidos pela Igreja à cavalaria. A sequência de associações que aproximou o mártir do ambiente
Cooptada pelos atrativos de algum enriquecimento, pela conquista cavalheiresco, nas guerras contra o infiel, também aproximou-o dos rei-
de honras e benefícios, encorajada pela promessa de uma indulgência nos ibéricos formados a partir da Reconquista. Com claras intenções
plenária, a nobreza guerreira cedeu ao chamado do papa Urbano II, para económicas, e motivado pelo discurso religioso que assegurava o paraíso
retirar do infiel o domínio da Terra Santa. Nesta espécie de "peregrinação àqueles que perdessem sua vida durante as campanhas da Cristandade
armada" para libertar os lugares santos e purificar o mundo da presença contra o Islão, este grande projeto militar, iniciado no século XI, desen-
do mal, o mito de São Jorge assumiu uma conotação maniqueísta. Crista- volveu sociedades marcadas pela constante flutuação de fronteiras hie-
lizando a imagem da vitória do bem sobre o mal, o triunfo dos desbrava- rarquizadas a partir de critérios militares 45 .
dores, ligou-se ao imaginário das Cruzadas, unindo-se ao primeiro gran- Originados da luta contra um adversário comum, vizinhos entre si,
de movimento de conquista e expansão do Ocidente cristão. os reinos de Leão, Castela, Aragão e Portugal mantiveram sua unidade
territorial às custas de contínuas operações armadas, entremeadas por
breves períodos de trégua, em que eram restabelecidas suas relações polí-
3. Conquistar e civilizar: São Jorge no tempo da Reconquista ticas e comerciais. A face assaz belicosa destas monarquias ibéricas deu à
guerra um papel fundamental em sua estruturação social e em seu concei-
Protagonista de uma legenda que, a despeito de suas variações, atri- to de poder, forjou uma liderança de reis cristãos guerreiros e conquista-
buía-lhe inúmeras conversões, "o fidelíssimo Jorge, defensor de Cristo" dores e, segundo consta, afeitos à legenda de São Jorge.
coube com precisão no discurso religioso que orientou as campanhas Em 1200, o santo militar emprestou o seu nome a uma ordem de
militares a Jerusalém e aos demais territórios sob o controle do Islão. cavaleiros aragoneses. Mas conta-se que bem antes, em 1141, Afonso
Sendo um mito, portanto, o conjunto de suas variantes era uma realidade Henriques, o primeiro do reis lusitanos, já se havia achegado ao santo,
viva que influenciava o comportamento individual e coletivo da socieda- pois instituiu, após a conquista de Lisboa, uma paróquia em sua devoção,
de medieval42. seguindo a crença dos soldados ingleses que lutaram na Reconquista e
Por tratar-se de um soldado mártir que se entregara inexoravelmente expandiram ao Sul os limites do Condado Portucalense. Situada intramu-
ao combate pela fé na "arena santa", prestou-se a dar sentido à empresa, ros da cerca moura, a paróquia reunia seis igrejas colegiadas. Em seus
revelando-se corno um paradigma para os guerreiros que se lançaram em limites, o templo de S. Jorge, erguido em 1149, situava-se próximo à Sé,
expedições para defender a Cristandade. Investidos do poder de empu- entre a futura rua do Limoeiro e a rua do Barão, passando logo à catego-
nhar suas armas pela própria ordem medieval, alimentados pelo sonho de ria de sede da paróquia, por ordem do primeiro bispo de Lisboa
auferir riquezas e pela expectativa de lutar em uma causa que justificava D. Gilberto46.
sua própria existência na sociedade, estes homens flertaram com o martí- Incorporado à toponímia da cidade, a presença do herói santo que
rio, com uma morte gloriosa. combateu e venceu o dragão também se manteve viva no imaginário
O encontro com o berço do cristianismo fez novos heróis cristãos e guerreiro português, porque as gerações seguintes expressaram sua devo-
novas relíquias43, mas também reforçou o culto aos primeiros mártires
Na expressiva lista de santos, cujos restos mortais os cruzados trouxeram
44 DELEHAYE, Hippolyte. "Lês Reliques dês Saints", op. cit., pp. 82 e 97.
42FRANCO JÚNIOR, Hilário, op. c/V., p. 39. 45 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa- Estampa, 1995
« Veja-se o caso de São Luís de França, morto em uma epidemia de tifo na cruzada que
p. 217.
empreendeu a Tunis, em 1270, e as disputas que se formaram pela posse de suas relí- 46 ANACLETO, Pedro Garcia. "A freguesia de São Jorge de Arroios da Cidade de Lis-
quias, in LÊ GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999, pp. 272-277. boa". Revista Municipal. Lisboa: Ed. Câmara Municipal. 1960, vol. 85, pp. 15-42.
52 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 53

cão ao mártir. Deste modo, à cabeceira da morte, Sancho I, o segundo e fez, mais uma vez, de Portugal o palco de graves disputas e intrigas
monarca luso, legava ao santo, em testamento, o seu próprio cavalo e, políticas. Nessa atmosfera, a casa real, Lisboa e, segundo a crença, São
cento e cinquenta anos adiante, o bravo Afonso IV invocava seu nome Jorge desafiaram o destino para mudar a história.
como grito de guerra na luta contra os mouros47.
Presente, porém tímida, a devoção a São Jorge, ao tempo dos reis de
Borgonha, foi substituída por um culto dinástico com a ascensão da Casa 4. São Jorge de boa memória
de Avis ao trono português, em fins do século XIV. Nestes dias, a exten-
são do território português alcançava a província do Algarve e o rei já se Não se passara muito tempo desde a quebra dos escudos pela morte
havia imposto como o primeiro entre os pares, tanto pelas inúmeras pos- do rei D. Fernando (1345-1383), quando os adversários da regência de
ses de bens móveis e imóveis no campo e na cidade, como por apresen- D. Leonor Teles puseram sob suspeição o caráter da política empreendida
tar-se como árbitro nas contendas que envolviam as ordens religiosas, os pela rainha viúva à frente do reino português. O descontentamento com
nobres e os concelhos. os acordos estipulados pelo Tratado de Salvaterra era flagrante. A imi-
Assim, quando São Jorge tornou-se personagem da crónica régia, nência de ver Portugal submeter-se ao domínio castelhano, devido ao
quando seu mito invadiu a história lusa, o processo de centralização casamento entre a filha legítima do monarca falecido e D. Joio de Caste-
monárquica deflagrado por Afonso III (1212-1223) já avançara significa- la, exasperava os ânimos.
tivamente e permitira ao rei impor-se frente à Igreja e à estrutura pirami- Ainda era viva a lembrança dos lamentos e dissabores provocados
dal dos feudatários como a maior autoridade da justiça. A recorrência na pelas baixas e razias decorrentes das ofensivas do vizinho ibérico em ter-
convocação das cortes, espécie de assembleia presidida pelo rei, na qual ritório português. Intercaladas por breves pactos, coalizões passageiras,
os procuradores das cidades sentavam-se ao lado dos oficiais palatinos, por uma sucessão de tratados que logo encontravam senões e emendas, as
de nobres e eclesiásticos, evidenciava uma dinâmica política em que as guerras entre Portugal e Castela encontraram, nas fortificações e cercas
esferas do público e do privado intentavam se delinear. A especialização erguidas sob as ordens de D. Fernando, seu lugar de memória. A empre-
de órgãos do governo central, como a Casa do Cível, a Casa da Suplica- sa, iniciada após 1373, não permitiu esquecer as investidas castelhanas
ção e a Audiência da Portaria, resultantes da institucionalização da língua em solo luso e, por conseguinte, os ódios e aversões criados por perdas
nativa e da formação universitária de jurisconsultos versados em Direito pretéritas. De Norte a Sul, muralhas e castelos alteraram a paisagem rural
romano, concorria para dar continuidade, no espaço e no tempo, a unida- e urbana, impondo-se como sinal de defesa48.
des políticas estáveis. Assim como outras cidades e vilas, Lisboa teve seu desenho modifi-
A definição de seus limites geográficos, havia quase duas centenas cado pela cerca fernandina. A nova muralha tinha sete mil passos de
de anos, a visível articulação entre os poderes central e local, mediada extensão, setenta e sete torreões e trinta e oito portas em seu trajeto. Dei-
pela existência de instituições e o reconhecimento de uma autoridade xava no passado os limites do castelejo de origem mourisca, cujos muros
régia alinhavaram a construção da esfera pública portuguesa, nos últimos D. Afonso III havia ampliado e que protegera, naquele ano, seus morado-
séculos da Idade Média. Contudo, ainda era cedo para que Portugal se res, enquanto, alhures, nas freguesias de Madalena, São Juliào e Judiaria
constituísse como um Estado. Algumas das condições necessárias já Grande seus residentes caíam por terra. A fortaleza poupou os corpos,
estavam postas, mas mostravam-se ainda insuficientes e frágeis, diante
das redes de parentesco que regulavam a nobreza senhorial portuguesa, 48 A muralha lisboeta foi erguida em tempo recorde para a época, apenas dois anos. Para
cuja estrutura agnática e linhagística inferiorizava os filhos segundos e as levantá-la vieram as gentes de Almada, Palmeia, Sesimbra, Setúbal, Coina, Benavente,
mulheres. Samora Correia e ainda de Sintra, Cascais, Torres Vedras, Alenquer, Arruda dos
Motivo de guerras civis, períodos de penúria e pivô de inúmeras dis- Vinhos, Lourinha e Mafra. Em outros cantos do território verificou-se o mesmo movi-
mento. Em Braga e Neiva levantaram-se castelos. No Porto completaram-se as mura-
sensões ao longo da dinastia de Borgonha, a disputa entre legítimos e lhas iniciadas pelo avô do rei, o bravo Afonso IV, enquanto Santarém, Óbidos, Ponte
bastardos encontrou, no final do período fernandino, uma situação limite de Lima e Viana ganharam muralhas novas. Coimbra teve as suas reforçadas. Torres
Vedras, Leiria, Alenquer, Almeida e Évora também foram muradas. Cf. CARVALHO,
Cidades Medievais Portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, p. 33; MARTlNs!
47 COSTA, Roberto Dias. A Paróquia de São Jorge da Cidade de Lisboa. Lisboa: Ed. Oliveira. A Vida de Nun' Alvares. Lisboa: Typographia da Parceria António Maria
Sociedade Industrial de Tipografia, 1939, pp. 18-20. Pereira, 1917, p. 61.
54 Georgina Silva dos Santos
r Oficio e Sangue 55

mas não fez o mesmo pelos sentidos. Conta-se que, à distância, via-se Não se pense, porém, que a deferência do meio-irmão de D. Fernando
arder Xabregas, Frielas e, do outro lado do Tejo, as chamas que tomaram se tratava apenas de uma vénia. Destacando-se dos demais concelhos
Almada e Palmeia49. desde os dias em que o rei D. Afonso III estendeu o cetro português às
A ausência de um herdeiro masculino e português que desse conti- terras algarvias sob o domínio do Islão, encorajando as trocas comerciais
nuidade à Casa de Borgonha fez regurgitar a lembrança dos assombros entre Lisboa e os territórios anexados, a Câmara lisboeta compunha-se de
causados pelas armas de Castela durante o cerco a Lisboa, em 1372. Nes- um executivo camarário que ilustrava em seus cargos a ordem de grande-
te clima, que também engendrou dissidentes - seduzidos pelas benesses za da cidade. Enquanto algumas vilas dispunham de um parco quadro
advindas com o estreitamento dos elos entre os dois reinos, ou obedientes administrativo, Lisboa possuía, no período joanino, pelo menos dois jui-
à legitimidade demarcada pelos laços de sangue -, à volta do mestre de zes do crime e do cível, três vereadores, um procurador do concelho, um
Avis, um dos mais ricos senhores de Portugal, fortaleceram-se as espe- tesoureiro, um escrivão da câmara, um escrivão das causas cíveis e cri-
ranças de evitar o jugo castelhano. mes da audiência dos homens do mar, juizes de fora, dos órfãos, das
Calçado pelo apoio popular e pelos desafetos gerados pela parceria sisas, dos barregueiros casados e feiticeiras, almotacéis, provedores, cor-
entre D. Leonor Teles e o Conde de Ourem, o meio-irmão de retores, porteiros, fiel da balança da casa do peso, contador dos contos da
D. Fernando tinha apenas vinte e quatro anos quando liderou o movimen- cidade e seu escrivão, vedor, meirinho, alvazis, alcaides. Todos eles
to que afastaria do trono a regente e calaria para sempre a voz de seu submetidos ao corregedor, designado pela realeza51.
conselheiro e amante. Nascido num tempo em que as contendas eram Distante do tempo em que a assembleia de homens-bons escolhia os
resolvidas segundo as provas de valentia, em que a honra era um valor juizes e demais funções municipais à sombra de carvalhos frondosos ou
construído com cicatrizes e a coragem jamais se confundia com os exces- no adro das catedrais, a eleição dos membros da vereação lisboeta no
sos de zelo pela vida alheia, o mestre de Avis apartou, definitivamente, último quartel do século XIV exprimia a crescente complexidade societá-
João Fernandes Andeiro dos salões do paço, ao deixá-lo morto nos corre- ria da área urbana, na qual um grupo reduzido de vizinhos, representantes
dores da alcáçova de Lisboa. Segundo os cronistas, por obra de seus cor- da elite local, alcançava os altos postos do governo camarário e eram
religionários, a versão dos acontecimentos que desceu ventando as ladei- subordinadas a figuras jurídicas criadas pelo poder régio52.
ras da cidade invertia os papéis e fazia do agressor a vítima. A notícia fez Substituindo o processo eletivo original e seu verniz democrático,
juntar às portas da casa real nobres e mesteirais, que, sem acreditar no juizes, vereadores e procurador eram recrutados nos estratos sociais mais
ocorrido, exigiam a presença do mestre na sacada do palácio. Sua apari- abastados, escapando-lhe o acesso aos demais habitantes da cidade e ter-
ção desanuviou os espíritos e encheu de confiança seus sequazes, ao mo. No topo desta pirâmide social concelhia, a cavalaria-vilã mantinha,
saberem que a população aprovava o feito. via de regra, o domínio das vereações. Proprietários de terras e prédios
O episódio que deflagrou a Revolução de Avis e fez com que ofi- rústicos na periferia das povoações, donos de montaria e armadura,
ciais mecânicos de Lisboa aclamassem, em Dezembro de 1383, o cunha- vivendo do arrendamento de seus bens e da venda de géneros agrícolas,
do de D. Leonor Teles Defensor e Regedor do Reino, não afastara ainda, isentos de impostos como a anúduva e a jugada (taxa paga por cada jugo
de todo, o perigo de um revés. O mestre de Avis seguiu distribuindo car- de bois) e detentores de privilégios que lhes eximia de penas corporais e
gos, perdoando dívidas e penas, para que as sombras da incerteza se des- lhes permitia serem julgados como gente de sangue nobre, esses homens
fizessem. Na qualidade que reclamara para si e lhe fora atribuída por seus concentraram à sua volta o papel outrora desempenhado pelas antigas
partidários, afiançou o auxílio prestado por Lisboa, considerando a cida- assembleias concelhias.
de digna de mercê e como a maior e melhor dos reinos, porque fora a que Obrigados a prestar serviço militar no exército régio, ao contrário
primeiro se pôs a defender Portugal da sujeição ao rei de Castela, resis- dos infanções e ricos-homens, categorias da nobreza portuguesa, cujo
tindo aos ataques do cerco e questionando as medidas de D. Leonor50. combate nas tropas da realeza dava-se em razão de algum préstimo ou

49 SUCENA, Eduardo. "A cerca fernandina", in SANTANA, Francisco & SUCENA, Eduar-
do (orgs.). Dicionário da História de Lisboa, 1994, p. 260. 51 MARTINS, Miguel Gomes. Evolução Municipal de Lisboa - pelouros e vereações.
50 Carta régia de 3 de Abril do anno de 1384. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire. Elementos Câmara Municipal de Lisboa: Divisão de Arquivos, 1996, pp. 9-17.
para a História do Município de Lisboa. Lisboa: Ed. Câmara Municipal, 1887, Tomo 52 CARVALHO, Sérgio Luís. Cidades Medievais Portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte,
l, p. 253. 1989, pp. 90-101.
56 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 57

concessão particular, os cavaleiros-vilãos foram declinando da designa- bra, em Abril de 1385, bem o disseram. No fórum onde os três estados da
ção cavaleiro após o fim da guerra contra o Islão, passando a identifícar- sociedade medieval portuguesa faziam-se representar, a pequena nobreza
-se como homens-bons53. Ao lado de letrados, versados em Direito e os concelhos advogaram a seu favor, mas os grandes fidalgos e os pre-
Canónico, Leis e Medicina, e dos mercadores de alta finança, moradores lados tinham como candidatos os rebentos de D. Pedro com Inês de Cas-
nas melhores artérias da cidade, também detentores de bem de raiz, este tro: D. João e D. Dinis. Avançando nos dias, as controvérsias em torno
grupo constituía a aristocracia local. Sobrepondo-se à peonagem, forma- da veracidade do casamento entre D. Pedro e sua amada por fim enfra-
da por mesteirais e pequenos proprietários rurais, sustentáculos da tribu- queceram as teses legitimistas. Estando ausentes, os partidários do rei de
tação municipal, muito acima dos jornaleiros e assoldados, isto é, apren- Castela ficaram sabendo, bem como toda a gente, que o bastardo de
dizes de artesãos e serviçais de toda a sorte, das minorias étnicas e de D. Pedro, fruto de seus amores com Teresa Lourenço, saíra vencedor.
uma legião de pobres, envergonhados ou não, que assumiam a face de Eleito rei em Cortes, D. João I prosseguiu cumulando de favores "a
mendigos, prostitutas, soldados desertores e deserdados, os homens-bons mui nobre e leal cidade de Lisboa", em prémio aos serviços prestados
revezaram-se entre os cargos, submetendo a estrutura administrativa à pelos moradores, que se recusaram ao domínio castelhano. Frente às
sua imagem e semelhança pelo acúmulo de seus capitais económico, demandas do município, no dia dez de Abril do ano de 1385, el-rei
social e cultural54. outorgou uma carta de privilégios, bons usos, foros e costumes para os
Entende-se, assim, por que a aliança entre o Regedor e Defensor do habitantes da cidade, na qual confirmava-lhes a abolição dos impostos
reino e Lisboa não ficou apenas na troca de títulos honoríficos e se tenha sobre o pão (trigo), o vinho, o saloio (pão cozido), protegia-lhes da con-
materializado na concessão de direitos, quando o líder seguiu isentando corrência dos mercadores estrangeiros que revendiam produtos aos natu-
certas taxas e incorporando as demandas das autoridades municipais. No rais e condenava os abusos perpetrados após a guerra por senhores e
decurso de um ano, entre os meses de Abril de 1384 e Abril de 1385, o fidalgos do reino, proibindo que tomassem dos moradores as galinhas, as
mestre de Avis outorgou uma série de mandos favorecendo o concelho. carnes, os mantimentos, as roupas de dormir, a palha ou a lenha contra
Tanto dispensou os moradores e vizinhos de Lisboa, em todos os lugares suas vontades56.
do senhorio de Portugal e Algarve, do pagamento da portagem, "usagem Feito quando se agigantava a iminência de um confronto com Caste-
e costumagem" e de quaisquer outros tributos pelas mercadorias que la, haja vista a decisão das Cortes, os trinta e dois capítulos do documen-
levassem de uns para outros desses lugares, ou que trouxessem para a to cuidavam, entre outros itens, da defesa da cidade. Sendo Lisboa uma
cidade, fosse para uso próprio ou para negócio, como, "fazendo graça e fronteira molhada, que facilitava o acesso ao ataque inimigo, ordenava
mercê", concedeu àqueles que viessem para defender o chão lisboeta o que seus moradores não servissem em qualquer outra área limítrofe e
privilégio de isenção sobre a alçava, mealharia, açougagem e quaisquer assegurava-lhes que se assim fosse necessário garantiria-lhes o soldo,
outros direitos da coroa. como fazia com seus vassalos, além de conceder o privilégio de cavalei-
Tantas concessões orientaram-se, como se vê, por um interesse ros aos que tivessem arneses (armaduras) compridos57.
explícito do Regedor e Defensor em assegurar o recrutamento de bestei- Os privilégios não cessavam aí. À cidade o rei quitava suas dívidas
ros, sem que lhe fosse necessário pagar o valor do soldo, como era o cos- com a Coroa, assumidas à época de seus antecessores, e aos moradores
tume55. Ciente da fragilidade de um poder cuja legitimidade era motivo permitia que portassem armas em qualquer ponto do território. Restabe-
de suspeita por muitos no interior da própria nobreza, o mestre de Avis lecia o costume lisboeta de eleger anualmente seus juizes e confirmava a
procurava a força do destacamento paramilitar concelhio, composto, a mercê, outorgada pelo rei D. Fernando, que permitia aos infratores, salvo
mais das vezes, por mesteirais jovens e casados, que, em caso de conflito os condenados à morte, reverter seus degredos e demais penas em dinhei-
sério, ia ao encontro do rei, demonstrando que em tais circunstâncias o ro, contanto que os juizes assim o entendessem e a quantia fosse destina-
apoio da milícia local se mostrava imperativo, como as Cortes de Coim- da para a reparação das muralhas da cidade.

53 MATTOSO, José. "Os Concelhos"; in MATTOSO, José (org.), História de Portugal - a


monarquia feudal. Lisboa: Estampa, 1993, pp. 221-223. 5« ACML. Livro dos Pregos. Doe. 129, fl. 108.
54 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, .1989, pp. 131-161. 57 MACHADO, Saavedra & OLIVEIRA, Corrêa. Textos Portugueses Medievais. Brasa-
55 Carta régia de 17 de Janeiro de 1385. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cil., p. 255. Livraria Cruz, 1961, p. 690.
58 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 59

Conduzindo uma política que amealhava a simpatia dos torneiros, 4.1. São Jorge, patrono português
alfaiates e demais componentes da então "arraia-miúda", o mestre orde-
nava ainda que os almotacéis não agissem independentes do acordo dos Partindo de Cidade Rodrigo e descendo o vale do rio Mondego,
mesteres, dividindo entre as partes o tabelamento dos preços. Dava à D. João de Castela entrou em Portugal, promovendo o tumulto e o pânico
cidade o direito de eleger seus procuradores e advogados, mas concedia que acompanha os exércitos em marcha. Com ele vinham a fina-flor da
privilégios aos oficiais da Coroa que fossem ou tivessem sido almotacéis, fidalguia castelhana e uma hoste numerosa, com cerca de vinte mil com-
corregedores e vereadores da cidade. Deste modo, com uma mão agrada- batentes. Afigurava-se um massacre, pois as tropas portuguesas eram
va àqueles que lhe eram próximos e azeitavam as relações com os procu- minguadas frente às do adversário, visto que parte dos homens-bons e da
radores, e com a outra aproximava-se da assembleia de homens-bons, nobreza mostravam-se ainda reticentes, adeptos do legalismo e advogan-
que escolhiam esta figura de intercessão entre o concelho e o rei. do a favor da legítima herdeira. Por isso, as hostes portuguesas não exce-
Indício de uma fase na qual as arestas precisavam de aparo, em que diam os sete mil homens58. Na tentativa de obter o improvável ou talvez
era mister juntar-se aos seus e repelir os aliados adversários, um dos ca- espreitar mais próximo o inimigo, emissários portugueses fizeram chegar
pítulos do documento determinava que os criados da rainha não mais às mãos do rei castelhano a carta em que Nun' Álvares, comandante da
tivessem ofícios na cidade, exceto aqueles que tinham sido beneficiados milícia lusa, procurava demover-lhe os intentos:
diretamente pelo rei. Para afastar qualquer possibilidade de um bloco
antagónico, impediu que os judeus, tão próximos da corte fernandina, e "Diredes ai Rey de Castilla qui mi Senhor el Rey de Portugal é todos los
mouros, livres ou cativos, exercessem ofícios públicos. suyos naturales dei su Regno de Portogal que estan com el, lê dicen de
Com evidentes conotações étnico-religiosas, afinada com as deter- parte de Dios é de Sant Jorge que el non quiera estroir Ia su terra de Por-
minações do Concílio de Latrão (1215), a ordem reforçava ainda o uso de togal; e que por servido de Dios, seyendo guardada Ia honra de mi Senor
distintivos para os judeus e os mouros. Aos primeiros cabia-lhes uma el Rey de Portogal, é fincado el Rey mi Senor Rey de Portugal que el fará
carapuça encarnada, aos últimos uma rodela de pano vermelha cosida nas com el Rey de Castilla buena avenencia aquella que fuere razonable. E
vestes. Entretanto, se uns foram confinados à exclusão e aos estigmas non queriendo el Rey de Castilla dexar nin desembargar, é partir-se dei
para que jamais esquecessem que eram partes distintas do todo, outros dicho Regno de Portugal libremente, mi Senor el Rey de Portogal Io pone
foram agrupados para saberem-se partes semelhantes do mesmo corpo de en Ia mano de Dios, é Io quiere librar por batalla é quiere sobre esto aten-
der el juicio de Dios"59.
ofícios. Assim, os mesteirais foram arruados segundo cada categoria pro-
fissional, marcando as artérias da cidade com o nome de cada corpora-
A missiva do condestável era, antes, um comunicado de que haveria
ção.
luta, do que propriamente um convite diplomático para um desfecho
A promulgação desta série de medidas não foi, como se vê, apenas
pacífico. Os termos da carta salientavam a anuência dos súditos naturais
uma sequência de privilégios e consentimentos. D. João I também man-
teve intocáveis os impostos que financiavam as guerras e os conflitos do reino a D. João I, como se recordassem a eleição nas Cortes de Coim-
armados. Negou a isenção a qualquer vizinho do pagamento da talha, bra. Porém, consciente do favoritismo bélico dos castelhanos, Nun' Álva-
exceto àqueles que por alvará régio detinham o privilégio e ordenou que res conclamava os grandes aliados para o embate: São Jorge e o juízo de
os escrivães das sisas fossem demitidos e logo substituídos por outros, Deus. À moda dos cruzados quando iam à Terra Santa, entregava-lhes o
quando se acirrasse o ódio do povo. De todo o modo, ao declarar Lisboa destino de Portugal e de seus três estados.
a sede da corte régia, unia o destino do reino à memória da cidade. O rei de Castela acompanhava suas tropas em uma liteira, doente e
A eleição em Cortes e a adesão lisboeta não bastaram, porém, para com febres. No entanto, como os guerreiros que o seguiam, não estava ali
eliminar do reinado do filho bastardo de D. Pedro os tropeços da dúvida e para recuar. Os bacinetes emplumados dos homens da guarda real, os
os solavancos de uma guerra. Movidas pela cólera do inimigo português, pendões, as bandeiras, os peões das ordens militares de Santiago, Cala-
precedidas de saques e destruições, as batalhas campais sucederam-se trava e Alcântara, os senhores e cavaleiros dos prelados e mosteiros, os
como o dia à noite. Se na região da Beira os ataques foram contidos com ginetes andaluzes, os dardos e toda a sorte de instrumentos que faziam a
sucesso, no Alentejo, as investidas a Évora e a Arronches espalharam o
terror, adiantando a todos que o litígio entre os dois reinos só teria mes- 58 Cf. MARTINS, Oliveira, op. cit., pp. 250 e 256.
mo fim quando o monarca castelhano atravessasse a fronteira. 59 ApudMARTINS, Oliveira, op. cit., 249.
Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 61
60

guerra naqueles tempos eram a mostra disso. Portanto, sua resposta foi poboo. E mui grade ajuda faz aos seus himygos, perseverado e enuilhe-
cedo em graves pecados, E aperseverãdo em elles privase da misericórdia
precisa e as alegações de outra natureza:
de ds, E chama aflcadamente e traz a sanha de ds sobre sy, [...] porem o
corregedor, E juizes Regedores, procurador do Concelho, E os procura-
"Decid vos a Muno Alvarez Pereyra que el sabe bien como yo case com
dores dos homens boõs dos mesteres, Esguardando alguns granes peca-
Ia Reyna Dona Beatriz mi muyer fija dei Rey Don Fernando de Portogal é
dos q se em esta cidade de mui longos tepos aça fazia, E estremadamente
fice bodas com ella em Ia mi cibdad de Badajoz, é el Maestre Davis, que
pecados didollatria E custumes danados dos gentios, q sse em ella de
se llama Rey é todos los otros grandes el Regno de Portigal vinieron y, é
grades tepos guardava, pollos qees pecados E custumes, segudo teste-
lê besaron Ia mano por su Reyna, é Senora dei dicho Regno de Portogal, é
munho da st" scritura, ds mais grauemente atormeta e destruuy o poboõ.
a mi asi como su marido, despues de los dia dei Rey Don Fernando, é de
[...] E cosyderãdo o proggo em q esta cidade E todo o Regno ora sta, q a
esto ficieron sus ciertos tratos é juraron sobre el cuerpo de Dios. E que yo
he cercada per mar e per terra, E rey de castella he dentro em este Regno,
he drecho a este Regno de Portogal por Ia dicha Dona Baetriz mi muger:
antre o qual E nosso Senhor el Rey se spera cada huu dia batalha, E de tal
é si el dicho Maestre Davis, é los que com el son quieren venir a Ia mi
perigo a misericórdia de ds he a q solamente o Regno e acidade pode
merced, non catando el mucho deservicio que me han fecho é facen, yo
livrar..."61.
partiré com elllos este Regno, asi en tierras, como en ofícios grandes, é
honradas mercedes: en quisa que ellos sean pagados. E isso esto non qui-
sieren, salvo perseverar em su rebeldia é desobediência, é Io quieren li- Atribuindo a culpa dos flagelos que se abatiam sobre o reino aos
brar por batalha, yo tengo que Dios me ajudará com el buen derecho que pecados do povo, as autoridades municipais procuraram, através da regu-
yo he: é que yo los ire buscar"60. lamentação da expressão religiosa, combater os "costumes danados dos
gentios". A presença castelhana em território português era, antes, uma
D. João de Castela recordou, sem acinte, o que se sabia de velho. prova da ira divina, do que a evolução de um quadro de disputas que
Argumentou sem evocações celestes, fê-lo com os tratos da Corte e com havia vincado os reinados dos monarcas de Borgonha e encontrava
a voz da legalidade que o Tratado de Salvaterra lhe garantia. Evocou os naquele momento o seu clímax.
compromissos e os ritos de submissão que a "rebeldia" e a "desobediên- Mais próximo do Deus do Velho Testamento do que propriamente à
cia" teimavam em ocultar. Mas propôs cargos e terras, tentando aliciar os misericórdia cristã, cuja concessão ao perdão, segundo a língua dos freis
adversários com os bens e as posses, que orientavam e sustentavam as e vigários daqueles tempos, dava-se em virtude das obras pias e dos atos
relações políticas no mundo ibérico. Deus não faria juízo, ajudá-lo-ia a contritos e interiorizados pela aceitação do Evangelho, o Deus do Estatu-
buscar o bom direito. Não houve réplica, nem tréplica. À troca das missi- to outorgado em catorze de Agosto de 1385 aplacaria suas penas se Lhe
vas sucedeu-se o confronto. fossem entregues provas de sacrifício. À guisa de promessa, os redatores
Era véspera da Assunção de Nossa Senhora e o povo estava entregue do documento asseguravam guardar e fazer cumprir seu conteúdo, reali-
às rezas e jejuns, quando a notícia chegou a Lisboa. O temor de um epí- zando inquirições pelas freguesias da cidade e termo, indagando, a cada
logo trágico e infeliz, que minasse a soberania portuguesa, redundou na pessoa, sobre os possíveis abusos.
formulação de votos e promessas da Câmara Municipal. Crentes que a As ordens proibiam e condenavam ao degredo, com pregão, os que
voracidade castelhana só seria contida com a intervenção dos céus, cor- obrassem feitiçaria, chamassem os diabos, lançassem a sorte, fizessem
regedores, juizes, regedores, o procurador do concelho e os procuradores encantamentos, carântulas e acudissem com remédios (benzeduras)
dos mesteres redigiram um estatuto em prol da vitória sobre Castela. homens ou animais sem obedecer aos conselhos da física. Recordando
Os itens não pressupunham auxílios mútuos, nem ajudas pecuniárias. que o carpimento era também uma prática gentílica, as autoridades impu-
Recaíam sobre o comportamento e sobre as práticas religiosas que inte- nham aos praticantes a multa de cinquenta libras, a punição de manter o
gravam o dia-a-dia dos lisboetas. corpo do finado em casa durante oito dias e implicava degredo caso a
cobrança não fosse honrada.
"Em nome de Nosso Senhor Salvador e Remidor Jhu xpõ E da sua glo-
riossa Virgem Santa marya. Armas em seu dapno E perdiçõ toma o

61 Estatuto que fez a Câmara Municipal de Lisboa em 14 de Agosto de 1385. Cf. OLI-
60 ApudMARTINS, Oliveira, op.cií., 250. VEIRA, Eduardo Freire, op. cit., pp. 265-274, ênfases minhas.
62 Georgina Silva dos Santos
f Ofício e Sangue 63

O Estatuto também transformava em infratores aqueles que cantas- e a promessa coletiva de saudar os santos evocados para o impasse man-
sem as janeiras62 e as maias63. Atribuía-lhes a mesma pena em espécie, teve-se ligada à memória da cidade:
quando metade da quantia seria destinada aos denunciantes, enquanto as
vinte e cinco libras restantes iriam para os cofres do concelho. Se não "E por q p" sse os homes recõcilare a ds, duas cousas lhes ssom neçessryas,
pudessem custear a multa, o destino seria o degredo fora do termo. Mes- cõue assaber: [...] primeiro dia de Janeiro e primeiro de mayo ditos, em
mo aqueles que se envolvessem com a promoção do evento, fosse serviço de ds e em onra e louuor da sua madre st1 maria, stabelecem e ordi-
nhã q cada ano, p" senpre, por auelles laaes dias e tenpos se façãtres proçi-
emprestando bestas, vestes ou jóias, perderiam estes bens para os denun-
ções solenes deuotamente: aprimeira, por dia de Janeiro, façasse na igreja
ciantes e para a Câmara.
catadral em Reuereça da naceça E circoçisom de nosso Remidor Jhu xpõ;
Indícios de uma sociedade em que a segurança económica e a ordem [...]segudo fazer poder, E Ihi ds der graça: a sseguda se faça por dia de san-
social dependiam da eventualidade, da sorte e dos caprichos régios, em tiago E de samfelipe, e no qual se acustumaua de fazer e onrar a maya; E
que todos os acontecimentos naturais e sociais eram atribuídos à vontade esta se faça em onra E Reuereça da uirgem w", q he Raynha E enperatriz
de Deus ou à maléfica intervenção das forças demoníacas, os itens do dos çeeos, E vãa a sf marya da scaada fazer: a terçeyra se faça em dia de
Estatuto, assim como os costumes que visavam extirpar, eram faces de santa cruz em serviço e honra da uera Cruz, E vãa a santa cruz. Mui muito
uma mesma moeda. Escapar à cólera divina, evitar maldições, exorcizar deue fazer o poboõ p" guardar e seguir o q em estes statutos ordinhado..."65.
potências malignas ou mesmo evocá-las contra o inimigo, fosse ele a
fome, a peste ou a guerra, através de promessas ou de práticas de adivi- Apropriando-se das datas festivas do calendário popular, os repre-
nhação e feitiçaria, eram, na verdade, instrumentos de sobrevivência em sentantes do concelho procuraram redirecionar as práticas religiosas,
uma sociedade na qual os indivíduos e grupos estavam protegidos apenas incutindo-lhes um cunho cívico. Embora empregando uma tática comum
formalmente pelas leis e instituições64. Frequentes e indispensáveis, a ao clero católico desde os primeiros tempos do cristianismo, o Estatuto
manipulação de elementos mágicos ou a evocação das forças mediadoras não era uma carta de intenções para orientar estratégias missionárias de
entre o sagrado e o profano eram ações do presente para interferir no evangelização dos povos pagãos. Tinha objetivos mais imediatos: garan-
futuro, quando este vislumbrava-se nebuloso, escapava à compreensão ou tir a autonomia e a sobrevivência do reino português. Assim, as janeiras
flertava com a injustiça. foram substituídas pela procissão em devoção ao Menino Jesus e as
As duras restrições impostas por corregedores, juizes e procuradores maias pelo séquito religioso em honra à Virgem Maria, no dia três de
de Lisboa decerto viraram letra-morta com o passar do tempo, pois, dois Maio, aniversário da morte dos apóstolos Filipe e Tiago. O rosário de
séculos à frente, ainda contavam entre as faltas previstas nas Ordenações cortejos incluía, ainda, no mesmo período, a procissão da Santa Cruz66.
do Reino e o Tribunal do Santo Ofício incidiria sobre elas com rigor. Aos votos das autoridades municipais somaram-se os dos guerreiros.
Note-se, porém, que antes de se tornarem matéria da legislação régia e As tropas portuguesas estavam entrincheiradas entre as escarpas e decli-
estarem sobre o controle inquisitorial, já encontravam, ainda que por ves da aldeia de Aljubarrota, a uma légua de Alcobaça, à espera do emba-
razões pontuais, a cumplicidade das autoridades municipais. te. Conta-se que, naquela mesma tarde de Verão, também Nun' Alvares e
Ao coibir os costumes pagãos, os representantes do concelho busca- o próprio D. João I renderam-se às orações. O monarca luso aguardava o
vam promover aqueles julgados dignos da misericórdia do Deus cristão. inimigo, protegido por um laudel bordado com palmas verdes cercando
Mas, se o controle destas práticas e festividades foi relaxando com os
anos, a associação entre o desfecho da contenda entre Portugal e Castela 65 Estatutos que fez a Câmara Municipal de Lisboa. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire, op.
cit., Tomo l, p. 277, ênfases minhas.
66 A devoção à Santa Cruz, como se viu atrás, remonta à Alta Idade Média. Em Portugal,
62 No dia trinta e um de Dezembro, à noite e durante o dia primeiro de Janeiro, grupos de remonta aos tempos de Afonso Henriques, que segundo consta, instituiu, no lugar de
adultos, jovens e crianças iam de porta em porta, pedindo as festas ou as janeiras. uma antiga mesquita, a igreja desta evocação no castelejo de Lisboa. Esta festa, assim
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Ita-
como a do Corpo de Deus, acompanhou a marcha dos Descobrimentos. Foi introduzida
tiaia, 1984, p. 397.
no Brasil à época colonial e ainda persiste no Nordeste e Sul brasileiros. Em Cabo
63 Eram reminiscências dos cultos rurais, onde se faziam oblações aos desuses da fecun- Verde, a procissão ocorre a cada três de Maio. Cf. BIRG, Manuela. "Santa Cruz do
didade. No dia primeiro de Maio, crianças e rapazes, enfeitados de flores e ramos, visi- Castelo", in SANTANA, Francisco & SUCENA, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 841;
tavam cantando as casas dos amigos, saudando o "Maio Moço". Ibid., p. 456. ANDRADE, Ferreira. A freguesia de Santa Cruz da Alcáçova de Lisboa. Lisboa: Ed.
64 ORONZO, Giordano, op. cit.. Madrid: Credos, 1983, p. 174. Câmara Municipal de Lisboa, 1954; CASCUDO, Luís da Câmara, op. cit., p. 692.
64 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 65

escudos de S. Jorge, enquanto Nun' Álvares, em uma jaqueta de lã verde castella, [...] E no, veendo o q nos asy dizer e pedir enviara, exsaminamos
bordada com rosas, ostentava armadura completa e orava, prometendo à os ditos satatutos, E querendolhe fazer garça E merçee, por quanto veemos
Virgem um templo ao pé de Ourem, e a S. Jorge outro, ali mesmo, no que som eles bõos, hidones a serviço de ds, outorgamoslhe e cõfirmandolhe
os ditos statutos pr a guisa q em elles he cõtehudo"70.
lugar onde tinha seus joelhos67, como se recordasse a Legenda Áurea e os
atos de devoção do rei beneficiado com a morte de um dragão que lhe
Ratificando o discurso das autoridades citadinas, que associavam as
ameaçava o reino68. desgraças do reino às "práticas gentílicas e [a]os costumes bárbaros a que
Os castelhanos vieram e avançaram bramindo por Castela e Santia-
desde séculos o povo se entregava", a missiva régia sublinhava um ponto
go. Aos berros, os portugueses responderam com o grito do rei: "avante,
de convergência, um denominador comum, entre o paço e o concelho lis-
S. Jorge, S. Jorge, avante, que eu sou rei de Portugal [!]". Os dardos, as
boeta. Tornava evidente que um dos veículos capazes de aproximar as
setas, o alarido e as estocadas fizeram óbitos e deixaram outros tantos
duas esferas de atuação política fazia-se mediante práticas religiosas
feridos até que, ao cair da noite, o adversário bateu em retirada. Os por-
comuns, capazes de atravessar a rígida hierarquia de poderes e os seg-
tugueses venciam, como o santo militar, o dragão castelhano, deixando o
mentos sociais.
apóstolo mata-mouros ao cuidados de Castela.
Assim, com o intuito explícito de demarcar o evento que lhe tinha
Padroeiro da Reconquista e, por extensão, do reino português, San-
garantido o trono e para que esta memória não sofresse os golpes do
tiago perdeu seu lugar de intercessor para os temas e litígios monárquicos
esquecimento, o monarca acresceu ao texto original outros elementos que
lusos na Batalha de Aljubarrota. Mas, ao contrário do que afirma Oliveira
recordavam o feito.
Marques, isso não se deu por "influência inglesa ou italiana"69. Distante
dos tempos da guerra santa, independentes e rivais, os dois reinos ibéri- "Depois desta Vytoria, Considerado os sobreditos as mercês, E graças
cos já não tinham mais um inimigo comum. Defendendo interesses stremadas E maravilhosas e benefficios que estes Regnos, Espicialmente
divergentes, não podiam decerto confiar ao mesmo intercessor celeste a esta cidade, sem seus merycimentos, de ds em suas pressas Receberõ [...]
tarefa de advogar por suas causas. À identidade das falanges seguiu-se a dãdolhe tam maravilhosa Vitorya da quel q se chama Rey de castella; [...]
da soberania sobre a unidade territorial, conquistada e mantida à força q no sse pode penssar, neymaginar, neper língua decrarar; pêro [...] por
das armas e com o auxílio dos santos. no cayr a cidade em grave pecado dengratidoe e de desconhoçimento, E
A imprevisibilidade do desfecho de uma contenda que há muito can- p3 o adeante ds no falecer cõ a sua misericórdia a esta Cidade e Regnos,
sava a população, quer pela obrigatoriedade das sisas, quer pelos sucessi- como ataa ora nó faleçeo, Acordarõ [...] E hordenrõ e estabeleçerõ q da
vos ataques que desestabilizavam os humores e as atividades económi- Qui endeante em serviço e louvor de ds, e em honra e louuor de sua
cas, foi celebrada com ladainhas, cortejos e saudações aos intercessores madre Virgem santa m", a aqual prougue q nosso senhor El Rey ouuesse
ta stremada Victorya em Véspera da sua mayor E mais solene festa, E aã
celestes. Diante do acontecido, os votos assumidos pela Câmara de Lis-
ora q sse per todos estes Regnos seus louuores cantauã, por claramente
boa, no dia da Batalha de Aljubarrota, receberam a chancela de D. João I, mostrar q ella he a principal colupna e deffensor desta cidadee regnos em
como atesta a carta que enviou ao concelho. todas as suas pressas E tribulações, foy e he honra e ouuor dos bem aven-
turados mártires sam Vicente, patrom desta Cidade, e de sam Jorge, per
"Outorgando e confirmando as ordenações e estatutos feitos em Câmara, os quaes crêem q esta cidade e Regno sante ds em suas pressa foro muyto
reunidos o corregedor, juizes regedores, procurador do concelho e procura- ajudados; E out° sy em honra e louuor doas santos mártires solepnes
dores dos homens-bons dos mesteres, para expurgar a cidade dos erros de deuotamente, em nas quaes seja Junta toda a cidade, como sse sõoe Juntar
idolatria e outras praticas gentílicas e costumes bárbaros a que desde sécu- no dia do corpo de ds, E façasse em esta guisa dia de sam Viçete em na
los o povo se entregava, e 'polias quaes tynhà avia ds sanhudo;' e conforme Igreja catedral, e vãa hu o sseu corpo jaz, E em esta cada mester lue huu
o voto e promessa em que em Câmara tinham feito pelo triumpho da guerra çiryo, e outros cada huum como poder [...] e ofereçãnos a ssam Viçete; A
com Castella, 'cõsyderãdo, ante da vytoria q nos deu ds [sobre] delRey de outro dia de sam Jorge e vaa a sua egreja..."1*.

67 MARTINS, Oliveira, op. cit., p. 264. 70 carta régia de 3 de Novembro de 1385. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cit tomo
68 Ver supra o item "São Jorge e o Dragão", p. 41. l.p. 264.
69 MARQUES, Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1981, 71 Estatutos que fez a cidade de Lisboa em 14 de Agosto de 1385. OLIVEIRA, Freire
p. 160. Eduardo, op. cit., pp. 277-278, ênfases minhas.
66 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 67

Ciente de que a lembrança de tamanha vitória era difícil de ser dário das celebrações da vitória sobre Castela foi apenas uma das provi-
expressa apenas com o verbo, D. João I apressou-se em monumentalizá- dências de D. João I para perenizar o acontecimento, marco de sua
-la, para que a cidade e sua gente não recaíssem no pecado da "ingrati- entronização. Recordando que o santo guerreiro fora seu aliado e advoga-
dão" e do "desconhecimento". Por isso, ordenava que, de Novembro de ra a seu favor na peleja, deu ao paço régio de Lisboa, cenário do movi-
1385 em diante, se fizessem as procissões em honra à Virgem, a São mento que o conduziu ao poder real, o nome de São Jorge. Como se não
Vicente e a São Jorge, com a mesma pompa e circunstância da Procissão bastasse, fez do mártir "Defensor e Protetor" do reino, de seus domínios
do Corpo de Deus, principal festa da Igreja portuguesa. Mas não olvidar e súditos.
a façanha, a graça dos céus, era também não descurar dele mesmo. Por A ideia de um patronato especial exercido pelos servos de Deus no
extensão, era legitimar o nascimento de uma nova dinastia, a de Avis, e o local onde se encontravam suas relíquias obteve grande sucesso, desde as
processo que conduziu a ele, um bastardo, ao trono. primeiras centúrias do cristianismo. Todas as cidades episcopais, a come-
A intenção de D. João I em agenciar a construção da memória de çar por Roma, com S. Pedro e S. Paulo, tiveram o seu sanctus próprios,
Aljubarrota valeu-se da associação entre as datas religiosas de maior vul- guardião acreditado de suas muralhas e dos seus habitantes. Aos mártires
to e os santos padroeiros. Note-se que a primeira versão do Estatuto, feita sucederam os bispos, como São Marcelo, e, na Baixa Idade Média, a prá-
pelos representantes do Município, não incluía São Vicente, embora tica estendeu-se às comunidades profanas, às cidades e às confrarias,
patrono da cidade, nem tampouco São Jorge, evocado como grito de gerando duas formas particulares de devoção: o culto cívico e o culto
guerra contra os castelhanos. Comemorado em 22 de Janeiro, na mesma dinástico. Aquele era praticado nas regiões onde as cidades usufruíam de
época em que os outros festejos de matriz pagã, o padroeiro lisboeta era autonomia política real, este nos países de tradição monárquica, onde a
também um mártir e como o santo da Capadócia também um dos mitos coesão nacional era forte, caracterizando então uma "religiosidade políti-
recolhidos pela Legenda Áurea12 e um culto, segundo a lenda, introduzi- ca" em que os santos figuravam como espécies de "divindades epônimas
do por Afonso Henriques, em 1173, após a conquista de Lisboa73. da nação"74.
A introdução destas personagens hagiográficas nas comemorações Província da esfera religiosa na era medieval75, o campo político
que se seguiram à batalha reforçava a ideia de uma (re)conquista do terri- nutriu-se de seus símbolos e mitos, incorporando-os às cerimónias reais,
tório português. Recuperando o culto prestado aos santos na fundação do aos emblemas urbanos, à moedagem e à heráldica. No entanto, nos
reino e da cidade de Lisboa, D. João I procurava dar equivalência aos fei- períodos belicosos encontravam um veio súbito de emersão. A rivalidade
tos e subtrair a distância entre o primeiro monarca da dinastia de Borgo- entre os reinos facilitava a reclamação de um intercessor como instru-
nha e ele mesmo, o primeiro dos monarcas da casa de Avis. mento de superação do trágico, mas também como esteio ao exercício da
Em se tratando de São Jorge, trazia para o âmbito do concelho uma própria violência.
devoção expressiva entre os cavaleiros, cara àqueles que aluaram na bata- A memória de Aljubarrota ganhou, por certo, contornos de lenda, ao
lha e cara ao rei, cabeça do corpo social. A inclusão do mártir no calen- longo dos anos, com o auxílio de São Jorge. Associada a uma interven-
ção sobrenatural, esta batalha, que subjugou o dragão castelhano, assegu-
72 A Legenda inclui o santo no conjunto de cristãos perseguidos nos dias de Diocleciano rou a Portugal sua unidade, através de um filho da terra, e garantiu a seu
e que padeceram tormentos nas mãos do governador Daciano. Segundo o relato de líder o epíteto de rei de boa memória, reunindo-se a um mito cristão
Jacopo de Varazze, o diácono de Valência também fora retido nos cárceres e, como o
santo militar, enfrentara com valentia seus suplícios, negando-se a adorar os deuses capaz de "ordenar o caos desconcertante dos fatos e dos acontecimentos",
pagãos e recebendo como prémio o conforto dos anjos. Embora o local de seu nasci- vinculando-os a um sentido profético76. A escolha de São Jorge como
mento e sua ascendência sejam motivo de controvérsia, sua legenda não se encontra patrono nacional não é, por conseguinte, gratuita. Repare-se que a legen-
entre os textos apócrifos. Talvez por tratar-se de um religioso, Jacopo de Varazze faça da do santo mantém semelhanças com os dados biográficos de D. João I:
silêncio sobre a questão. Cf. San Vicente, in SANTIAGO DE LA VORAGINE. La Leyen-
da Dorada. Madrid: Alianza Forma, 1996, pp. 120-123. Sobre as controvérsias, cf.
BOTURÃO, Júlio D' Oliveira. "São Vicente - o padroeiro da cidade de Lisboa". Revis-
ta Municipal. Lisboa: Ed. Câmara Municipal, 1972, vol. 95, pp. 11-24. 74 VAUCHEZ, André. "O Santo", in LÊ GOFF, Jacques (org.). O Homem Medieval. Lis-
boa: Presença, 1989, p. 228.
73 Ao culto de suas relíquias seguiu-se a lenda de que seu corpo foi transladado de Valên-
cia até Lisboa por dois corvos. Cf. TAVARES, Jorge Campos, op. dl., p. 144; BIRG, 75 "A política será ainda a ossatura da história?", in LÊ GOFF, Jacques, op. cit., p. 227.

Manuela. "S. Vicente de Fora", in SANTANA, Francisco & SUCENA, Eduardo, op. cit., 76 GIRARDET, Raul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia das Letras
p. 827. 1987, p. 13.
68 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 69

a origem nobre, a valentia diante da adversidade - a princípio insuperável luso e castelhano, destacando as ocasiões célebres em que os dois se
- e o prémio da "boa memória" após a vitória sobre provas insuperáveis haviam unido, como na Batalha do Salado (1340), na qual Afonso IV de
impostas por outros mortais. Portugal e Afonso XI de Castela, reis homónimos e inimigos, juntaram
São Jorge respondeu, com efeito, à exigência estrutural de uma esforços para combater o avanço das tropas islâmicas.
construção teológico-política que insistia há tempos na feição guerreira Ocorrida quarenta e cinco anos após a Batalha do Salado, a Batalha
de sua liderança. Sua eficácia simbólica converteu o medo em uma festa de Aljubarrota e o cenário político recente reclamaram um novo registro
do grande governante, em uma festa pagã e sagrada ao mesmo tempo, dos primevos da realeza portuguesa e uma versão mais fiel ao projeto de
quando D. João I regulamentou os cortejos comemorativos da vitória autonomia e independência lusas. Com a missão de dar-lhe forma e con-
portuguesa sobre Castela e incluiu o santo, em 1387, na procissão de teúdo, os cronistas régios emprestaram seu estilo e sedução retórica à
Corpus Christi, determinando que sua imagem fosse montada sobre um construção do tempo passado e presente, oscilando entre os testemunhos
cavalo e entregando o dever de acompanhá-la aos homens de ferro e fogo documentais e os relatos mitológicos.
da recém-criada Casa dos Vinte e Quatro77. Ao ordenar que em sua cape- À Crónica de D. João I, "poema étnico dos portugueses" escrito por
la real se cantasse para sempre, com toda a solenidade, missa de canto e Fernão Lopes79, e às outras crónicas dos reis de Borgonha e Avis, somou-
órgão no dia de São Jorge, iniciava-se, sob seu comando, um culto públi- -se a Crónica de Portugal de 1419W. Iniciada ainda no reinado de
co e dinástico que os monarcas desta dinastia transformaram em tradição, D. João I e concluída entre os anos de 1505 e 1513, no período manueli-
o concelho de Lisboa em espetáculo, os sermonários em panegírico e os no, a obra introduzia nas narrativas sobre a formação do reino o milagre
membros da confraria do santo em razão de devoção. de Ourique e a transladação dos restos mortais de São Vicente, patrono
lisboeta. A aparição de Cristo a Afonso Henriques assentava-se na dupla
promessa divina de vitória sobre os mouros e fundação de um novo rei-
4.2. São Jorge na Casa de Avis no, enquanto a aquisição inesperada das relíquias perdidas do mártir era a
prova de uma monarquia destinada à proteção do santos.
Rebento do antagonismo entre Portugal e o reino vizinho de Castela Reveladora do papel atribuído aos mitos no processo de construção
e de uma controvertida eleição régia em Cortes, a dinastia de Avis, da nacionalidade81, a prosa avisina obteve o reforço de outros nichos de
seguindo os passos de seu instituidor, investiu na "fabricação" de uma
estampa régia capaz de diluir as nódoas de suspeição que marcaram seus 79 SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1988,
primeiros momentos, a fim de assegurar legitimidade à sua fundação e à p. 202.
sua liderança, evidenciando a singularidade portuguesa e sua destinação à 80 A autoria da Crónica e o lugar em que foi escrita são foco de discussão entre os histo-
riadores da Literatura Portuguesa. António José Saraiva atribui a obra a Fernão Lopes,
casa da glória. cronista da corte joanina, "apesar de seu escrúpulo documentalista e do seu espírito
À época de sua ascensão ao trono lusitano, a Crónica Geral de realista". Porém, Adelino de Almeida Calado, responsável por uma das edições críticas
Espanha em galego-português, a Crónica Portuguesa de Espanha e Por- mais recentes, defende que o texto é, na verdade, escrito a várias mãos e, por isso, a
tugal (c. 1342), a Crónica Geral de Espanha de 1344 e os Livros de combinação de pelo menos cinco narrativas. Rejeita a posição de Saraiva e destaca que
a disparidade estilística entre a Crónica e as obras de Fernão Lopes não se pode expli-
Linhagens, dois dos quais escritos por D. Pedro, bastardo do rei D. Dinis car pela hipótese de a fonte ser um rascunho ou redação provisória. A metodologia, o
e conde de Barcelos, eram as grandes fontes da história nativa78. Eivadas modo de redigir, o critério de seleção e a inserção de episódios aproximam-na da esco-
de lendas, mitos e relatos épicos, concebidas como um ciclo de proezas la historiográfica afonsina e das varias redações da Crónica Geral de Espanha, carate-
da cavalaria, as narrativas punham em relevo a origem comum dos povos rizadas pela sobreposição das descrições genealógicas à brevidade da narrativa.
Segundo o estudioso, o estado em que se encontra o texto da Crónica, incompleto, com
grandes lacunas e importantes erros de cópia, contrastam com os cuidados dispensados
77 Novo regimento Para Governo da Administração da Meza do Estandarte do M S. JOR- à integridade de outras crónicas oficiais. Cf. SARAIVA, António José, op. cit., Lisboa:
GE. Fundado nas Cartas, Alvarás e Lembranças do Antigo regimento que se queimou Gradiva, 1988, p. 165; e Crónica de Portugal de 1419. Edição Crítica com Introdução
no incêndio immediato ao Terremoto do primeiro de Novembro do Anno de 1765. Cf. e Notas de Adelino de Almeida Calado. Universidade de Aveiro/ Imprensa de Coim-
LANGHANS, Franz-Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos. Lisboa: Imprensa bra, 1998, pp. VII-XLII.
Nacional de Lisboa, 1946, vol. l, pp. 172 e 195. 81 BUESCU, Ana Isabel. "Ourique e a Fundação do Reino", in BUESCU, Ana Isabel.
78 SARAIVA, António José & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Memória e Poder: Ensaios de História Cultural (séculos XV-XVIIl). Lisboa: Cosmos,
Porto Editora, 1982, p. 80. 2000, p. 14.
70 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 71

memória, ao conviver com o espetáculo das entradas régias, das procis- período subsequente. As conquistas fermentaram a navegação atlântica
sões e com o aparato cénico das peças teatrais dramatizadas no paço e na patrocinada por mercadores particulares e valeram a D. Afonso V o epí-
Ribeira das naus. Personagens e autores de façanhas militares, os reis de teto de O Africano. Entretanto, atravessada pela revivescência de uma
Avis assinaram a produção de uma memória visual de cunho abrangente, velha ambição ibérica, a empresa afonsina deu azo à demonstração da
capaz de ultrapassar os limites da corte régia e chegar àqueles que desco- devoção ao padroeiro.
nheciam o alfabeto e para os quais a beligerância não trazia nem títulos, Acalentada pelos castelhanos às épocas de D. Afonso X e D. João I
nem brasões. Apropriando-se das festas do calendário religioso, fizeram e pelos portugueses nos dias de D. Fernando, a ideia de um império cin-
desses acontecimentos esperados, definidos pela suspensão do tempo diá- gindo as duas coroas mostrou-se factível às aspirações afonsinas com a
rio, um desfile institucionalizado de suas próprias entidades. morte de Henrique IV de Castela. Em seu testamento, o monarca declara-
Atado à mitologia cristã, o circuito de imagens destinadas a consoli- ra sua intenção de deixar como regente a filha e recomendava-lhe como
dar a crença na boa fortuna portuguesa, desvelada pela interferência do marido D. Afonso V, seu tio materno. A anuência das Cortes portuguesas
Deus cristão e pela conivência dos mediadores celestes na origem do rei- e o enfrentamento das partes na Batalha do Toro (1476) não bastaram
no e no princípio da dinastia de Avis, completou-se com a organização de contra o apoio francês aos pretendentes nativos, Fernando e Isabel, mas
cortejos em honra a São Jorge, após alguma vitória aguerrida, com a ainda assim a monarquia lusa conclamou a vantagem no conflito campal,
manutenção da figura do mártir na procissão de Corpus Christi e com o determinando a comemoração do feito.
batismo dos territórios anexados à Coroa, após a conquista de Ceuta, em Já se contavam doze meses do falecimento do monarca no palácio
1415. de Sintra e se haviam passado cinco anos da dita contenda, quando seu
Na sequência da política expansionista motivada pela carência filho e sucessor, aclamado rei nas ruas lisboetas e eborenses com os bra-
endémica de cereais, impulsionada pela busca de ouro para amoedação, dos entusiasmados dos alferes, enviou uma missiva às Câmaras Munici-
estimulada pela obtenção de mão-de-obra escrava, quando os méritos da pais de Lisboa e Évora, lembrando aos juizes, vereadores, procuradores e
empresa acenavam com a aquisição de tenças, dotes e outras mercês aos homens-bons o que se devia fazer pelas "vitórias e vencimentos" do rei-
pequenos e médios senhores e aos cavaleiros sem casa própria82, São Jor- nado anterior.
ge ligou-se à toponímia dos entrepostos marítimos portugueses.
No arquipélago dos Açores, conquistado entre 1427 e 1432, São "[....] per priçisõoes, e solenidaes ordenadas, que se em alguus lugares
Jorge emprestou seu nome a uma das ilhas. Trinta e poucos anos à frente, destes rregnos a todos o he notoreo E querendo nos açerqua desto nom
o infante D. Henrique, o filho de D. João I, que para muitos concebeu os menos ser grato e Reconhecer a noso Senhor o que em nosos dias e pre-
sença nos fez de merçee, em a batalha que ouuemos com os rregnos de
primeiros planos de conquista e colonização lusa da Era dos Descobri-
castella antre touro e çamora; porem hordenamos e mandamos, que
mentos, justificou em seu primeiro testamento a escolha83. O motivo
daquy em diante, em louuor de Noso Senhor e da bem aventurada virgem
tinha sido mesmo devocionista. O "regedor e governador da Ordem da maria, ssua madre e de sam Jorie e de sam christouam, que o dito dia tra-
Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo" afirmou ter ordenado a constru- zíamos por nossos padroeiros e nome, em cada huu ano aos dous dias de
ção de uma igreja de São Jorge, na ilha de São Jorge, em "honra e reve- março, em que foy a dita batalha e vitoria, a crelezia e todos os desa cida-
rência" a Jesus Cristo e à Virgem Maria. Portanto, em favor da fé propa- de façaaes solene priçisom, ssayndo da see, e indo per os lugares prubli-
gada por um reino cristão. O objetivo, portanto, não era apenas o de cos com toda solenidade, çimonya, hofiçios, Jogos, asy e tam comprida-
demarcar a conquista do território, mas de civilizá-lo. mente, como acostumaes de ffazer em dya do Corpo de Deus, tirando
Indicadoras de um nítido avanço das frotas lusitanas sobre os mares solamente de nom hyr a arca, onde vay o sacramento, a qual priçisom
em fins da Idade Média, à anexação do território açoriano e madeirense hira a Igreja do bem aventurado cavalheiro marteer sam jorie onde se
juntaram-se as praças africanas de Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger, no diga missa e pregaçom em lembrança da dieta vitoria segundo o theor e
forma desse que vos com esta emujamos E esta nosa carta manadamos
82 GOD1NHO, Vitorino Magalhães. Ensaios sobre História de Portugal. Lisboa: Sá da que Registees no liuro da Câmara desa cidade para sempre sea avver de
Costa, 1968, vol. 2, p. 75. fazer o que dicto he em Relenbrança da caussa"M.
83 Primeiro Testamento do infante D. Henrique. 13 de Outubro de 1460. Cf. ESTEVES,
Maria Luisa Oliveira (org.). Portugalia Monumento Africana. Lisboa: Imprensa 84 Livro das Posturas Antigas. Lisboa: Ed. Câmara Municipal de Lisboa, 1974,
Nacional-Casa da Moeda, 1995, vol. 2, pp. 97-103. pp. 149-150, ênfases minhas.
72 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 73

Escrita em doze de Março de 1482, em Viana de Alvito, a carta de afonsino, a Câmara de Lisboa condenava a ação de atividades que con-
D. João II, endereçada às autoridades dos respectivos concelhos, expunha trastassem com os dias santificados pelos dinastas.
os intentos do príncipe perfeito em eternizar o episódio da Batalha do Dirigida aos seguidores de outros credos, as posturas ordenavam que
Toro e, por extensão, a memória de seu genitor85. Recordando que o rei nenhum judeu ou mouro fosse tão ousado a ponto de ir à festa, à vigília, à
falecido tivera como padroeiros, durante a peleja, a Virgem, São Cristó- Pentecostes, ou a quaisquer outras solenidades da cidade, para dançar, tan-
vão e São Jorge, o monarca trazia a público a importância do feito e eli- ger ou bailar. A ordem vetava-lhes o divertimento sob pena de pagarem
minava as distâncias que apartavam os seus dias dos tempos de seu pai e pelo delito quinhentas libras se o praticassem pela primeira vez, mil libras
bisavô, destacando, em virtude da natureza da comemoração, as prece- se incorressem na falta uma segunda vez, e, caso reincidissem na infração,
dências de São Jorge. estipulava a prisão com o custeio das próprias despesas87. Os limites não
O documento recebido pela Câmara de Lisboa explicitava que ao incidiam apenas sobre seus trejeitos e momices, a Câmara insistia que
"cavaleiro mártir São Jorge" devia-se a cada ano, no aniversário da bata- nenhum judeu ou judia fosse tão ousado a ponto de desrespeitar o resguar-
lha, missa solene e pregação na igreja de sua evocação, enquanto a carta do das datas santas que ordenavam o calendário urbano. Aos que traba-
dirigida aos juizes, vereadores e homens-bons da cidade de Évora facul- lhassem no domingo, no dias dos apóstolos, de São Jorge, São Vicente ou
tava aos membros do concelho, caso não houvesse santuários em honra Santa Maria, padroeiros de Aljubarrota, era-lhes cobrada a quantia de
ao santo e a São Cristóvão, a realização do evento na igreja em que se cinquenta libras. Se repetida a infração, a multa atingia as cem libras e o
costumava pregar na ocasião do Corpo de Deus. Mas sublinhava aos ebo- registro da terceira ocorrência culminava no pagamento do mesmo cento e
renses que "em cada dum anno aos dois dias do Março em que [fora] a numa temporada, sob as próprias expensas, na cadeia da cidade88.
batalha e victoria, a clerezia e todos os dessa cidade [fizessem] solene Responsável pela segregação racial que confinava ambos os povos
procissom saymdo da see e ymdo per os lugares principaes com toda a aos respectivos guetos, a legislação do concelho não refreava de todo a
solenydade cerimonia ofícios e jogos asy e tam compridamente como pertinácia das populações judaica e mourisca na preservação de seus usos
[costumavam] fazer em dia de corpo de Deus"86. e costumes. Estimulada pela própria unidade espacial a que estavam
Antes indício de uma evidente primazia lisboeta, lugar onde se sujeitas, na verdade, sequer intimidava a aproximação dos católicos com
encontrava o Castelo de São Jorge e a cabeça do reino, do que o sinal de quem mantinham relações comerciais e afetivas, ainda que as posturas
um certo distanciamento entre o monarca e a cidade alentejana, palco das municipais impusessem aos cristãos que lhe dessem guarida ou partilhas-
Cortes em Novembro do ano anterior e também referida na documenta- sem um convívio social mais estreito a multa de quinhentas libras89.
ção como "mui nobre e leal", a convocatória para a realização da cerimó- Decorrente da inflexão no discurso da Igreja, que paulatinamente
nia, recebida pelos dois municípios, visava agenciar a "relembrança" dos conduziria o antijudaísmo ao anti-semitismo90 e vestígio dos pontos
triunfos avisinos através de cortejos religiosos uniformes, ressaltando o nevrálgicos que teceram as malhas da religiosidade popular em fins da
caráter guerreiro e cristão de seus monarcas, com o auxílio do santo mili- Idade Média portuguesa, as sanções determinadas pelos vereadores, pro-
tar. curadores e homens-bons de Lisboa afinavam-se com as medidas centra-
O propósito de estabelecer um padrão para a realização das cerimó- lizadoras da Coroa portuguesa. Ao regular o comportamento e a obser-
nias e com isto demarcar o controle sobre as circunstâncias da aparição vância das datas do calendário religioso, caras à memória dos reis de
pública do padroeiro português não se restringiu àquelas cartas régias. Avis, tornaram-se porta-vozes dos interesses régios, no uso de suas atri-
Transpassou a documentação dos arquivos municipais. Ainda no período buições. A intenção em dar aos festejos uma identidade cristã implicou

87 "Dos mouros e judeus que nam vaam as festas dos cristaaos". Livro das Posturas Anti-
85 Fortunato de Almeida atribui a carta ao próprio Afonso V. Mas as referências são gas. Lisboa: Ed. Câmara Municipal, 1974, pp. 57-58.
extemporâneas ao reinado do Africano, que viveu entre 1432 e 1481. A datação pela
Era de César vigora na documentação apenas até fins do século XV. As fontes relativas 88 "Dos judeus e judias que nam vendam nem façam aos domingos nem dias santos antre

à aclamação do próprio D. João II são datadas segundo o ano de nosso senhor, mas os christaos". Ibid., pp. 67-68.
outras fontes relativas ao mesmo reinado omitem a referência. Cf. ALMEIDA, Fortuna- 89 "Dos Judeus e Judyas e mouros e mouras que vam dormir a judiaria e mouraria". Ibid.
to. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense Editora, 1967, vol. l, p. 472. p. 68.
86 Procissão da Batalha do Toro, 1482. Cf. PEREIRA, Gabriel. Documentos Históricos da 90 LÊ GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992
Cidade de Évora. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, pp. 368-369. p. 178.
74 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 75

restrições à participação daqueles que professavam outro credo. Entretan- divisas, seriam seguidos pelos hortelãos e pomareiros da cidade e termo,
to, a recorrência nas transgressões cometidas por católicos, mouros e movendo uma carreta para sustentar a "arrazoada máquina de paus e bra-
judeus e a dificuldade em ceifá-las manifestaram-se nos livros da Câmara gais pintados, que representava uma alminha com seus alfobres, cantei-
entre um regulamento e outro, atravessando matérias de interesses díspa- ros, nora, canaviais e hortaliça". Às costas da gente que andava no cam-
res, como se atropelassem as autoridades. po, viria então, ao som dos gaiteiros, a alegre dança das mancebas, para
A realeza, porém, não deixou inteiramente ao domínio dos conce- fazer bailar as "pescadeiras", fruteiras, regateiras, "vendedeiras" e padei-
lhos a vigilância sobre as festividades devocionistas e cívicas em que São ras. Na sequência, impondo o limite entre as mulheres - seres sedutores e
Jorge e outros padroeiros eram figuras de destaque. Assim como havia enganosos como Eva, a matriz original - e as profissões consideradas
exigido um novo cerimonial de juramento de obediência e homenagem impuras pela tradição vetero-testamentária, umas maculadas pelo sangue
aos senhores que detinham fortalezas advindas de remotos laços feu- dos animais, outras ligadas diretamente ao trato da terra e sobre as quais
dais91, D. João II assinou a autoria de um Regimento das Procissões, logo recaía o peso da expiação do pecado original94, viriam os almocreves
após a remessa de missivas aos poderes locais, nas quais tratou dos feste- com todas suas insígnias, abrindo o caminho aos carreteiros e estalajadei-
jos da Batalha do Toro, referendando, em última instância, o governo das ros, conduzindo, "em sua invenção", os três reis magos. Na próxima ala
cerimónias religiosas do reino. trariam os sapateiros seu imperador com dois reis muito bem vestidos,
Datado de 1482 e escrito em Santarém, o documento foi remetido à ladeados pelos surradores, curtidores e odreiros. No rastro das persona-
cidade de Évora com o objetivo de servir às quatro procissões em que gens que saudaram o Redentor, seguindo a estrela de Belém, e dos ofí-
estava presente o Santíssimo Sacramento: nos cortejos do Corpo de Deus, cios que tratavam dos couros e das peles, os alfaiates, dedicados a cobrir
na procissão do milagre da cera92, na da véspera de Santa Maria de Agosto as vergonhas e culpas que o pecado da Mãe Eva impusera a seus filhos,
- "ocasião do vencimento da Batalha Real" - e na procissão comemorativa trariam a "serpe" e seus castelos.
da Batalha do Toro93. Minucioso, atento às hierarquias sociais, o regimento Na fronteira entre os pecados da carne e a condenação por ela
revelava-se um mapa das devoções portuguesas à elite de mortos produzi- imposta às almas cristãs, o regimento introduzia a força dos que comba-
da pelo catolicismo e um desfile das categorias profissionais que faziam o tiam pelo reino cristão português e os ofícios mecânicos que viabiliza-
cotidiano das cidades, no alvorecer dos Tempos Modernos. Atrás de seu vam o virtuosismo dos guerreiros. Era a vez das milícias, que na conta do
incontestado cunho cívico vislumbrava-se, contudo, a herança de valores monarca iniciariam seu desfile com cem besteiros do conto, formando
pré-urbanos que distinguia os ofícios nobres dos vis. duas fileiras de cada lado da ala, sem capas e exibindo suas bestas "enra-
Mandava el-rei que, na dianteira de todos, abrindo o cortejo, fossem madas". Sua passagem daria vez à aparição dos espingardeiros d'el-rei,
os carniceiros puxando um touro por cordas. A cavalo, os "enxerqueiros" que, por sua própria vontade, viriam logo atrás, dividindo a cena com os
e demais carniceiros acompanhariam o arrasto, exibindo a bandeira de besteiros da Câmara, vestidos com pelotes e trazendo suas espingardas ao
sua divisa e rufando seus atabaques. Portando seus castelos, pendões e colo. Ao ritmo dos atabales, seguiam-lhes os demais homens d'armas,
sem nenhuma cobertura e senhas, trazendo espadas nuas nas mãos e con-
91 MAGALHÃES, Joaquim Romero. "Os Régios Protagonistas do Poder", in MAGA- duzindo "um São Jorge muy bem armado" com um pajem e uma donze-
LHÃES, Joaquim Romero. História de Portugal - no alvorecer da modernidade. Lis- la, a matar o dragão. Acompanhando a comitiva do padroeiro, de um lado
boa: Estampa, 1993, p. 513. e de outro, barbeiros, ferreiros, cuteleiros, ferradores, seleiros, "baynhei-
92 Conta-se que em Évora, no ano de 1372, o Inverno fora muito chuvoso e no mês de ros", "esteeiros" e latoeiros bem armados, sem nenhuma cobertura, impu-
Maio seguiu-se uma forte estiagem fazendo com que os grãos germinassem antes da nhariam sua bandeira.
colheita. Para evitar a perda das safras, a cidade invocou a intercessão da Virgem e os
padres oficiaram uma missa. Antes de seu término, uma chuva torrencial desceu dos Aos artífices do ferro e aos mestres na arte de sangrar, indispensá-
céus. O milagre completou-se quando o procurador e os vereadores verificaram que os veis ao desempenho dos exércitos, sucederiam outros andores e mesteres.
doze grandes círios acesos durante a cerimónia não se haviam consumido. Ao contrá- Os espectadores veriam então a fila de tecelões, penteadores de lã e car-
rio, aparentavam ter dobrado o tamanho. Cf. GUIMARÃES, Ribeiro. Summario de
Varia História - narrativas, lendas, biographias, descripções de templos e monumen- dadores, a trazer sobre o dorso São Bartolomeu e um diabo preso por uma
tos, estatísticas, costumes civis, políticos e religiosos de outras eras. Lisboa: Casa de corrente, e de outro lado correeiros, dargueiros e sirgueiros a carregar um
Rolland & Semiond, 1874, p. 33.
93 Regimento das Procissões da Cidade de Évora, 1482. Cf. PEREIRA, Gabriel, op. cit., 94 "Trabalho, técnica e artesãos no sistema de valor da Alta Idade Média (séc. V ao X), in
pp. 371-373. LÊ GOFF, Jacques, op. cit., pp. 106-107.
76 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 77

São Sebastião. Dando sequência à aparição dos mártires, ataqueiros e Definindo expressamente aos eborenses o que julgava como uma
"cafeeiros" trariam São Miguel, o Arcanjo, com sua balança e remos na comemoração digna dos "vencimentos" em Toro e Samora, o que enten-
dianteira de Santa Clara, conduzida por soleiras, telheiros e tijoleiras. dia como "solenydade cerimonia ofícios e jogos [...] em o dia de corpo de
Depois, "bem araryada", Santa Catarina viria sob os cuidados dos carpin- Deus", D. João II desenhava um padrão de representação das cerimónias
teiros, pedreiros, taipadores, calçadores, caieiras, cavouqueiros, molinhei- religiosas em Portugal, mas também referendava a presença do padroeiro
ros e serradores aos quais estendia sua proteção. No seu encalço, levando no imaginário político português, acrescendo ao currículo de desfiles do
sua bandeira, atabaques, tochas e castelos de estanho acesos, os tosadores santo militar mais duas procissões. Rei num tempo em que a morte do
e cirieiros fariam "pombinha na praça", deixando livre o trajeto para os monarca, o nascimento do herdeiro, o casamento da infanta e a execução
mesteirais mais enriquecidos e as flâmulas da cidade e d'el-rei. dos sentenciados eram dramatizadas, D. João II interveio com pulso fir-
Desta feita, após a passagem do andor de São João, iluminada com me na observação destes códigos de comunicação, fazendo da represen-
os círios dos ourives e picheleiros, viria a bandeira do concelho e depois tação uma arte essencialmente política, como os demais príncipes da
a bandeira régia à frente do alferes ou dos almotacéis. Logo atrás, os Renascença96.
ricos trapeiros, mercadores de pano de linho e retrosaria, carregando suas Criadas em memória da vitória sobre Castela nos dias de D. Afonso
tochas acesas e castelos de estanho, trariam pela rédea dois cavalinhos V, as comemorações cívico-religiosas obedeceram, portanto, ao bulício
fuscos. Em suas costas, os mercadores de pano de cor com seus círios da política entre os reinos vizinhos, cuja história fora marcada pela
acesos cederiam espaço para as fileiras de autoridades e letrados: escri- intermitência de acordos e disputas desde priscas eras. Em trinta de Julho
vães, vigários, escrivão d' armas, boticários, tabeliães de notas, o tabelião de 1491, o mesmo rei a ordená-las suspendia o mandado e informava por
do judicial, os procuradores e inquiridores, escrivães dos órfãos d' almo- carta à Câmara de Lisboa a razão da medida.
taçaria, escrivães d'el-rei nosso senhor, escrivães dos contos e do almo-
xarifado, os escrivães dos pretos e dos vinhos. Por fim, ante o Corpo de "[...] conssirando nos agora no grande amor e afeiçom a paz e aseseguo
Deus, os dois juizes do ano anterior ou os vereadores da gestão passada. que há antre nos e elRei e Rainha de castella de liam e daragam etc nos-
Integrando todos os mesteres e representantes das instâncias muni- sos muito amados e preçados Irmãaos e Jso meesmo como cassamento do
cipal e régia, o modelo de espetáculo religioso idealizado pelo príncipe príncipe meu sobre todos muyto amado e preçado filho com a princessa
sua filha foy o meyo per que todallas coussas passadas ouuessem fim e de
perfeito consistia em uma rede de poderes e relações sociais mediada por
hua e da outra parte fossem esquecidas e o amor antre nos todos crecese /
imagens95 e revelava alguns dos pares de tensão que constituíam a vida avemos por seruiço de deus e nosso que a dieta priçisom se nom faça
diária portuguesa. Inspirado certamente nos usos e costumes religiosos, o mays porem vo lio noteficamos asy e vos emcomendamos e mandamos
regimento não era uma abstração do rei, nem mesmo uma medida a fim que daquy en djante vos nam enpaches de mays fazerdes nem mandardes
de aprisionar a espiritualidade em um cárcere de puritanice. Em meio a fazer e deo asy comprirdes vo lio agardecemos"97.
um séquito de santos e santas, exemplos de um êxtase religioso obtido
pela mortificação do corpo, a dança e a música asseguravam a festa dos Prova de que as acelerações do tempo curto subvertiam a cena polí-
sentidos. tica e mostravam-se capazes de transformar o ódio da véspera no "amor e
Sem erigir muralhas entre o sagrado e o profano, a composição das afeição" do dia, a missiva régia redigida em Évora, exatamente dez anos
procissões descritas pelo documento era o espelho de uma ordem social após a morte de D. Afonso V, excluía do calendário comemorativo a
que submetia a vida comunitária e cívica à expressão religiosa. Em pon- "relembrança" da Batalha do Toro, minimizando a rusga entre Portugal e
tos opostos do cortejo, os ofícios mais castigados em seu prestígio encon- Castela, em função de uma aliança matrimonial acordada pelo próprio
trar-se-iam apartados das autoridades laicas e religiosas, não fossem os Afonso V. Dirigida à recordação de um feito que fizera rivais partes ago-
santos - seres intermediários, medianeiros - e as insígnias do concelho e
da Coroa - também agentes mediadores entre os súditos e o rei e entre o
reino e a Cristandade -, dispostos no centro da comitiva. 96 BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1982, p. 18.
97 "Carta que el Rei nosso senhor mandou aos ofiçiaaes desta cidade per que se nam faça
em a dieta cidade a príçissom de março por respeito da batalha de touro". Livro das
95 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14. Posturas Antigas. Lisboa: Ed. Câmara Municipal, 1974, pp. 192-193.
78 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 79

rã unidas, a procissão inaugurada há quase uma década e que se reputava Presente em Portugal desde o século XIV100, a devoção ao corpo
eterna, tornava-se letra morta. místico do Cristo encontrou na procissão de sua evocação um dos princi-
Embora arrefecidos os embates na arena política, o culto dinástico a pais vértices de sua expressão. Como em muitos locais do Sacro-Império,
São Jorge manteve-se vivo na Casa de Avis. D. João II não só acrescera- como em tantas comunidades italianas, cidades e vilas dos reinos caste-
-Ihe procissões. Em 1482, data em que compôs o Regimento de Évora, lhano, aragonês, inglês e francês, os cortejos de Corpus Christi, realiza-
entregou o importante entreposto da Mina à proteção do mártir. À seme- dos em território luso, estiveram sob a alçada das autoridades municipais.
lhança de D. João I, que lhe dera o castelo de Lisboa, do infante D. Hen- Se em algumas áreas do continente europeu a devoção eucarística encon-
rique que lhe consagrara uma ilha, D. João II punha sob seus cuidados a trara seus benfeitores nos mercadores e demais categorias sociais endi-
fortaleza na costa oeste africana, para defendê-la e protegê-la. Saudando nheiradas, ávidas por tomar as rédeas do mando e participar ativamente
São Jorge em seu testamento como seu padroeiro, mediador de suas con- das decisões locais, em Portugal a festa também congregou negociantes e
quistas no ultramar, o rei mandava-lhe rezar mil missas como prova de mesteres, assumindo conotações cívicas. Mas o estímulo à emergência e
sua devoção e em favor de sua alma98. afirmação de dignidades eclesiásticas e leigas esteve sempre atravessado
Este culto dinástico seria, no entanto, atualizado anualmente, a cada pela ação da Coroa, que fez da procissão um dos abrigos de seus símbo-
oitava de Pentecostes, quando o santo, seu estado e bandeira reviviam a los temporais, intervindo na produção da imagem pública da solenidade.
vitória que dera origem à dinastia de Avis no cortejo do Corpo de Deus, Elemento estruturante da vida religiosa no torrão luso, a festa do Cor-
festa que ligava o reino a toda a Cristandade, através da devoção eucarística. po de Deus mostrava-se, já na época de Aljubarrota, a principal referência
para a organização dos festejos religiosos que se pretendiam memoráveis, e
noventa e cinco anos à frente, à soleira da Época Moderna, continuava a
4.3. São Jorge no Corpo de Deus sê-lo, como comprova o regimento das Procissões de D. João II. No entan-
to, onde quer que se tenha registrado, a imagem de São Jorge e sua bandei-
Produto de uma época animada pelo crescimento das áreas urbanas, ra estavam presentes, referendando o papel do padroeiro na defesa do reino
aquecida por uma vivência religiosa atuante, na qual clérigos e laicos e do corpo social. Realizada em Évora, segundo as disposições regimentais
transitavam entre grupos heréticos e novas ordens eclesiásticas, a venera- do príncipe perfeito, a festa tinha normas próprias nas cidades de Coimbra,
ção ao Corpus Christi desenvolveu-se à sombra do discurso religioso que Porto, Braga, Nisa, Lisboa e nas outras áreas concelhias. Era, com efeito,
dera relevo ao Novo Testamento, às figuras de Jesus e da Virgem Maria, um termómetro das devoções locais e, por isso, um instrumento para a afe-
constituindo uma das pedras-de-toque da espiritualidade da Baixa Idade rição da popularidade dos santos cultuados pelos portugueses.
Média. Fruto da promoção social feminina nos domínios do sagrado e Entre os coimbrãos, a procissão iniciava-se com os forneiros, car-
resultado da experiência mística de mulheres que reconheciam na Euca- voeiros, telheiros, caleiros e lagadeiros usando boas capas e vestidos,
ristia o caminho para a manifestação divina, o culto ao Corpo de Deus com seis homens dançando a judenga com sua toura. A todos seguia o
deixou as visões de dominicanas e beguinas e o perímetro da região de "segitório" e depois uma ala de ferreiros, serralheiros e carpinteiros tra-
Liège para expor-se a contextos culturais distintos, uma centúria após sua
introdução no calendário católico por Urbano IV, em 1264".
Igreja e na outra uma festa que o próprio Jesus desejava ver celebrada. Cf. RUBIN,
Miri. Corpus Christi - lhe Eucharist in Late Medieval Culture. Cambridge: Cambridge
98 Testamento de D. João H, 29 de Setembro de 1495. ESTEVES, Maria Luís de Oliveira University Press, 1993, pp. 164-271.
(org). Portugalia Monumento Africana. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 100 Oliveira Marques afirma que a introdução da festa do Corpo de Deus em Portugal
1995, vol. 2. remonta ao fim do reinado de D. Afonso III (12107-1279), período em que se deu a
99 As viíae de santas dominicanas e beguinas apontam para a expressiva devoção eucarís-
institucionalização da devoção. No entanto, as referências sobre a solenidade no reino
tica no círculo das religiosas. A fascinação pelo contato físico com o sofrimento de português remontam à segunda metade do século XIV. Como demonstrou Miri Rubin
Cristo, instante mais vulnerável de Sua forma humana, inspirava-lhes a mais perfeita em um estudo sério e criterioso, a oficialização do culto não coincidiu de pronto com
comunhão, despertando-lhes um sentimento conjugal ou maternal. A veneração ao sua entrada em todos os territórios da Europa. Os primeiros registros do culto para
Cristo crucificado e a valorização da Eucaristia foram tema de uma série de revelações. além das fronteiras da diocese de Liège são dos últimos anos do século XIII e era
Um dos primeiros registros é atribuído a Juliana de Cornillon (c. 1193-1258) e deu ori- promovido por comunidades eclesiásticas. A expansão do culto eucarístico ocorreu
gem ao movimento para a oficialização do culto local. A mística afirmava que, mais de apenas no pontificado de João XXII. Cf. MARQUES, Oliveira A. H. de, op. cit.,
uma vez, Cristo mostrara-lhe em sonho a lua. Em uma de suas partes, a beguina via a p. 161; e RUBIN, Miri, op. cit., p. 180.
80 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 81

zendo a serpe. Logo atrás, os cordoeiros, alabardeiros, odreiros e tinturei- Assinado pelas autoridades do concelho em dez de Junho de 1517, o
ros puxavam quatro cavalinhos bem feitos e bem pintados, antecedendo o regimento coimbrense da procissão do Corpo de Deus fora motivado
espetáculo das danças e bailados, que barqueiros, regateiras, vendedeiras pelas confusões que cercavam a organização da festa e davam chance à
de pescado e fruteiras ofereciam aos olhos dos espectadores, ao som da irrupção da subversão das hierarquias entre os ofícios. Embora impondo
gaita e do tamboril. Trazendo um rei com sua coroa e pajem, ambos bem multas pecuniárias àqueles que não cumprissem suas determinações, quer
vestidos e ataviados, os oleiros com uma dança de espadas completavam desrespeitando a ordem do préstito ou recusando-se a participar nos mol-
o quadro, embalados com a música de sopro e percussão. Às suas costas, des estipulados, os juizes e regedores da Câmara mantiveram as caracte-
arrematando o bloco animado pelas coreografias populares, alfaites, rísticas locais do festejo.
"alfaafatas" e tecedeiras de tear comum traziam um imperador e uma Semelhante ao regimento elaborado por D. João II, no tocante às
imperatriz com oito damas, representadas por moças honestas e bem estratificações sociais, o regulamento coimbrão distinguia-se de seu con-
ornadas, que faziam sua passagem à marcha do tamboril e da gaita. génere no que cabia às manifestações folclóricas, revelando outro parâ-
Chegava então a vez dos santos e das santas. Um São Cristóvão metro de expressão em relação ao sagrado. Enquanto aquele concentrava
grande e bem pintado, fornecido pelos barqueiros, ia adiante dos inter- no primeiro bloco do cortejo os componentes profanos, reservando às
cessores celestes. Surgia então Santa Clara, na pele de moça honesta e de duas últimas partes da procissão as aparições santas, este compunha-se a
boa fama, acompanhada por sapateiros e outros homens que, trajando partir de um outro arranjo. De fato, mantinha na dianteira do préstito a
boas camisas, dançavam a mourisca ao ritmo da gaita ou do tamboril. festa dos sentidos, mas lhe permitia achegar-se à volta de algumas perso-
Seguiam-lhes os tecelões, trazendo Santa Catarina, também representada nagens religiosas.
por moça honesta e de boa fama, bem ataviada, com sua roda de navalhas Note-se que tanto São Cristóvão quanto Santa Clara seguiam entre
pintada e bem obrada. Às suas costas, os correeiros traziam S. Sebastião os olhos de fiéis e devotos envolvidos pelos passos alegres e ritmados das
encarnado por um homem bem disposto, com quatro frecheiros bem danças mouriscas. Ao contrário da procissão eborense, a coimbrã vestia
"corrigidos", antecedendo aos livreiros e aos marceiros que abriam espa- suas moças formosas, de boa reputação, e seus jovens bem dispostos
ço para a passagem do andor de Santa Maria, feito pelos cirieiros e escol- como santos. Todavia, se a prática era possível em se tratando de Santa
tado por pintores e livreiros. Após, Nossa Senhora, São Miguel e dois Catarina, Santa Clara e São Sebastião, não se repetia em relação aos
diabos grandes, obra dos ataqueiros, passavam levados por boticários e padroeiros do reino. A Virgem Maria e São Jorge transitavam entre os
anunciavam a chegada das gentes armadas. espectadores inanimados, em um bandeira ou sobre o andor, sem que sua
Encabeçados pelos espingardeiros, vestidos com anadel, pelotes, e presença concorresse com outros atrativos ou dessem margem a encena-
empunhando as espingardas responsáveis pela salva de três tiros quando ções ou inspirassem sentimentos que contrariassem o sentido de sua pre-
o Santíssimo deixava a Sé da cidade e retornava a ela depois do cortejo, sença no seio do cortejo.
vinham os homens d' armas bem dispostos, portando armas bem limpas e Observe-se que a imagem "pintada" do padroeiro era escoltada pelos
lustrosas, acompanhando um São Jorge pintado, conduzido pelo mesmo mesmos mesteirais em Évora, ao contrário de Santa Clara; lá, seguida por
número de barbeiros e ferradores. Após o desfile da milícia de Jorge e telheiros e demais profissionais vinculados à construção civil, e aqui
dos picheleiros, seguiam-se as armas da cidade, conduzidas por uma conduzida entre os sapateiros. Se a invocação à companheira de Francis-
moça muito formosa e coroada, e a bandeira de Coimbra levada pelo co de Assis obedeceu a devoções locais, possibilitando que se colasse a
alferes, deixando ver os quatro cidadãos antigos escolhidos pelos corre- ofícios de natureza diferente, a associação criada pela Casa de Avis, que
gedores, cuja passagem acenava a apoteose do evento. Aos padeiros e sua unira São Jorge aos homens de ferro e fogo, era uma invariante neste sis-
fogaça, sucedia então a clerezia e o Santíssimo Sacramento cercado por tema de representações e repetia-se em outros pontos do território onde a
quatro anjos e doze dos cidadãos mais honrados do lugar101. procissão coalhava de espectadores as ruas do lugar e exigia das autori-
dades municipais a reformulação de sua organização.
Situada na interseção de níveis culturais distintos, a festa portuguesa
101 ACMC, "Regimento da Procissão do Corpo de Deus e de como hão-de-ir os ofícios
em nome da devoção eucarística construiu um histórico pautado por uma
cada hum em seu logar", in Livro I da Correia - legislação quinhentista do município sucessão de normas escritas para serem cumpridas e infringidas. Seja por-
de Coimbra. Edição da Biblioteca Municipal de Coimbra, 1938, pp. 158-163. que, para uns, a relação entre os fiéis e os santos era tão estreita, a ponto de
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dispensar cerimónias e dissolver supostas barreiras entre o sagrado e o pro- Aberta pelos hortelões, com seu rei e imperador, a procissão seguia
fano, seja porque, para outros, a linha divisória entre o real e a representa- com a mourisca dançada por quarenta homens, um rei mouro e os confei-
ção era tão delgada que tornava imperativa uma ação coercitiva para teiros que num canto de seis vozes entoavam toadas "ao antigo" com
refrear impulsos que agrediam o propósito inicial da cerimónia. seus alaúdes e pandeiros. Ao coral e bailarinos sucediam duas folias, uma
O esforço para conter desavenças, transtornos ou comportamentos do concelho de Gondomar, outra do concelho de Gaia, os taberneiros
desviantes durante a realização da festa não foram alvo de preocupação com sua bandeira, um drago enfeitado e sua dama. Logo atrás, os carpin-
apenas dos juizes e regedores da cidade à beira do rio Mondego. Em teiros com seu rei, imperador, serpe e bandeira ofereciam uma dança de
1560, cinco décadas após a redação das normas coimbrãs, a rainha ciganas bem ornadas, que precedia os calafates, torneiros, canastreiros,
D. Catarina (1507-1578) expediu uma provisão à Câmara do Porto, orde- serradores, caixeiros e tanoeiros com uma chacota de doze pessoas bem
nando a reforma do evento face ao registro de certos abusos envolvendo trajadas e de boa voz. Na sequência, montado sob um cavalo bem ajaeza-
personagens santas. Conta-se que os organizadores portuenses, ao esco- do, vinha São Jorge, figura de vulto, armada, acompanhada de seis
lherem moças para integrarem o préstito, como Santa Catarina e como lacaios, dois juntos a si e os outros adiante, compondo sua milícia, que os
"dama do drago", ocupavam-se de buscá-las e enfeitá-las, mas os pais, douradores, apavonadores, conteiros e cirieiros ofereciam à festa. Na
sem poder-lhes valer, refilavam o procedimento porque o convite facili- esteira do santo, barbeiros com seu rei e bandeira caminhavam ladeados
tava a que "muitos mouros" lhes "falassem muitas desonestidades"102. por dezesseis homens, armados e com tambores, cuja participação finan-
Segundo a soberana e as famílias aviltadas, estes eram procedimentos ciavam pró rata com os sangradores e ferradores.
impróprios, diante da mártir de Alexandria, e ante a princesa de São Jor- Ao fim dos mestres de lancetar e ferrar, era a vez dos padeiros que
ge, e incompatíveis à qualidade das jovens. se apresentavam junto a doze moças, cantando em dois coros, com pan-
O empenho da realeza e a indignação dos responsáveis pelas donze- deiros e adufes, seguidos pelos sapateiros com seu rei, imperador e São
las não bastaram, entretanto, para suprimir a prática. Meio século à fren- João Batista, cercado por uma dança de pelo menos dezoito sátiros e nin-
te, em 13 de Maio de 1601, o mesmo incidente foi motivo de outra mis- fas caracterizados. Após a ala heteróclita, pedreiros, cabouqueiros e tra-
siva régia que, para conter as fanfarrices, acabava por proibir as danças e balhadores afins garantiam a animação com uma banda de música que os
o hábito de homens e mulheres irem como santos no cortejo. Como o alfaiates, seu rei e imperador, junto a calceteiros, tecedeiras e tecelões
concelho, em altercação, afirmava que se tratavam de coisas honestas, a sucediam em meio à dança da retorta. No seu encalço, merceeiros e ten-
medida foi revogada. Mas o talento para a argumentação dos homens- deiras com sua bandeira e mordomo mantinham o ritmo do bailado, ofe-
-bons da cidade não impediu que, seis anos depois, o Sacramento deixas- recendo outra coreografia à frente de doze pastores bem trajados.
se a gaiola e passasse a ir debaixo do pálio para evitar que alguns, ao ati- Seguiam-lhes os sombreiros e tosadores e uma dança a representar
rar moedas de suas janelas, estilhaçassem os vidros da charola onde ia o mulheres de idade bem trajadas, portando arcos de cera ou de flores.
Sacramento, provocando a parada do cortejo, em algumas portas, para ali Numa "folia muito boa" de doze vozes em canto d'órgão chegava Baco,
se dançar103. cortesia de mercadores e tratantes de vinho e, logo depois, regateiras,
A recorrência de desmandos culminou na formulação de um Acordo celeiros, cutileiros, bainheiros, espadeiros, asteireiros e correeiros, com
e regimento que fizeram os oficiais da Câmara da cidade do Porto para a sua bandeira e castelos bem ornados com bandeirinhas, boninas e outras
procissão de Corpus Christi, em 1621. Assim como os regulamentos da flores, trazendo um cavalinho e um anjo armado no meio. Com tochas
festa em outras localidades, a versão portuense previa a participação de nas mãos, vinham então os picheleiros, latoeiros, caldeireiros, agulheiros,
São Jorge no cortejo, que tinha início às sete horas da manhã na catedral anzoleiros e ataqueiros antecedendo a nau de São Pedro, com a bandeira
e seguia ao repique dos sinos pelas ruas enfeitadas de espadanas, juncos e da confraria dos mestres pilotos e mareantes de Miragaia. Abrindo as
canas verdes trazidos pelos moleiros das freguesias do Termo104. páginas do Velho Testamento, a procissão trazia a público Judite, uma
aia, e o sacrifício de Abraão, que davam os tecedores de seda e retrós.
102 "As Festas do Calendário Popular", in BRAGA, Teófilo. O Povo Português nos seus Após o profeta, em produção oferecida pelos oleiros, Nossa Senhora,
Costumes, Crença e Tradições. Lisboa: Dom Quixote, 1994, vol. 2, p. 207.
103 GUIMARÃES, Ribeiro. Summario de Varia História, op. cit., p. 17.
Relação, e do Bispo da dita Cidade, conforme as Provisões de Sua Magestade, 1621"
104 "Accordo e regimento, que fizerão os officiaes da Câmara da Cidade do Porto, para a apudGUIMARÃES, Ribeiro. Summario de Varia História, op. cit., pp. 12-16.
Procissão de "Corpus Christi" com parecer do Doutor António Cabral, Chanceler da
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"trajada do modo como se costumava pintar fugindo para o Egito", vinha extremadas no circuito de festas do Corpo de Deus. Também as autorida-
ao lado de São José, e dois anjos, à dianteira do menino Jesus, em uma des municipais entregavam-se ao deleite de regabofes durante a festa do
charola bem ornada com quatro tochas, oferecida pelos violeiros. Logo Corpus Christi. Conta-se que em Braga, ainda nos últimos anos do reina-
depois da Sagrada Família, São Cristóvão, São Sebastião, os doze após- do de D. João III, a Câmara oferecia um jantar com o qual despendia a
tolos, Cristo, os anjos, as trombetas e charamelas da cidade, precediam a verba de quinze mil réis, completando o ciclo de atrações composto por
flâmula do concelho, as autoridades municipais, régias e os religiosos: cavalhadas e por uma corrida de touros que tinha lugar na véspera do cor-
tabeliães, inquiridores, procuradores, corregedores, juizes, vereadores, tejo. No desfile, um dos dois juizes da cidade conduzia a bandeira, em
dominicanos, franciscanos, carmelitas e os monges de Santo Elói. forma de pendão, com uma pintura ao centro representando a Virgem.
Revelador de um comportamento nada hierático frente às figuras "São Jorge, que desde o reinado de D. João I tinha nesta procissão um
sacras, o cortejo embasado no regimento portuense foi, porém, aprovado lugar distinto", era seguido de doze apóstolos, quatro patriarcas, alguns
pelas provisões do Chanceler da Casa da Relação. Escrito no período de anjos e numerosos andores. O espetáculo incluía ainda o carro das ervas
Filipe II, fase a ser marcada pelos movimentos separatistas que conduzi- oferecido pelos hortelões de Maximinos, as dançadeiras, a mourisca e as
riam a Casa de Bragança ao trono português, o documento é quase um mascaradas106.
manifesto das tradições populares portuguesas. Em contraste à atmosfera A feição carnavalesca do evento religioso mobilizava tanto as gentes
soturna que dominou Portugal após a União Ibérica e deixou fidalgos e feria tanto as graves disposições do credo tridentino (1545-1563), que
sem uma corte régia para flanar e obter favores, a festa de Corpus Christi, em 1566 o Concílio Provençal Bracarense determinou que se modificas-
no Porto, fazia do espaço aberto um salão de festas de Deus, assim como sem as exibições profanas. Intentando apartar do Santíssimo e da Igreja a
a Igreja os templos barrocos105. balbúrdia que acompanhava o préstito, as determinações sinodais procu-
A despeito da inegável riqueza de que se travestiu com o avançar ravam construir um muro entre o sagrado e o profano, mas revelavam um
dos Tempos Modernos, a festa permaneceu fiel aos antagonismos que caráter ambíguo. Embora visassem coibir o comportamento lascivo e a
caracterizavam a composição medieval do cortejo e às ambiguidades presença dos jogos e personagens que inspiravam o riso, não proibiam
próprias da religiosidade popular. Em sentidos opostos, oficiais mecâni- que mulheres fossem vestidas de santas ou que as danças, folias e inven-
cos e autoridades municipais intercalavam-se entre músicos, dançarinos, ções tradicionais se ausentassem da festa. Desejavam vê-las fora da pro-
cantores e uma plêiade de santos masculinos. Como nos relatos quinhen- cissão107.
tistas, à volta dos ícones sagrados misturavam-se componentes declara- A censura pode ter eliminado do cortejo algumas coreografias, con-
damente profanos que faziam São João parceiro de sátiros e ninfas. tudo não fez desaparecer todos os vestígios burlescos, nem tampouco a
Como nos dias do primeiro monarca de Avis, São Jorge seguia em meio animação que precedia sua realização e garantia a alguns a oportunidade
a fileiras de douradores, ferradores, barbeiros e sangradores, em um cor- de engrossar o orçamento. Os lavradores das freguesias de Navarra,
cel com todos os arreios e ornatos, guardando o sentido original de sua Crespos, S. Lucrécia, S. Paio da Ponte do Porto e Adaúfe continuaram a
presença, como confere a um santo com patente de padroeiro. É certo, vir anualmente à cidade, para varrer as ruas e as praças no dia anterior à
porém, que se a arquitetura do préstito e a função simbólica das persona- procissão, com a mesma disposição. As artérias da cidade eram tapizadas
gens caras à memória afetiva mantiveram-se ilesos, o sinal dos tempos de ervas cheirosas -juncos e espadanas - pelos lavradores das freguesias
fazia-se sentir com ausência das mártires e demais heroínas do catolicis- de Semelhe, Gondizales, Frossos, S. Jerónimo e S. Martinho, recebendo
mo. Houve mesmo uma resposta ao segundo surto de expansão da devo- cada um quarenta réis, como mandava a tradição.
ção mariana no Ocidente cristão e aos dissabores pretéritos com as moças Na oitava de Pentecostes, a procissão enfileirava-se. Em sua diantei-
de família. ra, o boi bento, oferecido pelos marchantes e conduzido por um lavrador
Os excessos portuenses protagonizados por espectadores traquinas, de Nogueira, avançava, com suas pontas enfeitadas de fitas multicores e
motivadores de uma série de interferências do poder régio junto ao poder
local, no princípio do século XVI, não foram os únicos registros de ações 106 BELLINO, Albano. Archeologia Christã - descripção histórica de todas as egrejas,
capellas, oratórios, cruzeiros e outros monumentos de Braga e Guimarães. Lisboa:
Empreza da História de Portugal, 1900, pp. 166-168.
105 FRANÇA, Eduardo D' Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Huci- 107 SANCHIS, Pierre. Arraial: Festa de um Povo - as romarias portuguesas. Lisboa:
tec, 1997, p. 52. Publicações Dom Quixote, 1992, p. 123.
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grandes folhos ao pescoço, abrindo o préstito. Atrás, os clarins tocados mobilização de vizinhos em torno de uma praça que funcionava como
por negros iam ante o carro das ervas, seguido por quatro gigantes e um epicentro de uma região mais vasta. Portanto, trazia as marcas das pere-
anão, chamado pai dos gigantes, conduzidos aos saltos por quatro grinações populares, tipicamente rurais, que aglutinavam à roda de um
homens da vizinha freguesia de Esporões, que recebiam, cada um, qua- lugar considerado sagrado os devotos de um mesmo santo, a quem toma-
trocentos e oitenta réis. vam por patrono108. Mas a amplitude do festejo não correspondia apenas
O teatro volante prosseguia com um galego metido dentro da serpe, aos estímulos de ordem económica que, evidentemente, seduziam os par-
seguido por um grande dragão preso por uma fita e conduzido pela dama ticipantes, nem a presença de jogos e brincadeiras devia-se exclusiva-
do drago. No encalço, um indivíduo a cavalo, representando São Jorge, mente à atração pelo divertimento. Ligava-se, com efeito, à tentativa de
cercado por seu estado, marchava à frente da guarda de honra do drago e alargar ao máximo o círculo processional, para que o sagrado invadisse o
da serpe composta pelos ferreiros exibindo espadas ferrugentas. A peça cotidiano e se tornasse familiar109.
abria caminho para a aparição de S. Cristóvão e seu bordão, um pinheiro A Igreja, porém, resistia a esta compreensão. Como na diocese de
enfeitado pelos procuradores da comarca, levado por oito moradores da Braga, quase um século após o Concílio de Trento, o comportamento
vizinha freguesia de Ferreiros, engalanados com opas vermelhas, que popular durante os festejos do Corpo de Deus também foi alvo de
recebiam o montante de duzentos e quarenta réis cada um. repreensão por parte do alto clero secular, em Nisa. Conta-se que um
Longe das mui nobres e leais cidades da Estremadura e do Alentejo, grosso mancebo, ao representar São Jorge no festejo, ia diante da clerezia
dos dias do príncipe perfeito e avessa às ordens de inspiração tridentina, fazendo "trejeitos e gaifonas", perturbando a ordem da solenidade. Mon-
a procissão bracarense era uma cerimónia religiosa afinada com os ingre- tado em um vigoroso cavalo, adornado com capacete, muitas fitas, coura-
dientes cómicos das representações grotescas, em que as figuras santas e ça e uma lança que manejava com destreza, o rapaz provocava extraordi-
o aparato que as cercava matizavam-se aos elementos burlescos, como se nária hilaridade. A bufonaria passou de escândalo a motim no ano de
fossem o motivo de um quadro de Brueghel. A dar crédito a este relato 1694 e o bispo D. António de Saldanha, quando veio à visita, proibiu
tardio, que sequer menciona o Santíssimo Sacramento e a clerezia, onde expressa e positivamente tal costume, que, segundo dizem, nunca mais se
os santos eram conduzidos entre gigantes e anões, hota-se o destaque repetiu110.
atribuído a São Jorge e ao episódio da Legenda Áurea, dramatizado pelos Não se sabe, realmente, se a reprimenda do prelado surtiu de imedia-
participantes. to o efeito esperado. Mas é fato que em 1709, data em que o município
redigiu novas normas para a festa, a alegria e a algazarra pareciam ter-se
Situada no Norte português, região historicamente vincada pelo ausentado e a motivação para a participação também. Na sessão da
regime senhorial e herdeira de uma nobreza vencida pelo processo de Câmara de quinze de Maio daquele ano, deliberou-se que "para mais
centralização régia, Braga não revivia exatamente o São Jorge mártir, solenidade do dia e compostura da procissão do Corpo de Deus", toda a
"defensor da fé", morto pelas mãos do imperador Diocleciano; revivia o pessoa de cada uma das casas do termo era obrigada a vir à procissão e,
São Jorge cavaleiro, o herói cívico, o herói apócrifo, que salvou a prince- não vindo, seria condenada conforme parecesse justo.
sa e protegeu toda uma cidade. O mesmo invocado por Nun' Alvares nos Segundo o documento, no dia da procissão, as padeiras e as tecedei-
campos de Aljubarrota e que afastou o fado do dragão castelhano. Encra- ras deveriam, cada qual, dar uma dança de seis raparigas com um tange-
vada no coração do Entre Douro e Minho, área massacrada pelos saques dor para guiá-las. A "criminação" por descumprir o costume era dez dias
de Castela na ante-sala da aclamação joanina, Braga evocava, no cortejo de cadeia a cada ofício, além da quantia de mil réis, que seria remetida
do Corpo de Deus, a tutela de um santo que, segundo a tradição, garantira a para as despesas do concelho. Sem mais aparatos grotescos, os ferreiros
continuidade da vida e da abundância. O domesticador de uma fera que,
trariam a figura de S. Jorge, como era o seu dever até ao presente e, não
naqueles dias, seguia presa apenas pelos laços de fita da "dama do drago", participando, seriam condenados com a mesma pena, assim como os hor-
atualizando o triunfo e imunizando a comunidade das forças maléficas. telões, obrigados a comparecer com o seu carro devidamente enramado.
Co-organizada por camponeses que se desprendiam de aldeias cir-
cunvizinhas para trabalhar e atuar na festa, a procissão do Corpus Chrísíi
108 Ibid., pp. 40 e 64.
bracarense trazia em sua fisionomia os traços de seu parentesco com as
109 Ibid., p. 134.
romarias portuguesas. Fosse pela valorização de elementos proto-histó-
ricos, objetos do sincretismo entre as matrizes céltica e cristã, fosse pela 110 BRAGA, Teófilo, op. cit., p. 207.
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Se esbatessem a tradição, e lá não fossem com o seu pendão do Espírito São Jorge, do Santíssimo, do patriarca e, dadas vezes, ao próprio monar-
Santo, os pastores também não escapariam à multa. Mesmo o alferes não ca. Concebido como um espetáculo, como um espelho no qual os grupos
se devia ocupar de outros serviços no dia do festejo. Caso o fizesse, cus- podiam mirar-se a si mesmos, o desfile realizado na principal cidade por-
tar-lhe-ia ao bolso a bagatela de quatro mil réis, para engordar os cofres tuguesa reproduzia, à Época Moderna, a lógica de uma sociedade centra-
do concelho. Destacando que moleiros e carpinteiros deveriam conduzir da na figura régia, regulada pela opinião social construída sobre o prestí-
S. José em uma charola e sem se aterem a mais detalhes, as autoridades gio e, por isso, escrava da etiqueta e mestra na arte da observação112.
municipais lembravam que era obrigado a todos os oficiais sapateiros, Centro dos demais núcleos políticos, a corte régia irradiou para o
barbeiros, alfaiates, tecelões e cardadores comparecerem com seus caste- círculo dos poderes periféricos as regras de sociabilidade que ordenavam
los, sob pena de pagarem mil réis 111 . as relações no paço, imprimindo, no discurso das autoridades municipais
O número de obrigações, despesas e as ameaças de encarceramento de Lisboa, a obsessão pelas maneiras e gestos e pela aparência dos corte-
permitem supor que a festa já não transcorria atendendo à expectativa dos jos cívico-religiosos. Mediador entre a realeza e os agentes do quadro
habitantes da cidade de Nisa e arredores. Institucionalizada, atada prova- administrativo erguido com o Estado Moderno, o cerimonial passou a
velmente mais a deveres do que a prazeres, circunscrita aos códigos ofi- integrar, no reinado manuelino, o repertório dos comunicados da realeza
ciais do credo católico após Trento, minada pelas intervenções de autori- dirigidos à Câmara, exigindo daqueles que estavam à frente do concelho
dades externas à comunidade e distantes de suas necessidades mais o domínio de códigos próprios à nobreza de corte, transformando-o em
prementes, a procissão do Corpo de Deus perdera a espontaneidade e a uma célula reprodutora de seus valores.
inocência que acompanham as novidades. Sem que pudessem dar vida ao Em 1502, em missiva dirigida aos procuradores, vereadores e procu-
santo padroeiro, e coibidos de alimentar a ilusão de uma presença ativa radores dos mesteres, D.Manuel (1469-1521) informava às autoridades
no seio da comunidade, os ferreiros já não se mobilizavam para o ato. quais seriam os procedimentos protocolares caso estivesse na cidade e
Entretanto, a Câmara mantinha no préstito, por dever cívico e religioso, a desejasse incorporar-se à procissão do Corpo de Deus. Segundo as ins-
figura de São Jorge e atestava com o documento o quanto as autoridades truções da carta, o rei acompanharia o préstito sob o pálio e, atrás de si,
eram fadadas a intervir no cortejo, fosse para extirpar determinadas práti- de seu lado direito, iriam três vereadores portando suas varas vermelhas
cas, ou para reavivar outras. sem que pessoa alguma, de qualquer estado ou condição, fosse à frente
Mesmo em Lisboa, capital do reino desde a época de D. João I e do trio. Recordava, todavia, que, se da procissão participasse também o
chão onde a festa ganhou fama e notoriedade, com o enriquecimento príncipe herdeiro, os representantes concelhios passariam ao lado esquer-
advindo das empresas ultramarinas, as posturas municipais e a corres- do, enquanto o sucessor caminharia à direita do pai, como cabia ao filho
pondência mantida entre os reis e a Câmara comprovam inúmeras medi- daquele que julgava vivos e decidia, em última instância, quem encontra-
das a fim de corrigir comportamentos impróprios ou a inobservância dos ria a morte113.
compromissos assumidos pelos participantes. Sem um regimento especí- A emissão de pareceres régios sob a forma e condução da celebração
fico para a procissão do Corpo de Deus, o município fora fixando e reno- de Corpus Christi não se limitou apenas a esmiuçar a marcação das dig-
vando as normas ao longo dos anos, como se o silêncio entre um período nidades neste palco móvel. Estendeu-se à frequência das autoridades e ao
e outro expressasse sua realização nos moldes previstos pelo costume e cenário da festa. Em 1514, o monarca expedia um alvará ordenando o
as interferências pontuais dissessem da vontade de não os deixar caducar, "constrangimento" aos oficiais mecânicos moradores na cidade e àqueles
ou das desgraças que os surtos de peste traziam ao reino e ao lugar. que andavam em sua corte, por escusarem-se a participar pessoalmente
Custeada pela Câmara e seus vizinhos, a cerimónia lisboeta envolvia do préstito e enviarem seus criados e mancebos para substituí-los, negan-
diretamente os membros das inúmeras confrarias da cidade, vereadores, do-se a conduzir tochas e castelos, como previa a norma. Endereçada ao
juizes, procuradores, padres e monges, que desfilavam na procissão, por- concelho, a resolução real previa aos faltosos a revogação de seus privi-
tando castelos, bandeiras, invenções e círios, para dar vez às aparições de légios e a multa de quinhentos réis à Câmara, se não comprovassem

l "2 ELIAS, Nobert. A Sociedade de Corte. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 75.
l" Sessão da Câmara Municipal de Nisa em 15 de Maio de 1709, apud FIGUEIREDO,
José. Monografia de Nisa. Nisa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Câmara Munici- 113 regimento de trinta de Agosto de 1502. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cit.,

pal de Nisa. l.' edição: 1956, reedição: 1989, p. 324. p. 422.


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doença ou outro atenuante capaz de justificar a ausência114. Visando "o A insistência régia para atribuir à cerimónia o fausto digno da capi-
serviço de Nosso Senhor e a nobreza da cidade", a medida estimulou uma tal de um Império e para civilizar o perímetro urbano cuja planta já não
série de outras intervenções régias no reinado subsequente, com o intuito reconhecia o castelejo fortificado dos monarcas e príncipes de fins da
de assegurar a continuidade do festejo religioso e de zelar pelo ambiente Idade Média como o palácio do rei, mas sim um paço na Ribeira do Tejo,
no qual se realizava o evento. Assinadas pela Câmara e pelo rei, as nor- levantado do chão para atender as necessidades logísticas das viagens
mas que obrigavam ao embelezamento de Lisboa eram tratadas, aparen- oceânicas e para ser o centro da administração política e económica do
temente, com a mesma gravidade daqueles que eram presos por dívidas reino, tornou-se recorrente nos períodos ulteriores. Dois anos após a
cíveis ou criminais"5. redação da postura municipal que condenava à prisão aqueles que negli-
Sendo costume toldar e ornamentar as ruas em que o relicário passa- genciassem o uso dos adornos na fachada das casas em dia de procissão,
va, aos lisboetas era obrigatório terem portas, janelas e varandas muito D. João III enviava carta ao concelho, relembrando que as ruas deveriam
bem "concertadas" e armadas de seda, brocado, tapeçaria, alcatifas ricas estar cobertas de toldos durante o cortejo e determinando que pessoa
e outras armações douradas, em demonstração de devoção. Para garantir alguma deveria passar de coche ou a cavalo no percurso do préstito, no
o brilho da festa e, sobretudo, a participação em um acontecimento do dia da festa117.
qual a monarquia há tempos apropriara-se como plataforma para a exibi- A par da inobservância do costume de toldar as ruas, el-rei alertava
ção de sua grandeza, o alcaide e outros homens que escolhesse eram aos homens do concelho do inconveniente de se ver estancar a procissão
encarregados de saírem às ruas na véspera da procissão, notificando o onde ele poderia estar, para que terceiros tivessem livre trânsito. A dispu-
cumprimento do dever. Isso porque as gentes recalcitravam. Em vez do ta pela precedência no tráfego das ruas estreitas, tortuosas e esquinadas
dito, punham no lugar cobertores e outros panos mais baratos, contra- de Lisboa exigiria da Câmara outras medidas para evitar as celeumas que
riando o cerimonial idealizado pela realeza e a voz de seus arautos, os se tornariam frequentes com a generalização do transporte no século
representantes do concelho. A recusa em obedecer à norma levou o seguinte118, mas a missiva régia assinalava, particularmente, que a festa
município a impor, em 1592, a multa de cinquenta cruzados pela desobe- do Corpo de Deus era mesmo uma instituição e, como tal, assunto de
diência e a promessa de cadeia ao homem ou à sua mulher, se teimassem interesse da Coroa e um compromisso cívico da cidade e de seus vizi-
em descumprir o mando116. nhos.
Valendo-se da impressão causada pelas instalações dos cárceres do O progressivo relaxamento das normas que obrigavam os membros
Limoeiro, antro inóspito, foco de doenças do corpo e da alma, utilizando- do Senado a participarem do evento, cumprindo a função que lhes cabia
-se dos instrumentos de convencimento de um discurso jurídico forjado de representar o governo de Lisboa e de ir, no cortejo, carregando o pálio
às custas do terror, o concelho disseminava certos gostos e práticas -já evidentes nos dias de D. Manuel -, requereu da mesa a estipulação
oriundos do paço e impunha o patrulhamento do comportamento devo- de multas sobre os ordenados e a suspensão de propinas, quando, sem
cionista. É certo, porém, que a assimilação desses valores encontrava apresentar causa legítima, fossem registradas suas ausências no cortejo
resistências. Afinal, ao contrário dos cortesãos que, na ânsia de manter as ou o abandono da cerimónia antes que se cumprissem os ofícios divinos.
aparências de seu status, tinham que ajustar suas rendas aos gastos que Em 1607, já no domínio filipino, a vereação recordava o alvará régio que
lhe eram esperados, muitos dos inquilinos e proprietários, cujas moradas obrigava os membros do Senado a comparecerem à procissão, sob pena
estavam no itinerário da procissão, ajustavam suas despesas à renda dis- de perderem o ordenado, e atualizava a multa, que chegava a atingir a
ponível. casa dos oito mil réis, conforme a reincidência das faltas119.
A despeito das recobradas diligências para inibi-la, a defecção
114 Alvará régio de dezesseis de Maio de 1514. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cil., havia-se acirrado. Sobretudo porque os lisboetas, entregues à comisera-
p. 417.
115 "Dos que podem seer presos por dividas ciueis, ou criminaes, ou recomendados na 117 Treslado do capittollo de nua carta de S. Magestade que veyo ao senhores goverando-
cadea". Ordenações do Senhor Rey D. Manuel. Lisboa: Fundação Calouste Gulben- res..., 1594. Cf. OLIVEIRA, Eduardo, op. cit., Tomo I, p. 433.
kian, 1984. Fac-simile da edição feita na Imprensa da Universidade de Coimbra, em 118 CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa Seiscentista. Lisboa: Livros Horizonte, 1990,
1797. Livro IV, Titulo LII, p. 125. pp. 36 e 42.
116 Postura da ornamentação das ruas e colunnata. 23 de Maio de 1592. Cf. OLIVEIRA, 119 Assentos de vereação de 11 de Dezembro de 1607 e 7 de Julho de 1607. Cf. OLIVEI-
Eduardo Freire, op. cif., Tomo I, p. 432. RA, Eduardo Freire, op. cit., Tomo II, pp. 171-172.
92 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 93

cão da própria sorte, não contavam com a presença da corte régia e as Dois dias depois da redação do documento, a consulta mereceu uma
atrações festivas já haviam incorporado o gosto de apreciar o trágico nos apreciação favorável do monarca ante a afronta do Marquês de Fontes.
autos-de-fé. Mas a mudez da documentação municipal do período filipi- Desta feita, confirmando o antigo privilégio das autoridades lisboetas e
no foi sintomaticamente interrompida no período em que as Guerras da revivendo a tradição, nove anos após o incidente, na véspera da procis-
Restauração (1640-1668) recobraram a audácia bélica lusa e Portugal são, el-rei procedia à distribuição das varas do pálio entre os membros do
teve novamente à frente do reino um monarca lusitano. Senado, para, no dia seguinte, acompanhar o cortejo que deixava a Sé
Assim, em 1647, ficava acordado no concelho que presidente, Patriarcal com as tourinhas, gigantes, esparteiros, carros de tanoeiros e
vereadores, escrivão da Câmara, procuradores dos mesteres, juizes do hortelões, a serpe, o drago, as bandeiras dos ofícios, São Jorge, o pajem,
crime, do civil, dos órfãos e propriedades, almotacéis de limpeza, o vedor os cavalos, São João Batista, São Miguel, todas as confrarias e irmanda-
das obras, corretores de mercadoria e câmbio, além do contador e tesou- des, as comunidades do Carmo, Trindade, São Francisco, Meninos
reiro da cidade, pagariam, após admoestação, quatro mil réis se negligen- Órfãos, Nossa Senhora de Jesus, Paulistas, São Domingos, o cabido e
ciassem a participação na festa do Corpo de Deus. Caso incorressem pela demais clérigos, além das autoridades do concelho. Seguiam-lhes o San-
terceira vez na violação das normas, seriam riscados dos livros e perde- tíssimo que, debaixo do pálio, era conduzido pelas mãos do patriarca, os
riam os privilégios inerentes aos cargos. Para que a norma tivesse o efei- cavaleiros das três ordens militares, Sua Majestade, suas altezas e, natu-
to pretendido, a Câmara dava ao escrivão das obras a incumbência de ralmente, o Senado, à sua direita.
notificar a disposição a todas as autoridades e atribuía-lhe a função de Repositório de práticas e costumes desde a Idade Média, a Câmara
apontador para que registrasse presenças e ausências120. de Lisboa e as confrarias de ofícios submetidas à legislação do Termo
A ameaça da cassação de privilégios e aplicação de multas aos apreenderam gestos e mesuras saídos do paço, mas também mantiveram
representantes municipais não era, na verdade, aplicada ao pé da letra, vivos símbolos régios caros à Coroa, ao conservarem através dos séculos
como se pode antever pela repetição das faltas cometidas, reveladoras de os cortejos religiosos em que estavam presentes, desafiando a inconstân-
uma sociedade em que a mercê régia orientava as relações sociais e polí- cia dos participantes.
ticas, e onde dois pesos nem sempre eram duas medidas. Entretanto, Como em outros lugares portugueses, São Jorge integrava, desde os
guardiães da memória de um passado remoto, fidalgos, mesteirais e tempos em que fora eleito padroeiro do reino, o séquito que celebrava a
homens-bons do concelho não declinavam inteiramente da aparição devoção eucarística. O santo desfilava pelas ruas da cidade, "represen-
pública, nem tampouco das prerrogativas que o cerimonial do rei felicís- tando um famozo Capitão General", acompanhado de soldados e dos
simo transformara em tradição. melhores ginetes de Lisboa, "custozamente ajaezados", e pela bandeira
Em contraste à inobservância do compromisso de comparecer à pro- dos homens de ferro e fogo, a quem o primeiro rei de Avis entregara o
cissão e ao dever de carregar o pálio, o Senado enviava, no ano de 1708, dever de zelar por seu culto122. Ao encargo dos oficiais mecânicos aos
uma consulta ao rei D. João V, queixando-se da intromissão indevida de quais conferia identidade, a imagem do santo era motivo de impacto na
personagens que se interpunham entre o rei e os representantes da Câma- formação do cortejo. Montado sobre um corcel branco, sua aparição liga-
ra durante o cortejo, fazendo-o sentir-se "ofendido e espoliado da posse ra-se de tal modo à memória da festa, que a qualquer alteração em sua
de sua autoridade, com publico escândalo de todos". Recordando ao composição o público reagia, dando tratos à língua e às crendices do vulgo.
monarca uma mensagem outrora enviada do paço, o concelho lembrava Conta-se que em 1610, quando o arcebispo D.Miguel de Castro
que, ao conduzir a vara do pálio, o presidente do Senado representava a intentou retirar do cortejo os cavalos que seguiam o mártir, o corcel do
instância do poder local e externava uma prerrogativa especial, "por ter o santo manteve-se imóvel no topo da Rua da Padaria, sem dar passo à
Senado da Câmara a seu cargo o governo político e económico [da] cida- frente, empatando a procissão. Como a paralisia do animal fora com-
de e pelos singulares serviços que em negócios Decorrentes da maior preendida pelos presentes como a reprovação de São Jorge diante do des-
importância fez aos senhores reis"121. prezo de sua comitiva, no mesmo instante, face aos clamores e às especu-

120 Penalidades aos que não acompanhavam as procissões da cidade. 22 de Junho de 122 Novo regimento para Governo da Administração da Meza do M. S. Jorge. Fundado
1647. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cit., pp. 425-426. nas Cartas, Alvarás e Lembranças do Antigo regimento que se queimou no inccendio
121 Consulta da Câmara a el-rei em 18 de Junho de 1708. Cf. OLIVEIRA, Eduardo Freire, ao Terremoto do primeiro de Novembro do Anno de 1755, in LANGHANS, Franz-
op. cit., Tomo X, p. 398. -Paul. op. cit., p. 172.
94 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 95

lações do vozerio, o prelado revogou a decisão, permitindo que lhe as ruas de Lisboa em companhia de uma pequena banda e do mordomo
fossem buscar os ginetes. Confirmando a suspeita dos espectadores, a da irmandade de São Jorge, a associação de entreajuda dos oficiais da
montaria do santo seguiu de pronto o cortejo. Instruídos pela cisma, os lis- corporação. Mais uma vez, iam todos à Casa dos Arreios de sua Majesta-
boetas deram razão a si mesmos, no domingo seguinte, enquanto oficiava- de. Agora, para depositar a sela e as alfaias que o santo usava na procis-
-se a missa. Durante o rito, em presença de muitos, o mordomo da bandeira são. Na véspera do cortejo, o mordomo do estandarte despachava nova-
a quem atribuíam a co-autoria da novidade era atingido na cabeça pela lan- mente aos cinco negros pelas ruas de Lisboa, para que noticiassem a
ça de São Jorge, que se desprendera de suas mãos sem qualquer auxílio123. saída do padroeiro. Feito o pregão, os moços recolhiam-se nas cavalari-
O episódio ingressou no circuito das lendas que fizeram a história do ças até à madrugada seguinte, de onde conduziam o cavalo do santo ao
culto a São Jorge, em Lisboa. É revelador da crença em uma entidade encontro de São Jorge, na igreja de sua habitação. Ali, de manhãzinha, o
religiosa caracterizada por intervenções inesperadas, capaz de cativar os mordomo aguardava, com o pajem e o alferes que acompanhavam o már-
mais céticos, encantar os mais crédulos e expressa uma presença santa tir no préstito, a chegada dos demais oficiais da bandeira.
viva, capaz de tomar partido e reagir com indignação e hostilidade às Os cuidados dispensados ao cavalo de São Jorge na Lisboa Moderna
ofensas, como qualquer humano. não eram, entretanto, uma invenção desta época. No tempo de D. João I,
A força desta imagem, nascida nos campos de Aljubarrota, e que a a faca em que montava o santo ficava ao abrigo de uma casa mística,
cidade, por fidelidade a seu rei, vigiou para que não definhasse, decerto contígua ao hospital que os oficiais da corporação mantinham para os
teria esmaecido se não se aproximasse da silhueta guerreira sublinhada obreiros e aprendizes da agregação, junto ao mosteiro de S. Domingos,
pela monarquia portuguesa e por uma sociedade marcada, em sua génese, no Rossio. Conta-se que era costume das gentes oferecer ao mártir, reco-
por uma estratificação social calcada em um perfil militar. Mas também, nhecido entre os lisboetas como "advogado das crianças bravas"124,
se os zeladores oficiais de seu culto descuidassem de sua produção e não cevada e trigo para sua montaria.
a tivessem tornado majestosa, quando de D. João I só restava a Boa O hiato entre as fontes medievais e as fontes da Época Moderna não
permite afirmar, exatamente, quando o costume caiu em desuso. No
Memória.
A responsabilidade pela aparição de São Jorge na procissão lisboeta entanto, essas oferendas ao corcel do santo decerto falam de uma Lisboa
que ainda reconhecia as maias e as janeiras e os ritos de origem pagã
era dividida entre os oficiais de sua corporação, a maior bandeira da
como expressão viva de sua religiosidade. Como se sabe, a predisposição
cidade durante o período moderno. O estandarte reunia barbeiros de bar-
das autoridades camarárias para combater estas manifestações ficou
bear, barbeiros de guarnecer espadas, armeiros, ferradores, espadeiros,
registrada no Livro de Posturas Antigas da cidade, mas a força que, de
pintores, bate-folhas, ferreiros, bainheiros, coronheiros, fundidores de
fato, se incumbira de reprimir vigorosamente estas práticas apresentou-se
artilharia, guadamecileiros, anzoleiros, fusteiros de vasos de selas, os que
apenas nos Tempos Modernos e atendia pelo nome de Tribunal do Santo
faziam sedeiros, pandeiros, gaiolas, além de cantileiros, seleiros, lancei-
Ofício. Tudo leva a crer que a oferenda ao cavalo do mártir foi substituí-
ros, douradores, serralheiros, cutileiros, besteiros, freeiros, latoeiros, cal-
da por um outro rito mais próximo dos enquadramentos aceites pela
deireiros de fazer caldeiras, latoeiros de folha branca, cosetores de caldei- Inquisição. Fazem pensar numa adaptação do conteúdo à forma. De todo
ras, os que alugavam cavalos e os mercadores de carvão. A cada ano, oito modo, qualquer das duas versões atesta que o santo tornou-se, de fato,
dias antes da festa, o mordomo da bandeira, isto é, um dos mesteirais da uma entidade popular em solo lisboeta.
corporação orquestrava as etapas de um rito que anunciava aos habitantes
de Lisboa a aproximação do tempo em que São Jorge faria mais uma vez
outra aparição na festa do Corpo de Deus. 124 A data exata da expressão é difícil de precisar. Mas, como na linguagem religiosa tar-
O mordomo do estandarte aprontava com os devidos paramentos do-medieval o nome revela o ser, era crença corrente que os santos intercediam em
cinco negros. Armados com as insígnias do mártir, tocando clarins, tam- matérias adstritas ao próprio nome. Assim, Santa Luzia tornou-se patrona da luz dos
bores e pífaro, estes moços iam à cavalariça real para saudar o corcel em olhos e Santa Clara advogada das crianças que têm fala tardia. Nem mesmo a Virgem
escapou ao costume nomem-numem. Entre suas múltiplas evocações, estão a Senhora
que São Jorge saía montado no dia da procissão. Na antevéspera do cor-
da Tosse, Senhora do Fastio, Senhora da Consolação, Senhora da Alegria. Recorde-se
tejo, repetiam a mesma diligência. Desta vez, os jovenzinhos percorriam que São Jorge, já nos dias de Jacopo de Varazze, era invocado como patrono dos
camponeses. Cf. ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. "O Culto a Nossa Senhora,
no Porto, na Época Moderna". Porto: Universidade do Porto, Separata da Revista de
123 Ibidem, p. 173. História, vol. 2, p. 10.
96 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 97

A presença de São Jorge no cortejo do Corpo de Deus em Lisboa Naquele ano, o cortejo percorreu as artérias juncadas de verduras e
refletia o lugar que lhe era atribuído na memória da cidade e a tradição de flores, toldadas com panos de damasco forrados a cambraia, de espaço
que o ligava à realeza. Tanto que, em 1719, ano em que D. João V man- a espaço. As colunatas de madeira altas e largas, envernizadas e ornadas
dou ornamentar as ruas e erguer uma "prodigiosa fábrica de edifícios com belas pinturas, assemelhavam-se aos arcos-de-triunfo e serviam de
para dar remédios aos antigos descuidos e fazer Triunfos ao Sacramen- moldura aos passos da procissão, que incluiu em seu itinerário o Terreiro
to", o santo teve uma aparição memorável125. do Paço e o Rossio, as duas principais praças da cidade, endereços do
A comitiva de São Jorge no cortejo em nada incitava aos conflitos paço régio, do palácio da Inquisição e do Hospital Real. Nas janelas, de
armados. Segundo o cronista régio Barbosa Machado, lembrava sim "os onde se avistava São Jorge e sua milícia, mulheres ricamente vestidas,
gloriosos triunfos de que o santo fora intercessor". Era composta por debruçadas sobre "colchas de seda", externavam a vitória da persistência
homens trazendo tambores, clarins e caixas que davam o tom de uma municipal.
marcha alegre. Logo atrás, trombeteiros a cavalo, "vestidos de veludo O relato de Barbosa Machado não registrou visualidades heterócli-
carmesim, guarnecidos de galões de prata", anunciavam um cavaleiro tas, traquinices do homem de ferro ou de qualquer membro da irmandade
vestido e calçado de ferro com viseira e colete, que se mostrava como o de São Jorge durante a procissão de 1719. Mas o testemunho de viajantes
alferes da milícia antiga. Levando uma comprida bandeira, o mancebo estrangeiros que andaram por Lisboa no século XVIII atesta que a procis-
liderava a aparição de quarenta e seis cavalos da caudelaria real, condu- são era um dos acontecimentos mais aguardados do ano, superando em
zidos à mão pelo mesmo número de moços das cavalariças, calçando pompa o que se praticava em outros reinos da Cristandade, deixando
luvas brancas e vestidos em libré da Casa Real. Os animais vinham ajae- entender que se alguns se recusavam a integrar o desfile, faziam-no apenas
zados e ornados com franjões de ouro, arreios e jaezes de prata, atados no para que pudessem saborear a festa algures, sem o atrapalho de charolas e
peito com fitas, borlas de ouro e bordaduras em veludo verde, com as castelos126. Entretanto, causava-lhes estranheza os excessos de atenção
armas reais. dirigidos ao "senhor Jorge" com sua imagem recamada de jóias127.
Ao fim de sua passagem avistava-se São Jorge, movendo-se sobre No chão em que D. João I ofereceu a São Jorge o castelo e onde,
um cavalo branco que, com seu trotar grave, "mostrava o respeito que segundo o cronista régio, sua confraria de ofícios tinha precedência sobre
tinha ao tramsumpto de tão sagrado, como alentado Guerreiro". Conta o as demais, a participação do santo destacava-se, demonstrando que o
cronista que "tal era a valentia com que o santo opprimia o generoso bru- mártir resistira à sorte dos santos apócrifos. Seu mito havia-se moldado à
to, que mais parecia vivo, que figurado". Vestia armas brancas prateadas, emergência de novos parâmetros religiosos que marcaram as exigências
guarnecidas de preciosíssimos diamantes, e no braço direito empunhava impostas à santidade em cada período histórico e chegava ao século
uma lança, "em modo que remetia com ela a derribar os inimigos da XVIII português incólume, mantendo seu lugar na "elite de mortos" pro-
cruz", esta um símbolo gravado na bandeira que pendia da própria arma. duzida pelo catolicismo.
Adornado com sela e arreios de ouro, o corcel exibia na crina uma varie- O discurso produzido pelo sermonário, embora distante do tempo
dade de fitas com galões e frocos de prata. A seu lado, um pajem, com das Cruzadas e dos Descobrimentos, ou seja, dos movimentos de expan-
capacete em cocar de plumas e uma comprida lança às costas, rodeava a são que permitiram o embate com infiéis e gentios e deram a origem a
imagem do mártir, "venerada na igreja do Hospital Real, onde o santo, uma plêiade de heróis e mártires missionários128, ajudou a fixar sua
Protetor do Reino, [tinha] magnífica capela" e sua irmandade a sua sede. legenda. Elaborado pelo meio culto, circulava entre os lisboetas e, natu-
Atrás do santo, os irmãos de Jorge faziam valer, pela antiguidade, a ralmente, nos dois pólos oficiais de difusão da imagem do santo: o paço e
máxima que garantia sua precedência sobre as demais confrarias lisboe- a confraria.
tas. Seguiam-lhes as outras tantas irmandades, até que se pudesse avistar
a clerezia, os poderes municipal e régio. 126 Descrição da cidade de Lisboa, 1730. Autor desconhecido, in Portugal de D. João V
visto por três forasteiros. Lisboa: Ed. Biblioteca Nacional, 1989, p. 63. Tradução,
prefácio e notas de Castelo Branco Chaves.
"27 DE MERVEILLEUX, Charles Frederic. "Memórias instrutivas sobre Portugal (1723-
125 BNL. MACHADO, Ignacio Barboza. História Critico-Chronologica da Insituiçam da -1726)", in Portugal de D. João V visto por três forasteiros, op. cit., p. 222.
Festa, Offício do Corpo Santíssimo de Christo no Venerável Sacramento da Eucha- 12» BELL, Rudolph, M. & WEINSTEIN, Donald. Saints & Society - Christendom, 1000-
ristia (1719). Lisboa: Imprensa Régia, 1759, pp. 168-170. -1700. Chicago-London: The University of Chicago Press, 1982, pp. 160-161.
98 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 99

Thomas Aranha, religioso da Ordem dos Pregadores, lente em Teo- vá uma donzela da serpente. A notícia, segundo o religioso, não possuía
logia do Real Colégio de S. Thomas de Coimbra e Frei Manuel Pires "qualquer rigor histórico" (fl. 10). Mas, "em sentido mystico e espiritual
Dourado compuseram sermões em honra a São Jorge. O primeiro em bem se poder[ria] acomodar à Fé catholica entendendo a própria Fé por
1638, o segundo em 1697129. Um pregado na igreja do Convento de São aquela donzela, pela qual também se pode[ria] entender qualquer cidade
Domingos de Lisboa, o outro na igreja do Hospital Real, onde ficava a ou nação" (fl. 11).
sede da bandeira e da irmandade de São Jorge, desde que D. João II As falas dos dois pregadores não deixam dúvidas de seu parentesco
desapropriou o hospital dos mesteres da corporação, que ficava nas ime- com as demais versões da legenda do santo que correram o Ocidente
diações do Rossio, onde foi erguida a nova casa de assistência. desde a Antiguidade. Porém, como os sermões eram rebentos do catoli-
Na voz de ambos os pregadores, São Jorge foi essencialmente um cismo pós-Trento, os detalhes do maravilhoso cristão ou pagão estavam
mártir. Para Frei Tomás, o santo era a encarnação "dos resplendores da ausentes. A Legenda Áurea unira as variantes do mito de São Jorge már-
honra da Capadócia, do assombro maravilhoso dos anjos, do amparo tir ao São Jorge guerreiro. Em plena Era Moderna, o discurso dos religio-
soberano dos pusillanimes, do Confessor illustre, do Martyr insigne, do sos reconhecia o caráter cívico da vitória do santo sobre a "serpente"
invicto Capitão, finalmente do credito & ornamento da Igreja triunfante (dragão). Mas ressaltava, sobretudo, que o santo era o "defensor da fé
& militante" (fl. 7). Era, em síntese, "o insigne Heroe da milícia celeste" cristã". Na verdade, a ênfase nos suplícios de São Jorge guardava os itens
por ter sido martirizado nos "rubins de seu próprio sangue" (fl. 8). que os processos de canonização julgavam essenciais na construção das
O religioso não poupou São Jorge de epítetos generosos, nem tam- imagens santas, desde o século XVII: a pureza doutrinal e a virtude
pouco negligenciou sua historicidade, forjada ainda na Alta Idade Média. heróica130.
Esclareceu aos seus ouvintes que o santo que viam, rua acima, rua abaixo Defensor de Cristo e caridoso, a vita de São Jorge evocada pelos
na procissão do Corpo de Deus, era um capitão do estandarte de Diocle- religiosos cristalizava uma e outra. Se a primeira distinguia bem o católi-
ciano (fl. 3) que aderira ao cristianismo, doara todos os seus bens aos co do herege e a segunda as virtudes teologais (esperança, fé e caridade)
pobres e fora exposto às "violências de atrozes martyrios" (fl. 25): e as cardinais (prudência, temperança, justiça e fortaleza), o padroeiro
"xinellas de ferro ardendo", imersão em um forno cheio de cal durante tanto era o oposto dos ímpios e da "raça infecta" que o Tribunal do Santo
três dias, uma roda de navalhas, e que suportou cada uma destas torturas, Ofício recriado por Trento esforçava-se para banir, quanto um exemplo
graças à intervenção dos anjos, até que sua decapitação foi decretada pelo de fortaleza (coragem) e caridade aos pobres.
imperador. Lembrado como "defensor de Cristo", advogado português nos con-
Frei Manuel Pires Dourado usou dos mesmos recursos da legenda de flitos militares e protetor de suas possessões territoriais, São Jorge liga-
São Jorge para persuadir seu público. Também recordou as navalhas em va-se intrinsecamente ao conjunto de imagens oriundas do paço e que
sua carne, mas ressaltou que, se os outros mártires tinham em seu registro investiram na construção de uma identidade nacional a partir da feição
apenas uma ressuscitação, o dossiê hagiográfico de São Jorge registrava guerreira e cristã de seu líder e do projeto colonizador e civilizador do
duas ressurreições. Em suas palavras, o mártir era, assim como S. Sebas- Estado português. Cultuado como o intercessor de um conflito inesquecí-
tião, um "defensor da fé", "um capitão da Igreja Católica" (fl. 10). Entre- vel, que empurrara para o futuro o fado de ver Portugal sob o domínio
tanto, advertiu aos seus ouvintes que os "hereges" haviam adulterado e castelhano, São Jorge era, com efeito, a medida e a extensão da conquista
falsificado a vida de São Jorge, compondo para ele uma história apócrifa, de Aljubarrota.
condenada e reprovada pelo papa Gelásio (séc. V), na qual o santo livra- Presente nas procissões comemorativas aos "vencimentos" régios e
nas muitas versões do préstito do Corpo de Deus em solo luso, São Jorge
129 BNL. Sermão que pregou o muito reverendo padre presentado Frey Thomas Aranha foi suporte para a expressão do perfil combativo e civilizador de seus
da Ordem dos Pregadores, lente de Theologia no Real Collegio de S. Thomas de protagonistas régios, ícone de Aljubarrota, tornou-se, em longa duração,
Coimbra, na festa, que celebrou ao glorioso martyr S, Jorge seu padroeiro a nobilís-
sima nação inglesa em S. Domingos de Lisboa. Lisboa: Impresso por Manuel Silva, um símbolo do nascimento da dinastia de Avis e, por extensão, uma nar-
1638: Serman do Glorioso Martyr S. George, pregado em o Hospital Real de Lisboa rativa visual deste período da história política lusa, durante os cortejos.
pelo padre Manuel Pires Dourado, offerecido a senhora D. Marianna Rangel de Vinculado à toponímia das conquistas ultramarinas, o protetor e defensor
Macedo Castelbranco. Lisboa: Offlcina de António Pedroza Galram, 1693. Para evi-
tar sucessivas notas remetendo às mesmas fontes, passo a citar as páginas com as
devidas citações no corpo do texto entre parêntesis. 130 BELL, Rudolph M. & WE1NSTEIN, Donald, op. cit., 1982, p. 141.
100 Georgina Silva dos Santos

português ligou-se ao projeto civilizador e colonizador empreendido pela


Coroa nos mares do Atlântico, unindo-se ao segundo grande movimento
de expansão territorial do Ocidente. Unido aos emblemas da Coroa, o
mito, nascido da devoção às relíquias dos primeiros cristãos, ainda na
Antiguidade131, manteve, graças ao empenho do culto dinástico patroci-
nado pelos reis avisinos e à sua conservação pelas municipalidades e pela CAPÍTULO II
Coroa portuguesa após a Restauração, o conteúdo ritual ístico do mártir e
do herói guerreiro. Por isso, a cada ano, ao fim da procissão do Corpus
HOMENS DE FERRO E FOGO
Christi, os irmãos de São Jorge de Lisboa organizavam um cortejo que
levava o santo e seu estado ao castelo de sua invocação; cerimónia que
atualizava no tempo a fé de Lisboa na proteção e na defesa de São Jorge
São Jorge superou as reformas religiosas e as exigências de histori-
"Logo a abrir apareces-me pousada sobre o Tejo como uma
cidade infundidas nos processos de canonização, porque concentrou em cidade de navegar. Não me admiro: sempre que me sinto
seu drama a imagem da vitória humana sobre o medo desperto pelo ini- em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro
migo, onde o único pré-requisito para obtê-la e dela saturar-se era a fé ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave".
cristã. Caro ao sistema de crenças da nobreza guerreira e ao circuito reli-
gioso da dinastia dos Descobrimentos, São Jorge deixou os salões do João Cardoso Pires, Livro de Bordo
paço e penetrou na memória afetiva portuguesa, atingindo os outros seg-
mentos sociais, através de suas aparições festivas, cujo patrocínio e res-
ponsabilidade estavam ao encargo dos homens dos ofícios de ferro e Quando D. João I atribuiu aos homens de ferro e fogo a bandeira de
fogo, os quais distinguia nas procissões, mas também nas demais ceri- São Jorge, havia pelo menos um século e meio que a circulação de bens e
mónias em que participavam. Em Lisboa, os irmãos de São Jorge partici- pessoas em estradas e caminhos confirmavam a ampliação das áreas
urbanas portuguesas. O fluxo nas vias terrestres e fluviais combinava-se
pavam também dos autos-de-fé realizados pela Inquisição.
A associação entre São Jorge e os homens de ferro e fogo residentes à navegação de cabotagem e a velha via romana que margeava o litoral
unia o Minho à Estremadura, comunicando Ponte de Lima, Braga, Porto,
na capital engendrou um vínculo de dependência mútua entre o santo e
Gaia, Vila da Feira, Coimbra, Tomar, Santarém e Lisboa. Em paralelo,
estes mesteirais. A importância que o culto ao padroeiro assumiu em suas
outra trilha seguia por Pombal, Leiria, Alcobaça, Óbidos e Torres
vidas ultrapassou, e muito, o custeio e os preparativos para a participação
Vedras, até vazar à fronteira lisboeta, atestando o ir e vir de mercadorias
do mártir nos cortejos religiosos. As regras que regiam a bandeira, a
e valores, referendados pelos forais e pelas cartas de feira.
ascendência que a irmandade teve sobre os oficiais e o papel que desem-
Precedida por Coimbra, Santarém e Guimarães, na preferência régia,
penhou na construção de um modelo de organização dos mesteres defini-
Lisboa pouco frequentou os itinerários da realeza, como comprovam os
ram a identidade social desses oficiais mecânicos e confundiram-se com
diplomas e os testamentos da casa real anteriores ao século XIII. Afora
a própria história de Lisboa. essas cidades, o contingente populacional indicava que as terras anima-
das por açougues, fangas e feiras concentravam-se nas regiões trasmon-
tana e beira, denunciando a política dos monarcas borgonheses para
povoar as áreas interiores e as zonas fronteiriças aos reinos de Leão e
Castela1. Mas a integração definitiva do Sul islâmico, entre os anos de
1220 e 1240, redimensionou esse traçado. Ao incorporar a comarca
algarvia à rede de estradas de Riba e Alentejo, onde se projetavam Évora,
Eivas e Beja, a Coroa abriu espaço à intensificação dos tratos mercantis

MAUSS, Mareei. Instituicion y Culto - representions colectivas y diversidad de civi- 1 "Feiras", in RAU, Virgínia. Estudos de História Medieval. Lisboa: Presença 1986
p. 89.
lizaciones. Barcelona: Barrai Editores, 1971, p. 152.

l
102 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 103

com a Andaluzia, através de Lisboa, de Alcácer e dos portos do Algarve2. Marinha do Outeiro, São Lourenço, Santo André, São Tomé, São Cristó-
Face à expansão da soberania lusa sobre as terras ao Sul da Penínsu- vão, São Salvador, São Miguel e São Mamede6.
la, em meados do século XIII, a cidade na foz do Tejo exibia a vitalidade Fundado a partir do castelo de origem mourisca que D. João I bali-
comercial levada a peito pelos mercadores de grosso trato e assistia à zaria com o nome de São Jorge, o espaço urbano lisboeta avançara em
proliferação das tendas dos oficiais mecânicos. Enquanto os primeiros direção ao rio, respeitando o terreno acidentado, a assimetria de seus
abalançavam-se num comércio de exportação de matérias-primas e declives e superpondo à nítida herança muçulmana o gerenciamento e a
importação de tecidos finos e têxteis de média qualidade3, os últimos concepção espacial cristãos. Neste amálgama, ao casario edificado entre
espraiavam-se na olaria, na ferraria, na sapataria, na carniçaria e ganha- ruas estreitas, esquivas da luz solar, e envolvido por uma muralha ergui-
vam o mundo das construções civil, religiosa, naval e militar. da em tempo pretérito para dificultar o acesso do inimigo até à alcáçova -
Agrupados segundo a natureza de suas ocupações profissionais, os a cidadela murada onde habitavam as lideranças administrativa e militar
mesteirais ligaram-se à toponímia lisboeta, demarcando nas vias urbanas mouras, reduto que ao ser atingido designava a posse sobre a vila ou
a pluralidade dos ofícios que faziam o cotidiano da cidade e as redes de cidade —, juntou-se o modelo da urbe cristã medieval.
sociabilidade inerentes à convivência em um espaço comum. Se a Rua O desenho arquitetônico que evidenciava o apego islâmico à vivên-
Nova dos Mercadores, aberta por D. Dinis e situada próximo à Ribeira do cia doméstica, porque era o lar o seu lugar de jejum e de oração, as mar-
Tejo, sinalizava a existência de um circuito comercial que ia muito além cas deixadas por uma organização social que previa o desdobramento das
das muralhas lisboetas, as lojas enfileiradas dos oficiais mecânicos, cuja moradias e a retração das vias comuns, formando becos e caminhos labi-
propriedade achava-se com frequência fracionada - em quartos, oitavos, rínticos em detrimento da área comunitária 7 , conjugaram-se a uma cultu-
décimos, sextos e até quadragésimos de tendas -, revelavam a presença ra afeita aos espaços da rua, da praça, da igreja, dos mercados, como se
de uma atividade artesanal consolidada e uma dinâmica que superava jamais se esquecesse que o cristianismo se valera das cidades romanas
muitas vezes os movimentos do mercado e da feira4. para a propagação do Evangelho8.
Coeva à transferência da Chancelaria régia e às criações da Univer- Caracterizada pela interação destes elementos de fundo, a Lisboa de
sidade e da Casa da Moeda, a interação económica de Lisboa com os ter- trezentos exibia os contornos irregulares das ruas que no passado condu-
ritórios anexados estimulou as correntes migratórias nos eixos norte-sul e ziam à casa muçulmana e agora levavam aos núcleos onde se desenvol-
interior-litoral5, engendrando o aumento do número de almas e fogos, viam as atividades religiosa ou económica. Já não mais senhores da cida-
que se distribuíam entre as sete freguesias situadas no interior da antiga de, acantonados em bairro específico, os mouros eram minoria e,
cerca moura (Santa Maria da Sé, São Jorge, Santa Cruz do Castelo, São portanto, jurídica e socialmente submetidos à segregação determinada
Bartolomeu, São Martinho, São João da Praça e São Tiago) e pelas paró- por um poder administrativo estranho às suas leis. Restritos aos regula-
quias de São Vicente, Nossa Senhora dos Mártires, São Julião, Santa Jus- mentos que impunham limites à sua livre circulação nos logradouros
ta, Santa Maria Madalena, São Nicolau, Santo Estêvão, São Pedro, Santa públicos, encontravam-se, como os moradores das judiarias de Santa
Madalena, São Julião, São Nicolau e São Miguel, obrigados à utilização
2 MARQUES, A. H. de Oliveira. "A Circulação e Troca de Produtos", in COELHO, Maria de banhos, açougues, cadeia, escola e cemitérios próprios, no arrabalde
Helena da C. & HOMEM, Armando Luís de C. (orgs.), Portugal em Definição de Fron- norte da cidade, na encosta da colina do castelo.
teiras — do Condado Portucalense à Crise do Século XIV. Lisboa: Editorial Presença, Alargando-se a partir da alcáçova, fulcro do poder militar local, a
1996, p. 517. Lisboa cristã crescera, a Leste, de Alfama ao mosteiro de São Vicente; a
3 Para além-Pirineus os mercadores portugueses levavam couros, peles, mel, cera, azeite,
Oeste, até os conventos da Trindade e de São Domingos, e, a Norte, para
vinho, cortiça, gorduras, frutas secas e, eventualmente, cereais. Traziam para o reino
tecidos finos da França e da Flandres, sarjas baratas de Castela, mantas da Galícia, cin- os montes de Santana e de São Gens, encontrando, ao Sul, as águas do
tas e cordões para o vestuário feitos em Londres. Ibidem, p. 519.
4 No reinado de Afonso III, em Lisboa, no local das Fangas Velhas, instalou-se o bairro
6 FERREIRA, São Jorge Rodrigues, "freguesias", in SANTANA, Francisco & SUCENA,
dos correeiros e sapateiros e em outro as ferrarias. Entre 1275 e 1285, a cidade tinha em Eduardo, Dicionário da História de Lisboa. Lisboa: Carlos Quintas e Associados, 1994
p. 417.
torno de dez ferreiros e mais de 35 sapateiros. Cf. COELHO, Maria Helena. "O povo - a
identidade e a diferença no trabalho", in COELHO & HOMEM, op. cit., p. 282. 7 CARVALHO, Sérgio Luís. Cidades Medievais Portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte
5 MATTOSO, José. "Mutações", in MATTOSO, José (org.), História de Portugal - a
1989, pp. 12-19 e pp. 36-38.
monarquia feudal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 249. 8 MUMFORD, Lewis. A Cidade na História. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965, vol. l, p. 319.
104 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 105

Tejo9. Antes mesmo de ser abraçada pelo anel de pedra fernandino, a de seus aspectos em particular, sem pensá-la como um todo articulado,
planta urbana lisboeta oferecia à vista, na parte baixa da cidade, os con- sujeito às variações do tempo, às modificações realizadas por seus mora-
tornos da orientação espacial desenvolvida pelo cristianismo ocidental. dores, à maneira como estes atores sociais se colocavam diante do espaço
Ali, entre as freguesias de São Julião, São Nicolau e Santa Madale- citadino, dos núcleos rurais e dos demais sítios urbanos. A relação entre a
na, distribuíam-se arruados, ferreiros, armeiros, douradores e outros tan- dilatação do tecido urbano lisboeta, em razão do crescimento demográfi-
tos oficiais mecânicos entregues às suas artes. Também ali, a Rua Nova, co, e sua produção artesanal na Idade Média prova que quaisquer daque-
principal via de Lisboa, com doze a catorze metros de largura, repleta de las "funções" observadas isoladamente só conduzem a inferências defor-
sacadas e arcos de cantaria, ligava a Ribeira, o cérebro da cidade, ao Ros- madas e a conclusões generalizantes.
sio, que há tempos deixara de obedecer à designação inicial de lugar Diferentemente do que se verificou em outras urbes da Europa
vago, amplo e baldio, para tornar-se a praça onde os lisboetas encontra- medieval, em Lisboa, o crescimento da cidade e a oferta de mão-de-obra
vam as regateiras, fruteiras e hortelões a oferecerem a colheita dos poma- não instigaram saltos qualitativos no setor industrial. Aqui, a transforma-
res e hortas do cinturão da cidade. Sítio que em dias de festa recebia os ção de matéria-prima em artefatos mostrou-se incapaz de competir à altu-
folguedos, as danças e, após Aljubarrota, a presença sempre imponente ra no âmbito continental e ressentiu-se, como sugere Oliveira Marques,
do senhor do castelo, o glorioso mártir São Jorge. da desarticulação da "organização industrial muçulmana" legada pela
Desenvolvida a partir de uma colina que se transformou em cidade- Reconquista". Não obstante, dirigidos para atender às demandas da pró-
la, localizada em um estuário propício ao grande comércio, encruzilhada pria cidade, os mesteres desenvolveram uma progressiva especialização
de rotas mercantis e sede administrativa do poder régio, Lisboa detinha, de sua mão-de-obra, que seria sentida ao longo dos anos, tanto no que
desde o último quartel do século XIII, os ingredientes comuns às demais tange às habilidades requeridas para o exercício de cada ofício, como no
capitais medievais e evocava, por conseguinte, o conceito de centralidade que se refere ao padrão de qualidade oferecido pelo serviço prestado.
vigente entre suas semelhantes. Desta feita, nos dias em que o primeiro monarca de Avis sancionou
Abrigo de uma população expressiva, e que tenderia a se tornar cada o arruamento espontâneo dos mesteirais e a Câmara de Lisboa tornou-o
vez mais numerosa com o avançar das décadas, cerca de 35.500 almas no obrigatório, a escala de divisão do trabalho já dera origem ao apareci-
reinado de D. Fernando, a cidade tinha formado seu órgão vital, suas mento de novas categorias profissionais. O ferreiro, que durante duzentos
veias e seu cérebro a partir do processo de desenvolvimento de sua ativi- anos compusera, ao lado de peleteiros e sapateiros, uma tríade frequente
dade económica, de sua esfera política, de sua organização religiosa e das nas cartas de foral, repartia então com ferradores, armeiros e cutileiros as
relações sociais estimuladas pela interação e constância destes elementos. lides do ferro e do fogo, enquanto curtidores e peleteiros subdividiam-se
A hierarquia de seus espaços, obediente ao próprio edifício social a que em correeiros, seleiros e albardeiros e os carpinteiros faziam-se acompa-
deu origem, autoriza a pensá-la como um corpo que, se diga, com ênfase, nhar de calafates e tanoeiros12.
enfileirava-se nos dias de procissão. A segmentação gerada pela alteração nas relações de produção pro-
As restrições às abordagens que vêem a cidade como um "organis- moveu a hierarquização dos ofícios e forçou, no decurso das décadas, a
mo vivo", identificadas quase sempre como uma interpretação meramen- constantes reavaliações deste processo de estratificação profissional, por-
te funcionalista10, procedem, caso sua apreensão resvale para o inventário que, ao tempo em que alguns mesteres desmembravam-se em uma deze-
na de outros, muitos desapareciam ou eram absorvidos por um único ofí-
9 CARVALHO, Sérgio Luís, op. cit., p. 28. cio.
10 A crítica elaborada pela sociologia urbana americana, nos anos vinte, rechaçou o peso Regidas por este movimento, as unidades artesanais, simultanea-
atribuído aos aspectos morfológicos e funcionais até então utilizados para a observação mente oficina e loja, multiplicaram-se conforme o consumo e salvaguar-
do espaço urbano, procurando enfatizar no "dispositivo urbano" seus aspectos constan- daram seu funcionamento com o controle sobre o preço, qualidade e
tes e as leis da composição espacial; RONCAYOLO, Mareei. "Cidade", in Enciclopédia
Einaudi - Região. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, vol. 8, p. 398.
Observa-se, porém, que parte da historiografia seguiu utilizando a terminologia, mas 1' MARQUES, A. H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Sá da Costa,
talvez, por dever de ofício, tenha considerado também aqueles critérios em suas análi- 1981, p. 138; MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV.
ses. Cf. CARVALHO, Sérgio Luís, op. cit., p. 57; LÊ GOFF, Jacques. O Apogeu da Lisboa: Presença, 1987, p. 115.
Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992; LOPEZ, Roberto S. A Cidade 12 COELHO, Maria Helena da Cruz. "O povo - a identidade e a diferença no trabalho", in
Medieval. Lisboa: Presença, 1988. COELHO & HOMEM, op.cit., p. 27.
106 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 107

quantidade dos produtos. Sob a coordenação do mestre (proprietário ou Sujeito a altos e baixos, o colégio formado por dois representantes
responsável pelas ferramentas e pelo estabelecimento), meia dúzia de de cada um dos doze ofícios mecânicos, co-autores dos Estatutos da
obreiros (empregados assalariados) e aprendizes (ajudantes e moços de cidade em prol da vitória sobre Castela em 1385, custou a definir e
recado) laboravam para atender a uma clientela que percorria as tendas, garantir o número de seus eleitos no fórum concelhio, ora pela presumí-
apreciando as obras e comparando os seus valores. Mas se o alinhamento vel antipatia da elite local, ora pela própria evolução dos mesteres, que
das lojas agenciou a vigilância mútua sobre o trabalho realizado e facili- fazia nascer e morrer profissões.
tou a fiscalização e a recolha de impostos pelos almotacéis, facultou, por Em 1433, quando já andavam ao número de quatro ou seis, o infante
outro lado, a formação de redes de solidariedade entre os mesteirais. D. Duarte recalcou sua ingerência camarária, restringindo suas atribui-
Constituídas a partir de um mesmo ramo de ofícios, estimuladas ções ao domínio dos assuntos que se referissem às corporações e ao
pelo deslocamento migratório que privava muitos mesteirais dos "tradi- governo económico da cidade, excluindo-os daqueles referentes ao cam-
cionais apoios familiares e vicinais"13 e, provavelmente, inspiradas no po do Direito. Diante do veto, os representantes insistiram nas bases
discurso religioso fomentado pelas ordens de pregadores e mendicantes, legais e nos atributos jurídicos outorgados pelo monarca moribundo e
fenómeno urbano que tomou de roldão as cidades medievais14, as confra- que lhes conferia a participação em qualquer matéria de interesse do
rias de mesteres, organizadas à roda de um santo e seladas por um pacto município, de tal sorte que, após as contendas com os demais componen-
de entreajuda, em caso de doença, morte e outros dissabores, precederam tes do concelho e a solicitação encaminhada à Coroa, no ano seguinte, o
a regulamentação de cada ofício e a formação das corporações, em fins rei D. Duarte, devidamente instruído pela chancelaria, fixava em quatro o
do século XV15. Isto é, antecederam as associações de caráter estritamen- número de representantes dos mesteres e reaprovava sua presença nos
te profissional, compostas de um ou mais mesteres, norteadas por um casos da Câmara que tratassem de aforamento, aprazamento e arrenda-
regimento e, em alguns casos, identificadas por uma bandeira que permi- mento da cidade.
tia o reconhecimento do prestígio e força do(s) ofício(s), no âmbito do Ainda que contida ou mediada pelas sucessivas intervenções da rea-
concelho16. leza, a arenga entre os homens-bons da cidade e os mesteirais desaguaria
Em 1383, a adesão dos mesteirais à corrente partidária que alavan- nos reinados ulteriores. Trinta e três anos à frente, D. Afonso V voltaria a
cou a escolha do mestre de Avis como "Regedor e Defensor" do reino confirmar o número e privilégio dos mesteres ante a Câmara e estipularia
acelerou a inserção dos oficiais mecânicos nos negócios da Câmara. Ao a periodicidade da gestão de seus procuradores, que deixaria de ser aos
determinar que nem juizes, nem regedores (vereadores), nem procurado- meses para tornar-se anual.
res conduzissem as eleições dos membros do concelho, ou fizessem pos- A obstinação dos oficiais mecânicos para manterem acesas as prer-
turas ou arbitrassem sobre talhas e quaisquer outros impostos ou servi- rogativas conferidas no início do período avisino não deve ser confundi-
ços, sem que "dois homens-bons de cada um mester", indicados pela da, no entanto, com um nível de articulação política invejável. É bem
maioria dos oficiais, fossem chamados17, o futuro D. João I dava o pri- verdade que os representantes do colégio dos mesteres, como os homens-
meiro passo para a instituição do que seria, no século XVI, a Casa dos -bons do concelho - aos quais eram atribuídas as funções de procurador e
Vinte e Quatro. vereador -, não podiam ser condenados a pena vil e que, em atos públi-
13 COELHO, Maria Helena da Cruz. "As Confrarias Medievais Portuguesas: espaços de
cos como a procissão do Corpo de Deus, empunhavam uma vara verme-
solidariedades na vida e na morte", in TENGARRINHA, José (org.), A Historiografia lha, encimada pelas armas da Câmara, acumulando um capital simbólico
Portuguesa Hoje. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 69. capaz de amenizar o fado do sangue ignóbil e a magreza que as vendas
14 MATTOSO, José. "O Enquadramento Social das Primeiras Fundações Franciscanas", in na tenda permitia auferir. Logo, coisa nada desprezível, quando se recor-
Portugal Medieval - novas interpretações. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, da as pendengas provocadas pela mesura do cerimonial que a documen-
1992, pp. 329-345. tação das centúrias seguintes deixa ver. No entanto, a inconstância na
15 MARQUES, A. H. de Oliveira, A Sociedade Medieval..., op. c/í., p. 117; CAETANO,
eleição dos representantes faz suspeitar da fragilidade na organização
Marcelo. "A Antiga Organização dos Mesteres", in LANGHANS, Franz-Paul. As Cor-
porações dos Ofícios Mecânicos — subsídios para sua história. Lisboa: Imprensa interna em cada grupo de ofícios ou da manipulação do acesso aos car-
Nacional, 1946, vol. l, p. XXXIII. gos, por alguns.
16 CAETANO, Marcelo, op. cit., p. XLIII. O desestímulo a uma participação efetiva ficou registrado às aves-
17 Carta régia de l de Abril de 1384, apud CAETANO, Marcelo, op. cit., pp. LXIV-LXVI. sas, nos primeiros anos do reinado de D. João II, quando o monarca,
108 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 109

depois de ouvir, nas Cortes de Évora (1481-1482), os queixumes e a 1. A bandeira de São Jorge em Lisboa
"catilinária do braço popular", ainda renitente em admitir a participação
dos oficiais mecânicos na vida pública lisboeta, afirmou, em carta datada Senhora de um espaço urbano vincado pela implantação de indús-
de 29 de Março de 1484, a obrigatoriedade da eleição de vinte e quatro trias diversas, dona de um ritmo de crescimento demográfico avantajado
representantes, dois de cada mester, responsáveis pela indicação dos dois frente às zonas rurais, animada pelas empresas náutica e pesqueira, onde
procuradores dos mesteres que integrariam a mesa camarária. Para que o os homens lançavam-se na navegação de curto, médio e longo curso, em
dispositivo vingasse, ordenava o pagamento da multa de cem réis a cada uma teia de nós comerciais, a Lisboa do primeiro quartel de quinhentos
um dos Vinte e Quatro ofícios que não comparecessem à eleição de seus destacava-se de urbes como Guimarães, Porto, Coimbra, Santarém, Évo-
representantes na Câmara e criava a figura do juiz dos Vinte e Quatro, ra, Eivas, Tavira e Lagos. Com mais de setenta mil residentes, ultrapas-
mais tarde chamado juiz do povo, encarregado de zelar pela disciplina do sava de longe os quinze mil vizinhos portuenses, os dez mil habitantes
colégio, pelo cumprimento de seus deveres e de apresentar as reivindica- eborenses, colocando-se muito acima das cinco mil almas que rondavam
ções dos grémios à Câmara18. as outras cidades19.
Promovida de fato à categoria de uma instituição em fins do século Fruto do impulso detonado pelo assenhoreamento das rotas do
XV, a Casa dos Vinte e Quatro assegurava, na soleira da Época Moderna, Atlântico, no reinado manuelino, e registro do primeiro grande surto
o apanágio de associação dos mesteres lisboetas. O ganho iria se comple- urbano português, seu cômputo populacional exteriorizava o grau de
tar duas dezenas de anos à frente, pois a organização de mesteirais adqui- grandeza de um espaço que se tornara um pólo de atração para inúmeros
riu uma sede própria no recém-inaugurado Hospital de Todos os Santos, oficiais mecânicos e que se impunha como capital, em contraste com
rebento da política centralizadora do Estado português no controle da outros povoamentos que galgavam os degraus da promoção à categoria
assistência, que congregou os hospitais das confrarias de ofício, fazendo de cidade aproximando-se de seu perfil. Pois se, entre os reinados de
convergir para um único espaço o cuidado dispensado aos confrades D. João III e de D. Sebastião, a realeza concedeu a onze vilas este estatu-
doentes. to jurídico e a três outras o atributo de notáveis, fê-lo tendo como critério
A reorganização do funcionamento do colégio dos mesteres e a de aferição o desenvolvimento económico, a "qualidade das gentes", os
redefinição dos atributos de seus procuradores deram partida a uma se- serviços prestados à dinastia em situações de conflito bélico, auxílio na
quência de medidas para delimitar as atividades dos oficiais mecânicos defesa das possessões de além-mar e a participação na empresa dos Des-
de Lisboa, quando as corporações de ofício viram sua autogestão com- cobrimentos e da colonização.
prometida e mostraram-se vulneráveis aos problemas gerados pela Contribuindo desde sempre com porções generosas de apoio político
macrocefalia da cidade. Esgarçadas pelo acréscimo de novos integrantes e desempenho económico, concentrando os réditos alfandegários que
oriundos de várias localidades do reino, as bandeiras adentraram a Época nutriam a Coroa, Lisboa assegurou o título de "princesa do reino" e do
Moderna marcadas por conflitos internos que foram particularmente sen- império, tanto por seu papel de centro político-administrativo e sede da
corte régia, como pelos tratos mercantis com a Andaluzia, o Oriente, o
tidos nas grandes associações.
Império Sul-Atlântico e pela memória que a ligava ao nascimento e afir-
Expressiva numericamente e congregando diversos ofícios, a ban-
mação da Casa de Avis.
deira de São Jorge sofreu, como as demais agremiações, as alterações
Evidentes em Lisboa, a explosão demográfica, o avanço da urbani-
promovidas pela Reforma dos Ofícios de 1539, mas superou parte dos
zação e a prosperidade económica insuflados pelos Descobrimentos
desafios gerados pelo crescimento urbano e pela intervenção do poder foram sentidos em todas as cidades marítimas e requisitaram um esforço
municipal, utilizando o culto a São Jorge como escudo e instrumento de da Coroa para administrar receitas e despesas, uniformizar os costumes
negociação. vigentes nas terras sob seu domínio e dotar instituições jovens e maduras
de regulamentos que permitissem sua adaptação à realidade de um Esta-
do, cujo poder estendia-se além do território português20.

19 RODRIGUES, Teresa. Cinco Séculos de Quotidiano - a vida em Lisboa do século XVI


aos nossos dias. Lisboa: Cosmos, 1997, pp. 24, 25 e 38.
18 CAETANO, Marcelo, op. cit., pp. LXVI1I-LXIX. 20 MAGALHÃES, Joaquim Romero. "Estruturas Políticas de Unificação", "O Enquadra-
110 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 111

Inaugurando um período de consecutivas reformas jurídicas, com a que as alterações visavam coibir "ódios, malquerensas e differensas"
clara intenção de reforçar o papel dos tribunais superiores, fixar as com- relatados pelos confrades de São Jorge, o rei discriminava a "cabeça" e
petências e as atribuições de uma rede burocrática mediadora entre o os "anexos" do corpo de cada ofício, preservava a dupla de procuradores
monarca e os súditos, e ainda com o propósito de homogeneizar os cos- dos mesteres junto à Câmara, mantendo os delegados do colégio em
tumes da malha concelhia, imprimia-se, entre 1514 e 1521, em substitui- número de duas dúzias23. Contudo, mesmo fiel à estrutura organizacional
ção ao código legislativo afonsino, os cinco livros das Ordenações dos próprios mesteres, a determinação régia redefinia a hierarquia entre
Manuelinas. Seis anos adiante, durante o reinado de D. João III, realizar- os mesteirais e diferenciava as corporações, mantendo à testa de cada
-se-ia a primeira contagem dos vizinhos do território e, em 1532, as alte- associação, ora uma, ora duas ocupações profissionais, enquanto um
rações nas divisões das comarcas portuguesas21. número variável de ofícios distribuía-se em suas ramificações.
A promulgação de dispositivos jurídicos gerais, que reforçaram a Assim, à cabeça da bandeira de São Jorge encontravam-se barbeiros
verticalidade entre o poder régio e o corpo social, não dispensou, contu- e armeiros e, entre seus anexos, ferradores, espadeiros, pintores, bate-
do, a criação de regulamentos específicos, cuja demanda passava a ser -folha, ferreiros, bainheiros, coronheiros, fundidores de artilharia, gua-
expressa pelos organismos que eram sujeito e objeto das transformações damecileiros, anzoleiros, fusteiros de vasos de selas, cantilreiros, selei-
sofridas pela área urbana. Neste circuito, o silêncio dos oficiais mecânicos ros, lanceiros, douradores, serralheiros, cutileiros, besteiros, freeiros,
lisboetas dá lugar a uma movimentação ruidosa, atestando o crescimento latoeiros, caldeireiros de fazer caldeiras, latoeiros de folha branca, cose-
numérico dos membros de cada corporação e cujas dificuldades acabaram tores de caldeiras, os que faziam sedeiros, pandeiros, gaiolas, os que alu-
por promover uma reforma que determinou a composição de cada bandei- gavam cavalos e os mercadores de carvão. Em outra bandeira, a de São
ra, redefiniu a representação de cada profissão no colégio dos mesteres e Miguel, livreiros, boticários, sirigueiros, sombreireiros, azibilheiros, cai-
consolidou a liderança de certos ofícios no interior de cada estandarte. xeiros, luveiros, marceiros, penteeiros, confeiteiros, os que corrigiam bar-
retes e os que faziam tecidos tinham à sua cabeça o próprio arcanjo.
Em outra corporação, borzigueiros, sapateiros e chapineiros divi-
1.1. O corpo de ofícios do estandarte diam a liderança dos ofícios de curtidor, surrador e odreiro, enquanto os
correeiros de obra grossa e delgada estavam à frente do corpo dos ofícios
Em 1539, expondo a incapacidade de gerir as pendengas e disputas de adargueiros e dos que lavravam fios. Entre os homens que teciam
que açodavam as bandeiras e a Casa dos Vinte e Quatro, mordomos e linho e seda, os primeiros lideravam a corporação e estavam à frente dos
procuradores dos ofícios de São Jorge da cidade de Lisboa encaminha- ramos de colchoeiros, cardadores e tecelões de seda, ao passo que os
ram a D. João III uma petição. Alegando a subversão das hierarquias cirieiros, sem anexos e ramificações, eram a cabeça de si mesmos.
entre os ofícios, acusando a incompatibilidade entre o número, o tamanho Liderando os mesteirais da construção civil, pedreiros e carpinteiros
das corporações e a manutenção das normas de eleição para os dois eram a cabeça do corpo de torneiros, taipeiros e violeiros, enquanto o
representantes dos mesteres na Câmara, visto que a Casa dos Vinte e anexo, formado por tintureiros, tinha à testa de sua corporação os tosado-
Quatro já andava pela conta dos 27, os oficiais solicitaram a intervenção res. Em outra associação, os alfaiates estavam à frente de aljubebes, cal-
régia porque alguns ofícios, que em outros tempos 'hiam a mistura", ceteiros e carapuseiros, ao passo que, solteiros, os tanoeiros eram a cabe-
naqueles dias arrogavam-se como "cabeça"22. ça de seu próprio ofício. Em outro grupo, os cordoeiros da "Porta de
Após o arrazoado do licenciado do Desembargo do Paço, enviado Santa Catherina" e os da Porta da Cruz eram a cabeça do mester de
pelo rei para espreitar, o monarca promoveu uma reforma na composição esparteiro, assim como os ourives da prata eram a liderança de pichelei-
dos ofícios, que se manteria em vigor até ao século XVIII. Justificando ros e os ourives do ouro a cabeça dos ofícios de lapidários, aparadores,
afinadores e dos que tratavam de pedrarias. Por fim, os oleiros eram a
testa do corpo de oficiais telheiros e dos que faziam malgas.
mento do Espaço Nacional", in MAGALHÃES, Joaquim Romero (org.), História de
Portugal - no alvorecer da modernidade. Lisboa: Estampa, 1993, pp. 14 e 92.
23 Em seu estudo sobre a antiga organização dos mesteres, Marcelo Caetano não mencio-
21 RODRIGUES, Teresa Ferreira. "As Estruturas Populacionais", in MAGALHÃES, op. cit., na os autores da petição enviada ao rei e acaba por tomar o monarca como o único
p. 201. grande protagonista da reforma, quando, na verdade, D. João III atendeu ao apelo dos
22 MBCB. Provizão do Senhor Rey Dom João III, 27 de Agosto de 1539. Ms. próprios mesteirais. Cf. LANGHANS, op. c/7., p. XV.
112 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 113

Estipulando um número diferenciado para representação na Casa de Buarcos, permitem uma aproximação com o cômputo de oficiais
dos Vinte e Quatro, a provisão do monarca concedia aos homens de ferro mecânicos residentes em Lisboa e representados na Casa dos Vinte e
e fogo, aos homens da bandeira do arcanjo São Miguel e às corporações Quatro.
de sapateiros, correeiros de obra grossa, cirieiros, pedreiros, tosadores, Confrontando-se a lista dos mesteres de cada associação prescrita
alfaiates, tanoeiros e cordoeiros, o direito de eleger dois representantes de por D. João III e os dados fornecidos pelos levantamentos de mesteirais
seus respectivos ofícios e ordenava que tecelões, ourives da prata, do realizados doze anos depois, percebe-se que, em ambos, as corporações
ouro e oleiros teriam apenas um delegado como porta-voz no colégio dos de ofícios conservaram a mesma proporção numérica, apesar das discre-
mesteres. pâncias observadas na somas total e parcial dos mesteres, como se pode
Longe dos dias do fundador da dinastia de Avis, distante de uma aferir no quadro l.
Lisboa que possuía um contingente reduzido de mesteirais, se comparado
ao dos tempos quinhentistas, a reforma do rei D. João III compunha com
catorze corporações o quadro de representação dos oficiais mecânicos Quadro l - Número de Oficiais Mecânicos em cada Corporação
com assento no grémio dos mesteres, promovendo, notoriamente, a
Representan-
emancipação de alguns ofícios. Corporação de Ofício Total de mestei- Total de Mestei-
rais em 1551 tes na Casa
rais em 1552
O critério de avaliação para o número dos delegados que passavam a dos 24
indicar os dois procuradores dos mesteres na Câmara, assim como o Pedreiros, carpinteiros e anexos 1 354 2901 2
parâmetro para a formação das cabeças de cada ofício, decerto ficaria Borzigueiros, sapateiros e anexos 1 333 2370 2
sem reposta se toda uma literatura centrada em descrições locais e gerais, Alfaiate e anexos 1 165 1 470 2
com o objetivo de atender à contabilidade das autoridades diocesanas ou bandeira de S. São Jorge 944 1 344 2
dos fidalgos interessados "em quanto rendia cada renda", não registrasse,
bandeira de S. Miguel 654 1 576 2
além do número de igrejas, hospitais, confrarias, casas e moradores, os
Oleiros e anexo 222 180 1
ofícios de cada pessoa, homem ou mulher, retirando da penumbra as gen-
tes e as atividades do solo lisboeta de meados do século XVI. Tosadores e anexos 178 300 2
As obras Summario em que brevemente se contem alguas cousas Correeiros e anexos 157 168 2
- assi ecclesiasticas como seculares - que há na cidade de Lisboa2*, Tanoeiros 143 180 2
escrito por Cristóvão Rodrigues de Oliveira em 1551, e o "tratado" da Cordoeiros e anexos 86 215 2
Grandeza e Abastança de Lisboa1*, elaborado em 1552 por João Brandão Cirieiros 74 150 2
Tecelões e anexos 44 490 1
24 A obra de Cristóvão Rodrigues de Oliveira, guarda-roupa do arcebispo da cidade Ourives da prata e anexos 42 278 1
D. Fernando de Menezes Coutinho e Vasconcelos, é um dos primeiros ensaios estatís-
ticos realizados em Portugal. D. Fernando foi capelão-mor de D. Manuel, D. João III, Ourives do ouro e anexos 32 232 1
D. Sebastião e D. Catarina d' Áustria, e assumiu a Sé arquiepiscopal de Lisboa, a pedi-
do de D. João III, em 1540, e esteve à sua frente até seu falecimento, em 1564. Aqui l N.8 Representado na Casa dos 24 6428 11 854 l 24 l
usamos a edição apresentada e anotada por José da Felicidade Alves. OLIVEIRA, Cris-
tóvão Rodrigues de. Sumário em que se contêm algumas coisas assim eclesiásticas
como seculares que há na cidade de Lisboa (1551). Lisboa: Livros Horizonte, 1987.
25 Escudeiro-fidalgo da Casa de el-rei D. Manuel, João Brandão (? morto em 1562) era
Antes reflexo das distinções dos métodos empregados pelos autores
rendeiro das sisas de carvão, lenha e casca para curtimento, da telha e tijolo, junco e do Sumário e da Grandeza e Abastança de Lisboa do que o atestado de
esparto, do linho e dos arcos de pipa, herdados de seu pai. Resultado de seu trabalho um súbito crescimento de mesteirais em apenas doze meses, os dados
para manter em dia a "valia de cada coisa", esta espécie de inventário das grandezas de
Lisboa tem títulos póstumos, já que o frontispício da obra é desconhecido. Ao primei-
ro, Estatística de Lisboa, de 1552, criado pela Biblioteca Nacional de Lisboa, sucede- za e Abastança de Lisboa em 1552, elimina o primeiro termo face à ausência de "uma
ram-se o de Gomes de Brito, que, para não recair em anacronismo, suprime a expres- estrutura orgânica e a coerência lógica que (parece) exigir-se de um tratado". Aqui se
são matemática e chama-o Tratado da Majestade e Abastança de Lisboa, na segunda usa a edição organizada e anotada por este último estudioso. BRANDÃO (de BUARCOS),
metade do século XVI. O mais recente, proposto por José da Felicidade Alves, Grande- João. Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552. Lisboa: Livros Horizonte, 1990.
114 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 115

arrolados no quadro l revelam que o rei submeteu as evidências "estatís- medieval. Aos tosadores, por sua vez, artífices coevos ao tempo dos mer-
ticas" à escala de valores inerente ao mundo dos ofícios mecânicos, para cadores de tecido, regidos pelo vaivém dos homens que transacionavam
discriminar a cabeça de cada ofício e para determinar o número de repre- somas significativas, o documento conferia, da mesma maneira, duas
sentantes no colégio dos mesteres. cadeiras na assembleia dos mesteres.
A despeito de Cristóvão Rodrigues de Oliveira não ter incluído em Também partícipes da infância da instituição, cirieiros e tanoeiros,
seu rol alguns mesteirais, como os ourives do ouro, da prata, colchoeiros, ofícios solteiros, preservaram as mesmas prerrogativas, impondo-se fren-
confeiteiros, lanceiros, chapineiros, e do caráter às vezes genérico das te a uma verdadeira legião de ofícios que, na data da reforma, movimen-
informações fornecidas por João Brandão, que não pressupõe muitas tava a vida urbana lisboeta e fazia a economia da cidade. Desta feita, os
vezes as especialidades de cada categoria profissional, agrupando toda a primeiros, que desde a Baixa Idade Média iam no topo dos cortejos, pró-
sorte de tecelões e ocultando os anexos de oleiros e pedreiros, as estima- ximos às tochas e aos círios, mantinham dois representantes na Casa dos
tivas comprovam que às cinco maiores corporações, isto é, às associações Vinte e Quatro, atestando a importância atribuída à arte que iluminava os
de carpinteiros, sapateiros, alfaiates, a de São Jorge e a do arcanjo São santos e as autoridades nas procissões e nos serviços religiosos ordiná-
Miguel, a reforma garantia, de fato, dois representantes na Casa dos Vin- rios. Os últimos, da mesma forma, sobreviviam à opressão das estatísticas,
te e Quatro. Todavia, a outras quatro o documento atribuía também uma por confundirem-se com o nascedouro da própria organização. Afinal,
dupla de delegados neste colégio, sem que estes, no entanto, demonstras- não fora um certo Afonso Anes Penedo, mestre tanoeiro, imortalizado
sem a mesma exuberância nos algarismos. pela Crónica de Fernão Lopes, quem exigira, com uma espada à cinta, o
Tosadores, correeiros, cordoeiros e seus respectivos anexos, cujos apoio da Câmara ao mestre de Avis, nos idos de 1383? Ligado na origem
trabalhadores estavam muito aquém de meio milhar, levaram nas contas ao colégio dos mesteres, o ofício encarnava a própria memória da insti-
d'el-rei uma franca vantagem diante das demais, visto que sua cota de tuição e conservava, a despeito de seus poucos mesteirais, o privilégio de
representantes era a mesma das corporações maiores. Na verdade, os dois deter, sem partilhas, dois delegados na Casa dos Vinte e Quatro.
primeiros, juntamente com cirieiros e tanoeiros, conservavam as prece- A reforma, todavia, não se valeu apenas do passado. Manteve, por
dências que a própria tradição, por antiguidade, atribuía-lhes. certo, seus tantos intocáveis, mas deu ouvidos aos clamores do presente,
Vale a pena recordar que no Regimento das Procissões do Príncipe à especialização dos trabalhadores, ainda que, para que alguns tivessem
Perfeito de 1482, modelo para o cortejo do Corpo de Deus na cidade de voz, outros tivessem que diminuir seu volume. Assim, embora ofícios
Évora, tais ofícios já eram mencionados26. Aliás, agrupados tal e qual na antigos, oleiros e anexos, mencionados pelos confrades de São Jorge
reforma de D. João III para a Casa dos ofícios lisboeta. Como este como um dos pivôs das discussões internas e descritos no regimento de
monarca, aquele citava junto aos correeiros, os adargueiros e os sirguei- D. João II quase na cabeceira da procissão, conquistavam apenas um
ros, e situava, tal e qual, os tosadores, sem parceria, bem próximos à delegado como arauto de suas demandas.
cabeceira da procissão. Além da linha divisória que opunha ofícios Em contrapartida, os cordoeiros, profissionais ausentes no documen-
to que ordenava os cortejos religiosos do século XV, figuravam com dois
nobres e ignóbeis, correeiros e companhia indicavam a qualidade que era
representantes no grémio dos mesteirais de Lisboa. Observe-se que estes
conferida aos que sabiam guarnecer cavalos e mulas com cabresto e pei-
ofícios, que fizeram sua aparição no início da era quinhentista, em Coim-
toral pespontado, revestindo as montarias com os apetrechos de couro
bra, no ano de 1517, andavam no mesmo corpo de mesteres que odreiros,
necessários, enquanto os tosadores, mais próximos do Santíssimo, apon-
tintureiros e albardeiros27 e, em Lisboa, despontavam como cabeça de
tavam a qualidade dos que sabiam frisar e molhar tecidos estrangeiros de
uma única corporação, já que forneciam as cordas e os cordões grossos
diversas procedências.
ou delgados para que os navios do rei fossem completos ao alto mar. Em
Mestres de um ofício mecânico que produzia as alfaias para adornar
Évora, os oficiais que fabricavam odres e tintas eram ramificações dos
cavalos, bem que designava o segmento social e o poder de quem os pos-
grupos de tosadores e sapateiros, respectivamente28, e os albardeiros,
suía, correeiros e afins conservaram na reforma d'el-rei as deferências
integrantes da procissão coimbrã e, pelo menos, trinta homens a cuidar
que lhes outorgava a escala de valores do mundo do trabalho, na era

27 Cf. capítulo anterior pp. 79-80.


26 Cf. capítulo anterior, pp. 74-75. 28 Idem, p. 75.
116 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 117

das louças vidraçadas produzidas em solo lisboeta, sequer estavam tinham uma das maiores corporações somente, mas porque lá estavam
incluídos na Casa dos Vinte de Quatro. desde a juventude da instituição e, como se sabe, à frente de uma corpo-
A despeito das inovações, a primazia desfrutada pelos ourives do ração que se ligava à memória da dinastia de Avis. Traço que o docu-
ouro e da prata seguia sem névoa. Cabeças de um corpo de ofícios cujos mento, quase por atavismo, manifestava.
anexos os inventários ignoraram, indicavam, cada qual, um único repre- Observe-se que apenas esta associação e a do arcanjo S. Miguel
sentante. Se estivessem juntos em uma única bandeira, os mestres da eram designadas como bandeiras na petição, embora as de São José, ora-
ourivesaria teriam, naturalmente, dois delegados. Mas, se meio século go de pedreiros e carpinteiros, e a de São Crispim e São Cipriano, patro-
atrás exibiam-se como ofícios gémeos, no século XVI pareciam recusar nos de borzigueiros e sapateiros, já existissem. A primeira com regimen-
este parentesco e sabiam-se como mesteres afins, porém, distintos. A to datado de 1501 e a segunda com regimento desde 149031. Ainda assim,
divisão era, antes, o indício do fortalecimento desta especialização do o texto da reforma identificava as duas por seus ofícios. O tempo, é certo,
que propriamente um retrocesso ou rebaixamento. Na verdade, o que a encarregar-se-ia de dotar a muitas outras de um estandarte, mas a bandei-
reforma dos ofícios ordenava para a Casa dos Vinte e Quatro espelhava- ra do padroeiro do reino, pelos muitos aniversários, por seus deveres
-se em um ganho pretérito. Em alvará régio de 1514, D. Manuel estabele- cívicos e pelo compromisso de zelar pelas aparições públicas de um santo
cera, em resposta aos apelos dos próprios ourives da prata, uma rua que era objeto de devoção dinástica, mantinha certa precedência sobre as
exclusiva aos prateiros, distinguindo-os dos ourives do ouro, que tinham demais, revelando, em 1539, o seu nível de inserção política. Recorde-se
sua via própria29. que foram os procuradores e mordomos da bandeira de São Jorge os
Comprovando que o princípio norteador da reforma de D. João III autores da petição que desencadeou a reforma régia.
sobrepunha o prestígio de cada mester à expressão numérica dos traba- Ao contrário da bandeira de São Miguel, associação que unia ofícios
lhadores, os tecelões, cerca de 490 mesteirais no levantamento de 1552, tão díspares a ponto de sua cabeça estar entregue ao próprio arcanjo, a
integravam o grémio dos mesteres com apenas um representante. Distri- bandeira de São Jorge tinha sua identidade marcada por uma cadeia de
buídos, segundo João Brandão, em 151 casas, com dois, três teares cada mesteres que, arruados pelas mesmas freguesias, eram a expressão da evo-
uma delas, o ofício era executado em muitas delas por mulheres30, o que lução das técnicas do uso do fogo, do ferro e dos instrumentos cortantes.
insinua a perda de seu poder de barganha em uma instituição prioritaria-
mente masculina.
O modelo classifícatório proposto pela reforma do rei provocaria, 1.2. Os redutos da bandeira
nos dois séculos seguintes, as dissensões características das grandes
parentelas e daria margem à migração dos ofícios de uma bandeira para Formada por um exército de 31 profissões, a corporação dos homens
outra, quando alguns, encorajados pela valorização de seus serviços, de ferro e fogo reunia, de longe, o maior número de ofícios e seus mestei-
recusariam sua pertença ao grupo de origem. Mas a sistematização destas rais percorriam um imenso espectro de funções na área urbana, cobrindo
alterações só seria objeto da atenção dos procuradores dos mesteres na desde o atendimento curativo até à produção de armas brancas e de fogo,
Câmara, em fins do setecentos. Portanto, pode-se supor que a distribui- cuja identidade a cabeça da bandeira, composta pelos barbeiros de bar-
ção dos poderes intra e interofícios correspondia às expectativas dos pró- bear, pelos barbeiros de guarnecer espadas e pelos armeiros, externava.
prios oficiais mecânicos ou que a coesão entre os mesteres de cada cor- Liderada por três profissões, onde as duas primeiras concentravam,
poração fosse, com exceção dos ofícios solteiros e dos tradicionalmente no conjunto da corporação, o maior número de oficiais, a bandeira de São
favorecidos, ainda bastante frouxa. Jorge, a mais diversa em mesteres, representava, com seus 1.344 oficiais
A última inferência parece, com efeito, mais verossímil. Note-se que mecânicos, aproximadamente 2,8% do cômputo geral dos trabalhadores
os requerentes da petição eram os homens da bandeira de São Jorge e não da cidade. Soma que atingia, segundo o inventário de João Brandão,
todos os trabalhadores manuais. Se aqueles, de certo modo, postaram-se
advogando a favor da Casa dos Vinte e Quatro, fizeram-no não porque
31 regimento e Compromisso da bandeira do Bem Aventurado São José dos Ofícios dos
Carpinteiros e Pedreiros da Cidade de Lisboa, 4 de Agosto de 1500. Regimento dos
29 Alvará régio de 19 de Abril de 1514. OLIVEIRA, Freire, op. cit., tomo V, pp. 568-569. Borsegueiros, Çapateiros, Coqueiros, Cortidores do Hospital de São Vicente, 22 de
3° BRANDÃO, João, op. cit., p. 154. Março de 1490. Cf. LANGHANS, op. cit., vol. l, pp. 258-259 e 376.
118 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 119

50.250 pessoas, das quais 11.500 eram mulheres e 39.000 homens32. A Fazem gaiolas 8 20
associação coligava, portanto, em torno de 3,5% da população masculina Lanceiros 8 —
laica que obtinha seus proventos através da oferta de seus serviços. Con- 4 5
Fazem sedeiros —
tingente nada desprezível, caso se considere que o levantamento de 1552 _ 20 5
Espadeiros
não discriminava brancos e negros, e que a bandeira do padroeiro con-
_ 50 5
gregava apenas homens livres. Fundidores de artilharia
_
Espalhados pelas ruas de Lisboa em pelo menos 380 tendas, que Fusteiros de vasos
abrigavam em média de dois a três trabalhadores, os ofícios da corpora- Fazem pandeiros _

ção de São Jorge distinguiam-se em proporção numérica. Resumidas no Cantileiros _


quadro 2, as estimativas para cada mester justificam o clamor do mordo- Latoeiros de folha branca _ 16 10
mo e do escrivão da bandeira para que a realeza discriminasse as associa- Cosedores de caldeiras _^__ 40 10
ções da cidade e determinasse ou reafirmasse a cabeça e os membros do
Alugam cavalos ^—
estandarte de São Jorge.
Besteiros * *

944 1 344 380


Quadro 2 - Ofícios da bandeira de São Jorge Totais
* Os ofícios assinalados com o mesmo número de asteriscos andavam aos pares,
Ofícios Número de Número de Número de trabalhando em uma mesma oficina.
Oficiais em 1551 Oficiais em 1552 Tendas em 1552

Barbeiros 197 230 70


Concentrando 17,1% dos mesteirais da corporação de São Jorge, a
Ferreiros 129 — _
cabeça da bandeira era composta por 230 barbeiros de ambas as especia-
Serralheiros 93 220 55 lidades, que se distribuíam por 30 tendas de barbear e 40 outras de guar-
Pintores 66 90 30 necer espadas. Em parte amontoados na Rua Nova dos Mercadores, entre
Latoeiros 57 40 40 caixeiros, boticários, fanqueiros e mais uma dúzia de ofícios que faziam a
Ferradores 51 100 32 confusão e a "mistura" do lugar33, desses homens só se aproximavam em
Caldeireiros 43 40 10
termos quantitativos os serralheiros, gente que à época vivia na Ferraria
Pequena de São Julião, nas Ferrarias Velhas das freguesias de São Barto-
Seleiros 39 60 20
lomeu e de Santa Maria Madalena e representava 16,4% dos oficiais
Douradores 39 45 15
mecânicos da associação34. Gente que, justamente por ser numerosa,
Mercadores de carvão 39 _ estava na hierarquia deste corpo de ofícios abaixo dos armeiros, também
Guadamecileiros 31 30 3 mester de "capitão" da bandeira e que reunia 1,3% dos oficiais de São
Cutileiros * 30 130 Jorge na Rua Nova d'el-Rei em São Julião. Artífices seletos, sabedores
Freeiros 24 60 _ de um ofício valorizado ante os olhos de uma sociedade erguida e manti-
Bainheiros * 21 _ 33
da às custas das armas, dada a ostentá-las em sinal de distinção, tanto nos
20
dias de luta, quanto na ocasião das festas. Mester que recordava aos
Anzoleiros 50 10
demais que o mundo dos artesãos era, a despeito de um orago comum e
Coronheiros* * 17 60 20
dos deveres cívicos e religiosos, estratificado e inclinado a particularis-
Armeiros 14 18 6
mos.
Bate-f olhas 14 20 6

Ibidem, p. 100.
Ibidem,p.
32 BRANDÃO, João, op. cit., p. 215. 34 OLIVEIRA, Cristóvão Rodrigues de, op. cit., pp. 17-46.
120 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 121

As regras desta cartilha conheciam-na não só os serralheiros, fabri- que representavam cada qual 1,5% da bandeira, exerciam suas atividades
cantes de tornos, bigornas e fechaduras, sabiam-na também os ferreiros, nestes sítios. Os 1,2% de latoeiros de folha branca, os 0,4% dos homens
mestres de um ofício matriz, cascudo nos anos, achavam-se enfileirados que faziam sedeiros e os demais ofícios da bandeira, ausentes dos dois
pelas ferrarias da cidade. Eram o segundo grupo mais numeroso da asso- censos, também estavam radicados nestas imediações. Verdadeiros redu-
ciação, 13,7%, caso se dê crédito às contas de Cristóvão de Oliveira. tos da bandeira de São Jorge e que manteriam a mesma fisionomia no
Com o passar dos tempos, passaram às mãos dos ferradores, arruados na decorrer dos próximos dois séculos, apesar do desenvolvimento de outras
freguesia de Santiago, ao pé do castelo de São Jorge, e quase 7,4% da células de produção industrial da corporação, que, seguindo a dilatação
corporação, certas habilidades e dividiram com eles a designação das vias. do tecido urbano, tornar-se-iam a morada de outros mesteirais.
Entretanto, como a especialização profissional engrossara com outros tan- A semelhança entre os anexos do estandarte dos homens de ferro e
tos os braços do corpo de ofícios do padroeiro, não só os executores da arte fogo de Lisboa conduziu à formação de bairros inteiros vocacionados
de ferrar bestas haviam conquistado o direito de marcar as artérias lisboe- para a oferta de serviços específicos e facultou, por outro lado, a partilha
tas e o ambiente em que passavam boa parte de sua existência. de experiências comuns que deram azo à construção de usos, costumes e
Também alinhados em uma mesma via, os douradores, 3,3% da asso- crenças próprios destes segmentos socioprofissionais.
ciação, davam nome a uma das ruas da paróquia de São Nicolau, enquanto Balizado por um esquema classificatório que opôs as artes liberais
cutileiros e bainheiros espraiavam-se por um caminho que atravessava as às artes mecânicas, este sistema de apreensão e inserção no tempo vivido,
freguesias de Santa Justa e São Nicolau: a Rua Direita da Cutelaria. Parcei- desenvolvido no seio de cada corporação e aqui chamado cultura de ofí-
ros de trabalho e residentes no mesmo lugar, somavam juntos 9,7% do cio, não só agenciou a transmissão das técnicas, dos valores morais e éti-
total de mesteirais da corporação. Situados ainda nesta paróquia, os caldei- cos que definiam o comportamento entre os artífices de um mesmo mes-
reiros, 3% dos homens da bandeira, lidavam em suas tendas na Rua da ter, como também orientou a percepção que cada sujeito tinha de si
Caldeiraria, para atender aos clientes e levar, semanalmente, ao Rossio as mesmo, fosse diante do grupo ou diante de todo o corpo social, determi-
caldeiras de aro, os alambiques de cobre, os cântaros de cangalha35. Lá jun- nando sua inclusão ou exclusão em uma bandeira e a construção de sua
própria identidade social.
tavam-se aos sapateiros, às vendedoras de queijo e natas e às brancas,
A formação de uma cultura forjada por um mesmo mester não pas-
negras e mouras que tinham passado os dias a reformar trapos velhos, a dá-
sou em branco pela historiografia. Debruçando-se sobre a "cultura popu-
-los à feição de novos, para passá-los à frente na Feira da Ladra36.
lar" do período moderno, Peter Burke descreveu usos, costumes, crenças
Sem ligarem-se à toponímia lisboeta pomo fizeram as profissões
particulares a várias profissões. Mas, limitando-se a catalogar um sem-
mais antigas ou aquelas com maior número de oficiais mecânicos, os
-número de mesteirais no campo e na cidade, para atestar a diversidade
seleiros, 4,5% dos profissionais que elegiam os representantes da corpo-
presente na "cultura camponesa" e na "cultura artesã", acabou por enre-
ração para a Casa dos Vinte e Quatro, assim como os freeiros, 4,5% dos
dar-se em um cipoal de argumentos contraditórios, ao pressupor que
mesteres da bandeira, atuavam também nestas paroquiais. Núcleos que umas mais do que outras desenvolveram "uma cultura própria em sentido
funcionavam, congregando mesteres afins, como assevera a descrição de mais amplo e completo". Neste último estágio, estariam sapateiros, tece-
João Brandão. Ao agrupar coronheiros e besteiros, 4,5% dos homens da lãos e pedreiros que, além de "habilidades particulares, transmitidas de
bandeira, e do mesmo modo cutileiros e bainheiros, o fidalgo não permi- geração a geração", tinham, nas canções que embalavam o trabalho diá-
tiu que se conhecesse sua contagem individualmente. Entretanto, reafir- rio e no envolvimento com a vanguarda de movimentos políticos e com a
mou os elos de dependência entre uns e outros, indicando que os ofícios liderança de grupos heréticos, os distintivos de suas especificidades37.
irmãos andavam aos pares, sob uma mesma tenda ou em lojas vizinhas. Ao recolher e agrupar informações de conjunturas díspares e sobre-
Desta feita, os anzoleiros, quase 3,7% dos oficiais de São Jorge e os voar o terreno dos ofícios urbanos tomando a parte pelo todo, ao estabe-
2,3% de guadamecileiros, além dos bate-folha, espadeiros e gaioleiros, lecer uma relação desigual na permuta de informações entre o que cha-
mou de "a grande tradição" e a "pequena tradição - a primeira produzida
35 regimento dos Caldeireiros, in LEÃO, Duarte Nunes de. Livro do Regimento dos Offi- e transmitida nas escolas e nas universidades, a segunda propagada atra-
ciaes Mecânicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa - 1572. Coimbra: Ed.
Imprensa da Universidade, 1926. Publicado e prefaciado por Virgílio Correia, pp. 48-
-51. 37 Cf. BURKE, Peter. A Cultura Popular na Idade Moderna - Europa, 1500-1800. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 50-68.
36 BRANDÃO, João, op. cit., pp. 90-95.
122 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 123

vês de trovas, cantigas e contos da tradição oral —, o historiador acabou como objeto de um mesmo discurso classificatório que lhes fixava um
por conduzir a uma compreensão claudicante da relação entre os dois cir- estatuto, quer no universo das práticas cotidianas, quer no mundo das
cuitos. Ao passo em que predispôs os segmentos sociais letrados à intera- representações. Um e outro, motor e eixo de uma engrenagem que dire-
ção com as heranças da tradição oral, na ocasião das festas, carnavais e cionava a afirmação do seu lugar de pertença ou a sua negação no seio de
charivaris, alijou a "cultura artesã" do meio no qual agia e que aluava sua associação e da sociedade.
sobre ela por entendê-la como uma "cultura fechada". Eis porque os pintores, dispostos em uma das ramificações da ban-
Construtor de uma escala de valores fictícia e inverossímil, fadado a deira de São Jorge, mostravam-se destoantes dos outros mesteirais.
estereótipos, o termo "cultura artesã" restringe o mundo do trabalho Somando em tomo de 7% dos seus integrantes, estes profissionais, ao
urbano aos setores industriais, excluindo uma série de profissões, tam- contrário da maioria, envolvida em entreveros pela posse da cabeça da
bém geradoras de urna cultura de oficio; como os homens de mar, os pas- bandeira e por um lugar de maior destaque na Casa dos Vinte e Quatro,
teleiros, os confeiteiros, os carniceiros, para citar alguns em meio a uma não questionavam apenas a pertinência de seu lugar na corporação, inter-
lista extensa. Por outro lado, descarta toda uma gama de ocupações que rogavam-se sobre seu estatuto como oficiais mecânicos, de maneira
prestavam serviço à população e que lidavam junto aos grupos letrados, geral. Assim, fazendo-se de rogado, cinco anos após a promulgação dos
como as cristaleiras, os boticários e os barbeiros. Especializados em acu- Regimentos dos Oficiais Mecânicos de Lisboa, em 1577, um de seus
dir com clisteres, mezinhas e sangrias os enfermos e indispostos, ora a representantes convidou ao rei a refletir sobre a natureza de seu mester.
domicílio, ora nas instalações hospitalares, sob a inspeção de um físico, Bem-sucedido em seus intentos, Diogo Teixeira conseguiu de D. Sebas-
estes profissionais estavam em permanente contato com um saber de tião a dispensa dos encargos da bandeira de São Jorge, argumentando que
formação universitária na Época Moderna. a pintura era uma das artes liberais e não um ofício mecânico39.
A excessiva obstinação em inventariar superficialmente as particula- O conceito subjacente à fala do pintor da imaginária deitaria raízes
ridades dos ofícios sem conhecer a legislação que os regia, as provas a em solo português, como fizera no território italiano. Aliado a um movi-
que estavam submetidos, a oferta de seus serviços, sua importância no mento mais amplo de promoção das artes plásticas, nas centúrias seguin-
conjunto da sociedade e a relação de vizinhança que mantinham os mes- tes, pari passu ao galardão de nobre atribuído aos pintores da arte, estes
teirais, deixam atrás de si um rastro de imprecisão e de estereótipos, que artífices estariam ausentes da bandeira de São Jorge e de qualquer outra
esboroa ao primeiro contato com a documentação na qual estes sujeitos com assento na Casa dos Vinte e Quatro. Mas o processo de redefinição
históricos registraram suas falas38. Fosse redigindo estatutos de sua cor- dos parâmetros de classificação das atividades profissionais, assinalado
poração, os termos do compromisso da irmandade a que pertenciam, fos- por mestre Diogo, atravessaria o mundo do trabalho durante toda a Era
se contestando o enquadramento das leis de seu mester. Moderna, derrubando velhas paredes e erguendo novos muros entre as
Se muitos mesteirais mantiveram-se ligados oficialmente segundo a artes liberais e as artes mecânicas.
disposição prescrita pela reforma dos mesteres de Lisboa, de 1539, fize- Concebida pela Idade Média, a dicotomia pressupunha as artes libe-
ram-no tanto porque respondiam às mesmas exigências profissionais, rais como um conjunto de disciplinas que obedecia a uma divisão formal:
como porque percebiam-se como parte de um mesmo corpo de ofícios, o Trivium e o Quadrivium. O primeiro combinava o estudo da gramática,
da dialética e da retórica, enquanto o segundo compunha-se da aritméti-
ca, da geometria, da astronomia e da música40. Distintas das matérias
38 Com base em panegíricos em honra ao oficio de sapateiro, na recolha de notícias sobre
sapateiros de fama célebre da Era Moderna e supondo a sobrevivência de uma matriz
necessárias à instrução das elites religiosa e laica, suas parentas menores
antiga responsável pelo estereótipo do "sapateiro-filósofo", Peter Burke promoveu a e mais humildes, as artes mecânicas eram também sete. Em seu bojo
categoria profissional ao estatuto de ofícios nobres e acabou por deixar indefensável encontravam-se a fabricação das armas, a medicina, a caça, os lanifícios,
seu pressuposto de uma cultura dos sapateiros no seio do que chamou "cultura artesã". a navegação, a agricultura e as artes cénicas41.
Ao investigar a construção do movimento sebastianista em Portugal e as confusões
geradas em torno da figura de Gonçalo Annes Bandarra, Jacqueline Hermann demons-
39 LANGAHANS, Franz-Paul, op. cit., vol. 2, p. 477.
trou, com elegância, a impertinência de uma relação direta entre sapateiro e vidente.
De todo o modo, os sapateiros portugueses ainda aguardam uma investigação que reve- 40 HALE, John (org.). Dicionário do Renascimento Italiano. Rio de Janeiro: São Jorge
le seus rostos, que descortine suas práticas cotidianas e suas imagens, no universo das Zahar Editor, 1988, p. 40.
representações. Cf. BURKE, Peter, op. cit., pp. 64-65; HERMANN, Jacqueline. No Rei- 41 CARDINI, Franco. Europa 1492 - retraio de um continente há quinhentos anos. Lis-
no do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 33-50. boa: Editorial Verbo, 1991, p. 96.
124 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 125

Oriundo da cultura eclesiástica, o conteúdo deste esquema bipartido No entanto, a mobilização para a redação de regras comuns, definidas por
já se mostrava incapaz de abarcar a multiplicação das ocupações profis- um mesmo documento, e com a pretensão de dar duração aos critérios de
sionais quando D. João I entregou aos homens de ferro e fogo os cuida- avaliação e admissão de cada oficial, seguiu compassos diferentes no
dos de São Jorge, visto que a medicina já compunha o elenco de discipli- interior de cada profissão, pois a observância das tábuas regimentais já
nas do Estudo Geral criado em Lisboa, em 1290. Na Idade Moderna, existentes ainda mostrava-se débil no último terço da centúria.
como demonstravam os pintores da bandeira de São Jorge, aparentava ser A fim de inibir os "muitos inconvenientes que se seguiam de muitos
ainda mais insuficiente. Contudo, sua arquitetura, edificada sobre dois oficiais mecânicos não terem regimentos e porque muitos deles eram tão
pólos antagónicos, conservava-se no repertório de classificação portu- antigos e desordenados acerca das 'examinações' como de outras cousas
guesa dos ofícios, demarcando os limites entre os campos da atuação pro- tocantes aos officios", a Câmara incumbiu ao licenciado Duarte Nunes de
fissional e constituindo um referente fundamental para oficiais de ambos Leão a tarefa de reunir e reformar os regimentos dos oficiais mecânicos
os grupos, tanto nas cerimónias públicas quanto na legislação. já existentes e de organizar aqueles que andavam ao arrepio da lei43.
O alcance e a extensão deste modelo de hierarquização dos saberes Estendendo frontalmente seu controle sobre o círculo dos ofícios mecâni-
não se compreende, porém, em separado das culturas de ofício, de suas cos, em 1572, o concelho tornava públicas as exigências para o ingresso
especificidades e de sua dinâmica. Responsáveis pelo trânsito dos meste- e exercício de cada profissão, estipulando os saberes requeridos a cada
res das artes mecânicas às artes liberais, ou mesmo por sua mobilidade mester e definindo sanções para aqueles que ferissem os dispositivos
no âmbito das corporações, seus traços conservaram sua fisionomia nos previstos pelas cartas regimentais.
regimentos dos ofícios lisboetas, gerados pelas políticas régia e munici- Comportando variações que decerto vinham dos usos e costumes
pal, para regulamentar a atuação dos mesteirais residentes em Lisboa, em desenvolvidos pelas culturas de oficio, os regulamentos resguardavam
1572. Complementando o processo deflagrado com a reforma de 1539, a princípios gerais, extensivos a todas as profissões, e valorizavam o papel
legislação dava a conhecer, sem deixar uma nesga de dúvida, as profis- da Câmara como instância de aprovação das deliberações tomadas no
sões que se enquadravam nas artes mecânicas. Mas também deixava à âmbito de cada profissão, concentrando a punição das infrações cometi-
mostra as leis que regiam a vida dos homens de ferro e fogo, o parentesco das. Reunidas em quinze capítulos no Livro Segundo de Posturas Geraes
de suas ocupações e o vínculo que mantinham com São Jorge, seu orago para os Officiaes Mecânicos", as normas para a conduta dos 101 ofícios
e protetor. arregimentados pelo legista determinavam que, anualmente, no mês de
Janeiro, após a convocação dos mordomos, deveriam ser realizadas as
eleições dos juizes de cada mester.
1.3. As leis e os saberes dos ofícios de ferro e fogo Com a incumbência de visitar as tendas de seus oficiais mensalmen-
te, ou a cada quinzena, se o seu regimento assim ordenasse, os juizes,
Presente na pauta do diálogo entre o rei e a Câmara de Lisboa pelo devidamente acompanhados do escrivão de seu cargo, eram obrigados a
menos desde 1545, a necessidade dos "mordomos [sic] dos ofícios faze- vistoriar as obras e, atestando qualquer incorreção, caber-lhes-ia comuni-
rem cada mês vesitação em seus ofícios, p.a se evitarem fazer nellas car à Câmara a ocorrência. Responsáveis, outrossim, pela avaliação dos
alguas cousas ffalsas que se diz[iam] fazerem nelles em prejuízo do oficiais, era-lhes expressamente proibido examinarem os candidatos sem
povo", culminou no Verão deste ano em uma carta que o rei endereçou a presença do escrivão e do outro vedor e ficava-lhes vetada a possibili-
ao concelho, na qual o monarca ordenava aos vereadores que obrigassem dade de julgar qualquer parente ou criado. Nestes casos, os postulantes ao
os mesteirais a cumprir seus regimentos e, caso houvesse a necessidade ofício deveriam encaminhar uma petição à Câmara, para que os juizes da
de emendá-los, corrigi-los ou recriá-los, que assim o fizessem42. gestão anterior, mesmo já impossibilitados de assumir o cargo por três
Indicando uma incontestável desigualdade no estágio de regulamen- anos, fossem convocados para a função.
tação dos mesteres, a missiva do rei deu impulso à redação ou reformula-
ção de uma série de regimentos, nas décadas de 50 e 60 do século XVI.
43 LEÃO, Duarte Nunes de. Livro dos regimento dos Officiaes Mecânicos da Mui Nobre e
Sempre Leal Cidade de Lisboa - 1572. Coimbra: Ed. Imprensa da Universidade, 1926.
« Carta régia de 8 de Agosto de 1545. OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cit., tomo XII, Publicado e prefaciado por Virgílio Correia, p. XVII.
p. 502. 44 Livro Segundo das Posturas Geraes para os Officiais Mecânicos, ibidem. pp. 233-246.
126 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 127

Eleitos por um "ajuntamento" de presença obrigatória a qualquer examinar e fiscalizar a produção em cada tenda e a conversão das faltas
mestre com tenda e reconhecidos como autoridades legítimas pela comu- em cera para o orago protetor insinuam que estes procedimentos não
nidade do mesmo oficio, os juizes deveriam zelar pela lisura do julga- eram uma invenção do século XVI. Eram, ao contrário, elementos estru-
mento, atribuindo o grau de suficiente apenas àqueles que fizessem por turantes das culturas de ofício da zona urbana lisboeta e que foram ofi-
merecer. A sanção pela inobservância deste item das posturas gerais não cializadas na era quinhentista, ao serem encampadas pela legislação
era apenas de dois mil reais para as obras da cidade, como quando des- municipal.
cumpriam os outros dispositivos regimentais. Tal e qual a ausência em Como permitem averiguar os regimentos anteriores a 157245, o pro-
alguma assembleia do ofício, a aprovação indébita de mesteirais incorria cesso eletivo dos juizes, mordomo e escrivão, componentes da mesa
em trinta dias de detenção-na cadeia. administrativa de cada mester, ocorria em uma assembleia geral realizada
Deixando clara a intenção de manter sob sua vigilância a vida pro- a cada um ou dois anos. Convocados pelo mordomo em uma data fixada
fissional dos oficiais mecânicos radicados em Lisboa, a Câmara interferia pelo costume, na maioria das vezes em Janeiro ou Dezembro46, os mes-
diretamente no processo de estabelecimento de novas lojas e na acumula- tres de tenda, naturais e estrangeiros, selecionavam, dentre aqueles que
ção do património dos mestres. Ao ordenar que nenhum oficial poderia sabiam ler e escrever, os nomes encarregados da "examinação" dos pos-
abrir tenda sem a carta de examinação, fornecida pelos juizes do ofício e tulantes ao ofício e responsáveis pela "visitação" mensal das lojas. Esco-
confirmada pelo concelho, os capítulos três e dezesseis do Livro Segundo lhidos através de voto direto ou de representantes indicados para este fim,
explicitavam que doravante a perícia técnica unia-se em definitivo a um os dois juizes e o escrivão apresentavam-se à Câmara, após o pleito, para
comprovante escrito. Entretanto, mesmo com a dita em mãos, os oficiais a averbação da eleição.
aprovados não poderiam meter-se a ter mais de uma tenda em um único Marcelo Caetano sugere que o sistema de eleições indiretas fazia-se
mester. O documento proibia, do mesmo modo, a abertura de uma oficina nos ofícios mais numerosos. A inferência não se sustenta quando se con-
àqueles cujas mercadorias e ferramentas de ofícios fossem arrendadas. frontam os números de oficiais da ourivesaria e a forma como conduziam
Em se tratando de oficiais examinados fora da cidade, o texto era claro: o escrutínio. Os ourives do ouro, cerca de 232 em 1552, faziam eleições
deveriam prestar nova prova. indiretas, anualmente, escolhendo doze homens, seis cristãos-novos e
Obrigados a pagar fiança anual à Câmara para o exercício da profis- seis cristãos-velhos, para formarem a mesa examinadora dos oficiais. Os
são, os mesteres estavam também submetidos às regras de convivência ourives da prata, em torno de 278 no mesmo ano, reuniam-se a cada bié-
profissional determinadas pelo regimento. Qualquer inovação na condu- nio para escolher por voto direto, em assembleia, seus dois juizes, mor-
ção dos trabalhos deveria ser informada à Câmara e nenhum mestre domo e escrivão47.
poderia tomar obreiros ou aprendizes alheios antes do tempo acordado O atendimento à convocação para o "ajuntamento" era de todo o
com o "amo" que lhes admitiu. A transgressão destas e daquelas limita- modo obrigatório. Cabia ao mordomo, guardião da bandeira e do castelo
ções implicava uma pena pecuniária para o município, que variava de
45 Cf. Regimento dos Tecelãos desta cidade de Lixboa de 3 de Janeiro de 1559"; "Regi-
acordo com a gravidade. Para os que se pusessem a trabalhar sem a carta mento do Ofício dos Tanoeiros de Agosto de 1551"; "Regimento dos Ourives do Ouro
de examinação, ou que abrissem lojas indevidamente, a multa era de dois de como hão de fazer e emleger os oficiais do dito oficio de 20 de Dezembro de 1554";
mil reais. Os que recolhessem em sua casa moços de outra tenda, dividi- "Regimento dos Ourives da Prata desta Cidade de Lixboa de l de Fevereiro de 1550";
riam com os próprios jornaleiros o prejuízo causado ao colega de ofício. "Regimento dos Latoeiros de Obra de Latão, Folha Branca e Chumbo de 18 de Janeiro
de 1556: Regimento Novo que se fez para nos Barqueiros de 21 de Maio de 1563";
Aqueles dariam dois mil reais pela falta e estes mil reais. Como de praxe, "Regimento sobre Atafoneiros e Moleiros de 16 de Agosto de 1564"; "Regimento do
a quantia era repartida a meias entre a Câmara e o denunciante. Ofício de Fazer Colchas de 5 de Janeiro de 1552"; "Regimento dos Bate-folha de 3 de
Ainda que o silêncio dos períodos mais remotos obstrua compara- Dezembro de 1553"; "Regimento do Ofício dos Barbeiros de Guarnecer de 7 de Maio
de 1565; Livro que fés mestre gamito barbeiro de solorgiam do regimento do hoficio
ções e impeça o desenho de uma linha de evolução do amadurecimento de igiminaçãm dos barbeiros na era 1511, in LANGHANS, Franz-Paul, op. cit., vol. 2,
técnico e dos mecanismos utilizados por cada ofício para a apreciação da pp. 724, 691, 365, 391, 214 e 352; vol. l, pp. 142, 360, 362, 315 e 311, respectivamen-
competência de seus mesteirais, pode-se aferir que os regimentos de 1572 te.
eram uma síntese do modelo organizativo dos mesteres. Presentes nos 46 Os ourives do ouro faziam sua assembleia no dia de S3o João.

regulamentos anteriores a esta data, as diferenças na regência do calendá- 47 Cf. CAETANO, Marcelo. "Prefácio", in LANGHANS, Franz-Paul, op. cit vol l
rio, na periodização com que ocorriam as eleições dos encarregados em p. XVII.
128 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 129

do ofício que iam às ruas em dias de procissão, avisar a todos, sem "all- poderiam pratear de "rasquete" para os dias de festa e eram terminante-
gum respeito de malícia ou affeyção"48, a hora e o lugar do encontro. A mente proibidos de dourar freios, bridas, esporas, estribos e demais peças
falta à sessão implicava o pagamento de multas à associação de entreaju- velhas para depois vendê-las como novas na oficina.
da do ofício ou ao padroeiro do mester. Por sua ausência injustificada, os A despeito dos condicionantes, a lei, entretanto, protegia-lhes contra
tanoeiros davam aos cofres da confraria de Santana cem reais, enquanto possíveis abusos de freeiros e cabeiros. mestres de fazer freios, esporas
os barbeiros, autores de um dos regimentos mais antigos da série, paga- mouriscas, caixas de peitoral, esporas quebradiças de calcanhar, cabeça-
vam duzentos reais para a cera do bem-aventurado São Jorge, padroeiro das de ferro, cabrestos e estribos de mula, estes mesteirais não podiam
de sua corporação. dourar, pratear, estanhar ou envernizar qualquer um destes apetrechos
Versando sobre a mesma matéria, contudo, enfatizando particular- indispensáveis à cavalgadura51, apossando-se da freguesia dos douradores.
mente o processo de eleição das autoridades de cada mester, a idoneidade O mesmo princípio regia â atuação dos latoeiros de obra grossa.
dos juizes e a boa-fé na avaliação dos candidatos, os regulamentos revis- Gente de fundir qualquer peça de ferro, eram suas as mãos que faziam os
tos ou escritos por Duarte Nunes de Leão permitem vislumbrar o elo entre arreios para os cavaleiros, fabricavam também cabeçadas, esporas, caixa
as profissões que compunham a bandeira de São Jorge e que justificaram a de peitoral e umas estribeiras muito bem soldadas com prata e postas em
formação de núcleos urbanos forjados a partir desta interdependência. ponto para se poderem dourar. Porém, não viviam só desta arte. Sabiam
Sujeitos, como todos os oficiais mecânicos, a exames específicos, os fazer balaústres, castiçais de igreja, cadeirinhas de pote de latão, astrolá-
mesteirais do ferro e do fogo tinham cada qual seu próprio regimento. bios e os almofarizes em que os boticários misturavam as mezinhas52.
Entretanto, como boa parte das "indústrias" era consequência da especia- Parentes muito próximos, no entanto, com habilidades distintas, os
lização de uma ocupação matriz, a frequente correlação entre os mesteres latoeiros de latão e os de folha branca abasteciam Lisboa com um sem-
demandou uma linha divisória entre as áreas de atuação dos membros da -número de peças. No rol dos primeiros encontrava-se desde "alampadas
corporação, possivelmente para evitar litígios e destemperas entre as par- de quatro balaustres" e trombetas bastardas, até aos utensílios hospitala-
tes. A despeito destas fronteiras profissionais, a bandeira do protetor e res, como as "coadeiras" de botica e o "cristel de mea canada". Na lista
defensor do reino era, em fins da era quinhentista, uma fábrica de metais, de utensílios produzidos pelos últimos, a mesma variedade: "quantinpro-
nobres ou não, que mudavam de forma, cor e textura com o calor do fogo. sas", candeeiros oitavados, funis grandes e pequenos, tintureiros de
Nas tendas dos bate-folhas, a lida diária era fundir o ouro delgado, chumbo, "bocetas para almisquere", "poeiras de folha" e "syringa" de
fazer "batiduras" de prata e de estanho para assistir à clientela, também cirurgiões. Todos, estes e aqueles, marcados com as insígnias da cidade
composta por douradores e pintores. Hábeis em cortar qualquer peça de por ordens expressas do regimento, sinal que garantia a qualidade do
ferro e assentar-lhe muito bem o ouro, os primeiros usavam de suas produto e a procedência da obra, mas também exigência do tempo, dos
folhas de estanho para pratear estribeiras de cobre moído, deixando esta- dias em que a autoria já se impunha como um bem e que duelava com a
nhado o seu verso e à vista a aparência de prata branca ou dourada, cobiça e a má-fé, unidas na adulteração das mercadorias dentro e fora das
enquanto os últimos, mesmo que inconformados com o rótulo de oficial tendas, ora misturando metais, ora reformando peças antigas e cobrando
mecânico, seguiam usando de seu ouro fino para as "peças de ouro bor- por elas o preço de novas.
nido", feitas em algum pano ou tábua, onde davam vida aos rostos san- Por isso, a mesma obrigação tinham-na os caldeireiros, fabricantes
tos, à Virgem da Encarnação ou outras figuras de vulto49. de alambiques de cobre, caldeiras de aro, cântaros de cangalha e do
Submetidos à vedoria e a severas normas quanto ao uso indiscrimi- escalfador de que se servia o barbeiro, mester cabeça da bandeira, sabe-
nado dos metais, os bate-folhas estavam impedidos de fazer prata desbas- dor dos cortes e das sangrias, mestres na arte de afiar lanceias, amolar
tada para douradores e de misturar ouro e prata, dando origem ao chama- navalhas e tesouras novas. Homens que atravessavam os dias molhando e
do "ouro meão". Considerada grave, a infração, provavelmente contumaz rapando barbas, cortando cabelos, fazendo tosquias e que dividiam com
em outros dias e arriscada em 1572, resultava em cadeia para o mestei- os seus congéneres de guarnecer espadas a mesma nomeação. Enquanto
ral50. Restritos do mesmo modo pelas regras do ofício, os douradores só se entregavam ao manuseio das lâminas de curar e embelezar, seus com-
48 Regimento dos Tecelãos.
49 Regimento dos Pintores. LEÃO, Duarte Nunes de, op. cit., pp. 104-105. 51 Regimento dos Freeiros e Cabeiros, ibidem, p. 63.
50 Regimento dos Bate-folhas, ibidem, pp. 25-26. 52 Regimento dos Latoeiros de Obra Grossa, ibidem, pp. 45-48.
130 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 131

panheiros davam fio a todas as ferramentas de cortar, amolavam e açaca- íntimos do aço, como tantos outros companheiros de corporação, os
lavam ferros de lanças e quaisquer outras armas53. besteiros sabiam caldeá-lo e reparti-lo para fazer uma besta. Dele davam
Integrantes dos mesteres que se ocupavam do trato com o equipa- forma a um arco, em qualquer feição que lhe fosse requerido. Entretanto,
mento indispensável aos soldados, os barbeiros de guarnecer espadas cortar suas pontas era serviço apenas para as gentes de confeccionar
compunham, junto com espadeiros, couraceiros e armeiros, uma tríade. coronhas, pregando e polindo chapas: os coronheiros58. Usando o mesmo
Enquanto uns faziam montantes, espadas com espigão e espadas largas metal, mas entregue ao trato das coisas nas quais a habilidade se verifica-
de cavalgar, todas "bem caldeadas, de aço bem esmerado, bem lavradas e va no que era miúdo, os anzoleiros faziam anzóis, biqueiras, agulheiros e
bem temperadas no fogo"54, os outros dois, ofícios irmãos, confecciona- espinhaleiros. Nada de pouca monta, porque, só no dia do exame, estes
vam e reparavam armaduras. homens tinham de fazer, diante do juiz, trezentos anzóis59.
Os armeiros desguarneciam armas brancas ou um arnês branco de Apesar das inovações e de uma incontestável divisão do trabalho na
alto a baixo para limpá-los e depois tornavam a montá-los. No entanto, a produção dos mesteres da bandeira de São Jorge, os ferreiros de "obra
complexa fábrica de ajustar as medidas do freguês ao aço caldeado na grossa e delgada" mantinham-se necessários. Radicados em uma cidade
perfeição necessária, formando depois de batido, traçado e aplainado uma de vocação marítima, que tinha seu cérebro na Ribeira das Naus, os fer-
veste resistente e apta à cavalgadura era da competência dos couraceiros. reiros "das obras do mar" produziam âncoras, ferragens e cravo para bes-
Apesar do engenho e da arte, o regimento era claro: a nenhum armeiro tas. Vizinhos em uma área urbana que não se cansava de crescer, os fer-
era permitido "usar malhas de ferrete e deitar em saia", salvo em mangas, reiros de "obra da terra" trabalhavam para os que lidavam em chão firme.
luvas e calças. Aos couraceiros dispostos a passar à frente couraças de Em suas tendas achavam-se os machados altos de carpinteiro e "toda a
ferro com se de aço fossem, o regimento era taxativo: era proibido vender ferragem para a besta". Tanto para um quanto para o outro, o regimento
armaduras da Flandres sem o exame do vedor. era explícito: haviam de saber caldear ferro e aço e conhecer sua nature-
Destreza na transformação do aço tinham também os cutileiros. Era za, "se agro, se doce"60.
a eles que se procurava, quando o assunto eram as lâminas e objetos cor- Em parte espremidos pela ação dos ferradores, companheiros de
tantes de uso doméstico e comercial. Davam conta de fabricar um punhal bandeira, porém rivais na disputa pelo atendimento, os ferreiros ainda
buído, ferramentas para escrivaninha, uma mesa de cutelos, pares de mantinham a prerrogativa que a antiguidade conferia ao mester. O regi-
facas, adagas, navalhões, tesouras de alfaiate, tesouras e trinchetes de mento assegurava-lhes que poderiam atender qualquer caminhante, mes-
sapateiros55. Também com domínio sobre a mesma matéria-prima, os mo que nas imediações houvesse um ferrador examinado. Justificada
bainheiros ganhavam a vida a fazer caixas de barbeiro, estojos para pela preocupação em dar conforto ao freguês, a medida garantia-lhes
cirurgiões, escrivaninhas, faqueiros, bainhas de punhal, caixas de óculos outra frente de trabalho, favorecendo-lhes com oportunidades de ocasião
e barris, dividindo a meias com os cutileiros, segundo o regimento, toda a que seleiros e fusteiros, oficiais que também lidavam com mulas e burri-
obra de cutelaria que chegasse à cidade56. cos - aqueles fazendo suas selas e estes os vasos para alforjes - não
Com produção igualmente diversa, os serralheiros fabricavam tor- tinham.
nos, bigornas, fechaduras, aldrabões, "machofemea" de janelas, guarni- Mas justiça seja feita. Os homens que entendiam mesmo das bestas
ções para arcas encouradas com suas chaves e cruzetas, além de consertar eram os ferradores. Sabiam cortar com puxavante e fazer muito bem o
fechaduras. Se entregues a estas habilidades em particular, eram conheci- casco de todo o género de animais de carga, lançando ferraduras e atarra-
dos como "caldeirachaves", uma especificação nascida da prática desta cando os cravos. Reconheciam uma encravadura e sabiam tratá-la com as
imensa legião de mesteirais57. mezinhas convenientes, mestres da alveitaria, dominavam o mapa das
veias que corriam das patas ao lombo. Por isso, curavam com sangrias as
bestas, como os barbeiros os homens61.
53 Regimento dos Barbeiros, ibidem, pp. 61-63.
54 Regimento dos Espadeiros, ibidem, p. 60. 58 Regimento dos Coronheiros, ibidem, pp. 70-71.
55 Regimento dos Cutileiros, ibidem, pp. 73-74. 59 Regimento dos Anzoleiros, ibidem, pp. 67-68.
56 Regimento dos Bainheiros, ibidem, pp. 74-75. 60 Regimento dos Ferreiros de Obra Grossa e Delgada, ibidem, pp. 51-54.

57 Regimento dos Serralheiros, ibidem, pp. 54-55. 61 Regimento dos Ferradores, ibidem, pp. 65-67.
132 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 133

Sujeita às leis do trabalho que o costume construíra e a realeza e a tinha como juiz examinador justamente um barbeiro de guarnecer espa-
Câmara sancionaram, a bandeira de São Jorge parece, à luz dos textos das, e respondia por algum delito aos seus vedores. Mesteres cujo primei-
regulamentares compostos em 1572, apenas uma organização de meste- ro regimento de que se tem notícia remonta a 1511 e que neste, como em
res desprovida de qualquer função religiosa. Ao acantonar os itens refe- suas reedições e ajustes nos anos de 1538, 1552 e 1565, vinculavam seus
rentes à mordomia nos dispositivos gerais, restringindo seu papel à mera oficiais ao culto de São Jorge.
função de convocar os oficiais para a assembleia, Duarte Nunes Leão Escrito às vésperas da reforma dos mesteres de D. João III e três
atendeu aos propósitos do concelho, mas encobriu a face religiosa das décadas antes da Câmara outorgar os regimentos dos oficiais mecânicos
culturas de oficio localizadas na área urbana lisboeta. No entanto, nas de Lisboa, um dos dispositivos regulamentares dos líderes da bandeira de
profissões nas quais esta prática era uma herança de outras eras, em que ferro e fogo definia que se uma pessoa fosse tão ousada a ponto de trazer
se havia enraizado a ponto de seu orago ser uma marca de identificação espadas de fora da cidade e as pusesse à venda sem que primeiro fossem
no contexto dos ofícios mecânicos, os regimentos mantiveram as referên- vistas pelos examinadores dos ofícios de barbeiro, seria taxado em mil
cias à manutenção do culto prestado pelos mesteirais ao seu padroeiro, reais pela transgressão - "Metade pêra as obras da dita cidade e outra
indicando sua importância como um instrumento regulador para o cum- metade pêra cera do bem aventurado sam Jorge". Mantendo a mesma
primento das leis de cada mester. orientação, em 1552 outra norma determinava que os mesteirais faltosos
ao "ajuntamento" no lugar ordenado pagariam "duzemtos reais pêra a
cerra do bem aventurado sam Jorge"63.
1.4. Os mecanismos extrajudiciais de controle: a devoção ao Treze anos à frente, enumerando novamente os delitos e atualizando
orago protetor suas sanções, o novo regimento dos barbeiros de guarnecer espadas con-
denava qualquer oficial que tomasse criado alheio sem licença de seu
De modo geral, no Livro dos Officiais Mecânicos, as faltas cometi- mestre, provocando escândalos e despertando malquerenças. A pena atri-
das pela imprudência dos mesteres de São Jorge eram objeto de multas buída? Dez cruzados. "A metade pêra as obras da cidade e há outra ame-
pagas à cidade e ao vizinho que fizesse a denúncia. Porém, tanto para os tade pêra a cera da confraria de sam Jorge do espytal dei Rey"64. Repeti-
barbeiros de barbear e para os de guarnecer espadas, quanto para os da em moto-contínuo nos itens do regulamento, a sentença aplicava-se
espadeiros, submetidos à jurisdição deste último, as transgressões con- também aos que vendessem espadas enferrujadas e aos que trabalhassem
vertiam-se em cera para o orago protetor. Do mesmo modo, destacando- sem licença e, portanto, sem honrar o pagamento da quantia para a reali-
-se da maioria, o regimento dos oficiais guadamecileiros prescrevia o zação da prova. Ali, em razão do prejuízo causado ao povo, aqui aos ofi-
pagamento de quinze cruzados de multa aos artífices de dourar almofadas ciais, que neste caso cotizavam a importância.
e guadamecis (tapeçaria de couro) que remetessem suas peças para a Referenciado nos documentos de 1511, 1538 e 1552, o culto dos
venda fora de Lisboa, à revelia de seus vedores. Um terço desta quantia mesteirais de ferro e fogo ao padroeiro, particularmente dos barbeiros,
era destinada à Câmara, o outro terço ao acusador e o restante era dire- não era, todavia, uma novidade da centúria de quinhentos. No reinado de
D. Afonso V, alguns barbeiros e armeiros encaminharam uma petição ao
cionado para a confraria de São Jorge do Hospital de Todos os Santos62.
rei, reclamando da negligência de certos oficiais destas artes no culto ao
Raquítica frente à documentação pertinente a outros ofícios, as fon-
santo. Lembrando ao monarca que "antigamente sempre foram ordenados;
tes relativas aos guadamecileiros não permitem precisar a data de seu
irem todos em geral por Serviço de Deos armados com Sam Jorge na Sua
primeiro regimento, mas tudo leva a crer que esta não era sua versão ori-
festa do Corpo de Deos, que Se faz cada anno", os autores do requerimento
ginal. À semelhança dos regulamentos que precederam o trabalho do solicitavam o cumprimento das obrigações de seus companheiros que, se
legista, a carta regimental destes oficiais mecânicos conservava a indica- escorando em "rogos e afeições" de alguns oficiais da Câmara e senhores
ção de sua participação em uma associação de cunho religioso, muito vizinhos de Lisboa, não compareciam à festa, descuidando de "aguardar e
provavelmente porque tomara como modelo uma preexistente. O mesmo Servir o Corpo do nosso Santo", como era o costume.
verifica-se em relação aos espadeiros. Ligado diretamente aos mesteirais
que estavam à cabeça da corporação, este anexo da bandeira de São Jorge 63 Acrescentamento de 1531 ao regimento dos Barbeiros; Acrescentamento de 1552 ao
Regimento dos Barbeiros. LANGHANS, Franz-Paul, op. cií., vol. l, pp. 313-314.
62 Regimento dos Guadamecileiros, ibidem, p. 96. 64 Regimento dos Barbeiros de Guarnecer Espadas, LEÃO, op. cit.
134 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 135

Redigida em Lisboa em 1469, a resposta régia acatava a queixa e uma escada escura. Mas, antes de tudo, homens e, por extensão, seres
determinava que daquela data em diante "todos os Barbeiroz e Armeiros, movidos pela emoção, nem sempre bem-dispostos uns com os outros,
solteiros [...] que na dita cidade [estivessem] em Tendas e [usassem] dos que não cumpriam as regras que criaram ou herdaram e, ao fazê-lo,
officios, [fossem] Armados com São Jorge em companhia do Corpo do pagavam, como um penitente a uma promessa, cera ao seu orago prote-
Santo". A escolha das penas pela inadimplência à ordem o rei entregava tor. Transformada em círios e oferecida ao santo, a falta cometida pelo
aos mordomos do ofício, mas ordenava que fossem usadas na despesa da irmão imprudente contra a própria comunidade, contra o pacto de entrea-
dita festa e que os corregedores e demais autoridades da cidade não se juda que selava ao ingressar por vontade ou acidente em uma cultura de
intrometessem na matéria. Aqueles que descumprissem a determinação oficio, era o reconhecimento de sua culpa perante o grupo e lembrava-lhe
pagariam mil réis para os cativos65. que todos eram homens de uma mesma sorte: oficiais mecânicos de uma
Plantada por D. João I, a semente do culto ao santo, entre os oficiais mesma casa, na maior cidade portuguesa.
barbeiros e armeiros, vingara. Zeladores da devoção entre os mesteirais, Restrita àqueles ofícios no século XVI, a menção à confraria de São
estes homens eram, ao que tudo indica, os primitivos detentores do Jorge tornou-se, nas duas centúrias que se seguiram, uma constante nos
estandarte. Ligados desde "antigamente" à organização das aparições fes- "acrescentamentos" aos regimentos compilados e redigidos pelo autor da
tivas do padroeiro e aos cuidados do "corpo do santo", esses oficiais con- Descrição do Reino de Portugal. Assinadas pelos próprios mesteirais, as
servaram as prerrogativas concedidas em um passado remoto, ao se man- tentativas de adequação dos mesteres aos regulamentos marcaram todo o
terem como cabeça da bandeira de São Jorge. Note-se que o rei atendeu setecentos, registrando a inovação das técnicas, o aparecimento de novas
prontamente ao pedido e protegeu aos mesteirais da interferência das profissões e as mudanças no regime de funcionamento da bandeira dos
autoridades municipais, no tocante ao tema. Mas não seria este o rei a ofícios de ferro e fogo.
bradar pelo nome do padroeiro sete anos depois, na Batalha do Toro? Cutileiros e bainheiros, no entanto, sequer esperaram o raiar do
Se a presença do culto a São Jorge era coisa antiga, ou melhor, século XVII para patentear sua insatisfação e fazer alguns acréscimos ao
medieval, a sede de sua confraria no Hospital Real, edifício cuja longa regimento de 1572. Descontentes com a invasão de alguns mesteirais que
construção desapropriou muitos prédios à volta do Rossio, inclusive mui- se metiam a montar tendas na via em que "há muitos anos [estavam]
tos hospitais dos homens de ofício, era de fato um fruto dos Tempos ornados por Costume", seus juizes de oficio enviaram uma petição à
Modernos. Concebida para centralizar o atendimento assistencial dos Câmara, advogando o direito conquistado nos dias de D. Manuel e repro-
vizinhos de Lisboa e Termo, a casa iniciou suas obras em 1492 e só foi vando a "mistura" e a intromissão daqueles que nada tinham a ver com o
concluída em 1504. Visto que na fonte a indicação explícita à sede da mester e "lançavam mão das casas" para "dezenquietação" dos oficiais"66.
confraria de São Jorge no Hospital de Todos os Santos remete-se ao ano Deferido, o requerimento dos mestres da cutelaria inaugurou uma
de 1565, é certo que a associação já estava em pleno serviço quando os leva de petições nos outros ofícios da bandeira, que só teria fim cem anos
barbeiros de guarnecer espadas compuseram o seu regimento. depois. Em 1603, era a vez dos armeiros de espingardas e arcabuzarias
Líderes da bandeira de São Jorge e integrantes da confraria que con- reclamarem sua autonomia. Mester novo, que até à ocasião andava junto
gregava os oficiais do estandarte, os barbeiros externavam, em seus regu- aos serralheiros, apesar de sua lida não ser exatamente a de fazer bigor-
lamentos e na petição levada a D. Afonso V, o papel desempenhado pelo nas e fechaduras, estes artífices encaminharam à Câmara o seu regimen-
santo fora dos campos de batalha e dos cortejos públicos, onde seu nome to, almejando os direitos concedidos aos ofícios anexos ao estandarte de
era uma evocação para derrotar o medo e vencer o inimigo, e sua imagem São Jorge.
a memória da destinação portuguesa à casa da glória. Composta de 26 capítulos, a carta regulamentar dos fabricantes de
Símbolo de uma fratria, à volta de São Jorge reuniam-se homens de fechos de fuzil, de arcabuzes ordinários, bestas de bodoque e armas de
ofício aparentado, moradores de um mesmo bairro e com afazeres simila- fogo com canos de seis palmos de comprimento seguia basicamente o
res. Gente que se expunha ao calor do fogo, subvertendo a resistência do modelo utilizado em 1572. Definia os procedimentos necessários para a
ferro e do aço, às vezes em tendas apertadas, às vezes nos degraus de obtenção da carta de examinação, para a boa recepção aos juizes durante

65 Carta do Senhor Rey Dom Affonço V de 22 de Maio de 1469, in LANGHANS, Franz- 66 "Acrescentamento do regimento dos Cutileiros e Baynheiros", in LANGHANS, Franz-
-Paul, op. cit., vol. l, pp. 192-193. -Paul, op. cit., p. 750.
136 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 137

a vistoria, mas salientava, à guisa de novidade, a subordinação dos mes- material para si ou para outrem. Visto que o delito a mais das vezes
teirais à mesa administrativa do estandarte. Descrevendo sua forma de encontrava parceiros, o acrescentamento era claro: só os mestres pode-
escrutínio, os oficiais declaravam que a escolha de seus juizes seria em riam receber pessoalmente seu quinhão. Portanto, obreiros não eram
Janeiro de cada ano, em "huma Casa de São Jorge" ou onde os juizes que autorizados a fazê-lo, salvo em caso de doença do oficial ou lícita causa.
findassem sua gestão ordenassem, mas sempre contando com a presença Do mesmo modo, "nenhum pessoa asy natural como estrangeira" poderia
do "escrivão do ofício de São Jorge"67. atravessar latão nem comprar, nem tornar a vender sob pena de pagar
Ao contrário do regime em vigência no início do século XVI, era dois mil réis. Metade à cidade e a outra às despesas do ofício68.
agora o escrivão da bandeira o encarregado de acompanhar a vedoria Como se sabe de velho que todo regimento veta infrações recorren-
durante as inspeções mensais. Sintoma do fortalecimento da Casa de São tes, o empenho para distribuir igualmente as cargas que chegavam na
Jorge? Da burocratização das culturas de oficial Ou sinal do aperfeiçoa- Ribeira deve ter exigido dos latoeiros achegados à lei um esforço brutal
mento dos princípios corporativistas? ao longo de sua existência. Todavia, as celeumas e entreveres ultrapassa-
Um pouco de tudo. Mas, sobretudo, um dos mecanismos de defesa vam a ação dos corretores, a malícia dos obreiros e dos mestres ganan-
da corporação, para enfrentar o aumento do número de oficiais mecâni- ciosos assentava-se também nos limites de ação de cada mester.
cos, vindos de outras partes do reino e de fora dele, e que os cutileiros e Repetindo o estranhamento entre espadeiros e cutileiros anos atrás,
bainheiros, baralhados com a balbúrdia, denunciavam em sua petição. O os latoeiros de gineta insurgiram-se contra os latoeiros de fundição e obra
intuito de assegurar a valência dos privilégios contidos nos regimentos de grossa. Todavia, sem a mesma fleuma. O requerimento que encaminha-
1572 fez alguns se fingirem de mortos, outros, entretanto, mostravam ram à Câmara, em 1616, era portador de uma raiva indisfarçável. Sentin-
estar de olhos bem abertos. do-se alijados do processo eleitoral que dava voz à categoria de latoeiros
Em 1610, os espadeiros apresentaram seus ajustes em uma petição à mais numerosa, os oficiais examinados para fazer "ferro dos leitos de
Câmara. Alegando que os cutileiros usaram de "Engano" ao disporem latão" e para fabricar "ferros de abrir manteos" queixavam-se da manipu-
"do dito officio de fazer adagas", trabalho de "dependência natural" lação dos cargos administrativos do ofício e do favoritismo dos latoeiros de
deles, os fabricantes de espadas solicitaram a correção do texto regula- fundição. Acusando seus congéneres de usarem destas técnicas sem a
mentar. Os despachos que se seguiram demonstram que a alteração foi devida capacitação, provocaram a instauração de um processo de averigua-
feita e que os juizes do ofício de cutileiros foram informados. Mas a vigí- ção. Transcorridas suas diligências, a Câmara emitiu um parecer evasivo.
lia pela garantia das condições de trabalho e pela preservação das prerro- Dividiu as competências: deu aos de fundição o direito de abrir manteos e
gativas que garantiam o ganha-pão dos oficiais mecânicos se manteve em aos de gineta o de fazer os ferros de latão. Ao fim, a sentença motivada
dia, transformando o denunciante de antes no revel de depois, fosse entre pelo alarido atestava aos que eram minoritários que continuariam a sê-lo.
mesteirais de ofícios distintos ou de um mesmo segmento. Vincado por sucessivos testemunhos de conflito, os cinquenta anos
Em 1616, eram os latoeiros a reclamar. Seu acrescentamento ao que se seguiram à promulgação dos regimentos de Duarte Nunes Leão dão
regimento incidia, prioritariamente, sobre o fornecimento da matéria- conta de uma bandeira que se transformava a cada dia e que era exposta à
-prima. Não se tratava, porém, de um parágrafo singelo e de ironias que a dilatação do número de seus membros. Uns chegados na véspera, atraídos
grafia usada na petição procurava sugerir. Eram dez emendas, dos capítu- pela "abastança de Lisboa", outros que já nasciam conhecendo as regras da
los 37 ao 41, expondo em detalhe os deveres dos corretores de latão eleitos Casa de São Jorge. Regras de uma parentela extensa, nem sempre fáceis de
pelos mestres da latoaria. Em síntese, as correções traziam uma grande aceitar, que despertavam "ódios e malquerenças", cujo eco sentia-se na
mensagem: recordavam que a função dos corretores deveria ser exercida Casa dos Vinte e Quatro e que um dia a voz do rei tentou conter.
em nome da comunidade dos oficiais, e não em proveito próprio. Era o monarca, mais um vez, o mediador dos conflitos que os ofi-
Com a atribuição de correr as tendas para notificar a chegada do ciais da bandeira de São Jorge elegeram para pôr fim aos desmandos que
latão na Alfândega e indagar aos oficiais do interesse de receber a mer- os regimentos da Câmara não conseguiam aplacar. Na tentativa de ter sob
cadoria, era inadmissível que usassem da autoridade para arrecadar o controle as rédeas do mando, os irmãos encaminharam uma petição ao rei

67 Regimento dos Armeiros de Espingardas e Arcabuzarias, in LANGHANS, Franz-Paul, 68 "Acrescentamento do regimento do Officio dos Latoeiros de Fundição", in LANGHANS,
op. cif., p. 130. Franz-Paul, op. cit., p. 178.
138 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 139

Filipe II para subordinar a mesa administrativa dos ofícios do estandarte Alargada em espaços e gentes, dona de um casario compacto, com
à mesa espiritual. Concedido em 1620, o alvará afiançava que desta data sobrados de três e quatro andares, Lisboa foi descrita em 1620 por Frei
em diante, "nehuma pessoa official dos offícios anexos da dita Bandey- Nicolau de Oliveira como "a maior da Europa em grandeza, comércio e
ra"69 iria à Casa dos Vinte e Quatro sem que fosse Irmão da Confraria e negócios; [sendo] por conseguinte a maior de todas as cidades do Mun-
Irmandade do Bem-aventurado São Jorge, situada no Hospital de Todos do"72. A exaltação barroca do frade trinitário peca, naturalmente, em pre-
os Santos. cisão. Mas, a despeito do exagero apaixonado do religioso lisboeta, a
Ao contrário da resposta à petição enviada ao rei D. João III havia sentença revela no superlativo o que a mente afeita aos números procura-
quase um século, a resposta à solicitação dos irmãos de São Jorge ao va demonstrar ao longo dos dez tratados do Livro das Grandezas de Lis-
monarca espanhol não deixa conhecer os argumentos utilizados no reque- boa. Se Frei Nicolau teve segurança ao dar a conta das freguesias e casas
rimento. Os autores da petição eram, provavelmente, os mestres que per- religiosas, assumiu sua dificuldade com a lista e o cômputo dos oficiais
tenciam à cabeça da bandeira, já que a ordem tinha como alvo os oficiais mecânicos residentes em Lisboa. A exposição, à moda de um abecedário,
dos ofícios anexos. era precedida por uma advertência:
Presente desde sempre nos regimentos dos barbeiros, a associação
entre o culto do padroeiro e esta categoria profissional se mantinha ainda "irei contando o número de oficiais mecânicos que servem em cada oficio
no século XVII. Postando-se como autênticos guardiães da devoção entre [...] deixando de parte o número os obreiros e aprendizes, cujo número é
os mesteres, os líderes do estandarte tentavam condicionar a ação tempo- tão incerto que se torna impossível saber. Adverte-se também que não é
ral dos oficiais ao ingresso na irmandade, ativando mecanismos tradicio- possível saber o número certo de oficiais examinados; sobretudo Pedrei-
nais para o controle da marcha de crescimento da bandeira, que acompa- ros e Carpinteiros, por serem muitos quase sem número; mas a cidade é
tão grande, que lhe não bastam mil oficiais examinados de cada um
nhava a da própria urbe.
destes ofícios [...] pode entender-se como será o número de obreiros e
Em 1620, Lisboa tinha cerca de 27.263 fogos e um total de 37 fre- aprendizes: há muitos oficiais em cujas tendas trabalham oito e dez"73.
guesias. Grosso modo, isto equivale a dizer que a cidade tinha cerca de
150 mil almas na data do requerimento. Continuava muito à frente das A bandeira de São Jorge não se agigantara na mesma proporção que
populações do Porto, Coimbra, Évora e Eivas, com seus modestos quinze a corporação de pedreiros e carpinteiros. Contudo, alargara o domínio de
ou vinte mil vizinhos. Era, portanto, uma grande capital, a quinta maior seus serviços, ajustando-se às demandas. Basta recordar os latoeiros de
cidade da Europa. Ombreando com Sevilha, só lhe ultrapassavam Paris, ginetas, os arcabuzeiros e os não sei quantos que infernizavam a vida dos
Nápoles, Londres e Veneza (v. figura l)70. cutileiros, alugando casas na rua que era apenas de sua função no século
Deflagrado no século XVI e denunciado pelos oficiais da bandeira anterior. Para controlar a correlação de forças entre os ofícios e a afluên-
de São Jorge, o vertiginoso crescimento lisboeta alterou ainda o mapa das cia dos mestres oriundos de outras partes, apenas o expediente das
freguesias. Nas duas primeiras décadas dos seiscentos, a cidade contava assembleias devia mostrar-se insuficiente. Sob o pretexto de cultuarem o
com catorze novos núcleos paroquiais, que se foram formando ao longo orago da bandeira, de ligarem-se primeiro como irmãos, a confraria
do século anterior. Aos 23 iniciais somaram-se o Loreto (1551), Santa registrava em seus livros os oficiais mecânicos do estandarte e ainda
Catarina (1559), Anjos (1563), Santana (1564-69), São Paulo (1566), dividia com eles as despesas do mester quando o santo saía em procissão.
Santos-o-Velho (1566), São José (1567), Conceição Nova (1568), Santa Os anos vindouros confirmariam o dito. Em 1638, os barbeiros, far-
Engrácia (1569), Trindade ou Sacramento (1584), Ajuda (1587), Socorro tos com a venda ilegal de espadas e adagas na Feira da Ladra, reclama-
(1596), S. Sebastião da Pedreira (1601) e Mercês (1632)71. ram a suspensão do tradicional mercado de produtos novos, quinquilha-
rias e ferrarias disfarçadas, exigindo a revisão da antiga pena de mil réis
69 MBCB. Alvará do Senhor Rey D. Filippe II, de 18 de Fevereiro de 1620. Ms. Ênfase
minha.
70 MARQUES, A. H. de Oliveira. "Lisboa no Século XVII", in FERRO, João Pedro. Para 72 OLIVEIRA, Frei Nicolau de. Livro das Grandezas de Lisboa. Lisboa: Vega, 1991,
a História da Administração Pública na Lisboa Seiscentista (1671-1716). Lisboa: Pla- p. 546. Contém edição fac-similada da edição de 1620 e texto atualizado por Maria
neta Editora, 1996, p. 12. Helena Bastos. Prefácio de Francisco Santana.
71 Ibidem. 73 Ibidem, pp. 565-566.
140 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 141

para os infratores e propondo seu reajuste para vinte cruzados74. A corre- A voz dos barbeiros e da gente da cutelaria era, com efeito, um
ção dos valores mantinha, contudo, a antiga fórmula na repartição da barómetro da pressão exercida pela macrocefalia de Lisboa, que tanto
quantia: "metade para São Jorge e a outra para cidade". Acrescida no empatava os mesteres quanto fazia dilatar a bandeira de São Jorge. Se o
regimento, a reavaliação da pena ganhou força de lei. Porém, se a Câma- número de oficiais mecânicos aumentara, é porque fazia jus às demandas
ra atendeu de pronto ao segundo item, fez ouvidos de mercador ao pri- da urbe, que lhes exigia, inclusive, o domínio de outras técnicas.
meiro, admitindo que um espaço comercial instituído havia séculos, ain- Tradicionalmente entregues à lida de fazer tesouras de alfaiates e
da que abrigo de práticas que contrariavam os mandamentos da lei cristã trinchetes de sapateiros, os cutiieiros puseram-se a atender, em 1642,
e as posturas municipais, era difícil de exterminar. também aos cirurgiões, cujas seringas até então eram feitas pelos latoei-
Assim como os barbeiros de espadas, freeiros e cabeiros debatiam- ros. Reflexo do aumento deste número de profissionais? Certamente. O
-se com um problema similar. Quando encaminharam ao concelho, em hospital d'el-rei já tinha uma escola dedicada à formação desta arte. Mas
1640, seus adendos ao regimento, acresceram às cláusulas de seu regu- também era sinal que os latoeiros estavam voltados para outros interes-
lamento que qualquer obra de cabeiros que viesse de fora dos muros, ses, porque não houve registro de reclamações pela invasão na área do
antes de ser vendida em Lisboa, tinha de passar pelo crivo do juiz de ofí- saber alheio.
cio para receber as marcas da cidade como era de praxe. O desrespeito à Ao silêncio dos latoeiros nesta matéria opunha-se o vozerio dos cal-
norma redundaria na pena de quatro mil réis. Aqueles que pusessem mar- deireiros de cobre. Indignados com a ação de uns certos "Caldeireiros da
cas em "obras perdidas", ou seja, roubadas, pagariam a mesma quantia e Vitoria", que corriam a cidade e o reino vendendo ferro velho e latão, os
teriam trinta dias de cadeia75. caldeireiros do Poço do Chão da freguesia de São Nicolau reclamavam,
Enquanto alguns, por serem vítimas de roubo e contrabando, deseja- em 1630, aos juizes da bandeira de São Jorge e à Câmara, o direito de se
vam ver reduzidos certos locais de troca, outros queriam vê-los dilatados. nomearem como "fundidores de cobre". Alegando que não tinham
Como meio século atrás, em 1641, os cutileiros e bainheiros continuavam "remoto parentesco" com os ditos "Franceses" que viviam em Nossa
a reclamar do espaço na cutelaria, insuficiente para o ofício. Agora, por- Senhora da Vitória, que sequer eram examinados em seu ofício, mester
que os que se haviam metido na via eram os "nobres", como um tal Dou- em que era "era necessário de muitos mossos aprenderem por ser de mui-
tor Francisco Lopes de Barros, que ali construíra sua morada, engolindo ta Sciencia", porque lhes exigia fundir e depois lavrar com o martelo o
algumas tendas, mal-ajambrados pelas escadas, os artífices já não conse- metal até que ficasse muito fino, os oficiais de São Jorge obtiveram a
guiam trabalhar a contento e nem escapar da ação dos almotacéis. Isso concessão77.
porque aqueles que não conseguiam lugar no bairro, iam a outras bandas, O título, que passaria a vigorar nas cartas de exame e no rol das pro-
fora da demarcação prevista, tornando-se presas fáceis da fiscalização. fissões do estandarte, era o registro da concorrência muitas vezes desleal
Enfileirados desde os dias de D. Manuel entre a Rua das Arcas, que dos estrangeiros e do temor destes homens de verem sua reputação atin-
ligava Santa Justa e São Nicolau, e o beco do Lagar do Mel, junto à Sé, gida em seu único grande bem: seu engenho e sua arte. Basta reler a sen-
os oficiais de São Jorge pediam a ampliação do arruamento até ao Canto tença em que os fundidores de cobre expunham a natureza de seu mester,
do Beco da Comédia. As solicitações não findaram nisso. No ano seguin- para reconhecer nele um certo orgulho, pelo menos frente aos que
te, os mesmos mesteirais requeriam que se acrescesse ao regimento mais vinham de outros cantos. O endosso da mesa da bandeira, que dizia ser
dois itens: permissão para que os oficiais fossem examinados no fabrico "muito justa o que na dita petição pediam", fez valer a proibição, exten-
de "um ferro de lansa" e nas ferramentas de "surgia", isto é, de cirurgia76. siva a todos os confrades deste ofício, de venderem cobre aos tais france-
ses, impedindo que renovassem peças velhas e saíssem cidade afora
tapeando as gentes e, o que era pior, apresentando-se como caldeireiros.
'4 "Petição sobre se acrecentar a pena da postura que proibe que não haja feira da ladra e O traspasse de mercadorias usadas não era novidade e os caldeirei-
que nenhua pessoa venda em lugar algum desta cidade Espadas nem Adagas", in ros lutavam com isso havia uma centúria. Tanto que tinham de marcar as
LANGHANS, Franz-Paul, op. dl., vol. l, p. 322. obras com as armas da cidade. E, se a vigarice era velha, as armas para
75 "Acrescentamento do regimento dos Freeiros e Cabeiros de 1640". Ibidem, p. 94. lidar com ela requeriam normas complementares, extrajudiciais, que ati-
76 "Petição e despachos por que se mandou alargar o arruamento dos cutileiros e bainhei-
ros" e "Petição porque se mandou acrecentar dous capítulos para a examinação". Ibi-
dem, pp. 753-754. 77 "Acrescentamento ao Regimento dos Fundidores de Cobre de 1650". Ibidem, p. 104.
142 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 143

vassem a rede de solidariedade entre os oficiais e que fossem capazes de nas Elleições de seus Officios", nem outra alguma, sem primeiro ligar-se
fortalecer o corporativismo que uma assembleia anual não era capaz de à irmandade, e pagar a despesa de todas as missas corridas à roda do ano,
garantir. Mas uma associação confraternal com compromisso de entrea- satisfazendo todos os encargos da confraria, pontualmente 79 . Para ratifi-
juda e responsável por um culto religioso, com festas e cerimónias regu- car o poder da irmandade sobre a bandeira, o documento trazia ainda um
lares, sim. acréscimo importantíssimo: nenhum dos "examinantes" dos ofícios da
Embora o alvará expedido por Filipe II tivesse força de uma carta, bandeira poderia receber a carta de examinação, isto é, a licença para
portanto, não expirava no decorrer de um ano, os irmãos de São Jorge atuar na cidade sem ter se filiado primeiro na irmandade de São Jorge.
renovaram o mesmo pedido feito havia duas décadas, quando Portugal já A ordem régia fixada pelo alvará incidia agora gravemente sobre os
tinha à testa do corpo social um rei nativo e os lisboetas, refazendo-se da oficiais ligados ao estandarte. Doravante, o exercício legal de qualquer
mágoa de terem visto a corte filipina desfazer das "Grandezas de Lisboa" profissão da bandeira de São Jorge dependia da adesão à confraria e, por-
deixando vazio e sem brilho o Terreiro do Paço, assistiam ao despertar da tanto, às normas que a regiam. A medida promovia o ingresso compulsó-
dinastia de Bragança. A monarquia lusa ver-se-ia ainda envolta em guer- rio na associação confraternal, ligava definitivamente o culto do padroei-
ras, para afastar de vez o domínio espanhol, até 1668. Apesar da evidente ro ao elenco de mesteres da corporação e praticamente limitava a
ruptura com o reinado anterior, D. João IV reiterou, em 1642, o alvará inserção destes homens no mundo do trabalho à declaração pública e
emitido pelo antecessor. explícita de que eram devotos de um santo. Em resumo, que eram católi-
O monarca também ampliou o prazo de validade da resolução, para cos.
que sua vigência durasse além dos doze meses previstos pelas Ordena- Diferentemente dos anos anteriores, os irmãos apressaram-se para
ções Filipinas, e avalizou, "na forma como fizera aos officiaes da irman- publicitar o teor da provisão alcançada. Encaminhando à Câmara uma
dade e bandeira de São Jozé", o pedido do "juiz e mais Officiaes da petição, "os Irmãos e mais offeciais da Meza do Mártir São Jorge sita nos
irmandade do Bemaventurado São Jorge", em vista de seus argumentos78. Hospital de Todos os Santos" solicitavam a anexação do alvará régio em
Mais uma vez, condicionava-se a eleição para os representantes da ban- cada regimento de cada ofício da bandeira, para que "a noticia" chegasse
deira na Casa dos Vinte e Quatro à integração dos oficiais na confraria de a todos sem exceção e ninguém alegasse ignorar a resolução80. Renovado
São Jorge. por D. Pedro II, o alvará conheceu nova edição em 169081 e, como sua
Exatamente como no documento expedido pela Coroa no tempo dos matriz, foi incorporado aos regulamentos dos mesteres. Ficava, por fim,
Filipes, o segundo alvará também não permite que se conheça o teor da registrada e reconfirmada, nos arquivos da Câmara, a subordinação da
alegação. No entanto, considerando a resposta, é de crer que fosse o corporação à irmandade de São Jorge, bem como o predomínio da mesa
mesmo. Mas o que um documento calou, o seguinte declarou sem meias- espiritual sobre a mesa temporal e a importância atribuída aos organis-
-palavras. Registrado nos livros da irmandade de São Jorge, e posterior- mos extrajudiciais no controle das relações sociais de produção.
mente anexado a todos os regimentos de cada ofício da bandeira, o alvará Produto do seiscentos, a hierarquização das competências entre
do rei D. João IV, de 1654, permite que se observe a estratégia de con- aquelas duas instâncias não era, contudo, uma particularidade das asso-
vencimento que os oficiais mecânicos utilizaram para obter a mercê ciações de ofício. A submissão da esfera civil à religiosa marcou testa-
régia. Os irmãos alegaram que, a despeito da ordem régia, "muitos offi- mentos e matrimónios, ditando imperativos morais e religiosos durante
ciaes anexos à Bandeyra do Santo não tratayão de satisfazer com as todo o Antigo Regime82. Embora geradoras de uma cultura de oficio, as
obrigações da irmandade, ou não pagando as Missas de sua obrigação, ou
faltando àquella assistência a que herão obrigados". Entretanto, entravam
7' MBCB. Alvará do Senhor Rey Dom João IV, de 27 de Setembro de 1654. Ms.
por Irmãos para occuparem os Cargos, e lugares de seus Officios, de que
80 "Petição dos Irmãos da Confraria do Mártir São Jorge de 1655", in LANGHANS, Franz-
resultava grande perturbação entre todos". -Paul, op. cit., pp. 137-138.
Enunciando no alvará os argumentos do "Provedor e mais Officiaes 81 MBCB. Alvará do Senhor Rey Dom Pedro II, de 19 de Janeiro de 1690. Ms.
da Meza da irmandade do Mártir São Jorge", o monarca ordenou, mais
82 O casamento é descrito nas fontes eclesiásticas como um sacramento e como matéria
uma vez, que "nenhum official dos anexos à dita Bandeira tivesse voto regulada pelas leis da Igreja desde o século XI. Em 1215, o Concílio de Latrão anun-
ciava pesadas penas, da penitência à excomunhão, para os cônjuges e celebrantes que
se prestassem a cerimónias clandestinas, ordenando a publicidade de uma união oficial
78 MBCB. Alvará do Senhor Rey Dom João IV, de 28 de Novembro de 1642. Ms. abençoada pelo pároco. Instaurava ainda os banhos triplos, proclamados pelos padres
144 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 145

corporações usavam dos mesmos instrumentos de persuasão e controle tãos de hum e outro sexo debaixo da invocação de São Jorge Mártir", o
com os quais os oficiais mecânicos deparavam-se no dia-a-dia e que tam- abono das penas temporais condicionava-se à manutenção das "muytas
bém estruturavam sua visão do mundo. obras de piedade, Caridade e mizericordia" que os "amados filhos Con-
É certo que as regras da irmandade de São Jorge não se teriam frades costumarão exercitar" e era restrita aos que "verdadeiramente con-
imposto às normas da agregação, se a rede de solidariedade horizontal tritos, confessados e commungados" visitassem devotamente a capela do
formada pelas associações de entreajuda não fosse um recurso dos filhos Hospital Real no dia da festa de São Jorge, desde as primeiras vésperas
deste tempo para amortecer as agruras que atingiam os trabalhadores, até o sol posto, e em mais outros quatro dias do ano, além do Domingo
crias da "pobreza laboriosa", cujo bem maior era seu engenho e sua arte. de Páscoa. E mais: era exclusiva àqueles que ali rogassem, com piedosas
Mas também é bom ter em mente que se fala de homens educados orações, pela exaltação da Santa Madre Igreja, pela extirpação das here-
segundo os ditames do catolicismo e, se uns eram mais e outros menos sias, pela conversão dos fiéis, pela paz, concórdia e união entre os prínci-
castiços, pode-se dizer que, independente do grau de devoção, aspiravam pes cristãos e pela saúde do romano pontífice.
em conjunto às mesmas conquistas espirituais que o discurso eclesiástico A visita ao templo nos quatro dias fora das festas e comemorações
franqueava aos crentes e tementes a Deus. Tanto assim que, na segunda previstas resultava em sete anos de perdão. Mas estariam para sempre
década do século XVIII, precisamente em 1726, os irmãos de São Jorge, dispensados dos sessenta dias de penitência os oficiais que estivessem
após algumas diligências, obtiveram a remissão de suas penas temporais83. presentes nas missas, procissões ordinárias e extraordinárias, os que
Concedida por Benedito XIII aos que eram irmãos de São Jorge no acompanhassem os mortos à sepultura ou levassem o Santíssimo Sacra-
presente e os que seriam no futuro, "a indulgensia plenária, perdão, e mento da Eucaristia a algum enfermo, os que rezassem em intenção dos
remissão" de todos os pecados decerto encheu de confiança os mais doentes um pai-nosso e uma ave-maria, os que recebessem os pobres
devotos e zelosos do culto. Era, outrossim, um chamariz para os mem- peregrinos com hospedagem e os ajudassem com esmolas e ofícios e os
bros da bandeira mais vacilantes, ainda relutantes em cumprir a sentença que compusessem a paz com os próprios inimigos. Enfim, os irmãos que
régia. Não se pense, entretanto, que a concessão papal, emitida "com a exercitassem estas ou quaisquer outras obras de misericórdia espiritual
Authoridade [dos] bemanenturados Saõ Pedro e Saõ Paulo" era despro- ou corporal.
vida de qualquer exigência. Dirigida "a devota irmandade de Fieis Chris- Limitada à irmandade enquanto estivesse constituída apenas pelos
oficiais da bandeira e suas respectivas mulheres e, portanto, sem qualquer
efeito caso a confraria se unisse a outra associação de cunho religioso, a
no púlpito, para tomar público o enlace. Dezanove anos depois, os decretais de Gregó-
rio IX integravam de vez o casamento na lista dos sete sacramentos, inserindo-o no
indulgência plena impulsionava a devoção a São Jorge, em Lisboa, e
conjunto dos ritos que expressavam "o sinal eficaz da graça". Em 1563, a XXIV sessão estimulava a manutenção das cerimónias em honra do padroeiro, organi-
do Concílio de Trento definia doze cânones sobre o sacramento, isto é, uma dúzia de zadas pelos irmãos. Era, antes, o reconhecimento eclesiástico da impor-
dogmas de competência exclusiva do direito eclesiástico e cuja contestação implicava tância do culto em solo lisboeta e uma chave para a compreensão do
em excomunhão: a monogamia, o poder da Igreja decidir os impedimentos, a indisso- lugar atribuído à penitência e à caridade na espiritualidade moderna84.
lubilidade da união, a possibilidade de separação dos corpos, a interdição do casamen-
to dos padres, a superioridade da virgindade e do celibato sobre o casamento, o calen- Particularmente, àquelas obras de misericórdia a que, de algum modo, a
dário litúrgico do casamento e a competência exclusiva dos juizes eclesiásticos em irmandade de São Jorge, com sede no Hospital Real, uma das grandes
matéria matrimonial. Em Portugal, as esferas civis e, sobretudo, as eclesiásticas, tenta- obras assistenciais do Estado português, estava vinculada.
vam travar os comportamentos considerados condenáveis e foram bem-sucedidas nos De todo modo, o efeito pretendido com a indulgência papal não foi
meios de menor dimensão populacional. Contudo, em uma grande cidade como Lis-
boa, a teia de relações sociais facultou menores constrangimentos comunitários e os sentido de pronto, pelo menos no que tange aos cofres da irmandade.
casos de concubinato e de mães solteiras foram mais recorrentes. Cf. BOLOGNE, Jean- Vinte e dois anos à frente, a confraria reclamaria ao rei outra intervenção.
-Claude. História do Casamento no Ocidente. Lisboa: Ed. Temas e Debates, 1999, Certos oficiais, embora em condições, não honravam suas despesas
pp. 123, 128 e 204; RODRIGUES, Teresa, op. cit., p. 96. Sobre o ato de testar como um
ato religioso, ver o estudo já clássico de Philippe Aries sobre a morte no Ocidente.
anuais e desconsideravam a cobrança da mesa, em prejuízo dos gastos
ARIES, Philippe. O Homem diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, cotidianos e do culto ao santo. Visto que caso semelhante já se passara
vol. 2, pp. 200-210.
83 MBCB. Indulgências do SS.P. Bencdicto XIII. Bispo Servo dos Servos de Deos, que
concede a todos os Irmãos e confrades de num e outro sexo da irmandade do Senhor 84 CHÂTELLIER, Louis. A Religião dos Pobres - As Fontes do Cristianismo Moderno
(séc. XVI-XIX). Lisboa: Estampa, 1994, pp. 19 e 25.
São Jorge. Dado em Roma em Santa Maria Maior em 2 de Agosto de 1726. Ms.
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com os carpinteiros de São José e o rei havia delegado ao corregedor do Novembro de 1755. Arruinada pelo cataclismo, a velha senhora, sempre
bairro da Mouraria poder para executar a cobrança, os irmãos de São Jor- princesa de São Jorge, vira cair por terra em seis, sete minutos o que os
ge requisitavam o mesmo. A súplica foi atendida e os oficiais faltosos, séculos haviam levantado do chão. No topo da extensa lista de lástimas,
que a esta altura já tinham perdido o salvo-conduto papal, passaram a as vítimas. Homens e mulheres que naquele dia de Todos os Santos esta-
haver-se com o corregedor do Rossio, responsável pela zona onde estava vam pelas igrejas confiados às orações e por lá ficaram, soterrados pelo
situada a sede da irmandade. peso da cantaria e presos às chamas dos círios que puseram tudo a arder.
A identidade dos dissidentes, sua morada e procedência não se sabe. Em instantes, ao fogo e à gigantesca nuvem de poeira que envolveu case-
Contudo, assim como os irmãos da mesa do mártir São Jorge haviam bres e palácios sem distinção, somou-se a revolta das águas do Tejo.
enviado sua queixa a D. João V, em 1742, uma dúzia de anos depois Altíssimas ondas tragaram, em fração de segundos, as populações ribei-
endereçaram ao Senado da Câmara o relato da desobediência dos anexos rinhas, arrastando consigo os edifícios85, em uma cena que seria imortali-
da bandeira. Contrariando as normas que previam eleições anuais em zada pelas xilogravuras e águas-fortes, causando profunda impressão em
cada ofício, os ferreiros não compareciam às assembleias eleitorais, aca- toda a Europa.
bando por prejudicar a irmandade e a bandeira. Fiel à regra que havia ins- Impossível de resumir, aliás como qualquer catástrofe, o terremoto
titucionalizado havia dois séculos, o concelho não vacilou e atendeu à destruiu dois terços de Lisboa e estima-se que tenha levado 15 mil dos
solicitação dos irmãos. Os ferreiros foram então notificados e a multa 168 mil residentes da cidade86. Os estragos deixaram aturdidas e abarra-
pela inobservância do regimento foi estipulada: dez tostões. cadas as gentes, destroçados os conventos e desabrigada a irmandade de
Unidas e inseparáveis, a mesa do estandarte e da irmandade apresen- São Jorge. Completamente arruinado, tal e qual a majestosa Biblioteca do
tavam-se, em meados do século XVIII, como um único corpo. Note-se, Paço da Ribeira, o Hospital Real, já profundamente atingido por um
porém, que os oficiais encaminharam suas petições à Câmara, que tinha sinistro cinco anos antes, resumiu-se ao pó dos escombros, levando con-
jurisdição sobre todas as corporações de Lisboa. No entanto, em contras- sigo a sede, o regimento da bandeira, o compromisso da confraria do
te com os requerimentos do início do século XVI, passaram a se identifi- padroeiro, seus livros de receita e despesa e também o sossego dos ofi-
car na documentação camarária como irmãos de São Jorge, desde que a ciais sobreviventes.
mesa espiritual (irmandade) passou a regular a vida da mesa temporal Supondo que em posse do despacho que obrigava a todos os oficiais
(bandeira), sublinhando uma certa autonomia frente ao poder municipal. do estandarte a fazerem as eleições em seus ofícios, a bandeira e a
irmandade tornar-se-iam a reerguer, os irmãos requisitaram-no à Câmara
O grau de ascendência da mesa espiritual sobre a mesa temporal, a
e com a sua anuência fixaram a pena de dez tostões para o santo, caso os
repartição na arbitragem das matérias da irmandade e do estandarte de
oficiais desrespeitassem as leis de seu mester. Entretanto, a posse da
São Jorge e a adesão diferenciada entre os irmãos só se deixaria observar
documentação comprobatória não foi suficiente87. Dois anos depois, os
realmente alguns anos adiante. Por ironia, depois que tudo se havia des-
irmãos tornavam a requerer à Câmara o mesmo pedido, pois os freeiros já
feito em pó e cinzas e a memória de uns tantos devotos de São Jorge,
não realizavam eleições há dois anos. Ademais, vários oficiais mecânicos
sobreviventes do terremoto de 1755, permitiu a redação do Novo regi-
que não eram irmãos, nem confrades da bandeira, tinham aberto lojas
mento da Administração da Meza do Estandarte do M. S. Jorge), docu-
com cartas de examinação de outras vilas e cidades do reino, com ciência
mento no qual registraram as normas de conduta e as obrigações sociais e
do Senado, mas sem incorporar-se à irmandade. Requerendo os direitos
devocionais que norteavam a vida dos homens de ferro e fogo desde seu
adquiridos antes da catástrofe, os irmãos de São Jorge exigiam que o
nascedouro. fizessem dentro de oito dias e se não o fizessem que lhes permitissem
fechar-lhes as lojas88.
2. As leis gerais do estandarte 85 FERREIRA, Maria Júlia. "Terramotos", in SUCENA, Eduardo & SANTANA, Francisco.
Dicionário da História de Lisboa. Mem Martins: Gráfica Europam, 1994, p. 904.
Em 1757, quando o prefeito e mais irmãos da irmandade do mártir 86 Cf. BOXER, C. R. O Império Marítimo Português - 1415-1825. Lisboa: Edições Seten-
São Jorge fizeram chegar à Câmara uma petição reclamando o cumpri- ta, 1969, p. 182; RODRIGUES, Teresa, op. cit., p. 39.
mento das leis que regiam a eleição dos ofícios anexos à bandeira, Lisboa 87 MBCB. Petição dos Irmãos de São Jorge de 17 de Agosto de 1757. Ms.

recuperava-se do imenso choque provocado pelo terremoto de 1.° de 88 MBCB. Petição dos Irmãos de São Jorge de 28 de Setembro de 1759. Ms.
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O pedido foi deferido. Porém, ficava claro que a Junta de Comércio e as regras que regiam a distribuição dos poderes no seio da corporação,
reativada pelo Marquês de Pombal em 30 de Setembro de 1755, às vés- até o dia em que a tragédia abateu-se sobre Lisboa.
peras do terremoto, facilitara o estabelecimento dos oficiais mecânicos
vindos de outras áreas, concedendo-lhes as licenças necessárias, com o
objetivo de agilizar a reconstrução da cidade e suprir a perda da mão-de- 2.1. Os estatutos do estandarte
-obra89. Era decerto um grande empurrão do primeiro-ministro de D. José
I na indústria portuguesa, mas um golpe duro na estrutura administrativa Adiantada nos anos e com um histórico de sucessivas alterações, a
das bandeiras, que atravessaram os séculos regulando-se por um estrutura bandeira de São Jorge era liderada, na primeira metade do século XVIII,
arcaica e assentadas no corporativismo. Agora, restava-lhes apenas brigar apenas pelos barbeiros de barbear e de guarnecer espadas. Em suas rami-
pelas conquistas pretéritas, como faziam os irmãos de São Jorge, que ten- ficações estavam serralheiros, ferreiros, ferradores, bate-folhas, bainhei-
tavam fazer com que as gentes, estranhas às regras da Casa de São Jorge, ros, coronheiros, celeiros, fusteiros, latoeiros de fundição, fundidores de
se familiarizassem com ela. cobre, latoeiros de martelo, latoeiros de folha branca, douradores, cutilei-
As estocadas no corpo de ofícios, contudo, não cessavam. O decreto ros e freeiros. Constituída por dois juizes, dois mordomos, um escrivão
de 18 de Abril de 1761 atingiu como um raio a cabeça da bandeira de São geral e vinte e quatro eleitores como procuradores dos ofícios incorpora-
Jorge90. Ao permitir que todas e quaisquer pessoas assistentes na corte ou dos, a mesa do "honrozo estandarte" estruturava-se sobre a rígida hierar-
em qualquer dos lugares do reino, nacionais ou estrangeiras, pudessem quia que opunha a cabeça aos anexos. Enquanto as duas profissões de
trabalhar nas obras vazadas de estanho e latão e outros metais, sem o liderança elegiam um representante para a Casa dos Vinte e Quatro,
menor impedimento dos oficiais da jurisdição, desde que portadoras da todos os ofícios ramificados escolhiam em conjunto apenas um.
licença fornecida pela Junta do Comércio e reconhecida pelo Senado, Fiel à conquista afiançada pelos alvarás régios obtidos na centúria
Pombal não só deve ter atraído o ódio de alguns dos homens de ferro e anterior, a corporação exigia que os oficiais fossem "irmãos da irmanda-
fogo, como fez com que se aviassem para conter a avalanche de medidas de Espiritual do nosso Santo", nunca com menos de 35 anos, sabendo ler
e escrever e de boa vida e costumes. Por isso, resguardando a moral que
que lhes retirava o poder.
construíra desde a Antiguidade uma dicotomia entre as esferas de atuação
Assim, com base nas "cartaz, e Alvarás régios, e pelas Lembranças
do masculino e do feminino93, as regras da Casa de São Jorge previam
dos Capítulos do antigo regimento, e estillo observado na dita bandeira, e
que, em sendo casados, os trabalhadores não poderiam ter suas mulheres
para estes Se poderem Simularizarem"91, o juiz, o procurador e os mes-
em lugares públicos, para que pudessem ocupar, sem restrições, um lugar
tres do ofício de barbeiro redigiram outro regulamento para a gerência da
na Casa dos Vinte e Quatro e, porventura, no Senado. Isto é, vetava, a
corporação e encaminharam-no ao juiz do povo na Casa dos Vinte e Qua- união dos oficiais com mouras, mulatas ou negras. Afinal, eram essas,
tro, que o fez chegar à Câmara. Composto de dezessete capítulos e uma em sua maioria, as mulheres que andavam pelos mercados e ruas a ven-
"noticia" sobre o culto a São Jorge em Portugal, o Novo regimento Para der arroz-doce, trapos velhos e coisas do género.
Governo da Administração da Meza do Estandarte do M. S. Jorge92 ten- Concebida como um corpo de funções articuladas e subordinadas à
tava fazer frente aos decretos pombalinos e ao fluxo migratório de ofi- irmandade, a associação só permitia ao oficial ocupar o cargo de juiz caso
ciais para o solo lisboeta. Restabelecia por escrito a forma como os ofi- tivesse sido mordomo do estandarte no ano anterior. Do mesmo modo, à
ciais organizavam-se para as cerimónias em que acompanhavam o santo incumbência de mordomo da bandeira só tinham acesso aqueles que hou-
vessem exercido o encargo de mordomo da irmandade, enquanto a função
89 SERRÃO, Joel. Pequeno Dicionário de História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1993, de escrivão geral só poderia ser desempenhada pelos oficiais que tivessem
pp. 169-170; BOXER, C. R., op. cit., p. 184. ocupado ao menos três lugares na mesa espiritual, exceto o de presidente e
90 Decreto de 18 de Abril de 1761, in OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cit., tomo XVI, p. 502. mordomo da capela. Uma vez eleito para quaisquer dos cargos, nenhum
91 Petição dos Irmãos para aprovação do regimento da bandeira de São Jorge. 1763. mestre de loja, ou seja, oficial examinado e irmão de São Jorge, poderia
LANGHANS, Franz-Paul, op. cit., vol. l, p. 193. furtar-se à função, ao uso de capa e volta, salvo em caso de moléstia.
92 "Novo regimento Para Governo da Administração da Meza do Estandarte do M. S.
Jorge. 1767. Fundado nas Cartas, Alvarás e Lembranças do Antigo regimento que se
queimou no incêndio immediato ao Terremoto do primeiro de Novembro do Armo de 93 BLOCH, Howard R. Misoginia Medieval e a invenção do Amor Romântico. Rio de
1755", in LANGHANS, Franz-Paul, op. cit., vol. l, p. 169. Janeiro: Editora 34, 1995.
150 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 151

Antes realizada em Fevereiro, a eleição da mesa passava no novo gação de conduzir o estandarte do santo, à saída e após a procissão do
regimento a ocorrer em Dezembro, para que os novos oficiais pudessem Corpo de Deus, pelas vias de mais fácil acesso. Sendo a maior autoridade
tomar posse no dia vinte de Janeiro, data em que ocorria o primeiro cor- da bandeira, seu lugar era o último de todos, nos cortejos religiosos. Mas
tejo religioso de que participava a bandeira: a procissão de São Sebastião. se fosse o juiz da parte da cabeça, iria à direita do orago protetor, e se dos
Contando com a presença dos vinte e quatro eleitores escolhidos pelos ramos, à esquerda, ambos sempre rodeados pelos vinte e quatro eleitores
ofícios anexos, o escrutínio ocorria a cada dois anos. Se no passado o da bandeira.
costume fixara a escolha dos procuradores dos ofícios antes da procissão Figuras-chave em todo e qualquer processo decisório, os procurado-
do Corpo de Deus, a eleição destes últimos passava a acontecer no mes- res dos ofícios anexos da bandeira eram obrigados a participar de todos
mo dia do derradeiro, juntamente com a escolha do juiz de contas. À os negócios ordinários e extraordinários. Deste modo, sendo representan-
semelhança das sessões em cada mester, a votação tinha lugar na Casa tes dos mesteres do ramo, quando houvesse despesas imprevistas ou mais
das Conferências e cabia ao contínuo da mesa administrativa convocar os dispendiosas, como um arco triunfal para alguma procissão de graças, arbi-
trabalhadores. Se em alguns dos casos houvesse empate na contagem dos travam o montante a ser pago por cada ofício anexo, embora a fórmula
votos, o pleito decidir-se-ia por sorteio. para a partição da quantia fosse sempre a mesma: metade para os líderes da
Realizada segundo o mesmo sistema, a eleição para a Casa dos Vin- bandeira e metade para as ramificações. Contudo, em se tratando dos gas-
te e Quatro obedecia ao calendário dos ofícios e era, como aquelas, uma tos previstos anualmente, como o da procissão do Corpo de Deus, eram os
assembleia de presença obrigatória. Diretamente ligada às demais, aqui juizes de cada profissão que fixavam e arrecadavam o valor a ser pago
também o oficial candidato deveria ter servido primeiro à mesa espiritual, pelos mestres de loja aberta, conforme a possibilidade de cada um. Porque
antes de ir ao colégio dos mesteres. O condicionante não se detinha ape- aos barbeiros, como cabeça da bandeira, era certa a metade do rateio.
nas neste item. A participação efetiva nos quadros da irmandade orienta- Expostos ao Senado da Câmara depois de passar pelas mãos do juiz
va, inclusive, as substituições em caso de morte dos representantes. Se o do povo, os itens do Novo regimento da bandeira de São Jorge foram
defunto fosse o juiz do estandarte, era substituído pelo mordomo da ban- aprovados em 1767, no entanto, depois de feitas algumas modificações.
deira e se fosse este o falecido, seria o mordomo da irmandade a ocupar- Uma vez escrito pelo juiz, procurador e mestres do ofício de barbeiro, os
-Ihe o lugar. Entretanto, se o morto fosse o escrivão geral ou o juiz de estatutos do estandarte desconsideravam em que ordem os outros oficiais
contas, far-se-ia outro pleito, face à especificidade dos cargos. Afinal, um da bandeira elegeriam seu deputado para a Casa dos Vinte e Quatro. O
praticamente coordenava todo o processo eleitoral e o segundo era uma juiz do colégio, porém, não negligenciou o fato e o fez, provavelmente,
espécie de tesoureiro e cuidava da arrecadação dos bens da bandeira. após consulta aos oficiais da corporação.
Funções, como as demais, recebidas em confiança, mas que exigia, além A partir de um rodízio, todos os ofícios anexos passavam a apontar
de zelo, idoneidade. seu representante no grémio dos ofícios. A indicação para os delegados
Obrigado a assistir aos juizes da bandeira, em todos os atos, e obri- dos ofícios do ramo principiava com os serralheiros. Terminada sua ges-
gado a comparecer a qualquer eleição quando convocado pelos juizes dos tão, era a vez dos ferreiros, depois dos ferradores, adiante dos bate-folhas,
ofícios, ao escrivão cabia fazer todas as notificações que lhe fossem a seguir dos bainheiros, no sexto ano dos coronheiros, no sétimo dos celei-
requeridas pelas demais autoridades da administração do estandarte e ros, no oitavo dos fusteiros, no nono dos latoeiros de fundição, no décimo
pela mesa espiritual. Responsável pela secretaria da bandeira, tinha a dos fundidores de cobre, no undécimo dos latoeiros de martelo. Por fim,
função de registrar em livro as multas dos oficiais que não honrassem a era vez dos latoeiros de folha branca, dos douradores, dos cutileiros e dos
obrigação de acompanhar o estandarte e que seriam cobradas ao final de freeiros. Concluída, a ciranda recomeçava com os serralheiros.
cada ano. Tanto prestava juramento na Câmara, como acompanhava as Espelho do grau de importância de cada profissão, o escalonamento
procissões e demais atos públicos ao lado dos juizes, repartindo com eles das ramificações do estandarte de São Jorge interagia ainda com os ofí-
as varas da bandeira. cios das outras bandeiras no fórum da Casa dos Vinte e Quatro. Logo,
Na qualidade de presidentes do estandarte, cabia aos juizes compa- como cada ofício anexo elegia um delegado de quinze em quinze anos, a
recer às cerimónias, respeitar e fazer cumprir o regimento e executar as oportunidade dos mesteirais desta categoria virem a integrar a mesa
penas nele previstas. Desta feita, era de sua competência observar se o camarária como procuradores dos mesteres era reduzidíssima. Em con-
escrivão registrava os termos das eleições e advertir o mordomo da obri- trapartida, como os barbeiros tinham o direito adquirido de enviar um
Ofício e Sangue 153
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representante ao grémio dos mesteres anualmente, suas chances eram que, segundo seu próprio regimento e o regulamento do estandarte, eram
evidentemente maiores. Por extensão, eram estes os oficiais da bandeira também zeladores do culto ao santo desde tempos remotos e que guarda-
de São Jorge que tinham mais oportunidade de conquistar um assento na vam a memória de sua devoção no solo lisboeta. Tanto assim que, ao con-
Câmara como representantes dos oficiais mecânicos. Mesmo que para trário das alterações feitas na condução dos negócios da mesa temporal, o
capítulo referente à mordomia não recebeu qualquer emenda.
sentar-se em uma cadeira com encosto de pau94.
Porta de entrada para a Câmara, a Casa dos Vinte e Quatro era alvo Encarregado das funções religiosas da mesa temporal, era atribuição
ainda de outras emendas importantes. Tomada como pré-condição para do mordomo da bandeira cuidar dos bens que pertenciam ao estado do
atuar no grémio dos oficiais mecânicos desde 1654, o serviço na mesa santo. Como a presença nas aparições públicas do estandarte era obriga-
espiritual mantinha-se. Mas deixava de ser um pré-requisito para os ofi- tória aos mestres de loja aberta e aos obreiros solteiros, era seu o papel de
ciais mecânicos anexos, que almejassem um lugar no colégio dos meste- comunicar ao escrivão geral as ausências dos oficiais nas ocasiões festi-
res, estarem atuando como um dos vinte e quatro eleitores da mesa admi- vas, para que fossem lançadas no livro das faltas e para que o juiz então
nistrativa do estandarte. Ao candidato bastaria ser a pessoa "mais pudesse aplicar as sanções previstas. Se por amizade ou respeito prote-
benemérita e capacitada do ofício", ter as jóias da mesa espiritual em dia gesse algum irmão e não desse ciência ao juiz do ocorrido, seria então ele
e ter exercido por um ano a função de mordomo do estandarte e por outro próprio o responsável pelo pagamento das multas.
o de mordomo da mesa espiritual. O reparo no texto complementava, Observa-se, porquanto, que os dispositivos regulamentares dos
portanto, o sistema de rodízios inserido no regulamento. homens de ferro e fogo construíram-se em torno de dois pilares: a hierar-
A proposta dos barbeiros era também alterada substancialmente, em quia entre os ofícios e o culto a São Jorge. O primeiro determinava o
outros dois parágrafos. Um dizia respeito à substituição dos membros nível de inserção política dos mesteirais, fosse na própria bandeira ou na
falecidos e outra ao papel do escrivão. Se na versão original a reposição Casa dos Vinte e Quatro. Estipulava sua contribuição com os gastos do
valia-se dos oficiais que ocupavam a mesa espiritual, na segunda versão a estandarte, condicionando a maior ingerência nos assuntos da corporação
permuta ocorria conforme o caso. Se o falecido fosse um juiz, o juiz do ao pagamento da maior despesa com as cerimónias públicas. O segundo
orientava a competência entre as atribuições da bandeira e da irmandade,
ano anterior o substituiria. Todavia, se tivessem transcorrido seis meses,
demonstrando que os oficiais reconheciam no discurso religioso um ins-
far-se-ia outra eleição. Sendo o defunto de qualquer outra função da mesa
administrativa, seria então realizado outro pleito. Quanto ao escrivão, a trumento eficaz e legítimo de controle sobre os obreiros, aprendizes e
versão corrigida dava-lhe mais autonomia dentro da bandeira. Enquanto mestres de loja estabelecidos na cidade.
o texto feito pelos líderes do estandarte vetava-lhe a emissão de qualquer As diligências dos irmãos de São Jorge - particularmente dos bar-
certidão referente ao regimento, sem a supervisão do juiz da bandeira e beiros, líderes da associação -, para garantir o cumprimento das normas
sem ordem da Câmara e de seus ministros, o segundo conferia-lhe poder que regiam a bandeira, culminaram na redação de um novo compromisso
para a irmandade. Sabe-se que o último informe da notícia histórica que
para fazê-lo mediante um requerimento enviado ao Senado.
Nota-se, com efeito, que as mudanças propostas ao regimento procu- acompanha o Novo Regimento do Estandarte do Mártir São Jorge deu
azo a um suspense e passou dos fólios do documento para o repertório
ravam equilibrar minimamente o peso entre a cabeça e os anexos da ban-
das lendas criadas pela historiografia olisiponense, a partir do terremoto.
deira. Preocupação que passava ao largo do texto redigido pelos barbeiros.
A sentença foi transmitida anos a fio pelos historiadores lisboetas, porque
Homens que eram a liderança da corporação e que procuravam manter sob
sempre esteve desvinculada do conjunto de providências tomadas pelos
seu domínio os assuntos do estandarte através da mesa espiritual. Oficiais
oficiais da bandeira de São Jorge, em seguida ao cataclismo. Entretanto,
seria mesmo de estranhar que uma organização tão antiga no chão lisboe-
94 A hierarquia de poderes entre as autoridades lisboetas materializava-se também na dis- ta e com uma mesa administrativa visceralmente dependente da mesa
criminação dos espaços. Nas sessões da Câmara, o escrivão, os procuradores da cidade espiritual não tivesse providenciado uma nova redação para o compro-
e os procuradores dos mesteres sentavam-se todos em encostos de pau. Os procurado- misso da irmandade, à semelhança do que fizera com o regimento do
res dos mesteres mais abaixo, separados da mesa, tendo à sua frente uma tábua, em
forma de estante, com os instrumentos necessários para fazerem as suas assinaturas. O estandarte. Sobretudo porque, após a reativação da Junta do Comércio e
presidente e os vereadores sentavam-se na mesma mesa que o escrivão e os procurado- pouco tempo depois da aprovação do Novo regimento pelo Senado da
res da cidade, mas em escabelos com espaldar, isto é, em cadeiras de braço e assentos Câmara, as corporações sofreram uma profunda reforma.
de couro. Cf. FERRO, João Pedro, op. cit., pp. 78-79.
154 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 155

3. A reforma dos ofícios de 1771 ticipação dos mesteres nos cortejos públicos. Não tinha mais cabimento
permitir que nos atos cívicos fossem bandeiras de um só homem, umas
Como no primeiro quartel do século XVI, a reforma dos ofícios de atrás das outras, sem corpo de irmandades, acompanhando as autoridades
1771 partiu dos próprios oficiais mecânicos e também foi motivada do Senado. Era inteiramente despropositado e incompatível com o decoro
"pelas desordens e perturbações que [reinavam] entre os ofícios que da capital, razão pela qual também urgia que se fizesse a reordenação das
[formavam] o corpo da Casa dos Vinte e Quatro". Contudo, desta vez, associações de mesteres.
era o próprio juiz do povo a comunicar ao Senado da Câmara, em 1766, A demanda foi registrada no Senado. Não teve resposta de pronto,
"acerca da necessidade que havia de nova incorporação dos offícios mas na margem do documento, com uma caligrafia diferente, foi regis-
mechanicos por se acharem alguns extinctos e terem accrescidos outros trada a seguinte observação: "este requerimento pareceu bem e ser justo o
de novo"95. Alegando que, desde a composição das bandeiras determina- ministério e ficou affecto ao senhor conde de Oeiras para se fazer"97.
da por D. João III até o ano presente, muitos ofícios já se tinham extinto, Emitida à época em que a presidência do Senado era ocupada por Paulo
como os armeiros, lanceiros, sedeiros, gaioleiros, besteiros, calceteiros, de Carvalho e Mendonça, a petição só foi acatada de fato mais adiante,
barreteiros, borzegueiros, chapeleiros, azevicheiros, os que faziam pan- quando o nepotismo pombalino fez a Henrique José de Carvalho e Melo,
deiros "e outros mais", Joaquim Pereira Caroço propunha que se refor- filho do Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, presidente do Senado,
mulasse a distribuição dos mesteres. após o falecimento de seu tio. Neste ínterim.^ as bandeiras e a Casa dos
Segundo o juiz do povo, a fórmula antiga permitia que alguns ofi- Vinte e Quatro só fizeram dar razões à voz de Caroço.
ciais fossem à Casa cinco ou seis vezes, em detrimento de outras corpo- Uma sucessão de queixas e denúncias virulentas tomou conta dos
rações com um número grande de mestres e que não tinham oportunidade ofícios mecânicos. Em 1767, o então juiz do povo, Filipe Rodrigues de
de representação no colégio, embora tivessem os requisitos necessários. Campos, mestre alfaiate, denunciava à Câmara que os oficiais mecânicos,
Era o caso dos oficiais "da bandeira de San Jorge, os de Nossa Senhora em desrespeito às leis de seu regimento, subornavam os almotacéis para
das Candeias, os de San-Chrispim e os da bandeira de San-José". Só esta, não sofrer as penas de costume do ofício98. Conivente, a almotaçaria
informava o juiz do povo, tinha "800 e tantos homens alistados em sua também não registrava, por sua vez, os desmandos. Conclusão: perdia a
irmandade, e na San-Jorge pouco menos, porque tendo o officio de ferrei- cidade e perdiam as bandeiras, que recebiam o valor das multas.
ro nesta cidade 80 mestres, não [havia] lembrança, há mais de 30 annos, No ano seguinte, as transgressões estavam pelo Campo das Cebolas,
que deste ofício fosse um homem a Casa". junto à Ribeira. Sempre itinerante, apesar de proibida, a Feira da Ladra
As razões do descalabro Joaquim Caroço não ocultou. As bandeiras continuava um reduto fiel de venda de produtos de procedência duvidosa,
estavam metidas em um contínuo labirinto de desordens, com "muitas uns roubados, outros emendados, mas, naturalmente, com uma clientela
demandas e ódios", em decorrência de se terem acrescido em muitos ofí- cativa. Mais esperto que os barbeiros há um século, o juiz solicitava ao
cios, que nos dias de D. João III não havia. Por outro lado, muitos não Senado apenas a proibição da venda de produtos adulterados e dos que
iam à Casa porque não estavam em qualquer corporação. Era o caso dos estivessem metidos no negócio, ainda que fossem soldados. A Câmara
carpinteiros de seges e carruagens, dos picheleiros, vidraceiros, vestimen- baixou um edital e, após proibir a contravenção, determinou a pena de
teiros, lavrantes de prata, cravadores de diamantes e os que faziam vaso um mês de prisão para os infratores, devendo a mercadoria apreendida
de sela [sic] e os peneireiros96. No entanto, afirmava o juiz, havia lugar ser distribuída pelos presos das cadeias da cidade99.
para todos, sem alterar o número dos vinte e quatro. Tumultuado e custoso para o juiz do povo, o ano de 1768 renderia
Segundo o juiz do povo, a necessidade de reorganizar as agregações mais pendengas. Uma entre peenteiros de obra grossa e de obra fina. O
dos ofícios justificava-se ainda pela forma como vinham se dando a par- primeiro ofício, pai do segundo, não lhe deixava tornar-se independente.

95 "Representação que fez o muito honrado juiz do povo Joaquim Pereira Caroço ao
97 OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cit., tomo XVII, p. 332 n.
supremo Senado da Câmara, acerca da necessidade que havia de nova incorporação
dos offícios mechanicos, por se acharem alguns extinctos e terem accrescido outros de 98 "Representação do juiz do povo annexa a Ordem do Senado de 14 de Dezembro dt
novo. 1766", in OLIVEIRA, Eduardo Freire, op. cit., tomo XVII, p. 330. 1767", in OLIVEIRA, Eduardo Freire de, op. cit., p. 197.
96 A informação causa estranheza já que estes mesteres estavam incluídos na bandeira de 99 "Representação do juiz do povo anexo ao Edital do Senado de 26 de Janeiro de 1768"
São Jorge, em 1539. ibidem, tomo XVII, p. 199.
156 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 157

Mediador do atrito, o alfaiate conseguiu a união dos mesteres parentes, já sogro, e a Francisco Rodrigues Salles, a "perturbação e a desordem" que
que a diferença não estava na matéria, mas sim no que costumavam se achava no "officio há anos", o juiz do povo requereu a cassação de
fazer100. Com os esteeiros teve a mesma sorte. Aqui, a indisposição era suas licenças. Acusando o juiz do ofício de perturbar, roubar e usar do
provocada pela ganância de uns que, na intenção de alargar o património, cargo para interesses particulares, o alfaiate ainda afirmava que o barbei-
tinham mais de duas lojas. A resolução do Senado coibiu o procedimen- ro era homem de fazer as correições do ofício sem escrivão, de aceitar o
to, como fizera há duas centúrias, e os transgressores arriscar-se-iam ago- suborno dos que não tinham carta de exame e, em vez de entregar ao ofí-
ra pela aventura, à pena de quatro mil réis pagos na cadeia101. cio e à cidade as multas pelas infrações, ficava com elas. Como se não
Enquanto uns desrespeitavam suas leis, outros sequer as tinham. No bastasse, sendo juiz, assinava com seu sinal e, na ausência de outros, por
entanto, participavam ativamente da vida económica da cidade. No tem- estar de posse dos sinais dos demais mestres do ofício, marcava por eles
po das carruagens, seus carpinteiros ainda andavam "à solta" e pareciam as peças.
gostar disso. O juiz protestou e a Câmara acatou o protesto, exigindo que Depois de narrar tantas incorreções e declaradamente irritado, o juiz
fizessem um regulamento102. Entretanto, as maiores "perturbações" do povo solicitava à Câmara que suspendesse o barbeiro Tomé e realizas-
vinham dos que já estavam arregimentados. Arrogando-se um papel que se outras eleições. E, pela segunda vez no mesmo documento, pedia que
só competia ao juiz do povo, "algumas pessoas inimigas do socego "nenhum dos ditos três [pudesse] jamais ser eleito para emprego nenhum
publico" faziam requerimentos em nome dos juizes de seu ofício, quando do ofício, nem da bandeira, nem ainda da irmandade de San Jorge por
não eram os próprios a fazê-lo, e encaminhavam ao Senado sem dar ciên- terem praticado semelhantes desordens". Por fim, solicitava que exami-
cia ao colégio dos mesteres e à sua corporação. Falavam por si em nome nassem seu rendimento anual em cada dúzia de sabonetes usados para as
de todos. O Senado deu razão ao mestre da alfaiataria e condenou o pro- despesas do ofício, as contas referentes à esmola dos pobres e outras
cedimento103. aplicações pias. Ao findar a enorme petição, o juiz requeria que o ofício
Apesar da proibição, dois meses depois, o alfaiate, em uma longa fizesse outro regimento, porque os oficiais já não usavam dele.
"informação", voltava a relatar caso semelhante104. Um tal Tomé Lopes, Depois da denúncia, o Senado caçou a licença de Tomé Lopes e seus
juiz do ofício de barbeiro, convocou a todos os mestres do mesmo mester asseclas. Mas António José Batista provou serem falsas as acusações
para "fintar" (tributar) as lojas em desempenho da bandeira de São Jorge. contra si, sendo-lhe restituídas "todas as honras e cargos da dita bandeira,
Os oficiais responderam à convocatória e pagaram os 220 réis cobrados. irmandade e officio". Os barbeiros não fizeram novo regimento. Tinham
Sabendo do ocorrido, e julgando improcedente a quantia face ao número conduzido todo o processo de redação do regimento da bandeira vinte anos
de lojas, cerca de 452 em Lisboa, sem contar as de Belém e termo, o juiz antes, e eram tradicionalmente afoitos para desconsiderarem a opinião de
ordenou que suspendesse o peditório. Até porque, em algumas, o valor um alfaiate. Em posse da cabeça da bandeira há séculos, seu ofício, como
cobrado chegava a 480 réis. O alfaiate ordenou que o montante arrecado os demais, também mudara de fisionomia e deixara de abarcar muitas das
fosse entregue aos cofres da bandeira. O barbeiro fê-lo. Mas, para o ato, habilidades requeridas no passado, como se verá com vagar adiante. Mas,
Tomé Lopes levou junto o corregedor do cível e, ao depositar a quantia, ainda assim, continuavam a duelar por certas precedências para recuperar
sob protesto, reclamou que ela era o tanto que se devia pagar ao estandarte. um terreno perdido pela própria evolução do mundo do trabalho.
O caso azedou. Comunicando ao Senado os desmandos e a arrogân- Em Dezembro do movimentado ano de 1768 para a Casa dos Vinte
cia do barbeiro e atribuindo ao dito Tomé, a António José Batista, seu e Quatro, eram os cutileiros, integrantes da bandeira e também irmãos de
São Jorge, seus adversários. Disputa à primeira vista sem importância,
100 "Resolução do Senado da Câmara de 5 de Fevereiro de 1768", ibidem, p. 201. caso não se considere que estes homens viviam de afiar objetos cortantes,
101 "Representação do juiz do povo anexa a Resolução do Senado da Câmara de 18 de desde sempre. Entretanto, íntimos das navalhas e tesouras, os barbeiros
Fevereiro de 1768", ibidem, p. 203.
continuavam a dedicar-se à amolação das obras. Com o argumento de
102 "Representação do juiz do povo anexa ao Despacho do Senado de 22 de Março de que manufaturas deviam ser separadas de tal modo que uns não se intro-
1768", ibidem, p. 206.
103 "Representação do juiz do povo anexo ao Despacho de 22 de Março de 1768", ibi-
metessem no mester dos outros, os cutileiros requereram ao Senado que
dem, p. 207. proibissem aos mestres da cabeça da bandeira de São Jorge de lustrarem
104 "informação emitida pelo juiz da Casa dos Vinte e Quatro Mesteres em 26 de Maio e amolarem ferramentas, já que só se examinavam para o uso de navalha
de 1768", ibidem, pp. 210-213. de barbear e da tesoura. Para concluir a alegação, os juizes e mestres do
158 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 159

oficio de cutileiro diziam: "esta a causa por que em todos os reinos da As modificações na composição dos estandartes geraram, como no
Europa também o geral costume observa não se intrometterem os barbei- passado, uma batelada de novos regimentos. Para adaptar-se aos recém-
ros em amolar e concertar as obras que não fazem, restringindo-se -chegados, doze meses após a reforma de D. José I, a bandeira de São
somente a fazer barbas". Ante a clareza dos propósitos e a perícia na Miguel revisou seu regulamento. Dois anos adiante, em 1774, a bandeira
argumentação, o Senado deu ganho de causa aos homens da cutelaria. de Nossa Senhora da Conceição fez o mesmo. Em 1775, era a vez dos
A sucessão de entreveres entre os oficiais mecânicos acabou abrindo homens que carregavam o andor de Nossa Senhora da Encarnação. Mais
passagem para a segunda reforma lisboeta dos mesteres da Era Moderna. vagarosos, os oficiais do estandarte de Santa Justa e Rufina e os da ban-
Valendo-se da representação do juiz do povo, Clemente Gonçalves, que deira das Mercês redigiram seus regimentos uma década depois, em
apresentava uma proposta de redistribuição dos oficiais em onze bandei- 1786.
ras e mantinha nove outros mesteres não embandeirados, o Senado Assim como aquelas, as associações de ofício sem estandarte, cria-
encaminhou a D. José I o documento105. Por alvará régio, com força de das pela reforma dos mesteres de 1771, também fizeram seus regimentos.
lei, o monarca decretou a reforma106. Os lapidários, que até então andavam junto aos ourives do ouro, obtive-
A bandeira de São Jorge perdia alguns de seus oficiais, que, transfe- ram a aprovação de seu regulamento na Câmara, em 1776, e os cordoei-
ridos para outras bandeiras, aumentavam sua oportunidade para ir ao ros de obra delgada da Porta da Cruz, que compartilhavam a mesma
colégio dos mesteres. Não foram os ferreiros a sair, mestres que desde associação dos cordoeiros de obra grossa de Santa Catarina, apresenta-
antes do terremoto andavam arredios e desorganizados, embora fossem ram o seu regulamento em 1791. Como eram as matrizes da agremiação,
80, segundo as contas do juiz Caroço; mas sim, os latoeiros de fundição e os ourives do ouro e os cordoeiros de obra grossa já tinham em mãos um
os latoeiros de folha amarela que foram abrigar-se sob a proteção de novo regimento, composto ainda em 1767, em resposta à criação da Junta
Nossa Senhora das Mercês, junto aos pasteleiros e torneiros. Saíram, do Comércio. O mesmo verificou-se entre os correeiros e esparteiros com
outrossim, os latoeiros de fundição, que passaram a integrar a bandeira de regulamentos feitos em 1768 e com os tanoeiros, os primeiros na corrida
São Miguel, os freeiros e seleiros, que passaram à bandeira de Nossa em prol do corporativismo, cujo regulamento data do ano de 1756107.
Senhora da Conceição, e os coronheiros, que se juntaram aos carpinteiros Embora se desconheça o registro de qualquer regimento das bandei-
de móveis e samblagens e aos entalhadores, na bandeira de Nossa Senho- ras de São Gonçalo, Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Oli-
ra da Encarnação. veira e dos praieiros após a reforma, e ainda que o regulamento mais
Seguindo sob a liderança dos barbeiros de barbear e dos de guarne- recente do estandarte de São José remonte ao ano de 1709108, o movi-
cer espadas, naturalmente, sem o barbeiro Tomé, a bandeira de São Jorge mento geral presente nos arquivos da Câmara, depois de 1771, revela o
contava, então, com dez ofícios e os mesteres da ramificação. Ao contrá- esforço das corporações para se ajustarem à entrada e saída dos ofícios
rio das emendas ao Novo Regimento do Estandarte de 1765, os ofícios que, ao fim e ao cabo, expressavam a redução ou a ampliação da atuação
anexos, sujeitos ao mesmo sistema de rodízio eleitoral, agora indicavam de certos profissionais.
seus deputados a cada oito anos. O mesmo repetiu-se em relação aos A cabeça da bandeira de São Jorge que o diga. Em 1773, os barbei-
latoeiros de fundição, que agora pagariam cera por algum abuso a São ros de barbear, insatisfeitos com o esquema de rodízios que dava as
Miguel. Entretanto, sua sorte não fora maior do que a dos latoeiros de
folha branca e dos de folha amarela, nem maior que a dos coronheiros, 107 "Regimento da bandeira de Nossa Senhora da Conceição de 1774"; "Regimento da
seleiros e freeiros, que em estandartes menores disputavam com menos bandeira de Santa Justa e Rufma de 1786"; "Regimento Ordenado, Conferido e Apro-
concorrentes o acesso à Casa dos Vinte e Quatro. Mas, no aspecto geral vado da bandeira de São Miguel de 1772"; "Regimento de Nossa Senhora da Encarna-
da reforma, nenhuma das alterações comparou-se à promoção obtida ção de 1775"; "Regimento da bandeira das Mercês de 1786"; "Regimento para o Officio
de Cordoeiro de Linho de Lisboa e Termo do Anno de 1791"; "Regimento do Officio de
pelos correeiros, que passavam à liderança da bandeira de Nossa Senhora Correeiro de Obra Grossa e Delgada de 1738"; "Regimento dos Esparteiros do Anno de
da Conceição. Pareciam ser mesmo as cordas de navio o grande negócio 1768"; "Regimento que o Senado da Câmara manda dar para o bom regimento do offi-
do mundo dos ofícios, para uma cidade vocacionada para o mar... cio dos lapidários. Anno de 1776"; "Regimento do Oficio de Tanoeiro Reformado em
1756, in LANGHANS, Franz-Paul, op. CIA, vol. l, p. 287; p. 210; p. 243; p. 294; p. 298;
p. 677; p. 695; e vol. 2., p. 29, p. 195; p. 714, respectivamente.
105 "Consulta da câmara a el-rei em 30 de Outubro de 1771", ibidem, p. 330. 108 "Regimento e Compromisso da Bandeira da Mesa dos Offiçios de Pedreiros e Carpin-
106 "Alvará régio com força de lei de 3 de Dezembro de 1771", ibidem, p. 351. teiros da Bandeira do Patriarca São Joseph anno de 1709", ibidem, p. 274.
160 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 161

mesmas oportunidades a eles e aos barbeiros de guarnecer para enviar D. Maria I em 1781, e desde então os barbeiros passaram a identificar-se
seus representantes à Casa dos Vinte e Quatro, propuseram a estes um segundo duas grandes circunscrições: a do Bairro Alto e a do Bairro da
acordo, que segundo consta, foi aceito sem esperneio. A tradição garantia Alfama. A eleição para juiz e escrivão do ofício alternava-se. Um ano
a um e a outro a indicação de um delegado para ser sua voz no colégio eram eleitos barbeiros de um bairro, no outro ano eram escolhidos bar-
dos mesteres anualmente, mas, como diziam os oficiais da navalha, "o beiros de outro111.
offício de barbeiro de guarnecer [estava] reduzido a um pequeno número Volvida acima e abaixo, a bandeira de São Jorge tentava adequar-se,
de mestres" se comparado à quantidade dos homens de barbear, que fica- em fins do século XVIII, aos desafios que Lisboa lhe impusera após o
vam ano sim, ano não, distantes das deliberações no grémio. Face à des- terremoto. Nenhuma das associações de ofícios havia perdido um número
proporção, os ofícios fizeram uma composição e apresentaram-na à maior de mesteres do que o estandarte de São Jorge, agremiação que des-
Câmara, solicitando que sua escritura, lavrada em um cartório na "rua de sempre congregara uma expressiva lista de profissões, que somava
direita dos Poyais de São Bento", fosse acrescida ao regulamento da ban- quase 800 oficiais, em 1766, e que contava, a partir da nova redistribui-
deira e aos regimentos dos dois ofícios. Sem apresentar poréns, a Câmara ção implantada pela reforma dos ofícios, com oito mesteres a menos. Se,
emitiu despacho favorável, concordando que daquela data em diante os por um lado, as modificações facultaram maiores oportunidades para a
barbeiros de barbear indicariam seu representante seis anos consecutivos representação política dos ofícios anexos no colégio dos mesteres, por
e apenas no sétimo os de guarnecer apontariam o seu109. outro lado, consagraram definitivamente o poder dos barbeiros, numerica-
Embora não tenham declarado abertamente quantos eram de fato, mente expressivos e líderes do estandarte desde os tempos de D. João III.
não há porque duvidar da fala dos mestres da navalha. O crescimento de O impacto dessas alterações, flagrante nas modificações da adminis-
profissionais que se punham a lidar no ofício sem obedecer aos critérios tração da cabeça da bandeira, exigiu que o controle operado pela irman-
de admissão da bandeira transformara-se em motivo de confusão. Para dade sobre a admissão dos novos oficiais fortalecesse o cumprimento das
deter a concorrência e evitar que certos oficiais vindos de fora da terra leis que regiam o estandarte de São Jorge. Era, portanto, inevitável que os
com "certidoens supostaz" abrissem mais lojas, "em grave prejuízo de irmãos refizessem seus capítulos.
todo o Offício que se queixavão da opreção", os barbeiros levaram ao Em socorro a seu pequeno potentado, os barbeiros e demais irmãos
Senado, em 1799, um acrescentamento para conter a explosão das tendas. de São Jorge redigiram um novo compromisso para a irmandade. Feliz-
O despacho foi favorável e determinava, consoante a demanda dos ofi- mente, para desfazer os equívocos gerados pela sentença proferida na
ciais da cabeça da bandeira, que os aprendizes do ofício não poderiam ser "notícia" que acompanha o regimento, para pôr fim à lenda que se for-
examinados sem terem completo o tempo de permanência ajustado com mou sobre a inexistência desta fonte e, sobretudo, para deixar que se
os mestres e nem poderiam montar loja antes de completos dois anos de conheça, enfim, os estatutos da confraria de São Jorge e, se não o rosto,
atuação como oficiais (obreiros). O desrespeito à norma era uma infração pelo menos a trajetória de alguns dos homens que passaram duas cente-
à cidade e ao estandarte e resultava no pagamento da multa de quatro mil nas de anos sangrando as gentes, ferrando as bestas, amolando tesouras,
reis 110 protestando contra a Feira da Ladra, conduzindo os sentenciados do San-
A medida pode ter sustado temporariamente o ímpeto industrial dos to Ofício nos autos-de-fé e fazendo do culto ao padroeiro português seu
moços recém-chegados à cidade e o sonho dos que não eram necessaria- emblema e escudo.
mente jovens e que vinham buscar a sorte em Lisboa, depois de desen-
contrar dela em outro lugar. Mas o aumento do número de barbeiros em
chão lisboeta era fato incontestável e reclamou outra ordem na cabeça da
bandeira. Assim, nos tempos da Viradeira, o escrivão, procuradores e
demais dirigentes do mester fizeram uma concordata para propor a sub-
divisão das áreas de atuação do ofício. O termo foi aprovado pela rainha

109 "Petição dos Barbeiros de Barbear e de Guarnecer Espadas de 1773 & Escritura de
Composição dos Barbeiros de Barbear e de Guarnecer Espadas", ibidem, pp. 328-332. 111 "Provizão de Dona Maria I para o Officio de Barbeiro de Barbear. 1781" ibidem
no "Acrescentamento pertencente ao Offício de Barbeiro. 1779", ibidem, p. 334. p. 336.
CAPÍTULO III

HOMENS DE COMPROMISSO

"Lua de São Jorge, lua soberana, nobre porcelana sobre a


seda azul. Lua de São Jorge, cheia, branca, inteira. Ó minha
bandeira solta na amplidão."
Lua de São Jorge, Caetano Veloso

Marca indelével do Portugal Moderno, as associações confraternais


pontuaram a vida religiosa dos laicos nas áreas urbana e rural, do Minho
ao Algarve, congregando gente endinheirada, abrasonada, oficiais mecâ-
nicos e escravos. Herdeiras das organizações medievais de entreajuda,
tributárias do discurso religioso que estimulou a participação dos leigos
na esfera assistencial e incitou a criação de instituições de beneficência
sob a tutela do Estado, em fins da Idade Média1, as confrarias da Época
Moderna resguardaram a feição solidária, devocional e caritativa de suas
antepassadas.
Assentadas em um contrato de auxílio mútuo, as organizações fra-
ternais engendraram cadeias de integração e proteção sociais, dinamiza-
ram o culto às entidades santificadas pelo catolicismo, facultaram a coe-
são dos grupos de um mesmo estatuto social e fomentaram práticas de
assistência e caridade a pobres, excluídos e marginalizados. Todavia,
fundadas na atmosfera espiritual que cindiu ao meio a Cristandade e for-
madas no contexto socioeconômico desenvolvido pela política de coloni-
zação portuguesa, assumiram a feição das devoções de inspiração triden-
tina e especializaram suas funções sociais.
Gestadas no clima religioso da Contra-Reforma e da Reforma Católi-
ca, isto é, no âmbito do combate da Igreja à prédica protestante e no espíri-
to de reafirmação dos parâmetros doutrinais que regiam a Santa Sé, as con-
frarias mostraram-se uma das bases de apoio para as práticas devocionais

1 MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus 1989 pp 264-
-284.
164 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 165

acalentadas pelo catolicismo. Nos anos em que as divergências conceituais Incansável ao repetir que o sofrimento e a dor eram componentes
dividiram definitivamente o Ocidente cristão, em que luteranos e calvinis- intrínsecos ao amor4, o discurso católico dos Tempos Modernos ofereceu
tas defendiam uma fé escorada exclusivamente nas Escrituras e o corpo aos féis o Cristo suspenso na cruz. No entanto, diante do símbolo do
eclesiástico, fiel à tradição, gritava também em defesa da autoridade dos catolicismo, da imagem-síntese da Redenção, não cabia mais o sentimen-
padres da Igreja, as confrarias tornaram-se pequenas células de reprodução to desarrazoado e febril que alimentara o vaivém das lasquinhas de
dos valores apregoados pela doutrina católica. Assim, enquanto os refor- madeira e dos frasquinhos de sangue. Ao fetiche que movimentara o
madores descartavam os mediadores celestes, reconheciam somente os comércio das relíquias, a devotio moderna impunha a compaixão con-
sacramentos da eucaristia e do batismo e confiavam apenas à fé a salvação templativa da Via Sacra, a consternação da Mãe Maria aos pés do Filho e
humana, as irmandades valorizavam a intercessão dos santos, o papel das os mistérios do Rosário5. Vencidos pela sedução do sofrimento inerte dos
obras espirituais, das obras temporais e os ritos sacramentais que justifica- frescos da Pieta e do Ecce Homo, em honra aos quinze mistérios gozo-
vam o monopólio da autoridade da Igreja nos assuntos do sagrado. sos, dolorosos e gloriosos da vida da Virgem, os crentes adotaram o terço
Resguardando em seus compromissos o respeito aos sacramentos e sob a invocação do Rosário formaram irmandades. Em reconhecimento
(batismo, confissão, eucaristia, confirmação, matrimónio, extrema-unção ao sacrifício do Deus que se fez homem, convencidos de Seu amor des-
e ordenação), utilizando-os como critério para admissão do irmão con- medido, reuniram-se, em louvor ao fulgurante coração vermelho, de raios
frade, reconhecendo-os como um meio para assegurar-lhe uma boa hora dourados, como irmãos do Sagrado Coração de Jesus.
ou garantir-lhe os sufrágios necessários à salvação eterna, as irmandades Termómetro do sucesso atingido pelo projeto missionário e evange-
apresentaram-se como instrumentos eficazes na preservação dos ritos que lizador promovido pela imensa campanha de massa que foi a Contra-
expressavam os sinais da graça. Ancoradas à roda de alguma figura santa, -Reforma, as confrarias nascidas entre os séculos XVI e XVIII espelha-
catalisadora de orações e afeto, muitas vezes sediadas em uma igreja com ram o êxito da ofensiva católica lançada pelo Concílio de Trento. Em
o apoio e o incentivo do pároco, as confrarias do período moderno foram solo luso, a adesão à iniciativa eclesiástica contou, é certo, com um terre-
decerto um espaço de vivência religiosa, mas também agentes do proces- no fértil, adubado pela devoção à eucaristia e pelo culto mariano, portan-
so de enraizamento da ideologia tridentina nos territórios tradicionalmen- to, apto às sementes tridentinas. Basta recordar a importância dos festejos
te leais à Santa Sé. Por isso, constituíram "uma das principais expressões do Corpus Christi e as procissões em honra a Nossa Senhora, nos tempos
sócio-religiosas"2 encorajadas pelo poder eclesiástico para enquadrar e de D. João I, ou melhor, a Santa Maria, como chamavam-na os portugue-
exprimir a religiosidade dos leigos sensíveis à oratória dos pregadores e à ses à época de Aljubarrota6.
experiência dos místicos. Evidente nas bandeiras lisboetas do século XVIII, a multiplicação
Deste modo, ante a exaltação do castigo e da penitência como cami- das invocações à Virgem durante a Era Moderna não chegou, porém, a
nho para obter o perdão dos pecados3, os fiéis entregaram-se à mortifica- obliterar os patronos com um culto antigo organizado, como São Jorge7.
ção da carne em prol do espírito e alistaram-se em confrarias de flagelan-
tes, formando um "exército de penitentes". Cedendo ao chamado para a 4 Idem, ibidem, p. 149.
devoção ao mistério da eucaristia, erigiram irmandades em devoção ao 5 BOSSY, John. A Cristandade no Ocidente 1400-1700. Lisboa: Edições Setenta, 1990, p. 21.
Santíssimo, reforçando a importância da solenidade do Corpo de Deus. 6 No século XV, época do segundo grande surto à devoção mariana no Ocidente, a deno-
Obcecados com o destino da alma e crentes no papel da extrema-unção minação da Virgem seguiu em paralelo à evocação de Cristo, passando a ser invocada
como salvo-conduto para a remissão das faltas, cultuaram a Boa Morte, como Nossa Senhora. Por isso, Senhor e Senhora da Ajuda; Senhor e Senhora da Pieda-
de, Senhor e Senhora da Agonia, Senhor e Senhora do Desterro... Cf. ALMEIDA, Carlos
endossaram a veneração às Almas do Purgatório e por elas organizaram- Alberto Ferreira de. "O Culto a Nossa Senhora, no Porto, na Época Moderna - perspec-
-se em associações. tiva antropológica". Separata da Revista de História, Centro de História da Universida-
de do Porto, vol. 2, 1979, p. 11.
7 Ferreira de Almeida defende o oposto em seu estudo sobre a devoção mariana no Porto.
2 PENTEADO, Pedro. "Confrarias Portuguesas da Época Moderna: problemas, resultados
Segundo o autor, Nossa Senhora da Saúde acudiria aos mesmos achaques que São
e tendências da investigação", in Lusitana Sacra — Confrarias, Religiosidade e Sociabi-
lidade; séculos XV a XVIII. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 1995. Tomo VII, Roque e São Sebastião, Nossa Senhora da Ajuda acorreria aos pescadores, como São
Pedro, Nossa Senhora do Rosário, do Carmo ou da Boa-Morte aos clamores dos mori-
2.'série, pp. 15-52.
bundos, como São Miguel, e Nossa Senhora da Vitória administraria as pendengas,
3 CHÂTELLIER, Louis. A Religião dos Pobres - as fontes do cristianismo moderno, séc. como São Jorge, suplantando estas devoções. Embora trate-se de um estudo de inegável
XVI-XIX. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pp. 19, 20, 88. erudição, o autor limita-se a catalogar as invocações desconsiderando a presença das
166 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 167

A bem da verdade, ajudou a projetar certos oragos. São José foi um na diferença as irmandades teocêntricas e de últimos fins. Em contra-
deles. Encoberto pelo envolvimento passivo no nefasto episódio da partida, Fundão, urbe localizada na zona interior, era a que menos
matança de Herodes, permaneceu esmaecido, sem vulto e acantonado congregava devotos em honra à Virgem e o lugar que mais velas, missas
entre os carpinteiros durante a Idade Média. Reabilitado com a ênfase na e orações dispendia pelo bem-estar das Almas10, demonstrando que nem
paixão protagonizada por Jesus, com o realce às dores de Maria e com a só da devoção à Maria viviam os fiéis.
propaganda em defesa do matrimónio, o santo compôs junto com eles um Se a despeito das nuanças regionais, a frequência de confrarias for-
trinômio inseparável e destinado a durar: a Sagrada Família. madas à volta do Santíssimo, das Almas do Purgatório e de Nossa Senho-
Comumente referenciada como uma devoção que se desenvolveu ra do Rosário revelam que estas foram as três principais devoções em ter-
homogeneamente, a veneração a Maria enfrentou, como qualquer culto, as ritório lusitano, após a Reforma Católica, a motivação que justificou a
aptidões religiosas de cada localidade. Se nos focos de devoção pautados criação dessas confrarias ou a preservação daquelas concebidas em fins
por um compromisso, a evocação mariana que mais concebeu associações da Idade Média superou, muitas vezes, as intenções meramente religiosas.
fraternais foi a Virgem do Rosário, em algumas regiões de Portugal, esta e Ante o quadro social forjado pela abertura portuguesa às terras e
outras confrarias em honra a Maria concorreram em desvantagem com as gentes do império ultramarino, as irmandades não só foram constituídas e
irmandades do Santíssimo Sacramento e com a das Almas, duas outras mantidas por segmentos sociais distintos, como por etnias diferentes.
devoções de grande amplitude no período moderno português. Logo, em sua formação responderam a demandas específicas, acentuando
A primeira, incentivada pela Igreja, no bojo da ofensiva tridentina, uma ou outra finalidade. Enquanto alguns reuniam-se à volta de Nossa
tornou-se uma obrigatoriedade no torrão lusitano, quando as Constituições Senhora do Rosário, tendo por objetivo último a conquista da alforria
Sinodais de Miranda (1563) e do Porto (1585) impuseram a cada paróquia para seus membros11, outros visavam o atendimento aos órfãos, encarce-
das respectivas dioceses a formação de confrarias destinadas ao Santíssi- rados, alienados, doentes e pobres envergonhados. Este o propósito da
mo. Aplicada no século XVI, a medida fez com que as irmandades desta Santa Casa da Misericórdia, aquele os das irmandades de negros. A pri-
evocação se espalhassem como pólen, fertilizando toda a área do Vale do meira uma confraria régia, avançada nos anos, gerenciada pela nata da
Douro, onde a Festa do Corpo de Deus, como se sabe, era um grande acon- fidalguia portuguesa e que construiu uma rede institucional ligando a
tecimento. A segunda, impulsionada com o "nascimento do Purgatório"8 metrópole às colónias12, a segunda uma confraria composta por escravos,
no duzentos, já se encontrava enraizada em solo português, quando a a camada mais desfavorecida da população e para a qual convergia a
mariolatria tomou um novo fôlego e projetou Nossa Senhora da Conceição pecha de "raça infecta".
como padroeira de Portugal, em 1641, no reinado de D. João IV9. Plural e obediente a motivações diversas 13 , o quadro das associações
A geografia da piedade popular portuguesa contava, na Época
Moderna, com variações regionais. O inquérito dirigido aos párocos pela 10 Os dados resultam da sondagem realizada por Pedro Penteado. Cf. PENTEADO, Pedro,
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, em 1758, assevera o dito. op. cif., pp. 21-26.
Sabe-se que Lisboa, Alcobaça, Gaia e Fundão apresentavam padrões 11 A associação entre Nossa Senhora do Rosário e a libertação de escravos negros e
devocionais distintos, em meados do século XVIII. Dentre as três primei- demais cativos alastrou-se ainda no século XVI. Em 7 de Outubro de 1517, travou-se a
ras cidades, todas situadas na faixa litorânea portuguesa, apenas na capi- batalha naval de Lepanto, que opôs uma armada cristã a uma forte armada turca. A
vitória dos cristãos, que estavam em desvantagem, foi atribuída à Senhora do Rosário.
tal as confrarias dedicadas a Nossa Senhora superavam com uma peque- A derrota turca permitiu que centenas de cristãos que estavam nas mãos do inimigo
fossem libertados. Cf. "Mística da Confraria do Rosário de S. Benedito no Porto (séc.
XVIII)". Actas do Colóquio Internacional Piedade Popular - Sociabilidades, Repre-
irmandades erigidas à volta daqueles oragos. Portanto, elimina de sua análise os cultos sentações, Espiritualidades. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa-Terramar, 1999,
organizados, pautados por um compromisso, responsáveis pelo enraizamento das devo- pp. 133-145.
ções na tradição popular. Cf. Idem, ibidem, pp. 9-10".
12 BOXER, C. R. O Império Marítimo Português 1415-1825. Lisboa: Edições Setenta, 1992,
8 Segundo Jacques Lê Goff, o Purgatório instala-se no sistema de crenças dos cristãos pp. 267-289. l.1 edição 1969; SÁ, Isabel Guimarães. Quando o Rico se faz Pobre: Mise-
medievais entres os anos de 1150 e 1250. Cf. LÊ GOFF, Jacques. O Nascimento do ricórdias, Caridade e Poder no Império Português, 1500-1800. Lisboa: Comissão
Purgatório. Lisboa: Ed. Estampa, 1993, pp. 15-29. Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp. 89-113.
9 MARQUES, João Francisco Marques. "A tutela do sagrado: a protecção sobrenatural dos 13 Já se tentou elaborar uma tipologia para as irmandades portuguesas da Era Moderna
santos padroeiros no período da Restauração", in BETHENCOURT, Francisco & CURTO, com base na tipologia criada por Maurice Agullon para a Antiga Provença e com base
Diogo Ramada. A Memória da Nação. Lisboa: Sá da Costa, 1991, pp. 272-275. no quadro traçado por Jesus Pereira, para o contexto madrileno. A classificação das
168 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 169

fraternais portuguesas incluía ainda as irmandades destinadas ao resgate tampouco por conta da legião de oficiais mecânicos que sustentavam seu
de cristãos brancos cativos e aquelas vinculadas às corporações de ofí- andor nas procissões de Lisboa, e sim porque assim chamava-se o rei que
cio14. Semelhante ao contexto madrileno setecentista, as confrarias lusas restituiu sua fundação, depois dos restos do lindo prédio erguido por
tinham como denominador comum a função assistência! aos seus inte- D. Manuel terem deixado o Rossio despido de sua beleza. Foi, portanto,
grantes. Porém, amparadas pela teorização eclesiástica da caridade e da na colina de Santana, ao abrigo das instalações do Colégio dos Jesuítas
assistência social, utilizavam-se frequentemente de "uma linguagem e de de Santo-Antão-o-Novo, construção transformada em unidade hospitalar
uma estética sacralizadas"15 para auferir outros interesses, ora para res- depois da expulsão desta ordem religiosa, em 1759, que os irmãos de
ponder ao anseio de liberdade, ora para viabilizar o acúmulo de capital Jorge refizeram os estatutos da confraria.
simbólico, ora para obter o cumprimento das leis do ofício. A mesa da irmandade não convocou os quase oitocentos oficiais
As normas da irmandade de São Jorge em Lisboa afiançam o dito. para redigir as lembranças do tempo transcorrido e para definir os termos
Mais severas e excludentes do que quaisquer dos itens que regulavam a que regeriam o tempo futuro. Apenas trinta e três irmãos estiveram pre-
bandeira dos homens de ferro e fogo, as regras definidas pelos irmãos de sentes à sessão, deliberando sobre os critérios de admissão na irmandade
São Jorge fizeram do Compromisso de sua confraria um pequeno mapa e estabelecendo as funções de cada membro de sua mesa espiritual.
do tempo. Um portal que, uma vez atravessado, leva o observador além Somente estes registrariam seus nomes no Compromisso. Mas, nem por
das tendas e dos afazeres que construíram as culturas de ofício na Lisboa isso, o manuscrito deixaria de ser um tributo a São Jorge. Haveria de ser
do período moderno. uma jóia, feita com zelo para os oficiais mecânicos, como muitas das que
foram ornadas para os monarcas portugueses.
O nome do artista se desconhece. Possivelmente um dentre os tantos
1. O compromisso dos irmãos de São Jorge
herdeiros de mestre Diogo, pintor que no quinhentos arrogou-se o direito
de adentrar no domínio das artes liberais. Graças ao seu esmero, a prova
15 de Agosto de 1782. Estes, o dia, o mês e o ano em que os oficiais
maior da devoção a São Jorge, entre os mesteirais, seguiria pelos séculos
da irmandade de São Jorge reuniram-se a portas fechadas para reescrever
como um pequeno monumento. Mesmo o tempo foi caprichoso. Amare-
com tinta o pacto de entreajuda que ligava os homens da corporação.
lou sem exageros os oitenta e sete fólios do manuscrito, sem que as traças
Como nos velhos tempos, a reunião foi no Hospital Real que, após ter
e os bichos de papel dessem conta de corroer o texto e colorido das ilu-
ardido no fatídico incêndio de 1750 e depois de ter sido destroçado pelo
minuras. No frontispício, anjinhos, uma cruz e flores emolduram um arco
terremoto, passou a denominar-se de São José16. Não por causa do santo
cor-de-rosa, onde se lê o longo título escrito em dourado:
carpinteiro, bastião do discurso tridentino em prol do matrimónio, nem
Reformação do Antigo Compromisso da Irmandade do Glorioso Martyr
associações em "confrarias-instituição", "confrarias-associação", "chappelles-patro-
nales" e "fabriqueiras", proposta por Agullon, foi conjugada àquela criada por Pereira, S. Jorge. Sita na Igreja do Hospital Real de S. Joze desta corte. Fundado
que compreende cinco tipos de confrarias para a cidade espanhola no século XVIII: as nas Provizões e Alvarás dos Senhores Reys deste Reyno e aprovada pelo
penitentes, as profissionais, as assistenciais gerais, as assistenciais especializadas e as Illustrissimo Prelado da Diocesi. O qual compromisso se queimou no in-
picaras. Em termos gerais, a segunda proposta parece mais apropriada. Mas a ausência cêndio próximo ao terremoto do I de Novembro de 1755. Novamente
de um levantamento sistemático das irmandades portuguesas na Era Moderna só auto- acrescentado e confirmado pelo Em.mo. Sr. Cardial D. Fernando da
riza uma aproximação. Por isso, não se adotou aqui a proposta de Maria Alexandre Silva. Patriarcha de Lisboa. Em o Anno de 1782. (v. figura 2).
Lousada. Cf. LOUSADA, Maria Alexandre. "Espaço Urbano, Sociabilidades e Confra-
rias", in Lisboa nos Finais do Antigo Regime. Ibidem, pp. 537-558.
14 Realizada por Franz-Paul Langhans e publicada em 1946, a compilação de documentos
Em contraste com os tipos gráficos usados como instrumento para a
relativos às corporações de ofício de Lisboa continua sendo, ainda hoje, a única refe- difusão de informações nas mais diversas matérias - legislativas, religio-
rência sobre as irmandades formadas a partir das corporações de ofício lisboetas. sas, literárias, "científicas", o manuscrito dos irmãos de São Jorge era um
Como já se sublinhou, oportunamente, este material não trata das irmandades e sim das livro-arte. Artefato comum às culturas de ofício que integravam a bandei-
bandeiras.
ra do santo em Lisboa e um monólito em devoção ao padroeiro portu-
15 Jesus Pereira apud LOUSADA, Maria Alexandre. "Esapaço Urbano...", p. 548. guês. Concebido para serventia de seus filiados, seus estatutos não eram
16 MOITA, Irisai vá. V Centenário do Hospital de Todos os Santos. Lisboa: Ed. Clube do
de domínio público, tal e qual os compromissos que regulavam a atuação
Coleccionador dos Correios, 1992, p. 46.
das confrarias responsáveis pela administração de hospitais e demais
170 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 171

casas de acolhimento, como a Santa Casa da Misericórdia17. Redigido rico, os oficiais abriam o Compromisso agradecendo-lhe as bênçãos e a
para a irmandade de São Jorge por seus próprios integrantes, o documen- própria vida (v. figura 3). O Reino soubera-lhe oferecer desde sempre os
to não conheceu qualquer versão impressa. Mas é, como quaisquer de "maiores aplausos", mas "o gloriozissimo Mártir" (fl. 6) merecia outros
seus congéneres escritos à época, uma prova do papel desempenhado pelas tantos. Afinal, "quem havia de dizer" que seu amparo livraria da catástro-
irmandades na formação das redes de solidariedade e sociabilidade e um fe justo os "mais firmes no zelo e contínuos na devoção"? Fora mesmo o
testemunho da observância dos irmãos de São Jorge ao direito canónico18. "amante valor de Jorge" - afirmavam os irmãos - que, diante de tanto
Composto no dia da Senhora de Agosto, exatamente trezentos e extremo, aumentara em auxílios aos seus mais fiéis discípulos para faze-
noventa e oito anos após a redação dos Estatutos em prol da vitória de rem o novo compromisso. Assim como Deus poupara a Noé para que o
Aljubarrota, o manuscrito dos irmãos de São Jorge seguia, assim como os mundo não desconhecesse a glória que Nosso Senhor havia obrado antes
compromissos das associações fraternais coevas, o modelo prescrito pela do dilúvio, assim como escolhera a um justo para dele dar notícia, tam-
Igreja. Continha os dados hagiográfícos de seu orago, o dia de sua festa, bém o santo mantivera-lhes a vida para que escapassem ao "espantavel
a forma e condução da eleição dos oficiais da mesa, as obrigações das Terramoto" e ali pudessem estar para resguardar seu culto e para contar o
missas a serem rezadas, os exercícios espirituais dos mordomos e confra- que viram, ouviram e as circunstâncias em que a memória da irmandade
des e as esmolas previstas. Distribuídas por seus trinta e cinco capítulos, se perdera.
às obrigações para servir na Casa de Jorge sucediam ainda vinte e dois O sismo fora de fato terrível, confidenciavam os devotos. Mais
outros capítulos que compunham os Estatutos Gerais. Pois, como se sabe, pareceu "um estrago da redondeza do que effeitos naturaes". Ao abalo
tratava-se de uma irmandade formada pelos homens da bandeira de ferro sobrevieram uma força e uma chama vulcânicas, que fizeram Lisboa alvo
e fogo e cujas leis - nunca é demais lembrar - orquestravam suas vidas de "num Ethna em chamas" (fl. 6v) e presa de "hum Vizuvio nos estron-
dentro e fora das tendas. dos". Condoídos com o desastre, os irmãos expiravam um lamento apai-
Foram, porém, para São Jorge, motivo de veneração, as primeiras xonado, que não seria estranho a Frei Nicolau de Oliveira se vivo esti-
palavras e os "obzequiozos júbilos" dos irmãos19. À moda de um panegí- vesse. O cataclismo - diziam - abatera "a mais perfeita joya da Europa
aonde padeceo o coração desta sempre luzida Esphera que tendo por
17 A primeira impressão do Compromisso da Misericórdia de Lisboa data do ano de Titulo o chamarse mostrava no mesmo nome a grandeza de sua fama"
1516. Seguem-se outras reimpressões nos anos de 1600, 1619, 1640, 1645,1662, 1674, (idem).
1704, 1739, 1745, 1749,1755 e 1818. As reedições correspondem ao redimensionamento Longa e rebuscada, como o fraseado na voz dos pregadores inacia-
dos serviços prestados pela instituição. Cf. OOODOLPHIM, Costa. As Misericórdias.
Lisboa: Livros Horizonte, 1998, pp. 30-32. I.' edição 1897; ESCOCARD, Marta Tava- nos, quando também era seu o reino das letras português, a sentença dos
res. Justiça e Caridade: a produção social dos infratores pobres em Portugal - sécu- irmãos atestava que o centro cardíaco da urbe, o Rossio, fora palco do
los XIV ao XVlll. Universidade Federal Fluminense - Tese de Doutorado. Niterói, incompreensível. "Tão incomparável fogo" servia mais à "memória para
2000, p. 176. contemplar do que ao entendimento para discutir" (idem). Levara de vez
18 Desde o Concílio d' Aries (1234), a fundação das confrarias tornou-se um assunto de
a Casa, o retraio, os bens e o antigo compromisso da irmandade do "glo-
jurisdição episcopal, ficando sua fundação limitada ao consentimento dos bispos. Em
1604, o papa Clemente VIII regulamentou a instituição das irmandades, condicionando
riozissimo Mártir São Jorge". Entretanto, - criam os irmãos - Deus quis
aquele à apresentação dos estatutos para exame e aprovação. A interferência na forma- que sobrevivesse não só um Noé, mas muitos. Exatamente "aquelles que
ção das associações de leigos completou-se em 1641, quando a Igreja proibiu que duas se lembravaõ dos estilos, e do augmento, zelo, devoção, para renascer
confrarias sob uma mesma evocação fossem criadas em um mesmo templo. A submis-
são à autoridade do bispo da diocese foi reafirmada em 1683, data em que ficava esti- Novembro de 1755. Novamente acrescentado e confirmado pelo Em.mo. Sr. Cardial
pulada a obrigatoriedade da mesa da confraria prestar contas ao bispo de sua adminis-
D. Fernando da Silva. Patriarcha de Lisboa. Em o Anno de 1782, fl. 5. Para abreviar a
tração. Cf. MONTEIRO, António Xavier de Souza. Manual de Direito Ecclesiastico multiplicação de notas com referências constantes a esta mesma fonte, doravante passo
Parochial para uso dos Parochos. Obra Extrahida das Constituições Synodaes das a indicar os respectivos fólios, no corpo do texto, entre parêntesis.
Principaes Dioceses do Reino. Annotada com a Legislação Ecclesiastica Posterior e
com a Civil e Criminal Correlativas. Coimbra: Livraria Portugueza e Extrangeira, 20 A Academia Real de História foi criada por decreto régio em 8 de Dezembro de 1720.
1874. 2." edição correcta e augmentada. pp. 555-568. A grande maioria de seus membros eram clérigos, embora a nobreza também tivesse lá
seus representantes. A despeito das variantes, sua produção caracterizou-se pela histó-
19 MBCB. Reformação do Antigo Compromisso da Irmandade do Glorioso Martyr S. Jor-
ria dos reis, das rainhas e das instituições, sobretudo, as eclesiásticas. Cf. TORGAL,
ge. Sita na Igreja do Hospital Real de S. Joze desta corte. Fundado nas Provizões e
Luís Reis. "Antes de Herculano, in TORGAL, Luís Reis et alli, História da História em
Alvarás dos Senhores Reys deste Reyno e aprovada pelo Illustrissimo Prelado da Dio-
Portugal. Sécs. X1X-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 20-23
cesi. O qual compromisso se queimou no incêndio próximo ao terremoto do I de
172 Georgina Silva dos Santos Oflcio e Sangue 173

huma nova Phenix de luzes como a que [viram] na corte no presente ano poração, salientava-se particularmente o caráter hierofãnico de seu orago
de 1756" (idem). Pois, quando acreditavam que tudo se havia esgotado e e a valência de seu poder medianeiro. Aos devotos, o que realmente
perdido, a imagem do santo, que encantara há muito com a "luzida gran- importava era sua força excedente, a força de cariz sobre-humano que
deza de sua presensa" e que a "todos cauzava novas saudades a vista", fora capaz de saturar de poder aos que lutaram pelo Reino em tempos
reapareceu entre as cinzas da destruição causando admiração, dando remotos e que lhes livrara do terremoto. Fora esta, e não outra, a razão
"novas luzes aos olhos" e mostrando "a fineza do Régio affeto" (fl. 7). pela qual São Jorge tornara-se o senhor do castelo lisboeta e, por isso, em
Relembrado como todos os acontecimentos extraordinários e incre- uma cerimónia regular, que se repetia anualmente, o santo, liderando a
díveis, passíveis de convencimento apenas se através de metáforas, o ter- comitiva dos homens de ferro e fogo, tomava posse da fortaleza de pedra,
remoto e a posterior recuperação da imagem de São Jorge foram pretexto após a procissão do Corpo de Deus. Rito que selava o pacto deproteção
para que os redatores acrescessem ao conjunto de epítetos atribuídos ao e defesa da capital portuguesa e que garantiu a São Jorge a patente de
santo outro cognome; revelando por fim quais das variantes de seu mito "capitão general".
era evocada no Compromisso. O "Gloriosíssimo Mártir", "Soberano San- A precisão histórica que lutara com São Jorge havia mais de um
to" e "Phenix de Luzes" era outrossim o "Verdadeiro Sol", que nascido milénio, desde o dia em que Pasicrato resolveu testemunhar seu martírio,
na nuvem da Capadócia mostrara ao mundo "os perfeytos rayos de [suas] era de fato menos relevante aos guardiães de seu culto em Lisboa do que
virtudes e a Lisboa [sua] grandeza" (idem). Por isso, informavam os sua natureza sagrada. Mais atentos à sua eficácia simbólica do que às cir-
irmãos, "[lhe] amarão tanto os Soberanos Monarcas deste Reyno que cunstâncias históricas de seu martírio, os irmãos demonstravam o que
com tanto empenho [lhe] oferecfiam] grandezas e tributa[vam] finezas; sabiam e o que lhes bastava conhecer: que o mártir abandonara a "lança
sendo assim as demonstraçoens dos affetos passados, e prezentes" (idem). pela palma", a "vitoria pela coroa" (fl. 8v), portanto, a categoria de sol-
À semelhança da "noticia" que acompanhava o Novo Regimento do dado romano pela condição de santo, a crença pagã pela fé cristã. Ao
Estandarte, São Jorge era o mártir da Capadócia, portador de inúmeras contrário da notícia anexa ao regimento, que se valera das fontes produ-
virtudes e o intercessor português cumulado de atenções pelos reis lusos. zidas pela cultura eclesiástica, os irmãos informavam que sua entrada na
A razão da devoção dinástica os homens de Jorge desvelavam sem par- elite dos mortos dera-se na época de Diocleciano, durante a décima per-
cimônia: o "Mártir [fora] para o Reyno hum verdadeiro Sol". Na posse de seguição aos cristãos, em 1290 [sic] (fl. 8).
seus resplendores, soube "destruir a soberba aos Bárbaros", ficando ven- O ano atribuído pelos irmãos ao martírio de São Jorge pode ter sido
cedor do Castelo. Fortaleza que tinha por "grande gloria" ser-lhe dedica- um erro de cópia. Todavia, ele em nada contradiz o histórico de um santo
da e que dela "[tomava] posse todos os annos" (fl.7v). Logo, completa- de "canonização literária", sempre pronto a ceder ao rigor das datas e,
vam os irmãos, "com muita razão devemos todos os Lusitanos o tervos muito por isso, capaz de sobreviver ao tempo, com a mesma vivacidade.
por nosso Protetor" (idem). Completamente supérfluo para os oficiais mecânicos, o ano exato da pai-
Mutatis mutandis, o Compromisso revelava, como também fizera o xão do mártir e o mar de sangue que lhe tingira o corpo, insistentemente
Regimento havia dezessete anos, que a devoção desperta por São Jorge descrito pelos hagiógrafos medievais, dera lugar, na descrição dos irmãos,
entre os reis e, posteriormente, entre os oficiais, pautava-se, sobretudo, à ênfase em suas virtudes santas, ao poder que lhe era inerente e às graças
pela intercessão do santo, em favor dos portugueses, nos momentos em obtidas mediante sua invocação. No entanto, se os gládios, os pregos e
que a Coroa deparou-se com algum confronto militar. Fiel ao episódio demais instrumentos de tortura estavam ausentes da narrativa dos irmãos,
paradigmático nos campos de Aljubarrota, o manuscrito recordava o a variante do mito que seduziu os cavaleiros na Idade Média, que trans-
auxílio do santo no combate aos "bárbaros" castelhanos, com nítidos tra- formou São Jorge em um grito de guerra na voz dos reis portugueses e
ços de uma memória oral. Por conseguinte, sem os pormenores inclusos fê-lo integrar a festa do Corpo de Deus, estava presente. Não em pala-
no documento que regulamentou a bandeira em 1765. vras, mas em imagem.
A versão da irmandade sobre a entronização do padroeiro no torrão Exposta após a identificação do livro, precedendo ao texto, a ilumi-
luso nada tinha do estilo alcobacense ou dos compêndios escritos pela nura que ilustra o duelo entre o santo e o dragão é, na verdade, a primeira
sexagenária Academia Real de História; embora também lá a mediação mensagem sobre o mártir, no documento (v. figura 4). É outrossim sua
dos santos integrasse a narrativa dos eruditos20. No âmbito da confraria, única representação figurativa, em toda a obra. Eliminada do regimento,
espaço de circulação exclusivo aos mestres, obreiros e aprendizes da cor- todavia, retratada onde os irmãos abordavam os assuntos da mesa espiri-
174 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 175

tual, a estampa sintetiza o que os vocábulos não disseram com todas as to, simula os movimentos bruscos exigidos no combate, que, ao esgotar-
letras. Mas a cena, seus elementos decorativos e os atributos físicos do -se em si mesmo, congela no tempo seu "significado intrínseco": a metá-
santo, ou seja, os "temas primário e secundário" da imagem21, indicam fora da coragem sobre o medo, da fé cristã sobre o paganismo, dos
que se trata de uma leitura particular de sua legenda, uma leitura adapta- portugueses sobre os "bárbaros".
da pelo mundo das artes mecânicas em solo lisboeta. Síntese da variante do mito que deu à Batalha de Aljubarrota con-
Ocupando todo o espaço da iluminura, sem abusar das cores, sem tornos de lenda e que ajudou a perpetuar a memória de seu líder como
outras personagens animadas para disputar a atenção, a refrega entre São um rei guerreiro e vitorioso e, adiante, a dinastia de Avis como uma
Jorge e o dragão, à maneira dos homens de ferro e fogo, traz o santo em dinastia civilizadora e colonizadora, a iluminura que integra o Compro-
vestes de soldado, sob um garboso cavalo, que, sem dó nem pena, finca misso da irmandade de São Jorge concentra apenas os ingredientes da
na "garganta" da fera, quase tão grande quanto sua montaria, uma imensa legenda que tinham morada entre os oficiais de ferro e fogo. A saber: o
lança. O embate parece ter sido travado mesmo no reino dos homens, estatuto de nobre do herói santo, o perfil de defensor da fé cristã encar-
onde uma construção, situada à distância, indica a presença de uma vila. nado pelo mártir e a vitória do santo militar sobre o dragão.
Mas está longe o suficiente para que o espectador se dê conta de que não Despida das outras personagens que compõe o texto de Jacopo de
há nenhuma outra criatura por perto, nenhum auxílio. Nem mesmo uma Varazze, a versão dos irmãos estampada no manuscrito e narrada no
princesa para admirá-lo e felicitar-se com a façanha. Compromisso era, com efeito, o fruto de um longo processo de filtragem
Com o "addómem" sobre o chão e o "pescoço" voltado para São e manipulação do mito que, ao atravessar circuitos culturais distintos,
Jorge, o monstro tem o corpo contorcido. Apoia-se como pode sobre suas assumiu colorações diferentes em cada um dos segmentos sociais que
imensas garras e suas asas, embora ensaiem algum movimento, estão dele se apropriaram.
imóveis com a estocada. Sua fuça lembra a de um cão, o rabo parece uma Uma vez fixado no suporte escrito com o propósito de justificar a
cobra. É medonho, como quaisquer dos monstros que povoaram o imagi- devoção ao mártir, o mito de São Jorge fora contado e recontado pelos
nário medieval. Híbrido, é um ser alado, meio réptil, meio canino e não hagiógrafos ao gosto dos padrões de santidade vigentes e construído com
esboça qualquer parentesco com os bons presságios da fada Melusina. os valores inerentes à cultura eclesiástica, portanto, atento às mortifíca-
Com olhos e narinas bem abertos e a "cabeça" inclinada, entretanto, não ções da carne e ao seu caráter edificante. Entretanto, ao ser disseminado
esconde o espanto: fora abatido. pela cultura cavalheiresca, os guerreiros, seus porta-vozes, acentuaram
Apesar da posição vantajosa, o corcel também tem a vista esbuga- particularmente a feição militar do santo e suas acrobacias de soldado
lhada. O ginete tem suas duas patas dianteiras erguidas. Exibe saúde, valoroso para vencer o dragão. Recorde-se que Nun' Álvares, seguindo o
uma crina farta, arranjada com cuidado. É decerto o cavalo de um nobre, exemplo do rei da Legenda Áurea, prometeu ao santo a construção de
ainda que sejam simples seus arreios. As expressões dos animais, o real e uma ermida com sua evocação, para que abatesse o monstro que lhe
o fantástico, denunciam: trata-se de uma grande peleja. A despeito do ameaçava a cidade: o inimigo castelhano.
perigo, São Jorge demonstra confiança. Tem o semblante firme, os olhos Embora em diálogo com essas duas fontes de expressão religiosa,
baixos, atentos ao golpe. Está vestido como um militar. Porém, não como aos oficiais mecânicos, senhores de uma cultura de oficio calcada em
um centurião romano ou como um cavaleiro medieval. Sem armadura, saberes técnicos, que lhes exigia um controle pragmático das horas para
tem as botas, o elmo e uma malha que em tudo recordam as vestimentas administração de tarefas e entrega de encomendas, o número de lâminas
dos soldados portugueses à época da colonização. No braço esquerdo, que supostamente feriram São Jorge ou as lágrimas da princesa eram irre-
porta um escudo, arma de defesa, onde se vê uma grande cruz ao centro. levantes. O que lhes falava ao coração eram os desfechos das narrativas
Sua capa, suspensa como se um vento forte também testemunhasse o fei- sobre o mártir, o resultado de suas ações, isto é, sua obra.
Tal e qual os processos de canonização, espécie de arena onde se
21 Procede-se aqui à descrição iconográfica e à leitura iconológica desta representação de
confrontavam a solicitação dos fiéis e as exigências eclesiásticas, onde se
São Jorge, segundo o modelo proposto por Erwin Panofsky. Portanto, considerando defrontavam as crenças dos devotos e o padrão de santidade da Igreja22,
três etapas distintas de interpretação: a descrição pré-iconográfica (tema primário), a
análise iconográfica (tema secundário ou convencional) e a interpretação iconológica
(significado intrínseco ou conteúdo) da imagem. Cf. PANOFSKY, Erwin. Significado 22 VAUCHEZ, André. Sainthood in lhe Later Middle Age. Cambridge: Cambridge Univer-
nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991, pp. 47-87. sity Press, 1997, pp. 36-37.
176 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 177

o Compromisso da irmandade revelava os elementos que estimulavam a sendo a "primeira" a usar de "Cruz e Estandarte" nas cerimónias públi-
veneração a esta entidade católica, por seu corpo de associados. Contudo, cas, exibindo o símbolo tanto nas ocasiões em que o "corpo sahia pela
sem ser a cópia fiel das narrativas hagiográficas compostas pelos profis- Cidade na função de Corpus Christi", quanto nos momentos em que par-
sionais da fé católica, sua versão dizia mais de quem as (re)construía do ticipava do pio auto do Santo Officio. Esta uma prática iniciada desde
que propriamente do objeto de culto. que este se "erigio no Reyno" (fl. 7v).
A importância atribuída pelos irmãos de São Jorge aos efeitos de seu Dizendo-se "hum só na devoção ", porém, dividido desde o século
poder sobrenatural, às conquistas temporais obtidas mediante sua inter- XVI em dois corpos, "hum de Bandeyra [e] outro de irmandade" (fl. 7v),
cessão, ficou patenteada no destaque à fabulosa vitória sobre o dragão e os oficiais de ferro e fogo externavam com orgulho a primazia sobre as
no acento dado ao "ano" de sua morte, à sua entrada na corte celeste. outras corporações de ofício e sobre as outras congregações fraternais
Naturalmente, não se pode dizer que se trate de uma leitura antagónica lisboetas. A confraria fora a primeira a carregar no estandarte o sinal do
aos preceitos católicos. Mas a adaptação de sua imagem declara a elimi- redentor na festa da eucaristia e era a única irmandade, dentre aquelas
nação de um conjunto de artifícios que se mostravam necessários para a formadas a partir de uma associação de ofício, a participar da cerimónia
afirmação da santidade de alguém aos olhos da Igreja e diferia de outras promovida e organizada pela Inquisição de Lisboa, onde os réus, acusa-
representações pictóricas de São Jorge. dos por crimes religiosos, tinham suas penas lidas em público, antes de
Tema que inspirou inúmeras telas e gravuras desde a Idade Média, o serem relaxados ao braço secular. Se aquela precedência justificava-se
embate entre o santo e o dragão grassou pelo Ocidente desde a Idade pela intervenção do santo a favor da vitória portuguesa no embate contra
Média. Recebeu as atenções de Pisanello (1437), Carpaccio (1502-1507), o dragão castelhano, esta justificava-se por ser o padroeiro um mártir
Rafael (c. 1506), Paolo Uccelo (c. 1439-1440), Tintoreto (1550-1560) "defensor da fé" (fls. 52-53).
Rubens (1629-1630)23 e um sem-número de pintores, nem tão célebres, Partícipes das duas solenidades religiosas mais importantes da capi-
nem tão famosos, que, exatamente como o iluminador do manuscrito, tal do reino e em ambas com uma função simbólica definida no circuito
emprestaram seu talento para dar rosto e corpo ao herói e à fera. Quando de espetáculos criados pela Igreja e pelo Estado portugueses, os irmãos
a façanha foi retratada pelo artista, a pedido dos irmãos da confraria do reafirmavam no Compromisso que sua atuação na vida pública da cidade
santo em Lisboa, o tema já era popularíssimo no campo europeu das artes ultrapassava os limites da Casa dos Vinte e Quatro. O colégio dos meste-
plásticas. No entanto, ao contrário das demais representações, fiéis ao res não lhes deixava esquecer que se tratavam de oficiais mecânicos, mas
enredo do bispo de Génova, a versão do manuscrito não comportava a as solenidades religiosas a que estavam ligados suprimiam-lhes o peso de
figura da princesa, nem se propunha a retratar a recepção calorosa que os sua origem humilde. Viventes em uma sociedade profundamente hierar-
habitantes da vila ofereceram a São Jorge, após a morte do animal peço- quizada, assentada sobre privilégios e brasões e calcada no clientelismo,
nhento. Restringia-se ao episódio da contenda entre o santo e o monstro, os barbeiros e demais ofícios anexos da bandeira de São Jorge cultuavam
todavia destacava outros elementos figurativos, nem sempre imprescin- ao santo com "zelo e devoção", porque tratavam-no como um "patrimó-
díveis à imagem do mártir em outros quadros. nio simbólico" capaz de adensar-lhes um prestígio social que as habilida-
Disposta exatamente no centro da tela, no centro do escudo, a cruz, des com o ferro e o fogo não imputavam.
símbolo da redenção cristã, identificava o protetor e defensor dos lusita- Saiba-se, porém, que por isto e aquilo a irmandade de São Jorge não
nos, mas também a irmandade (v. figura 5). Segundo os irmãos, o estan- era exatamente um mundo à parte, isento de clivagens sociais e uma
darte de São Jorge fora o primeiro do reino a usar a "Santíssima Cruz". A permanente assembleia de cristãos que se reconheciam como iguais. Há
prática iniciara-se ainda no princípio da devoção, ao tempo em que o cul- que se lembrar de que era formada pela cabeça e o corpo de uma bandei-
to era administrado pelo Corpo de Ofícios em uma só confraria, "toda ra, por ofícios mais e menos afamados. Tanto assim que nem todos iam
junta e sem differença" (fl. 8). Quando os oficiais formaram a associação ao auto-de-fé. O Compromisso era claro neste aspecto. Apenas vinte e
confraternal, no ano de 1558, a irmandade carregou consigo o atributo, quatro irmãos seletos participavam do ato público promovido pelo Santo
Ofício, no Terreiro do Paço ou na igreja de São Domingos (fl. 53). O cri-
23 O inventário, se não completo pelo menos significativo, das pinturas e esculturas que tério utilizado para permitir a participação? Somente as exigências reque-
têm São Jorge como tema encontra-se no estudo iconológico realizado por Georges ridas aos que desejavam ingressar na confraria e a identidade dos irmãos
Didi-Huberman. Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges et alli. Saint Georges et lê Dragon -
versions d'une légende. Paris: Adam Biro, 1994.
permitiriam saber.
178 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 179

1.1. Favas pretas e favas brancas: os critérios de admissão na confraria visava a absorção de gente capaz de suportar, por mais tempo,
confraria os encargos da irmandade e que oferecia, à primeira vista, mais lucros do
que despesas.
Limitados apenas àqueles que exerciam os "officios da Agregação Por outro lado, redigido quando já se contavam onze anos da Refor-
da bandeira" de São Jorge (fls. 13-14), o ingresso e a permanência na ma dos ofícios de 1771, o Compromisso buscava controlar o afluxo de
irmandade estavam condicionados a uma contribuição pecuniária, con- trabalhadores vindos de fora da capital, resguardando minimamente aos
forme a categoria do postulante. À entrada, tanto irmãos quanto confra- da terra seu espaço de atuação profissional. Com vistas a evitar a expan-
des pagavam uma taxa de 2.800 réis. Deste montante, 600 eram destina- são descontrolada de tendas e refrear a concorrência, a irmandade utiliza-
dos às despesas com o culto do santo, 800 réis eram dirigidos ao cofre da va como crivo a idade do oficial mecânico, eliminando de saída uma fatia
bandeira e os 400 restantes favoreciam os irmãos pobres e enfermos. dos migrantes ou imigrantes. Razão mais do que suficiente para explicar
Entretanto, os que ingressavam na categoria de irmãos deveriam honrar a a recusa das luvas de 2.800 réis aos maiores de 40 anos.
quota anual de 360 réis, para cobrir as missas que a irmandade mandava Os pré-requisitos para o ingresso no seleto grupo de irmãos de São
fazer a cada ano, em intenção das almas dos irmãos falecidos e de suas Jorge não se restringiam, todavia, a um certo número de aniversários. Às
mulheres defuntas. Os confrades pagavam anualmente apenas 120 réis. O pessoas que pretendessem incorporar-se à irmandade exigia-se que fos-
valor visava a cobertura dos gastos cotidianos com a capela e as missas sem "de boa vida, e costumes", que não tivessem cometido "crime de
rezadas, para os irmãos e confrades vivos e defuntos. lesa majestade Divina ou humana" e que não tivessem sido sentenciadas
Extensiva às famílias dos homens de ferro e fogo, a entrada no corpo ou condenadas. As escusas estendiam-se até a terceira geração, portanto,
da irmandade estava sujeita ao pagamento das quantias estipuladas, mas incluíam seus pais e avós, e aplicavam-se também às consortes e esposas
não se restringia apenas a isso. Balizava-se também na "qualidade das que apresentassem "os sobreditos defeitos" (fls. 14v-15).
ditas pessoas a serem admitidas" (fls. 13-14), na idade de cada homem e Deste modo, para efeito de uma posterior averiguação, os estatutos da
em seu estado civil. Assim, tendo garantidos os cuidados post mortem ao irmandade previam que o pretendente deveria encaminhar à Mesa da con-
ingressarem na confraria, as esposas dos oficiais continuavam a mantê- fraria uma petição, declarando nela o seu nome e, se casado fosse, o de sua
-los quando viúvas. Contudo, se contraíssem matrimónio com outro mulher. E ainda: o ofício que usava, a rua, a freguesia, as terras de onde
homem estranho a quaisquer dos mesteres da agregação, estavam auto- um ou ambos eram naturais, as freguesias onde haviam sido batizados, os
maticamente desligadas da associação. Por sua vez, aqueles que tencio- nomes dos avós paternos e maternos, suas ocupações e as terras onde estes
nassem entrar na irmandade tendo acima de quarenta anos teriam seu eram "assistentes ou naturaes". Por fim, se eram "Familiares do Santo
pedido para incorporação apreciado pela Mesa. Officio oufilhos delles, ou de Irmãos desta nossa irmandade" (fl. 15v)26.
Uma vez configurada como uma congregação de fins religiosos, a Submetidos a um verdadeiro inquérito, os candidatos a ingressar na
irmandade do santo padroeiro previa o bem-estar dos irmãos no além- Casa de São Jorge estavam sujeitos exatamente às mesmas diligências dos
-túmulo e o socorro aos irmãos enfermos ou empobrecidos, como qual- postulantes ao cargo de familiar do Santo Ofício. Tanto assim que os ofi-
quer outra. No entanto, como a adesão à confraria era condição sine qua ciais mecânicos habilitados por este tribunal que comprovassem, "por
non para entrar no corpo de ofícios do estandarte, desde o alvará régio de informação verdadeira" (fl. 16v), a pertença à instituição, estavam dispen-
165424, a triagem que orientava sua admissão ligava-se também ao perfil sados de prestar tais informações. O mesmo se passava com aqueles cujos
que atendia aos interesses da bandeira. pais já estavam na irmandade e que já haviam, portanto, respondido à sin-
Ao contrário das cláusulas que regiam o atendimento aos pobres nos dicância. O procedimento utilizado para admissão dos irmãos de São Jorge
hospitais medievais portugueses, onde se privilegiava as pessoas doentes não só declarava que alguns de seus membros eram familiares da Inquisi-
e de idade avançada que procuravam um lugar para aguardar a morte25, a ção portuguesa e, por isso, haviam introduzido na irmandade seu modelo
de gerência, como demonstrava que as práticas utilizadas por este tribunal
24 Este alvará, como os demais, foi anexado ao Compromisso e acompanha o regimento religioso para formar os seus quadros funcionais haviam sido inteiramente
da bandeira depositado na Câmara. Cf. Capítulo II. assimiladas pela associação confraternal dos homens de ferro e fogo.
25 SANTOS, Georgina Silva dos. A Senhora do Paço - o papel da rainha na construção
da identidade nacional portuguesa - 1282-1517. Niterói, 1995. Dissertação de Mes-
trado - Universidade Federal Fluminense, p. 205. 26 O grifo é meu.
180 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 181

Estabelecida pela Coroa lusa em 1536, a Inquisição portuguesa era tribunal definiu exatamente sua estrutura como um organismo autónomo,
uma reedição da instituição criada em 1231, pela Cúria Romana, para apropriando-se de todos os casos antes destinados ao exame do inquisi-
reprimir a expressão religiosa daqueles que não professavam o credo dor-geral (comutação de penas, cauções, apelações) e adotando medidas
católico. Confiada na Idade Média às Ordens Mendicantes, particular- que caracterizariam seu papel disciplinador, como o índex de livros28.
mente aos dominicanos, a Inquisição definiu seu campo de ação no com- Produzidos ao longo de cinqUenta anos, estes três regulamentos
bate às heresias, transformando em crime práticas estranhas à doutrina balizaram todo o processo de estabelecimento e consolidação da Inquisi-
católica e utilizando a tortura como instrumento para a averiguação dos ção portuguesa. Contudo, em pouco tempo, o acúmulo das experiências
supostos culpados. Embora impotente diante dos movimentos reformistas burocráticas e jurídicas desta primeira fase de atuação reclamou a reda-
dos séculos XIV e XV, o tribunal religioso foi reativado na Era Moderna ção de outra carta regimental. Impresso em 1613, o novo regimento des-
pelas mãos dos Reis Católicos de Espanha, em nome da defesa do catoli- tinava-se aos seus quadros internos e destacava em pormenores a impor-
cismo, e mostrou-se um meio eficaz na captação de recursos para os tância do segredo nos assuntos do tribunal, as normas de conduta de seus
cofres do Estado, por confiscar os bens e as posses dos acusados. oficiais e especificava, face à classificação dos crimes e das etnias, o
Instaurado em Portugal no reinado de D. João III, à guisa da mesma encaminhamento para a resolução dos processos, além de definir clara-
justificativa usada por seu vizinho ibérico, o Santo Ofício esteve durante mente o perfil requerido ao corpo de oficiais e os trâmites legais para a
toda a sua existência subordinado ao poder central e desempenhou um obtenção dos cargos da instituição. Dependente da averiguação de suas
papel crucial na composição dos poderes do Antigo Regime. Isento de provas genealógicas, a concessão da provisão a um candidato para o
qualquer interferência episcopal e com jurisdição exclusiva sobre as acu- exercício de quaisquer das funções do tribunal era conferida apenas àque-
sações de judaísmo, islamismo, protestantismo, sodomia, bigamia, bruxa- les que não contassem entre seus ancestrais com "raça de mouro, judeu,
ria, feitiçaria e outras apostasias27, o tribunal regulou-se inicialmente nem gente novamente convertida na Fé"29.
pelas normas de seu congénere espanhol. Porém, não tardou para que Em vigência durante vinte e oito anos, as primeiras normas impres-
produzisse seus próprios regulamentos, definindo a atuação de seu estado sas do tribunal orientaram o recrutamento dos funcionários inquisitoriais
eclesiástico e de seu staff de oficiais leigos. Aquele composto em sua por critérios étnicos, sem disfarçar a ideologia racista e excludente que
maioria por licenciados em Direito Canónico e que ocupavam os cargos também presidia a suas ações junto aos réus indiciados. Todavia, em res-
de inquisidor, deputado, comissário, qualificador e notário. Este formado posta à própria evolução da organização institucional, este regulamento
por profissionais das artes liberais e das artes mecânicas que desempe- foi substituído em 1640 por um segundo regimento impresso, que refina-
nhavam as funções de promotor, procurador, médico, cirurgião, barbeiro, va os métodos da atuação persecutória da Inquisição e discriminava com
meirinho, alcaide, guarda, despenseiro, porteiro, solicitador e familiar. exatidão deveres e limites de seus oficiais. Para além de uma tipologia de
Formuladas em 1541, 1552 e 1570, as primeiras normas da Inquisi- culpas e penas, do reforço à figura do inquisidor-geral e do Conselho
ção portuguesa circularam em cópias manuscritas e passaram de cartas Geral da instituição, o regimento determinava ainda a concepção e o pro-
avulsas a regulamentos sistematizados. A dependência da assinatura do cedimento durante os ritos inquisitoriais, a etiqueta durante as sessões
inquisidor-geral para a aprovação das diretrizes assumidas pela institui- públicas e privadas e inseria, pela primeira vez, um título específico para
ção, a estrutura ainda incipiente dos tribunais locais e o veto do papa ao os familiares. A estes oficiais a instituição exigia que fossem "pessoas de
uso do segredo na condução dos processos de cada réu estiveram em bom procedimento, & de confiança, & capacidade conhecida: [com]
vigência até 1552, mas cederam lugar, a partir desta data, a uma organi- fazenda de que [pudessem] viver abastadamente & naturaes do Reyno
zação administrativa mais complexa. Neste ano, o tribunal não só deter- Christãos Velhos de limpo sangue, sem raça de judeu, mouro ou gente
minou a regularidade das visitas dos inquisidores aos respectivos distri- novamente convertida a nossa santa Fé & sem fama em contrário; que
tos, como introduziu, sorrateiramente, a prática do segredo nas etapas de não [tivessem] encorrido em alguma infâmia publica ou de direito, nem
instrução dos processos e normatizou os ritos de punição. Entretanto,
somente em 1570, com a redação do Regimento do Conselho Geral, o 28 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições - Portugal, Espanha e Itália.
Lisboa: Circulo de Leitores, 1994, pp. 40-42.
29 CALAINHO, Daniela Buono. Em Nome do Santo Ofício -familiares da Inquisição Por-
27 BOXER, C. R. O Império Marítimo Português (1415-1825). Lisboa: Edições Setenta, tuguesa no Brasil Colonial. Rio de Janeiro, 1992. Dissertação de Mestrado - Universi-
1992, pp. 261-262. dade Federal do Rio de Janeiro, p. 29.
182 Georgina Silva dos Santos
T Ofício e Sangue 183

fossem prezos, ou penitenciados pela inquisição, nem fossem descenden- Iniciada em 1570, por ordens expressas do inquisidor-geral, cardeal
tes de pessoas, que tevessem algum dos defeitos sobreditos, [sendo] de D. Henrique, a formação desta milícia de informantes teve, entretanto,
boa vida & costumes, capazes para se lhe encarregar, qualquer negocio uma evolução vagarosa e índices de adesão que variaram no tempo, em
de importância & de segredo"30. consonância com a própria política inquisitorial. Face aos favorecimentos
Mantendo as considerações gerais que norteavam a admissão do concedidos pelo tribunal aos habilitados, nas duas primeiras centúrias de
corpo burocrático inquisitorial em 1613, o título sublinhava, outrossim, a sua vigência, a Inquisição lusa inibiu o acesso da nobreza ao cargo de
importância de uma conduta incorrupta, de uma reputação sem nódoas e familiar, para evitar que reforçasse ainda mais seus privilégios, compro-
da posse de cabedal proveniente de outras fontes de renda. Se aquele pré- metendo o poder régio. Em contrapartida, facultou a concessão do título a
-requisito justifica-se porque os familiares eram responsáveis pela mercadores, letrados e oficiais mecânicos. Embora continuasse cooptan-
apreensão e transporte dos indiciados pelo tribunal até a cadeia e porque do para a função estas categorias sociais, no século XVIII, o Santo Ofício
acompanhavam-nos na cerimónia dos autos-de-fé, esta se fundamentava passou também a receber em ordem crescente os fidalgos em suas filei-
no salário de quinhentos réis pagos pelo Santo Ofício por cada dia gasto ras. Estratégica, a mudança acompanhava a retração das atividades
nestas diligências. repressivas do tribunal e visava compensar o emagrecimento das conde-
A despeito da remuneração esporádica, sempre sujeita à execução nações que justificavam sua razão de ser, ampliando a representatividade
do serviço, os familiares constituíram uma rede de auxiliares civis que da instituição em todos os segmentos sociais33.
ligava as áreas onde viviam aos tribunais de distrito, via de regra situados Entre 1570 e 1620, data em que o ingresso dos oficiais da bandeira
em local com uma sede episcopal importante31, porque recebiam com- de São Jorge na Casa dos Vinte e Quatro passou a regular-se pela entrada
pensações de outra natureza. Contemplados ao longo do século XVI com na irmandade, cento e setenta e quatro homens receberam cartas de fami-
a isenção de certos impostos, de obrigações comunitárias, do serviço liar em Lisboa. Deste contingente, oitenta e sete eram oficiais mecânicos
militar ou do alojamento de tropas, estes agentes inquisitoriais tinham residentes na cidade34. A considerar o número de almas em Lisboa, em
autorização para portar armas defensivas e ofensivas, usar vestuários de 1620 (150 mil), pode-se avaliar o alto grau de prestígio adquirido pelos
seda, mesmo sem serem cavaleiros, e tinham direito a jurisdição privada habilitados, sobretudo, em se tratando de mesteirais. Contribuindo para
na maior parte dos crimes e disputas judiciárias em que estivessem as funções de representação do tribunal, os familiares foram de fato per-
envolvidos32. sonagens fundamentais na "política de enraizamento" do Santo Ofício.
Não só porque permitiram a "territorialização" do tribunal, em seu senti-
do burocrático e administrativo, como salienta Francisco Bethencourt,
mas porque acabaram por reproduzir, ipsis litteris, o discurso e as práti-
30 BNL. Regimento do Santo Ofíicio da Inquisição dos Reynos de Portugal. Ordenado por cas em que estavam engajados.
Mandado do Ilm.° & Rm.° Snor Bispo Dom Francisco de Castro, Inquisidor Geral do Haja visto os irmãos de São Jorge, que tomaram para si um padrão
Conselho d' Estado de S. Magestade. Em Lisboa nos Estaus por Manuel da Sylva.
1640. Título I, parágrafo 2 e Título XXI, parágrafo 1. de averiguação da "qualidade dos oficiais" mecânicos da corporação de
31 Entre 1536 e 1539, o Tribunal do Santo Ofício funcionou sobretudo na cidade de Évo-
ofício, como se estes fossem postulantes ao cargo de familiar. Não admi-
ra, onde se achava a corte régia. Ainda neste período estendeu-se para Lisboa. Em ra, porquanto, que muitos, sabendo ou supondo não preencher as devidas
1541, foram criados mais quatro tribunais no Norte e no centro do território, situados, exigências, se recusassem a ingressar na irmandade. Temendo exporem-
respectivamente, no Porto, em Lamego, em Coimbra e em Tomar. Os custo de sua -se a uma averiguação que, se malfadada, dava origem a murmurações e
manutenção e as dificuldades do controle da rede burocrática promoveram um recuo e,
em 1548, apenas dois tribunais funcionavam: o de Lisboa e o de Évora. O primeiro ao preconceito, os possíveis candidatos à irmandade deram as costas à
com jurisdição sobre o Norte e o centro de Portugal e o segundo com jurisdição sobre confraria, preferindo a clandestinidade e gerando uma evasão que obri-
o Sul e o centro interior do reino (a diocese da Guarda). Em 1565, é restabelecido o gou os próprios irmãos a procurarem sucessivas intervenções régias para
tribunal de Coimbra, com jurisdição sobre o todo o Norte e a maior parte do centro
português. O tribunal de Évora conservou sua jurisdição sobre as dioceses de Évora e reafirmar o condicionante.
do Algarve, perdendo a diocese da Guarda para o tribunal de Lisboa, que passava a
deter, além da jurisdição sobre a diocese da capital, a jurisdição sobre Leiria e os terri-
tórios portugueses no Atlântico. Cf. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisi- 33 BETHENCOURT, Francisco, op. cif., pp. 52, 54, 125-126.
ções - Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, pp. 45-46. 34 Os dados são fornecidos por Francisco Bethencourt com base nos levantamentos reali-
32 CALAINHO, Daniela Buono, op. cif., pp. 31-32.
zados por José Veiga Torres, mas são resultados parciais. Cf. op. cif., p. 51.
184 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 185

Intrqjetados pelos oficiais mecânicos da Casa de São Jorge, os crité- exigência imputado ao recrutamento de seus quadros funcionais. Embora
rios de identificação e classificação cunhados pela Inquisição portuguesa eliminada formalmente da instituição, a ideologia racista e excludente
ultrapassaram, inclusive, a vida útil de suas cartas regimentais. Exata- que orientara a construção do poder inquisitorial estava tão incrustada no
mente como os regulamentos provenientes de outros órgãos administrati- cotidiano que já não lhe pertencia somente. O trabalho de dois séculos de
vos de longa duração no torrão português, os regimentos do Santo Ofício persuasão doutrinal, aliado à pedagogia do terror dos autos-de-fé, havia
sofreram alterações,, motivadas tanto pelas necessidades conjunturais deformado as relações entre judeus, mouros e cristãos. A convivência
quanto pelo aperfeiçoamento de seus quadros funcionais. Os dispositivos que marcara a vida lisboeta, em fins da Idade Média, deu lugar a uma
que regulavam a construção dos processos, as técnicas para obter a con- xenofobia, que se alastrou como erva daninha entre as gentes. De tal
fissão dos acusados e os moldes definidos em 1640, para a averiguação modo que, arrancada aqui, sobreviveu alhures, para servir outros propósi-
dos atributos de seu síqffàe funcionários, estiveram em vigor por mais de tos, como os dos oficiais mecânicos da irmandade de São Jorge.
cem anos nas terras do reino português. Mas não foram capazes de Composta em 1782, oito anos após a impressão do último regula-
sobreviver à Reforma Pombalina deflagrada em 1760. mento da Inquisição, a Reformação do Antigo Compromisso da irman-
Assim como a mão despótica do Marquês sacudiu a estrutura arcaica dade de São Jorge demonstrava que, se a cronologia dos regimentos
das corporações de ofício, ao recriar a Junta do Comércio, do mesmo inquisitoriais espelhava a ideologia de seus mentores, as alterações pro-
modo como empurrou para fora do reino os jesuítas, retirando-lhes o movidas no tribunal, no século XVIII, não correspondiam, necessaria-
monopólio da formação educacional, também incidiu drasticamente mente, a uma mudança de atitude entre todos os membros que integra-
sobre a Inquisição, secularizando o tribunal. Ao abolir a distinção entre vam a instituição. Descartando os itens da reforma inquisitorial de 1774,
cristão-velho e cristão-novo - invenção manuelina para evitar a sangria o Compromisso conservava o espírito dos regulamentos anteriores.
de capital judaico nos idos de 149635 -, ao transferir para a recém-criada
Redigido com base em uma memória oral e escrita, o manuscrito
Real Mesa-Censória a incumbência de indexar a censura dos livros, ao
não era, portanto, exatamente uma nova versão dos estatutos da confraria.
revogar os autos-de-fé e transferir as propriedades do tribunal para o
Na verdade, embora intitulado como uma reformulação, tratava-se, se
Tesouro nacional36, o primeiro-ministro de D. José esvaziou o conteúdo
não da cópia fiel, pelo menos de uma leitura muito próxima das regras
original da instituição, obrigando-a a uma reformulação.
formuladas para a Casa de São Jorge, antes do terremoto, provavelmente
Datado de 1774, o último regimento inquisitorial invalidou uma
entre os anos dos regulamentos inquisitoriais de 1613 e 1640. Tanto
série de práticas que regulavam os mecanismos de funcionamento da ins-
assim é que, mesmo após a revogação dos autos-de-fé (1761), os irmãos
tituição, desde sua infância. Suprimiu o segredo na condução processual
mantinham-no incluso entre os atos públicos a que estavam constrangi-
das denúncias, determinando que as testemunhas e as circunstâncias da
dos a participar. Do mesmo modo, continuavam a guardar segredo no
acusação fossem conhecidas pelos presos, proibiu a sentença de pena
processo de julgamento dos oficiais a serem admitidos, como fazia o
capital com base em um só depoente, desqualificou a tortura como meio
Santo Ofício frente aos acusados de crenças e comportamentos desviados
para obter as informações do réu, eliminou a inabilitação dos descenden-
e ante às diligências realizadas para a habilitação dos familiares, no auge
tes de condenados e anulou a pureza de sangue como critério para a
da instituição. O ato da entrega da petição por aqueles que pretendessem
admissão de seus funcionários37.
ingressar na irmandade era, por isso, cercado de normas protocolares.
Produto de medidas draconianas, ou melhor, pombalinas, as novas
leis que passaram a reger a Inquisição portuguesa redimensionaram os Uma vez feita a petição com os dados solicitados, o postulante deve-
seus meios para a construção de crimes e castigos e afrouxaram o grau de ria entregá-la pessoalmente à mesa da irmandade, em qualquer dos dias
de conferência. Para fazê-lo, deveria observar atentamente o estilo. Antes
de cruzar o batente da Casa de São Jorge, o solicitante deveria pedir
35 TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. "A Expulsão dos Judeus de Portugal: conjuntura
peninsular", in Revista Oceanos - Diáspora e Expansão: os judeus e os Descobrimen- licença para entrar e só então declararia suas intenções. Sendo-lhe permi-
tos portugueses. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimen- tida a entrada, deveria reverenciar, em primeiro lugar, ao santo e após
tos Portugueses, 1997, n.° 29, p. 16. fazê-lo entregaria ao irmão prefeito o requerimento. De posse da petição,
36 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal - paradoxo do Huminismo. São Paulo: Paz aceita com toda a "urbanidade" (fl. 15v), o prefeito convidar-lhe-ia para
e Terra, 1997, pp. 95-117. sentar-se à mão esquerda do tesoureiro e ali indagar-lhe-ia se não tinha
37 BETHENCOURT, Francisco, op. cit., p. 42.
dúvidas de que era de sua vontade que a mesa mandasse tirar suas infor-
186 Georgina Silva dos Santos Oflcio e Sangue 187

mações. Autorizada a averiguação pelo postulante, o prefeito mandar- mento à sessão para assinatura do termo de entrada era obrigatório, em
-Ihe-ia assinar o requerimento e, após feito o depósito de entrada, o habi- caso de impossibilidade, o habilitado deveria comunicar previamente à
litando retirar-se-ia do local. mesa o impedimento para que então se definisse outra data. A ausência a
Tendo em mãos a petição, o prefeito propunha à mesa o requerimen- mais de duas conferências seguidas resultava em uma advertência. E se,
to. Antes de votar sua aceitação, indagava, porém, se havia entre os pre- ainda assim, o oficial não comparecesse, teria sua loja fechada até que
sentes algum amigo ou inimigo do pretendente; porque, em caso afirma- assinasse o termo de irmão ou confrade, como era o costume (fl. 18).
tivo, era convidado a deixar a sala, para que mais livremente os irmãos À maneira da primeira visita, no dia de seu ingresso na irmandade, o
pudessem apreciar a solicitação. Feita a ressalva, iniciava-se a votação. irmão ou confrade habilitado deveria proceder segundo a etiqueta da
Sempre com favas brancas e favas pretas, como mandava o estilo. Em Casa. Ao ser recebido pelo apontador, que lhe instruía sobre a forma
casos de votos pretos, o prefeito refazia o escrutínio, duas, até três vezes. como deveria reverenciar a São Jorge, o irmão habilitado deveria saudar
Se ainda persistissem, de mais ou de menos, o prefeito fazia todos os ofi- o santo, antes de assentir ao convite do irmão prefeito para entrar. Este o
ciais da mesa retirarem-se da Casa do Despacho, para conhecer o motivo fazia sentar-se entre o procurador da mesa e o da irmandade e ali pergun-
da recusa em aceitar o pedido. Um a um dos irmãos declarava então em tava-lhe se tinha dúvidas quanto à observância dos estatutos da confraria.
segredo ao prefeito o seu voto. E, em caso de "duvida de pouca entidade" Se não as houvesse, diante dos presentes, prometia guardá-lo com um
(fl. 16v), resolvia a questão perante o próprio eleitor ou voltava à mesa e juramento. Jurava, então, observar as leis do compromisso, desviar-se de
o que ali se decidisse ficava "valioso". Mas em se tratando de assunto de tudo o que fosse em prejuízo da irmandade e "adquirir tudo o que [fosse]
"mayor gravidade e ponderação, tomava por sua conta fazer as averigua- para seu augmento". Prometia, outrossim, "ser humilde ao Irmão Perfei-
ções precizas sobre o cazo" (fl. 16v), consultando-se com pessoa douta. to, e a os mais Officiaes mezarios, obedecendo aos mandados da Meza
Entretanto, se o responsável pelas favas pretas não se declarasse, o voto quando [fosse] chamado" (fl. 18v).
era desconsiderado pela mesa. Em contraste com a descrição minuciosa da cerimónia de admissão,
Uma vez aceito o pedido de ingresso do postulante, dava-se início as etapas da investigação realizadas pelos "informadores" e as circuns-
ao inquérito. O levantamento da vida pregressa e presente do habilitando tâncias exatas em que ocorriam as diligências do "habilitando à irmanda-
era realizado pelos "irmãos informadores" (fl. 17) no período de até três de", o Compromisso não permite conhecer. Todavia, a preocupação em
meses (fl. 55). Quando estava pronto, o relatório das diligências era averiguar os dados declarados pelo candidato não deixa dúvidas de que
entregue ao irmão prefeito ou ao procurador da irmandade. Consideran- os irmãos tinham como fonte de referência os processos de habilitação
do-se a possibilidade de revelar "algum defeito", o resultado das averi- dos familiares do Santo Ofício. A importância do segredo, nos procedi-
guações era aberto, com cautela, pelos oficiais. Se a sondagem indicasse mentos empregados para a votação da petição do habilitando e no rece-
um parecer negativo, o levantamento biográfico do sujeito era guardado bimento do relatório emitido pelo informante, atesta que não foram ape-
em segredo pelo prefeito, porque não era conveniente torná-lo público. nas os critérios classificatórios utilizados pela Inquisição para a
Neste caso, o postulante poderia ser admitido apenas como confrade. concessão do título de familiar que haviam sido assimilados pela irman-
Todavia, em se tratando de "falta de pouca ponderação", o prefeito leva- dade. A bem da verdade, todo o modelo organizativo criado pelo tribunal
va o assunto à mesa para que se decidisse a questão, como de estilo. Isto para o recrutamento de sua milícia de apoio havia sido absorvido pelo
é, com favas brancas e favas pretas. Aqueles que, por sua vez, tivessem sistema organizativo da associação confraternal.
suas solicitações aprovadas também teriam seu inquérito exposto à mesa. O esquema sofrera, evidentemente, algumas adaptações. No Santo
Neste caso, a votação ocorria para que se pudesse lançar o número do Ofício, a candidatura para familiar gerava um processo. Em sua fase pre-
despacho da dita aprovação, devidamente assinada pelo irmão prefeito e liminar ou extrajudicial, recolhia-se o testemunho de pessoas cristãs-
demais oficiais da mesa. -velhas que conheciam o habilitando nos lugares onde ele e/ou seus ante-
A comunicação ao solicitante de sua admissão na irmandade era feita passados nasceram e/ou moravam. Somente diante de um resultado
por um "bilhete" redigido pelo secretário da mesa, no qual era-lhe avisado favorável, que confirmasse a pureza de sangue do habilitando até à ter-
o dia da conferência em que se havia de incorporar oficialmente à Casa de ceira geração, e após o "nada consta" de todos os tribunais inquisitoriais,
São Jorge. Cabia ao andador da irmandade fazê-lo chegar às mãos do "pre- que lhe asseguravam não haver registro de acusação ou condenação nes-
tendente habilitado" (fl. 17v) ou do futuro confrade. Como o compareci- tas praças, prosseguia-se com a etapa judicial. Neste segundo momento,
188 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 189

era marcada uma audiência, onde cinco ou seis depoentes do extrajudicial cuidados reservados, à sua alma. Porque se fosse o seu corpo a padecer,
eram chamados a testemunhar, para reafirmar suas informações. Só então não havia nenhum acordo firmado para socorrê-lo. Somente os irmãos
o habilitando prestava o juramento e recebia sua carta de familiar. recebiam a ajuda pecuniária em caso de enfermidade ou pobreza.
A irmandade não dispunha de uma estrutura administrativa como a Restrito aos menores de quarenta anos e, no passado, muito prova-
da Inquisição, em que, uma vez tendo-se candidatado a familiar do tribu- velmente limitado àqueles cujo sangue desconhecia qualquer vestígio de
nal de Lisboa, um coimbrão, um portuense ou um lisboeta casado com "raça infecta", portanto, que não contavam entre seus ancestrais com
uma eborense, a rede de familiares e comissários destas localidades era mouros, judeus ou negros, o ingresso na irmandade de São Jorge era uma
acionada para executar as investigações e depois reencaminhá-las à capi- conquista. Como o ferro e o aço que estes homens acostumaram-se a ver-
tal. Sem o mesmo suporte, não é de crer que a confraria conduzisse a gar, as leis da Casa do alto da colina de Santana eram rígidas e a caridade
pesquisa sobre a vida pregressa do sujeito em duas etapas, antes de con- que ali se fazia nada tinha da visão altruísta e despretensiosa que a
vocá-lo para o juramento, como era de praxe no Santo Ofício. Note-se máxima de São Paulo deixara imortalizada nas Escrituras. Comportavam,
que o Compromisso não menciona qualquer testemunha, refere-se apenas é certo, o auxílio mútuo em situações extremas. Leia-se, em caso de molés-
à figura do "informador" responsável pelo inquérito e às provas por ele tia e pobreza. No entanto, à semelhança dos critérios empregados para
apresentadas. admissão dos irmãos, a ajuda em situações aflitivas era mediada por parâ-
Embora a sindicância realizada pela Casa de São Jorge dispensasse a metros de observação capazes de justificá-la perante o grupo, impedindo,
presença de depoentes para asseverar o trabalho do irmão informante, a por extensão, que quaisquer destas desgraças fosse objeto de manipulação.
condução da investigação obedecia a um certo rigor. Enquanto as dili-
gências para a habilitação dos familiares da Inquisição duravam em
média um ano, quando os candidatos residiam no reino, na Casa de São 1.2. Defuntos, pobres e enfermos: as obras de misericórdia dos
Jorge, a investigação levava, a princípio, três meses. Caso noventa dias irmãos de São Jorge
não fossem suficientes para as averiguações, o informante poderia requi-
sitar outros três meses, até concluir o trabalho (fl. 55v). O prazo não se A "caridade que se exercita[va] com os Irmãos" (fl. 19) admitidos
estendia, porém, indefinidamente. Se não conseguisse cumprir o serviço pela irmandade compreendia o auxílio monetário, a cobertura dos gastos
no tempo estipulado, o irmão informante pagava seis arráteis de cera ao com as despesas de seu enterro, caso não pudessem honrá-las, e as missas e
santo pelo atraso. Todavia, em confiança à sua idoneidade e aos dados sufrágios em prol de sua alma. Todavia, quaisquer destes benefícios era,
recolhidos, a nenhum irmão cabia desferir qualquer questionamento como tudo na Casa de São Jorge, fruto do respeito às regras previamente
sobre a veracidade dos dados contidos em seu relatório, exceto se apre- definidas pelo Compromisso, que equilibrava direitos, deveres e despesas.
sentasse "justo impedimento" (fl. 55). A falsa suspeição implicava, inclu- Destarte, sendo um direito assegurado pelos estatutos, se a mesa
sive, na multa de seis arráteis de cera pela leviandade. tomasse conhecimento de que algum irmão estava enfermo, em demons-
tração de caridade, fazia-lhe logo visitar pelo irmão enfermeiro. Respon-
A despeito das variações, tal e qual os habilitandos ao cargo de
sável pelo atendimento assistência! da confraria (fl. 42), o oficial, "sem
familiar, os postulantes à irmandade de São Jorge cobriam o custo do
demora", ia ter com o doente para indagar da precisão de seu auxílio. Se
inquérito com o valor pago no ato em que assinavam a petição diante do
atestasse a pobreza do irmão "por informação verdadeira" (fl. 19), favo-
prefeito. Mesmo que a devassa comprovasse que estava apto a ingressar
recia-lhe com uma ajuda monetária de até 1.200 réis. Com o fito de per-
na irmandade, se fosse casado ou tivesse esta intenção, deveria encami-
mitir à mesa acompanhar o estado do irmão adoentado e acudir-lhe com
nhar a solicitação para a habilitação de sua esposa ou consorte, em até
o pecúlio necessário, conforme a evolução da situação, a concessão da
três meses após sua admissão (fl. 55v), à semelhança das regras definidas
"esmola" ao irmão doente era registrada pelo irmão enfermeiro, na confe-
pelo Santo Ofício, para os integrantes de sua milícia de apoio. No entan-
rência que se realizava imediatamente após a ocorrência. Mas se a sorte
to, visto que nem todos podiam honrar, a tempo e a horas, com a dita
lhe fosse adversa e a moléstia se agravasse causando-lhe a morte, sendo
quantia, nem a irmandade esbanjava tanta riqueza assim a ponto de des-
um irmão pobre, a irmandade supria-lhe os gastos com o funeral, garan-
prezar sempre as contribuições anuais, caso o "defeito" não fosse um tindo-lhe uma sepultura digna e uma cerimónia de despedida à altura de
passo para o escândalo, nem comprometesse a imagem da confraria, o
um irmão de São Jorge.
candidato era admitido como confrade, recebendo, portanto, apenas os
190 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 191

Assim, divulgada a notícia, irmãos e irmãs da confraria encontravam- tavam da composição da mesa ocuparam com largueza o juízo dos trinta
-se à porta da Casa do Despacho e, "em ato de Communidade" (fl. 20), e três redatores do Compromisso. Alongando-se entre os parágrafos, os
saíam com a cruz alçada, conduzindo o féretro para efetuar o sepultamento, itens relativos à distribuição de poderes no interior do grupo era um ates-
fosse em algum campo santo da freguesia ou em um dos mosteiros de Lis- tado do papel desempenhado pelos ofícios que compunham a cabeça da
boa (fl. 20v). Findo o enterro, aos cuidados do corpo seguiam-se os da bandeira e uma radiografia dos novos núcleos de atuação destes mesteres
alma. "Com toda a brevidade", mandavam-lhe rezar pelo capelão da na cidade.
irmandade cinquenta missas de 120 réis cada uma, no Convento de São
Camilo ou no de São Domingos. Extensiva a todos os irmãos, pobres ou
não, a atenção ao corpo moribundo ou falecido era uma regra geral, um ato 1.3. Os doze trabalhos dos irmãos de São Jorge
de caridade da fratria que se unia à volta de São Jorge. A preocupação em
garantir uma morte cristã estava na ordem do dia e requeria pressa. Porém, Com ascendência direta sobre a mesa do estandarte de São Jorge,
o auxílio monetário ao irmão são, acometido pela pobreza, estava sujeito desde de 1620, a irmandade tanto controlava o perfil dos oficiais mecâni-
ao cumprimento dos deveres estipulados no Compromisso. cos que assumiam os cargos dirigentes da bandeira, quanto regulava a
Diante de uma situação pecuniária difícil, os estatutos da irmandade distribuição dos poderes entre as profissões que integravam a corporação.
previam que os oficiais pudessem habilitar-se como pobres ou serem dis- Indicando, mais uma vez, que lideravam desde sempre uma e outra, os
pensados das taxas anuais. Contudo, um e outro estavam condicionados barbeiros eram os únicos a ter seu ofício citado no manuscrito, quando
ao histórico de sua contribuição para os cofres do santo e dos pobres. O trataram das eleições da mesa espiritual, declarando que dominavam todo
irmão poderia recorrer à mesa com uma petição, expondo sua pobreza e o processo e insinuando que eram eles, ao fim e ao cabo, "os mais zelo-
esclarecendo os anos que tinha como membro da confraria e de que sos e devotos" a São Jorge.
maneira havia "satisfeito aos annuaes" (fl. 19v). Só seria admitido como Ao tempo em que se procedeu à Reformulação do Compromisso, os
pobre ou "alliviado de pagar os annuaes" (fl. 56v), se tivesse quinze anos barbeiros já não andavam só pela Rua Nova. Suas lojas, cerca de quatro-
como irmão e estivesse em dia com a cota cobrada a cada ano. Salvo se centos e cinquenta em 1768, estavam espalhadas por toda a cidade e,
"por cazo fortuito [caísse] em tanta pobreza", que não pudesse satisfazê- segundo o depoimento do juiz Clemente, avançavam por Belém e arredo-
-la (fl. 56v). Neste caso, abria-se um precedente. Mas, uma vez dispensa- res. Crescidos em número, identificavam-se agora por suas zonas de resi-
do dos anuais, o irmão não poderia ser favorecido pelo cofre dos pobres, dência e atuação. Assim, dividida em três grandes núcleos, a cabeça da
enquanto não se passassem três anos. Somente transcorrido este prazo, bandeira compreendia a "prezidencia" dos barbeiros do Bairro Alto, a do
era-lhe facultada esta habilitação. Bairro da Alfama e a "prezidencia" dos barbeiros de guarnecer (fl. 23).
Vincada por restrições, prazos de contribuição e tempos de perma- Superpondo-se aos demais mesteres, referenciados no documento sim-
nência no interior do grupo, a concepção de caridade dos irmãos de São plesmente como "as mais prezidencias" (fl, 23), os mestres nas artes da
Jorge continha inegavelmente uma promessa de entreajuda, mas não navalha e da espada juntaram-se, no período da Quaresma, aos irmãos
escondia o olhar viciado de desconfianças de uma organização confrater- eleitores dos ofícios de ferrador, bate-folha, ferreiro, fundidor de cobre,
nal espelhada no Santo Ofício e formada a partir de uma bandeira, na dourador, serralheiro, cuteleiro e espingardeiro (fl. 10), para expor os
qual, volta e meia, o ferreiro indispunha-se com o ferrador ou um barbei- procedimentos a serem seguidos durante a realização da eleição da mesa
ro saía pela cidade cobrando taxas sem cabimento. Constituindo um cor- espiritual.
po de oficiais que distinguia irmãos e confrades, que se alimentava por Segundo o manuscrito, a eleição era realizada em duas etapas. Na
um recrutamento forçado, onde os irmãos que não honravam seus anuais primeira oitava da Páscoa, os oficiais da mesa e os respectivos presiden-
viam bater à sua porta o corregedor do crime do bairro e onde alguns sen- tes encontravam-se na Casa do Despacho da irmandade, para definir o
tiam-se mais "zelosos na devoção" do que outros, a irmandade socorria a dia da eleição. De lá, os irmãos presidentes saíam com a incumbência de
seus pobres. Entretanto, não deixava de lembrá-los que a ajuda era um comunicar a data do pleito aos irmãos de suas circunscrições e convocá-
dever da Casa para gente de "bons costumes". -los para o encontro vespertino no antigo Colégio de Santo Antão-o-
Muito por isso, a eleição dos irmãos da mesa era um assunto sério. -Novo. Chegada a ocasião, os irmãos procuradores preparavam três
Ao contrário dos itens referentes ao auxílio mútuo, os capítulos que tra- mesas na igreja do Hospital Real e em cada mesa uma pauta registrava o
192 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 193

número de votantes. A primeira, sob responsabilidade do procurador da no lugar de prefeito e o que havia feito o sorteio de seu assistente. Ambos
mesa espiritual, ficava junto ao guarda-vento, a segunda, junto à epístola, então tomavam o juramento dos Santos Evangelhos das mãos do prefeito
era presidida pelo procurador da irmandade e o secretário do ano ante- que se despedia da Mesa e o eleito retirava-se com a pauta, o tinteiro e os
rior, e a terceira, na parte do Evangelho, estava entregue aos cuidados do demais eleitores, para finalizar a votação dos outros membros da Mesa
procurador da irmandade da última gestão. espiritual. Concluída a votação, o procurador da irmandade, o irmão
Cabia ao irmão prefeito iniciar o escrutínio. Logo depois, os demais secretário e o irmão prefeito "alimpavam" as pautas, registrando os votos
componentes da mesa espiritual faziam sua escolha e, uma vez concluída recebidos por cada oficial.
esta etapa, os irmãos presidentes de cada bairro indicavam aos irmãos de À eleição seguiam-se as providências para comunicar, por carta, aos
ofício a urna em que haviam votado, para que lá depositassem o seu voto. oficiais eleitos, o dia em que tomariam posse da Mesa. A escusa só seria
Finda a eleição, os irmãos secretários encerravam as pautas e entrega- aceite com justa causa. Em caso contrário, redundava na pena de dez
vam-nas ao irmão prefeito, que guardava o material no cofre sob as vistas arráteis de cera para o santo (fl. 54v). Mas se a alegação fosse aceita, o
dos membros da mesa da irmandade. Somente no dia de Nossa Senhora irmão secretário convocaria ao segundo mais votado e, se ainda assim a
dos Prazeres era realizada a apuração. Os nomes mais votados eram ocupação não encontrasse responsável, o irmão prefeito convocaria aos
informados por uma carta escrita pelo irmão secretário e eram convoca- doze eleitores para que um deles assumisse a função.
dos para comparecerem no mesmo dia, à tarde, para a eleição da mesa. Antes de dar por encerrada a sua gestão, a mesa coordenava ainda os
Diante de qualquer impedimento, o irmão era substituído pelo segundo trabalhos para eleição dos irmãos presidentes de bairro, que assumiriam o
mais votado. cargo em paralelo à mesa da irmandade. Desta feita, no primeiro dia de
Prosseguia-se então à renovação dos quadros da Mesa propriamente conferência da Mesa espiritual, ajuntavam-se os irmãos presidentes de
dita. Somente o lugar de mordomo do santo, ocupado sempre pelo escri- cada mester e cada um, a começar pelo do Bairro Alto, nomeava três
vão geral da bandeira, não estava em questão. Os demais seriam preen- irmãos, "os mais beneméritos" de sua presidência (fl. 27), cujos nomes e
chidos guardando o intervalo de três anos, a partir da última nomeação, o as ocupações o irmão secretário lançava em uma pauta. Na forma de esti-
que lhes impedia de concorrer à mesma função consecutivamente (fl. 54). lo, realizava-se a votação, ou seja, conforme os procedimentos utilizados
Considerando estas premissas, o prefeito indicava um trio de irmãos que para a eleição da Mesa espiritual e considerando a hierarquia de funções
já tivessem sido seus auxiliares. Os dois secretários, os procuradores da da irmandade. Portanto, só após o voto do irmão apontador, os irmãos
mesa e da irmandade, o tesoureiro, o enfermeiro, o apontador, os dois presidentes de cada limite depositavam na urna a sua escolha. Exatamen-
mordomos do santo e os dois assistentes do prefeito faziam o mesmo. te como nos moldes da outra eleição, os oficiais designados através de
Feitas as nomeações, o irmão secretário punha em uma pauta os nomes e sorteio eram comunicados por carta. Se apresentassem qualquer impedi-
escrevia-lhes a cada um em um papelinho. Já dobrados, embaralhados e mento razoável, procedia-se do mesmo modo, convocando o segundo
metidos em uma urna, o irmão prefeito sacava apenas cinco, que servi- oficial mais votado.
riam de eleitores da Mesa, juntamente com os irmãos secretário e o pró- Antes da posse da nova Mesa, realizava-se, ainda, a conta dos traba-
prio prefeito, que, ao contrário dos outros oito oficiais que compunham a lhos e dos dias. Cobravam-se as despesas dos oficiais devedores e ajusta-
mesa em vigência, tinham direito a participar do pleito. De outro lado, os vam-se aquelas relativas aos pobres, que depois de lançadas em seus res-
irmãos presidentes de bairro faziam o mesmo. Nomeavam seus candida- pectivos livros eram resumidas em um termo pelo irmão secretário. Ali,
tos e também por sorteio indicavam os outros cinco eleitores. este oficial declarava o "quanto importou a Receita, e a Despesa" (fl. 28)
Juntos, os irmãos da Mesa e os doze irmãos eleitores prosseguiam a e o tanto que em cada uma excedia. Se a primeira ultrapassasse à segun-
eleição. O irmão secretário tomava o nome de um deles e escrevia em um da, o valor líquido era entregue ao novo tesoureiro; se fosse a segunda à
papelinho. Embrulhava-o e colocava-o na urna. Depois, cada um dos pre- superar a primeira, registrava-se a sua importância e o credor, cabendo a
sentes repetia o ato. Findas as escolhas, o irmão prefeito fazia uma prele- nova Mesa honrar a dívida com o "primeiro dinheiro" (fl. 28v) que rece-
ção sobre a importância do segredo no escrutínio e de como deveria ser besse.
guiado, sem "affeicão, mas sim conforme suas consciências" (fl. 26). A cerimónia de posse dos irmãos eleitos ocorria no domingo ante-
Acabada a "prática", um dos "irmãos Elleitores de fora" retirava da urna rior à festa do Corpo de Deus, quando os cinco pretinhos pagos pela ban-
um dos papelinhos e entregava-o ao irmão prefeito. O sorteado serviria deira já haviam corrido as ruas da cidade, anunciando que, em breve, São
194 Georgina Silva dos Santos

Jorge tomaria posse do castelo. Os oficiais eleitos encontravam-se na


Casa da bandeira, também situada no Hospital Real, e lá aguardavam a
T Oficio e Sangue

diam como o líder em uma comunidade religiosa organizada a partir de


uma corporação. Ao contrário, definiram com clareza o perfil que julga-
195

chegada do irmão apontador que os conduziria até à Casa do Despacho vam indispensável à sua função. Deste modo, sendo o primeiro dentre os
do Espiritual, no andar superior, onde ocorria o evento. eleitos, ao irmão prefeito requeria-se "prudência", "afabilidade" e "humil-
Já no aposento, sentavam-se nos bancos à direita, enquanto os dade nas atenções da irmandade" (fl. 32v) e um histórico sem condena-
irmãos que se demitiam das funções sentavam-se à esquerda. Da Mesa, o ções graves, para que figurasse como um "exemplo de edificação a todos
irmão secretário e o irmão prefeito comandavam a solenidade. Na quali- os irmãos" (fl. 33). Em um tempo pretérito, ao que tudo indica, acrescen-
dade de maior autoridade na irmandade, o irmão prefeito agradecia aos tavam-se a estes predicados um sangue puro, sem manchas de qualquer
oficiais de sua gestão pelo zelo e aos que entravam advertia do cuidado "raça infecta".
que deveriam ter "no augmento da irmandade para honra, e louvor [...] do Importantes para que suas atitudes fossem respeitadas e suas desig-
Santo" (fl. 29). Finda a "pratica", fazia a leitura da despesa e receita do nações acatadas pelo grupo, os atributos do irmão prefeito cristalizavam
ano e entregava ao novo tesoureiro a importância acumulada no período. tanto o sentido de autoridade cunhado pelos oficiais mecânicos da Casa
Lidas as cartas, o irmão prefeito dava o seu lugar ao novo prefeito eleito, de São Jorge, quanto justificavam seu posto nos "atos de comunidade".
entregando-lhe a chave de sua gaveta e os demais materiais que perten- No ápice do cortejo que conduzia o corpo do irmão defunto, o prefeito
ciam ao cargo, ato repetido pelos demais membros da Mesa. Concluindo caminhava atrás da irmandade com "huma vara", levando na mão direita
a sessão, os oficiais empossados assinavam um termo, prometendo cum- o padre Capelão e de cada lado seus dois assistentes, irmãos que, no
prir suas obrigações e satisfazer as jóias que cabia a cada um. ordinário, estavam incumbidos de auxiliá-lo em todos os atos de confe-
Composta por doze oficiais, porque doze eram os apóstolos de Cris- rência da Mesa e eram seus substitutos, em caso de ausência (fl. 34v).
to, a mesa da irmandade de São Jorge definia-se por um conjunto de fun- Conforme o estilo, ao irmão secretário solicitava-se nada a menos.
ções dispostas hierarquicamente. Assim, embora repartisse com os Sendo sua a responsabilidade de ler todas as petições que chegavam à
demais integrantes da mesa a apreciação dos negócios que tocavam à mesa, lançando os despachos em folha, "haveria de ser homem de inteli-
irmandade, era ao encargo do irmão prefeito que estava a coordenação gência, atenção e segredo" (fl. 35). As qualidades correspondiam de fato
dos trabalhos. aos inúmeros expedientes requeridos por sua função. Entre os oficiais da
Casa, era ele quem enviava, após as eleições, as cartas aos irmãos escolhi-
Nas situações em que era preciso arbitrar sobre alguma matéria, reu-
dos comunicando sua indicação para a Mesa espiritual. Estava também em
nia os companheiros e encaminhava a votação, acatando seu resultado.
sua alçada remeter ao irmão procurador os requerimentos dos habilitandos
Porém, se entendesse que os votantes haviam apreciado a questão "com
para que este os fizesse chegar aos informadores. Era ainda o encarregado
menos acerto, ou paixão, poderia por sy só convocar a Difinição, ou Jun-
de pôr em maços com "títulos por fora" as admissões devidamente assina-
ta grande, e a ella [propor] o negocio, que se lhe oferecer" (fl. 33). Os
das pelo prefeito e demais oficiais da mesa, separando as de confrades e as
estatutos da irmandade garantiam que, nestes e noutros assuntos, todos
dos irmãos, para que se pudesse recorrer ao arquivo, quando necessário.
deviam-lhe obediência. Por isso, tinha poderes para admoestar aos
Guardião da memória da irmandade, cabia-lhe fazer constar no livro
irmãos faltosos e recomendar aos irmãos presidentes de suas obrigações,
de entradas a naturalidade, a freguesia de morada e de batismo do habili-
principalmente quando o assunto era a cobrança dos anuais de cada
tado. Do mesmo modo procedia em relação aos pobres habilitados e
irmão, a presença nos sufrágios em prol dos companheiros falecidos e o
daqueles dispensados de pagar os anuais, registrando seus nomes nos
acompanhamento nos sepultamentos. O prefeito mantinha ainda sob sua
maços. Tinha ao seu encargo manter em dia os livros da irmandade, isto
tutela a construção da memória do grupo. No caso das resoluções impor-
é, o livro dos assentos dos irmãos, o livro dos assentos dos irmãos defun-
tantes ou em matéria digna de realce, fazia o irmão secretário lançar o
tos, o da receita e despesa geral da Casa, o livro das eleições e dos eleito-
deferido no livro dos acórdãos. Vigilante em relação à assistência da
res e dos demais oficiais da Mesa, o livro de bens da irmandade e culto
Casa aos seus filiados, prevenia ao irmão enfermeiro de sua obrigação
do santo, o livro dos acórdãos, o livro da receita e despesa geral dos
em atender sem "falência" suas obrigações (fl. 34).
irmãos pobres, o livro da remessa dos informadores e o livro das entradas
A frente dos serviços oferecidos pela irmandade, o irmão prefeito e depósitos dos "examinantes" (fl. 38), no qual lançava seus dados pes-
deveria expressar a autoridade que lhe era confiada. Atentos ao seu papel, soais, segundo a norma.
os redatores do Compromisso não cochilaram ao conceituar o que enten-
196 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 197

Também de "muyto grande importância para o bem comum" da Era, entretanto, ao irmão tesoureiro quem cabia, lato sensu, o con-
confraria (fl. 39), o irmão procurador da irmandade tinha a seu encargo trole financeiro da irmandade. Cobrava "as esmolas dos examinantes"
assistir, em todos os dias, às conferências da Mesa e inteirar-se de seus (fl. 43) e delas dava conta em dia de conferência. Guardava também os
negócios, conhecendo suas leis para acudir "com o remédio possível" em valores cobrados pelos irmãos procuradores das mesas e qualquer outro
caso de necessidade (fl. 40). Uma vez ciente de qualquer procedimento dinheiro que entrasse na casa, lembrando sempre ao irmão secretário de
praticado em detrimento da irmandade, poderia encaminhar petição ao lançar com clareza os montantes nos livros de receita e despesa. Suas
irmão procurador da mesa para requerer ao irmão prefeito a decisão sobre obrigações não se restringiam, porém, apenas ao cofre da confraria. Nos
o incidente. Sendo uma espécie de conselheiro da Casa, em se tratando atos públicos em que a irmandade saía fora em ato de comunidade, leva-
de qualquer impasse, era-lhe facultado o prazo de duas sessões da mesa va a cruz. Uma vez impossibilitado de exercer esta obrigação, pertencia
para examinar com cuidado o problema e só então expor seu voto e ofe- ao irmão presidente do limite a que pertencia o cumprimento da tarefa
recer "maduro conselho" (fl. 39v). (fl. 42v).
A função de procurador da irmandade conferia a quem a desempe- Cabendo-lhes essa função e a de arrecadar os anuais dos irmãos do
nhava o direito de levar a vara do governo da associação no meio do perímetro de sua residência, aos irmãos presidentes competia ainda assis-
séquito, nas cerimónias de acompanhamento dos irmãos defuntos. Nos tir a todas as conferências a que eram convocados, levando o requerimen-
casos em que nenhum outra confraria ou Ordem Terceira acompanhasse to dos irmãos das suas presidências, visto que participavam das sessões
o falecido à sepultura, cabia ao procurador da irmandade pedir licença como seus procuradores e eram o canal de comunicação entre a irmanda-
"ao irmão da Vara da Tumba da Misericórdia" para proceder ao encerra- de e os demais oficiais mecânicos. Embora com uma participação cir-
mento do corpo e dispor sobre o rosto do morto o lenço que trazia consi- cunscrita a certas deliberações, era de seu dever honrar a todos os cha-
go (fl. 39), garantindo, como representante da irmandade, o compromisso mados. A ausência por mais de três reuniões seguidas resultava em
da Casa com uma das obras espirituais da misericórdia38. Face às seme- multa. Por tratar-se de uma irmandade e não da Casa dos Vinte e Quatro
lhanças na natureza das funções, caso o irmão enfermeiro se encontrasse ou da Câmara, casas leigas e em nada santas, a multa para os incautos,
com algum impedimento, substituía-o em suas atribuições, visitando os esquecidos ou faltosos, era a conta de seis arráteis de cera.
habilitados doentes e/ ou pobres conforme definiam os estatutos. Havia, é certo, quem se encarregasse apenas de lembrar: o irmão
Com cargo homónimo, mas com funções fiscais, o irmão procurador apontador. Já tendo exercido obrigatoriamente a função de prefeito da
da Mesa prestava assistência nos dias das conferências e dos atos públi- mesa e todas as demais, era sua a voz da experiência e como tal cabia-lhe
cos. Com poderes para impugnar os negócios que causassem prejuízo à advertir sobre as "couzas necessárias nas occazioens que [eram] precisas,
irmandade, tinha sob sua responsabilidade a arrecadação dos bens da assim nos actos das Conferencias, como em tudo o mais, que [fosse] em
confraria, as esmolas e rendimento da Casa. Tendo a posse do cofre da utilidade da irmandade, e para honra e louvor do santo" (fl. 45). Mas
irmandade, possuía autorização para executar a compra de tudo o que tinha ainda outra atribuição: para não deixar esquecer aos habilitandos e
fosse necessário à Mesa, até o valor de 4.000 réis, realizando o pagamen- velhos irmãos que, ao adentrar na Casa de Jorge, estavam chegando nos
to dos débitos e zelando para que a festa de São Jorge se fizesse "com domínios de um santo, aspergia "agoa benta" sobre seus corpos, ao abrir-
aquella veneração, e pompa que [fosse] possível ao seu culto" (fl. 41). -Ihes a porta, na ocasião das conferências da mesa ou quando compare-
Desta feita, como São Jorge integrava as principais cerimónias religiosas ciam para entregar seus requerimentos, afastando supostos maus espíritos
de Lisboa, em caso de seu empecilho, as chaves do cofre eram passadas ou agraciando-lhes com as bênçãos da Casa.
ao seu "companheyro".
Apesar da intimidade com os tratos das coisas do altar que o tempo
lhe dera, já não eram da responsabilidade do irmão apontador os cuida-
dos com o mártir. Como se sabe, São Jorge, padroeiro da confraria, tinha
38 O enterro dos mortos era uma das principais obras da misericórdia, por isso, a Santa seus próprios mordomos. O primeiro, o escrivão geral em exercício na
Casa de Lisboa já previa em seu primeiro compromisso (1516) a prestação deste servi-
ço aos necessitados. Para tanto, dispunha de três tumbas com três bandeiras e número bandeira, e o outro, eleito durante o pleito. A regra para eleição garantia:
suficiente de tocheiros. Uma era destinada ao sepultamento dos "pobres e pessoas se aquele fosse de alguns dos ofícios do ramo, este seria da cabeça da
ordinárias", outra a pessoas de maior qualidade e a terceira era reservada aos irmãos da bandeira e vice-versa. Tudo para evitar desordens e contendas entre os
confraria. Cf. GOODOLPHIN, Costa, op. cit., p. 59. mesteres, que só poderiam assumir a função se contassem em seu históri-
198 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 199

co com o registro da atuação de três cargos distintos na mesa espiritual seguiam os penitenciados que, obedecendo à escala dos crimes cometidos
(fl. 50v). contra a fé católica, marchavam escoltados por soldados em direção ao
A igualdade de condições para desfrutar as prerrogativas de pajear o cadafalso. Aos penitentes, descalços, com a cabeça descoberta e condu-
santo desvanecia-se nos atributos, que, naturalmente, todos os devotos zindo um círio apagado, seguiam os condenados. Aqueles que haviam
dados aos tratos da leitura e da escrita julgavam ter. O mordomo do santo admitido suas culpas, tinham a mitra e o sambenito estampado com cha-
tinha de ser "homem perfeito, sem macula" (fl. 43v). Exigia-se que não mas de ponta-cabeça, enquanto os relaxados ao braço secular exibiam na
faltasse às reuniões da mesa e demais atos da irmandade, fosse entre os túnica de linho cru o próprio retrato pintado entre chamas e grifos, com o
vivos ou em meio aos mortos. Nas funções públicas levava os brandões à nome e as "culpas" inscritas em baixo. Concluindo o préstito, sobre mon-
cruz e para a festa do Corpo de Deus acorria para fazer chegar à estreba- taria, o alcaide da cidade e o meirinho da Inquisição levavam as varas da
ria de Sua Majestade os adornos do cavalo de São Jorge. No dia do desfi- justiça39.
le, punha o santo sobre sua montaria e, uma vez tendo o cortejo chegado Precedida pelo som de cânticos litúrgicos, a chegada da procissão
à porta da Sé Patriarcal, onde todos aguardavam a saída do Santíssimo, junto ao estrado montado na Ribeira era o ponto alto da cerimónia. Neste
retirava-lhe o chapéu para depositá-lo em uma salva de prata que o irmão instante eram selecionados, dentre as dezenas de confrades e religiosos
andador tinha em mãos. Finda a procissão e a cerimónia no castelo, con- que acompanhavam o préstito, aqueles que subiriam ao palco para no
duzia o mártir novamente à capela de costume. altar-mor depositar a cruz que abria o cortejo. Na sequência, os senten-
ciados e os respectivos familiares que lhes acompanhavam acomodavam-
Da morada da imagem cuidavam, no entanto, outros irmãos: os
-se nos assentos, segundo a ordem prevista. Nas filas superiores eram
mordomos da capela. Tratavam de seu asseio e do culto, assistindo os
dispostos os penitentes, nas superiores, os relaxados. Por fim, adentra-
serviços nos domingos, nos dias santos e nas missas que os padres cape-
vam os acompanhantes do Tribunal e, por último, os inquisidores. A
lães da irmandade (fl. 46v) - proibidos de se ausentarem da cidade por
celebração tinha início com a pregação de um sermão, quase sempre de
mais de um mês sem licença da mesa (fl. 47) - rezavam na festa do
colorações antijudaicas, sendo seguida pela leitura do édito de fé, onde a
patrono e em intenção das almas dos irmãos e confrades defuntos. O zelo
tipologia das infrações era recordada. Após o juramento coletivo, em que
da capela do santo e da Casa do Despacho estavam, todavia, ao encargo
se demonstrava o apoio das autoridades civis e eclesiásticas ao Santo
do andador da irmandade, homem que auxiliava os trabalhos do procura-
dor da mesa e, em dias de conferência, nunca apresentava-se descompos- Ofício, fazia-se a leitura da bula papal, que confirmava as competências
to. Mostrava-se sempre vestido de capa e volta com uma tarja de prata no da Inquisição, no combate às heresias e aos comportamentos desviados, e
peito com as ramas do santo. Nos atos públicos ia diante da cruz. Se fos- sublinhava o caráter religioso e régio do Tribunal.
se o sepultamento de algum membro da Casa, trazia nos braços o tanto de Indispensável na cerimónia, este longo preâmbulo precedia a publi-
cera que pudesse carregar para dá-lo aos irmãos que vinham incorporar- cação da sentença dos acusados. Lidas por dois clérigos, as sentenças
eram ouvidas de pé pelos réus, que eram conduzidos pelos alcaides, dos
-se ao cortejo. Se fosse um auto-de-fé, levava uma lanterna acesa para
cárceres ao altar da abjuração, de onde deviam fazer reverência à cruz e
acender as tochas dos oficiais que participariam da cerimónia inquisito-
aos inquisidores. Desta maneira, reconciliados e relaxados tinham seu
rial, ocasião em que os penitenciados do Santo Ofício, despidos de seus
futuro determinado pelo Santo Ofício. O conjunto das sentenças incluía
traços de identidade pessoal e vestindo sambenitos, eram conduzidos
pelas mãos da Inquisição à praça principal da cidade ou à igreja de São desde castigos espirituais até penas corporais, como os açoites públicos -
dos quais os nobres por privilégio estavam protegidos, por serem por
Domingos, para leitura do julgamento.
demais humilhantes - e a condenação às galés, espécie de sentença de
Concebido e dirigido por um tribunal religioso obediente ao papa e morte lenta e gradual. No rol estavam ainda o exílio do termo ou bispado,
ao rei, o cortejo que dava início ao auto-de-fé tinha seu ponto de partida fosse interino ou definitivo, e a prisão temporária em conventos, no colé-
no Palácio dos Estaus, no Rossio, e concluía seu itinerário no Terreiro gio da fé ou no próprio domicílio.
Paço, nas proximidades da residência real, até sua suspensão pelo Mar- Presença obrigatória nos autos-de-fé em Lisboa, desde sua primeira
quês de Pombal, quando seu término passou a ser a igreja nas portas de realização, a irmandade de São Jorge acompanhava todo o cortejo, por-
Santo Antão. Aberto por quatro familiares montados a cavalo, com as
varas da justiça nas mãos, o préstito seguia como o capelão da Sé portan-
do a cruz de sua igreja velada, rodeado por clérigos seculares. Logo atrás, 39 BETHENCOURT, Francisco, op.cit., p. 213.
200 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 201

que cabia aos irmãos retirar dos cárceres os sentenciados e conduzi-los Santa Casa a fazer, no dia de Todos os Santos, o enterro da ossada dos
até os Estaus debaixo da cruz da irmandade (fl. 53). Também porque padecentes, a irmandade de São Jorge assistia com a comitiva do Hospi-
eram encarregados de remetê-los à cadeia, após a leitura das penas, por- tal Real o "momento dos defuntos" organizado pela confraria da Miseri-
tanto, porque abria e concluía a cerimónia, a cruz da associação confra- córdia (fl. 54).
ternal era depositada no altar da abjuração, para que ali os sentenciados Com conotações específicas no campo das práticas da justiça régia,
lhe fizessem reverência. a cerimónia de l de Novembro era um privilégio concedido pela Coroa à
Imperativo nestas circunstâncias, o porte da capa e da volta era um Santa Casa, desde 1498. Cumprindo uma das obras espirituais da miseri-
dever dos irmãos de São Jorge também nos dias de reunião ordinária, córdia cristã, o cortejo contava com a presença das ordens monásticas e
tanto no Verão como no Inverno. Fosse a reunião marcada às oito da do clero e tinha por objetivo executar o enterro dos restos mortais dos
manhã ou às três horas da tarde, como acontecia na época da estiagem, condenados, cuja sentença, proferida pelos tribunais régios, proibira o
fosse a conferência às nove da manhã ou às duas horas da tarde, como sepultamento após o suplício. Em procissão, os irmãos da Misericórdia
ocorria nos tempos em que Lisboa ficava entregue ao frio e às chuvas. de Lisboa dirigiam-se à forca do campo de Santa Bárbara, para resgatar
Portanto, nos domingos e nos demais dias em que a mesa se reunia para as ossadas dos cadáveres, que seriam inumadas em um campo santo na
"expedição dos negócios tocante ao serviço do santo e augmento da manhã seguinte, no dia de finados.
irmandade" (fl. 52), os irmãos enfatiotavam-se exatamente como no tem- O tom grave e o caráter ritualístico da solenidade haviam contribuí-
po em que as instalações da confraria ficavam no Rossio. do para difundir, paulatinamente, entre os habitantes da cidade uma nova
Os estatutos, infelizmente, ocultaram a cor do traje. Mas uma vez sensibilidade diante dos padecentes. Mas sendo a procissão um ato refe-
obrigatório nas sessões internas, mostrava-se indispensável nos atos rendado pelo poder régio, resguardava consigo um cunho pedagógico,
públicos, ocasiões em que se podia identificar estes homens de compro- pois perpetuava, a título de exemplo, a lembrança da pena capital aplica-
misso pelas vestes. Sobretudo no domingo que seguia ao 23 de Abril, data da pelos tribunais régios e legitimava o monopólio da violência exercido
em que a colina de Santana ficava por conta das "fogueiras trombetas e pelo Estado41.
tambores" (fl. 31v), para comemorar o santo. Festejado com o mesmo A cumplicidade dos irmãos de São Jorge nestes atos públicos, a
"aceyo e pompa" das solenidades religiosas de que participava, São Jor- visibilidade da irmandade de São Jorge nesta última procissão, bem
ge, porém, não saía em comitiva como nas outras festas do calendário como sua participação nos autos-de-fé, cerimónias de expressiva gravi-
religioso. Mantinha-se, desde a véspera, no altar da capela do Hospital de dade e patrocinadas por duas grandes instituições régias, a Santa Casa da
São José, testemunhando os sermões pregados pela manhã e à tarde Misericórdia e o Santo Ofício, eram, no entanto, exclusivas aos irmãos
(fl. 31) e deixando-se "beijar pelo povo" (fl. 53v). Enquanto isso, os eleitos pela Mesa. A princípio, o acesso à cúpula de dirigentes da confra-
irmãos, anfitriões da comemoração, exibiam-se a caráter em uma banca- ria era facultada a qualquer oficial mecânico habilitado e membro da cor-
da própria e destinavam outra aos seus convidados: os irmãos da Miseri- poração. Entretanto, o acento dado à qualidade dos oficiais que assumiam
córdia, cujos síndico e escrivão da fazenda recebiam uma tocha para determinadas ocupações e as fartas adjetivações de alguns em detrimento
assistirem ao encerrar e ao desencerrar do Santíssimo, que ficava exposto de outros indicam que o mecanismo de seleção entre os irmãos era atra-
durante todo o período (fl. 31 v). vessado por outros parâmetros.
A deferência com os irmãos da Santa Casa não era gratuita. A admi- As principais ocupações da Mesa, ou seja, aquelas em que os irmãos
nistração do Hospital Real esteve, desde 1564 até ao terremoto, sob a estavam na linha decisória dos assuntos da irmandade e que detinham,
responsabilidade da Misericórdia de Lisboa40 e a sede da irmandade esta- por extensão, ascendência direta sobre os destinos da bandeira, depen-
va situada em uma das salas da unidade hospitalar. O convite era um diam diretamente não só das contribuições anuais, mas também das jóias
espécie de dom e contradom no universo das "trocas simbólicas" que de 57.600 réis pagas pelos oficiais empossados para a manutenção do
tinha por berço e palco o chão lisboeta, pois, quando era a irmandade da culto de São Jorge (fl. 31 v). Fixado pelo Compromisso, o valor do depó-
sito correspondia exatamente à hierarquia de cargos da mesa, revelando
40 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. "Nos Cinco Séculos da Misericórdia de Lisboa: um per-
curso na História", in Revista Oceanos - Misericórdia, Cinco Séculos. Lisboa: Comis-
são Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, n.°35, 41 Cf. ESCOCARD, Marta Tavares. Justiça e Caridade: a produção social dos infratores
Julho/Setembro de 1998. pobres em Portugal..., pp. 203-212.
202 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 203

que o exercício de suas funções era, efetivamente, a expressão do poder Prefeito e companhia ofereciam uma quantia gorda, é certo. Porém,
aquisitivo de cada irmão. nada fazia sombra às cifras oferecidas pelo juiz perpétuo da irmandade: o
Assim como o estandarte previa uma diferenciação nos gastos pagos monarca. Além de ceder o cavalo ao santo para o desfile do Corpo de
pela cabeça e ofícios anexos da bandeira, destinando aos mestres de loja Deus, o soberano enviava, cada ano, à Casa de São Jorge 20.000 réis para
aberta a maior quota no rateio das despesas42, também a irmandade pressu- garantir a festa do patrono português. Não se pense, entretanto, que a
punha montantes distintos aos membros de sua Mesa. Destinadas à festa do oferta do rei, apesar de assinalada pelo Compromisso (fl. 31 v), fazia da
santo, as jóias a serem oferecidas requeriam do irmão prefeito 12.000 réis, associação uma confraria régia, como a Santa Casa da Misericórdia, ins-
6.000 de cada um de seus dois assistentes, 3.000 dos demais oficiais da tituição concebida por D. Leonor e agraciada por D. Manuel com o fito
Mesa e apenas 600 réis de cada irmão presidente. O efeito destas contri- de humanizar ou amenizar, melhor dizendo, a vida dos encarcerados de
buições sentia-se no próprio arranjo espacial da Casa do Despacho. Lisboa e que, depois, foi alargando seu plano assistência! a uma malta de
Disposta de frente para a porta e oposta ao nicho central, onde se infelizes e desvalidos, classificados segundo suas desgraças43. A Casa de
mantinha, habitualmente, a imagem de São Jorge, a mesa tinha lugares São Jorge era composta de oficiais mecânicos e a vénia ligava-se mais à
marcados e, ao entrar, qualquer oficial da bandeira identificava, de pron- devoção dinástica e ao feixe de significados que atrelavam São Jorge à
to, a função de cada irmão. Ao centro, "à mão esquerda do Santo" memória da realeza do que a uma adoção institucional.
(fl. 48v) sentava-se o irmão prefeito, a seu lado o primeiro secretário, ao Sabe-se que, em busca de uma certa autonomia, muitas associações
lado deste o segundo secretário e na sequência o procurador da irmanda- confraternais portuguesas ligaram-se ao poder régio para minorar o con-
de, o procurador da mesa e o tesoureiro. À "mão direita do Santo" senta- trole eclesiástico ou, em um jogo de vaivém, haviam unido-se à Igreja
va-se o primeiro assistente do prefeito, ao seu lado o segundo assistente para refrear a ação do Estado44. A irmandade de São Jorge não o fez. Era
do prefeito e, a seguir, o enfermeiro, o mordomo do santo barbeiro e o uma irmandade de ofício. Antiga, por sinal, e nascida entre as gentes que
mordomo do santo dos outros ofícios anexos da bandeira. À porta, em viviam nas ruas tortas de Lisboa, para administrar a vida da corporação.
cadeira rasa e em separado da mesa, sentava-se o irmão apontador. Naturalmente, lucrava com as quantias anuais da realeza, mas usava mais
Repetido nas cerimónias públicas, o arranjo dava aos maiores con- da prerrogativa de ter sob seus cuidados o culto ao padroeiro e poder
tribuintes anuais o centro da mesa, conferindo-lhes maior destaque. A acionar a autoridade régia quando o estandarte escapava-lhe ao controle
disposição, vivamente recomendada no Compromisso, cumpria-se tam- do que propriamente para desenredar-se da Igreja.
bém durante qualquer pleito. Portanto, a despeito da experiência, o apon- Recorde-se que, em um passado remoto, fora o rei quem se valera
tador tinha o primeiro voto nas eleições. Seguia-lhe o presidente do limite dos mesteirais para perpetuar, através de São Jorge, a lembrança de seus
(se convocado), depois os irmãos mordomos, o enfermeiro, o tesoureiro, feitos e de sua bravura entre seus súditos mais humildes. Todavia, como
o procurador da mesa, o da irmandade, o assistente do secretário, o secre- demonstram as petições enviadas aos soberanos, desde D. João III, não
tário, por fim os assistentes do prefeito e o próprio, que atuava como tardou para que os próprios oficiais mecânicos se utilizassem do interces-
árbitro em todas as matérias e tinha voto de Minerva em todos os temas sor celeste para encurtar as distâncias entre a rua e o paço. Acusando que
(fl. 49). o culto ao santo corria perigo e que os irmãos não honravam suas quotas
Era, portanto, nas mãos dos oficiais mecânicos, capazes de contri- anuais, os oficiais conseguiram subordinar a bandeira à irmandade, atra-
buir com a maior quota para o culto de São Jorge, que se concentrava o vés de alvarás régios renovados a cada reinado.
poder decisório na irmandade e, por conseguinte, no estandarte. Regrado O culto a São Jorge era, por conseguinte, um assunto caro a estes
por senões e períodos de intervalo entre a ocupação de um cargo e outro, oficiais mecânicos. O controle da observância às leis do estandarte fazia-
os estatutos da irmandade refreavam em tese o domínio de um ofício -se através dos estatutos da irmandade. Se os regimentos dos ofícios e da
sobre outro. Mas, apesar do rodízio das funções e do espaçamento entre bandeira estavam sempre submetidos à apreciação do juiz do povo e da
as gestões, seu sistema de admissão, que seguia o modelo inquisitorial, e
as jóias exigidas aos oficiais da mesa facilitavam a formação de uma oli-
43 SOUZA, Ivo Carneiro de. "Da Fundação e da Originalidade das Misericórdias Portu-
garquia confraternal. guesas (1498-1500)". Revista Oceanos - Misericórdia, Cinco Séculos, pp. 29-30.
44 PENTEADO, Pedro "Confrarias Portuguesas da Época Moderna: problemas, resultados
42 Cf. supra p. 151. e tendências da investigação", op. cit., p. 42.
204 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 205

Câmara, ou seja, a duas outras instâncias do poder municipal, a irmanda- ocultou a incumbência dos demais irmãos foi vaidade ou negligência,
de era de fato o único foco onde os homens de ferro e fogo resguardavam nunca se poderá saber com exatidão. A dar tratos ao discurso que redigi-
alguma autonomia frente ao poder municipal e seus estatutos eram o úni- ram, o destaque que dispensaram a si mesmos causa pouca estranheza.
co mecanismo de que dispunham para manter algum controle sobre a Por ironia, apesar da auto-referência, nada mais se sabe sobre eles. Tal-
corporação. vez não fossem barbeiros, nem de barbear, nem de guarnecer, porque, ao
Por isso, em "Junta grande em que assistirão os doze Eleitores contrário da grande maioria dos homens que assinavam o documento,
actuaes da irmandade e todas as mais pessoas que [serviam] a Mesa", os ambos estiveram ausentes no dia em que a cabeça da bandeira reuniu-se,
irmãos fizeram o novo Compromisso, "para a boa administração da em um dos cartórios de São Bento, para lavrar a "Escritura de Composi-
irmandade e armonia dos seus membros" (fl. lOv). O Termo de concor- ção" que definiu as presidências de bairro.
dância assinado pelos oficiais assevera que, se vinte e quatro irmãos esti- Os irmãos Gregorio Coelho e Patrício Rodrigues estiveram lá, coor-
veram encarregados de redigir o manuscrito, outros nove compareceram denando os trabalhos, para que se firmasse o acordo entre os líderes do
à conferência de aprovação dos estatutos da irmandade. Irmãos presiden- estandarte, pois eram juizes de seus ofícios em 1781. O primeiro era mes-
tes de bairro? Muito provavelmente. Afinal, quando convocados, partici- tre de barbear e morador na calçada de Santana, o segundo era mestre de
pavam das sessões e nela tinham direito a voto, embora fosse do prefeito guarnecer espadas e residia na Rua Nova d'el-rei. Junto com eles compa-
a voz do desempate. receram ao encontro no cartório os irmãos José Joaquim da Silva, procu-
Como era de praxe, o termo foi registrado no livro dos acórdãos pelo rador dos mestres da navalha, e 11 outros membros da irmandade, 9 do
secretário. Se a sorte caminhasse sempre ao lado do tempo, este e todos ofício de barbear e 2 do ofício de guarnecer. De modo que, dentre os 33
os demais livros da irmandade teriam sobrevivido aos irmãos, permitindo oficiais que assinaram o Termo do Compromisso na Casa de Despacho
que se conhecesse o tanto de anos que estavam na Casa, sua idade, a fre- do Hospital de São José, 14 eram mesteirais da cabeça da bandeira.
guesia onde residiam, seu estado civil, naturalidade e mesmo as profis- Embora o secretário não lhes tenha distinguido o cargo, pode-se concluir
sões que ocupavam com mais frequência os cargos da mesa. Entretanto, que não eram todos presidentes de bairro, visto que existiam apenas duas
nada disso chegou ao presente. Mas, como esses homens de capa e volta circunscrições dos barbeiros, a da Alfama e a do Bairro Alto. Deste
eram homens de ferro e fogo, alguns deixaram seus nomes nas petições modo, o que justificava suas presenças na sessão que aprovou os estatu-
enviadas à Câmara, quando fizeram a composição que redefiniu a indica- tos da irmandade era sua condição de eleitores da mesa ou de integrantes
ção dos delegados da cabeça da bandeira para a Casa dos Vinte e Quatro, da mesa espiritual.
em 1781. Por outro lado, como a irmandade mostrava-se íntima das leis Mesmo sendo maioria entre os 17 irmãos identificados, os barbeiros
do Santo Ofício e facilitava o acesso dos familiares, outros deixaram sua dividiram as decisões da mesa, em 1782, com, pelo menos, 3 outros ofi-
trajetória nos maços de habilitação para o cargo. Portanto, na falta dos ciais oriundos dos mesteres anexos do estandarte, dois deles eram mes-
livros originais da irmandade, recorre-se aqui aos registros que estes ofi- tres serralheiros e o terceiro era mestre ferrador. Estes, ao contrário dos
ciais mecânicos deixaram no tribunal religioso, em uma documentação 14 irmãos barbeiros que assinaram o Termo, provavelmente seriam dis-
que não é habitualmente frequentada, para conhecer a face dos oficiais pensados do inquérito realizado pelo irmão informador caso desejassem
mecânicos de Lisboa, embora se preste melhor a este papel do qualquer ingressar na irmandade naquela data. Eram familiares do Santo Ofício
dos recenseamentos produzidos sobre o solo lisboeta. havia pelo menos vinte anos.
Um deles atendia pelo nome de Manuel do Nascimento. Era mestre
serralheiro e habilitou-se ao cargo de familiar do Santo Ofício em 176145.
2. Irmãos de sangue limpo Natural da freguesia do Socorro, mestre Manuel era um dos sobreviventes
do "espantável terremoto". Quando enviou sua petição à Inquisição, mora-
va na Cotovia, em uma barraca ao pé das Chagas, sítio da freguesia de
Em 15 de Agosto de 1782, era Pedro Nunes Colares quem dava as
Santa Isabel, a mais nova paróquia da cidade, criada um pouco antes da
cartas na Mesa da irmandade de São Jorge e chamava-se Gregorio Joze
Siborro o secretário da confraria. Os únicos, entre as três dezenas de ofi-
ciais, a identificar suas funções no Compromisso e os mesmos a carregar 45 ANTT. Manuel do Nascimento. Habilitação para Familiar do Santo Oficio (doravante
de qualificativos seus próprios cargos no manuscrito. Se o lapso que HSO), maço 186,n.°1975.
Oficio e Sangue 207
206 Georgina Silva dos Santos

tumes, capaz de ser encarregado de negócios de importância e segredo" e


catástrofe, em 1741. Contava 58 anos na data em que foi escrito o Com-
que servia com bom trato. Asseveraram que somava, pelo menos, 35
promisso e já era viúvo. Morrera-lhe a mulher, Anna Maria, sem deixar-lhe
anos na ocasião, que sabia ler e escrever, que tinha cabedal próprio e que
nenhum herdeiro. Mas não era de todo só. Tinha um primo, serralheiro
de seu ofício tirava lucro para passar com limpeza. Por fim, atestando ser
como ele, empregado na Casa das Obras do Paço de Sua Majestade, e que
o serralheiro um homem de palavra e as informações contidas em sua
se tornara familiar do Tribunal em 175346. Ao solicitar à Inquisição a con-
petição o espelho da verdade, disseram que se fora alguma vez casado,
cessão do título, mestre Manuel fez questão de declarar que António da
não tinha filhos, muito menos ilegítimos, e que nunca haviam ouvido
Cruz já integrava suas fileiras, informando assim que estava convicto da
falar que entre quaisquer de seus antecedentes houvesse algum condena-
pureza de seu sangue materno. Para que pudesse se orgulhar inteiramente
de que um abismo apartava-lhe de qualquer "raça infecta", de qualquer do pela Inquisição.
"gentio", o irmão de São Jorge pagou para que devassassem a vida de seu Recrutadas nas áreas onde o mesteiral havia crescido, onde seus pais
pai já defunto. Não fosse isso, jamais se saberia que ele aprendera o ofício fizeram a vida e no círculo de oficiais mecânicos onde estava inserido, as
com seu genitor, um serralheiro egresso da vila de Ourem, balizado como testemunhas do processo de mestre Manuel pertenciam à bandeira de São
Francisco Vieira e que se estabeleceu em Lisboa, no Passo do Boi Formoso. Jorge e, a dar crédito ao respeito à regra, pertenciam à irmandade. Caeta-
O finado Francisco legou ao seu primogénito o seu saber e fez o no Pereira era mestre ferreiro e morador em Nossa Senhora do Socorro,
mesmo ao seu segundo varão, que, além da arte, herdou-lhe o nome. Isabel Maria da Cruz e Elena da Cruz eram viúva e filha de um mestre
Nascido e crescido entre fechaduras e bigornas, Francisco José Leal tra- ferreiro e habitavam a mesma freguesia, Alexandre Gomes Costa era ser-
balhava lado a lado com mestre Manuel na mesma oficina da Cotovia e ralheiro e residia em São Julião e José Gomes Costa, que tinha o mesmo
era outro dos irmãos de São Jorge a assinar o Compromisso e a ratificar sobrenome deste último, embora fosse apenas seu vizinho, dormia e
os critérios valorizados pela confraria, na admissão de seu corpo de ofi- acordava na mesma paróquia e tinha a mesma profissão.
ciais. Não teria porque não o fazer. Em sua parentela já existiam dois Obedecendo ao padrão das sindicâncias realizadas pelo Tribunal,
familiares e, sem declinar das mesmas ambições, o serralheiro seguiu os que se servia dos cristãos-velhos mais próximos ao habilitando e que não
passos do primo e do irmão mais velho, candidatando-se a familiar no dia eram seus parentes, os cinco depoentes da fase judicial do processo do
de São Jorge do ano de 1762, seis meses depois que mestre Manuel rece- serralheiro Francisco eram oficiais da bandeira de São Jorge, como foram
beu sua carta de habilitação47. os depoentes no inquérito de seu irmão. Todos ganhavam a vida como
Serralheiros, filhos de serralheiros, devotos confessos do padroeiro e serralheiros e viviam, em sua maioria, na Ferraria de São Julião, reduto
familiares, Manuel e Francisco eram homens afinados com as normas deste mester desde os dias que João Brandão relatou a "grandeza e abas-
que regiam a bandeira e o ideário da irmandade e da Inquisição e ajuda- tança de Lisboa". José Gomes da Costa prestou também, mais uma vez,
ram a perpetuá-las em seu meio. Devem tê-las seguido ao pé da letra, aqui o seu testemunho. Se a sua voz era a única a se repetir, num e noutro
porque as diligências realizadas pelo Santo Ofício não foram pretexto processo, era porque sua palavra era uma referência para o tribunal na
para que vizinhos ou outros oficiais mecânicos se atravessem a utilizar a Ferraria Pequena e porque este o serralheiro também era familiar 48 .
situação para levantar suspeições sobre suas qualidades ou de quaisquer Mestre José não compareceu à conferência da irmandade no Hospi-
de seus ancestrais. Em ambos os casos, o inquérito inquisitorial demons- tal Real, onde os irmãos redigiram o estatuto da confraria e reafirmaram
trou que, uma vez respeitadas as leis da corporação, e estando o sujeito o pacto de assistência mútua. Sequer pode-se afirmar se estava vivo ou
enquadrado no tipo ideal de cristão-velho criado pelo Tribunal, a vida morto em 1782. Sabe-se, porém, que se candidatou à milícia do Santo
corria sem maiores transtornos. Ofício bem antes dos irmãos serralheiros, em 1747, aos 34 anos, e muito
Desta feita, das cinco testemunhas do processo de mestre Manuel, provavelmente ajudou a ratificar os critérios de admissão da Casa de São
todas juraram sob os Evangelhos diante das autoridades do Santo Ofício Jorge. Nascera ali mesmo na Ferraria da freguesia de São Julião e era,
que o habilitando preenchia os pré-requisitos para obtenção do título de outrossim, filho de serralheiro. O pai, João da Costa, já defunto, era natu-
familiar, confirmando que era "pessoa de bom procedimento, vida, cos- ral de Azurara da Beira, no bispado de Viseu. Atravessara meio Portugal

46 ANTT. António da Cruz, caixa 32, maço 58, Conselho Geral do Santo Oficio.
48 ANTT. José Gomes Costa. HSO, maço 57, n.° 883.
47 ANTT. Francisco José Leal. HSO, maço 93, n.° 1550.
208 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 209

para estabelecer-se em Lisboa e era, como o pai de Manuel e de Francis- afamado e na pureza do sangue (cristão), no acúmulo do capital material
co, um dentre os muitos que engrossaram os movimentos migratórios que e simbólico da casa que lhes dera origem49, o acento atribuído pelos mes-
fizeram a macrocefalia da urbe na Era Moderna, gerando o crescimento teirais à profissão em detrimento do apelido do grupo de origem, assim
da bandeira de São Jorge e uma torrente de rusgas e queixas entre os como o ímpeto de candidatar-se a familiar do Santo Ofício demonstram
mesteirais, que ficaram registradas nas emendas aos regimentos dos ofí- que a construção de sua identidade social assentava-se sobre o oficio e o
cios do estandarte. sangue (cristão). Se um fidalgo definia-se também por não ter em seu
À sombra do anonimato nos acrescentamentos dirigidos à Câmara costado um antepassado oficial mecânico50 e o atestado de cristão-velho
de Lisboa pelos oficiais da bandeira de São Jorge e revelado até às vísce- adensava-lhe o status construído às custas dos bens móveis e imóveis de
ras pela documentação do Santo Ofício, os históricos dos mestres que dispunha ou dos privilégios, tenças e mercês régios, a pertença à
Manuel, Francisco e José dão a conhecer o impacto provocado pelo des- comunidade cristã há três gerações era um dos poucos senão o único dis-
locamento na trajetória familiar desses oficiais mecânicos e o papel que a positivo capaz de amenizar a pecha que um oficial mecânico carregava
bandeira e a irmandade de São Jorge passaram a assumir em suas vidas. por dever sua subsistência ao trabalho manual, pois criava uma clivagem
Como as gerações anteriores aos seus pais assistiam distantes da capital e entre os mesteirais de outras etnias.
na maioria das vezes estavam ligadas a outra atividade - como os avôs A pouca valia atribuída ao apelido dos oficiais mecânicos encetou
materno e paterno de José Gomes da Costa, ambos lavradores, um em de fato uma irregularidade na transmissão do sobrenome de uma geração
Viseu e o outro em Sintra, e como o pai do serralheiro Francisco, tam- a outra. Entretanto, nem a manutenção do apelido do pai tornou-se uma
bém agricultor em Ourem -, fora efetivamente a vinculação de seus geni- invariante, nem a introdução de um sobrenome novo tornou-se uma cons-
tores à corporação dos homens de ferro e fogo que lhes ajudara a fixar tante. Alguns oficiais herdaram, além do ofício, o último nome paterno.
residência e tornara-se responsável pela manutenção do exercício do ofí- Mas nem sempre era através deste que um oficial mecânico era conheci-
cio, no interior do grupo familiar a que deram origem. Tanto porque seus do entre seus vizinhos e junto aos seus companheiros de lida.
descendentes recebiam por legado o saber, os instrumentos de trabalho, a José Pereira, mestre ferreiro, recebeu de seu genitor, Miguel Pereira,
clientela e o círculo de relações construído pelo parente, quanto porque o apelido e aprendeu com ele as artes da ferraria, na freguesia de São
passaram a contar com um compromisso de entreajuda em caso de Julião. Seu pai, natural de Baião no bispado do Porto, fora o primeiro de
empobrecimento e doença. seu núcleo familiar a ingressar no ramo do estandarte de São Jorge, pois
O movimento migratório marcou, entretanto, profundamente a for- seus dois avôs eram fazendeiros. O pai de sua mãe nascera no sítio de
ma como alguns destes oficiais mecânicos relacionavam-se com suas ori- Arroios e fora batizado na freguesia dos Anjos como Agostinho Gonçal-
gens. Nem sempre presente nas petições encaminhadas ao tribunal pelos ves, porém, era mais conhecido no lugar como "papagaio", assim como
habilitandos, a revelação da ocupação dos ancestrais da terceira geração sua avó, Maria da Conceição, carregava a alcunha de "feiticeira e gericô
fazia-se, frequentemente, pela voz das testemunhas radicadas nas locali- de sorte". Sublinhado pelo notário que realizou as diligências de mestre
dades em que estes antepassados viveram, salientando a fissura que o José, em 176251, os gracejos dos vizinhos não impediram a habilitação do
deslocamento provocava na construção da memória da própria parentela. neto, até porque o encarregado da sindicância localizou o registro de
Por isso, o vínculo com o passado restringia-se, na maioria das vezes, ao batismo do senhor Agostinho e embora o de sua mulher não tivesse sido
laço que os unia ao genitor pelo ofício. Ao contrário do mester, o apelido encontrado na freguesia de São Sebastião da Pedreira, paróquia de onde
do pai nem sempre era transmitido aos descendentes, como se o deslo-
camento espacial engendrasse a descontinuidade do nome de família.
Casado com Maria da Paz, mestre Francisco, por exemplo, deu sobreno- 49 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. "Poder Senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia", in
HESPANHA, António (org.). História de Portugal - o Antigo Regime. Lisboa: Estampa,
mes distintos aos seus rebentos. Enquanto ele assinava Vieira, o filho 1993, pp. 365-367. MELLO, Evaldo Cabral. O Nome e o Sangue - uma fraude genea-
mais velho identificava-se como Nascimento e o outro como Leal. Ao lógica no Pernambuco Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 26-27.
fim, só o último guardava alguma referência aos seus ancestrais, pois o 5° MAGALHÃES, Joaquim Romero. "A Sociedade", in MAGALHÃES, Joaquim Romero.
avô materno chamara-se João Rodrigues Leal. História de Portugal — no alvorecer da modernidade. Lisboa: Estampa, 1993, vol. 3,
Traço atípico entre os fidalgos, sempre afeitos a genealogias legíti- p. 490.
mas ou fraudulentas, porque sua projeção social ancorava-se no nome 5' ANTT. José Pereira. HSO, maço 95, n.° 1377.
210 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 211

se dizia natural, vinte e seis pessoas, todas gentes de mester, confirmaram -se em um lugar, fosse o seu exercício um saber adquirido por herança
que todos os indiciados, inclusive, "a feiticeira", eram cristãos-velhos. paterna ou por contingências alheias à própria vontade, como a atrofia
Observa-se, portanto, que se a transmissão do nome de família era económica das vilas e povoados onde muitos nasciam e que eram incapa-
por vezes inconstante, a transferência do ofício ligava-se intrinsecamente zes de competir com as frentes de trabalho de uma cidade como Lisboa.
à fixação no domicílio por mais de uma geração e, por conseguinte, aos Era, com efeito, por intermédio de seu mester e dos vínculos criados com
laços de estabilidade forjados pelas associações laicas de cunho religioso a corporação, que um oficial mecânico operava sua inserção no seio da
e profissional onde os oficiais mecânicos estavam inseridos. comunidade e construía sua rede de sociabilidade, rompendo muitas
José Jorge de Oliveira, outro dos irmãos de São Jorge a assinar o vezes com a história pregressa.
Compromisso, também crescera entre homens de ferro e fogo e, como Manuel Rodrigues Ferrão é outro dentre os tantos oficiais da bandei-
seus companheiros de corporação, habilitou-se ao cargo de familiar52. ra de São Jorge que confirma o dito. Nasceu fora da capital, em Águeda,
Balizado na freguesia de Santos-o-Velho e morador na mesma localida- no bispado de Coimbra. Aprendeu pelas mãos de seu pai a profissão de
de, mestre José era ferrador e seu grupo familiar residia na dita paróquia ferreiro, dele herdou o apelido e, até deixar seu torrão natal, exerceu lá
e atuava no mesmo ramo do estandarte, havia três gerações. Ao encami- este mester. Ao chegar a Lisboa, meteu-se na oficina de João Pinto, na
nhar sua petição ao tribunal, em 1730, o oficial declarou o nome de seus rua direita das Portas da Cruz, na freguesia de Santo Estêvão de Alfama,
antepassados e destacou que o tio, além de ferrador, auferira o título de e aprendeu com ele o ofício de serralheiro. Dez anos depois, em 1706,
familiar do Santo Ofício, em 169953. Assim como o sobrinho, Manuel tempo que precisou para adquirir cabedal e se infiltrar na vizinhança,
Jorge carregava consigo o nome do orago da bandeira. Recebera-o do deixando-se conhecer e gostar, apresentou-se ao Santo Ofício para reque-
pai, Domingos Jorge, proprietário de uma tenda em Santos, com quem rer o título de familiar, expondo-se à devassa para acrescer ao grau de
aprendeu a sangrar bestas e ferrar mulas e que fora o primeiro em sua oficial serralheiro o orgulho da pureza de sangue54.
rede de parentes a ligar-se à corporação. Embora seu genitor, balizado Investido do prestígio conferido aos que pertenciam à milícia do
com o nome de João Jorge, fosse um hortelão, mestre Domingos conser- Santo Ofício e tendo-se tornado um dos olhos do Tribunal na freguesia
vou-lhe o nome e passou-o aos descendentes.' de Santa Engrácia, mestre Manuel não titubeou ao cumprir as regras da
Distinta das unidades domésticas e fabris formadas por migrantes, a Inquisição e impor à sua noiva a mesma sindicância, quando decidiu
oficina dos ferradores de Santos-o-Velho era composta exclusivamente casar-se, em 1715. Filha de um correeiro, batizada e crescida na freguesia
por lisboetas e não rompera o sentido de continuidade do grupo familiar de São Tomé, Archangella teve sua vida passada e presente vasculhada
que o nome, em última instância, sublinha. Contudo, o trato com as fer- pelo Tribunal, que não encontrou qualquer vestígio de "raça infecta"
raduras não era a única atividade do patriarca Domingos. À ocupação na entre seus ancestrais. Pelo contrário, o inquérito revelava que a trajetória
loja, o oficial conjugava o trabalho nas terras deixadas pelo pai no vale de seus antepassados era em tudo muito semelhante à maioria dos ofi-
de Cheias, sítio da freguesia de Santa Engrácia onde fora batizado e era ciais mecânicos que fizeram a história da bandeira e da irmandade de São
conhecido. O senhor Manuel da Silva, hortelão do lugar e testemunha do Jorge.
processo de seu filho, assegurou ao Santo Ofício que o ferrador costuma- O pai de seu genitor viera de Barcelos para Lisboa e vivera na cida-
va ir ao vale "para fabricar huns olivaes q' [tinha] no dito limite [...]". O de, às custas de suas fazendas, até morrer. Seu avô materno, embora nas-
depoimento indicava que o vínculo que unia mestre Domingos ao geni- cido fora da urbe, em S. Pedro de Almargem, fora latoeiro e estabelecera-
tor, já defunto, permanecera também através da profissão, embora tenha -se na freguesia da Conceição Velha, onde casou e criou a mãe de
abraçado outro mester. Archangella. Exatamente como nos casos descritos anteriormente, seu
Elemento estruturante da identidade social e familiar daqueles cuja avô latoeiro construíra raízes na freguesia, graças ao exercício de seu
principal riqueza era sua força de trabalho, o ofício sobrepunha-se ao mester e às entidades de sua corporação: a bandeira e a irmandade. Por
nome de família de um mesteiral, limitava-o às regras e valores impostos isso, seu ofício era mencionado na petição.
pela corporação à qual pertencia, condicionava-o a abandonar ou a fixar- Defunto à época do requerimento, António Luís cabia nas lembran-
ças de todas as quatro testemunhas do processo intimadas a comparecer
52 ANTT. José Jorge de Oliveira. HSO, maço 32, n.° 523.
53 ANTT Manuel Jorge. HSO, maço 39, n.° 854. 54 ANTT. Manuel Rodrigues Ferrão. HSO, maço 78, n.° 1511.
212 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 213

ao Palácio dos Estaus no Rossio. Todos exerciam o ofício de latoeiro. Igreja nos assuntos do sagrado e valeu-se, evidentemente, do aparato
Três eram moradores antigos na freguesia da Conceição - embora dois cénico e espetacular dos autos-de-fé. Mas cabe frisar que a recorrência
fossem oriundos de fora da cidade -, e o quarto, com toda a certeza, tam- das diligências efetuadas pelo tribunal e pelos irmãos informadores da
bém tinha a mesma ocupação, pois sua morada encontrava-se no arrua- confraria de São Jorge, quer para atender às solicitações encaminhadas
mento da mesma paróquia. No entanto, este último, que atendia pelo pelos habilitandos ao Santo Ofício, quer para responder àqueles que dese-
nome de Manuel Gomes não se identificou pelo ofício, mas sim pelo car- javam ingressar na irmandade do padroeiro, contribuíram também para
go que ocupava na mesa da irmandade de São Jorge, como se, ao dizê-lo, difundir os conceitos de "pureza de sangue" e de "raça infecta" entre os
sua palavra imprimisse uma marca de confiança ao seu depoimento e sua oficiais mecânicos.
ocupação na confraria acrescesse a ele um prestígio que o distinguia dos Ao contrário do que supõe Francisco Bethencourt, "a interferência
demais. E de fato o fazia. A irmandade detinha em seu círculo de irmãos do 'Santo Ofício' na configuração do espaço social"57 não parece tão
uma série de familiares e era quase tão rigorosa na admissão de seu corpo difícil de ser avaliada, na medida em que os processos de habilitação
de oficiais como o era a Inquisição na seleção de seus funcionários. eram conduzidos por linhas gerais de orientação preestabelecidas pelo
Ademais, se houvesse um auto-de-fé em 1715, como ocorrera no ano tribunal. Os inquéritos para familiar do Santo Ofício envolviam testemu-
anterior55, seria ele, o irmão andador, e não outro, a acender as tochas do nhas que, mesmo jurando sob as Escrituras guardar segredo sobre as
seleto grupo de oficiais mecânicos, que, a despeito de serem ou não fami- informações prestadas, respondiam a um questionário-padrão. O proce-
liares, participariam da cerimónia inquisitorial. dimento utilizado para a sindicância no bairro da Alfama e na Ferraria de
Talvez por isso ou apenas pela falta de renda para patrocinar as dili- São Julião era igualmente aplicado em Torres Vedras ou em Viseu e
gências, Manuel Gomes não se tenha habilitado a familiar do Santo Ofí- inquiria diretamente o vizinho ou companheiro de ofício sobre a conduta
cio, pois já honrava os anuais da irmandade. De todo modo, não carecia e a parentela do habilitando. Abrangendo áreas díspares e atravessando
de fazê-lo para provar que era um cristão-velho, aliás, como nenhum os dois géneros em segmentos sociais distintos, a sindicância acabou por
outro irmão de São Jorge. Se as demais confrarias formadas em Lisboa contribuir para perenizar o conteúdo sobre o qual o conceito de cristão-
no período moderno eram bases de apoio ao discurso religioso pós- -velho se erguera: a pureza de sangue. O processo gradativo de assimila-
-Trento e zelavam pelo culto às figuras santas do catolicismo, além de ção e introjeção destes valores ficou patenteado nos textos das petições
observar os ritos sacramentais e cumprir as obras de misericórdia, a encaminhadas ao Santo Ofício pelos postulantes ao cargo de familiar.
irmandade a que pertencia levara o ideário tridentino aos extremos. Tor-
nara-se também uma célula de reprodução ativa dos conceitos arbitrá-
rios56 de "pureza de sangue" e de "raça infecta" desenvolvidos pela 2.1. Nem mouro, nem mulato, nem judeu: a vulgarização do
Inquisição, ao condicionar a participação em seu corpo de oficiais à conceito de cristão-velho nos redutos tradicionais da ban-
observação destes dois preceitos. Visto que a entrada na irmandade era deira de São Jorge
obrigatória a qualquer oficial da bandeira desde 1654, a confraria acabou
por tornar naturais um e outro, transformando-os em componentes estru- Em 1608, quando o barbeiro Manuel Cortes, morador defronte da
turantes das culturas de oficio do estandarte. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, candidatou-se a familiar, declarou
O processo de vulgarização do tipo ideal de cristão propagado pelo em sua solicitação que costumava acompanhar seu pai, familiar do Santo
Santo Ofício e assimilado pela irmandade de São Jorge contou com o las- Ofício havia vinte anos, nas prisões que executava na cidade. Julgando-se
tro das interdições legislativas sobre a livre atuação de judeus, mouros e idóneo para ocupar o cargo, tanto pela experiência, quanto pelo parentes-
negros, usou da censura às práticas religiosas que feriam o monopólio da co que o unia ao barbeiro Salvador Dias, o oficial mecânico requereu ao
Tribunal que lhe tirassem as informações, visto que tinha as "partes
55 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 158, fl. 337. necessárias" para a função58. A fórmula utilizada pelo mestre barbeiro
56 Arbitrário é entendido aqui como uma seleção, como uma escolha operada pela socie- mantinha implícito o conceito de pureza de sangue e era um dos modelos
dade em um dado momento histórico e que não pode ser deduzida de qualquer princí-
pio universal, físico, biológico ou espiritual, mas que é derivada de condições sociais
específicas. Cf. BOURDIER, Pierre. "Génese e Estrutura do Campo Religioso", in Cf. BETHENCOURT, Francisco, op. cit., p. 263.
A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, p. 48. ANTT. Manuel Cortes. HSO, maço 4, n.° 140.
215
Oficio e Sangue
214 Georgina Silva dos Santos

seus vizinhos, o discurso que orientava as práticas de intolerância religio-


das petições enviadas ao Santo Oficio, pelos pretendentes ao cargo de sa que nortearam as ações persecutórias do Santo Ofício. Cabe lembrar
familiar, no início do século XVII. Mas, gradativamente, a expressão que não eram os únicos a propagar o ideário inquisitorial, produtor de
"partes necessárias" passaria a concorrer com outras variantes. uma legião de foras-da-lei, sentenciados com penas de degredo ou de tra-
Em 1693, o dourador Manuel de Oliveira, natural da vila de Cadaval e balho forçado nas galés d'el-rei. O comprometimento com os valores
morador na correaria da freguesia de Nossa Senhora da Vitória, encami- defendidos pela instituição atravessava toda a sociedade portuguesa e,
nhou sua solicitação ao tribunal para habilitar-se como familiar. Utilizou, portanto, outras categorias profissionais, visto que o oficialato do Tribu-
como aquele barbeiro, a mesma sentença, limitando-se a informar os dados nal compunha-se de religiosos e leigos e o título de familiar era concedi-
de seus antepassados e a solicitar que lhe fizessem as "diligências de esti- do a sujeitos de segmentos socais distintos.
lo"59. No entanto, o ferreiro Manuel Ferreira, nascido e crescido na Ferraria A progressiva inserção social dos critérios usados pela Inquisição,
de São Julião, reduto tradicional da bandeira de São Jorge e filho de um para o recrutamento de seus funcionários, e as penalidades infligidas
homem do mesmo mester, quando dirigiu seu pedido ao Tribunal, no àqueles que se desviavam do comportamento idealizado para um cristão-
mesmo ano, foi mais explícito. Em sua petição, declarou que "tinha gran- -velho acabaram por facultar o abandono das formas elípticas utilizadas
des desejos de servir ao Santo Officio" e como tinha "todos os requizitos" nas petições para o cargo de familiar, no início do setecentos. Ao remeter
e era "inteiro christão velho per sy" e por sua mulher, solicitava que lhe seu pedido de habilitação ao Santo Ofício, em 1704, o mercador Manuel
fizessem as diligências necessárias para admiti-lo no cargo60. Ramos Aires, morador da Rua Nova da freguesia de São Julião e conhe-
Apartadas uma da outra por quase cem anos, as petições do barbeiro cido do latoeiro de martelo João Rodrigues, abandonou a fórmula consa-
Manuel e de seu homónimo ferreiro refletiam a progressiva difusão das grada até então. Demonstrando "vontade de servir a esta santa caza" e
normas que orientavam as ações do Tribunal, no tocante à admissão de julgando-se adequado para o cargo, requereu sua admissão, argumentan-
seus quadros funcionais, e salientavam a repercussão destas regras entre do simplesmente que não tinha "rassa alguma de mullato, mouro, ou
os oficiais da bandeira de São Jorge, após sua adoção pela irmandade. judeo"62, ao invés de dizer-se cristão-velho.
Recorde-se que o primeiro requerimento é anterior a 1613, data do pri- Eco do discurso disseminado pelo Santo Ofício, a voz de Manuel
meiro regimento impresso pelo tribunal, onde foi definido claramente o Aires sinalizava o alcance dos parâmetros utilizados pela Inquisição, para
perfil exigido a cada funcionário da Inquisição, e o segundo é posterior demarcar os limites da comunidade cristã sujeita às leis do Estado luso.
ao regimento de 1640, onde a associação entre cristão-velho, raça e lim- Antítese da prédica que alimentou o cristianismo primitivo, assentada na
peza de sangue foi formalizada textualmente pela instituição. A fórmula conversão e na aceitação da Boa Nova, a afirmação do mercador
utilizada na petição do ferreiro Manuel era, com efeito, uma evidência do demonstrava que a identidade cristã portuguesa, forjada à Época Moder-
nível de introjeção da ideologia inquisitorial junto aos homens de ferro e na, definia-se, antes, pela ausência de laços de sangue com quaisquer
fogo e do papel da irmandade como foco de propagação e legitimação daquelas minorias, do que, simplesmente, pela observância dos ditames
das atividades inquisitoriais. do catolicismo, pela obediência ao catecismo ou pela disposição em car-
Residentes em bairros que combinavam casas de morada às ativida- regar o andor de um santo, à vista de todos, nas cerimónias religiosas.
des dos setores secundário e terciário, desde o início da Era Moderna Construído em oposição a culturas antigas em solo lusitano, mas também
(São Miguel d' Alfama, São Julião, São Nicolau e Santa Justa), mas tam- em contraste com aquelas integradas ao espaço político e geográfico do
bém assistentes em sítios mais afastados do coração da cidade, uns com império ultramarino, o conceito de identidade cristã, tecido pelo Santo
espaços sulcados por hortas e olivais (Santa Engrácia), outros ainda ocu- Ofício e reproduzido pelos aspirantes ao cargo de familiar, baseava-se na
pados por antigas quintas (Santos-o-Velho) ou com amplas áreas baldias
criação de estereótipos capazes de sublinhar a diferença entre um Estado
e, por isso, com terrenos disponíveis a baixo custo e prontos para recebe-
colonizador e os povos conquistados. Parte da engrenagem que deu legi-
rem novos núcleos industriais (Anjos e Santa Isabel)61, os oficiais de São
timidade a este discurso, os irmãos de São Jorge não pensavam diferente.
Jorge, de fato, perenizaram, entre os membros de sua parentela e entre
Afinal, concediam, desde longa data, um tratamento diferenciado àqueles
que fossem familiares do Santo Ofício.
s? ANTT. Manuel de Oliveira. HSO, maço 48, n." 1072.
60 ANTT. Manuel Ferreira. HSO, maço 47, n.° 1044.
61 RODRIGUES, Teresa. Cinco Séculos de Quotidiano - a vida em Lisboa, do século XVI 62 ANTT. Manuel de Ramos Aires. HSO, maço 58, n." 1214.
aos nossos dias. Lisboa: Cosmos, 1997, pp. 32 e 35.
216 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 217

Como se pode observar pelas familiaturas analisadas anteriormente, funcionais da instituição (c. 5,3%), os mesteirais de ferro e fogo passa-
o vínculo que unia a irmandade à Inquisição de Lisboa não era uma novi- ram a um número expressivo no setecentos (c. 45,3%) e ultrapassaram
dade da Reformulação do Compromisso de 1782. Tampouco era uma esta média no século XVIII (c. 49,3%). Mas a participação das profissões
invenção do século XVII. A radicalização dos critérios de admissão na do estandarte não foi, de modo algum, homogénea neste intervalo. Com-
confraria pode ter sido obra dos homens de capa e volta que andaram parado aos demais mesteres, a cabeça da bandeira concentrou sozinha
nesta associação confraternal entre 1620 e 1654, mas a candidatura de 41,3 % das familiaturas, em contraste com os 58,7% de todos os ofícios
oficiais da bandeira de São Jorge ao cargo de familiar remonta à fase de anexos do estandarte, como se pode constatar pelos dados arrolados no
estabelecimento do Tribunal em Lisboa e é um espelho do processo de quadro a seguir.
aprimoramento e expansão das atividades inquisitoriais.

2.2. Familiares e barbeiros: a natureza do vínculo entre os Familiaturas da bandeira de São Jorge (séculos XVI-XVIII)
irmãos de São Jorge e o Santo Ofício
N.* oficiais no século XVI N.* oficiais no século XVII N.' oficiais no século XVlll
Embora não se possa assegurar o número total de oficiais do estan- Barbeiros de barbear - 3 Barbeiros de barbear - 17 Barbeiros de barbear - 9
— Barbeiros de espada - 1 Barbeiros de espada - 1
darte que ingressaram na milícia do Santo Ofício, pode-se aferir por
Serralheiros - 1 Serralheiros - 1 Serralheiros - 8
amostragem que estes mesteirais marcaram presença em seu oficialato — Ferradores - 4 Ferradores - 4
pelo menos desde 1588. Entre esta data e 1782, ano da redação do Com- — Douradores - 3 Douradores - 3
promisso, 75 oficiais da Casa de São Jorge receberam do Tribunal a carta — Ferreiros - 3 Ferreiros - 2
de familiar63. Com uma representação, a princípio tímida, nos quadros — Cutileiros -1 Cutileiros - 1
— Bainheiros - Z —
— Bate-folhas - 1 Bate-folhas - 1
63 ANTT. André de Barros, HSO, maço 2, n.°s 35-46; António Carvalho, HSO, maço 12,
n.os 453-470; António Ferreira, maço 8, n.0! 317-332; António Filipe, HSO, maço 52,
— Latoeiros - 1 Latoeiros - 2
n.° 1117; António Gomes, HSO, maço 4, n.os 142-164; António Jorge, HSO, maço l, — — Latoeiros de martelo - 2
n.M 1-13; António Luís Pereira, HSO, maço 51, n.° 1103; António Nobre, HSO, maço 5, — — Fundidores de cobre - 1
n.°212; António Pires, maço 4, n.os 167, 142-164; António Antunes, HSO, maço 3, — — Espadeiros - 2
n.° 127; António Batista de Azeredo, HSO, maço 128, n.°2161; António Carvalho, — — Espingardeiros - 1
HSO, maço 12, n.°453; António da Cruz, HSO, maço 120, n." 2045; António da Silva
Franco, HSO, maço 7, n.05 298-316; Bento Fernandes, HSO, maço l, n.° 2; Bento José l Total de oficiais - 4 l Total de oficiais - 34 l Total de oficiais - 37
dos Santos, HSO, maço 12, n.° 175; Cipriano José dos Reis, HSO, maço l, n.° 12;
Constantino de Carvalho, HSO, maço l, n.° 1; Diogo de Seixas, HSO, maço l, n.°44;
Domingos António Jacques, HSO, maço 3, n.°570; Domingos Carvalho, HSO, maço l,
n." 2; Domingos Fernandes, HSO, maço l, n.° 13; Domingos da Silva, HSO, maço 16,
n.° 353; Estêvão de Oliveira, HSO, maço 3, n." 34; Estêvão Rodrigues Cardoso, HSO,
maço 4, n.° 58; Faustino Francisco Mourão, HSO, maço I, n.° 7; Félix Pereira, HSO,
maço l, n.° 12; Francisco Ferreira, HSO, maço l, n.°20; Francisco João, HSO, maço 31, n.° 396; José Duarte, HSO, maço 20, n.° 336; José Duarte, HSO, maço 62, n.° 958; José
n.° 736; Francisco Jorge, HSO, maço 3, n.° 122; Francisco José Fernandes, HSO, maço Félix da Silveira; maço 121, n.°2622; José Ferreira, HSO, maço 80, n.° 167; José
127, n." 1917; Francisco Moura, HSO, maço 95, n." 1586; Francisco de Oliveira, HSO,' Francisco, HSO, maço 85; n.° 1253; José Jorge de Oliveira, HSO, maço, 32, n.° 523;
maço 9, n.° 340; Francisco Rodrigues, HSO, maço 6, n." 230; Francisco Rosado da António Francisco Claro, maço 209, n.°3119; Manuel Fernandes Ramalho, maço l,
Pedra, HSO, maço 105, n.° 1665; Gonçalo Aires, HSO, maço I, n.° 30; Gregório Perei- n.° 2; Manuel Cosmo, HSO, maço 8, n. ° 5; Manuel Lopes Ribeiro, HSO, maço 12,
ra dos Reis, HSO, maço 3, n.° 51; João Alves Chaves, HSO, maço 82, n.° 1467, João n." 334; Manuel dos Santos, maço 54, n.° 1143; HSO, maço 25, n. ° 608; Manuel Soa-
Corrêa, HSO, maço 10, n.° 325; João da Cunha, HSO, maço 26, n.° 638; João Duarte, res, HSO, maço 58, n. ° 1213; Manuel Cortes, HSO, maço 4, n.° 140; José Gomes Cos-
HSO, maço 36, n.° 791; João Gonçalves, HSO, maço 73, n." 1349; João Pedro da Silva, ta, HSO, maço 57, n.°883; Joseph Ferreira, HSO, maço 95, n.° 1377; Manuel Pinto,
HSO, maço 156, n.°2248; João da Silva Ferreira, HSO, maço 86, n.° 1504; João HSO, maço 6, n.° 201; Manuel Lopes, maço 26, n.° 594; Manuel Pinheiro, HSO, maço
Vicente, HSO, maço 10, n.°318; Joaquim Aleixo Lopes; HSO, maço 5, n.°52; Joa- 63, n.° 1288; Manuel Rodrigues Ferrão, HSO, maço 78, n.° 1511; Manuel de Oliveira,
quim José, HSO, maço 13, n.° 157; Joaquim José Primavera, HSO, maço 15, n.° 170; HSO, maço 48, n.° 1072; Francisco Joseph Leal, HSO, maço 93, n.° 1550; Manuel
Jordão de Azevedo, HSO, maço l, n.° 1; José Bernardo do Couto, HSO, maço 137, Nascimento, HSO, maço 186, n.° 1975; Manuel Jorge, HSO, maço 39, n.°854; José
n.°2747; José Caetano Moraes, HSO, maço 90, n.°921; José Dias, HSO, maço 24, Gomes Costa. HSO, maço 57, n.° 883; José Pereira, HSO, maço 95, n.° 1377.
218 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 219

Mantendo uma participação efetiva entre os oficiais mecânicos que


integravam o contingente de familiares do Santo Ofício, os barbeiros de N.° de familiares da bandeira de São Jorge (1536-1782)
barbear destacaram-se dos demais mesteirais do estandarte de São Jorge,
Ofícios 1540-1620 1620-1774 1774-1782
tanto pelo número de candidaturas enviadas ao tribunal, quanto por sua
antiguidade na instituição. Os dados expostos acima indicam que, ao con- Barbeiro de barbear 12 17 —
trário dos ofícios anexos da bandeira, partícipes da milícia do Tribunal Barbeiro de espadas
2 —
apenas no século XVII, os barbeiros de barbear faziam parte dela desde 9 —
Serralheiros 2
fins do quinhentos. Note-se que o aumento das familiaturas dos oficiais 7 —
Ferradores 1
de ferro e fogo no seiscentos correspondeu diretamente ao alistamento de 4 —
outras profissões da corporação nos quadros da Inquisição. Mas, ainda Douradores 1
6 —
assim, dos 34 mesteirais que receberam carta de familiar durante o século Ferreiros —

XVII, metade eram barbeiros de barbear. Embora com um número mais Bainheiros — 1 —

reduzido na centúria seguinte, estes oficiais continuaram mantendo a Cutileiros —


1 —
liderança das familiaturas, quando as candidaturas de praticamente todos Bate-folhas — 2 —
os mesteres da bandeira fizeram crescer o cômputo de familiares do San- 3 —
to Ofício oriundos da Casa de São Jorge. Latoeiros —
Latoeiros de martelo — 3 —
O redimensionamento das atividades do tribunal, no século XVII, 1 —
teve, evidentemente, um peso importante no aumento de habilitações' Fundidores de cobre —
Espadeiros 2 —
Vale recordar que, neste período, enquanto intensificava sua atuação per- —
1 —
secutória, a Inquisição elaborou dois regimentos, com o fito de apurar Espingardeiros —
suas atividades de investigação e punição e de organizar sua malha buro-
crática e seus quadros funcionais. O súbito aumento de familiaturas dos Total de oficiais 16 59 0
mesteirais da bandeira de São Jorge, no seiscentos, e a prevalência dos
barbeiros de barbear neste universo só podem ser explicadas, porém, à
luz das relações estabelecidas entre a gerência da corporação e a irman-
dade e considerando a natureza do ofício dos mestres da navalha. um crescimento de 57,4% nas familiaturas. Em contrapartida, a drástica
redução de candidaturas, no último quartel do setecentos (1774-1782),
Ao obter, em 1620, um alvará régio restringindo a eleição para a
revela, sem dúvida, o impacto que a abolição da distinção entre cristão-
Casa dos Vinte e Quatro aos oficiais da corporação que integravam a
-velho e cristão-novo teve no seio da associação. Não seria, portanto,
irmandade de São Jorge e, em 1654, um outro alvará régio condicionan-
absurdo aventar que, de fato, até então, a irmandade de São Jorge utili-
do a aquisição da licença para a atuação profissional à inscrição prévia na
associação confraternal, a irmandade acabou por difundir as regras de zasse este dado como um dos critérios para adoção de seus membros.
admissão para familiar do Santo Ofício, entre os oficiais do estandarte, Mas se, desde 1620, houve pelo menos um familiar egresso dos ofí-
encorajando suas candidaturas ao tribunal. O crescimento do número dê cios anexos do estandarte, o número de barbeiros de barbear também
habilitações dos mesteirais do estandarte após o alvará de 1620 é flagran- aumentou, ainda que sem implicar em alterações bruscas. A quota de par-
te, como se pode observar na tabela a seguir. ticipação desses mesteirais entre o primeiro e o último regulamento pro-
mulgado pelo Santo Ofício, ou seja, entre 1540 e 1774, demonstra a lon-
Note-se que, no período compreendido entre o primeiro regulamento gevidade do vínculo entre os oficiais que compunham a cabeça da
da Inquisição e a data do primeiro alvará régio (1540-1620), o número de bandeira de São Jorge e a Inquisição.
oficiais da bandeira de São Jorge correspondia apenas a 21,3% das 75 O elo que unia os barbeiros de barbear ao Santo Ofício era, efetiva-
familiaturas. Após a implementação da regra que subordinou a possibili- mente, distinto daquele que justificava a presença dos demais oficiais
dade de participação no grémio dos mesteres ao ingresso na irmandade e, mecânicos no rol de familiares do tribunal. Enquanto estes se restringiam
por conseguinte, à sindicância que atestava ou não a "pureza de sangue" a um trabalho de busca, apreensão e condução dos indiciados, os barbei-
do mesteiral, o cômputo de candidaturas mais do que duplicou, gerando ros, muitas vezes, ingressavam nos quadros funcionais da instituição
220 Georgina Silva dos Santos Oflcio e Sangue 221

como "sangradores dos cárceres". Ao lado de médicos e cirurgiões, estes iniciais de 8 mil réis e trinta alqueires de trigo, o barbeiro teve seus pro-
oficiais integravam a equipe de atendimento aos encarcerados atingidos ventos anuais acrescidos em 1592, quando passou a receber também um
por alguma moléstia nas cadeias inóspitas do Santo Ofício ou acometidos alqueire de grão e outro de chicharros pela Quaresma e mais um quarto
pelos achaques decorrentes das penas e torturas a que eram expostos. A de carneiro pela Páscoa e pelo Natal.
possibilidade de integrar o staffde funcionários que tinham atribuições Mestre António decerto fez uma carreira de sucesso se comparado
fixas, com um ordenado assegurado por uma provisão, acabou por agen- aos demais oficiais mecânicos. Naturalmente, nem todos os mestres na
ciar a superioridade numérica de suas habilitações, no âmbito da bandeira arte de sangrar e barbear e portadores de uma carta de familiar adiciona-
de São Jorge. Também por isso, no conjunto das 75 familiaturas compu- ram ao seu currículo a prestação de serviços médicos ao tribunal do San-
tadas, as mais antigas eram assinadas por barbeiros. to Ofício e ao Hospital Real. Mas, assim como aqueles que passaram
Salvador Dias e Manuel Fernandes Ramalho foram dos primeiros suas vidas amolando navalhas nas tendas e sangrando as gentes a domicí-
dentre os oficiais da bandeira de São Jorge a requerer ao tribunal o título lio, mestre António estava submetido às leis que regiam o estandarte de
de familiar, um em 1588 e o outro em 1590, respectivamente64. Não São Jorge. A dar crédito ao ano de sua entrada no Hospital do Rossio
consta que, posteriormente, tenham sido empossados como barbeiros dos (1569) e à data em que a confraria de São Jorge dividiu-se em dois cor-
cárceres. Mas mantinham, por contingências do ofício, um contato estrei- pos, um de irmandade e outro de bandeira (1558), António Nobre prova-
to com os oficiais que lidavam nas prisões. Entre as testemunhas do pro- velmente participou do processo de definição dos estatutos de uma e de
cesso do barbeiro sangrador Manuel Ramalho encontrava-se mestre outra, ajudando a formulá-las.
António, homem de pouco mais de sessenta anos, vizinho do habilitando Perfilado entre os profissionais que lideravam o estandarte de São
e sangrador do Santo Ofício já havia alguns anos. Jorge, o histórico do barbeiro de barbear e sangrar permite compreender
Roído pelas traças, o apelido do barbeiro António desfez-se no os critérios sobre os quais se assentara a supremacia destes oficiais mecâ-
papel, aliás, juntamente com as demais informações da sindicância reali- nicos, no âmbito da corporação dos oficiais de ferro e fogo. Exercendo
zada a pedido de mestre Ramalho. Todavia, sendo um funcionário um mester situado no limite entre as artes liberais e as artes mecânicas,
nomeado pela Inquisição, o sangrador dos cárceres não contradisse a estes oficiais estavam ligados direta ou indiretamente à génese dos qua-
regra geral. Como boa parte dos profissionais que atuavam no tribunal, dros funcionais de duas grandes instituições régias do solo lisboeta.
também ligou-se à milícia de familiares. A considerar o ano em que pres- Destros em uma técnica que constituía a principal terapêutica médi-
tou seu depoimento nos Estaus e a data das habilitações de seus homóni- ca na Era Moderna, a sangria, estes homens construíram um poder no
mos, o barbeiro tinha o sobrenome de Nobre e era morador na rua de campo de atuação dos oficiais mecânicos que se refletiu no diálogo man-
Nossa Senhora da Palma, na freguesia de São Nicolau65. Pouco mais, ou tido com a Câmara Municipal, no endereço da Casa de São Jorge, situada
nada, sabe-se sobre sua vida pregressa, exceto que foi nomeado pelo sempre no Hospital Real, e, sobretudo, na deferência régia de que foram
escrivão da fazenda da Santa Casa de Misericórdia como barbeiro san- alvo. Pois, além de ter-lhes entregue os cuidados do culto ao padroeiro
grador do Hospital de Todos os Santos, em 1569, e que exerceu esta fun- português, a realeza cumulou de mercês sua irmandade, permitindo que a
ção, nesta casa hospitalar, até sua morte, em 160866. Com vencimentos gerência da bandeira ficasse submissa às leis da associação confraternal.
Primitivos detentores do estandarte e os primeiros a converterem
64 ANTT. Manuel Fernandes Ramalho. HSO, maço l, n.°2 (em mau estado). O processo suas faltas em cera para São Jorge, em seus próprios regulamentos, os
de habilitação de Salvador Dias não foi localizado. Mas sua profissão e o tempo de barbeiros foram decerto os principais responsáveis pela manutenção da
permanência na instituição são mencionados na petição encaminhada por seu filho, devoção ao padroeiro, além do paço, e também os grandes mentores das
Manuel Cortes, em 1608. ANTT. Manuel Cortes. HSO, maço 4, n.° 140. regras que regiam a bandeira e a irmandade, mestres na arte de barbear e
65 ANTT. Livro das Habilitações do Santo Ofício. Letra "A". António Nobre, HSO, maço sangrar, integraram instituições que lhes facultaram o acesso às cerimó-
5, n.° 12. Embora a indicação do processo de António Nobre^onste^da listagem elabo- nias que patrocinavam: os autos-de-fé e o "momento do defuntos". Por
rada pelo Arquivo, seu processo não foi localizado, llsa-se aqui as informações conti-
das no resumo do processo.
66 "Trelado da Provizão perque o provedor e irmão da mesa ouverão por bem de dar o -14. Cf. também "índice annotado dos facultativos do Hospital de Todos os Santos,
oficio de samgrador do Hospital a António Nobre Barbeyro, apud. SANTOS, Costa. hoje denominado Hospital de São José, desde a sua fundação", in LOPES, Alfredo
"Sobre Barbeiros Sangradores do Hospital de Lisboa". Separata dos Arquivos de His- Luiz. Contribuições para a História das Sciencias Medicas em Portugal. Lisboa:
toria de Medicina Portuguesa. Porto: Tip. da Enciclopédia Portuguesa, 1921, pp. 11- Imprensa Nacional, 1890, p. 17.
Oficio e Sangue 223
222 Georgina Silva dos Santos

vínculo entre a milícia do Santo Ofício e os oficiais mecânicos que for-


fim, não só lideraram o estandarte de São Jorge como projetaram uma
mavam a irmandade de São Jorge. Afinal, o processo de habilitação para
irmandade formada exclusivamente por oficiais mecânicos, no circuito
integrar este braço do tribunal, ou ingressar na Casa de São Jorge, era
das solenidades mais importantes da cidade.
exatamente o mesmo. Por isso, seus padroeiros estavam lado a lado,
Por fazerem da irmandade de São Jorge seu pequeno potentado e do
culto ao mártir seu principal escudo, portanto, seu emblema e sua arma dividindo a cena.
É certo que o arco construído para a entrada de Filipe III em Lisboa
de defesa, os barbeiros uniram o santo à história das Casas onde estavam
e a entrega da cruz da irmandade de São Jorge no altar da abjuração,
inseridos. Afirma-se, portanto, que a presença da confraria naqueles dois
durante a cerimónia do auto-de-fé, realmente inseria o padroeiro portu-
eventos justificava-se tanto porque o patrono português era "defensor da
guês na solenidade, sublinhando a carga simbólica imputada ao protelar
fé cristã", como porque, ao tempo da separação da corporação dos
e defensor do reino, no combate à heresia, inimiga da fé católica. Contu-
homens de ferro e fogo em dois corpos, a irmandade e a bandeira, sua
do, São Jorge e sua irmandade mantinham uma correspondência recípro-
liderança já pertencia aos quadros funcionais do Hospital Real e do Santo
ca nas cerimónias públicas de Lisboa. A presença da cruz da associação
Ofício.
confraternal no altar da abjuração dava também ao emblema do tribunal,
Criadas na atmosfera espiritual que concedeu especial atenção às
obras corporais da misericórdia, essas duas instituições régias tinham um "Misericórdia e Justiça", outra conotação.
Francisco Bethencourt associou uma das faces da divisa do tribunal
compromisso com o atendimento aos doentes e aos presos. Se esta pre-
missa era evidente para o Hospital de Todos os Santos, era, apesar dos (a misericórdia inquisitorial) apenas à reintegração do condenado na
pesares, também um dever da Inquisição. Embora fosse o autor de sen- comunidade cristã, após o arrependimento público70. No entanto, as mãos
tenças com severas penas corporais e utilizasse a tortura como um meio que retiravam os penitenciados dos cárceres para conduzi-los aos braços
para extrair confissões, o Santo Ofício era um tribunal eclesiástico, da justiça inquisitorial eram as mesmas que acudiam os enfermos das
cadeias com sangrias. Logo, a entrega da cruz da irmandade de São Jorge
jamais poderia negar o atendimento médico aos doentes que ele mesmo
no altar da abjuração também expressava, simbolicamente, o atendimento
produzia. A inobservância ou omissão de socorro feria frontalmente os
princípios do discurso vigente no seio da Igreja, onde a caridade tinha um prestado pelos barbeiros nas prisões de Lisboa.
A deferência conquistada pelos barbeiros, em função de sua arte,
lugar cativo. Por isso, sem descurar da performance que orquestrava o
espetáculo dos autos-de-fé, a Inquisição de Lisboa punha em cena, atra- facultou-lhes a participação no "pio auto do Santo Ofício" desde que este
se "eregio no Reyno" e, na sequência, acabou por beneficiar ferreiros,
vés dos irmãos de São Jorge, o braço da instituição responsável pelo cui-
dado aos sentenciados. serralheiros e demais mesteirais com um lugar na mesa da irmandade de
São Jorge. Pois, assim como a cabeça do corpo de oficiais do estandarte,
A participação da confraria de São Jorge nas procissões dos autos-
estes homens também integravam o cortejo dos penitenciados da Inquisi-
-de-fé lisboetas não se resumia, portanto, a "uma forte presença", como
diz Francisco Bethencourt67. Nem tampouco a gravura de Hans Schor- ção, granjeando um prestígio que o latoeiro Manuel Gomes fez questão
de externar, quando se identificou como andador da irmandade de São
Kens, que retrata o arco dos familiares da Inquisição de 1619, explica-se
Jorge diante do Tribunal, na ocasião da sindicância do ferreiro Manuel
como a "auto-glorificação do tribunal no seu papel de reparador das
Rodrigues Ferrão. Mas o que o universo das representações era capaz de
ofensas perpretadas contra Deus, a Igreja e a Coroa"68, como entende o
historiador português (v. figura 6). A imagem em que São Jorge - de par exibir pela mediação de símbolos só encontra justeza caso a observação
com São Pedro Mártir, patrono da milícia inquisitorial - perfura com a ultrapasse os limites das cerimónias inquisitoriais, estenda-se além dos
espada e esmaga com um dos pés uma hidra de sete cabeças, símbolo dos gestos de seus participantes e se debruce sobre a lida diária dos barbeiros
de barbear e sangrar e o alcance de suas atividades, nos cárceres da
sete pecados capitais e dos vícios69, que, sempre dispostos a corromper,
careciam da constante vigilância dos familiares, indicava, na verdade, o Inquisição. Esta será a matéria de análise do próximo capítulo.

67 BETHENCOURT, Francisco, op. cií., p. 213.


68 Idem. p. 86.

69 CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,


70 BETHENCOURT, Francisco, op. cif., p. 222.
figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 492.
Fig. l - Vista da fachada oriental do Rossio, antes do terremoto. No alto da colina, o Castelo de São Jorge. Em primeiro plano,
o Hospital Real, que abrigou a sede da Irmandade de São Jorge até 1755. Desenho sobre papel. (Reproduzido de MOITA,
Irisalva. V. Centenário do Hospital Real de Todos os Santos, p. 34).
(Tuí. / / / / tpi-c.?ii)ic i:y OT !-••<:•
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í CIO ptTU 7lli't!O/'(.f i I I - : . •'/.';<• OS, C] U C j LU tf < < v
'L ' " fC
Fig. 3 - Pormenor do Compromisso da Irmandade de São Jorge de Lisboa,
1782 (MBCB).

. 2 - Iluminura do frontispício do Compromisso da Irmandade


de São Jorge de Lisboa, 1782 - Museu-Biblioteca
da Casa de Bragança. Vila Viçosa (MBCB).
Fig. 4 - São Jorge e o Dragão. Iluminura do Compromisso
da Irmandade de São Jorge de Lisboa, 1782 (MBCB).
Fig. 5 - Iluminura com escudo da bandeira dos homens de ferro e fogo da cidade
de Lisboa. Compromisso da Irmandade de São Jorge, 1782 (MBCB). Fig. 6 - São Pedro Mártir e São Jorge. Arco dos Familiares da Inquisição,
construído para a entrada de Filipe III em Lisboa. Hans Schorkens, gravura,
1619. In João Baptista Lavonha, Viagem da Catholica Real Magestade dei
ReyD. Felipe IIN. S. ao Reino de Portugal. Madrid, 1622.
CAPITULO IV

MESTRES NA ARTE DE SANGRAR

- -
«
_r wc "Sangrai e purgai-o e se morrer enterrai-o".
O u-
10 '5 Folclore português
— c
S l"

Os barbeiros foram os principais agentes na transmissão da arte de


sangrar, desde que a Igreja proibiu aos clérigos de realizarem interven-
ções cirúrgicas e administrarem sangrias, em meados do século XII. O
8 "^
iO
5 veto pontifício não afastou completamente os monges da prática, até por-
g u
'S "Q que os mosteiros continuaram conservando em seu corpo de edifícios

II
o •-
hospital e botica. Mas facultou aos leigos, destros no manejo da navalha
e que executavam tonsuras nos religiosos, o acesso a uma habilidade
desenvolvida nos conventos1.
Organizados em confrarias_quando a expansão das trocas comerciais
3 p
60 E
facilitou a concentração de/Serviços na área urbana, os barbeiros foram
sujeito e objeto, tal e qual os demais mesteirais, do processo de especiali-
-S '5 zação das atividades profissionais que marcou o mundo do trabalho, no
final da Idade Média. Entregues à arte de sangrar, aos cortes de barba e
—j W cabelo, à amolação de espadas, à fabricação de lancetas e navalhas ou ao
3 .s tratamento de abcessos, fraturas e feridas, estes oficiais mecânicos tanto
s .s?
li afiavam armas de combate, quanto combinavam em sua lida diária técni-
cas de cura e/ou de asseio pessoal. O crescimento da demanda destes ser-
viços nas cidades e o aperfeiçoamento progressivo dos mesteres afins
acabou por agenciar a divisão destes saberes. Todavia, ainda que a espe-
cialização dos barbeiros de guarnecer tenha sido visível, a superposição
das atividades ligadas à barbearia e à cirurgia continuou notória.

1 A execução da sangria por qualquer religioso foi proibida no Concilio de Tours (l 169)
pelo documento Ecclfísia abhoerret a sanguine. Cf. BARRADAS, Joaquim. A Arte de
Sangrar de Cirurgiões e Barbeiros. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 131.
232 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 233

Em Portugal, os esforços da realeza para regulamentar a prática recenseamentos de João Brandão e Frei Nicolau de Oliveira, no rol dos
cirúrgica remontam aos dias de D. Afonso IV (1291-1357), cuja legisla- tabeliães, e/ou se fixaram no modelo das associações de barbeiros-
ção proibiu o exercício do ofício sem exame prévio por mestre de reco- -cirurgiões nascidas no Reino de França, onde o exercício da barbearia e
nhecida competência. Mas nem a ordem régia e nem sua reedição em da cirurgia ensaiou uma separação formal ainda em 12684. Assinados em
1448, atrelando oficialmente o direito de prestar tais serviços à obtenção sua maioria por médicos e cirurgiões, esses estudos ora defenderam uma
de uma carta emitida pelo cirurgião-mor, foram suficientes para refrear a repartição entre as frentes de trabalho destes dois mesteres, ora enxerga-
atuação de curiosos e de barbeiros acostumados a executar incisões. ram uma total indistinção em suas competências.
Como a cirurgia desfrutava de uma posição ingrata na escala de valores O desconhecimento das fontes nas quais os barbeiros e os cirurgiões
dos saberes ligados à área médica, porque seus profissionais não tinham deixaram suas falas registradas e o menosprezo às normas da corporação
uma formação universitária, embora tratassem de apostemas, ulcerações de ofícios dos irmãos de São Jorge levaram autores como Mário Roque a
e fraturas, os limites de seu campo de atuação e das artes mecânicas afins admitir "a confusão" e a impossibilidade de definir o "campo de acção
era ténue. dos barbeiros, quais as funções que cabiam aos barbeiros-cirurgiões, aos
O fomento ao aprendizado da cirurgia no Hospital Real de Lisboa, cirurgiões-barbeiros ou apenas aos cirurgiões, quer fossem licenciados ou
no início do século XVI, contribuiu, paulatinamente, para afirmar esta não"5. O parecer do académico decerto resvala para o exagero e anula de
técnica como um conhecimento autónomo, à semelhança do que já se certo modo o esforço que fez para construir uma tipologia que respondes-
passava desde a Era Medieval nas universidades italianas e no Hospital se à atuação dos profissionais ligados à área médica, na cidade de Lisboa
de Guadalupe, na Espanha. Mas, se as iniciativas da realeza alavancaram entre os séculos XV e XVII.
o aprimoramento deste ofício e conduziram à sua admissão, em 1557, A despeito de sua conclusão final, o estudioso identificou quatro
entre as cadeiras universitárias2, o histórico da relação entre barbeiros e campos de atividades para os barbeiros: aqueles que se dedicavam à
cirurgiões engendrou uma certa ambiguidade na forma como estes profis- "tosquia e barba de homens", os que viviam de sangrar e "sarafar", os
sionais eram tratados pela população. que faziam as bainhas, a limpeza e o polimento de espadas e os que amo-
Na Lisboa do período moderno, os barbeiros que não cuidavam de lavam navalhas, tesouras e cutelos. A classificação não fere, como se viu
"guarnecer espadas" foram conhecidos nas ruas como sangradores, cirur-
giões barbeiros, cirurgiões sangradores, barbeiros sangradores ou barbei-
4 Criada em 1271 por iniciativa do primeiro barbeiro do rei Filipe IV (1268-1314), a con-
ros de barbear3. Os poucos estudos que tomaram como objeto de investi-
fraria parisiense de São Cosme e Damião pretendeu cindir ao meio a categoria dos bar-
gação a atuação destes mesteirais no torrão lisboeta acusaram esta beiros, delimitando o campo de trabalho dos que se dedicavam ao corte de cabelo e bar-
sobreposição, mas circunscreveram sua análise aos dados retidos nos ba e a área de atuação dos que se dedicavam a fazer sangrias e cirurgias. Para demarcar
as diferenças, os primeiros passaram a usar uma bata branca curta e os outros uma bata
branca comprida. Mas esta dicotomia não durou muito tempo. No reinado de Carlos V
2 A primeira universidade portuguesa foi criada em Lisboa, em 1290. Sua sede ora esteve (1337-1380), quase uma centúria depois da formação da associação de cirurgiões, os
na capital, ora em Coimbra. Mas foi transferida em definitivo de Lisboa para Coimbra barbeiros de barbear recuperaram, graças às investidas do barbeiro pessoal do monarca,
em 1537. Em fins do século XIII, já contava, entre suas disciplinas, com o estudo do as prerrogativas de outrora, garantindo o direito de executar sangrias, de aplicar emplas-
Direito Canónico, Direito Civil, Gramática, Lógica, Filosofia Natural, Medicina e Ana- tros e unguentos e de tratar furúnculos e fleimões. O divórcio entre barbeiros e cirur-
tomia. Em 1557, passou a contar com a cadeira de Cirurgia. Seu primeiro docente foi o giões só se completou realmente no século XVIII, precisamente em 23 de Abril de
espanhol Alonso Rodrigues de Guevara, professor de Medicina e de Anatomia, desde 1723, quando a profissão de barbeiro-cirurgião foi extinta pela legislação parisiense.
1556 e, em 1561, provido para o cargo de médico do Hospital de Todos os Santos. Con- Nos quatro séculos que apartaram a criação da confraria e o referido decreto, os cirur-
corridas, as aulas de Anatomia do médico garantiram-lhe fama, mas ajudaram a perpe- giões enfrentaram a insistência dos mestres de barbear e a resistência dos médicos.
tuar a tradição galênica na Universidade e no Hospital Real, em detrimento das desco- Aqueles, à revelia do regulamento, continuaram sangrando os doentes, enquanto estes
bertas de Vesalius, de quem era urrfopositor acérrimo. Cf. SANTOS, Sebastião da Costa. continuaram contestando o exercício da cirurgia por oficiais mecânicos, posto que só
O Início da Escola de Cirurgia do Hospital Real de Todos os Santos (1504-1565). Con- reconheciam como legítimos representantes desta arte os cirurgiões letrados com obras
ferência na Faculdade de Medicina de Lisboa, no Primeiro Centenário da Régia Escola sobre a matéria. Cf. BARRADAS, Joaquim, op. cit., pp. 134-135; LEBRUN, François.
de Cirurgia de Lisboa. Lisboa: Tip. da Empresa do Diário de Notícias, 1926. "Os Cirurgiões-Barbeiros", in BOTTÉRÒ, Jean et alli. As Doenças têm História. Lisboa:
3 ANTT, Francisco de Moura, sangrador, HSO, maço 35, n.° 787; António Ferreira, cirur- Terramar, 1991, p. 301.
gião barbeiro, HSO, maço 8, n.ra 317-322; António Francisco Claro, cirurgião sangrador, 5 ROQUE, Mário. "Físicos, Cirurgiões, Boticários, Parteiras e Barbeiros que na sua maior
HSO, maço 209, n.°3119; António da Silva Franco, barbeiro sangrador, HSO, maço 7, parte viveram em Lisboa nos séculos XV e XVII". Separata dos Anais da Academia
n.01298-316 e n.M 317-322; António Nobre, barbeiro, HSO, maço 5, n.° 212. Portuguesa de História. Lisboa, 1984, 2.' série, 29, pp. 135-136.
Oficio e Sangue 235
234 Georgina Silva dos Santos

no capítulo II, a escala de divisão de trabalho dos mestres barbeiros resi- homens, para além desta casa hospitalar, como um mundo à parte e abriu
dentes na capital do reino, mas se baseia nas taxas dos ofícios mecânico* um fosso entre os barbeiros mestres de tenda e aqueles que atuavam nas
da cidade de Coimbra de 1573. Só ao próprio autor caberia dizer porque casas assistenciais de Lisboa, como se não pertencessem à mesma cultu-
menosprezou os regimentos dos Oficiais Mecânicos de Lisboa no item ra de oficio. Diz Barradas:
em que se ocupou dos barbeiros e foi ter à cidade às margens do Monde-
go, quando seu recorte espacial era a cidade na foz do Tejo. "Alguns trabalhavam nos hospitais, prisões ou nas instituições de as-
De todo modo, o que a Mário Roque pareceu sem solução, Joaquim sistência que começavam a surgir. Um grande número de outros, an-
gariavam sustento apenas com os clientes que procuravam seus trabalhos.
Barradas tentou resolver, explorando o uso da sangria nos tratamentos Estes tinham o seu estabelecimento para atender o público. [...] Enquanto
médicos. Como a técnica foi amplamente utilizada no Hospital Real e os médicos e cirurgiões exerciam a sua actividade em estabelecimentos
deu origem a uma escola-oficina dirigida ao treinamento de sangradores oficiais ou em visitas domiciliárias, os barbeiros-sangradores, proprietá-
- independente do ensino de cirurgia que funcionava neste mesmo esta- rios de tendas, terão sido pioneiros na oferta de serviços em instalações
belecimento -, o autor defendeu, corroborando as conclusões do estudo privadas"8.
realizado pelo médico Costa Santos, que as duas categorias já eram dis-
tintas desde a elaboração do regimento do Hospital de Todos os Santos, Se a última sentença merece crédito, a pressuposição de uma dico-
em 15046. Entretanto, ao espelhar-se no caso francês e valorizar sobre- tomia entre os barbeiros que integravam o quadro funcional das institui-
maneira a intenção de cirurgiões, médicos e barbeiros de formarem uma ções de assistência e os que lidavam nas ruas precisa ser matizada. Ao
confraria sob a invocação de São Cosme e São Damião dentro do Hospi- contrário do que Barradas induz a pensar, em Lisboa, o exercício do ofí-
tal de Todos os Santos7, o cirurgião interpretou a lida diária destes cio em uma unidade institucional era acessível justamente aos mestres de
loja de reconhecida habilidade e, após 1654, exclusiva aos oficiais que
6 SANTOS, Costa. "Sobre Barbeiros Sangradores do Hospital de Lisboa". Separata dos eram cristãos-velhos.
Arquivos de História de Medicina Portuguesa. Porto: Tipografia da Enciclopédia Por- Como foi demonstrado no capítulo anterior, a licença para o atendi-
tuguesa, 1921. mento nas tendas era restrita apenas aos homens de conduta ilibada, de
7 Joaquim Barradas não foi o único a se fixar no modelo das confrarias de barbeiro fran- boa reputação e sem qualquer ligação com sangue mouro, negro ou
cesas, para discutir a prática cirúrgica. A referência ao caso francês é lugar-comum na judeu, visto que toda a categoria estava subordinada ao cumprimento dos
literatura sobre o tema. Ao analisar a atuação de barbeiros e cirurgiões, ao longo do
século XIX, na região das Minas, Betânia Gonçalves Figueiredo utilizou os estatutos
estatutos da bandeira e às normas do Compromisso da irmandade de São
dos cirurgiões franceses do século XVIII, as peças de Molière do século XVII e as pran- Jorge. Em outras palavras, o exercício legal do ofício de barbeiro estava
chas de Debret que retraiam o Rio de Janeiro do século XIX, para sustentar suas consi- diretamente submetido à comprovação da pureza de sangue, fosse para
derações sobre os almanaques, listas censitárias e relatos mineiros sobre esses profissio- sangrar e/ou barbear os clientesVias tendas, os internos das casas de assis-
nais, ignorando o lugar destes oficiais mecânicos na escala de valores das profissões em
Portugal e descolando Minas do quadro cultural forjado pelo Império Marítimo Portu-
tência ou os doentes das prisões. Afinal, na corporação dos homens de
guês. A metodologia empregada pela historiadora conduziu-a a afirmações contraditó- ferro e fogo, a concessão das cartas de exame estava condicionada à
rias. Assim, ora reconhece que os cirurgiões das Minas estavam entre as artes liberais, inserção prévia dos mesteirais no interior da associação confraternal, que
tal como os da França setecentista, ora admite que não havia de fato tanta distinção se utilizava dos mesmos critérios da Inquisição para selecionar seu corpo
entre as categorias de barbeiro e cirurgião. A autora escreveu: "De certa forma, a hierar-
quia apresentada por Molière em O Doente Imaginário [séc. XVII] manteve-se nas
de funcionários.
Minas Gerais do século passado. Ao longo do século XIX, constatamos movimentos em A distinção pretendida por Barradas é, portanto, um equívoco. Na
direção a uma definição mais precisa das profissões relacionadas ao corpo doente [...]. verdade, os barbeiros foram, dentro de sua corporação, os principais
Mesmo assim, com relação ao barbeiro e ao cirurgião percebemos que não havia, na agentes na subtração da distância entre a rua e as instituições oficiais.
prática, uma delimitação bem estabelecida indicando onde começava o trabalho de um e
de outro. Há relatos em que o cirurgião atuava como médico [...] outras em que o bar- Estavam submetidos aos seus códigos normativos e, particularmente no
beiro atuava como médico e como cirurgião...". Parte da imprecisão da historiadora caso do Santo Ofício, em contato direto com a ideologia excludente e
deve-se ao fato de tentar transpor a experiência francesa à formação cultural luso- racista que justificara a criação do tribunal e que presidia sua ação perse-
-brasileira, diluindo sua singularidade, em nome de um modelo que só encontrou equi- cutória.
valente no além-Pirineus, como se verá na sequência deste capítulo. Cf. FIGUEIREDO,
Betânia Gonçalves. "Barbeiros e Cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século
XIX". História, Ciências, Saúde - Manguinhos, p. 282. 8 Cf. BARRADAS, Joaquim, op. c/í., p. 190.
236 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 237

O prestígio que os barbeiros auferiram com este vínculo pode ser humores distintos - o sangue, a bílis amarela, a fleuma e a atrabílis (bílis
medido pela participação da irmandade de São Jorge nos autos-de-fé e negra). A saúde era a consequência de uma combinação humoral harmó-
pela presença da mesa da Santa Casa da Misericórdia na festa de São nica e a doença era o sinal de um desajuste, de uma rotura neste equilí-
Jorge. Mas é preciso ter em mente que o elo estreito entre os barbeiros brio natural10.
com estas casas formou-se através da importância de seu mester, no qua- A associação entre as quatro substâncias essenciais à formação dos
dro funcional destas instituições. reinos mineral, vegetal e animal, os humores produzidos no cérebro (a
Ao contrário das demais profissões da corporação de ferro e fogo, o fleuma), no baço (atrabílis) e no fígado (sangue e a bílis amarela), suas
ofício de barbeiro estava justamente na fronteira entre um saber teórico e qualidades originais — o quente, o frio, o seco e o úmido - e as forças
letrado, transmitido nas universidades, e um saber oral e empírico, internas ou externas (pneumas) capazes de alterá-los eram os componen-
transmitido pelas associações de ofício. A hegemonia que estes mestres tes básicos do organismo humano. Segundo a escola hipocrática, residia
na arte de sangrar exerceram no estandarte e na confraria de São Jorge no acúmulo desses líquidos orgânicos em uma região do corpo a origem
não se explica, portanto, sem que saiba exatamente porquê os estabele- de todas as doenças. Mas, como o organismo era portador de uma força
cimentos que prestavam atendimento médico faziam uso da sangria. curativa que lhe era inerente, o próprio corpo procurava libertar-se espon-
Apenas os fundamentos teóricos que embasaram a sua prescrição e taneamente dos efeitos nocivos de qualquer descompasso humoral, atra-
garantiram aos barbeiros esta frente de trabalho, ao longo de toda a Época vés de secreções. Deste modo, a fleuma, fria, úmida e transparente, era
Moderna, podem esclarecer. expelida pelo nariz nas constipações, a bílis, amarela, quente e seca, era
expulsa pelo vómito nas alterações digestivas, a atrabílis, escura, fria e
seca, era lançada junto com as fezes nas afecções intestinais, enquanto o
1. Humores sãos e humores doentios: os fundamentos do discurso sangue, vermelho, quente e úmido, se desprendia das feridas e acompa-
médico para a sangria nhava a expectoração das doenças pulmonares".
O sistema hipocrático se orientava, portanto, por uma relação de
A sangria foi a técnica de cura mais utilizada durante os períodos causa e efeito. Por isso, as doenças eram diagnosticadas e tipificadas de
medieval e moderno. Baseada em conhecimentos rudimentares da fisio- acordo com os sinais externos que produziam. As enfermidades poderiam
logia humana e executada com o auxílio de lanceias, sanguessugas e ven- ser fruto tanto do excesso de exercício, da inércia constante, das dietas
tosas pelos barbeiros, a flebotomia projetou e conservou estes mesteirais impróprias ou da impureza do ar. A repetição contínua dos mesmos hábi-
no círculo das atividades ligadas à prática médica, até ao século XIX, tos, um ambiente infecto, uma alimentação inadequada, contrária ao cli-
porque a medicina fundamentava-se mais na tradição dos princípios ma das estações do ano, poderiam debilitar o corpo. O tratamento deveria
deontológicos da escola hipocrática9 e nos pressupostos teóricos que neutralizar a ação dos humores corruptos provocados por estas condi-
demarcaram as fronteiras entre a saúde e a doença, na época antiga, do ções, através de regimes alimentares e medicamentos compostos por
que em uma observação experimental e sistematizada. elementos com qualidades opostas às substâncias nocivas que domina-
Para a medicina antiga, cada ser vivo ou bruto era resultado da com- vam o organismo12. Mas, se fossem as luxações musculares e a coluna
posição de quantidades variáveis de terra, água, fogo e ar. A combinação
destes quatro elementos no organismo humano dava origem a quatro 10 A teoria humoral é comumente atribuída a Hipócrates. Mas, desde a Antiguidade, o deba-
te sobre a autoria do tratado Da Natureza do Homem é motivo de controvérsia. Nos
comentários e acréscimos que fez ao tratado, Galeno (129-200) afirma que os oito pri-
9 Ligada ao nome de seu maior expoente, Hipócrates (460-377 a. C.), esta escola médica meiros parágrafos são fruto da criação hipocrática, mas pondera que os sete restantes são
inscreve-se em toda uma corrente de pensamento que se desenvolve na Grécia, a partir uma interpolação do próprio processo de circulação da obra nas mãos dos mercadores de
do século VI. a. C. Refutando o uso de práticas mágicas para o tratamento das enfermi- livros de Alexandria e Pérgamo. A polémica fez acotovelarem-se os eruditos do século
dades, Hipócrates e, posteriormente, os seus discípulos, ocuparam-se em buscar uma XIX, hoje a crítica contemporânea defende que seu autor é Políbio, sobrinho e discípulo
compreensão "racional" para o funcionamento do organismo humano, valorizando a
de Hipócrates. Cf. "Da Natureza do Homem". História Ciências Saúde - Manguinhos.
observação repetida dos sintomas manifestos pelo corpo doente. Sessenta tratados
Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, Julho-Outubro de 1999, vol. 4, n.°2. Edição
médicos foram elaborados sob esta orientação. A maior parte foi redigida entre os anos
bilingue. Crítica e tradução do grego por Henrique Cairus, pp. 395-428.
de 430 e 330 a. C. Embora nem todos estes escritos sejam da lavra do médico de Cós, a
11 Idem, ibidem, pp. 408 e 412.
coletânea a que deram origem é conhecida como Corpus Hippocarticum. Cf. MOSSÉ,
Claude. "As Lições de Hipócrates", in BOTTÉRO, Jean et alli, op. c/í., pp. 39-55. 12 Idem, ibidem, p. 420. .
238 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 239

vertebral a razão do mal-estar, o mais recomendável era a aplicação de tentes, volta e meia, tinham seus vasos rompidos por gládios e espadas ou
flebotomias. o peito aberto pelos adversários, deixando o coração ainda pulsante à
Condicionada ao conhecimento da rede venosa do organismo, a mostra14, Galeno constatou que as artérias conduziam sangue e que o
incisão nas veias do doente orientava-se pela queixa manifesta e sempre plasma, ao ser gerado pelo fígado - a partir dos alimentos digeridos no
guardando a devida distância dos lugares atingidos pelos humores pato- estômago -, subia até ao coração pela veia cava superior, entrando na aurí-
lógicos. Assim, em se tratando de dores no dorso e nos quadris, o cone cula direita e depois no ventrículo situado no mesmo lado. Daí, uma parte
era feito na parte externa dos j arretes ou do tornozelo, onde duas grandes seguia até os pulmões pela artéria pulmonar e a outra dirigia-se ao ventrí-
veias, que passavam pelo pescoço, pelas partes externas de cada lado da culo esquerdo através de pequenos orifícios do "septo interventricular".
coluna, do quadril e das pernas, ligavam a parte de trás da cabeça aos pés. O esquema de funcionamento cardiovascular criado por Galeno
Entretanto, caso o incómodo fosse na região lombar ou dos testículos, o impôs-se às descrições dos tratados médicos aceitos como verdade havia
talho era feito na parte interna das pernas, na altura dos torno/elos, para quinhentos anos. Mas não rompeu de todo com elas. Apesar de sugerir o
interceptar os humores retidos no segundo par de veias, as chamadas bombeamento do sangue pelo coração, o médico romano manteve o fíga-
jugulares, que saindo da cabeça, ao lado das orelhas, corriam ao longo da do no centro de todo o sistema orgânico, reafirmando suas propriedades
parte interna da coluna, até chegar às coxas, de onde percorriam toda a especiais, as quais denominou de "espírito natural", assim como ratificou
extensão interior das pernas, terminando nos pés. o postulado de Aristóteles (384-322 a.C.), que reconhecia no coração a
Os primeiros tratados hipocráticos reconheceram a flebotomia comei sede de todo o calor do corpo. Deduzindo que o sangue, ao passar pelo
uma das principais armas na luta contra os humores doentios, mas esta ventrículo esquerdo, se aquecia e adquiria energia para redistribuí-la para
técnica de tratamento alargou realmente seu leque de prescrições, no iní- todo o organismo, Galeno entendeu que este humor se tornava portador
cio da era cristã, quando Celsus (c. 35 a.C.) descreveu os sinais indicado- do "espírito vital", devido ao contato com o calor inato do coração e com
res da inflamação: rubor et tumor cum calor et dolor™. A reação orgâni- o pneuma que aluava nas cavidades esquerdas do órgão. A reação torna-
ca era encarada como uma defesa do corpo, entretanto, a acumulação de va o sangue mais leve e capaz de preencher toda a artéria aorta, mas
humores em si passava a ser compreendida também como uma doença. gerava vapores que, por serem dispensáveis à vida, corriam pelas veias
Logo, uma vez identificada pela aparência deixada no tecido atingido, pulmonares e eram expulsos na expiração.
realizava-se a sangria, com o intento de dar vazão aos humores pernicio- Na acepção de Galeno, a enorme quantidade de calor retida no cora-
sos que circundavam a área afetada. ção era arrefecida pela ação dos pulmões e o sangue gerado pelo fígado
Recomendada no caso de contusões, dores reumáticas e inflama- seguia pelas veias cavas superior e inferior e depois ramificava-se pelas
ções, a sangria assumiu progressivamente a linha de frente das técnicas veias finas, até transformar-se em músculos, ossos, cartilagens e demais
de tratamento médico, tornando-se inseparável do repertório das práticas estruturas anatómicas existentes. Enfim, o sangue não fazia um movi-
curativas. A obra de Galeno contribuiu decisivamente neste processo, mento circular e sim centrífugo, convergindo para os tecidos, sem retor-
porque redefiniu a compreensão do fluxo sanguíneo e acresceu à teoria nar ao ponto de origem.
humoral uma explicação para o funcionamento cardiovascular. Como até Por negar a circulação do sangue, as teses de Galeno contribuíram
então todo o conhecimento sobre a relação entre o sangue e o coração para justificar definitivamente o emprego da flebotomia. Pois, ao secio-
ancorava-se exclusivamente na inspeção de tecidos e veias de animais nar uma veia, aproveitava-se justamente a propriedade atrativa que os
mortos, era verdade corrente que as artérias continham ar e que o sangue tecidos exerciam sobre o plasma. O desvio do fluxo sanguíneo do seu
era fabricado e redistribuído pelo fígado para os demais órgãos, através local de destino para a zona do corte permitia que todos os humores
das veias. Desconsiderava-se, portanto, como o sangue entrava no cora- danosos que entravam em contato com o sangue, em sua jornada pelo
ção e como passava do ventrículo direito para o esquerdo e para onde se corpo, fossem recolhidos.
dirigia ao deixar o órgão muscular. Assimilados e preservados pelos árabes desde que conquistaram os
Valendo-se provavelmente do que pôde ver e examinar enquanto territórios do Próximo e Médio Oriente, no século VII, os ensinamentos
atuou como médico no circo de gladiadores de Pérgamo, onde os comba-
14 FRIEDMAN, Meyer & FRIEDLAND, Gerald W. "Willliam Harvey e a Circulação do
Sangue", in As Dez Maiores Descobertas da Medicina. São Paulo: Companhia das
13 BARRADAS, Joaquim, op. cit., pp. 38-42. Letras, 2000, p. 39.
240 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 241

da escola hipocrática e a fisiologia galênica foram traduzidos, compila- cãs, a arte de sangrar, fundamentada na teoria humoral, seguia incólume,
dos e divulgados no Ocidente Medieval, quando o império islâmico aperfeiçoando-se como técnica e sendo matéria de acaloradas discussões.
espraiou-se além do Mediterrâneo, dominando a Sicília, a Itália do Sul e Pois, se uns preconizavam a sangria revulsiva, mais volumosa e feita
a Península Ibérica. Ao lado dos inúmeros contributos fornecidos pela próxima à zona afetada pelo mal-estar, afirmando que os humores noci-
medicina árabe15, que aliou um imenso conhecimento teórico a uma vos movimentavam-se livremente na fase inicial da doença, antes de se
observação aguda dos casos clínicos, aperfeiçoando os estudos de uros- fixarem em um local específico e provocarem inflamações, outros defen-
copia e preconizando a aplicação do cautério e do ferro em brasa no tra- diam a sangria derivativa, circunscrita ao lugar do achaque para evitar
tamento de feridas crónicas, os fundamentos greco-romanos constituíram que o sangue levasse às áreas sãs os humores corruptos17.
o alicerce de toda a doutrina médica e da prática clínica, durante a Idade Apesar dos progressos da Anatomia, os pressupostos teóricos da
Média e o Antigo Regime. Medicina antiga dominariam o pensamento médico ainda nas duas centú-
Popularizada no medievo através da taxinomia das doenças estabe- rias seguintes. A flebotomia, adstrita a eles, irrompeu as portas do século
lecida por Avicena, a teoria dos humores orientou a avaliação de diag- XVII, resistindo à obviedade das demonstrações do inglês William Har-
nósticos, a recomendação de dietas, a prescrição de medicamentos e da vey (1587-1657). Em 1628, após um rigoroso estudo, o membro do Colé-
flebotomia. Mesmo quando a censura da Igreja deixou de ser um empeci- gio Real de Médicos comprovou a circulação sangiiínea e relatou passo a
lho à dissecação de cadáveres humanos e os estudos anatómicos ganha- passo sua descoberta na obra De motu corais, na qual demonstrou que o
ram impulso16, promovendo um significativo avanço na compreensão da plasma bombeado pelo coração corria das artérias do corpo inteiro para
formação muscular e óssea, os escritos de Galeno e de Avicena conserva- as veias e através do coração retornava às artérias. A tese de Harvey for-
ram-se, paradoxalmente, como as grandes diretrizes da prática médica. neceu as bases para que o uso da sangria fosse questionado, já que a téc-
Enquanto a anatomia afirmava-se como um saber autónomo e des- nica se valia de pontos definidos e o plasma não tinha uma origem
mentia, graças ao belga Andreas Vesalius (1514-1564) e sua admirável determinada, como queria Galeno, mas sim uma distribuição aleatória e
De Humani Corporis Fabrica (1543), os cinco lobos do fígado, a forma sem forças internas capazes de desviar sua rota.
bilocular do útero, o "septo dos ventrículos" e demais descrições galêni- A assimilação dos conhecimentos produzidos por uma medicina de
ponta esbatia-se, entretanto, contra os cânones já consagrados. No século
XVII, as descobertas médicas resultantes de uma observação sistematiza-
15 Por medicina árabe entende-se a teoria e a prática clínica que deram origem aos trata-
dos médicos escritos neste idioma, língua oficial do Império Árabe. Portanto, inclui-se da estavam em margem oposta aos poderes constituídos pelas cátedras
neste conjunto os autores nascidos nas regiões sob sua administração, como o persa universitárias, conquistadas às custas de um saber que se ancorava nas
Avicena (980-1037), autor do Cânone da Medicina e do Poema da Medicina, obras de teses hipocrática e galênica.
imensa influência no Ocidente, até o século XVIII. Cf. MICHEAU, Françoise. "A ida- Em Portugal, a medicina ensinada na Universidade baseou-se estri-
de do ouro da medicina árabe", in BOTTÉRO, Jean et alli, op. cit., p. 60; LEWIS, Ber-
nard. Os Árabes na História. Lisboa: Estampa, 1982, pp. 18-19.
tamente nos pressupostos teóricos do saber médico antigo, desde seu
16 As restrições eclesiásticas à realização de dissecações, em tudo condizentes com o pro-
nascimento (1290) até à reforma universitária empreendida pelo Marquês
cesso de "clericalização da morte", foram formalizadas em 1300 pelo papa Bonifácio de Pombal, em 177218. Durante cinco séculos, gerações de médicos
VIII (1294-1303), na bula De Sepuliuris. que ameaçava de excomunhão os cortadores
de cadáveres. O veto, entretanto, nem sempre foi obedecido e na Universidade de
Bolonha os estudos prosseguiram, sob a direção do professor de anatomia e cirurgia 17 BARRADAS, Joaquim, op. cit., pp. 106-112.
Modino de Luzzi (1275-1326). Quatro décadas depois da sanção papal, quando a Peste 18 Os novos Estatutos da instituição procuraram, em tese, introduzir um aprendizado que
Negra dizimou mais de 1/3 da população europeia no campo e na cidade, Clemente VI conciliasse a teoria à prática, removendo as Cadeiras e Catedrilhas (cadeiras menores)
(1342-1352) encorajou a dissecação de cadáveres, para que se investigasse as causas dedicadas à escola hipocrática e valorizando o ensino da Cirurgia e da Anatomia. As
da pandemia. Mas foi no pontificado de Sisto IV (1414-1484), ex-aluno da Universi- alterações no elenco de disciplinas e a exigência imposta aos lentes de manter um con-
dade de Bolonha e de Pádua, que a Igreja reconheceu a importância dos estudos ana- tato estreito com uma literatura de outros centros médicos europeus, para que o con-
tómicos e autorizou formalmente a investigação dos cadáveres dos condenados, cujos teúdo das aulas se mantivesse atualizado e os alunos pudessem ter acesso a eles através
corpos não eram reclamados pela família. Na Era Moderna, a prática tornou-se corri- de apostilhas, não resultaram, todavia, no abandono de um ensino excessivamente teó-
queira, tanto nas universidades europeias, como entre alguns ricos mais excêntricos rico, em prol de um modelo de compreensão da Medicina mais experimental e hospita-
que, por diletantismo, formaram seu próprio gabinete de anatomia. Cf. BARRADAS, lar, como pretendia a Reforma. Cf. "Experiências Estatutárias Docentes e Discentes na
Joaquim, op. cit. p. 98; ARIES, Phlippe. O Homem diante da Morte. Rio de Janeiro: Universidade de Coimbra", in VALADARES, Virgínia Maria Trindade. Elites Setecen-
Francisco Alves, 1981, vol. 2, pp. 400-402. tistas Mineiras: conjugação de dois mundos (1700-1800). Lisboa, 2002. Tese de Dou-
242 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 243

oriundos deste meio emitiram diagnósticos segundo os aforismos de internos e o serviço religioso prestado aos moribundos. As soberanas,
Hipócrates, os escritos de Galeno e de Avicena, conservando a sangria na especialmente, esticaram os braços para que essas casas de caridade se
base do tratamento dispensado aos pacientes e garantindo aos barbeiros tornassem uma realidade.
seu lugar no elenco de profissionais auxiliares da área médica. Benfeitoras de hospitais, leprosarias e recolhimentos, as rainhas
A formação e nomeação de um oficialato subordinado ao Estado marcaram o papel de primeira dama do paço, com as obras de assistência,
português para atender a população enferma e carcerária, no início da desde a Baixa Idade Média, e tornaram-nas um elemento estruturante da
Época Moderna, acabou por institucionalizar o uso da sangria, já legiti- génese e constituição do Estado português19. À soleira dos Tempos
mado pelo discurso médico universitário. A integração da figura do bar- Modernos consolidaram este perfil. Diante do quadro económico que
beiro no quadro de profissionais fixos do Hospital Real de Lisboa e do opôs o crescente enriquecimento de alguns à "pobreza laboriosa" de mui-
Santo Ofício inseriu-se neste projeto mais geral de assistência, que vincu- tos, D. Leonor (1458-1525) apadrinhou a formação de um corpo institu-
lou definitivamente a arte de sangrar à clínica médica e cirúrgica. cional dirigido para minorar o impacto social gerado pela multiplicação
A inserção destes oficiais mecânicos nestas Casas foi, no entanto, de desamparados, "pobres envergonhados" e foras-da-lei: a Santa Casa
um caminho sem volta para toda a categoria. As tecnologias disciplinares da Misericórdia. Criada no ano de 1498, em Lisboa, a Santa Casa foi um
implantadas pelo Estado para organização e definição do perfil de seu dos grandes vértices deste projeto de centralização da assistência, decla-
oficialato fez da arte dos barbeiros objeto dos compêndios de um saber rando o compromisso do Estado luso com o patrocínio das obras filan-
letrado, provocou a redefinição de seus regimentos e requisitou de seus trópicas.
mestres e aprendizes muito mais do que sua idoneidade. Em suma, alte- O Hospital de Todos os Santos também nasceu deste espírito. Sua
rou profundamente os valores que norteavam as normas de sua corpora- crónica inicia-se ainda em 1479, ano em que o rei D. João II solicita ao
ção de ofício e a fisionomia dos irmãos de São Jorge. Papa Sisto IV a autorização para fundar um hospital lisboeta, onde
pudesse concentrar os bens das quarenta e três instituições de assistência
existentes na cidade e arrabaldes. A primeira pedra do edifício foi lança-
2. A arte dos barbeiros da com o atraso de duas décadas e, antes mesmo que a obra estivesse
totalmente concluída, as enfermarias receberam seus primeiros doentes.
Indispensáveis ao funcionamento dos estabelecimentos que ofere- Em 1504, quase finda a construção, o prédio do Rossio contava com três
ciam atendimento médico, os barbeiros participaram, juntamente com grandes enfermarias dispostas em forma de cruz, à volta do altar-mor. A
físicos (médicos), boticários e cirurgiões, dê todo o processo de trans- planta do prédio incluía, além destes dormitórios, um albergue para pere-
formação das unidades hospitalares. Se durante a Idade Média os hospi- grinos e mendigos, casa de expostos, dependências para os alienados, refei-
tais tinham sido um misto de albergaria e enfermaria, abrigando doentes, tório, cozinha, botica, secretaria, latrinas e alojamento para os empregados.
peregrinos, desvalidos, alienados e enjeitados de todo tipo, no alvorecer Destinado àqueles que não tivessem condições de arcar com as des-
da Era Moderna passaram a assumir, gradativamente, uma orientação pesas de seu próprio tratamento, o Hospital d'el-Rei recebia os enfermos
voltada para o aprimoramento da prática médica, embora sem descurar de residentes em Lisboa e os que adoecessem em até dez léguas da cidade,
sua feição caridosa. fossem naturais ou estrangeiros. Entretanto, herdeiro da concepção multi-
Administrados por ordens religiosas ou gerenciados por corporações funcional que caracterizou os estabelecimentos medievais, também pre-
de ofícios nos tempos medievais, esses espaços de acolhimento foram via um atendimento que ultrapassava os limites da doença, pois bebés
mantidos às custas da doação de particulares, desde que a caridade aos abandonados ou vítimas do empobrecimento, como as merceeiras, esta-
pobres tornou-se um salvo-conduto para o bem-estar da alma no além- vam sob seus cuidados.
-túmulo, no século XIII. Nobres, reis e rainhas e outros menos afortuna- A arquitetura do Hospital, espelhada no modelo de seus congéneres
dos legaram-lhes bens móveis e rendas anuais, em seus codicilos e testa- italianos de Florença e Siena, indicava, porém, que seus propósitos assis-
mentos, garantindo o funcionamento de suas enfermarias, a dieta dos

torado - Universidade de Lisboa, pp. 14, 33 e 72. Agradeço a gentileza da Prof." Dr." " SANTOS, Georgina Silva dos. A Senhora do Paço - o papel da rainha na construção
Virgínia Valadares, por permitir-me o acesso ao segundo capitulo de sua tese antes de da identidade nacional portuguesa (1282-1557). Niterói, 1995. Dissertação de Mestra-
sua defesa. do - Universidade Federal Fluminense.
244 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 245

tenciais superavam de longe as pretensões dos pequenos asilos medievais partir do exame de seus frascos de urina. Ali, com base nos ensinamentos
que reuniu. A planta do prédio pressupunha a concentração de atividades de Hipócrates e Avicena, depois de avaliar a cor, o odor e o sabor da
em um único edifício, onde quase todos os responsáveis pela prestação excreção, emitiam o julgamento que definiria a sorte dos que procuravam
de serviços deveriam residir para garantir um atendimento diurno e a instituição, atestando ou não a necessidade da internação e dos cuida-
noturno aos internos. dos de sua equipe hospitalar.
Os deveres e afazeres desta equipe hospitalar foram discriminados Constituído para viabilizar a cura dos pacientes, portanto, para fazer
em 1504, pelo rei D. Manuel, no Regimento do Esprital de Todolos San- cumprir o primeiro grande objetivo da casa, o elenco de profissionais do
tos de El-Rey Nosso Senhor de Lisboa e comprovam que o objetivo do Hospital Real era fixo, mantido com um ordenado anual, estipulado de
complexo hospitalar era o de servir como espaço para a cura e não como acordo com a hierarquia de funções dentro da instituição e assegurado
um lugar para aguardar a morte20. É certo que, sendo uma obra pia, con- por uma provisão. A seleção, nomeação ou demissão de todos estes ofi-
cebida sob a influência da atmosfera religiosa que concedeu especial ciais era uma incumbência da autoridade máxima da instituição: o prove-
atenção às obras espirituais e corporais da misericórdia, o Hospital Real dor. O cargo era ocupado, em geral, por um religioso e, se assim não fosse
incluía um serviço religioso, para garantir os últimos sacramentos aos haveria de ser um homem de perfil caridoso e necessariamente solteiro,
agonizantes ou o conforto espiritual àqueles que estavam em recupera- porque a tarefa que tinha em mãos, administrar o Hospital, demandava-
ção. Mas sua gerência registrou grandes cuidados com o aproveitamento -Ihe dedicação exclusiva.
e a ocupação de seu espaço físico, com a interação de tarefas de seu qua- O provedor era autorizado pelo rei a "mandar", "prover e governar".
dro laico, sublinhando a intenção da instituição de ser identificada como Em síntese, gerenciar o abastecimento alimentar, supervisionar as recei-
uma casa comprometida com a saúde de seus internos e não como um tas e despesas da casa, inspecionar o atendimento religioso, médico e
depósito de doentes. cirúrgico oferecido aos pacientes, zelar pela instrução religiosa dos ofi-
A ênfase na seleção do público-alvo, ou melhor, os critérios empre- ciais residentes e cuidar para que o comportamento dos que lhe eram
gados para admissão dos pacientes, era uma das marcas deste novo dis- subalternos não ultrapassasse os limites da civilidade, pois os arrebata-
curso hospitalar. Os enfermos eram submetidos a uma triagem prévia na mentos e escândalos entre os empregados eram terminante proibidos pelo
entrada do edifício e apenas aqueles que não eram portadores de moléstia regulamento22. O autocontrole das emoções era uma obrigação dos fun-
incurável eram recebidos para tratamento no Hospital do Rei. Os porta- cionários e os autores do "vicio", ou melhor, das infrações à conduta
dores de doenças infecto-contagiosas eram encaminhados para uma casa idealizada para o oficialato do Hospital, estavam sujeitos à suspensão ou
apartada da ala central do prédio, a casa das boubas. Todos os demais, poderiam ser afastados definitivamente do quadro23.
uma vez aceitos, ocupavam uma das quatro enfermarias, separadas Nesta Casa, onde a autocoação deveria pautar as ações de homens e
segundo o género, a gravidade e o tipo da enfermidade. mulheres, o rol de empregados, vigiado pelo provedor e sujeito à sua
O perfil requerido aos doentes pobres do Hospital Real era, com punição, era composto de trinta e oito profissionais e formava uma estru-
efeito, bem distinto daquele exigido aos homens e mulheres que acorriam tura piramidal. Sete estavam diretamente ligados à administração finan-
aos asilos medievais, porque não tinham quem lhes valesse. Se nestes ceira e patrimonial do estabelecimento: o almoxarife, encarregado de
estabelecimentos a admissão dos internos calcava-se na idade avançada, receber as rendas do Hospital, efetuar o pagamento dos funcionários e
na extensão da pobreza, na proximidade da moradia e na moral dos doen- realizar as compras necessárias ao funcionamento da instituição, o escri-
tes, isto é, se eram ou não "pobres de vergonha"21, no Hospital do Rossio, vão das receitas e despesas, que auxiliava o almoxarife em suas diligên-
os critérios de acolhimento era assentados, sobretudo, no estado físico do cias, o escrivão do provedor e mais quatro outras "pessoas extraordiná-
paciente e pautava-se na autoridade do discurso médico. Eram justamente rias" incumbidas de servir ao administrador no que fosse preciso. Todos
os físicos quem faziam a seleção dos candidatos na entrada do Hospital, a
22 O termo civilidade é entendido aqui no sentido que lhe atribui Norbert Elias. Portanto,
20 regimento do Esprital de Todoslos Santos de El-Rey Nosso Senhor de Lisboa. Lisboa: como o comportamento socialmente aceitável, calcado na autocoação e regulador das
Ed. Laboratório Sanitas, 1946. Prefácio de Fernando da Silva Corrêa. ações humanas, tanto sociais quanto psíquicas. Cf. ELIAS, Norbert. O Processo Civili-
21 SANTOS, Georgina Silva dos. "A Rainha, os Oradores e a Corte dos Miseráveis, in zacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote, vol. 2, p. 194.
A Senhora do Paço - o papel da rainha na construção da identidade nacional portu- 23 "Titulo do Proveador, do Esprital, e o regimento e Maneira em q. Hade Servir o Dito
guesa (1282-1557), pp. 203-207. seu Officio". Ibidem, pp. 35, 36, e 44.
246 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 247

os demais oficiais estavam direta ou indiretamente relacionados à recupe- dos por homens "caridosos", de "boa condição" e "sem escândalo", por-
ração dos internos e expressavam a função deste espaço hospitalar. tanto, por seres sensíveis à dor alheia, comedidos na fala, económicos
Um despenseiro, um cozinheiro e três ajudantes eram responsáveis nos gestos e, pode-se acrescer, diligentes; porque, em caso de óbito,
pelo serviço de copa e cozinha. Armazenavam os suprimentos e prepara- deveriam coordenar toda uma operação que justificava em si mesma a
vam a dieta prescrita aos doentes e a ceia servida aos empregados que imagem que a unidade hospitalar pretendia firmar.
moravam nos alojamentos. Um atafoneiro, pago à jornada, cuidava das No caso de falecimento de algum doente, por ordens expressas do
duas atafonas do Hospital, garantindo a moagem dos cereais. Da rouparia regimento, os enfermeiros deveriam providenciar com toda a presteza a
do Hospital tratavam uma "alfayata" (costureira), que confeccionava e remoção do cadáver. A retirada do corpo da enfermaria deveria observar
cerzia todos os lençóis, almofadas, mantas, carapuças, e uma lavadeira, rigorosamente a distribuição das camas no recinto. Como os leitos eram
que, auxiliada por duas escravas do estabelecimento, mantinha limpa protegidos por um cortinado e alinhados em duas fileiras paralelas ao
toda a roupa da casa24. Uma "amassadeira" (passadeira) e uma "forneira", longo do cómodo, deixando uma passagem livre no centro e um corredor
contratadas à jornada, completavam esta equipe de apoio. próximo às paredes, o enfermeiro deveria remover o defunto pela parte
A preocupação em garantir a preparação da dieta adequada aos de trás das cortinas, impedindo qualquer "torvação" ou impacto psicoló-
pacientes e a atenção dada ao asseio de seus leitos eram, certamente, dois gico entre os doentes do dormitório. O corpo morto, envolvido por uma
dos pilares que alicerçavam os propósitos da nova unidade hospitalar. A mortalha negra, era conduzido à igreja do Hospital, onde recebia os cui-
incumbência de zelar para que um e outro saíssem a contento dependia dados do capelão. Tão logo fosse concluída a missa em intenção de sua
do empenho do vedor e do olhar atento do hospitaleiro. Enquanto o pri- alma, o coveiro, que fora acionado por um dos enfermeiros-menores, já
meiro era encarregado "da principal parte do governo do dito hospital", deveria ter pronta sua cova entre os jazigos reservados para os finados do
isto é, tinha sob sua responsabilidade a relação dos alimentos a serem Hospital26.
comprados para a dieta dos internos, o segundo era responsável por visto- O regulamento hospitalar não cronometra, naturalmente, o tempo de
riar a lavandaria, inspecionar os corredores e observar se as enfermarias duração da operação. Mas não oculta a preocupação em fazer com que
eram devidamente desinfetadas com "agoa de cheiro, porque na "Limpe- fosse realizada com o máximo de rapidez, para que a morte desse logo as
za da Caza consis[tia] e Muito a saúde dos doentes dela"25. costas à casa. Embora fosse consagrado aos santos, ou melhor, a Todos
O binómio limpeza e alimentação, embora basilares, não eram, con- os Santos, seres que superaram, em última instância, o medo humano da
tudo, os únicos fundamentos que davam a tónica do discurso médico- morte e acreditaram, sem vacilar, na promessa de Ressurreição, o Hospi-
-administrativo do Hospital Real. O controle com o excesso de ruídos, a tal do Rei pretendia-se como uma instituição de saúde, seu desiderato era
postura a ser assumida pelo quadro de funcionários da instituição diante preservar a vida. Sendo a prova maior do fracasso no tratamento recebi-
da doença e da morte, assim como a disposição calculada dos leitos nas do, o corpo morto deveria ser apartado do estabelecimento o quanto antes
instalações, também integravam o projeto de transformar o estabeleci- e de preferência sem deixar rastro.
mento em um espaço voltado para a recuperação do interno. A rotina do quadro médico, formado por dois físicos, dois cirur-
Dentre os oficiais que compunham o corpo médico do Hospital, os giões, um barbeiro e sangrador, um boticário, uma cristaleira, além dos
enfermeiros eram, de fato, os funcionários que estavam mais próximos ao enfermeiros e de uma ajudante da enfermaria feminina, revela o propósi-
doente, velando dia e noite o seu sono, ouvindo suas queixas e gemidos, to de fazer do Hospital, um lugar de cura. Com exceção de um dos físi-
acompanhando impreterivelmente as visitas dos físicos, dos cirurgiões e cos, um dos cirurgiões e do barbeiro, todos os outros oficiais moravam
a execução das sangrias pelos barbeiros. Em face da natureza das suas nos alojamentos do Hospital para acudir de imediato aos internos. Os
atribuições, o regulamento demandava que os cargos de enfermeiro-mor físicos e os cirurgiões realizavam, diariamente, cada qual à sua vez, duas
(chefe da enfermaria) e dos quatro enfermeiros pequenos fossem ocupa- visitas aos internos. A primeira tinha lugar logo ao raiar do sol e a segun-
da ocorria até às duas horas da tarde. Nestas diligências, os quatro eram
24 Cada leito tinha um exergão de palha, um almadraque de lã, um travesseiro de pena, acompanhados pelo boticário, pelo barbeiro e pelo vedor. Após os proce-
dois lençóis de linho, um cobertor, duas almofadinhas de pena e duas corrediças de
pano que o isolavam do vizinho. Cf. "Titulo do Espritaleiro, e do regimento, e maneira,
q. hade servir em seu officio". Jbidem, p. 78. 26 "Titulo dos Enfermeiros Mayores e do regimento e maneira q. hamde de servir seus
25 Ibidem, p. 81. officios". Ibidem, pp. 72-73.
248 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 249

dimentos de costume, ou seja, a verificação do pulsos e o "exame das médica. Nas duas sessões diárias em que visitava os pacientes, o cirur-
agoas" (urina), o enfermeiro-mor registrava, no prontuário do paciente - gião que vivia na casa trazia consigo dois moços. Diariamente, em obe-
urna tábua de madeira presa à cama com os dados de identificação do diência ao regulamento, o cirurgião lia para seus ajudantes uma lição de
interno -, as mezinhas a serem preparadas pelo boticário, as sangrias a cirurgia para "aprenderem theoria e pratica e poder[em] ficar ensinados
serem executadas pelo barbeiro e a dieta prescrita pelo médico que o [...] para as curas e chagas dos doentes"28.
vedor encaminharia à cozinha. A relação que o mestre de cirurgia e seus assistentes mantinham,
A estipulação de uma rotina hospitalar, com horários de atendimento inexistente nos hospitais medievais, traduzia não só o comprometimento
determinados pelo regulamento, articulada à descriminação das atitudes a da instituição com a recuperação dos internos, mas fazia do aprendizado
serem tomadas, com base na probabilidade de um acontecimento, e à for- teórico um instrumento indispensável à prática cirúrgica e evidenciava o
mação de um quadro funcional fixo, com funções interligadas, uma propósito da casa de formar futuros profissionais com esta orientação,
silhueta definida, disponível a qualquer hora porque residia na instituição antecipando-se, inclusive, à própria Universidade.
e passível de punição pelo descumprimento das tarefas preestabelecidas, Esta fase do projeto hospitalar manuelino só se completou, de fato,
faz do Hospital de Todos os Santos um marco na transição conceituai das em 1556, no reinado de D. João III, quando o monarca definiu em por-
unidades hospitalares portuguesas e um ícone das tecnologias disciplina- menores os termos deste ensino no alvará em que nomeou o Dr. Duarte
res implementadas pela Coroa portuguesa, nos primeiros tempos da Era Lopes como cirurgião residente do Hospital Real.
Moderna. Sobretudo, caso se dê crédito à experiência francesa, onde,
segundo Michel Foucault, a organização hospitalar só prevê um cuidado "Eu elrei faço saber a vos provedor [...] q confiando eu da bondade letras
especial com o regime alimentar dos internos, a identificação dos doen- e saber do doutor Duarte lopez morador na dita cidade e por folguar de
tes, o plantão de seu corpo médico e a adaptação das instalações aos ser- lhe fazer mercê ey por bem de ho emcarreguar q daqui em diante lea hua
viços da instituição, no século XVIII27. lição de gido cada dia nesse esprital em hua casa que lhe vos pêra yso or-
denares e lera hua ora pouco mais ou menos e depois de ler a dita lição
A compreensão do hospital como um lugar de cura e promotor da
estará mea ora as duvidas que só ouuintes lhe poserem. E asi me praz que
construção do saber médico talvez tenha sido tardia na França e só se
ele faça as notomias q parecer necesarias e vos ordenades dos corpos
completou em Portugal, realmente, no oitocentos, quando a direção dos mortos dos q na dita casa falecerem e asi as que se ouverem de fazer aos
hospitais foi entregue a um licenciado em Medicina. Mas as sementes da corpos dos q padecerem per justiça nesta cidade..."29.
clínica médica já estavam presentes no projeto do Hospital de Todos os
Santos, porque seu regimento considerava o espaço hospitalar como um Restrita a uma sentença nos dias da redação do regimento, a instru-
ambiente privilegiado para o aprendizado dos saberes ligados à área ção que o cirurgião deveria dar aos seus aprendizes tornava-se, no inter-
valo de cinquenta anos, uma obrigação inelutável, com horário para o
27 Esta hipótese é defendida por Foucault, a partir da análise dos regimentos de 1680 e início e término das aulas e tempo previsto para o esclarecimento das
1770 do Hôtel-Dieu de Paris. Com base nestes regulamentos, o filósofo identificou, no eventuais dúvidas. As lições seriam agora ministradas em um local
século XVIII, a ruptura com o discurso e a prática dos hospitais medievais. Foucault designado pelo provedor do Hospital e contemplavam o estudo da Ana-
reconhece na sofisticação das tecnologias disciplinares aplicadas aos quadros institu- tomia. Para que o dito tivesse efeito, os corpos dos indigentes que fale-
cionais no setecentos, particularmente os hospitalares, a alteração do próprio conceito
do hospital. Segundo o autor, somente no século XVIII o hospital passa a ser com- ciam dentro do Hospital ou daqueles que padeciam nas mãos da justiça
preendido como um espaço de cura, onde a prática hospitalar toma-se a base da cons- régia passavam a ter outra utilidade. Se enquanto vivos seus corpos doen-
trução do saber médico, promovendo, inclusive, a ascensão desta categoria profissio- tes ou privados de liberdade, inaptos para o trabalho e para os impostos,
nal, que passa a dirigir os estabelecimentos hospitalares. A análise do quadro hospitalar haviam contribuído para enaltecer a caridade do Estado português ou
francês não está, naturalmente, no limite desta tese. Mas a conclusão de Foucault, no
mínimo audaciosa, leva em conta apenas o regulamento de um hospital parisiense, des- haviam sido alvo de uma punição pública, servindo como suporte para
considerando seus congéneres europeus. Foucault não só agrupa os hospitais medievais
aos renascentistas, como dilata a vigência deste modelo até o setecentos, como se a Idade
Média perdurasse até o século XVIII, sem considerar que os hospitais experimentaram 28 "Título dos Celorgiães do Dito Esprital, e o regimento, e Maneira, Q. Hamde Ter em
uma fase de transição entre um e outro modelo, cabendo que se ponha aqui suas afirma- Servir seus Officios". Ibidem, p. 83.
ções sob a custódia da dúvida. Cf. FOUCAULT, Michel. "O Nascimento da Medicina 29 Alvará de D. João III de 25 de Novembro de 1556. Apud SANTOS, Costa. O Inicio da
Social", in Microfisica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990, pp. 107-111. Escola de Cirurgia do Hospital de Todos os Santos, p. 6.
250 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 251

incutir o temor e desencorajar o desafio às leis, agora seus cadáveres ser- 2.1. Barbeiros-cirurgiões e barbeiros-sangradores
viriam ao aperfeiçoamento dos conhecimentos anatómicos, imprescindí-
veis à assimilação das teses de "gido", ou melhor, Guido, versão aportu- O regimento mais antigo dos barbeiros residentes em solo lisboeta
guesada e latina do nome do cirurgião francês Guy de Chauliac30. foi escrito em 1511, sete anos após a redação do Regimento do Hospital
Decalcadas dos escritos de Avicena e Galeno, as lições de Guido de Todolos Santos. Embora muito sintético, o regulamento comprova
orientaram o diagnóstico e os tratamentos recomendados, em caso de que, já nas primeiras décadas de funcionamento do Hospital do Rossio, a
extrações dentárias, feridas, ulcerações, apostemas (escrófulas, cancros, separação entre as atividades dos barbeiros de barbear e dos de guarnecer
erisipelas) e outras mazelas cutâneas e subcutâneas que atingiam os era uma realidade. Enquanto os primeiros cuidavam de amolar muito
internos do Hospital. Os antídotos, por conseguinte, também eram fiéis à bem uma navalha, molhar uma barba e raspá-la, amolar e afiar uma
tradição antiga: cautérios, purgantes, clisteres e sangrias. A remoção de tesoura nova e cortar com ela um cabelo direito e bem feito, os últimos
dentes e a seção de uma ferida crónica com ferro em brasa eram mesmo ganhavam a vida guarnecendo espadas, lanças e todas as ferramentas de
assunto para o cirurgião, mas, em se tratando das incisões venosas, a tare- cortar. Não fosse este regulamento assinado por mestre Gamito, "barbei-
fa era confiada a outro oficial da instituição: o barbeiro. ro e solorgiam", seria impossível estabelecer através deste documento
A lida do barbeiro e sangrador do Hospital Real ia além de sangrar qualquer associação entre as artes de barbear e sangrar32.
os internos em "todas as horas e tempos" em que fosse requerido e orde- Mestre Gamito nunca fez parte dos quadros do Hospital Real e mui-
nado pelo físico. Cabia-lhe ainda "fazer a barba e tosquiar" os doentes to provavelmente morreu sem ter ouvido falar de Guy de Chauliac33, vis-
todas as vezes em que fosse solicitado, livrando os internos do incómodo to que a obra do cónego francês passou a balizar o aprendizado da Cirur-
dos piolhos e preparando-os para receber na face ou na cabeça os emplas- gia no Hospital do Rossio apenas no reinado de D. João III. Era de fato
tros do cirurgião, as mezinhas do boticário e suas próprias ventosas31. um barbeiro de barbear e, justo por conhecer bem seu ofício, redigiu as
O aprendizado da barbearia e da sangria em Lisboa não estava, regras que deveriam nortear a vida de todos os oficiais deste mester.
entretanto, entre as técnicas ensinadas no Hospital Real nos dias de Entretanto, declarava-se também um cirurgião, porque em sua cultura de
D. João III, tampouco nos de D. Manuel. Ao contrário da prática cirúrgi- oficio, essencialmente oral e empírica, a cirurgia estava diretamente asso-
ca, a arte de sangrar estava submetida às regras da confraria de São Jorge ciada à arte de sangrar e andava em par com os cortes de barba e cabelo.
e aos regulamentos que norteavam o exercício legal desta profissão na Tanto que o próprio regimento do Hospital Real recrutava, para compor
cidade. Mas a admissão dos barbeiros nessa Casa hospitalar implicaria na seus quadros um barbeiro capaz de barbear e sangrar. Porém, como a
redefinição das exigências impostas ao exercício do ofício e na própria concepção e organização da instituição era produto de um saber escrito e
denominação utilizada por estes oficiais. letrado, cirurgião e barbeiro eram profissões de competência e importân-
cia distintas.
Assim, com o claro propósito de hierarquizar os dois saberes, o
poder régio encetou, na documentação oficial, a expressão "barbeiro-
-sangrador" em substituição da expressão "barbeiro-cirurgião", corrente
30 O cónego e cirurgião francês Guy de Chauliac nasceu provavelmente nos últimos anos
do século XIII. Estudou Medicina em Toulouse, Montpellier e Bolonha. Em 1348,
quando já residia em Avignon, tòrnou-se médico do Summo Pontífice Clemente VI e 32 "Livro que fez mestre gamito barbeiro et solorgiam do regimento do hoficio e da igi-
posteriormente dos papas Inocêncio VI e Urbano V, Em 1363, escreveu um compêndio minaçam dos barbeiros na era de mil et quinhentos et onze annos". Livro das Posturas
didático de Cirurgia, editado a primeira vez em Veneza e que se tornou conhecido Antigas. Lisboa: Ed. Câmara Municipal de Lisboa, 1974, pp. 384-389.
como Cirurgia Magna. No século XV, foram publicadas catorze edições desta obra, na 33 No século XVI, os oficiais que assumiram o cargo de cirurgião no Hospital Real cha-
Europa, e trinta e oito no século XVI. Baseado nos escritos de Galeno e Avicena, o mavam-se mestre Estevam, mestre Ayres, mestre João Dias, Braz Tenreiro, mestre
compêndio defendia a importância da Anatomia para a formação do cirurgião e tornou- Fernando, Francisco Barreto, Francisco Feliciano, Álvaro Dias, Duarte Lopes, Pedro
-se a principal referência para a instrução dos cirurgiões portugueses, até meados do Lopes Cardoso, Alonso Rodrigues Guevara, Pedro Martins, JoSo Seco, António da
século XVIII. Cf Ibidem, pp. 7-13 & CORREIA, Fernando da Silva. "A Assistência Cruz, Henrique Henriques, Jorge de Castro, Simão Delgado. Entre os barbeiros, o
Médica em Portugal durante o Século XVI". Separata da Imprensa Médica, n.°s 15, 16 registro mais antigo que se tem notícia é o de António Nobre. Cf. "índice Annotado
e 17, ano de 1943. dos Facultativos do Hospital de Todos os Santos, Hoje Denominado Hospital de
31 "Titulo do Barbeiro, e Sangrador como Hade servir seu Officio, e Obrigação Q. Nelle S. José, desde sua Fundação". LOPES, Alfredo Luiz. Contribuições para a História das
Tem". Ibidem, p. 91. Sciencias Medicas em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890.
252 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 253

entre os oficiais mecânicos, e institucionalizou o aprendizado de Cirurgia baram oficializando, às avessas, o casamento entre os barbeiros de bar-
no Hospital de Todos os Santos. A vinculação desta disciplina à grade bear e a sangria, posto que requisitavam em seus quadros um oficial que
curricular da Universidade de Coimbra, em meados do século XVI, fosse hábil no manejo da navalha e da lanceta.
homologou, por fim, o divórcio entre os dois ofícios, reafirmando a supe- Tal e qual o Hospital Real, o Tribunal do Santo Ofício também man-
rioridade de um saber sobre o outro. tinha em seu corpo de funcionários um barbeiro que conciliava as duas
Coeva à redefinição da função do espaço hospitalar, a promulgação funções, para atender os presos37. Se na unidade hospitalar sua presença
de um capítulo específico sobre sangradores no regimento dos Officiaes era imprescindível porque era um lugar destinado à recuperação dos doen-
Mecânicos da Muy Nobre e Sempre Leal Cidade de Lixboa foi ao encon- tes pobres de Lisboa, nos cárceres da Inquisição seus serviços eram neces-
tro desse objetivo34. Em 1572, a Câmara Municipal submeteu a arte de sários porque a cadeia era em si mesma um foco gerador de doenças.
sangrar à concessão de uma carta emitida pelo cirurgião-mor e a execu- A candidatura para o cargo de barbeiro do Hospital Real dependia
ção da sangria à prescrição de um médico ou de um cirurgião. Não cabe- essencialmente da apreciação do provedor. No Santo Ofício, a admissão
ria, portanto, aos juizes do ofício de barbeiro expedir a carta de examina- dos pretendentes também estava diretamente subordinada à palavra final
ção de sangrador, nem tampouco ao sangrador emitir pareceres médicos. das maiores autoridades do Tribunal, os inquisidores de Lisboa. Aqui,
Entretanto, o ensino continuava a ser nas tendas. Mas só estavam autori- porém, a frequente conjugação da função de sangrador dos cárceres às
zados a ministrá-lo aqueles que fossem mestres sangradores. O tempo do atividades de familiar fez progressivamente deste título, ou melhor, do
aprendizado ficava fixado em dois anos. Ao término deste prazo, o atestado de cristão-velho, uma tática para facilitar a entrada nos quadros
aprendiz tornava-se obreiro e durante seis meses poderia atender aos funcionais da instituição.
clientes da loja sem que tivesse em sua posse a carta de sangrador35. Salvador Dias pertenceu às primeiras gerações de barbeiros que se
A existência de dois regimentos, um destinado aos barbeiros e outro filiaram na Inquisição de Lisboa. Ingressou no oficialato do Tribunal em
aos sangradores, pode sugerir, à primeira vista, uma separação formal torno de 1588, aproximadamente cinquenta e dois anos após a instaura-
entre as duas atividades. Mas os barbeiros de barbear continuavam sendo ção do Santo Ofício em terras portuguesas. Além de servir à Casa como
os oficiais que detinham potencialmente os meios para exercer a arte de barbeiro, o oficial também era familiar. Exatamente como muitos outros
sangrar. Além de saberem fazer barbas, tosquias e cortar os cabelos dos mesteirais da bandeira de São Jorge, Salvador deixou sua terra natal, Cas-
clientes, seu regimento exigia-lhes que soubessem cuidar de seus instru- telo Lanhoso, no arcebispado de Braga, para encontrar seu porto seguro em
mentos de trabalho, isto é, amolar tesouras, navalhas, mas também afiar Lisboa, à sombra da corporação dos homens de ferro e fogo e de seu orago
lanceias36. O sangrador, por seu turno, deveria trazer consigo uma lance- protetor. Já morador na capital, casou-se com Margarida Simoa, que lhe
ta, pós restritivos para estancar o fluxo de sangue, duas ventosas muito deu um varão. Sem contrariar a prática corrente entre os oficiais mecâni-
pequenas para o pescoço, duas médias, duas grandes e outra ainda maior cos, Salvador não deu ao seu rebento seu sobrenome, o de sua mulher ou
para sangrias no abdómen. de qualquer outro ancestral, mas legou-lhe o ofício e a pureza de sangue.
As exigências impostas pela legislação municipal lisboeta aos flebo- Declarando ao Santo Ofício um e outro e que seu genitor já atuava
tomistas podem ter subordinado o exercício legal da arte de sangrar ao na Casa como barbeiro, Manuel Cortes candidatou-se a familiar, em
arbítrio de uma autoridade nomeada pelo poder régio, com a finalidade 1608. Sua pretensão de entrar na milícia inquisitória! encobria, na verda-
de controlar a qualidade de um serviço ligado à área médica, retirando
dos líderes da bandeira de São Jorge qualquer ingerência sobre esta maté- 37 Embora mencionem médicos e cirurgiões ao tratarem do elenco de funcionários do
ria. Contudo, as instituições que prestavam atendimento aos doentes aca- Santo Oficio, os historiadores eliminam frequentemente a figura do barbeiro, ainda que
suas funções sejam destacadas pelo regimento do Santo Oficio de 1640. A ausência da
menção talvez se explique pela própria "confusão" propagada pelos trabalhos que se
34 O diálogo mantido entre a Coroa e a Câmara Municipal de Lisboa para regulamentar ocuparam de barbeiros e cirurgiões. Mas devem ser tributadas, sobretudo, à ausência
as atividades dos oficiais mecânicos da cidade foi tratado no capítulo II, cf. supra de estudos sobre as corporações de oficio em Portugal. Cf. CALAINHO, Daniela Buo-
pp. 124-125. no. Em Nome do Santo Oficio —familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil Colo-
35 "Regimento dos Sangradores", in LEÃO, Duarte Nunes. Livro dos regimentos dos Offl- nial. Rio de Janeiro, 1992. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de
ciaes Mecânicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lixboa (1572), Coimbra: Janeiro, p. 29; BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições - Portugal. Espa-
Imprensa da Universidade, 1926, pp. 213-214. nha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, pp. 122-124. SARAIVA, António José.
36 "Regimento dos Barbeiros". Ibidem, pp. 61-62. Inquisição e Cristãos-Novos. Lisboa, Estampa, 1985, pp. 159-174.
254 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 255

de, outro intento: servir aos cárceres. O motivo seria revelado pelo pró- suas despesas com os custos do processo não foram em vão. No ano
prio Salvador em uma petição encaminhada ao Tribunal na mesma época. seguinte, o Hospital de Todos os Santos, outra instituição onde os barbei-
Alegando estar "muito doente e não poder servir" a "esta santa casa", ros costumavam atuar, redefinia o perfil requisitado àqueles que desejas-
havia por bem renunciar ao privilegio e cargo a favor de seu filho Manuel sem ocupar o cargo de sangrador. Se nos tempos de D. Manuel as únicas
Cortes, homem do mesmo mester38. exigências eram a competência e a assiduidade, em 1620, quase um sécu-
Os autos do processo de habilitação de Manuel Cortes não explici- lo após a instauração da Santa Inquisição, as habilidades do barbeiro
tam se ele foi ou não admitido como barbeiro dos cárceres. Mas revelam eram qualidades secundárias. "Primeiramente", o sangrador deveria ser
antes de tudo, que pai e filho tentaram utilizar o vínculo com a milícia "cristão velho de boa fama e caridoso"41.
inquisitorial como um meio para azeitar as negociações na transmissão A pureza de sangue exigida inicialmente aos quadros do Santo Ofí-
do cargo de barbeiro de um para outro. É certo que, à altura de sua peti- cio tornava-se, no início do século XVII, um pré-requisito para qualquer
ção, Manuel Cortes já estava casado e, segundo as normas que regiam o oficial de barbear e sangrar que se ligasse também ao Hospital Real e
tribunal, sua consorte deveria ser submetida a uma sindicância para pro- tornava-se, inclusive, um atributo capaz de superar os dotes profissionais
var que não tinha entre seus antepassados qualquer membro de "raça do candidato, como comprova o primeiro parágrafo do Regimento dos
infecta". Mas, se a preocupação de Manuel fosse realmente averiguar o Barbeiros do Hospital Real. O barbeiro Manuel Rodrigues só recebeu a
passado do grupo de origem de sua mulher, a solicitação para a devassa provisão para atuar no estabelecimento hospitalar em 1620, justamente
teria sido feita antes da união, já que Salvador e Margarida eram reco- porque tinha "as partes" requisitadas42.
nhecidamente cristãos-velhos. Sua ambição era de fato servir aos cárce- Note-se que o regulamento dos barbeiros do Hospital de Todos os
res, acumulando a remuneração das eventuais prisões à das sangrias, exa- Santos é coetâneo ao alvará régio que condicionou a participação dos ofi-
tamente como fizera seu genitor em duas décadas. ciais da bandeira de ferro e fogo na Casa dos Vinte e Quatro ao ingresso
Provavelmente instruído por seu pai, o barbeiro Manuel não tardou a na irmandade de São Jorge e que seria o primeiro passo em direção à
entender que a declaração explicita a causa do Santo Ofício e a posse do subordinação do estandarte à confraria, em 1654. Para usar de precisão, a
atestado de cristão-velho poderia facilitar sua inclusão no corpo de ofi- resolução do rei e o regimento são apartados por apenas cinco meses. O
ciais que servia aos presos, fosse a médio ou a longo prazo. Porém aque- primeiro remonta ao mês de Fevereiro e o segundo ao mês de Julho de
les que não tinham em seu horizonte uma possibilidade de admissão tão 1620. Considerando que alguns barbeiros eram familiares e aluavam nos
concreta também não custaram a entender que a adesão de apenas alguns cárceres do Santo Ofício e que o estabelecimento hospitalar era governa-
oficiais à milícia inquisitorial implicaria na formação de uma oligarquia no do pela Santa Casa da Misericórdia, uma confraria régia que desde seu
interior da própria categoria dos barbeiros. Motivado por esta ou por aque- primeiro compromisso só admitia cristãos-velhos43, a ideia de utilizar o
la razão, em 1619, era Manuel Cosmo quem se candidatava a familiar39. conceito de cristão-velho como pré-requisito para a entrada na irmandade
Nascido e criado em Lisboa, mestre Manuel morava na Rua das Flo- de São Jorge foi mesmo obra dos barbeiros de barbear que andavam na
res, na freguesia do Loreto, na ocasião em que encaminhou sua petição. confraria entre 1620 e 1654.
Seu pai nascera em Boselar, termo da capital, atendia pelo nome de O pré-requisito exigido aos barbeiros foi oficializado e fixado pela
António Cosmo e fora o primeiro de sua parentela a residir em solo lis- administração, porque enquadrava-se num projeto maior de definição do
boeta. Além de ensinar o ofício de barbeiro ao filho, transmitiu-lhe tam- perfil do ofícialato régio, que, em última instância, deveria dar corpo ao
bém o sobrenome e o sangue de cristão-velho. As diligências realizadas
pelo Santo Ofício disseram-no, pois Manuel Cosmo foi considerado apto Valentim Ferreira, em 19 de Abril de 1639. Pertencia a este último o titulo de barbeiro
para ingressar na milícia inquisitorial. e sangrador da Inquisição. ANTT, Inquisição de Lisboa, Livro 2, fl. 40.
O barbeiro da Rua das Flores teria de esperar ainda uns vinte anos 41 "Regimento do Barbeiro do Hospital de Todos os Santos". Apud. SANTOS, Costa.
para atuar como sangrador nos cárceres do Santo Ofício40. Entretanto, Sobre Barbeiros Sangradores do Hospital de Lisboa. Porto: Tip. da Enciclopédia Por-
tuguesa, 1921, pp. 17-20. Separata dos Arquivos de História da Medicina Portuguesa.
42 "Treslado da Petição do Barbeiro Manuel Rodrigues e o Despacho que se lhe deu com
38 ANTT, Manuel Cortes, HSO, maço 4, n.° 140. ho regimento do dito Cargo". Ibidem, p. 16.
39 ANTT, Manuel Cosmo, HSO, maço 8, n." 5. 43 GOODOLPHIN, Costa. As Misericórdias. Lisboa: Livros Horizonte, 1998, p. 57, l.1 edi-

40 Manuel Cosmo passou a dividir a função de barbeiro e sangrador dos cárceres com
ção em 1897.
256 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 257

discurso do Estado português. Se entre suas instituições havia um tribu- do Loreto e António Cosmo, filho de Manuel Cosmo, que teve este off° e
nal com poderes para demarcar os limites entre os crédulos e os ímpios e era familiar"45.
o fazia através da pureza de sangue, o quadro de funcionários das demais O tribunal manteve realmente em segredo a tal lista de candidatos,
deveria ser coerente com seus princípios. Diferentemente dos bate-folhas, inviabilizando uma comparação entre os currículos dos barbeiros. Mas
latoeiros, cutileiros e demais oficiais da bandeira, os barbeiros eram sub- percebe-se que, mesmo depois de morto, eram o ofício e o sangue do bar-
metidos a este julgamento cada vez que tencionavam ingressar como san- beiro Manuel Cosmo que o identificavam publicamente. Fora efetiva-
gradores no corpo de funcionários daqueles dois pólos institucionais. Haja mente este dote, além de alguma lanceia ou navalha e talvez a sua tenda,
visto os casos de Manuel Cortes, familiar do Santo Ofício e filho de um que António Cosmo recebera como herança. Note-se que enquanto os
sangrador dos cárceres, e Manuel Rodrigues, sangrador do Hospital Real. outros postulantes eram distinguidos pela freguesia onde residiam, Antó-
Mestre Cortes, mestre Rodrigues e o familiar Manuel Cosmo certa- nio Cosmo era diferenciado pelo vínculo declarado entre seu genitor e o
mente estavam entre os barbeiros que endossaram a implementação da Santo Ofício. A informação decerto deu peso à sua candidatura, fortale-
medida que fez da pureza de sangue condição sine qua non para a entrada cendo-o frente aos outros concorrentes, a ponto de garantir-lhe um lugar
na irmandade de São Jorge e que, a partir de 1654, determinaria que o entre os três primeiros colocados durante a seleção.
exercício legal de todos os ofícios da bandeira ficaria restrito aos cris- O veredicto, entretanto, favoreceu a Manuel Lopes, natural da vila
tãos-velhos. Na altura em que introduziram o modelo de sindicância uti- de Alenquer, morador no Adro de Santa Justa, que foi provido como
lizado pelo Santo Ofício na confraria, os barbeiros representavam 41,6% "barbeiro & sangrador" do Santo Ofício, em 11 de Janeiro de 1656.
dos 711 mesteirais de ferro e fogo44. Segundo as contas de Frei Nicolau Pode-se assegurar que os critérios utilizados para a escolha não foram
de Oliveira, deste universo, 143 eram "barbeiros sacadores de espadas" e exclusivamente técnicos. As diligências que apuraram a vida pregressa
153 eram "barbeiros de lances". Não causa espanto, porquanto, que estes da mulher de Manuel Lopes apontaram que seu avô paterno 'era ornem
últimos, sendo maioria numérica (c. de 21,5%), e os mesteirais do ofício muito de bem", servira como juiz de órfãos em Vila Flor e também como
mais afamado do estandarte, tenham infundido, sem grandes dificulda- juiz ordinário. Além do mais, tinha outros parentes que eram "gente hon-
des, o conceito de cristão-velho nas culturas de ofício da corporação, des- rada" e "estavam servindo os offícios nobres". Em poucas palavras, o
fazendo uma suposta distância entre o meio institucional e o ambiente barbeiro tinha um bom costado, que mesmo à distância, sem requisitar
das tendas. uma intervenção direta em seu processo, interferiu em seu destino e no de
A postura assumida pelos barbeiros nas gerações seguintes demons- mais duas outras pessoas, entre as quais António Cosmo, que, mesmo
tra que a iniciativa de utilizar a pureza de sangue como um recurso para sendo filho de um familiar, foi preterido.
selecionar os futuros irmãos de São Jorge fora mesmo motivada pela ten- O critério para o desempate entre os barbeiros foi, ao que tudo indi-
tativa de sublinhar o parentesco ideológico da categoria com o ideário ca, a teia de relações sociais onde Manuel Lopes estava indiretamente
que presidia às instituições régias, na esperança que lhe rendesse algum inserido. Mas o barbeiro era cristão-velho. As sindicâncias comprovaram
favoritismo diante da concorrência. sua pureza de sangue. Observe-se, no entanto, que mestre Lopes se dis-
Em 1655, sabendo-se puro de sangue e confiante no que aprendera pôs a ter sua vida passada e presente devassada pela Inquisição, porque
com o genitor, o barbeiro António Cosmo, a quem o falecido Manuel concorria ao cargo de barbeiro e sangrador. Tanto que só solicitou sua
Cosmo ensinara o mester e dera o nome de seu pai e de seu avô, candida- carta de familiar em 1659, após três anos de lida nos cárceres. O que
tou-se ao cargo de "barbeiro e sangrador" do Santo Ofício. Sabe-se que a motivara sua ligação com o Santo Ofício fora, na verdade, a possibilidade
lista de pretendentes era extensa e, uma vez submetida aos médicos da de integrar seus quadros funcionais.
Inquisição, vários candidatos pareceram suficientes. Mas três barbeiros A presença dos oficiais mecânicos na milícia inquisitorial não pode
foram considerados especialmente capacitados para a tarefa: "Manuel ser compreendida, portanto, apenas como uma adesão cega ao discurso
Lopes, morador em Santa Justa, Diogo Rodrigues, assistente em N.a Sr." classificatório e excludente do Santo Ofício. Se a participação de muitos
mesteirais às fileiras de familiares explica-se pela pretensão de obter pri-
vilégios e adensar à sua biografia o prestígio que o estatuto de oficial
44 OLIVEIRA, Frei Nicolau de. Livro das Grandezas de Lisboa. Lisboa: Ed. Vega, 1991.
Contém fac-símile da edição original de 1620. Texto atualizado por Maria Helena Bas-
tos, pp. 565-576. 43 ANTT, Manuel Lopes, HSO, maço 12, n.° 334.
258 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 259

mecânico era incapaz de conferir, em outros casos, era decorrência da em particular entre os officiaes e ministros do ditto Hospital que [tinham]
atividade que exerciam, porque sua inclusão em algumas frentes de traba- notícia de seu requerimento", o boticário cobrou a emissão da carta de
lho dependia necessariamente da condição de cristão-velho. Ligada a um familiar, porque corria "perigo de perder o ditto officio" e o documento era
movimento maior de organização do aparelho administrativo do Estado, 0 único meio de que dispunha "para poder evitar a ditta murmuração". O
a pureza de sangue imposta pelas instituições régias ao seu ofícialato tribunal expediu em três dias a carta de habilitação de Manuel da Cruz e,
acabou fomentando a solicitação dos inquéritos inquisitoriais entre os em 6 de Dezembro de 1673, o boticário pôde exibi-la no Hospital Real,
oficiais mecânicos, para que pudessem simplesmente comprová-la. para garantir seu emprego e calar as vozes de seus desafetos.
Neste sentido, o Hospital de Todos os Santos foi um dos focos de O falatório não conseguiu eliminar Manuel da Cruz do elenco de
recrutamento da milícia inquisitorial. Haja visto o regimento dos Barbei- funcionários da casa hospitalar. Mas o registro da ocorrência demonstra
ros, cujo primeiro item era quase uma sugestão para que o sujeito se alis- que a pureza de sangue requisitada aos oficiais para ingressarem na insti-
tasse no corpo de oficiais do Tribunal. O drama vivido por um boticário tuição havia de fato se sobreposto à habilidade profissional de qualquer
do Hospital Real, entre os anos de 1672 e 1673, ajuda a entender porque mesteiral, a ponto de poder privá-lo de seus meios de subsistência, e que
os barbeiros residentes em Lisboa transformaram a pureza de sangue na a difamação tornara-se um instrumento eficaz e legítimo de desqualifica-
cédula de identidade dos irmãos de São Jorge e porque os demais oficiais ção de outro profissional entre os oficiais mecânicos.
da bandeira não se insurgiram contra a medida. Os barbeiros de Lisboa se precaveram destes insultos, ao reproduzi-
Natural de Coimbra e residente em uma das casas do Hospital de rem no seio da irmandade de São Jorge o mesmo modelo de sindicância
Todos os Santos, Manuel da Cruz de Carvalho encaminhou seu pedido de para averiguação da pureza de sangue a que eram frequentemente expos-
habilitação para o cargo de familiar, em 167246. Como de praxe, o supli- tos. A adoção da medida pela confraria acabou por consolidar, na seq-
cante declarou o nome e o sobrenome de seus pais, de seus avós mater- uência dos anos, uma tática de aproximação para pleitear a função de
nos e paternos, mas, ao fazê-lo, por um lapso de memória ou desconhe- barbeiro do Santo Ofício.
cimento, equivocou-se com o prenome de seu avô paterno. Sua Como demonstram as petições de António Cosmo, Diogo Rodrigues
solicitação não foi negada por isso. Na verdade, o Santo Ofício retificou e Manuel Lopes, até à promulgação do alvará que subordinou o exercício
a informação prestada, devolvendo ao boticário uma parte de sua história legal de qualquer ofício da bandeira de São Jorge ao ingresso na irman-
familiar que ele mesmo ignorava. Entretanto, o oficial mecânico não foi dade, portanto, até 1654, não era incomum que estes oficiais requisitas-
chamado para prestar juramento no Palácio dos Estaus de imediato, como sem primeiro o cargo de sangrador e depois a carta de familiar. No últi-
acontecia com os aprovados nas averiguações. O silêncio do Tribunal fez mo quartel do seiscentos, os barbeiros passaram a requerer inicialmente o
da vida de Manuel um inferno. Todas as testemunhas de seu processo título de familiar, isto é, o atestado de cristão-velho, antes de se ligarem
eram funcionários do Hospital de Todos os Santos e, embora tivessem ao serviço médico dos cárceres, o que indica que a prática se havia arrai-
jurado diante do promotor guardar segredo sobre sua participação nos gado nas culturas de ofício do estandarte.
autos do processo, nenhuma fê-lo. O boticário tornou-se alvo de hostili- João Antunes, nascido em São Pedro da Murta, no bispado de
dade no estabelecimento, porque Manuel da Costa (cura), Manuel de Coimbra, e morador nas Portas de Santo Antão, junto ao Rossio, foi um
Carvalho (cirurgião), Manuel de Souza (trinchante)47 e João Manuel dos irmãos de São Jorge a adotar o procedimento48. O oficial candidatou-
Chaves (porteiro) encarregaram-se de propagar a notícia de que não -se ao cargo de familiar, em 1693, e recebeu sua carta de habilitação a
havia recebido sua carta de familiar, insinuando, portanto, que poderia 1 de Maio de 1694. Cinco anos depois, quando seu sobrinho requisitou
ser de "gente de nação" ou de outra "raça infecta". sua entrada no corpo de familiares, estava aluando como "sangrador" nos
Farto do disse que disse, Manuel da Cruz enviou uma missiva ao San- cárceres do Santo Ofício. Tal e qual o tio, Manuel dos Santos, seu conter-
to Ofício relatando o ocorrido. Alegando que padecia "de hua grande râneo e também residente nas Portas de Santo Antão, só requisitou sua
afronta entre as pessoas q' não conhecfiam] por cristão velho e muito mais provisão como barbeiro dos cárceres em 1703, quatro anos após dar
entrada em sua familiatura 49 .
« ANTT. Manuel da Cruz de Carvalho, HSO, maço 21, n." 517.
47O trinchante do Hospital tinha por obrigação repartir na cozinha as porções dos doen- 48 ANTT, João Antunes, HSO, maço 25, n.° 608.
tes, ao jantar e à ceia. Cf. OLIVEIRA, Frei Nicolau. Ibidem. p. 610. 49 ANTT, Manuel dos Santos, HSO, maço 54, n." i 143.
260 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 261

É fato que a subordinação dos ofícios da bandeira de São Jorge às centúria à frente, é muito possível que tivesse amealhado alguns réis cui-
regras da associação confraternal fez da irmandade um posto de recruta- dando dos presos, porque era um familiar da Casa.
mento de familiares entre os oficiais mecânicos. Porém, se de modo geral Os cárceres da Inquisição eram, de fato, uma frente de trabalho
o vínculo com o Santo Ofício funcionava como um escudo contra situa- importante para estes oficiais mecânicos. Embora o Regimento do Santo
ções vexatórias e constrangimentos, apresentava-se particularmente Oficio previsse apenas um barbeiro em seus estatutos50, no dia-a-dia a
atraente para os barbeiros, porque franqueava-lhes a chance de aproveitar demanda para o atendimento era muito maior e não raro havia a necessi-
de pronto a vacância do cargo de barbeiro e sangrador dos cárceres. Uma dade de mais de um sangrador. À primeira vista, pode-se supor que o tri-
vez ligados à milícia inquisitória!, não teriam que aguardar a sindicância bunal pagasse bem e pontualmente pelo serviço, já que os barbeiros
do Tribunal ao requisitar a função de sangrador e ainda podiam oferecer investiam parte de suas economias no financiamento das diligências para
seus serviços sem que tivessem uma provisão. Ou seja, poderiam infil- a verificação de sua pureza de sangue. Todavia, a queixa apresentada
trar-se na cadeia para prestar atendimento aos presos e, conforme a opor- pelo mesmo Manuel dos Santos, em 2 Setembro de 1707, demonstra que
tunidade, requisitar o provimento. estes homens tinham de recorrer ao Tribunal pelo reajuste de seus servi-
Mestre João fez dessas. Não há registro nos autos de seu processo de ços, pois caso contrário a remuneração ia para as calendas51.
habilitação de que tenha recebido uma provisão. Sabe-se que trabalhava Depois de quatro anos como titular do cargo de sangrador, mestre
no cárcere porque o filho de sua irmã, Manuel dos Santos, apresentou-se Manuel recebia mensalmente os mesmos quarenta réis pelos cortes de
ao Tribunal como parente legítimo do "familiar e hora sangrador dos cár- barba e cabelo, os mesmos sessenta réis por sangria de braço e os mes-
ceres" João Antunes. É evidente que mestre João usou da prerrogativa de mos setenta pelas incisões de pés. Segundo o oficial, esta tabela de pre-
ser familiar para poder oferecer seus serviços nas celas da cadeia do ços era insuficiente para a sua sobrevivência, uma vez que não tinha
Limoeiro. Não só o fez, como acabou instruindo seu sobrinho a percorrer outra ocupação porque não lhe era permitido pelo regimento.
o mesmo caminho. Logo depois de ter recebido sua carta de habilitação, Em Dezembro do mesmo ano, reconhecendo textualmente a carestia
Manuel estava por lá metido, assistindo aos sentenciados da Inquisição. em que se encontravam todos os géneros, a Mesa considerou razoável a
Em 16 de Março de 1703, alegando que trabalhava há dois anos "a solicitação de mestre Manuel. Ademais, havia concedido aumento a
serviço do santo oficio na ocupação de barbeiro e sangrador nos cárceres António Ferreira, barbeiro e sangrador da cadeia desde 165052. Embora o
[...] e porque na dita ocupação sempre ouve barbeiro com previzaõ ", acréscimo fosse apenas de l O réis em cada sangria de braço ou de pé, e a
Manuel requisitou a regularização de seu nexo com a instituição, desta- remuneração pelos cortes de barba e cabelo continuasse sem alteração,
cando que "nelle concorr[iam] os requezitos que o capacitta[vam] p" que mestre Manuel deu-se por satisfeito, porque não recorreu da sentença.
se lhe passafsse] provizão". Manuel obteve aprovação de seu pedido em O índice de preços dos serviços prestados pelos barbeiros aos sen-
apenas um mês. Em 13 de Abril de 1703 passou a ostentar o título de tenciados do Santo Ofício indica uma clara hierarquia na competência
sangrador dos cárceres. Sua provisão foi expedida sem demora, porque já das artes de barbear e sangrar, embora ambas fossem realizadas pelo
estava enfronhado na cadeia quando o barbeiro que ocupava o cargo, mesmo homem. O pagamento pela sangria era praticamente o dobro do
Miguel Pinho Barboza, faleceu. Além do mais, era comprovadamente um valor da feitura de uma barba e discriminado de acordo com o grau de
cristão-velho, porque já tinha prontas suas diligências. dificuldade da incisão. Seria realmente de estranhar que os irmãos de São
Em tudo semelhantes, os procedimentos de João Antunes e de seu 50 BNL. regimento do Santo Officio da Inquisição dos Reynos de Portugal. Ordenado por
sobrinho demonstram que o alistamento dos barbeiros na legião de fami- Mandado do Ilm.° & Rm.° Snor Bispo Dom Francisco de Castro, Inquisidor Geral do
liares da Inquisição era usado realmente como uma estratégia para entra- Conselho d' Estado de S. Magestade. Em Lisboa nos Estaus por Manuel da Sylva.
da no serviço médico do tribunal. Sobretudo, porque o provimento para o 1640. Título XX, parágrafo 4.
exercício desta função não era um património capaz de ser transmitido de 51 ANTT. Petição do Sangrador dos Cárceres Manuel dos Santos de 2 de Setembro de

uma pessoa para outra. Recorde-se que ainda no início do século XVII o 1707. Inquisição de Lisboa. Livro 154, fls. 170-171.
52 Mestre António recebeu sua provisão de sangrador dos cárceres em 16 de Agosto de
barbeiro Salvador Dias clamou para que seu filho herdasse o cargo, mas,
1650 e requisitou sua carta de familiar apenas em Março de 1657. Seu primeiro víncu-
sabendo que isso não era a práxis, instruiu-o para que se candidatasse lo com a Inquisição foi através do ofício de barbeiro, antes da promulgação do alvará
antes a familiar. Manuel Cortes não se tornou oficialmente barbeiro e régio que submeteu a bandeira as regras da irmandade. ANTT. Livro das Habilitações
sangrador do Santo Ofício, mas, a considerar a lida nos cárceres uma do Santo Oficio. Letra "A". António Ferreira, HSO, maço 8, n.01317 a 332.
262 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 263

Jorge, lotados nas lojas de Lisboa, se furtassem à prática da sangria e se Muito embora fossem parentes próximos, residentes no mesmo local
restringissem apenas à arte de barbear, quando a flebotomia rendia-lhes e sangradores dos cárceres da Inquisição de Lisboa, João Antunes e
muito mais no orçamento. Manuel dos Santos identificavam-se de modo distinto. Enquanto o pri-
O próprio Manuel dos Santos comprova o dito. Antes de ser admiti- meiro requereu sua entrada na milícia inquisitorial apresentando-se como
do como barbeiro e sangrador do Santo Ofício, dava conta das duas ati- "cirurgião sangrador", o segundo fê-lo dizendo-se "barbeiro sangra-
vidades na tenda em que trabalhava nas Portas de Santo Antão. Pelo jei- dor"53. As discrepâncias na denominação, se tomadas ao pé da letra,
to, conhecia de fato a intrincada rede de vasos sanguíneos. Tinha uma poderiam indicar que se tratavam de homens com profissões distintas.
clientela cativa e de longa data. Alguns, inclusive, eram oficiais do Santo Contudo, nos autos do processo de João Antunes, inexiste qualquer dado
Ofício. Quatro foram suas testemunhas durante a fase judicial de seu pro- que autorize uma aproximação entre suas habilidades e a dos moços que
cesso de habilitação para familiar. O alcaide dos cárceres, Agostinho da aprendiam as lições de Guido e frequentavam as aulas de Anatomia no
Costa, era seu freguês nas sangrias havia cinco ou seis anos. Salvador Hospital Real. Durante as diligências para sua habilitação como familiar
Pereira, porteiro da Mesa da Inquisição, fazia sua barba com mestre do Santo Ofício, algumas das vozes que prestaram testemunho sobre sua
Manuel há catorze anos. Manuel Moreira, guarda dos cárceres da Inqui- pureza de sangue e a de seus ancestrais, em São Pedro do Rego da Murta,
sição, também confiava seu rosto e corpo ao fio da navalha e à lanceta de admitiram que o filho do almocreve João Antunes e neto do lavrador
mestre Manuel havia doze anos. João Alves, outro guarda dos cárceres da António Fernandes era "cirurgião" e que se fora dali para assistir em Lis-
Inquisição, havia dez anos frequentava a loja deste irmão de São Jorge boa. Mas Manuel Simões, homem de seus oitenta e cinco anos, que vivia
para fazer a barba e sangrar. de sua fazenda e era casado com a prima de João Antunes, identifícou-o
O histórico de Manuel dos Santos comprova, sem que seja preciso como "barbeiro e cirurgião".
buscar analogias e contrastes com o reino de França, que em Lisboa, no O contraste entre a fala de Seu Manuel de São Pedro da Murta e das
século XVII, barbear e sangrar eram ações conjugadas e executadas por outras testemunhas, lavradores em sua maioria, e o próprio histórico de
um mesmo sujeito, fosse nas tendas, nas casas hospitalares ou nos cárce- João Antunes pedem que se acate com reservas a expressão "cirurgião".
res. Demonstra ainda que os barbeiros estabelecidos na cidade há mais Mesmo porque, após alguns anos de serviço entre os presos, seu sobrinho
tempo tinham efetivamente mais chance de ingressar nas instituições que Manuel também se identificou como "cirurgião e sangrador", quando
prestavam atendimento médico. Em parte porque a destreza no uso da emitiu sua petição ao tribunal para que seu pagamento fosse reavaliado54.
lanceta e da navalha era fruto de, pelo menos, uma década de trabalho e, No entanto, sabe-se, por esta missiva e pelo parecer do Santo Ofício
sobretudo, porque só após um longo tempo de convivência a comunidade sobre esta matéria, que o trabalho de mestre Manuel nos cárceres era
era capaz de afiançar que seus usos e costumes eram de um cristão-velho, fazer a barba e sangrar.
pois, tal como ferreiros, serralheiros e demais oficiais da bandeira de São Pode-se inferir, sem esforço, que os barbeiros João e Manuel procu-
Jorge, estes oficiais mecânicos vinham muitas vezes de fora de Lisboa e ravam deliberadamente associar sua imagem profissional à arte da cirur-
construíam, a partir de seu mester, sua rede de sociabilidade. Os depoen- gia. Mas não como faziam os barbeiros à época de mestre Gamito, autor
tes no processo de mestre Manuel para familiar do Santo Ofício eram
todos seus clientes. Aliás, funcionários do Santo Ofício e prováveis 53 "Diz João Antunes surgião, e sangrador natural do lugar do Outeyro freguizia de S. P°
conhecidos de seu tio João Antunes. do Rego da Murta [...] que elle deseja muito servir o Santo OfP no lugar de familiar";
Egresso de São Pedro do Rego da Murta, no Bispado de Coimbra, "Diz Manuel dos Santos solteiro Barbeiro e Sangrador aprovado morador nesta cidade
Manuel dos Santos recebeu abrigo na casa deste irmão de sua mãe, nas as portas de Santo Antaõ freguezia de Santa Justa que elle deseja muito servir ao Santo
Officio em o cargo de familiar, e por que concorrem nelle os requizitos necessários".
Portas de Santo Antão, e muito provavelmente aprendeu ali com ele o ANTT, João Antunes, HSO, maço 25, n.°608; Manuel dos Santos, HSO, maço 54,
mester. Além de ensinar-lhe a profissão, seu tio introduziu-o em sua rede n.° 1143, respectivamente.
de relações sociais, mestre Manuel decerto soube cativá-la. Graças ao 54 "Diz Manuel dos Santos familiar do St° Off surgião e sangrador aprovado, morador
parentesco, a estes conhecimentos e, naturalmente, à pureza de seu san- as portas de Santo Antaõ, que elle assiste a dois annos em o serviço do santo qfficio na
gue, anos depois estaria pelas celas da cadeia do Limoeiro, a tratar dos occupação de barbeiro e sangrador nos cárceres delle e porque na dita occupaçaõ
sempre ouve barbeiro com previzão de Vilm" dos dittos cárceres e de prezente o naõ há
presos acusados de bigamia, apostasia, cripto-judaísmo e outros "crimes e nelle supplicante_ concorrem os requezitos...". ANTT, Manuel dos Santos, HSO,
nefandos". maço 54, n.° 1143. Ênfases minhas.
264 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 265

do primeiro regimento dos barbeiros da cidade de Lisboa, que, em 1511, lugar de Ameixeira, no bispado de Coimbra, e que atendia pelo nome de
se definia como um "barbeiro e solorgiam". Pois se, na primeira década Domingos Rodrigues, mestre Domingos se estabelecera em Lisboa, nos
do quinhentos, o vocábulo "cirurgião" era usado como um referente limites da freguesia dos Mártires, e ali construíra sua identidade profis-
capaz de adjetivar as habilidades de um barbeiro, indicando que se trata- sional e religiosa. Em 1688, ano em que ocorreu a devassa sobre a vida
va também de um flebotomista, dois séculos à frente, era empregado passada e presente de Inês da Silva, porque era casada com o postulante a
como um substantivo, porque se havia afirmado como um saber indepen- familiar Manuel Pinto, seus antigos clientes e conhecidos não lhe fizeram
dente e com uma formação específica. um retrato perfeito, mas sabiam tudo o que de um oficial mecânico se
A alteração feita por João Antunes e Manuel dos Santos não corres- costumava saber.
pondia a qualquer modificação desta ordem nos regimentos institucionais Seu Agostinho, pescador madeirense e morador n' Alfama, já não
ou na bandeira de São Jorge. É, no entanto, inteiramente compreensível, recordava o nome do finado Domingos, sequer sabia dizer de onde era
caso se considere que o Hospital Real admitia aprendizes de cirurgia e natural. Todavia, de seu ofício e da pureza de seu sangue lembrava per-
sangria e que os profissionais oriundos desta Casa passaram a concorrer feitamente. Tanto, que jurou diante do tribunal que se tratava de um bar-
com os oficiais que aprendiam o mester de barbeiro, nas tendas da cida- beiro sem qualquer suspeita de mouro, mulato ou judeu. O mesmo disse-
de, sob a supervisão de um mestre da corporação. Tanto que, se a dubie- ram os oficiais da bandeira de São Jorge que responderam ao inquérito.
dade é uma marca da terminologia utilizada pelos barbeiros, a precisão é Entretanto, estes, apesar de assistentes em outro bairro, sabiam-lhe o
o timbre daqueles que se diziam apenas cirurgiões. nome, atestando que a corporação de ferro e fogo era capaz de aproximar
Em 1693, no mesmo ano em que João Antunes solicitou sua habili- homens de ofícios distintos sem qualquer laço de vizinhança, porque
tação como familiar, Manuel Pires também encaminhou seu pedido para zelavam pelo mesmo culto e estavam submetidos às mesmas regras do
exercer a mesma função no tribunal 55 . Nascido em Vila de Ega, no bispa- estandarte. Mas, se mestre Domingos era uma recordação viva para o
do de Coimbra, e morador na freguesia dos Mártires, o cirurgião teve gaioleiro Luís Coelho, residente no Terreiro do Paço, e para o ferrador
suas diligências aprovadas no ano seguinte, exatamente como o barbeiro Manuel Pinto, que vivia no Poço do Borratem, também o era para o con-
das Portas de Santo Antão. As cinco testemunhas que compareceram ao tratador de vinhos Manuel Francisco Villar. Morador havia muitos anos
Palácio dos Estaus, para prestar juramento sob os Evangelhos e confir- no bairro d'Alfama, Seu Villar fora seu cliente. Segundo o freguês, "o
mar o depoimento prestado anteriormente, asseguraram que se tratava barbeiro que exercia o officio de cirurgião" fazia-lhe a barba.
mesmo de um cirurgião. Assim disseram Francisco Gomes e Luís da Sil- Os depoimentos dos moradores da freguesia dos Mártires, de São
va, boticário e aprendiz de boticário na botica "d'El-Rey", Domingos Miguel d' Alfama e da Ribeira são inequívocos e demonstram que, ape-
Dias Antunes, sineiro e familiar do Santo Ofício, Domingos da Silva, sar da variada combinação dos termos a que deram origem, barbeiro e
marceneiro, e o cavaleiro da Ordem de Cristo João Teixeira. O sineiro e o cirurgião eram, ao contrário do que afirmam Costa Santos e Joaquim
cavaleiro afirmaram, inclusive, que eram seus clientes e iam à sua casa Barradas, ofícios distintos aos olhos dos lisboetas, em fins do século
"sangrar" e "curar". XVII57, fosse entre os mesteirais, fosse entre os funcionários das institui-
Tal e qual tantos outros barbeiros de Lisboa, Manuel Pires atendia ções régias.
em seu domicílio, era hábil no uso das lanceias e das ventosas, mas era
tido e havido na Cordoaria Velha como um cirurgião. Aliás, exatamente 57 Na opinião de Costa Santos, "o público de então [século XVII] não sabia distinguir
entre cirurgiões e barbeiros e se por vezes alguma preferência mostrava era em favor
como um homónimo, natural do Porto e morador em São Miguel d' destes últimos". Segundo Barradas, "em Portugal esta aproximação [entre barbeiros e
Alfama, que recebera sua carta de familiar alguns anos antes, em 1690. cirurgiões] também se deve ter verificado nesta última metade do século XVII, e
Manuel Pinto também era reconhecido entre seus vizinhos como um embora não tenha havido uma fusão formal entre as duas profissões, elas confundiam-
cirurgião56. Ficara viúvo ainda moço e quando correram suas diligências -se e esbatia-se a diferenciação entre ambas. Progressivamente, os campos de actuação
foram-se sobrepondo, o que confirmava a capacidade dos barbeiros para executar o
já era casado em segundas núpcias com Inês da Silva, outrossim viúva do trabalho habitualmente desempenhado pelos cirurgiões". A máxima de Costa Santos e
primeiro matrimónio. Seu falecido marido fora um barbeiro, nascido no a afirmação de Barradas são fruto da transposição do cenário profissional francês para
Portugal. Cf. SANTOS, Costa Sobre Barbeiros Sangradores do Hospital de Lisboa.
Porto: Tip. da Enciclopédia Portuguesa, 1921, p. 37. Separata dos Arquivos de História
55 ANTT, Manuel Pires de Carvalho, HSO, maço 38, n.° 826. da Medicina Portuguesa; BARRADAS, Joaquim. A Arte de Sangrar de Cirurgiões e
56 ANTT, Manuel Pinto, HSO, maço 38, n.° 834. Barbeiros. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 174.
266 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 267

Nota-se, contudo, que por mais voltas que o mundo tenha dado entre profissional dos barbeiros. É certo que os regimentos dos Officiaes
os dias de mestre Gamito e as segundas núpcias de Inês da Silva, o termo Mecânicos de Lisboa facultavam o exercício da flebotomia a qualquer
"cirurgião" mantinha-se adstrito ao ofício dos barbeiros de barbear. Mas um que tivesse a licença de sangrador. Mas, como se viu atrás, no século
isso não implica dizer que eram um e outro a mesma coisa. Observa-se XVI, eram os barbeiros que tradicionalmente dominavam esta arte na
que, uma vez aplicada em relação aos barbeiros, a palavra "cirurgião" cidade.
continuava a ser empregada como um qualificativo capaz de adjetivar o Uma análise mais atenta e pormenorizada da lida destes profissio-
trabalho do oficial e não como um substantivo. Quando empregados nes- nais demonstra que, no seiscentos, os cirurgiões também prestavam aten-
ta classe gramatical, barbeiros e cirurgiões eram sujeitos de ações dife- dimento privado em Lisboa, dividindo com os barbeiros uma fração da
rentes, mestre Domingos, assim como Manuel dos Santos, barbeiro dos clientela. Não lhes faziam a barba, mas sangravam e cuidavam de suas
cárceres, vivia de "barbear" e "sangrar". Os fregueses de Manuel Pires mazelas. Em contrapartida, alguns barbeiros, oprimidos por esta concor-
iam à sua casa "curar" e "sangrar". Enquanto os primeiros ocupavam-se rência e valendo-se de suas habilidades de flebotomistas, se aventuraram
de tosquias, cortes de barba e de cabelo, os últimos tratavam feridas, fra- a prestar tratamentos cirúrgicos à população, dando corpo a uma rivali-
turas, queimaduras e inflamações. O que tinham realmente em comum dade que tinha em comum o domínio da técnica de cura mais difundida
era a habilidade de sangrador. na época: a sangria.
Alguns barbeiros e alguns cirurgiões, porém, excediam esta medida, O Hospital de Todos os Santos foi, sem sombra de dúvida, o princi-
avançando deliberadamente para a seara alheia, com riscos irremediáveis pal agente na promoção desta tensão, por flexibilizar o acesso ao apren-
para qualquer incauto que se dispusesse às peripécias cirúrgicas de uma dizado da sangria e à formação cirúrgica, no decorrer do século XVII, e
trepanação do crânio ou acatasse a prescrição de beberagens heteróclitas. por ampliá-la no princípio do século XVIII. Ao conceber um ensino que
Embora não seja possível quantificá-los, sabe-se que em 1703, no ano em aliava a teoria à prática, numa época em que a arte dos barbeiros e dos
que mestre Manuel dos Santos foi provido como barbeiros dos cárceres, a cirurgiões tornou-se um assunto dos manuais portugueses produzidos por
Câmara de Lisboa atualizou a ordem imposta pelo provedor-mor da saú- um saber letrado, o Hospital introduziu no panorama de ofícios de Lisboa
de que servia no ano de 1642, proibindo expressamente "que nenhum outra categoria profissional: os cirurgiões sangradores.
barbeiro [curasse] de cirurgia e nenhum cirurgião [curasse] de medicina", A formação deste novo núcleo de oficiais expôs os barbeiros, mes-
sem as devidas cartas, nem tampouco emitissem certidões além do que tres de sangria do Hospital desde sua fundação, a uma autofagia irrever-
sua própria carta lhes permitia, sob pena de prisão e pagamento à cidade sível. Detonou a hegemonia que exerciam sobre a arte de sangrar nesta
da multa de cinquenta cruzados, se desrespeitassem a ordem até duas instituição e que justificara sua presença e promoção no quadro dos esta-
vezes, e da cassação de sua licença, se reincidissem na infração pela ter- belecimentos que prestavam atendimento médico e engendrou um confli-
ceira vez58. to velado entre "barbeiros flebotomistas" e "cirurgiões sangradores".
Na qualidade de instrumento regulador, a postura municipal tentava
intimidar os contraventores e inibir as transgressões entre ofícios, cuja
separação formal já estava sacramentada havia mais de um século nas 2.2. "Barbeiros flebotomanos" e cirurgiões-sangradores
instituições. Contudo, se tomada isoladamente, falseia o sentido desta
superposição de atividades, pois considera apenas o aspecto ascendente Em 1620, quando Frei Nicolau de Oliveira descreveu o Hospital
das infrações. Ou seja, que ofícios mecânicos, como o do barbeiro, avan- Real, incluindo-o entre as "Grandezas de Lisboa", a instituição havia
çavam sobre ofícios liberais, como o do cirurgião, è que este, por sua vez, ampliado seu número de leitos e acrescera às quatro enfermarias iniciais
se fazia passar por médico. Note-se que, sob o pretexto de resguardar a nove outras alas, chegando a receber até seiscentos pacientes59. Para res-
população de charlatões, a legislação resguardava o campo de atuação de ponder a esta demanda, o estabelecimento ampliara também os seus qua-
cirurgiões e de médicos, mas em momento algum salvaguardava a área dros. Passara a contar com três cirurgiões e com dois barbeiros. Estes
receberam neste ano um regimento - inexistente no documento regula-
mentar assinado por D. Manuel - e, num explícito sinal de promoção de
58 Assento da Vereação de 22 de Outubro de 1703. OLIVEIRA, Eduardo Freire. Elementos
para a História do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal, 1898. Tomo X,
p. 205. 59 OLIVEIRA, Frei Nicolau de. Ibidem, pp. 602-603.
268 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 269

sua categoria, no âmbito hospitalar, passaram a residir em uma moradia mente normativo"63, no qual o gosto e a preocupação com o modo de
pertencente ao Hospital. Embora não tivessem a mesma renda de um fazer as coisas ocupou o juízo dos homens no campo das ideias, da poe-
cirurgião, que recebia entre trinta e quarenta mil réis, os barbeiros assis- sia, da política, do teatro, da medicina e produziu artes de bem governar,
tiam em casas que valiam cerca de dez mil réis de aluguel, recebiam manuais de boas maneiras, tratados cirúrgicos, práticas de teatro e, como
anualmente oito mil réis, trinta alqueires de trigo, além dos extras, e se vê, também de barbeiros.
tinham agora seis assistentes para auxiliar no serviço, aos quais ensina- Manuel Leitão escreveu para aprendizes de barbeiro depois de cons-
vam a arte de sangrar60. tatar que, após três, quatro anos de iniciados na arte de sangrar, os prati-
Tal como acontecia com os mestres barbeiros, o ingresso desses pra- cantes de sangria desconheciam os nomes, a distribuição das veias, igno-
ticantes de sangria no estabelecimento era submetido à apreciação do ravam quais delas eram passíveis de incisão e quais as complicações
provedor. Se, depois de mandar tirar-lhes as "informações", julgasse que advindas de um corte impróprio. Mas não os responsabilizou pela pouca
tinham "sufficiensia", ou seja, que eram cristãos-velhos, recebia-lhes na instrução. Afinal, não havia livros que tratassem do tema e seus mestres
instituição. Como o tempo deste aprendizado não era fixado pelo regu- também não lhos ensinavam (fl. 8).
lamento, podendo durar "dias ou meses", estes homens estavam impedi- O que Manuel Leitão trazia a público, no prólogo de sua obra, já se
dos de realizar a função antes de receberem a aprovação do médico do sabia de velho em Lisboa: sangrar era assunto de oficiais mecânicos que,
Hospital. Uma vez considerados aptos na arte de sangrar, o Hospital pas- se não eram de todo analfabetos, tinham uma educação elementar.
sava-lhe uma carta de sangrador, assinada pelo médico e pelo provedor, Viviam pelas tendas e sua arte era produto de um saber oral e empírico,
afiançando sua competência. Todavia, permaneciam subordinados ao resultado de uma relação entre ensaio e erro, que se passava de geração
mestre barbeiro e só poderiam executar incisões com sua ordem e acom- para geração. Mas, verdade seja dita, ao fim, ainda que sua prática esti-
panhamento, assim como continuavam a ser responsáveis pela barba e a vesse encoberta pelo manto da ignorância, obedecia ao mesmo arcabouço
tosquia nos pacientes61. teórico, como comprova a Prática de Barbeiros.
O regimento é impreciso quanto ao prazo necessário para que um A despeito de seu rigor metodológico, o livro do cirurgião nada
aprendiz dominasse a intrincada rede de vasos sanguíneos. Porém, pode- tinha de inovador. Aliás, seria um contra-senso se assim o fosse, visto
-se asseverar que a tarefa não era das mais fáceis, apesar das lições serem que a sangria fundamentava-se nos pressupostos teóricos da medicina
diárias. Pelo menos, para o padrão de exigência do mestre em artes e antiga. Neste sentido, é uma prova da longevidade da teoria dos humores
cirurgião Manuel Leitão, que em 1604 trouxe a público, pela primeira e da vitalidade dos princípios deontológicos da Escola Hipocrática e da
vez os quatro tratados que compõem sua Prática de Barbeiros62. Medicina Árabe, em Portugal. Foram os nomes de Hipócrates, de Avice-
Dirigida aos praticantes de sangria, a obra de Manuel Leitão tem na e de Galeno, "a luz e príncipe dos médicos" (fl. 10), que Manuel Lei-
declaradamente um propósito didático. O formato o denuncia. Foi tão evocou para embasar suas advertências e afirmar sem vacilar que
impresso como um livro de bolso, para que o leitor pudesse levá-lo a tor-
to e a direito. Mas não se pense que se trata de um folhetim de cordel. "entre os remédios mais proveitosos, de que a assi na Medicina como na
Seus setenta e três fólios revelam uma imensa preocupação metodológi- cirurgia, costumaõ os Médicos mais usar, he a sangria, porque cõforme a
ca. É mesmo da lavra de um letrado que viveu em um "século eminente- doutrina de todos, antes que o remédio bocal se aplica, primeiro procede
a evacuação da sangria. Pressuposto cristel, & assim a sangria he o
60 "Regimento dos Barbeiros do Hospital Real", apud, SANTOS, Costa. Ibidem, pp. 19-
melhor remédio & o primeiro que as enfermidades se pode aplicar"
-20; OLIVEIRA, Frei Nicolau. Ibidem, p. 610. (fl. IO)64.
61 "Regimento dos Barbeiros do Hospital Real, apud, SANTOS, Costa. Ibidem, pp. 19-20.
62 BNL (Rés). "LEITAM, Manuel. Pratica de Barbeiros em Quatro Tratados em que se
A máxima de Manuel Leitão é decerto uma defesa acérrima da fle-
trata de com se ha de sangrar, & as cousas necessárias para a sangria; & juntamente botomia e um atestado de que médicos e cirurgiões prescreviam-na com
se trata em que parte do corpo humano se haõ de lançar as ventosas, assi secas, como largueza, confiantes de sua eficácia. Tanto era em si um remédio, como
sarjadas; & em que parte do corpo humano se haõ de lançar as ventosas, assi secas,
como sarjadas; & em que parte compitaõ sanguixugas, & o modo de as applicarem;
com outras muitas curiosidades pertencentes para o tal officio. Em Lisboa: a custa de 63 FRANÇA, Eduardo D' Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Huci-
Francisco Villela, 1667". Para evitar a multiplicação de notas remetendo a esta mesma tec, 1997, pp. 40-42.
fonte, passo a citá-la entre parêntesis no corpo do texto. 64 Ênfases minhas.
270 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 271

uma etapa preliminar de qualquer tratamento. O que implica em dizer De todo modo, fosse de um ou de outro jeito, a sangria era, no dizer
que se curar de alguma doença, durante o Antigo Regime português, era do cirurgião, a mais eficaz de todas as terapias. Não fora por acaso que o
confiar a uma cristaleira a injeção do clister, em seguida deixar-se san- tal rapaz, já castigado de cortes e com uma inflamação na bolsa escrotal,
grar por um barbeiro, para só então ingerir as mezinhas de um boticário. fora tratado com novas incisões. Sim, porque aliviar era uma das seis
Isto, naturalmente, considerando situações ideais de atendimento, onde "intenções e causas" da flebotomia. Segundo Manuel Leitão, sangrava-se
um médico ou cirurgião emitia o diagnóstico e determinava o tempo de para evacuar o humor, para divertir, para atrair, para alterar, para preser-
duração conveniente para cada uma destas operações. Pois, segundo var e para aliviar (fl. 13). Em resumo, para expelir os humores danosos
Manuel Leitão, quando realizadas sem a observância das autoridades que atuavam sobre um ponto específico do corpo (evacuação), para enga-
médicas competentes, o que não era incomum, enfraqueciam e acelera- nar o fluxo sanguíneo e conduzi-lo para o lado oposto, evitando derrames
vam o envelhecimento do corpo (fl. 11). na parte afetada (diversão), para levar o humor a uma parte específica
Manuel Leitão foi de fato um advogado da sangria e de seus benefí- (atração), provocando o menstruo, por exemplo, para modificar a quali-
cios terapêuticos, mas outrossim da hierarquia entre os saberes de médi- dade do humor maligno predominante (alteração), para conservar os
cos, cirurgiões e barbeiros. Em sua avaliação, aos primeiros caberia a humores sãos e prevenir uma enfermidade (preservação) e, ainda, para
prescrição e aos últimos a execução. Logo, "barbeiros flebotomanos" amenizar dores ou baixar a temperatura do corpo, no caso de febres (ali-
(fl. 11) não deveriam sangrar sem ordem dos médicos. Caso contrário, viação).
corriam o risco de provocar estragos irremediáveis, como o de que fora Usada para prevenir e remediar, a flebotomia era empregada como
vítima um mancebo, que ao se deixar sangrar por um barbeiro duas vezes anestésico, anti-inflamatório, e até como abortivo. Com um amplo leque
no pé, porque tinha um fleimão nos testículos, quase perdeu a vida, pois de recomendações, que incluíam desde simples cefaléias a tumores e
os humores retidos no abcesso, atraídos pelo corte, espalharam-se pelo hemorragias, sua execução dependia, entretanto, de imensa precisão.
corpo, causando-lhe uma apnéia. Conta o cirurgião que, se ele não tivesse Manuel Leitão é austero quando aborda o assunto e o perfil que traça de
sido acudido com copiosas sangrias, teria morrido. um bom barbeiro não se concentra exclusivamente em sua perícia. Tinha
Como se pode observar, o autor de Prática de Barbeiros alinhava-se de ser "mancebo", para que não lhe tremessem as mãos e tivesse boa vis-
entre os partidários da sangria derivativa, isto é, da incisão realizada no ta. Deveria ser "experimentado", tanto na prática quanto na teoria, para
local mais próximo da inflamação, pois acreditava que o humor doentio que soubesse diferir uma veia de uma artéria, conhecendo quantas veias
poderia se espalhar pelo corpo, caso o corte fosse feito distante da região existiam no corpo humano e quais eram sangráveis. E, evidentemente,
afetada, como costumavam fazer os adeptos da sangria volumosa. A con- bem "aparelhado de lancetas". Desde que reunisse todos esses atributos,
siderar o número de edições de sua obra, que acabou se tornando a juventude, experiência e algum cabedal, poderia seguramente exercer o
"bíblia dos barbeiros", nos séculos XVII e XVIII, e inspirando outros ofício (fl. 19).
manuais famosos, como o de Leonardo de Pristo, publicado em 171965,
Os sintomas de fraqueza nas condições físicas de um sangrador
pode-se inferir que esta era a técnica mais utilizada entre os sangradores
decretou o fim de muitas carreiras, inclusive precocemente, como se verá
formados na escola do Hospital Real e dos barbeiros que agiam sob a
adiante. Mas era realmente o domínio do mapa do sistema venoso o
supervisão de um médico. Mas, levando em conta a tabela de preços que
maior desafio de qualquer aspirante a barbeiro. Entretanto, de acordo
o barbeiro Manuel dos Santos apresentaria ao Santo Ofício quase cem
com Manuel Leitão, o conhecimento da teoria seria inútil sem que se
anos à frente, onde só estavam previstas as sangrais de braço e de pé.
observasse "o modo e a maneira de sangrar" (fl. 19).
pode-se concluir que esta não era a prática de todos os barbeiros e que.
nos cárceres da Inquisição, o que predominava mesmo era a sangria Os procedimentos preliminares à picada, se acertados, eram a base
volumosa, e, considerando o teor deste conjunto de argumentos, a mais para o sucesso da incisão. Por isso, primeiro o barbeiro amarrava uma
arriscada. atadura bem feita acima do sangradouro, para que a veia, uma vez com-
primida, se levantasse e ele pudesse ter melhor tato e visão. Então, fric-
cionava-a com os dedos, dava-lhe um pique rápido, nunca muito profun-
65 Roque, Mário da Costa. O Exame de Sangradores de Manuel José da Fonseca. Porto: do, para que não atingisse um nervo, uma artéria ou um tendão e a picada
Tipografia Sequeira, 1969. Separata da Revista O Médico, n.°924; SANTOS, Costn fosse precisa e indolor. Depois de retirada a quantidade de sangue reco-
Ibidem, p. 6.
mendada, o barbeiro estancava a ferida com um chumaço de pano, envol-
272 Georgina Silva dos Santos Oflcio e Sangue 273

via o corte com uma atadura, amarrando-a por cima do braço ou o pé, diram à redação de sua Prática. Não era seu propósito explicar o movi-
conforme o caso, de modo que o curativo não desatasse logo. A opera- mento e/ou a inércia de órgãos como o coração e o fígado, porque "bast
ção, entretanto, exigia delicadeza. A fita nunca haveria de ser muito justa, [ava] saber o barbeiro porque se mov[ia] a artéria e a veia não" (fl. 26).
sob o risco da pressão levantar a artéria, a pulsação ser perdida e o bar- Visto que o mester de um barbeiro era apenas barbear e sangrar, era-
beiro picar a artéria em vez da veia, conduzindo a um fluxo de sangue -Ihe suficiente estar instruído de que a veia era um membro de simples
impossível de estancar e capaz de levar o paciente à morte. compleição, frio e seco, mas também quente e úmido porque conduzia
A demonstração da habilidade do barbeiro media-se, portanto, por um humor com estas propriedades, e que a artéria era um membro sim-
sua atenção na sequência destes procedimentos. Mas, pelo visto, os bar- ples, nervoso, mais duro do que a veia por ser composto de duas túnicas.
beiros desenvolverem jeitos e trejeitos para exibir sua competência, nal- Cabia-lhe saber apenas que a principal diferença entre as duas era a capa-
guns casos pondo em risco o êxito da sangria. Avesso à prática dos ofi- cidade pulsatória da artéria e a "qualidade espiritual" de seu sangue. Uma
ciais mecânicos, o cirurgião explicava aos aprendizes que seu objetivo vez compreendido que o sangue arterial tinha origem no coração, acom-
maior era realizar uma incisão bem feita, um pique seguro. Logo, sangrar panhava seus movimentos e era essencialmente benéfico, de cor verme-
"de pancada, & com ligeireza", para "florear com a lanceta" (fl. 22) e/ou Iho-claro, porque era incapaz de se contaminar com humores malignos,
usar o dorso da mão porque assim diziam que era mais "fermoso" estava justificada teoricamente a impropriedade de sua incisão e estavam
(fl. 20), ao invés de pressionar a veia com a palma da mão virada para postos os elementos que poderiam identificar um corte malfeito. Deste
baixo, que era um passo para o fracasso da flebotomia e poderia causar modo, se na incisão venosa o sangue jorrava aos poucos e era sempre
desastres irremediáveis. vermelho-escuro porque carregava humores doentios, os indícios de um
Os cuidados, antes, durante e após a sangria, naturalmente, conside- corte inadequado, excessivamente profundo, que vazasse uma artéria,
ravam outrossim o paciente e o próprio instrumento de trabalho. Sendo eram de pronto identificáveis pelo jato abrupto e a coloração do plasma.
"delgada e delicada", a lanceta era própria para tecidos macios. Segundo A "compleição" de veias e artérias e a qualidade dos humores que
Manuel Leitão, sangrar sobre calos tanto era incorreto como poderia constituíam uma e outra eram, em síntese, o saber teórico dos barbeiros
resultar na perda do material de trabalho. Observada a ressalva, a sangria de Lisboa, no século XVII. Isto, quando o tinham. Mas, considerando
deveria ser realizada sempre com o sujeito deitado, nunca de pé. Todos que se tratava de um ofício eminentemente prático e, em tese, sem qual-
os adornos, fossem jóias de pedra, de metal ou cilícios, deveriam ser reti- quer dever de emitir diagnósticos, as noções gerais de Manuel Leitão
rados, pois, de acordo com a "doutrina de Guido de Cauliaco" [sic], reti- mostravam-se de bom tamanho. Afinal, diante do paciente e com a lance-
nham o sangue. Depois de sangrado, era mister que o paciente guardasse ta em riste, o que importava era saber como proceder a sangria e como
total repouso. Contudo, não poderia dormir antes de uma hora transcorri- agir diante de um acidente vascular.
da, nem era-lhe possível deitar sobre a ferida ou ingerir alimentos indi- Em caso de uma artéria desatada, o barbeiro deveria acudir sem
gestos. Cabia-lhe fazer uma dieta "sutil e delgada", de acordo com a demora com pós restritivos, uma mistura de pó de sangue de dragão, mir-
prescrição médica. ra, incenso e clara d 'ovos para aplicar sobre o corte (fl. 38). Depois, com
O zelo com as etapas preliminares e posteriores da sangria, embora o auxílio de "huma pessoa de boa força", deveria comprimir a região de
indispensáveis para seu bom termo, requeriam, todavia, que o barbeiro modo a que diminuísse o fluxo sanguíneo. O próximo passo era preparar
soubesse bem distinguir uma veia de uma artéria. Ao abordar o assunto, um torniquete e lançar sobre o corte o preparado, cobrindo-o com um
Manuel Leitão é mais pragmático do que teórico e seus artifícios para se chumaço e ataduras de cinco, seis dedos de largura, dando uma volta
fazer entender são necessariamente sinestésicos. O tom de seu discurso sobre a outra. Uma vez bem atada a ferida, deveria derramar sobre ela
tanto permite compreender o sucesso que sua cartilha teve à época, como vinagre destemperado, para impedir que o sangue viesse acima. Feito o
revela sua fidelidade à hierarquia e à competência entre os ofícios ligados serviço, o certo era chamar de pronto o cirurgião, porque a segunda etapa
à área médica. No seu entender, um conhecimento anatómico mais por- da cura era "a amais difficultosa que [havia] em cirurgia, porque muitas
menorizado era inteiramente supérfluo para um barbeiro. Sua referência vezes senam podia tomar o sangue", e o paciente falecia (fl. 40).
ao francês Guy de Chauliac era mais um recurso retórico do que uma ten- É possível que, nestas situações extremas, o barbeiro se pusesse em
tativa de vulgarizar suas teses. Tanto que, prevenindo-se de leitores busca de um cirurgião para consertar o desastre. Entretanto, é difícil crer
excessivamente curiosos, o cirurgião escudou-se nos objetivos que presi- que, longe da vista dos médicos, estes homens não prosseguissem a san-
274 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 275

gria sem sua recomendação, pelo menos após a divulgação da obra de nosos (fl. 64), enfim, praticamente todo o elenco de achaques que pudes-
Manuel Leitão. O Segundo e o Terceiro Tratados da Prática dos Barbei- se acometer um ser humano.
ros relacionavam os tipos de incisão recomendáveis para alguns acha- A lida de um barbeiro, como se vê, estava visceralmente ligada ao
ques, como se fosse um almanaque. O elenco de prescrições era reduxi- atendimento médico de primeira linha, posto que a sangria era considera-
díssimo, caso se leve em conta que para alguns médicos árabes eram da a melhor alternativa para combater qualquer doença. Pode-se afirmar,
trinta e três as veias sangráveis, para outros vinte e seis, para os seguido- com segurança, que até o último quartel do século XVII, a arte de sangrar
res de Galeno apenas três (fl. 28) e para Manuel Leitão quarenta e duas: em Lisboa estava entregue a esses irmãos de São Jorge, fosse dentro ou
dezoito na cabeça, doze nos braços e doze nos pés (fl. 29). fora das instituições.
De acordo com suas recomendações, sangrava-se atrás das orelhas O título da obra de Manuel Leitão, impressa a primeira vez em 1604
(veias parotides) para combater catarros antigos e as chagas de cabeça e reeditada em 1667, ratifica o dito, assim como a lista de oficiais que
(fl. 42), na testa (veias temporaes) para curar oftalmias (fl. 45), no canto ocuparam a função de sangrador no Hospital de Todos os Santos. Entre
dos olhos (veias aspicientes) para sanar enfermidades na face e vermelhi- 1528 e 1665, passaram pela instituição oito oficiais da bandeira de São
dão na vista, e debaixo da língua (veias leonicas) para livrar o doente das Jorge66. Neste último ano, entretanto, em um franco sinal da projeção dos
dores de garganta (fl. 50). Todavia, importa reter que se sangrava tam- cirurgiões no estabelecimento, o barbeiro João Rodrigues, que iniciara
bém dentro e fora do nariz, nos braços, nos pés, nas mãos, nos lábios e no sua vida na Casa em 1656 e três anos depois acumulava também o lugar
pescoço. Apenas o "sovaco" (fl. 30) era poupado da lanceta ou da vento- de algebrista do Hospital, recebendo o salário de 15$000 réis, além das
sa de um barbeiro. propinas de carnerro, porco e legumes, era sumariamente dispensado do
A escolha do instrumento a ser usado pelo flebotomista obedecia, cargo e substituído por Luís Nunes, um cirurgião. E certo que João
necessariamente, aos objetivos da incisão. Por princípio, a lanceta, san- Rodrigues estava em desvio de função, pois no histórico do Hospital o
guessuga e assim como ventosa - um vaso de vidro ou osso com um tubo tratamento de fraturas era comumente entregue a um cirurgião. No entan-
estreito e de fundo largo - prestavam-se à evacuação dos humores. Mas to, João Rodrigues não foi destituído apenas dos provimentos de alge-
como atingiam a carne em níveis diferentes, as duas primeiras eram indi- brista, foi afastado outrossim da função de sangrador, cargo tradicional-
cadas para uma remoção mais profunda e a segunda para os humores que mente ocupado por um barbeiro.
estavam entre "o couro e a carne" (fl. 72). As causas da demissão de João Rodrigues, infelizmente, se desco-
As sanguessugas eram recomendáveis nos casos em que o doente já nhecem. E não cabe aqui especular sobre elas, sem qualquer base docu-
estava muito debilitado e não suportava mais os cortes (fl. 68). Para que mental. Entretanto, seu desligamento do quadro funcional deixa notória
os vermes cumprissem o papel de sugar o sangue, o certo era deixá-los de a ascensão dos cirurgiões no complexo hospitalar. Se nos dias do rei
molho em água limpa desde a véspera para que deitassem fora qualquer D.Manuel eram apenas dois, em 1620, contavam três, no bojo das
excrescência e ficassem com "o ventre vazio" (fl. 70). Na hora da aplica- Guerras da Restauração (1640-1668) passaram a ser em número de qua-
ção, friccionava-se a pele até provocar vermelhidão ou untava-se a região tro e não eram mais nomeados como cirurgiões das boubas ou sim-
com sangue de galinha ou de qualquer outro animal para que os bichos
cedessem ao seu apetite natural.
66 "Acento Que o Provedor Fez CO Joham Fernandez Sangardor em 15 de Outubro de
Se as sanguessugas eram indicadas apenas para sangrar "os beiços, 1528; Relado da Provizão Perque o Provedor e Irmão da Mesas Ouverão por Bem dar
nariz, gengivas" e as veias do ânus (fl. 69), as ventosas tinham um leque o Oficio de Samgrador do Hopital a António Nobre Barbeiro em 30 de Janeiro de
variado de prescrições. Como a sangria neste caso era feita por vácuo, 1569; Treslado de Hua Petição e Despacho da Meza Perque Foy Admetido António
Nobre a Off° de Samgrar neste Espital Per Falecimento de António Nobre em 29 de
aquecia-se a parte bojuda do vidro com o auxílio de uma estopa e depois Janeiro de 1609; Treslado de Hua Petição do Barbeiro Manuel Rodrigues em 16 de
depositava-se o orifício da parte oposta sobre a pele (fl. 70). Aplicando a Julho de 1620; Treslado de Carto do Barbeiro Fernão Gil de 12 de Agosto de 1621;
ventosa sobre o ventre, curava-se colites, colocando-a sobre as costas tra- Carta do Officio de Barbeiro de Manuel Moreira de 28 de Junho de 1629; Treslado
tava-se dores ciáticas e incorreções na coluna vertebral, dispondo-as nas Provimento do Officio de Barbeiro deste Hospital que A meza deu a João Rodrigues
para Aver de Cazar com Filha de Manuel Moreira Barbeiro do dito Hospital em 3 de
coxas, debaixo (ou sobre) os seios da mulher provocava-se o menstruo. O Outubro de 1656". Apud SANTOS, Costa. Sobre Barbeiros Sangradores do Hospital de
método servia ainda para sanar doenças pulmonares em estágio avança- Lisboa. Porto: Tip. da Enciclopédia Portuguesa, 1921, pp. 17-20. Separata dos Arqui-
do, mau hálito, chagas abertas, esquinências, mordidas de animas vene- vos de História da Medicina Portuguesa, pp. 10, 11, 14, 16, 31,34, respectivamente.
276 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 277

plesmente como cirurgiões. Eram agora providos como "cirurgiões dos O investimento do Hospital Real na qualificação de seu quadro fun-
males e dos feridos", ou simplesmente como "cirurgiões dos feridos", cional uniu de fato a prática à teoria, como comprovam as várias edições
denotando nitidamente a concentração de esforços do estabelecimento do tratado de cirurgia de António da Cruz, cirurgião d'el-rei e do Hospi-
para acudir estes pacientes67, à semelhança do que acontecera nos dias tal de Todos os Santos, durante quarenta anos. Em 1661, o mercador de
de D. Manuel, quando o contingente de portadores de doenças infecto- livros Matheus Rodrigues custeou a sexta reimpressão de sua Recompila-
-contagiosas impôs a criação de uma ala específica para os doentes de çam de Cirurgia69. A obra, acrescida das observações de António Gon-
bouba68. çalves, então cirurgião da Casa Real e do Hospital Real, era campeã no
O acréscimo no número de cirurgiões, a equiparação de sua remune- género. Embora as fontes sejam as mesmas, Guido, Hipócrates, Galeno e
ração ao salário dos médicos e a evidente especialização do atendimento demais expoentes da medicina árabe, não é um livro de bolso, como a
cirúrgico na unidade hospitalar, que continha agora um praticante de Prática de Barbeiros de Manuel Leitão. Reúne seus seis tratados longos
cirurgia que atendia ao banco e às enfermarias de feridos e outro para os e detalhados, que não só caracterizam cada doença, como contém a tera-
males em geral, evidenciam a importância assumida por esses oficiais, no pêutica indicada para cada enfermidade. Discorre sobre oftalmias, gonor-
âmbito da instituição no decorrer no século XVII. Em contrapartida, se réia, cancros, feridas de nervos, chagas virulentas, escorbuto, apostemas
no quinhentos cabia a um barbeiro responder às demandas de sangria do de toda a sorte, ensina os princípios da anatomia e define exatamente
Hospital, nas últimas quatro décadas do século XVII, a tarefa era confia- quantas eram as obras e o método da cirurgia.
da a um sangrador, fosse este um barbeiro ou não. Segundo António da Cruz, esta arte ocupava-se de
O crescimento do número de profissionais das artes liberais no ofí-
cialato do Hospital, em detrimento dos profissionais das artes mecânicas, "apartar o que esta junto, juntar o apartado [e] extirpar o supérfluo: o jun-
ampliou, evidentemente, o poder de seus saberes no interior da institui- to se aparta sangrando, çarjando, abrindo postemas; o apartado se ajunta
ção e, por conseguinte, o peso de sua palavra e/ou parecer sobre uma soltando as feridas, sarando as chagas, restaurando os ossos quebrados; o
matéria médica. Esta reorientação da política hospitalar, ao que tudo supérfluo se tira cortando, e extirpando as glândoas e a carne supérflua &
indica facilitada pelos dissabores dos conflitos bélicos da Restauração, tirando os ossos e as cousas estranhas"70.
repercutiu frontalmente na posição e deferência outrora imputadas aos
barbeiros. A descrição não deixa dúvidas de que as atividades de um cirurgião
O incidente envolvendo o barbeiro João Rodrigues e o cirurgião do Hospital Real excediam e muito as atividades de um sangrador. Antó-
Luís Nunes engendrava, na verdade, o confronto entre os saberes destes nio Cruz incluiu a lanceia entre os instrumentos necessários à arte da
dois ofícios no quadro hospitalar. Note-se que a própria instituição que cirurgia, juntamente com a navalha, a tesoura, as pinças, as agulhas, o
unira a barbearia à sangria no século XVI, quase duas centúrias à frente trépano e os ferros. Não causa espanto, portanto, que os profissionais
promovia o casamento entre a cirurgia e a sangria. Ao oferecer o apren- atuantes ou formados pelo Hospital Real tenham se posto a oferecer uma
dizado de uma e outra, no próprio estabelecimento, acabou facultando a arte majoritariamente executada por barbeiros.
um mesmo sujeito a possibilidade de exercer as duas técnicas. Esta tendência seria reforçada três décadas à frente, em 1694, quan-
do a direção do Hospital redefiniu os parâmetros deste ensino, fixando
em cinco anos completos o tempo necessário para a emissão da carta de
67 Observa-se, no "índice" de Aldrefo Luiz Lopes, que a divisão do atendimento cirúrgi- cirurgião e da carta de sangrador e ampliando significativamente o núme-
co no Hospital em duas grandes áreas, uma destinada "aos males" em geral, e outra ro de alunos por turma. As aulas de cirurgia passavam a ser ministradas
específica para os feridos ocorreu entre 1629 e 1654. De acordo com este rol, António
da Fonseca foi o primeiro "cirurgião dos males do Hospital", nomeado em 1629, e
António Ferreira, o primeiro "cirurgião dos males e feridos", provido para o cargo em
27 de Dezembro de 1654. António Ferreira era cirurgião da Câmara do rei D. Pedro II 69 A primeira edição desta obra data de 1601. A esta seguiram-se outras em 1605, 1630,
e da rainha D. Catharina, e também foi cirurgião dos cárceres do Santo Oficio. Cf. In 1649, 1661. 1688 e 1771. Cf. SANTOS, Sebastião da Costa. A escola de Cirurgia do
"índice annotado dos facultativos do Hospital de Todos os Santos, hoje denominado Hospital de Todos os Santos (1565-1775). Lisboa: Ed. Faculdade de Medicina de Lis-
Hospital de S. José, desde sua fundação". Ibidem, pp. 23 e 25 boa, 1925, p. 5. Usa-se aqui a edição de 1661. BNL. CRUZ, António da. Recompilaçam
de Cirurgia. Lisboa: Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1661.
68 "Titulo do Fizico do Esprital e da Maneira Q. Hade Ter em Servir seu Officio". Regi-
mento do Hospital de Todolos Santos de El Rey Nosso Senhor de Lisboa, p. 49. 70 Ibidem, fl. 2, ênfase minha.
278 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 279

com até trinta aprendizes e as aulas de sangria com até quarenta alunos71. na Rua dos Carapuceiros, na freguesia de São Julião, amargou maus
O redimensionamento do espaço concedido à formação de cirur- pedaços ao se candidatar à milícia do Santo Ofício, em 171374.
giões e sangradores foi, naturalmente, de encontro ao aprendizado ofere- Natural do lugar de Filhos, termo da vila de Torres Vedras, Manuel
cido pelos mestres do ofício de barbeiro nas tendas da cidade, já que uma casou-se em Lisboa com Josepha Maria, tida e havida entre seus vizinhos
instituição régia passou a patrocinar o ensino de sangrador. Até então, a como cristã-velha, "de limpo sangue, sem contradição alguma". As gen-
demanda do Hospital fora exclusivamente suprida pelos barbeiros da tes de São Julião, carapuçeiros, cirieiros e o mercador Francisco Ribeiro,
bandeira de São Jorge, que durante gerações e gerações pleiteavam e que tinha uma lojinha de mercador na Rua Nova, afirmaram ao comissá-
obtinham a função de sangrador do Hospital de Todos os Santos. Em rio do Tribunal que o casal vivia limpa e abastadamente. E mais, que o
meados do século XVII, estes mesmos homens, que de certo modo leva- cirurgião tinha "boa opinião" em seu mester, sabia ler e escrever e que
ram para dentro da instituição a sua arte, encontraram a concorrência de aparentemente tinha todos os requisitos para ser "encarregado de negó-
oficiais formados pela própria Casa. cios de importância e segredo como os do Santo Ofício". As diligência
A junção da teoria à prática clínica não só redefiniu o papel dos na freguesia de Nossa Senhora da Graça do lugar de Bugalhos, em Torres
cirurgiões no quadro hospitalar, como impôs aos barbeiros um desafio Vedras, entretanto, deitaram fora a fama que o cirurgião construíra em
difícil de superar, sobretudo porque, na sequência dos anos, o Hospital Lisboa. Nem tanto por conta de seus pais, moradores em Filhos, mas por
tornou-se a principal fonte de abastecimento de cirurgiões e sangradores conta de um entrevero entre o cirurgião e uma tal Maria Ribeira alguns
das outras instituições de assistência, inclusive, do próprio Tribunal da anos antes. No auge da discordância, motivada não se sabe porquê,
Inquisição. Manuel acusou a mulher de "rameira" e ela retrucou em alto e bom som
Entre 1677 e 1738, dois titulares do setor de cirurgia do hospital do para que todos ouvissem: "rameira sim, mas mulata não"!
Rossio foram admitidos consecutivamente como cirurgiões dos cárceres: Radicado em Lisboa, o cirurgião provavelmente já se havia esqueci-
António de Figueiredo e, posteriormente, Francisco da Sylva, que o subs- do da troca de ofensas com Maria Ribeira quando se candidatou a fami-
tituiu 72 . Quando Francisco foi nomeado como cirurgião do Hospital Real, liar. No entanto, todos os vizinhos mais velhos de Bugalhos, pessoas de
em 1665, António de Figueiredo já tinha vinte e um anos de serviço pres- setenta, setenta e dois, oitenta e até de cento e um anos, lembravam do
tado à Casa73. Atuara três anos como praticante de cirurgia, quatro anos ocorrido e afirmaram que a fama de sua bisavó materna não era vã. A
como cirurgião dos males e catorze anos como cirurgião dos feridos. Em falecida Domingas João fora mesmo parda.
poucas palavras, havia se formado dentro da instituição e ao falecer, em O processo de Manuel Duarte se arrastou por anos. Iniciado em
1717, tinha passado quarenta e quatro anos de sua vida profissional a ser- 1713, ainda andava pelas mãos de notários e comissários do Santo Ofício
viço do Hospital, alguns dos quais servindo outrossim ao Santo Ofício. em Fevereiro de 1723. Por fim, um dos comissários do Tribunal, Frei
Nem todos os cirurgiões tiveram a sorte de serem admitidos de pron- Rodrigo de Lencastro, concluiu que embora fosse bisneto de uma mulher
to como cirurgiões dos cárceres, tal e qual António e Francisco. Aliás, parda e trineto de uma mulher negra, sua admissão como familiar poderia
alguns não conseguiam sequer ser admitidos como familiares, ao contrá- ser considerada, porque seu "defeito" costumava "extinguir" a partir da
rio dos barbeiros de Lisboa, que pertenciam à irmandade de São Jorge e terceira geração e o habilitando não tinha "sinais externos de mulatisse".
passavam por uma averiguação prévia de seu passado próximo e remoto O Conselho Geral não chegou a emitir um parecer final. Manuel faleceu
antes de entrar na confraria. Manuel Mendes Duarte, cirurgião que vivia neste mesmo ano. Não se sabe qual a causa mortis. Mas, a recordar o
depoimento do boticário do Hospital Real, é de crer que seus últimos dez
anos e os de sua mulher tenham sido, no mínimo, angustiantes.
71 "Regimento do Assento Lançado no L° 4° dos Acórdãos a f. 213 que a Meza tomou em A história de Manuel Duarte permite que se reafirme, mais uma vez,
1." de Julho de 1694. Sobre os praticantes que aprendem no Hospital, a ceurgia, e asan- que o conceito de cristão-velho forjado pelo Santo Ofício ultrapassava as
grar". Apud SANTOS, Costa. Ibidem, p. 40. questões meramente morais e religiosas. Ancorava-se antes na exclusão
72 Francisco Sylva encaminhou sua solicitação para ocupar o cargo de 'cirurgião dos cár- das etnias antigas ou recém-integradas ao domínio do poder régio portu-
ceres em l." de Junho de 1719 e foi provido em 6 de Dezembro de 1719. ANTT, Fran- guês, e que se disseminou entre homens e mulheres simples, sem nome,
cisco Sylva, HSO, maço 43, n.° 893
73 "LOPES, Alfredo Luiz. índice annotado dos facultativos do Hospital de Todos os San-
tos, hoje denominado Hospital de S. José, desde sua fundação". Ibidem, pp. 27-29 74 ANTT, Manuel Mendes Duarte, HSO, maço 84, n." 1605.
280 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 281

nem brasão, integrando-se ao seu mecanismo de pensar e orientando suas confraternal se espelhassem em exemplos como este ou em casos seme-
ações. lhantes ao de Manuel Álvares Cardilho, um cirurgião que concorreu ao
Num tempo onde a contenção das emoções já se havia tornado uma cargo de "cirurgião dos cárceres" do Santo Ofício de Évora, nos idos de
prova de civilidade e seu oposto uma prova de mediocridade, a expressão 1665".
do ódio e o repertório de ofensas ancorava-se nas práticas e comporta- "Limpo de rasa reprovada pelo regimento do Santo Ofício", o oficial
mentos condenados pelo Santo Ofício, nos estereótipos de bom e belo era casado com uma mulher cujo pai fora enjeitado pelos genitores.
que sustentavam seu discurso excludente e que ardilosamente apartavam Embora não tivesse sido possível investigar os ancestrais paternos de sua
categorias marginalizadas como se estivessem em campos inteiramente cônjuge, o cirurgião foi provido na função. Isso, porque "os doutores q'
opostos e não fossem minorias. Ao fim, ainda que sua conduta social tratfvam] [da] exata matéria, diz[iam] q' se [havia] de presumir [a] os
escapasse ao ideal de virtude feminina, Maria Ribeira preferia ter a repu- expostos a pureza de sangue". Desta feita, por um ato de caridade, o tri-
tação de rameira em Bugalhos do que ter a fama de ser neta de uma bunal religioso considerou a Brites Nobre cristã-velha e admitiu seu
negra. marido em seu quadro de funcionários. Mas, decerto, a mulher do cirur-
Os critérios utilizados pelo Santo Ofício para aferição da pureza de gião não tinha qualquer traço que evidenciasse sua ascendência negra, se
sangue engendrava, porém, suas contradições. A rigor, o conceito de cris- assim o fosse seu processo possivelmente duraria os mesmos dez anos do
tão-velho se balizava na origem da parentela do sujeito. O tribunal pro- cirurgião nascido em Filhos.
cedia à averiguação de sua rede de parentesco até à terceira geração, pois Manuel Duarte não viveu o suficiente para que se pudesse conhecer
a sindicância fatalmente atingia aos antepassados mais remotos e poderia o desfecho de seu drama. Em contrapartida, os cirurgiões de Lisboa que
revelar ou não algum "defeito". Mas o exame do caso de Manuel Duarte conseguiram superar a prova de sangue do Santo Ofício formularam, exa-
demonstra que não era exatamente a origem do sujeito a única medida de tamente como os barbeiros, uma estratégia para se aproximar do tribunal.
todas as coisas. O grau de miscigenação poderia ou não redundar em tra- A trajetória de Manuel Gomes da Paz assevera o dito76. Em 1721,
ços físicos que atestassem o vínculo com um membro de "raça infecta". quando recebeu sua carta de familiar tinha treze anos como cirurgião
Ao fim, era o "sinal" de "mulatisse" o que colocava em causa a inclusão aprovado. Vinte anos depois, em 1741, já atuava como "cyrurgiaõ do
ou a exclusão do cirurgião na comunidade de cristãos-velhos. Uma vez Hospital dos Remédios" e somava três anos como sangrador dos Cárceres
imperceptível, o habilitando poderia ser assimilado pela instituição para do Santo Ofício. Ciente de que António Soares, então cirurgião dos cárce-
compor os seus quadros. res, tinha "impedimentos" para o exercício da função, encaminhou ao Tri-
bunal uma petição para substituí-lo. Argumentando que tinha "notória
Percebe-se, portanto, que a ideia de "raça infecta" forjava-se tam-
bém às custas da aparência do sujeito; sua cor e seus traços fisionómicos, acceytação nesta corte, e nella [tinha] visto, e ffeito operaçoens das melho-
construindo evidentemente um preconceito de marca e não apenas de res" e era "cyrurgiaõ da Caza do Ilm° e Exm° Marg. Mordomo Mor", o
origem. O que implica em dizer que o perfil do oficialato inquisitorial e, postulante teve sua solicitação deferida. No mesmo ano, o Santo Ofício
por extensão, o das demais instituições régias, haveria de ser construído deu-lhe a provisão para que atuasse nas ausências de António Soares.
tomando como modelo o fenótipo do colonizador. Aliás, o mesmo que Assim como desconhecia muitas vezes quantos eram os presos que
servia de modelo à imagem de São Jorge. Um santo que segundo as nar- se acumulavam nas celas do Limoeiro à espera de sua sentença ou quan-
tos já haviam cumprido suas penas de degredo nos cubículos infectos
rativas hagiográficas tinha origem síria, mas que desfilava nas procissões
onde estavam confinados, o Conselho Geral pouco sabia da frequência e
da cidade como se fosse o comandante de um exército europeu. Um santo
"impedimentos" dos cirurgiões que tratavam de seus encarcerados.
cuja imagética, presente no frontispício do Compromisso de sua irman-
Manuel Gomes da Paz não teve receios de pô-lo a par das faltas de seu
dade e no arco dos familiares do Santo Ofício, em nada lhe aproximava
superior, mostrando-se assíduo, bem dotado e afamado, para que pudesse
de um soldado de feições orientais.
substituí-lo. Ademais, num tempo onde denúncias e insinuações maledi-
Cabe perguntar se não seria em casos semelhantes ao de Manuel centes estavam na ordem do dia e familiares como ele eram encarregados
Duarte que os candidatos à irmandade de São Jorge eram admitidos
como confrades. Seria imprudente afirmar categoricamente. Mas tudo
7* ANTT. Manuel Álvares Cardilho, HSO, maço 16, n.° 434.
leva a crer que as tais situações em que os irmãos se consultavam com
pessoa douta para admitir ou rechaçar os novos postulantes à associação 76 ANTT. Inquisição de Lisboa, NT 2131, ano de 1744.
282 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 283

de apreender suas vítimas, ele provavelmente não era o primeiro e certa- Rua dos Odreiros na freguesia de São Nicolau 78 e cirurgião do partido da
mente não seria o último a usar deste expediente. Misericórdia, padecia de um contínuo defluxo nos olhos, que o privava
António Francisco Claro faria o mesmo, anos à frente. Como de cos- de exercitar a ocupação de cirurgia e sangria. Realmente, estava aposen-
tume, o oficial iniciou suas relações com o Santo Ofício solicitando o tado pela Santa Casa. Todavia, os amigos que frequentavam sua casa e
ingresso em sua legião de familiares. Nascido e crescido na freguesia de testemunharam a seu favor no inquérito disseram "que não era velho, ne
São Julião e morador na paróquia de Santa Justa, António Francisco Cla- tinha nevoas nos olhos, só sim contínuos defluxos", mas que apresentava
ro se apresentou como cirurgião ao Tribunal e recebeu sua carta de fami- melhoras e tornaria a exercer sua arte79.
liar em 7 de Agosto de 174777. Quatro anos transcorridos, requereu ao O relatório do funcionário enviado pelo Tribunal para espreitar con-
Tribunal sua admissão como "sangrador supranumerário dos cárceres". firmara: João Alves Chaves apresentava alguma inflamação na retina,
Alegando que era "benemérito", "apto e capaz" para a função e que o que muito provavelmente lhe turvava a visão. Mas não estava cego.
cirurgião provido para o cargo se achava impedido, por conta de "uma Tinha na altura quarenta e dois anos e embora seu problema de saúde
queixa crónica sem esperanças de se restituir com desembaraço", o fami- fosse um argumento tecnicamente plausível, já que exercia a função de
liar encaminhou sua solicitação, destacando que não tinha o intuito de sangrador, o Tribunal não o dispensou. Como de praxe, não ignorou o
prejudicar o oficial, mas sublinhando que o ordenado que lhe era pago depoimento dos vizinhos. Mas António Francisco Claro finalmente triun-
não tinha na ocasião qualquer serventia. fou. Foi nomeado como sangrador extranumerário dos cárceres, em 28 de
Apesar da perícia da argumentação, o Santo Ofício escusou "por Janeiro de 1753, e sua atuação ficou condicionada à situação de impossi-
hora" o pedido, desconsiderando o relato, ou melhor, a denúncia. Embora bilidade de seu titular.
declarasse que estava longe de seus objetivos comprometer o outro cirur- António Francisco Claro dizia-se um cirurgião e sangrador aprova-
gião, António Francisco Claro estava determinado a conquistar o posto do. Contudo, ao contrário dos demais cirurgiões, seu círculo de relações
de "sangrador dos cárceres". Assim, em Dezembro do ano seguinte, não incluía nenhum outro homem do mesmo mester ou freguês que asse-
encaminhou uma nova petição. Desta vez pormenorizada, nomeando o gurasse sua competência. Seu pai era um homem de ofício errante, um
oficial e atualizando, ou agravando, seu estado de saúde. algibebe, fabricava ou vendia tecidos rudes, e nascera em Alcobaça,
Segundo o suplicante, "no prezente tempo", João Alves Chaves - enquanto sua mãe era de São Miguel de Alvarans. Era, portanto, o pri-
assim chamava-se o infeliz - se encontrava "sem nenhuma esperança de meiro lisboeta de seu núcleo familiar. A considerar o perfil de suas tes-
milhoras" porque tinha uma pertinente queixa nos olhos e já estava, temunhas, um sineiro e dois esteireiros, não tinha a princípio qualquer
inclusive, "apozentado de huma das visitas da Misericórdia de que se vínculo com os homens de ferro e fogo da cidade. Mas Francisco de Oli-
achava provido". Clamando ao Santo Ofício que considerasse o estado veira, que o conhecia desde seu nascimento, portanto, havia vinte e qua-
físico e a incapacidade do dito cirurgião, António Francisco Claro requi- tro anos, identificou-o como um barbeiro. Considerando o depoimento de
sitou novamente sua admissão como "sangrador supranumerário". outros vizinhos de Lisboa, nesta altura, é difícil crer que o esteireiro de
Como o anterior, este pedido também foi indeferido. Mas o familiar Sua Majestade não soubesse distinguir os ofícios de cirurgião e barbeiro.
era incansável. Não tinha o currículo de Manuel Gomes da Paz, cuja Ao que tudo indica, António Francisco Claro usara da mesma estratégia
clientela servia em ofícios nobres. Suas únicas armas eram sua persistên- de João Antunes e Manuel do Santos, ambos barbeiros e que tentaram se
cia e os supostos achaques de João Alves Chaves. Por isso, em 1753, fazer passar por cirurgiões sangradores poucos anos antes.
remeteu ao Tribunal uma terceira petição, arrolando praticamente as Como se pode constatar, a combinação cirurgião e sangrador, inicia-
mesmas alegações, acrescendo apenas que a moléstia de João Alves Cha- da no Hospital Real em meados do século XVII, chegou aos cárceres do
ves não lhe permitia sair de casa havia dois anos. Vencido pelo cansaço, Santo Ofício no espaço de cinquenta anos, inibindo a participação dos
o Conselho Geral ordenou que se averiguasse o ocorrido. O informante barbeiros nos cárceres da Inquisição, retirando-lhes a precedência que
confirmou o relato de António Francisco Claro. De fato, o cirurgião que mantiveram ao longo de dois séculos nesta frente de trabalho e que justi-
fora batizado na freguesia de São Julião, filho de um alfaiate, morador na ficara a participação da irmandade de São Jorge na cerimónia dos autos-

78 ANTT, João Alves Chaves, HSO, maço 82, n.° 1467.


77 ANTT, António Francisco Claro, HSO, maço 209, n.° 3119. 79 ANTT, Conselho Geral do Santo Ofício, caixa 32, maço 58.
284 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 285

-de-fé. O reflexo da opressão que uma categoria passou a exercer sobre a mento dispensado aos sentenciados asseveram que o intuito era antes
outra fez-se sentir nas ruas, fora das paredes do Hospital e longe das demonstrar a eficácia do atendimento do que assegurar sua eficiência. O
celas escuras da cadeia do Limoeiro. Os cirurgiões não só haviam passa- regimento da Inquisição de 1640 previa que médicos e cirurgiões deve-
do a atender a domicílio, catalisando uma fração dos fregueses, como riam acudir com pontualidade todas as vezes em que fossem chamados
passaram a disputar, com franca vantagem, a função de sangrador dos na cadeia80. Nem tanto para impedir que o preso fosse assistido sem
cárceres. demora, mas para que o alcaide pudesse acompanhar as visitas e assegu-
Observando por este prisma, lê-se com pouca ou nenhuma estranhe- rar que as conversas não ultrapassavam os limites da consulta. Porém,
za a expressão "cirurgião sangrador" que João Antunes utilizou para se tanto cirurgiões quanto médicos eram expressamente instruídos para
candidatar a familiar do Santo Ofício. Compreende-se, sem muita difi- ouvir os sentenciados com "paciência" e tratá-los com "caridade", de
culdade, porque Manuel dos Santos, um barbeiro consagrado em seu modo que os próprios presos vissem o cuidado que o Santo Ofício tinha
mester, com uma clientela cativa em sua tenda nas Portas de Santo Antão com sua saúde. Deste modo, deveriam mandar-lhes preparar as mezinhas
e posteriormente provido como barbeiro dos cárceres da Inquisição, e remédios prescritos para aplicá-las a tempo e caso algum detento mani-
tenha se identificado com uma categoria profissional anfíbia, produzida festasse alguma doença grave era mister informar de pronto à mesa do
pelo discurso médico institucional, como a de "cirurgião sangrador". tribunal, bem como informá-la a respeito da evolução da enfermidade,
Note-se que, tal como os barbeiros no passado, os cirurgiões também pois se o diagnóstico indicasse a iminência da morte, o confessor deveria
ligavam-se ao Santo Ofício, de início como familiares, e solicitavam na ser acionado o quanto antes.
primeira oportunidade o cargo de sangrador. Mas seu horizonte era ine- O destaque atribuído ao desvelo que a equipe médica dos cárceres
gavelmente mais largo. Tão logo fosse possível, requisitavam a função de deveria manter com o sentenciado não deve ser entendido, entretanto,
cirurgião da Inquisição, porque era este o posto que almejavam de fato. como uma prova real de altruísmo do Santo Ofício ou como um convite
O número crescente de cirurgiões que se candidatavam ao cargo de dirigido ao seu oficialato, para que fizessem do atendimento aos presos
sangrador dos cárceres comprometeu, certamente, o provimento de mui- um exercício espiritual. A Inquisição produzia seus próprios doentes.
tos barbeiros, mas pode-se garantir que isto não minimizou o sofrimento Submetia os acusados por crimes religiosos a uma enorme pressão psico-
dos que viviam entre as grades da cadeia do Limoeiro e nos cárceres da lógica e a violentas penas corporais. Os médicos e cirurgiões, que rece-
Penitência, nem implicou em uma mudança drástica na qualidade do biam um ordenado fixo para curar os achaques dos condenados e acres-
atendimento médico prestado aos presos da Inquisição. A sangria conti- ciam aos seus proventos oitenta réis em cada consulta prestada a um
nuou sendo o grande remédio para todos os males e, por ironia, o princi- preso rico cujos bens não haviam sido confiscados pelo tribunal, eram os
pal comprovante para que o sentenciado atestasse sua insuficiência física mesmos homens que presenciavam obrigatoriamente o tormento aplicado
e alcançasse a comutação de sua pena, sensibilizando as autoridades aos réus, para atestar se poderiam ou não suportá-lo. Leve-se em conta,
inquisitoriais para suas dores e achaques. ainda, que as tais receitas que pressupunham a ingestão de algum medi-
camento eram praticamente inexistentes. Na prática, o tratamento resu-
mia-se à sangria executada pelo barbeiro, que ao fim e ao cabo também
tratava de outras mazelas, embora fosse contratado pelo Santo Ofício
3. As dores do cárcere
apenas para sangrar e barbear.
O resultado desta prestação de serviço, que transgredia os limites do
As obrigações de médicos, cirurgiões e barbeiros do Santo Ofício
saber de um único ofício, quase nunca tinha um final feliz. Em Novem-
não fazem do serviço de assistência aos presos da Inquisição um baluarte
bro de 1643, Margarida Vaz sofreu na carne a imperícia do barbeiro
da caridade cristã ocidental, sequer são uma cópia mal feita das regras do
Valentim Ferreira, que lhe extraiu um dos dentes e deixou as raízes reti-
Hospital Real de Lisboa. São, efetivamente, uma prova da necessidade do
das em seu maxilar. Como a presa se contorcia em dores após o atendi-
Tribunal religioso de sublinhar sua preocupação em prestar atendimento
aos encarcerados doentes, projetando sua imagem pública como uma ins-
80 BNL. Regimento do Santo Officio da Inquisição dos Reynos de Portugal. Ordenado por
tituição régia fiel às obras de misericórdia e, por conseguinte, obediente Mandado do Ilm.° & Rm.° Snor Bispo Dom Francisco de Castro, Inquisidor Geral do
aos preceitos da Igreja. No entanto, as suspeições e as contradições que Conselho d' Estado de S. Magestade. Em Lisboa nos Estaus por Manuel da Sylva.
atravessam as normas do serviço médico nos cárceres e o tipo de trata- 1640. Título XX, parágrafos l, 2, 3 e 4.
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mento, o barbeiro foi chamado novamente aos cárceres para concluir a Mestre Cosmo estava entre aqueles irmãos de São Jorge que abona-
extração. Valentim, no entanto, foi incapaz de corrigir o mal feito, ale- vam a fama de ignorante que o mestre em artes e cirurgião Manuel Leitão
gando que não tinha os "ferros" necessários. Diante do imponderável, o imputou aos oficiais de sangrar e barbear, em sua Prática de Barbeiros.
alcaide dos cárceres apelou para a ajuda de um saca-molas de Lisboa Embora não fosse o titular do cargo de sangrador do Santo Ofício, domi-
para realizar o trabalho. Margarida foi conduzida pelo guarda José da nava muito bem a arte de sangrar. Tanto assim que conquistou depressa a
Silva até à casa do próprio alcaide e lá o profissional, um estrangeiro, confiança dos presos. Mesmo depois do susto pregado por mestre Valen-
resolveu o problema81. tim, o preso Francisco Leitão deixou-se sangrar por ele, quando somava
O episódio foi registrado no livro pelo alcaide. Antes para notificar apenas quatro meses de Casa. É possível que o barbeiro da Rua das Flo-
que Margarida fora atendida longe da cadeia e que retornara a ela, do que res tenha entrado nos cárceres para conter animosidade que seu irmão de
para questionar a habilidade do barbeiro, pois, apesar de ter sido o pivô ofício despertava nos presos. Após os brados do encarcerado a quem
do transtorno, Valentim continuou cuidando dos encarcerados. Mas se os atendera mal, Valentim parece ter sido suspenso. E se assim não foi, é
inquisidores de Lisboa pouco se importaram com as peripécias de seu muito provável que se tenha tornado alvo de total rejeição entre os encar-
barbeiro e sangrador, os presos, por sua vez, tomaram um verdadeiro cerados, pois somente em vinte e nove de Abril de 1641, por ordens
pavor deste irmão de São Jorge. expressas da mesa inquisitorial, o barbeiro retomou suas atividades nos
Cinco anos após o incidente que vitimara Margarida, durante a visita cárceres. Entretanto, desde então, passou a dividir a meias as sangrias
que fazia aos presos, o médico e cirurgião-mor Francisco Borges receitou com Manuel Cosmo, que passou a funcionário do quadro, ainda que sem
novas sangrias a Francisco Leitão. O sentenciado se dispôs a submeter-se provisão84.
às sessões, mas recusou fazê-las com mestre Valentim, afirmando que de As faces dos dois irmãos de São Jorge tanto ratificam como recha-
outra vez em que andara adoentado fora sangrado pelo barbeiro e que çam a imagem forjada pelos cirurgiões setecentistas, de que o aprendiza-
este fizera muito mal as incisões. Altercando que os inquisidores o do oferecido pelos mestres de ofício nas tendas de Lisboa era insuficien-
haviam assegurado que na próxima ocasião mandariam outro barbeiro, o te, É evidente que a categoria não tinha um perfil homogéneo - se é que
preso declarou que só se entregaria à lanceta de outro oficial, pois prefe- alguma o tinha -, mas o controle efetivo de sua prática era por sua vez
ria "morrer sem ser sangrado do que morrer obrigado"82. O clamor de muito frouxo. Note-se que apesar dos relatos escabrosos sobre a qualida-
Francisco não foi ignorado pelo Tribunal. A bem da verdade, a queixa foi de do serviço de mestre Valentim, o Santo Ofício conservou-o em seus
direto aos ouvidos do inquisidor Diogo de Souza, que consentiu que ele quadros.
fosse tratado por outro barbeiro que assistia aos cárceres. Esta orientação em nada feria os ideais que presidiam à concepção e
A indignação de Francisco, de fato, tinha seus fundamentos. Embora inserção administrativas da Inquisição. Os oficiais de seu corpo médico,
se desconheça as circunstâncias exatas que motivaram suas afirmações, ainda que compostos por notáveis da Corte e do Hospital de Todos os
não há dúvidas de que teve sua vida em perigo, exatamente como Marga- Santos, tinham como principal pré-requisito de admissão a pureza de
rida havia alguns anos. Ao que tudo indica, Valentim estava entre os tais sangue, valor capaz de superar a mediocridade de qualquer profissional.
barbeiros que desconheciam a diferença entre uma veia e uma artéria e Afinal, se era este o ponto de partida para o ingresso no quadro institu-
que gostavam de "florear com a lanceta". Além de tudo, era afoito, por- cional, como justificar perante o oficial sua exclusão por critérios mera-
que, mesmo sem os instrumentos adequados, dispôs-se a faturar alguns mente técnicos? Ademais, o desligamento definitivo de qualquer barbeiro
réis macerando a arcada dentária de sua paciente. Entretanto, para tran- dos cárceres assumiria uma conotação adversa à estampa pública do tri-
quilidade geral dos detidos, não era lá tão assíduo. Por isso, desde Julho bunal de Lisboa. Estes homens escoltavam os presos até o altar da abju-
de 1639, passou a ser substituído em casos de impedimento por Manuel ração e exibiam às gentes da cidade que seus sentenciados eram alvo das
Cosmo83. Como se sabe, um barbeiro experiente, com mais de vinte anos obras da misericórdia inquisitorial. A desqualificação pública de qualquer
de ofício e que tinha uma tenda na Rua das Flores. um de seus membros mancharia de pronto a efígie do tribunal.
A vigilância que a Inquisição mantinha sobre a produção e manu-
tenção de sua auto-imagem ia, portanto, muito além da etiqueta a ser
8' ANTT, Inquisição de Lisboa, livro 2, fl. 14.
82 ibidem, fl. 32.
83 Ibidem, fl. 29. Ibidem, fl. 36.
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observada nas aparições públicas dos inquisidores, como deixa entender do cristianismo. Era mister que simulasse que usava de misericórdia jun-
Francisco Bethencourt, na ênfase que atribui a este aspecto85. Incidia to aos condenados, fosse reintegrando à comunidade cristã aqueles que
outrossim sobre o cuidado com a reputação do serviço de assistência abjuravam das crenças e atos estranhos ao repertório de práticas e dog-
prestado por seu oficialato. mas do catolicismo, fosse mostrando-se sensível à enfermidade dos con-
Em 1699, o cirurgião-mor Manuel de Pina Coutinho viu-se incapaz denados. Para demonstrar, no superlativo, que as penas impostas aos réus
de atender sozinho os presos do cárcere e requisitou ao alcaide que lhe não eram uma repressão inconsequente dos comportamentos desviados
solicitasse um companheiro para dividir a lida, porque apresentava sinais de seu ideário, era necessário projetar uma estampa caridosa. Capaz,
de "pouca saúde". A Mesa do tribunal acorreu de imediato ao pedido. Em inclusive, de respaldar as cenas de terror que orquestrava nos autos-de-fé.
um rol de cinco nomes, João Curvo Cemedo foi escolhido por "sua idade, A presença de médicos renomados cuidando dos presos rendia divi-
experiência, bom procedimento; muitos anos de antiguidade na habilita- dendos ao Santo Ofício, mas valia de quase nada para os próprios senten-
ção com que excedfia] aos mais; e aceitação com que [era] admitido a ciados. Primeiro, porque a recuperação dos enfermos realizava-se, muitas
curar ha maior parte das caras mais illustres da corte"86. vezes, fora dos cárceres, nos hospitais de Lisboa ou às custas da família
João Curvo já havia assistido aos enfermos do cárcere, a pedido do do sentenciado. Segundo, porque o estado lastimável dos que tinham sido
tribunal, na ausência dos médicos da Casa. Segundo consta, com "cuida- condenados às galés e aos açoites invalidava de saída qualquer possibili-
do e fidelidade". Era um médico afamado. Mas não se pode dizer que um dade de recuperação e, sobretudo, porque a principal terapêutica aplicada
dos outros concorrentes, João Bernardes de Moraes, médico da Casa era a sangria, executada pelo barbeiro, que tanto poderia ministrá-la a
Real, não o fosse. Entretanto, como a habilitação deste último merecia contento, como causar acidentes graves, como os que vitimaram Marga-
"reparos", porque as diligências de seu processo para familiar engendra- rida Vaz e Francisco Leitão.
ram algumas dúvidas, o profissional foi preterido. Na verdade, João Cur- Deste modo, o ânimo do Santo Ofício para acudir aos enfermos do
vo levou uma franca vantagem sobre os demais, porque manifestara sua cárcere era antes para "evitar as queixas de dizerem os christãos novos,
adesão ao Santo Ofício havia mais tempo. Fizera seu juramento de obe- que nas doenças dos presos se lhes falta[va] com os milhores médicos e
diência ao Tribunal em vinte e três de Setembro de 1672. Era o familiar de maior reputação"88, do que propriamente um ato de entrega total à
mais antigo da lista. caridade, como nos primeiros tempos do movimento franciscano, em que
A ressalva do Tribunal à biografia do médico João Bernardes é mais se fazia de cada pobre, doente ou desvalido um Cristo. A suposta assis-
uma prova de que os critérios de admissão para os funcionários do corpo tência médica que o Santo Ofício prestava aos seus sentenciados era um
médico da Inquisição ancoravam-se, primeiramente, na pureza de sangue, poderoso instrumento para positivar sua inserção social, realçar seu cará-
fossem oficiais das artes liberais ou das artes mecânicas. Porém, o Santo ter religioso e seu poder impositivo. Ao tornar crível que oferecia aos
Ofício se esforçava também para constituir um quadro médico de exce- condenados enfermos o melhor atendimento existente na cidade, o tribu-
lência. Tinha por princípio "escolher [...] os médicos de maior experiên- nal mascarava a responsabilidade sobre o doente que ele mesmo produ-
cia, idade e aceitação pêra cujo efeito provia regularmente os partidos da zia, transferindo para o próprio preso a culpsj.de sua sentença e a autoria
Inquisição no físico mor ou médicos da camera de sua magestade quando de sua debilidade física, moral e psicológica. "
neles não havia impedimento"87. As inúmeras petições dirigidas pelos presos, requerendo ao tribunal
A preocupação do Santo Ofício com a titulação e qualidade dos a comutação de penas ou a licença para curar-se, são, antes de tudo, uma
médicos e, portanto, do serviço assistencial prestado aos presos, visava, radiografia da ambiguidade do discurso do Santo Ofício. Nestas fontes
na verdade, dissimular os rumores da imensa crueldade dispensada aos em que os presos registraram as atrocidades a que estavam submetidos, a
réus. Cooptar adesões que ampliassem seu exército de familiares e asse- justiça inquisitorial é mesmo o algoz, e sua misericórdia, assim como a
gurassem que sua ação persecutória era modelada realmente pela defesa fuga, os únicos meios de garantir a sobreviva. Particularmente, quando se
da fé católica, implicava também em fazer crer que obedecia ao preceitos trata dos que receberam a condenação às galés, uma sentença antiga nos
códigos legislativos das sociedades mediterrânicas, a princípio aplicada
85 BETHENCOURT, Francisco. Ibidem, pp. 94-103. em substituição à pena capital, e que durante a Época Moderna obrigou
86 ANTT, Inquisição de Lisboa, livro 154, fl. 50. Ênfases minhas.

87 Ibidem. 88 Ibidem.
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os sentenciados da Inquisição Portuguesa ao remo forçado e/ou ao traba- às "chagas de Cristo Senhor" e à "Sua Mãe Santíssima, a puríssima Con-
lho braçal nas obras públicas89. ceição". A Inquisição respondeu-lhe com o silêncio. O alentejano era um
A condenação às galés era a única sentença que incidia exclusiva- condenado útil. Servia aos presos doentes como um bom samaritano.
mente sobre o género masculino. Deixava desarrazoados moços e velhos, Perdoar-lhe a sentença era subtrair deste contingente de homens entre-
acusados de bigamia, desacatos ao Santíssimo Sacramento, judaísmo, gues a um trabalho compulsório seu melhor exemplo de resignação.
proposições heréticas, pactos com o demónio, e igualava, num mesmo Além do mais, os queixumes de João Galego falavam vagamente de
patamar, rotos, endinheirados, laicos e religiosos. Suportá-la requeria alguma moléstia e dos ferros que lhe tolhiam os movimentos. Na verda-
uma resistência física que a grande maioria dos sentenciados conseguia de, sentia-se aviltado e humilhado. E se o Santo Ofício se compadecia de
manter por pouco tempo. algum sentenciado, não era definitivamente por angústias e crises de bai-
João Gonçalves Galego sequer esperou que se cumprisse metade de xo moral. Se o tribunal atendera aos clamores de uma dezena de conde-
sua pena para solicitar sua redução. Natural de Redondo e morador em nados fora por alguma doença física gravíssima, que de algum modo
Eivas, o alentejano saiu no auto-de-fé de Lisboa, em 9 de Setembro de ameaçava a execução dos trabalhos na Ribeira. Mas, ainda assim, a
1698, pela "culpa de cazar com uma mulher cazada" e foi condenado a comutação ou perdão de qualquer pena implicava na abertura de um pro-
quatro anos "de degredo para as gales"90. Após um ano e meio de dester- cesso, que incluía vários pareceristas, mesmo que os sentenciados afir-
ro, enviou ao Tribunal seu pedido para que lhe comutasse a sentença, massem estar nos limites de suas forças.
"porque passava "por muitas moléstias [e] ser [o] degredo taõ penoso e Em 6 de Fevereiro de 1718, os condenados das galés que andavam
de tanta afronta" que já não podia suportá-lo. Alegando que, dos dezasse- pela enfermaria encaminharam uma petição conjunta à mesa da Inquisi-
te condenados que estavam no dito auto, três haviam fugido e dez outros ção de Lisboa, alegando que estavam à beira da morte. Uns estavam tísi-
haviam obtido o perdão, João Galego suplicou ao Santo Ofício que lhe cos e "éticos", alguns padeciam "de dor de pedra" e os demais de outras
atenuasse a pena e lhe tirasse "os ferros em q' esta[va] padecendo", pois, misérias sobrevindas pela perturbação dos humores. Faltavam-lhes "os
em demonstração de submissão e caridade, vinha auxiliando no atendi- remédios necessários para os ditos achaques" e as galés eram um lugar
mento médico prestado aos demais sentenciados na enfermaria das galés. "inconvenientíssimo" para a recuperação. Como estavam todos abalados
O cabo de Quadra e o próprio cirurgião que fazia os "curativos" na tal do corpo, "em tanto desamparo", rogavam aos "pios sensorez pelas
enfermaria confirmaram que João Galego era um homem "sogeito a todo entranhas de Jesus Christo e sua Santíssima Paixão e chagas" que lhes
o serviço na Ribeira das Naus", que tinha "bom procedimento" e tratava concedessem licença para se curarem ou lhes comutassem o tempo de
aos doentes "ferrados das gales" com muito "cuidado e diligência" e era permanência nas galés, para que não acabassem suas vidas tão misera-
merecedor de toda a mercê. velmente91.
De nada valeram os depoimentos dos oficiais das galés. Foi inútil O Santo Ofício ouviu os suplicantes. Em 15 de Setembro do corren-
João Galego se prostrar humildemente aos pés da "Santa Mesa" e apelar te ano, ou seja, sete meses depois, enviou o médico dos cárceres às galés
para examinar os sentenciados. Manuel da Costa Pereira atestou com
89 Geraldo Pieroni afirma que o desaparecimento das galés em virtude do progresso da seus próprios olhos' que era a mais pura verdade o que diziam. Com base
navegação à vela provocou a adaptação desta pena ao trabalho forçado nas obras
públicas. Mas Nogueira de Brito, estudioso das técnicas de navegação, afirma que o no parecer médico, passados oito dias, os procuradores dos presos, João
termo galés - embarcações à vela, com um número de quinze a trinta remadores - Álvares e Manuel da Cunha Pinheiro relataram o estado de saúde dos
remete, desde os tempos medievais, a navios diferentes: galeaças, galeões e galeotas. dezoito condenados e atestaram que sete homens estavam incapacitados
As galeotas, que se serviam de doze ou vinte remeiros, foram amplamente utilizadas de cumprir a sentença. Entretanto, somente Bento de Araújo Souto
nos séculos XVI e XVII pelos navegadores portugueses. Embora não esteja no hori-
zonte desta tese traçar o perfil dos homens das galés, é mister destacar que estes sen- Mayor obteve o beneplácito do tribunal.
tenciados do Santo Oficio foram utilizados como mão-de-obra na navegação, mesmo A despeito de ser o único beneficiado, Bento não era um felizardo.
após o uso alargado das naus. Como se verá adiante, a expressão "embarcar" manteve- Aliás, este substantivo é inteiramente impróprio para quaisquer das almas
-se ligada às tarefas destes sentenciados ainda no século XVIII. Cf. Pieroni, Geraldo. que passaram por este purgatório à beira do Tejo. Fora condenado pela
Os Excluídos do Reino. Brasília: Editora Universidade de Brasília & Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2000, p. 30; BRITO, Nogueira de. Caravelas, Naus e Galés de Inquisição de Coimbra por "irreverências" ao Santíssimo Sacramento e
Portugal. Porto: Livraria Lello & Irmãos, s/d.
90 ANTT, Inquisição de Lisboa, livro 154, fls. 59 e 60. 91 Ibidem, fl. 340.
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às imagens sagradas. Saíra no auto-de-fé de 6 de Agosto de 1713 e fora roturas em ambas as virilhas. Estava inutilizado. Os procuradores roga-
condenado a açoites e a dez anos de galés. Já tinha cumprido metade da ram à "grandeza e piedade" do Tribunal para que lhe perdoasse os dozes
pena, quando lhe foram concedidos seis meses de licença para se ir curar meses restantes. Donato, entretanto, continuou nas galés, em companhia
em sua terra. Contudo, não se pode dizer que foi alvo da caridade inquisi- de António Nunes, que cumpria pena havia quatro anos por desacatos ao
torial. Segundo Manuel da Costa Pereira, médico da Câmara de Sua Santíssimo.
Majestade e do Santo Ofício, Bento estava tísico. Por se mostrar "inca- Como seus companheiros, António também tinha sido fustigado, e
paz de embarcar para as conquistas [do] Reino"91 e ser portador de um embora restassem-lhe seis longos anos de pena pela frente, já estava "fal-
"prerigozo achaque às mais pessoas das Galés", os procuradores do Tri- to de forças" e o médico dizia que parecia mentecapto. Os procuradores
bunal endossaram vivamente sua solicitação para se tratar na casa dos sabiam que era um homem destemperado. Havia ferido o guarda dos cár-
parentes. ceres da Penitência, enquanto aguardava a promulgação de sua sentença.
Bento de Araújo não foi poupado do trabalho forçado nas galés sim- Mas, louco ou não, a misericórdia do Santo Ofício não chegou a ele e
plesmente porque estava doente, mas porque seu mal era contagioso e muito menos àqueles aos quais os procuradores não avalizaram o pedido.
poderia gerar uma epidemia, comprometendo o cumprimento das penas Bento Carvalho, que fora condenado a açoites e a dez anos de galés
de outros sentenciados. Pois, se o critério para soltura fosse apenas a por sacrilégios ao Santíssimo Sacramento e saíra no auto-de-fé coimbrão
enfermidade ou a obediência ao tribunal, António Ribeiro Trense teria de 6 de Agosto de 1713, assim como todos os sentenciados que sofriam
visto suas solicitações atendidas. Fora condenado pelo crime de bigamia de mal gálico não foram julgados incapazes de suportar o trabalho com-
a três anos e oito meses de galé. Sofria de uma "dizuvia rigoroza" e tinha pulsório nas galés. Joseph Barros, reconciliado na cerimónia de 24 de
fugido para o reino de Castela. Porém, arrependido, voltara espontanea- Outubro de 1717, na Igreja de São Domingos, por culpas de judaísmo e
mente para cumprir a pena. Embora tivesse revelado seu temor do Santo condenado a hábito perpétuo com insígnias de fogo, teve de amargar os
Ofício e os procuradores tivessem endossado seu pedido, justamente por ferros das galés até que se cumprisse o tempo determinado. Mathias Fer-
isso, sua solicitação foi indeferida. nandes, acusado de blasfemo, de fazer pacto com o demónio e condenado
O bom comportamento, a demonstração de resignação diante da sen- em cárceres a usar hábito perpétuo, casaca com rótulo de feiticeiro e
tença e a doença em si não eram, portanto, argumentos suficientes para mordaça, além de suportar a dor da vergasta na carne, foi obrigado a
libertar uma criatura das malhas da Inquisição e da mais terrível de suas cumprir os três anos de galés que lhe cabiam, apesar de arrastar uma das
sentenças. Se assim o fosse, os outros seis sentenciados, que segundo os pernas. Matheus Vaz, acusado de feitiçaria, que já contava dois anos de
procuradores e o médico também demonstravam grande debilidade física, trabalho forçado nas galés, também sofria do mal gálico, mas teve de
também teriam recebido a mercê do tribunal. resignar-se com os três anos de pena que ainda lhe cabiam, exibindo o
António Rodrigues de Figueiredo, que fora escoltado pelos irmãos hábito perpétuo e a carocha de feiticeiro. Joseph da Silva e Francisco da
de São Jorge no auto-de-fé que se fez no Rossio, em 30 de Junho de Silva, ambos condenados a açoites e a seis anos de galé, por culpas de
1709, estava entre os muitos que tiveram seu pedido indeferido. Faltava- bigamia, e que cumpriam havia um ano as suas penas, foram obrigados a
-Ihe um ano para concluir sua sentença e, a despeito "dos acidentes de concluir o tempo restante da sentença, se é que a sífilis o permitiu.
pedra" que lhe maltratavam os rins, cumpriu até o fim sua condenação Se as doenças venéreas pouco sensibilizavam os procuradores do
pela culpa de impediente. Manuel Lopes, de alcunha o Trigueiro, que saí- Santo Ofício, as dores ciáticas e mesmo a idade avançada também esta-
ra no auto-de-fé de Coimbra por culpas de bigamia e recém-chegado às vam excluídas do repertório de achaques considerados abonadores.
galés, tinha uma diarreia antiga. Segundo a avaliação médica, corria peri- Manuel Jorge, que saíra no auto-de-fé de Évora e cumpria pena nas galés
go de vida e precisaria de, pelo menos, seis meses para se restabelecer. por bigamia, havia um ano, sofria de "dores nas cruzes das cadeiras" e
Manuel Pereira de S. Joseph, o Donato, que saíra no auto-de-fé do Ros- em uma das mãos que havia deslocado, possivelmente, carregando os
sio, havia nove anos, "pela culpa de afirmar com pertinácia proposições pesos que lhe eram impostos. Como os outros suplicantes, ficou pela
heréticas", além de ter no corpo a memória dos açoites, já tinha cumprido Ribeira das Naus, sem que a misericórdia do Santo Ofício lhe alcançasse.
praticamente 3/3 da pena. Depois de quase uma década nas galés, tinha Por sua vez, Manuel João, que se queixava de dores ciáticas e estava nas
galés porque cobiçara a mulher do próximo e se casara com ela, teve de
cumprir os cinco anos que lhe foram designados pelo tribunal.
Ibidem, fl. 339. Ênfases minhas.
294 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 295

Mesmo José Rodrigues Manteigas, que os médicos diziam ser velho, ca e com muitas dores. À primeira vista, pareceu-lhe que a mazela era
não recebeu o beneplácito do Santo Ofício. Era um réu reincidente. Não antiga e que não podia mais servir nas galés. Mas, como não sabia ainda
aprendera a lição das galés. Seu primeiro auto-de-fé fora no Convento de o efeito da sangria, não se achou em condições de formular nenhum
São Domingos, em 1702. Nesta ocasião, foi condenado a açoites e a cin- parecer definitivo.
co anos de galés, mas conseguiu fugir. Capturado, viu sua pena acrescida Manuel Rodrigues Tavares não enviou outra petição. Se o fez, não
em dois anos, em 1709. De volta às galés, driblou novamente a vigilância foi anexada ao seu dossiê nos livros da Inquisição de Lisboa. Não cabe
e fugiu. Uma vez livre, apesar da idade avançada, continuou sendo um aqui arriscar nenhum prognóstico sobre a evolução de seu estado clínico.
perigo público. Renitente, afirmava com confiança "não serem pecami- Mas fica evidente que o tratamento que lhe deram se limitou a incisões
nosas as copulas carnaes que tinha com as mulheres". Em 1717, foi apri- venosas na própria enfermaria das galés, e que a visita do médico pouco
sionado novamente e recebeu a terceira condenação: novos açoites e mais lhe acrescentou, embora poderia lhe ter assegurado uma boa hora longe
sete anos de galés. Deste modo, conhecendo sua pertinácia, os próprios da Ribeira das Naus, posto que a doença era o único argumento que estes
procuradores não recomendaram a sua soltura. homens tinham para alcançar a misericórdia inquisitorial e negociar a
A recusa do Santo Ofício em reconhecer a deficiência física e men- comutação de sua pena. Entretanto, a doença em si, como se viu atrás,
tal desses sentenciados às galés tanto desfaz qualquer suposição de que não era nenhuma garantia de perdão.
seu quadro médico existia para oferecer realmente um tratamento ade- Desta feita, apesar de obter um parecer médico mais favorável que
quado aos presos, como autoriza a pensar que parte da mão-de-obra seu companheiro, Gaspar Dias Fernandes também amargou até o fim sua
empregada "para embarcar nas conquistas do Reino" se fizera às custas sentença. Em Setembro do mesmo ano, por ordens do tribunal, o médico
dos condenados da justiça inquisitorial, recrutados em Lisboa, Coimbra, dos cárceres foi vê-lo. O preso, também um médico, encaminhara ao
Eivas e nas demais comarcas portuguesas. Atados a ferros, estes senten- Santo Ofício um pedido para que lhe concedesse algum tempo para se
ciados remavam nas embarcações que partiam da Ribeira até verem partir curar na casa de sua família no Porto, porque padecia novamente de uma
suas virilhas ou até "ficarem quebrados da cintura", com seus braços e queixa de ciática e corria perigo de vida95. Após a visita, Roque da Costa
pernas imprestáveis93. Na verdade, estavam fadados a cumprir uma sen- e Silva asseverou que a queixa procedia. De fato, Gaspar tinha uma obs-
tença de morte lenta e gradual e suas queixas estavam longe de serem trução "cirrosa no baço" já muito antiga, que lhe exigia cuidados espe-
ouvidas "com caridade e paciência". ciais anualmente. Posto que não o tinha feito, o problema agravara-se e o
As galés tinham uma enfermaria, é certo. Mas, ao que tudo indica, preso expressava um "temperamento melancólico". O médico julgou que
insuficiente. Tratava-se antes de um "pronto-socorro", onde o cirurgião realmente estava doente e necessitava de se ir a outra parte curar, "porque
fazia curativos em feridas e apostemas e que o médico da Câmara de Sua na dita prisão da galé tinha pouca comodidade".
Majestade só visitava se intimado. Tanto assim, que os presos deveriam O Santo Ofício decerto considerou o parecer, mas não o tomou ao pé
deixá-la para se poderem curar noutro sítio. O quadro descrito em 1718 da letra. Na semana seguinte, enviou outro médico. Ao contrário do cole-
não experimentou qualquer alteração, após uma década. ga, Manuel Batista da Cunha examinou o preso, receitou-o, mas não afir-
Em Agosto de 1728, o preso Manuel Rodrigues Tavares, natural da mou que era necessário removê-lo das galés. Para usar de precisão,
vila de Idanha no Bispado da Guarda e que cumpria pena de cinco anos sequer mencionou se deveria ou não ficar na Ribeira das Naus. Limitou-
de galé por bigamia, encaminhou ao Santo Ofício uma petição pedindo- -se a atestar que Gaspar já tivera uma paralisia havia algum tempo no
-Ihe que lhe perdoasse os dois anos que lhe restavam para completar a lado direito do corpo e apresentava novamente uma dor "veemente" e por
sentença, porque tinha vários achaques, todos decorrentes de mal gálico e isso fora sangrado. Como se tratava de uma "causa quente", o médico
que, ao fim, deixaram-lhe paralisado todo o corpo94. O Santo Ofício dos cárceres mandou sangrar-lhe mais uma vez e receitou-lhe leite para
enviou às galés o médico Roque Costa da Silva, para averiguar o estado equilibrar os humores.
de Manuel. Encontrou-o de cama, sangrado, por causa de uma febre gáli- Com pareceres quase antagónicos, e só não o são de todo porque
comprovaram que o preso estava adoentado, os médicos dos cárceres
eximiram o Santo Ofício de qualquer culpa pela eventual morte do preso.
93 ANTT. Petição de Manuel Rodrigues Camanso. 8 de Outubro de 1724. Inquisição de
Lisboa, livro 155, fl. 297.
94 ANTT, ibidem, fls. 588-589. 95 ANTT. Ibidem. fls. 591-593.
296 Georgina Silva dos Santos Oficio e Sangue 297

Ao fim, foi Manuel Batista quem deu à Inquisição o que ela queria ouvir: do além-mar, e para que pudesse participar da cerimónia do auto-de-fé,
Gaspar tinha condições de cumprir seu degredo sem precisar deixar os ocasião em que serviria de bode expiatório para espectadores que com-
limites a que fora confinado. Entende-se agora, porquê o Santo Ofício pactuavam por convicção ou medo de uma carnificina pública e cuja
requeria para o cargo um profissional de sua confiança e que fosse ligado grande satisfação era saberem-se diferentes do sentenciado e por isso
à Coroa. Os médicos faziam um segundo julgamento do preso, com o bem-aventurados, sobretudo, se fossem apenas oficiais mecânicos, como
aval do Tribunal. Mas era, efetivamente, a palavra que parecia mais con- os irmãos de São Jorge.
veniente aos inquisidores que se tomava como verdade. A assistência dos médicos, cirurgiões e barbeiros nas prisões de Lis-
Gaspar não foi ao Porto rever sua família. Se melancólico estava, boa deve ser compreendida, portanto, como um suporte fundamental para
assim permaneceu. Se tinha uma dor ciática, ela continuou a fazer-lhe o funcionamento da Inquisição portuguesa. Contudo nunca é demais sub-
companhia nas galés, pois teve de se contentar com as sangrias e a dieta linhar que o tipo de tratamento dispensado aos detidos estava longe de
alimentar do Dr. Manuel, que combatia moléstias quentes com alimentos ser aquele prestado "as caras mais ilustres da Corte". Entre as úmidas
frios, como ensinavam os aforismos de Hipócrates, lidos e relidos na paredes da cadeia do Limoeiro e dos cárceres da Penitência, assim como
Universidade de Coimbra. Depois, dos males o menor. Havia quem pre- na enfermaria das galés, as mezinhas e remédios descritos pelo regimento
cisasse contar com a sorte ou o azar dos outros sentenciados para conse- da Inquisição restringiam-se às sangrias, purgas e vomitórios.
guir uma vaga na enfermaria das galés, ainda que fosse apenas para O uso e abuso indiscriminado destes procedimentos terapêuticos
tomar as purgas e o vomitório receitados pelo cirurgião. esbarravam, entretanto, nos parâmetros logísticos que orientavam a for-
Em 1739, a superlotação da enfermaria deixou Bento António Mon- mação do corpo médico da Inquisição. Em termos regimentais, só havia
teiro, preso pela Inquisição de Évora por dizer missa sem ser sacerdote, um médico, um cirurgião e um barbeiro responsável pela prestação de
completamente desassistido96. O condenado "tinha acidentes que lhe pri- serviços. Mas, como se viu atrás, desde o século XVII, o número de
vavam de sentido". Além dos desmaios, sofria de insónia, mal conseguia "supranumerários" e de substitutos de ocasião crescia a cada dia. Esta
andar e escarrava com sangue frequentemente. As galés tinham-no dei- tendência, que se manteria no século XVIII97, ainda que o ofício de san-
xado em farrapos. Ao vê-lo, o serviço médico do Santo Ofício limitou-se grador tenha se dividido entre barbeiros e cirurgiões, pode sugerir enga-
a comunicar o fato ao Tribunal, que se ocupou apenas de autorizar que nosamente um cuidado redobrado com a saúde dos sentenciados. Mas
lhe poupassem do trabalho enquanto não experimentasse melhoras. era, ao que parece, uma resposta efetiva ao crescimento da demanda, ou
O número incompatível entre os leitos da enfermaria das galés e o seja, ao aumento do número de presos, e com toda a certeza uma solução
contingente de sentenciados indica que, ainda na primeira metade do para o vínculo intermitente que doutores, cirurgiões, barbeiros e outros
século XVIII, a ação persecutória do Santo Ofício era assaz intensa. prestadores de serviço mantinham com os cárceres.
Note-se, porém, que uma fração desses sentenciados eram presos recap- Em Junho de 1722, o preso Duarte Lopes Rosa teve de suportar com
turados ou réus reincidentes, que mesmo após o cumprimento da primei- paciência seus achaques, até que aparecesse uma nova cristaleira para
ra pena voltavam a perpetrar as mesmas faltas que haviam justificado sua assisti-lo na cadeia. Os remédios que lhe foram receitados deveriam ser
sentença. Mas a superlotação na enfermaria das galés aponta ainda para precedidos por uma lavagem intestinal. A fulana que costumava fazer o
uma notória distinção entre o cuidado dispensado aos presos antes e serviço partira em romaria não se sabe bem para onde e o doente não
depois de promulgadas as sentenças. Comparativamente, as dores dos tinha quem lhe aplicasse o clister. Segundo a lei interna dos cárceres, se
homens e mulheres detidos nos cárceres eram acolhidas com mais dili- estivesse em companhia de outro preso, seria este a atendê-lo. Como
gência, denotando uma flagrante preocupação do Tribunal para conservar estava solitário, foi obrigado a esperar que o Santo Ofício autorizasse a
aqueles que estavam sob sua custódia com condições mínimas de saúde. contratação de outra cristaleira que substituísse a romeira, em caso de
Era, portanto, no espaço onde o réu aguardava a sentença que os ausência, para então cumprir a medicação prescrita98.
doutores se esforçavam para mante-lo vivo, de modo que se mostrasse
são o suficiente para cumprir seu degredo, fosse nas galés ou nas terras
97 Em 1760, a Inquisição de Lisboa mantinha cinco médicos em seu quadro de funcioná-
rios. Cada um recebia 10SOOO réis. Cf. ANTT. Caderno das Ordens do Conselho Geral.
96 ANTT. Petição do preso das galés Bento António Monteiro, Inquisição de Lisboa, livro Inquisição de Lisboa, livro 158, fl. 2.
817, fls. 30-35. 98 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 156, fl. 45.
299

l
Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue
298

O alcaide dos cárceres recebeu a licença do Tribunal para resolver o tornado o principal argumento utilizado pelos presos para abandonar
problema. Todavia, fica evidente que o tal atendimento de excelência era temporariamente ou definitivamente a cadeia. Depois do interrogatório
mais nominal do que real. Quando não era a falta da cristaleira ou um que o Santo Oficio submetia aos presos, era o cárcere a sua prova mais
barbeiro desvairado que trocava veias por artérias, os detidos suportavam difícil, se não fosse as galés o seu destino. O Limoeiro, particularmente,
as inundações das chuvas de Inverno em Lisboa. Em 1727, os canos que tinha sua fama de maldito, suas febres eram "malignas" e os próprios
corriam por debaixo dos cárceres do Limoeiro estouraram com a força médicos em nada se acanhavam em afirmar que, nesta prisão, "todas as
das águas. Todo o pavimento térreo foi invadido pelos dejetos do esgo- doenças [eram] perigosas pelos seu ares infectos"103.
to", arruinando os pertences e os estrados onde os presos dormiam. Num universo de sessenta e seis petições dos presos do Limoeiro,
Somente em Maio, em plena Primavera, o alcaide requisitou à Mesa a entre os anos de 1639 e 1782, isto é, entre os dias em que mestre Valen-
troca da mobília100. tim atuava como barbeiro dos cárceres e o tempo em que António Fran-
A combinação de um ambiente inóspito com uma dieta alimentar cisco Claro realizava as sangrias nos presos, o principal argumento utili-
que alternava apenas carne e peixe faziam do Limoeiro um antro de zado pelos detidos, para entabular um diálogo com o tribunal, ancorou-se
doenças. Para que pudessem custear suas refeições no cárcere, a Mesa em alguma moléstia104. A pobreza e a idade avançada também estavam
dava às mulheres quatro vinténs e aos homens um tostão, sem mais presentes nos requerimentos, mas em uma proporção ínfima se compara-
acréscimos. O valor para o pagamento das refeições só excedia a esta das à descrição de um quadro doentio grave e sem esperanças de melho-
média por ordem do médico, em razão de alguma convalescência. O ra. A ênfase em um quadro clínico débil estão em 100% das petições
regime era severo e a quantia quase nunca era suficiente para pagar ao enviadas ao Santo Ofício. Se a miséria e o número de aniversários de
despenseiro da cadeia101. cada condenado constavam em algumas destas petições eram, na verda-
Seria, no entanto, um descalabro afirmar que os detentos simulavam de, para reforçar a solicitação de licença para tratamento, a comutação da
alguma doença para amealhar mais alguns vinténs. Viviam subnutridos, pena ou mesmo o perdão da sentença. Apenas em onze requerimentos os
volta e meia mergulhavam os pés nas águas dos canos e dormiam em presos se dizem idosos e pobres.
estrados carcomidos por insetos, o que lhes facultava com largueza a Seria impróprio afirmar que todos os sentenciados eram jovens ou
possibilidade de desenvolver qualquer doença. O Santo Ofício julgava, que tinham um bom pecúlio. Na verdade, o destaque atribuído à enfermi-
porém, que era necessário impedir que os presos simulassem achaques dade nos requerimentos indica que as chances de contrair qualquer doen-
para satisfazer a fome. Em 1740, recrudesceu a vigilância e determinou, ça nos cárceres era bastante alta e justamente por isso o quadro clínico do
"em consideração dos excessos e dezordens que de annos desta parte" preso era a única altercação capaz de funcionar como um atenuante jurí-
verificava-se nos cárceres "com os alimentos dos presos", que não se dico, diante da Inquisição lusa. Assim como nas galés a concessão de
concedesse um tostão a mais a nenhum homem ou mulher que o Santo qualquer licença para tratamento era precedida de um parecer médico,
Ofício mandasse curar como doente, porque a experiência mostrava que também no Limoeiro a obtenção deste beneplácito só era auferida depois
agiam "dolosamente" com "cavilações e fingimentos"102. que as tentativas de cura realizadas no local fossem esgotadas.
O Tribunal achava, naturalmente, que a quota para alimentação ofe- As técnicas terapêuticas empregadas na cadeia não iam além do que
recida aos seus presos era compatível com a necessidade de blasfemos, a medicina da época era capaz de oferecer. Como se propagava nas Cate-
feiticeiras, bígamos, hereges e apóstatas. Mas pode-se inferir, sem esfor- drilhas da Universidade de Coimbra e nas cartilhas de barbeiro que a fle-
ço, que ela se refletia no estado físico e psíquico dos encarcerados. Mes- botomia era o melhor dos remédios, os presos em sua maioria, passavam
mo que tivessem recursos próprios que lhes dessem a possibilidade de
engordar a dieta, a doença atingia-lhes do mesmo modo. Fosse por sub- 1°3 ANTT. Parecer do médico Pedro Esteves Ariol para a licença de Vicente de Carvalho
nutrição ou contágio. Não espanta, portanto, que a enfermidade tenha se em 22 de Julho de 1747. Ibidem, fl. 358.
104 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro l, fl. 157; livro 2, fls. 14, 32, 56, 64, 65, 66, 72,
102, 104, 103, 106, 107, 109,; livro 151, fls. 596, 640, 658; livro 155, fls. 303, 308,
99 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 155, fl. 534. 528, 586; livro 156, fls. 26, 351, 585, 591, 595; livro 158, fls. 93,627, 628; livro 159,
100 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 156, fl. 469. fls. 2, 42, 46,47; livro 190, fls. 119,125, 235, 245, 254, 258, 168, 308, 317, 320, 333,
'<" ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 817, fl. 53. 335, 337, 347, 349, 353, 361, 383, 390, 396, 400, 406, 414, 420; livro 817, fls. 52, 61,
102 Ibidem, fl. 58. 82, 128,152,171.
300 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 301

por várias sessões de sangria antes de conquistarem uma segunda chance O desalento das três detentas foi experimentado, na mesma propor-
de tratamento fora dos cárceres. ção, por Maria Georgina, em outra das celas do mesmo Limoeiro, e tam-
Brites Caetano, acusada de judaísmo e condenada a cinco anos de bém por Maria Cristina, Miguel Pestana, Inácio de Carvalho, Maria
degredo em Angola, foi transferida para o Limoeiro para aguardar seu Rosa, Theodora Nunes, Aleixo do Vale, Maria do Rosário, Maria Josefa
embarque, em 1729. Um ano depois, havia desenvolvido uma febre reu- e um sem-número de sentenciados que passaram por este cárcere e tive-
mática que lhe impedia de andar. Os médicos trataram-na com sangrias, ram de suportar as lancetas dos barbeiros que se faziam passar por cirur-
mas em vão. Por fim, a Mesa teve de conceder-lhe a licença para se curar giões e compunham a irmandade de São Jorge e dos cirurgiões que
em outra parte, porque de outro jeito morreria antes de embarcar para a outros diziam ser barbeiros e daqueles que o eram de fato108. Não se pen-
África, comprometendo os planos de povoamento de Sua Majestade, o se, contudo, que as enfermidades eram as mesmas. António Francisco
rei de Portugal105. Francisca Teresa de Carvalho, também acusada de Claro sangrava aqueles que tinham convulsões, dores no peito, os que
judaísmo outrossim condenada a cinco anos de degredo na Angola, punham sangue pela boca, os melancólicos, os que tinham fastio ou
adquiriu o mesmo mal após um ano no Limoeiro. Tinha uma "febre "pontadas". Mas nem sempre barbeiros e cirurgiões o faziam sob orienta-
maligna", dificuldade respiratória, esputos viscosos e ensanguentados. ção médica.
Foi sangrada oito vezes, sem experimentar qualquer melhora. Diante do Em Março de 1744, quando Miguel Pestana sufocava com seus
inelutável, em 1738, a Inquisição deu-lhe a licença para se tratar longe da vómitos e o Dr. Manuel Duarte estava ausente, "muito distante", foi o
cadeia, como recomendaram os médicos106. sangrador António de Almeida quem o acudiu. O alcaide, que a tudo via
Ana Ribeiro, condenada a três anos de degredo em Cabo Verde pela e registrava, tinha chamado ao frei Bernardo do Desterro que já estava a
Inquisição de Lisboa, mal entrou nos cárceres adoeceu. Tinha vinte e cin- postos para dar-lhe a confissão. António de Almeida deu ao preso cacha-
co anos, quando saiu no auto-de-fé em 18 de Junho de 1741 e um mês ça, pôs-lhe ventosas e Miguel recobrou as forças, sem que o médico, seu
depois já estava acamada, por conta de uma "grande enfermidade". Foi segundo juiz, estivesse por perto.
sangrada doze vezes. Mas, inutilmente, uma vez que, depois das incisões, António de Almeida decerto repetiu um gesto que os irmãos de São
não experimentou qualquer melhora. Sem mais a fazer, o tribunal deu-lhe Jorge fizeram muitas vezes quando eram apenas seus os domínios da arte
uma licença de dois meses para recuperação fora da cadeia107. Joana de sangrar na cidade e que os tornaram indispensáveis ao funcionamento
Maria, uma das muitas companheiras que tinha no Limoeiro, desenvol- do Tribunal de Lisboa, posto que, depois do interrogatório que o Santo
veu também uma "grave enfermidade" à espera de seu embarque para Ofício submetia aos presos, era o cárcere a sua prova mais difícil, se não
Cabo Verde, onde cumpriria o degredo por cinco anos. Após quatro anos fosse as galés o seu destino. Entretanto, sua primazia foi paulatinamente
de reclusão, já tinha usado de todos os remédios e fora sangrada algumas
abalada pelo número crescente de cirurgiões. Pode-se dizer, no entanto,
vezes, porém sem apresentar melhora. Face ao inelutável, o Santo Ofício
que até 1761, data do último auto-de-fé público, os barbeiros ainda anda-
teve que lhe conceder dois meses de licença também. A cristã-nova Joana
vam pelos cárceres, acudindo presos e escoltando-os até o altar da abju-
da Silveira Bragança chegou aos cárceres, segundo o alcaide, aparente-
ração. Se, na sequência dos anos, seu ingresso viu-se reduzido pela ação
mente sã e foi posta em uma cela no andar de cima da cadeia. Passados
dos cirurgiões, pode-se também afirmar que estes gozaram por pouco
três meses, começou a dar sinais de indisposição e fraqueza. Por isso, foi
tempo de alguma vantagem. Em 1783, os médicos também passaram a
removida para a cela da Bárbara Corrêa e Luísa Soares. Ali, por ordens
requisitar a função de sangrador109. Não há, porém, como ignorar que
do Dr. Manuel Duarte, "tomou bichas" (sanguessugas) e levou mais dois
durante os três primeiros séculos de existência da Inquisição portuguesa,
meses deixando-se sangrar de lanceia e talvez também de ventosas.
os cárceres de Lisboa foram um território dominado pelos mestres da
Entretanto, não esboçou qualquer melhora. Em Outubro, quando a situa-
ção parecia insustentável, foi levada ao Hospital Real pelo alcaide, para lanceia e da navalha da bandeira e irmandade do glorioso mártir São Jorge.
receber outros remédios e se fortalecer com uma nova dieta alimentar.
'°8 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 2, fls. 65, 72, 107, 103, 106, 109; livro 159, fls. 2-4
105 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 190, fls. 256-258, 260, 264, 265, 266, 277, 279, e 46
282, 283, 289, 297.
109 Em 1783, o médico Manuel Abreu Rosado dava consultas e realizava sangrias nos
106 ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 190, fls. 337, 339, 341 e 345. presos. Cf. ANTT. Petição de António Borges de Mello. Inquisição de Lisboa, livro l
K" ANTT. Inquisição de Lisboa, livro 190, fls. 383, 388,389. fls. 105-107.
CONCLUSÃO

Prenhe de revelações surpreendentes, o mundo do trabalho na Lis-


boa da Época Moderna tem muito pouco de pitoresco. De lês a lês, a
convivência entre os oficiais mecânicos foi pontuada de tensões. Algu-
mas motivadas pela disputa do espaço das oficinas, outras pela adultera-
ção das peças que um mesteiral desonesto teimava em falsificar e muitas
pela afluência contínua de trabalhadores oriundos de fora da cidade, fos-
sem portugueses ou estrangeiros.
O histórico da corporação dos homens de ferro e fogo e os meca-
nismos que estes oficiais inventaram para evitar essas contendas e res-
ponder aos desafios do crescimento demográfico lisboeta demonstram
que suas vidas não se resumiam a acompanhar o "celebérrimo São Torge"
nas procissões e comprovam que as irmandades de ofício da Época
Moderna romperam com o modelo conceituai das confrarias medievais
portuguesas e se diferenciavam das demais irmandades nascidas entre os
séculos XVI e XVIII. Se a mola propulsora para a formação das associa-
ções confraternais da Idade Média foi a oferta do serviço funerário aos
irmãos, se as demais irmandades do período moderno concentravam seus
esforços para atender um fim específico, como a remição de escravos ou
de cativos de guerra, os princípios e regras que regeram a irmandade de
São Jorge ao longo de sua existência autorizam a afirmar que as organi-
zações de entreajuda criadas a partir das corporações de ofício de Lisboa
ultrapassavam e muito a intenção de mediar ações caritativas ou garantir
a superação de uma situação adversa.
É certo que a irmandade de São Jorge previa o auxílio em caso de
pobreza, convalescência ou falecimento, garantindo ao oficial um enterro
digno e o apoio em casos de penúria. Mas a fixação de um limite de ida-
de para a admissão nesta irmandade, a confirmação da pureza de sangue
como condicionante para o ingresso na associação, a devassa a que eram
submetidos os oficiais que se habilitavam e a criação de uma subcatego-
ria no interior da agremiação, "os confrades", dilaceram qualquer preten-
são de estender a esta irmandade de ofício a mesma função social das
demais organizações confraternais e provam que nem sempre a existência
de um culto organizado tinha como objetivo maior garantir sufrágios aos
304 Georgina Silva dos Santos Oflcio e Sangue 305

defuntos e a remissão dos pecados através do cumprimento das obras de tuguesa, reverteu-se numa conquista essencial para os homens de ferro e
misericórdia. fogo. Acusando que o culto corria perigo pela falta de irmãos, os devotos
Os irmãos de São Jorge contavam com o prémio da indulgência submeteram a gerência da bandeira à gerência da irmandade, transfor-
papal, tinham no horizonte a preocupação de zelar pela alma dos irmãos e mando o ingresso na Casa de São Jorge num condicionante para o exer-
de suas viúvas, cuidavam da festa de seu orago e não lhe negavam cício de qualquer ofício da corporação. Ao fim, o culto serviu como
fogueiras, trombetas e tambores no 23 de Abril. Porém, a assistência fachada para que os mesteirais pudessem controlar o acesso à Casa dos
espiritual aos oficiais defuntos não justificava por si só a existência da Vinte e Quatro, minimizando a interferência do poder camarário e o
irmandade e nem o culto a São Jorge era a expressão de uma devoção impacto sofrido pela corporação após o terremoto, quando a Junta de
genuína, desprovida de qualquer outro interesse. Comércio arrogou-se o direito de emitir licença para o exercício de qual-
quer profissão, atropelando os interesses das corporações existentes na
A lógica de funcionamento da irmandade de São Jorge foi inteira-
mente concebida para viabilizar o gerenciamento da bandeira de ferro e cidade.
fogo, que concentravam em suas mãos um conjunto de serviços impres- A adoção de regras estatutárias restritivas, inspiradas nos regula-
cindíveis à cidade. O transporte de carga, a locomoção de particulares, o mentos do Santo Ofício, são a prova maior de que os irmãos de São Jorge
armazenamento de alimentos, as ferramentas usadas na construção civil, utilizavam o culto ao padroeiro para deter o crescimento desmesurado da
na montagem das embarcações, a defesa armada, assim como as técnicas bandeira. A completa assimilação do discurso produzido pela Inquisição,
de tratamento médico dependiam diretamente de suas habilidades. A num tempo pretérito, deu estofo às pretensões corporativistas dos irmãos
necessidade de controle sobre tantas frentes de trabalho numa cidade por- de São Jorge e comprovam que o ideário do Santo Ofício se esgalhou
tuária cujo desenvolvimento económico estimulou fluxos migratórios entre os trabalhadores urbanos, mesmo quando não ingressavam oficial-
durante toda a Época Moderna, fracionando a clientela e abalando uma mente na instituição como familiares ou como barbeiros.
estrutura corporativa concebida quando todos os homens de um mesmo Os líderes do estandarte de São Jorge foram, de fato, os principais
mester cabiam numa única rua, fez da irmandade de São Jorge a principal agentes na disseminação do discurso inquisitória! entre os irmãos de São
célula de organização desses trabalhadores urbanos. Jorge. Na cabeça do corpo de ofícios da bandeira, desde sempre, expuse-
A combinação entre a imposição do ingresso compulsório na irman- ram-se voluntariamente à devassa inquisitorial antes de qualquer outro
dade e a adoção de medidas altamente restritivas para sua admissão for- oficial da corporação e, nos idos de 1620, passaram a submeter-se a ela
jou um sistema de controle do grupo sobre cada oficial e acabou por também quando pleiteavam o cargo de barbeiro e sangrador do Hospital
construir a identidade social e religiosa dos homens de ferro e fogo, defi- Real. O vínculo duplo que mantiveram desde cedo com o tribunal, cui-
nindo a longo prazo o perfil destes oficiais mecânicos, que, salvo alguma dando dos presos como sangradores ou executando aqui e ali alguma pri-
exceção, foi composto de cristãos-velhos, ou seja, de homens brancos e são como familiares, fizeram-no à escolta oficial dos sentenciados nos
católicos. auto-de-fé de Lisboa, sublinhando na cerimónia a caridade prestada aos
A preservação do culto a São Jorge e o elo estreito que os barbeiros encarcerados que muitas vezes eles mesmos prendiam.
de barbear mantiveram com o Hospital Real e com o Santo Ofício, desde A arte dos barbeiros arrastou consigo a irmandade de São Jorge para
a criação desta casa hospitalar e desde o estabelecimento deste tribunal as malhas da Inquisição, perpetuando a ideia eugênica de pureza de san-
em Lisboa, tiveram um papel fundamental na subordinação da bandeira à gue, adversa à mistura das raças e etnias entre as culturas de ofício da
irmandade e na implantação das regras que nortearam o funcionamento corporação. Passada geração a geração, assim como as técnicas de cada
desta associação confraternal. mester, garantiu aos herdeiros dos irmãos de São Jorge as prerrogativas
A festa do santo contou todo o tempo com o auxílio financeiro da conquistadas pelo sangue e o ofício paternos: sufrágios para a alma no
realeza, que garantiu a sobrevivência da devoção entre os mesteirais e além-túmulo, indulgências plenas, sepultamento, auxílio financeiro em
constituiu uma das bases de apoio para o diálogo entre os oficiais mecâ- caso de pobreza ou doença e o direito a tornar-se proprietário de uma
nicos e o poder régio. O encargo de cuidar para que o santo tomasse pos- tenda. Em contrapartida, ceifou de saída a possibilidade de uma série de
se do castelo todos os anos e saísse regularmente na procissão do Corpo migrantes ingressarem nos ofícios da corporação de ferro e fogo, levando
de Deus, perpetuando a memória da independência lusa no âmbito da muitos à clandestinidade e ao desamparo, condenando-os aos limites da
Península Ibérica e atualizando o pacto entre Lisboa e a monarquia por- murmuração e do preconceito.
FONTES E BIBLIOGRAFIA

1. FONTES MANUSCRITAS

1.1. Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa


- Livro dos Pregos

1.2. Arquivo Nacional da Torre Do Tombo


Inquisição de Lisboa - Conselho Geral do Santo Ofício, caixa 32, maço 58.
Inquisição de Lisboa- Livros 2, 132, 151, 152, 153, 154, 155, 157, 158, 159,
160,162,190,817.
Inquisição de Lisboa - Habilitações de Familiares da Bandeira de São Jorge,
caixa 32, maço n.° 30, 58; maço 14, n.° 378; maço 16, n.° 431; maço 38, n.° 836;
maço 39, n.° 847; maço 41, n.° 894; maço 42, n.°927; maço 63, n.° 1285;
maço 43, n.°893; maço 16, n.°434; maço 19, n.°491; maço 38, n.° 826;
maço 38, n.° 834; maço 58, n.° 1213; maço 64, n.°1301; maço 67, n.° 1349;
maço 72, n.° 1423; maço 81, n.° 1559; maço 77, n.° 1498; maço 84, n.° 1605;
maço 209, n.°3119; maço 82, n.° 1467, maço l, n.°2; maço 4, n.° 140; maço 6,
n.°207; maço 8, n.°5; maço 12, n.°334; maço 36, n.°790; maço 54, n.° 1143;
maço 25, n.° 608; maço 32, n.° 523; maço 39, n.° 854; maço 6, n.° 201; maço 26,
n.°594; maço 63, n.° 1288; maço 95, n.° 1377; maço 47, n.° 1044; maço 48,
n.° 1072; maço 2, n.°45; maço 186, n.° 1975; maço 93, n.° 1550; maço 57,
n.°883; maço 78 n.°1511; maço 81 n.° 1546; maço 81 n.° 1558; maço 25
n.°589; maço 51, n.° 1104; maço 52, n.° 1125; maço 54, n.° 1154; maço 54,
n.° 1165; maço 58, n.° 1214; maço 67, n.° 1344; maço 70, n.° 1386; maço 74,
n.° 1444; maço 77, n.° 1500; maço 78, n.° 1505; maço 79, n.° 1517; maço 80,
n.° 1539; maço 81, n.° 1558; maço 82, n.° 1576; maço 51, n.° 1104; maço 25,
n.°1125; maço 13, n.°372; maço 21, n.°517; maço 35, n.°762; maço 13,
n.° 372; maço 186, n.° 1975; maço 32, n.° 523.

1.3. Museu-Biblioteca da Casa de Bragança - Vila Viçosa


Reformaçam do Antigo Compromisso da irmandade do Gloriozo Matryr São
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308 Georgina Silva dos Santos Ofício e Sangue 309

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