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ARTIGO ORIGINAL

Os desafios enfrentados pelos


iniciantes na prática de enfermagem

THE CHALLENGES COPED BY THE NOVICE IN NURSING PRACTICE

LOS DESAFÍOS ENFRENTADOS POR LOS NOVATOS EN LA PRÁCTICA DE LA


ENFERMERÍA

Denise Guerreiro Vieira da Silva1, Sabrina da Silva de Souza2, Mercedes Trentini3, Albertina Bonetti4,
Mariza Maria Serafim Mattosinho5

RESUMO ABSTRACT RESUMEN


O estudo teve o objetivo de investigar os The purpose of the study was to investigate Este estudio tuvo como objetivo investi-
desafios enfrentados pelas enfermeiras no the challenges faced by the nurses during gar los desafíos enfrentados por las enfer-
início da profissão. As informações foram the first years of their nursing work. A total meras en el inicio del ejercicio de su profe-
obtidas por entrevistas semiestruturadas of 31 novice nurses were included in the sión. La recolección de datos fue efectuada
de 31 profissionais de enfermagem forma- sample that answered a questionnaire with a través de encuestas semiestructuradas,
dos entre 2000 a 2004. A análise foi feita open and closed questions. The data analy- realizadas a 31 profesionales de enferme-
pelo software Atlas Ti para análise qualita- sis was conducted by using the qualitative ría que obtuvieron su graduación en el pe-
tiva. Os recém-graduados enfrentaram de- software called Atlas Ti. The novice nurses riodo de 2000 a 2004. El análisis fue efec-
safios referentes às atividades: a) Relacio- deal with some challenges related to: a) tuado con el software Atlas Ti para análisis
namento com a equipe de trabalho; b) leadership team; b) the competence and cuantitativo. Los recién graduados enfren-
Competência e habilidade técnica. Conclui- technique ability. The findings suggested taron desafíos en relación a: a) relación con
se que os recém-graduados estão pouco that the nursing novice is not well prepared el resto del equipo de trabajo; b) compe-
preparados para desempenhar a função de for assuming a leadership role as well as for tencia y habilidad técnica. Se concluye en
liderar uma equipe de enfermagem, bem caring in the settings of high-complexity. In que los novatos están poco preparados para
como para o cuidado em unidades de alta order to cope those challenges new strate- ejercer la función de liderar un equipo de
complexidade. Para enfrentar esses desafi- gies of education and nursing practice has enfermería y también para la atención en
os, novas estratégias de ensino e de prática to be developed together with nurses edu- unidades de alta complejidad. Para enfren-
devem ser traçadas de comum acordo en- cators and nurses practitioners. tar tales desafíos es necesario desarrollar
tre docentes e enfermeira e enfermeiros nuevas estrategias de enseñanza y de prác-
atuantes na prática. tica, en total acuerdo entre los docentes y
profesionales con actuación efectiva.

DESCRITORES KEY WORDS DESCRIPTORES


Enfermagem. Nursing. Enfermería.
Prática profissional. Professional practice. Práctica profesional.
Educação em enfermagem. Education, nursing. Educación en enfermería.

1
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da
Universidade Federal de Santa Catarina. Líder do Grupo de Pesquisa NUCRON. Pesquisadora CNPq. Florianópolis, SC, Brasil. denise@nfr.ufsc.br 2 Mestre
em Enfermagem. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Enfermeira do Programa de
Controle de Tuberculose de São José, SC. Enfermeira da Emergência Adulto do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina. Integrante
do NUCRON. Florianópolis, SC, Brasil. enfermeirasabrina@gmail.com 3 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de
Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. mertini@terra.com.br
4
Professora de Educação Física. Doutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Santa
Catarina. Integrante do NUCRON. Florianópolis, SC, Brasil. tina@cds.ufsc.br 5 Mestre em Enfermagem pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem da
Universidade Federal de Santa Catarina. Enfermeira da Secretaria do Estado da Saúde de Santa Catarina e do Ambulatório do Hospital Universitário da
Universidade Federal de Santa Catarina. Integrante do NUCRON. Florianópolis, SC, Brasil. marizaserafim@yahoo.com.br

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Português
Os desafios enfrentados / Inglês
pelos iniciantes Recebido: 23/09/2008 Rev Esc Enferm USP
www.scielo.br/reeusp
na prática de enfermagem Aprovado: 28/07/2009 2010; 44(2):511-6
Silva DGV, Souza SS, Trentini M, Bonetti A, www.ee.usp.br/reeusp/
Mattosinho MMS
INTRODUÇÃO O conflito na enfermagem foi descrito já há algum tem-
po, como uma síndrome denominada choque da realida-
Este artigo é parte de uma pesquisa de abrangência de(9). Este choque ocorre quando os recém graduados não
maior que focalizou a transição da academia para o traba- podem integrar o conhecimento obtido na escola com sua
lho em hospitais e Centros de Saúde vivenciada e relatada prática profissional cotidiana, ou seja, descobrem que a
por enfermeiras. A passagem da condição de estudante para enfermagem aprendida na escola diverge da enfermagem
a de profissional pode resultar em estresse para as profissi- praticada nas instituições de saúde. O modelo de assistên-
onais recém graduadas em enfermagem pelo fato de te- cia utilizado nas instituições hospitalares é o que mais di-
rem que enfrentar certos desafios ao vivenciarem incon- verge da orientação teórica da academia(10).
gruências entre o aprendizado adquirido na academia e a Pressões dos serviços de saúde sobre as enfermeiras
realidade encontrada no seu ambiente de trabalho(1-2). Es- recém-formadas também são expressivas, especialmente
ses profissionais podem responder a esta dissonância com quando as designam para postos de chefia. Essas recém-
certa desilusão com a prática de enfermagem ou com a formadas, muitas vezes, passam a liderar o trabalho de téc-
desvalorização do ideal acadêmico ou então podem se sen- nicos e auxiliares de enfermagem, os quais têm larga expe-
tir desafiados a procurar novas perspectivas de trabalho. riência e habilidades técnicas. Diante de tal situação, os
graduados iniciantes, por não terem ainda desenvolvido tais
Desafio é compreendido como uma provocação para
habilidades, se sentem inseguros e insuficientemente pre-
superar uma situação e/ou evento estressante. Envolve a
parados para enfrentar tal realidade(11).
possibilidade de transformar essa situação/evento em cres-
cimento, desenvolvimento ou conquista. Enfrentar desafi- O descompasso entre o ensino acadêmico e as expecta-
os requer uma continua avaliação dos recursos existentes, tivas no campo de trabalho tem sido denunciado por alu-
sejam eles internos ou externos à pessoa. Nesta avaliação, nos de enfermagem(12). Além disso, no decorrer de nossa
a pessoa faz julgamentos sobre sua capacidade de fazer experiência profissional, observamos que a maioria dos
frente à situação e sobre os resultados obti- acadêmicos de enfermagem tem desaprova-
dos, considerando as estratégias de enfren- do a prática como está sendo conduzida nas
tamento que escolheu(3).
De que modo se dá a instituições de saúde e têm criticado as ati-
tudes dos profissionais de enfermagem no
O primeiro emprego ou a mudança de transição da academia
campo do trabalho. Observamos, no entan-
posição no trabalho podem ser avaliados para o campo de to, também que esses mesmos estudantes ao
como um desafio ou considerados uma ame- trabalho dos recém serem inseridos no mundo do trabalho se
aça, pois surgem novas demandas de atitu- graduados em comportavam do mesmo modo daqueles por
des e capacidades. A maneira como a pessoa
irá encarar esta situação, como uma ameaça
enfermagem? eles anteriormente criticados. Diante desta
situação percebemos a importância de man-
ou como um desafio, terá importantes reper-
ter a discussão acerca da temática teoria
cussões nas estratégias que irá selecionar
versus prática e então questionamos: De que modo se dá a
para fazer enfrentar a situação. Pessoas que se sentem de-
transição da academia para o campo de trabalho dos re-
safiadas em vez de ameaçadas, têm auto-estima alta pro-
cém graduados em enfermagem? A partir desse questio-
vocando sentimentos de controle da situação e, desta ma-
namento, focalizamos os desafios dessas enfermeiras, es-
neira, desenvolvem capacidades para superar a situação
tabelecendo o seguinte objetivo: Identificar os desafios
estressante.
enfrentados pelos recém graduados em enfermagem no
O conflito entre a academia e os serviços de saúde não início de suas atividades práticas.
é novidade, pois nas últimas cinco décadas a literatura tem
Para delimitar esta pesquisa, partiu-se do pressuposto
mostrado reflexões sobre o tema e alternativas de solução,
(4-6) de que enfermeiras recém graduadas encontram inúmeras
muitas delas, sem sucesso . Esse problema, portanto, não
situações estressantes no início de sua profissão as quais re-
ocorre exclusivamente na enfermagem e passou a ter mai-
presentam desafios a serem superados, mesmo com dificul-
or destaque com a Reforma Sanitária Brasileira. O Sistema
dades e que a maioria dessas situações estressantes são de-
Único de Saúde trouxe em sua proposta mudança paradig-
corrente da lacuna existente entre a formação acadêmica e
mática da assistência à saúde, saindo de um modelo o mundo do trabalho em enfermagem. Desta forma, procu-
hospitalocêntrico para um modelo de promoção à saúde rou-se evidenciar a importância que a realidade do mundo
integral da população. No entanto, a formação dos profis- do trabalho pode oferecer para a academia e vice-versa.
sionais da saúde tem mostrado certa impermeabilidade,
mantendo-se alheia ao processo(6-7), apesar de mais recen-
temente haver um movimento bastante amplo do governo MÉTODO
brasileiro de mudança dessa situação, como por exemplo,
as Diretrizes Curriculares Nacionais(8) que privilegiam a for- Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa de
mação voltada para as necessidades da comunidade e ten- caráter exploratório. Os sujeitos do estudo foram 31 pro-
do o perfil epidemiológico como referência. fissionais que preenchiam os seguintes critérios de inclu-

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são: a) formados em cursos de graduação em enfermagem Liderança da equipe
de Santa Catarina no período de 2000 a 2004; b) atuando
nas instituições de saúde da Grande Florianópolis; c) acei- Assumir a liderança da equipe de enfermagem consti-
tassem participar do estudo. Os sujeitos foram identifica- tuiu um desafio para as enfermeiras recém formadas e en-
dos a partir de uma listagem de enfermeiras nas institui- volveu: superar o preconceito de terem pouca experiência
ções de saúde da Grande Florianópolis. O número de inte- e pouca idade; obter credibilidade da equipe na mudança
grantes foi definido pela repetição das informações. Após de papel dentre aquelas que atuavam anteriormente como
as primeiras vinte entrevistas percebemos que os dados se técnicas de enfermagem, passando a ter um cargo superi-
repetiam, porém, com a intenção de ampliar a possibilida- or a seus antigos colegas; superar as lacunas na formação,
de de novas informações, efetuamos ainda mais onze en- especialmente no que diz respeito aos aspectos gerenciais
trevistas, que confirmaram essa percepção. e de liderança da equipe. Esses desafios tinham como pon-
to de convergência a necessidade de estabelecer um rela-
As informações foram obtidas através de entrevistas cionamento harmonioso com a equipe de trabalho.
semi-estruturadas com questões abertas e fechadas e fo-
ram gravadas com o consentimento dos entrevistados. Perceberam que alguns membros da equipe demons-
traram falta de confiança em sua atuação, considerando-
Para a análise dos dados foi utilizado o software deno- as despreparadas para as atividades. Referiram que obter
minado de Atlas Ti(a) para dados qualitativos. Foram segui- confiança e credibilidade foi um processo que requereu
dos os seguintes passos no processo de análise: leitura e empenho, paciência, dedicação e habilidade.
releitura das entrevistas; codificação das expressões e/ou
frases relacionadas aos desafios da prática profissional da [...] a gente tem pouco tempo de formada e todo mundo
enfermeira; agrupamento dos códigos semelhantes que rotula ah tem pouco tempo de formada, não sabe muita
levaram à elaboração de duas categorias que abrangem os coisa. Então daí, ainda mais que eu tenho cara de mais
diferentes desafios que enfermeiras recém-graduadas en- nova, então esse foi o meu maior desafio até conquistar
frentam em sua inserção no mundo do trabalho. todo mundo (E1).

Após aceitarem participar do estudo e receberem in- Uma situação referida como surpreendente para algu-
formações detalhadas sobre o mesmo, os sujeitos assina- mas das entrevistadas foi decorrente de serem anterior-
ram o consentimento livre e esclarecido. O projeto foi mente técnicas de enfermagem e imaginavam que teriam
aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa com seres hu- o apoio de toda a equipe. Porém, a mudança de papéis
manos da Universidade Federal de Santa Catarina, Proje- nem sempre ocorreu de forma tranqüila, sendo apontada
to nº 231/06 - nº 0161.0.242.000-06.e atende a Resolu- também com um desfio a ser superado. Sentiram que ha-
ção nº 196/96 do CNS/MS(13). via certo desconforto na equipe em decorrência de sua nova
função, com dificuldade de aceitarem sua liderança, res-
RESULTADOS E DISCUSSÃO saltando especialmente sua pouca experiência e conheci-
mento. Essas duas características – experiência e conheci-
mento – também foram destacadas em outro estudo, como
As enfermeiras incluídas no estudo eram formadas em estando dentre as mais importantes para ser um líder efi-
três diferentes instituições de Santa Catarina, sendo que caz(14). A fala a seguir ilustra esta percepção:
mais de 90% eram profissionais do sexo feminino. A forma-
tura dos participantes ocorreu em: 2000 (19,35%); 2001 O meu maior desafio foi fazer com que os meus colegas me
(12,91%); 2002 (25,81%); 2003 (22,58%) e 2004 (19,35%). aceitassem como enfermeira, porque se eu era técnica e daqui
As atividades profissionais começaram em hospital para a pouco eu passo para enfermeira. Era a mim que eles teri-
38,7%; Programa de Saúde da Família (PSF) para 19,35%; am que se reportar e muitos não aceitavam. Então esse foi
Secretarias de Saúde 19,35%; Instituições de ensino um desafio que tive. Fazer com que as pessoas acreditas-
16,124%, no qual ministram aulas em cursos técnicos de sem em mim e me respeitassem como enfermeira (E5).
enfermagem ou superior de enfermagem; e 6,48% não in- As relações harmoniosas no trabalho são fundamentais
formaram o local do seu primeiro emprego. para a auto-realização. Encontrar um ambiente propício e o
A transição da academia para o trabalho é percebida apoio dos que estão mais próximos, constituem um obstá-
pelas enfermeiras como um momento desafiador, de mui- culo a ser vencido pelas enfermeiras recém-formadas. Mes-
tas descobertas, frustrações, alegrias e realizações. No pre- mo apontando dificuldades nas relações com a equipe, as
sente texto, abordaremos duas categorias que represen- participantes perceberam que teriam que mostrar sua com-
tam os principais desafios enfrentados no início das ativi- petência e capacidade para liderar uma equipe. Manter ca-
dades profissionais: a) Liderança da equipe e b) Compe- nais de comunicação abertos foi uma opção encontrada.
tência e habilidade técnica. Estabelecer um bom relacionamento com a equipe, es-
pecialmente através de uma comunicação adequada é um
requisito essencial para um líder(14). Um líder precisa estar
(a)
Atlas Ti é um software desenvolvido para análise qualitativa de dados, tendo
preparado tanto para receber apoio quanto críticas; deve
como forma de construção a Grounded Theory. despertar confiança; ser digno de crédito, demonstrando

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coerência com a filosofia do serviço e congruência em suas ram que 50% das entrevistadas referiram que não têm com-
idéias, discurso e ações. Conquistar a confiança é um re- petência administrativa adequada para exercer cargos de
quisito para a liderança eficaz, e, para isso, ações e crenças chefia, incluindo aí os aspectos de liderança e políticos. En-
professadas devem ser congruentes(14). fermeiras que não ocupam cargos de chefia referiram senti-
rem-se melhor preparadas para sua prática profissional(2).
A liderança foi confundida por algumas enfermeiras
como necessidade de mostrar sua autoridade, num exercí- O desconhecimento das políticas públicas e da organi-
cio de auto-afirmação. Deixar claro quem era a chefe foi zação e estruturação do SUS foi um outro aspecto que in-
uma estratégia usada por algumas. No entanto, não tinham terferiu na prática das enfermeiras recém formadas que
clareza sobre a efetividade dessa maneira de lidar com a iniciaram atuando na atenção básica. Novamente, apon-
equipe. Essa autoridade apresentada pelas integrantes do tam lacunas em sua formação profissional, destacando que
estudo é considerada uma necessidade de recém forma- muitas vezes esses conteúdos são desenvolvidos nos semes-
dos mostrarem sua autoridade perante a equipe que, na tres iniciais do curso, quando ainda não têm maturidade
sua maioria, é formada por técnicos de enfermagem. No para identificar a aplicabilidade dos mesmos.
entanto, quando a pessoa emprega muita energia para al-
cançar este propósito, pode gerar reações negativas com A falta de preparo para lidar com a complexidade dos
prejuízo ao trabalho coletivo(15). aspectos políticos de diferentes âmbitos revela a interfe-
rência de fatores externos na prática profissional e da difi-
Assumir o papel de gerente foi outro desafio percebido culdade em gerenciar essas questões, que vão para além
pelas enfermeiras. As dificuldades ressaltadas com relação à da habilidade técnica.
gestão tinham diferentes focos, tais como: falta de preparo
[...] acho que enfermeiro não sai preparado pra enfrentar a
político, falta de experiência prática e relacionamento com a
dificuldade política que é trabalhar em municípios peque-
equipe. Destacaram que a formação não lhes forneceu o
nos. Fica tudo amarrado, a gente não sai preparado pra
preparo suficiente, ou melhor, não abordou toda a comple-
isso. Então isso é uma coisa que eu senti bastante dificul-
xidade que envolve, especialmente, a gerência de pessoas.
dade, é a relação de gestão com o profissional. Então,
[...] a Universidade não te passa, como lidar com o compor- muitas vezes, é muito político e isso realmente, eu passei
tamento das pessoas, como coordenar uma equipe, como por muitas dificuldades (E9).
lidar com os problemas, com a coordenação de escala, com
O reconhecimento do ambiente político permite a de-
o problema do filho da sua funcionária que não veio traba-
tecção e o aprofundamento da análise de diversos fatores
lhar, com as críticas do colega, com a rixa de não querer
receber o funcionário novo, por todos esses problemas de
que interferem direta ou indiretamente nas atividades co-
relacionamento interpessoal nas equipes (E8).
tidianos dos serviços de saúde. A identificação dessas es-
truturas, presentes em todos os serviços de saúde facili-
A insegurança decorrente da dificuldade gerencial se tam o desenvolvimento das atividades dos recém forma-
expressou no cotidiano do trabalho em equipe sendo con- dos tanto no planejamento e como no desenvolvimento
siderada uma das principais fontes de conflitos tanto inter- de ações mais flexíveis e com maior visibilidade(16).
nos quando nas interações com os demais membros da
equipe. Isso resultou em insegurança para assumir as inú- A liderança da equipe de enfermagem é um assunto
meras responsabilidades, evidenciando um desequilíbrio que tem promovido várias discussões na área, especial-
entre a complexidade de suas atividades profissionais e o mente acerca da possibilidade de sua aprendizagem como
preparo que tiveram para tais atividades. Muitas vezes, o algo que pode ser desenvolvido durante a formação pro-
resultado dessa situação foram sentimentos de frustração fissional. A necessidade de algumas características pes-
que interferiram na conquista de seus papéis de líderes da soais tais como, dinamismo, comunicabilidade, honesti-
equipe. dade e credibilidade, muitas vezes, parecem se contra-
por à possibilidade de aprenderem(14). No entanto, as pró-
[...] era a questão de ter que assumir a responsabilidade prias enfermeiras têm considerado que é possível tornar-
de uma equipe, de ter que responder por esta equipe, eu se uma líder, mas apontam a necessidade de algumas
sem experiência ter que saber o que eles não sabem, de condições, tais como: experiência, conhecimentos técni-
ter que dar conta, porque eu pensava que aquela equipe cos e gerenciais, além de um bom preparo político. Nes-
achava que eu sabia e que eu iria ser o apoio deles (E7). se sentido, enfermeiras recém formadas podem necessi-
[...] eu era a única enfermeira da unidade e eu tinha que tar de um maior suporte em suas primeiras experiências
me virar, e às vezes mesmo conversando com um auxiliar profissionais.
sobre um procedimento, eles poderiam até me tirar dúvi-
da, mas tinha outras coisas que era só função do enfer- Competência e habilidade técnica
meiro e era complicado (E1).
Os desafios relacionados à competência e a habilidade
A percepção de que não há um preparo adequado das técnica envolveram tanto a especificidade do cuidado em
enfermeiras para assumirem a liderança da equipe de enfer- áreas de especialidades, quanto competências genéricas da
magem também foi destacada em outro estudo. Encontra- prática cotidiana do enfermeiro que deveriam ter sido ad-

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quiridas durante a formação acadêmica. Lidar com o usuá- qual as enfermeiras recém formadas expressaram sentir
rio, destacando o exame físico, a consulta de enfermagem, insegurança, ansiedade e até angústia em prestar cuidado
tanto do ponto de vista da realização de procedimentos a pacientes em unidades de maior complexidade(11).
quanto da base teórica necessária para a tomada de deci-
A habilidade para desenvolver procedimentos técni-
sões, foi apontado por algumas das entrevistadas como uma
cos é supervalorizada e, às vezes, confundida com capaci-
lacuna do conhecimento.
dade técnica profissional. Um profissional qualificado é
A falta de habilidade para o desenvolvimento de alguns alguém que é capaz de abranger um repertório de habili-
procedimentos é tomada como falta de competência e prepa- dades e conhecimentos, em diferentes formas e em dife-
ro para a prática profissional. As enfermeiras, algumas vezes, rentes contextos, para exercer a sua atividade profissio-
sentem-se vulneráveis e até merecedoras das críticas que re- nal da maneira competente(17). As competências profissi-
cebem. Para superar essas limitações, buscam apoio em ou- onais se constroem como um processo e na progressão
tros colegas ou junto aos técnicos de enfermagem da equipe. de uma situação de trabalho a outra(18). Ser competente
No entanto, os relatos dessas buscas nem sempre foram de em uma determinada profissão não implica apenas pos-
sucesso e satisfação, pois tiveram ainda mais evidenciadas suas suir um vasto conhecimento, é preciso saber utilizar, inte-
inseguranças e confirmaram não ter o preparo adequado e grar ou mobilizar esses conhecimentos diante de uma si-
suficiente para assumirem a liderança de uma equipe. tuação real de ação(19).
Quando fui fazer consultas de enfermagem para criança, Diferentes estudos reafirmam esta condição, evidenci-
foi complicado porque tu aprendes muito o básico, depois ando que os cursos de graduação, apesar de terem pro-
tu tens que fazer consulta de ACD e ficas com medo de postas de formação de enfermeiros críticos, voltados para
estar fazendo alguma coisa que de repente não era para ti atender os requerimentos da sociedade ainda utilizam abor-
estar fazendo, tipo exame físico. Porque na faculdade não dagens tradicionais centrados em modelos curativos(20-21).
aprendes a fazer exame físico como é para fazer, e depois
vais ter que fazer o exame físico e vais ter que correr atrás
CONSIDERAÇÕES FINAIS
do teu prejuízo da época de faculdade (E8).

Com certeza tinha insegurança. Determinadas técnicas, Os achados deste estudo revelam que as enfermeiras
procedimentos eu não realizei na academia, só depois de recém graduadas ao entrarem para o mundo do trabalho
formada. Então, às vezes, pedia pra ter alguém comigo,
se defrontam com situações estressantes decorrentes da
mesmo que fosse um técnico ao meu lado, para me dar um
falta de convergência entre o que aprendem na academia
pouquinho de segurança. Se eu não soubesse, ia perguntar
e o que encontram na prática. As iniciantes na prática da
o que fazer na hora. Nessa questão ainda ficou a desejar na
academia. Teve técnica que nem cheguei a ver, na acade-
enfermagem foram desafiadas a buscar formas de enfren-
mia. Então é isso, senti dificuldades de estar realizando pro-
tar esta transição. Tiveram como principais desafios a lide-
cedimentos que não tive contato durante a academia (E24). rança da equipe, o gerenciamento e as habilidades técni-
co-políticas, além da competência e habilidade técnica para
Outro conflito indicado pelas enfermeiras é entre a for- o desempenho de seu papel.
mação generalista do enfermeiro e a organização dos ser-
viços de saúde, especialmente na área hospitalar, que têm Os achados sugerem que a formação de profissionais
como orientação as especialidades. É freqüente uma re- competentes necessita estar alicerçada em abordagens
cém formada ir trabalhar em áreas de especialidade, sem que valorizem não só a racionalidade, mas principalmen-
ter habilidade técnica. O desafio de superar dificuldades te a subjetividade que faz parte do cotidiano da saúde. É
passa a fazer parte do cotidiano das recém formadas, pois, com a subjetividade que se expressa nas relações cotidia-
como ressaltado anteriormente, nem sempre foi possível nas que a enfermeira está envolvida e para a qual não se
encontrar o apoio necessário. sente preparada.

Quando entrei na hemodiálise não sabia nada, nada, por- As acadêmicas de enfermagem passam o maior tempo
que realmente é uma área específica, não sabia ligar uma do curso vendo e realizando a prática assistencial numa pers-
máquina, não sabia puncionar um paciente, não sabia ab- pectiva micro, estudando e praticando o cuidado de uma
solutamente nada, e a enfermeira que trabalha aqui, que é pessoa ou de um grupo de pessoas, não se envolvendo com
uma enfermeira especialista de 26 anos, então minha nos- questões macro, tais como as políticas institucionais e com
sa senhora. Eu saia daqui chorando todos os dias (E6). suas interrelações. Ao serem integradas ao mundo do traba-
lho percebem que a realidade se apresenta com uma com-
Cuidados de alta complexidade permanecem um desa- plexidade superior àquela para a qual foram formadas, onde
fio, especialmente porque nem sempre há cursos de espe- as relações conflituosas, as lutas políticas, a burocracia dos
cialização disponíveis ou que seja acessíveis. Assim, formar serviços de saúde se contrapões, muitas vezes, a visão, até
enfermeiras generalistas e imediatamente após essa for- certo ponto, romântica que tinham da profissão.
mação colocá-las em áreas super especializadas, constitui
uma prática dos serviços de saúde, o que tem trazido con- Nesta perspectiva, destacamos a necessidade de repen-
flitos para estas profissionais e certo risco para os usuários. sar a formação acadêmica, não só em relação a revisão de
Essa situação foi destacada também em outro estudo no conteúdos, mas também de construir estratégias de inte-

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gração das estudantes ao mundo do trabalho, antecipan- Ressaltamos também a necessidade de humanizar a in-
do o que irá encontrar e como melhor ser melhor prepara- serção das enfermeiras recém formadas no mundo do tra-
do para essa transição. É preciso pensar uma formação ori- balho. É preciso criar estratégias de acolhimento a estas
entada para o trabalho que integre habilidades teóricas e novas profissionais, compreendendo que uma formação
práticas, atitudes e valores éticos, ao mesmo tempo em que generalista não lhe dá condições imediatas de assumir áre-
contemple conhecimentos gerais e específico(4). as super especializadas, com práticas diferenciadas.

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Rev Esc Enferm USP Correspondência:OsSabrina
desafiosda Silva de Souza
enfrentados pelos iniciantes
2010; 44(2):511-6 Rua Francisco Antonio da Silva,
na prática 1954 - Sertão do Maruí
de enfermagem
www.ee.usp.br/reeusp/ CEP 88122-010 - São José, SC, Brasil M, Bonetti A,
Silva DGV, Souza SS, Trentini
Mattosinho MMS

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