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Introdução.........................................................................................................p.2
I. Reflexões preliminares sobre censura e liberdade de expressão.................p.7
II. Breve histórico da censura no Brasil..........................................................p.11
III. A censura no regime militar.......................................................................p.13
IV. Ditadura, pornochanchada e a censura ao cinema..................................p.16
V. Censura à pornochanchada – a DCDP e a SDCP na prática: estudos de
casos...............................................................................................................p.25
VI. Parte prática: a videoinstalação................................................................p.49
Conclusão.......................................................................................................p.59
Anexo 1 – DVD de dados...............................................................................p.60
Bibliografia......................................................................................................p.61
Introdução
O trabalho traça um panorama do caminho percorrido pelo projeto “Prazeres
Proibidos” durante um ano de Residência NECMIS e mostrar seus resultados
tanto no que diz respeito à pesquisa teórica quanto à sua realização prática, na
forma de uma videoinstalação.
O projeto “Prazeres Proibidos” trata do assunto da censura cinematográfica aos
filmes brasileiros durante a ditadura militar, com ênfase nos anos 1970, época
de atuação do S.C.D.P (Serviço Federal de Censura de Diversões Públicas) e
da D.C.D.P. (Divisão de Censura de Diversões Públicas). O foco foram os
filmes do gênero da pornochanchada, o mais visto e produzido durante o
período no Brasil.
“Prazeres Proibidos” é um desdobramento de um projeto maior e mais longo,
no qual venho trabalhando há mais de quatro anos. Trata-se de meu primeiro
longa-metragem, “Histórias que nosso cinema (não) contava”, que realiza uma
releitura histórica da década de 1970 apenas com imagens e sons de uma
seleção de filmes da pornochanchada, utilizando a técnica do remploi, ou do
filme de montagem. O longa-metragem está em finalização (com o prêmio do
Edital de Finalização de Longa-Metragem do Proac 2015) e deve ser lançado
no ano que vem, quando a videoinstalação prevista no projeto também deverá
ser realizada.
Minha motivação para esse projeto tem origem em minha pesquisa para o
longa-metragem, durante a qual assisti mais de cento e cinquenta filmes de
pornochanchada. Percebi que o assunto da censura era de extrema
importância, mas não caberia de maneira aprofundada no filme.
Graças ao site Mémoriacinebr, fruto do doutorado de Leonor de Souza Pinto,
tive acesso a uma grande quantidade de documentos da censura, cujos
originais se encontram no Arquivo Nacional em Brasília. Debrucei-me sobre
esses documentos, atendo-me aos pareceres dos técnicos de censura e às
listas de cortes exigidos por eles para a liberação dos filmes.
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Nos anos 1970, cada filme era visto por um grupo de três censores, que
indicava os cortes que o filme deveria fazer para ser liberado. Caso os trechos
cortados fossem muitos longos e impedissem o entendimento do filme, os
censores recomendavam sua interdição completa, o que significava um
desastre para os cineastas e produtores da época. Na tentativa de evitar a
interdição de seus filmes, os produtores cinematográficos se dispunham a
negociar o que fosse com a censura. Assim, aceitavam exibir seus filmes
retalhados pelos “tesourinhas” do Estado.
Analisando as listas de cortes exigidas, percebi que algumas cenas
censuradas se encontravam nas versões dos filmes que eu possuía. Descobri
então que os produtores da época normalmente não cortavam seus originais,
mas sim as cópias do filme. Como muitas das versões digitalizadas de filmes
de pornochanchada que podemos encontrar hoje foram retiradas de sua
reprodução na televisão (tendo, dessa forma, que passar por outro processo de
censura, dessa vez especifico para exibição em televisão), alguns desses
filmes puderam restituir suas cenas cortadas. Comecei a juntar essas listas de
cortes com os filmes que possuem versão digital integral, editando apenas as
cenas e diálogos cortados. Foi assim que comecei a estruturar a
videoinstalação “Prazeres Proibidos”, na qual pretendo exibir esses
documentos e projetar os trechos censurados. Cheguei na residência já com
essa ideia, mas o processo fez com que ela mudasse bastante, como veremos
a seguir.
No primeiro semestre da residência NECMIS, discutimos três bibliografias
principais no intuito de melhor compreender o que é o contemporâneo. Com
cada bibliografia, procurou-se discutir e definir um conceito especifico que
ajuda a entender o que é a sociedade pós-moderna. Começamos pelo teórico
polonês Zygmunt Bauman e seu conceito de ambivalência, seguindo para o
americano Christopher Lasch e a sociedade narcisista, e terminamos com o
filósofo francês Gilles Lipovestky e sua análise da “era do vazio”. As discussões
e os termos abordados durantes esse primeiro momento na residência
NECMIS serão inseridos nesse trabalho conforme sua pertinência para o
assunto, e não abordarei, portanto, cada texto discutido separadamente.
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Começarei por uma breve introdução ao tema da censura, discutindo sua
origem histórica e analisando o que é a tão prezada liberdade de expressão.
Em seguida, falarei rapidamente sobre a evolução da censura no Brasil, desde
sua chegada em 1808 com a corte portuguesa até o golpe militar.
Aprofundarei-me então no funcionamento da censura durante a ditadura militar,
sustentando a tese de que a censura moral era tão constante quanto a censura
política. Finalizando a parte teórica, analisarei dois casos de filmes censurados
e seus documentos oficiais: “O Enterro Cafetina”, filme de 1971 estrelando
Jece Valadão, que teve trechos cortados tanto por censura moral quanto por
censura política, e “Cangaceiras Eróticas”, o filme brasileiro mais visto de 1974
segundo a Ancine, que teve a recomendação de ser completamente interditado
e acabou liberado com aproximadamente quinze minutos de corte.
A parte final será dedicada à parte prática de meu projeto, onde explicarei sua
realização e falarei sobre as mudanças sofridas durante o processo de
residência. Junto com esse trabalho há um DVD de dados, onde se encontram
três anexos, contendo o vídeo com os trechos censurados, as imagens da
expografia da videoinstalação e os documentos da censura referentes aos
estudos de caso apresentados nesse trabalho.
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I. Reflexões preliminares sobre censura e liberdade
Ao propor uma reflexão sobre a censura ao cinema brasileiro no período da
ditadura militar, parece importante começar por estabelecer o que é a censura,
quais seus propósitos e seus modos de funcionamento. Lato sensu, a censura
pode significar repreender, reprovar ou condenar uma ação, algo ou alguém.
Dessa forma, a censura em si não teria uma conotação negativa, já que muitas
vezes é útil para o bom funcionamento do individuo (no caso, a censura no
sentido freudiano) e da sociedade.
Sem me ater a uma longa exposição histórica da evolução da censura, acredito
que o mais importante é constatar, já neste caso inicial, uma das principais
características da censura, que permeará suas diversas manifestações ao
longo da história: a censura está diretamente ligada ao poder e à manutenção
do status quo, seja no sentido político, religioso ou moral.
No que diz respeito ao papel da censura no Estado moderno, parece ser útil
retomar o conceito de ambivalência, tal como elaborado pelo teórico polonês
Zygmunt Bauman. Grosso modo, Bauman define a modernidade como o
momento de tentativa de racionalização extrema de todos os aspectos da vida
em sociedade, ou uma tentativa de impor ordem ao caos. Marcada por avanços
científicos e tecnológicos e o triunfo da “luz da razão”, a modernidade culmina
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no Holocausto, horror muito mais racionalizado do que muitos gostariam de
assumir. Segundo Bauman, a ambivalência nasce justamente da inevitável
impossibilidade de tudo racionalizar e categorizar. O que não podemos definir
ou racionalizar, fica à margem deste processo. Desta forma, o próprio ato de
categorizar gera mais ambivalência, já que é impossível ordenar o mundo em
sua multiplicidade. Nas sociedades modernas ocidentais, que prezam pela
ordem e pela razão, essa impossibilidade de categorizar e compreender gera
um profundo incômodo, que Bauman (1991, p.9) explica da seguinte forma:
A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais
de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma
falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve
desempenhar. O principal sintoma da desordem é o agudo
desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler
adequadamente a situação e optar entre ações alternativas. [...].
Classificar, em outras palavras, é dar ao mundo uma estrutura:
manipular suas probabilidades, tornar alguns eventos mais prováveis
que outros, comportar-se como se os eventos não fossem causais ou
limitar ou eliminar sua causalidade.
A atividade racional de categorizar se relaciona diretamente à questão da
censura, que nada mais é que a tentativa de ordenar e categorizar o que é bom
ou mau dentro da produção e divulgação de conhecimento e informação. É
notável que dentro dos projetos totalitaristas que marcaram o século XX,
baseados no que Bauman chama de “Estado jardineiro”, a censura teve papel
da maior importância. São conhecidos os casos de censuras a filmes, obras de
arte e publicações na Alemanha nazista, na União Soviética stalinista, etc.
Veremos como isso se aplicou no Brasil durante o regime militar adiante.
Também nos aprofundaremos nas ambiguidades que a censura gera a seguir.
No que diz respeito à censura no plano simbólico, segundo Maria Cristina
Castilho Costa (2014, p. 27), coordenadora do Observatório de Comunicação,
Liberdade de Expressão e Censura da USP (OBCOM-USP),
[...] a censura é, provavelmente, um processo psicossocial tão antigo
quanto o desenvolvimento da capacidade simbólica do seu humano,
pois, desde os primórdios da cultura, estabeleceu-se o conflito entre
uma subjetividade única e indivisível que nos distingue como
individualidade e a força hegemônica da cultura forjada nas relações
estabelecidas pela vida coletiva.
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A incursão na teoria psicanalítica durante a residência, através da leitura de
Christopher Lasch, provocou uma reflexão sobre a relação entre o termo
censura no uso da psicanálise e em seu uso político, ou sobre como a censura
individual está ligada à censura pública. A censura em Freud é uma função
crítica do superego, importante para o bom funcionamento do aparelho
psíquico do sujeito, mas que ao mesmo tempo está na base da resistência e do
recalque. Como já dito, pode-se entender que a censura por si só não tem um
valor negativo, uma vez que exerce o papel de regular os impulsos do id e
desta forma permitir que o sujeito viva em sociedade. Segundo Lacan (1979, p.
26), “trata-se de uma instância que cinde o mundo simbólico do sujeito, corta-o
em dois, numa parte acessível, reconhecida, e uma inadmissível, interditada.”
Essa ação da censura no mundo simbólico do sujeito interessa particularmente
quando pensamos na censura à criação artística, como é o caso do cinema.
Como os planos censurados podem se relacionar a uma espécie de conteúdo
inconsciente da sociedade, barrado pelos censores? O que eles trazem à tona
que é preciso reprimir e recalcar? É interessante notar também que Freud
aponta as metáforas e associações como um recurso dos sonhos para driblar a
censura e trazer à tona conteúdos inconscientes barrados, recurso que é
igualmente muito usado na criação artística para driblar os censores na vida
real.
As reflexões sobre a censura vêm quase sempre acompanhas por seu
antônimo complementar “liberdade de expressão”. Uma discussão que
apareceu durante os encontros teóricos da residência NECMIS, e que parece
pertinente de ser aprofundada neste trabalho, é a definição do que entendemos
por liberdade. A palavra liberdade muitas vezes parece ser um conceito
universal, utilizada de modo corriqueiro em nossas falas diárias. No entanto,
seu significado não é tão claro e pode ser interpretado de maneiras
completamente opostas dependendo do interlocutor. Como afirmou Venício A.
de Lima (2014, p. 11), “a liberdade talvez seja o valor mais invocado do mundo
contemporâneo, apesar de entendido nas mais variadas maneiras.”
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Para entender o conceito de liberdade dentro do pensamento moderno, é
necessário fazer uma distinção básica entre duas noções de liberdade, uma no
sentido republicano e outra no sentido liberal, afim de determinar que valores
estamos evocando ao cita-la neste trabalho. De forma superficial, poderíamos
dizer que a liberdade no sentido republicano está associada à esfera pública, à
participação ativa na vida pública e politica, derivando da tradição da
democracia clássica grega, na qual a liberdade era acima de tudo política. Está
relacionada à chamada “liberdade positiva”. A liberdade no sentido liberal está
associada à “liberdade negativa”, que basicamente define a liberdade como
ausência de interferência externa – particularmente do Estado - nas ações
individuais. A liberdade neste sentido está colocada mais na esfera privada e
menos no campo da vida pública.
Tanto uma quanto a outra reconhecem a liberdade de expressão como valor
essencial da democracia. No entanto, cada uma terá uma interpretação
diferente sobre o papel do Estado na prática dessa liberdade. Para a tradição
liberal, o Estado deve se abster de qualquer interferência na vida privada, o
que inclui não interferir na liberdade de expressão individual. As interferências
do Estado nesse sentido são tidas como uma forma de censura ou de
cerceamento da liberdade individual. Já na tradição republicana, “a liberdade
de expressão é entendida como liberdade de deliberação em nome do
interesse público (...) Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos possam
exercer igualitária e plenamente a liberdade de expressão.” (A. DE LIMA, 2014,
p. 12). Nesse sentido, a intervenção do Estado seria necessária para garantir
tanto a liberdade de expressão individual quanto o respeito às leis e regras que
regem a sociedade. Esta interpretação deriva do primeiro documento ocidental
a declarar a liberdade de expressão como um direito universal: a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada na ocasião da Revolução
Francesa, em 1789. De acordo com ela,
o
Artigo 10 – Ninguém pode ser aquietado pelas suas opiniões,
incluindo opiniões religiosas, contando que a manifestação delas não
perturbe a ordem pública estabelecida pela Lei.
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o
Artigo 11 – A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é
um dos mais preciosos direitos do Homem;; todo cidadão pode,
portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia,
pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.
Entende-se que uma preza prioritariamente pela liberdade de expressão de
uma cidadania, enquanto a outra prioriza a expressão de uma individualidade.
Idealmente, a expressão da individualidade e o exercício da cidadania
deveriam conviver. Na prática, no entanto, sabe-se que essa convivência é
difícil. Sem eleger (ainda) qual tradição acredito estar mais correta, sublinho a
importância de manter essas reflexões em mente ao longo da continuação
desse trabalho.
II. Breve histórico da censura no Brasil
Acredita-se que a censura chegou ao Brasil junto com a Corte portuguesa, ao
redor de 1808. Acompanhando a imprensa, as universidades, o
desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte, vem a censura,
fazendo parte da tentativa de transformar o caótico país de colonizados em um
país apto a abrigar os colonizadores portugueses, detentores do saber e da
razão. Segundo Ricardo Cravo Albin (2002, p. 11), no ano de 1808
[...] foi criada a censura brasileira com a nomeação dos censores
régios, que deveriam examinar papéis e livros, cuidando para que
nada fosse impresso e divulgado contra a religião, o governo e os
bons costumes.
É importante notar que a censura se volta tanto para a sustentação do governo
português quanto para os bons costumes. Há claramente uma preocupação
moralizadora e pedagógica da censura, no sentido de transformar o Brasil em
um país “civilizado” e de bons costumes. Se essa é uma das funções
predominantes de quase todas as aplicações da censura, no Brasil essa
tendência moralizadora será ainda mais forte e permeará toda a nossa história,
sendo um elemento importante para compreender o funcionamento da censura
durante o regime militar, como discutiremos mais adiante. Retenhamos por ora
essa informação sobre a chegada da censura ao Brasil.
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O primeiro serviço oficial de censura data de 1811, com o Aviso no 41 do
príncipe Regente, que dispunha sobre as normas censórias. Em 1845, funda-
se o Conservatório Dramático Nacional, que tinha como função, entre outras
coisas, cuidar da censura de espetáculos teatrais. Dois anos após a
proclamação da República, a censura institucionalizou-se com a Constituição
de 1891. O decreto imperial subordinava a censura ao Departamento de
Polícia. Notemos aqui outro dado importante: a censura no Brasil já era, no
final do século XIX, caso de policia.
Em 1928, durante o governo de Washington Luiz, foi criado um novo órgão
com objetivo de censurar os espetáculos públicos: a Censura das Casas de
Diversão. É importante observar que a censura à imprensa não existia
oficialmente desde o final do Império, prevalecendo a censura às “diversões”.
Isso será mudado em 1939, com a criação do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), dentro do contexto do Estado Novo. O DIP tinha a função
de censurar tanto a imprensa quanto as chamadas “diversões públicas” e foi
responsável por unificar e transformar de Estaduais para Federais as
atividades da censura.
O DIP durou até a queda de Getúlio Vargas, sendo substituído em 1946 pelo
Serviço Federal de Censura de Diversões Públicas (SCDP), tido como o “pai da
D.C.D.P (Divisão de Censura de Diversões Públicas)”. O Decreto foi mantido
mesmo após a Constituição de 1946 e “se constituiu na coluna vertebral do
aparelho censório repressor com que o regime militar apertaria todos os
parafusos.” (CRAVO ALBIN, 2002, p. 13) Ao contrario do DIP, o SCDP
censurava apenas as diversões públicas, separando-as da imprensa, e tinha o
objetivo de preservar “a moral e os bons costumes”, fazendo parte do
Departamento Federal de Segurança Pública. Com a mudança da capital para
Brasília em 1960 e como a Constituição de 1946 não estabelecia se a censura
era responsabilidade Federal ou Estadual, ocorreu um período de confusão
burocrática, em que “um filme era censurado pelo governo federal em Brasília
(onde pagava taxa), em seguida pelo Governo Estadual (onde também pagava
taxa) e, finalmente, pelo Juizado de Menores de cada Estado.” (CRAVO ALBIN,
2002, p. 14)
10
Uma prática comum e importante de ser notada era a participação de
intelectuais e jornalistas na censura até o governo de João Goulart. Segundo
Inimá Simões (1998, p. 29), figuras como Prudente de Morais Neto, Vinicius de
Morais e Josué Guimarães visitavam recorrentemente a repartição,
participando da censura de cinejornais, filmes e outras obras. Outra curiosidade
que diz respeito ao papel dos intelectuais na censura pré-golpe era a polêmica
em torno de quem deveria exercer a censura: alguns defendiam que deveriam
ser os policiais da Polícia Federal, enquanto uma parte da opinião pública
acreditava que ela deveria ser feita por “intelectuais” do Ministério da Educação
e Cultura (MEC). Uma minoria da classe artística, como o poeta Carlos
Drummond de Andrade, era contra a censura exercida por intelectuais, uma
vez que “poderia correr o risco de institucionalizar-se e tornar-se absorvida
como um fino licor.” (CRAVO ALBIN, 2002, p. 15)
III. A censura no regime militar
Conforme já dito, a censura é um braço que sempre acompanha organizações
sociais baseadas no que Bauman chama de “Estado jardineiro”, como era o
caso do regime militar. Analisaremos seu funcionamento neste período
histórico especifico agora. No entanto, vale recordar que a censura já era
bastante ativa e consistia em uma grande preocupação do Estado muito antes
do golpe. Na realidade, desde a chegada da corte portuguesa ao Brasil em
1808, a censura nunca deixou de ter um papel importante em nossa cultura.
É igualmente interessante notar que o modus operandi da censura não foi
modificado imediatamente pelos militares, o que está claramente relacionado
ao próprio histórico da ditadura, que endureceu suas leis após uma primeira
fase de 1964 a 1968 que muitos equivocadamente chamam de “ditabranda”.
No entanto, esse fato também indica que a censura brasileira dos tempos
democráticos convinha ao controle pretendido pelo regime autoritário.
A mudança do Departamento Federal de Segurança Pública (onde o SDCP,
que ainda era o órgão responsável pela censura, estava localizado) para
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Brasília em 1965 trouxe um problema que perdurou nos primeiros anos do
regime militar: a falta de pessoal capacitado no Planalto Central. Os cargos
para o Serviço de Censura não foram completamente preenchidos, causando a
convocação de funcionários de outros departamentos e ministérios para
trabalhar na repartição (o que, aliás, era uma prática bastante recorrente).
Dessa forma, “esposas de militares, classificadores do Departamento de
Agropecuária do Ministério de Agricultura, ex-jogadores de futebol, contadores,
apadrinhados ou meros conterrâneos de autoridades” (SIMÕES, 1998, p. 76)
passaram a exercer cargos de censores. É desnecessário apontar o
despreparo dessa nova leva de funcionários da censura.
Em 1965, criou-se o Instituto Nacional de Cinema, que tornou a censura a
filmes responsabilidade exclusiva da União, o que consolidava o projeto de
centralização cada vez mais rígida da censura em nível nacional. Entretanto, foi
só após o AI-5, em 1968, que a censura começou a ter características
especificas do regime militar e o serviço passou a se aperfeiçoar, com medidas
cada vez mais rigorosas. Em novembro do mesmo ano havia sido decretada a
lei no 5.536, que trazia determinações importantes sobre a atividade da
censura. Os censores passavam a ser denominados “técnicos de censura” e,
oficialmente, para preencher o cargo era necessário possuir curso superior em
uma das seguintes áreas: ciências sociais, direito, filosofia, jornalismo,
pedagogia ou psicologia. Cito os cursos aceitos pois me parece uma escolha
interessante e bastante significativa do que se esperava dos novos censores.
Na prática, a história foi outra. Para não ter que dispensar os antigos censores,
e passar pelo velho problema de falta de pessoal, foi criado o Curso Intensivo
de Treinamento do Censor Federal, ministrado por professores da UNB, da
PUC e da UFMG na Academia Nacional de Polícia. O curso servia como
substituto à formação superior. Destaco algumas das disciplinas do curso:
Psicologia evolutiva e social, Comunicação e Sociedade, Introdução à ciência
politica, Ética profissional e Filosofia da arte. Além destas, das áreas de
humanas, o curso incluía disciplinas sobre as técnicas de teatro, cinema e
televisão.
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Uma disciplina que merece destaque, e sobre a qual gostaria de falar com mais
detalhes, era a de Segurança Nacional. O principal objetivo desta disciplina era
habilitar os censores a reconhecer os artifícios e técnicas que os artistas
poderiam usar para “infiltrar conteúdo comunista” em suas obras. Os censores
deveriam ser caçadores de propaganda subliminar, uma vez que, segundo o
manual da disciplina, os conteúdos subversivos nem sempre são perceptíveis
ao olho leigo. Listo alguns dos “recursos dos comunistas” citados na apostila
do curso: especificação de argumentos;; fixação de conceitos insidiosos;;
deturpação sutil de ideias e expressões;; apoio da maioria (conceito de vox
populi);; reiteração alternada;; exploração dos mitos e dos “heróis-suma”. Ainda
segundo a apostila, esses recursos teriam como objetivo o solapamento das
instituições democráticas, a exaltação da violência, o levantamento de teses-
bandeiras, o desmantelamento das crenças religiosas, a destruição das
crenças básicas da sociedade democrática (como família e casamento), entre
outros. (SIMÕES, 1998, p. 108).
Hoje em dia, essas listas podem parecer completamente absurdas, mas dentro
do contexto da guerra fria e do pavor anticomunista, fazem muito sentido.
Lendo os relatórios, pareceres e listas de corte, foi importante levar em
consideração essas informações sobre a formação dos censores. Foi possível
notar a influência tanto das aulas de Segurança Nacional quanto de aulas de
psicologia e técnica cinematográfica, como iremos ver mais adiante, quando
analisarei alguns dos documentos da censura.
Em 1970, o Decreto-Lei Nº 1.077 estabelece uma novidade: a censura prévia a
livros e periódicos. Essa mudança será responsável pelos famosos casos de
receitas de bolo publicadas no lugar de notícias previamente censuradas em
jornais.
Finalmente, foi apenas em 1972 que um Decreto-Lei transformou o SCDP,
órgão criado durante o período democrático, na conhecida Divisão de Censura
de Diversão Públicas (DCDP), ativa até o ano de 1988, quando da
promulgação da Constituição. A DCDP continuaria sendo subordinada da
Polícia Federal e do Ministério de Justiça, como sua antecessora. As funções
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dos censores continuavam sendo basicamente as mesmas: zelar para que
conteúdos subversivos ou contrários à moral não fossem liberados. Alguns dos
artigos da DCDP enrijeceram a censura, como a institucionalização da censura
prévia a todas as manifestações artísticas e a obrigatoriedade de todos os
filmes brasileiros exibirem, antes de sua projeção, o Certificado de Censura
emitido pela DCDP. Na ocasião de sua estruturação, seus elaboradores
fizeram uma exibição de suas motivações, sublinhando que
O artista não pode, a título de deleite intelectual ou empreendimento
financeiro, levar ao público mensagens que não se coadunem com os
interesses de ordem intelectual, moral e cívica da coletividade. (...)
Esse principio, de o Estado interferir sempre que a ação individual é
julgada prejudicial a seus semelhantes, é uma conquista da
civilização- hoje universalmente aceita e consagrada – cultivada por
todos os governos do mundo. (CRAVO ALBIN, 2002, p. 19)
Nota-se a clara referência – e deturpação – da ideia republicana de que a
liberdade de expressão deve estar ligada a uma coletividade.
IV. Ditadura, pornochanchada e a censura ao cinema
Chegamos agora ao ponto central do projeto: a censura ao cinema brasileiro
durante o regime militar. É preciso esclarecer, no entanto, que apesar de haver
uma censura especifica ao cinema, os censores não tinham uma área
exclusiva de ação, ou seja, não julgavam apenas filmes, apenas música, ou
teatro. Todos eram submetidos a um sistema de rodizio, censurando diversos
tipos de “diversões públicas”. Isso indica que provavelmente as censuras aos
diferentes campos da arte se contaminavam a acabam por ter muitas
semelhanças.
Primeiro, gostaria de fazer uma breve observação sobre o cinema no geral. Por
sua capacidade de reprodução para grandes públicos, sabemos que o cinema
foi um ponto de transformação nas chamadas diversões públicas, sendo o
grande precursor da sociedade de cultura de massa. Essa informação é
importante por dois motivos. O primeiro é, como assinalou Inimá Simões (1998,
14
p. 30), o fato de que “o cinema – e muitas entidades perceberam rapidamente
isso – era uma força decisiva para destruir as tradições culturais.” Percebe-se
então que a censura ao cinema especificamente é da maior importância para a
preservação da moral e dos bons costumes. O segundo motivo será revelado
mais adiante.
Leonor de Souza Pinto (2014), organizadora do site Memoriacinebr, divide a
censura ao cinema brasileiro durante o regime militar em quatro fases:
- 1964 a 1966: fase moralista
- 1967 a 1968: período de militarização da censura
- 1969 a 1974: fase politico-ideológica
- 1975 a 1988: fase de distensão
Percebemos que as fases que a autora define estão diretamente relacionadas
às próprias fases do regime militar. Apesar de achar a divisão interessante,
discordo que as coisas tenham sido tão separadas. Tendo em vista o que pude
analisar nos documentos da DCDP especificamente sobre filmes da
pornochanchada, estou mais de acordo com a tese de Douglas Attila Marcelino
(2011), segundo a qual censura moral e censura politica coexistiram durante
todo o período da ditadura. Segundo o autor, a censura politica prevalece em
nossa memória coletiva, com casos notórios como as censuras às músicas de
Chico Buarque ou aos filmes de Glauber Rocha. No entanto, no cotidiano da
censura, era a questão moral que predominava.
Dessa forma, acredito que haviam duas linhas igualmente importantes e
contemporâneas da censura durante o regime militar: a censura moral e de
costumes e a censura política. Veremos que a distinção entre moral e política
não é tão clara e que, dentro do contexto do imaginário anticomunista, as duas
se misturavam ainda mais. No entanto, fica claro que o foco do meu trabalho é
a censura moral.
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Antes de me aprofundar na questão moral, gostaria de realizar um breve
histórico da relação entre pornochanchada e ditadura, pois acredito que muitas
contradições de ordem moral se revelarão dessa forma.
Em primeiro lugar, é importante entender o que afinal é a pornochanchada. O
nome pornochanchada é composto pelo prefixo porno, que indica o conteúdo
erótico do gênero, e pelo sufixo chanchada, gênero de comédia popular dos
anos 1950, realizado principalmente pela extinta produtora Vera Cruz. Apesar
de ter porno no nome, o gênero não tem nada de pornografia ou explicito. A
pornochanchada começa no Rio de Janeiro no fim dos anos 1960, com
comédias inocentes que geralmente mostravam playboys tentando se dar bem
com o maior número de mulheres possível. No entanto, logo verifica-se que o
componente erótico tem forte apelo com o público e passam a ser produzidos
filmes de todos os gêneros: pornowestern, pornoaventura e até pornopolitico. A
Boca do Lixo em São Paulo também começa a produzir este tipo de filme, com
algumas diferenças da produção carioca. Apesar da diferença de gêneros,
produção e até estética, todos os filmes produzidos nesta época – anos 1970 –
e com algum teor erótico serão classificados pejorativamente de
pornochanchada. Portanto, o que chamamos de pornochanchada neste projeto
nada mais é que a produção com teor erótico da Boca do Lixo, em São Paulo,
e do Beco da Fome, no Rio de Janeiro, durante os anos 1970. São os filmes
mais produzidos e mais vistos desta época, sendo que alguns ainda figuram na
lista de filmes brasileiros com maior bilheteria de todos os tempos. À título de
curiosidade, coloco aqui a lista de filmes com mais de 500.000 espectadores
de dois anos chave do período1. Os grifados em vermelho pertencem ao
gênero da pornochanchada:
1
Fonte: site da ANCINE, consultado em 15 de novembro de 2015.
16
1974. Filmes com mais de 500.000 espectadores: 13. Filmes que não são de pornochanchada: 2.
1977. Filmes com mais de 500.000 espectadores: 19. Filmes que não são de pornochanchada: 0.
É importante notar que a pornochanchada é absolutamente contemporânea ao
momento mais repressivo da ditadura. O gênero nasce menos de um ano após
o AI-5, com filmes como “Os paqueras” (1969), de Reginaldo Faria
(considerado por muitos a primeira pornochanchada) e “Adultério à brasileira”
(1969), de Pedro Carlos Rovai. Esse também é o ano da criação da
Embrafilme, órgão do Estado brasileiro que tinha como objetivo ajudar a
produzir e distribuir filmes nacionais, numa tentativa de finalmente estabelecer
a tão sonhada “indústria cinematográfica” brasileira. Como órgão oficial, a
Embrafilme obviamente tinha um programa ideológico, que tentava estabelecer
17
uma certa imagem que o cinema deveria criar da realidade brasileira. Os filmes
com a “estética da fome” do cinema novo não interessavam a essa
cinematografia oficial e o cinema marginal tampouco servia para criar a
imagem de Brasil desejada. A pornochanchada de maneira alguma surge como
cinema oficial, mas neste momento em que se faz tabula rasa do cinema
brasileiro e procura-se uma nova forma para ele, o gênero aparece como uma
diversão a principio inofensiva (deve-se lembrar que esses primeiros filmes
eram de fato bastante inocentes e se limitavam a um plano ou outro mais
ousados). Muitos cineastas do período justificam o gênero dizendo que ele foi
um produto da própria ditadura, que ao proibir e acabar com os movimentos
cinematográficos antecessores teria criado as condições para que a
pornochanchada se desenvolvesse e estabelecesse. Essa explicação me
parece simplista e não condiz exatamente com os fatos, uma vez que os
órgãos oficiais nunca incitaram esse tipo de produção.
Retomo aqui o conceito de “estranho” segundo Bauman (1991, p. 71), que
acredito provocar uma reflexão interessante sobre a pornochanchada. Ao falar
sobre o “estranho”, o autor diz: “Ele se situa entre amigo e inimigo, a ordem e o
caos, dentro e fora. Ele representa à deslealdade dos amigos, o gracioso
disfarce dos inimigos, a falibilidade da ordem, a vulnerabilidade interna.” Reflito
se a pornochanchada seria, nesse sentido, o estranho do cinema brasileiro.
Entre o cinema político dito subversivo, totalmente censurado e proibido, e a
produção cinematográfica oficial e de bom gosto, o gênero fica em um lugar
indefinido, ambivalente, não sendo inteiramente proibido, mas causando
desconforto nos órgãos oficiais. A pornochanchada não é nem amiga do
regime militar nem inimiga, e os órgãos oficiais tiveram muita dificuldade em
lidar com suas ambiguidades.
Outro lugar de ambivalência da pornochanchada era entre os críticos. A crítica
dos intelectuais de esquerda ao mau gosto das pornochanchadas se encontra
com a crítica de setores conservadores da sociedade, que também iam contra
o mau gosto e vulgaridade do gênero. Como afirmou Luiz Paulo Gomes (2014,
p.82), “se de um lado existe uma elite intelectual de esquerda que analisava as
pornochanchadas como alienação, do outro havia a direita que representava a
18
ditadura, de modo que o contexto acabava representando uma dupla censura
para quem produzia.”
Um fato importante e bastante simbólico eram as críticas que a própria
população fazia aos filmes e o apoio que uma parte da sociedade civil dava à
censura. Alguns até pediam uma censura mais dura e mais rígida com as
questões de ordem moral, enviando cartas aos órgãos oficiais de repressão.
Transcrevo aqui o trecho de uma carta de um morador de Juiz de Fora
criticando a pornochanchada “O Homem de Itu”:
Vendo no movimento de 31 de março de 1964 o anjo da guarda que
nos salvou da iminente ditadura comunista, preocupa-me o fato de
que, por ironia do destino, justamente nesse período de moralização,
é que a mediocridade do cinema nacional vem encontrar guarida,
para se tornar cada vez mais ousado. Oitenta por cento dos filmes
nacionais exploram, no gênero cômico-pornográfico, o sexo de forma
negativa, estimulando os jovens hodiernos à prática deste crime.
Outra carta afirma que “[...] sei que muitos irão gritar logo que deverá haver
liberdade de expressão de pensamento, mas liberdade não é o mesmo que
libertinagem [...]”2
Essas cartas, além de evidenciarem o apoio de uma parcela da sociedade civil
ao regime militar, o que fez com que muitas pessoas de refiram ao regime
como uma ditadura civil-militar, mostram que há uma grande preocupação de
parte da população com a questão moral. Fica claro o quão tênue é a linha
entre a moral e a política neste caso. Como escreveu Douglas Attila Marcelino
(2011, p. 188)
A associação entre moral e política, entre pornografia e subversão,
entre obscenidade e comunismo estava presente na convicção de
muitas pessoas, quer tenha sido utilizada de maneira estratégica,
como meio de propaganda política contra os setores adversários,
quer tenha sido empregada a temores reais de uma possível ação,
planejada em escala internacional, dos “inimigos da pátria e da
religião.
2
As transcrições de ambas as cartas podem ser encontradas em ATTILA MARCELINO (2011,
p. 210 e p. 200).
19
É oportuno lembrar que os anos 1970 foram o auge da revolução de costumes
e da chamada “era de aquarius”, que envolviam lutas por direitos das minorias,
adoção de novos métodos contraceptivos, uso de drogas, liberação sexual,
legalização do divórcio, etc. Dentre estes temas, as questões relacionadas ao
sexo pareciam ser as mais incomodas e é pertinente lembrar que o erotismo
não era um tema exclusivo do cinema nacional, estando presente em novelas,
programas de tv e na literatura da época.
Quanto à revolução de costumes sexuais, é importante notar que havia
[...] pelo menos dois processos distintos naquele período: a adoção
de novas posturas comportamentais por parte de uma parcela mais
intelectualizada da juventude, que rejeitava muitos dos padrões
morais e culturais tradicionais a partir da desilusão ou da busca de
confrontação com a ordem política vigente;; e o consumo, em grande
escola, de um erotismo sem preocupações de natureza ideológica,
pautado num mercado de bens culturais dessa natureza em planos
diversos [...] (ATTILA MARCELINO, 2011, p. 25)
Em outras palavras, a “revolução sexual” nem sempre era politizada. O
comportamento sexual mais permissivo não tinha necessariamente um caráter
de contestação.
A reflexão proposta por Gilles Lipovetsky (2005) sobre a liberação sexual e a
pornografia podem trazer considerações pertinentes para pensarmos a
pornochanchada neste contexto. O autor afirma que o fim das grandes
narrativas modernas, característica essencial da pós-modernidade, traz uma
indiferença generalizada e o desengajamento emocional, ao mesmo tempo em
que traz uma grande liberdade individual, já que o sujeito não precisa mais se
ater aos papéis impostos por uma religião, família ou organização coletiva. O
capitalismo autoritário dá lugar a um capitalismo permissivo e o homo politicus
dá lugar ao homo psicologicus, obcecado pelo autoconhecimento. Apesar da
pornochanchada não poder ser considerada pornográfica, seu erotismo
exacerbado permite estender a reflexão de Lipovetsky ao seu campo de ação.
20
Segundo o autor, a pornografia tem como finalidade aumentar a distância
emocional e enfraquecer o envolvimento afetivo, aumentando a indiferença
generalizada. Podemos pensar como a pornochanchada exerceu esse papel
de distanciamento emocional durante os anos 1970, dentro do processo que
chamamos de “modernização arcaica” do regime militar. Ao mesmo tempo em
que reiterava certos valores moralistas (o casamento, a família, a virgindade,
etc), também mostrava o quanto esses laços são frágeis e como todos, em
maior ou menor escala, são corruptíveis. O sexo livre e a liberação sexual
feminina estão presentes em quase todos esses filmes, mostrando que a
antiga estrutura social estava ficando ultrapassada. Em um dos filmes (“Eu
transo... ela transa”, 1972), o pai de família afirma para a mãe, tentando
reconforta-la “Nós somos frutos de uma sociedade de consumo, hoje em dia é
assim. Ninguém tem culpa!” Acredito que esses filmes possuíram um papel de
grande importância na modernização dos costumes brasileiros do período,
ajudando na instauração de uma indústria cultural e uma sociedade de
consumo, que exigiam valores mais maleáveis.
Voltamos aqui a nossa reflexão inicial sobre o cinema enquanto precursor da
sociedade de cultura de massa. Ao mesmo tempo em que era preciso
modernizar a indústria e os meios de comunicação e transporte, o regime
tentava manter certos valores arcaicos que entravam em conflito com o tão
desejado progresso. O cinema exerce então um papel ambíguo. Ao mesmo
tempo em que, junto com a TV, é o maior representante da cultura de massa e
de consumo – algo desejável para o regime militar -, o cinema apresenta uma
grande ameaça aos valores tradicionais. Parece que a própria contradição da
“modernização arcaica” do regime militar está incorporada no papel que o
cinema teve para esse processo. Na pornochanchada, esses valores
contraditórios estão absolutamente presentes. Ao mesmo tempo em que
mostram um suposto universo de libidinagem, onde todos transam com todos,
esses filmes reafirmam estereótipos e valores conservadores, como a honra do
macho, a importância da virgindade, etc.
Finalmente, gostaria de retomar mais a fundo uma questão que não deixou de
nos permear o tempo todo: a censura moral. Gostaria de reforçar a tese
21
segundo a qual a censura moral foi apenas uma continuação de um hábito ou
politica típicos da sociedade brasileira desde a vinda da corte portuguesa. Na
realidade, a censura como um todo durante o período militar não foi algo
inovador ou sem precedentes, mas sim a continuação (levada a extremos, é
claro) de diversas práticas que já faziam parte de nossa estrutura social.
Como bem apontou Carlos Fico (2011, p. 12), haviam duas linhas de
pensamento dentro do ideário autoritário do regime militar, segundo o qual o
Brasil poderia ser uma grande potência se conseguisse se livrar de certos
“obstáculos”. O autor diferencia uma linha “saneadora” e uma linha
“pedagógica”. A linha saneadora era a adotada pelos mais radicais, que
acreditavam que era preciso eliminar qualquer ameaça subversiva, através dos
já conhecidos métodos truculentos da ditadura. Já a linha pedagógica seguia a
tradição do pensamento segundo o qual o brasileiro é despreparado, ignorante,
não sabe votar, não possui conhecimentos básicos de civilidade ou higiene,
etc. Dessa forma, era preciso educa-los, suprindo essas deficiências “típicas do
povo brasileiro”. Podemos reconhecer aqui as duas linhas de censura
predominantes durante o regime militar: a censura política, mais ligada a uma
linha saneadora que quer eliminar o pensamento do “inimigo”, e a censura
moral, que pretender educar e proteger o ignorante povo brasileiro, exercendo
um papel paternalista. Nesse sentido, o censor acabava cumprindo um papel
de especialista da moral, decidindo o que é bom para a sociedade brasileira e
tirando a responsabilidade de escolha do espectador.
É interessante notar que essa crença na ignorância do povo brasileiro e na
necessidade de educa-lo é muito antiga e ainda sobrevive atualmente. Essa
me parece ser uma das peças-chave para entender tanto o funcionamento da
censura moral quanto sua aceitação e sua sobrevivência durante tanto tempo
em nossa história.
22
V. Censura à pornochanchada – a DCDP e a SDCP na prática:
estudos de casos
Após termos percorrido esse caminho e adquirido o conhecimento sobre o
funcionamento da censura, gostaria de me deter na análise de alguns
documentos específicos da censura, tanto para comprovar minha tese sobre a
coexistência da censura politica e moral quanto para tentar revelar novos
aspectos, que apenas o contato com os próprios documentos podem trazer à
luz.
Dessa forma, selecionei dois casos que me parecem interessantes e cujos
filmes possuem versão integral sem cortes, ou seja, fazem parte dos filmes
selecionados para minha videoinstalação. O primeiro é um caso de 1971,
quando o órgão responsável pela censura ainda era o SDCP. Trata-se do filme
“O Enterro da Cafetina”, produzido e estrelado por Jece Valadão. O segundo é
de 1974, quando o órgão censor já era a DCDP. Neste caso, o filme
“Cangaceiras eróticas” teve recomendações dos técnicos da censura para ser
completamente interditado, sendo finalmente liberado com aproximadamente
quinze minutos cortados.
Começo esclarecendo como funcionava, no dia a dia, a censura ao cinema.
Cada filme era examinado por um grupo de três censores, que o assistam em
uma pequena sala de projeção. Ao julgar uma imagem, diálogo ou sequência
inapropriadas, apertavam uma campainha. Nesse momento, o projecionista
marcava o instante exato no rolo. Caso o filme possuísse muitos momentos
impróprios, que teriam que ser cortados, os censores recomendavam que o
filme fosse interditado por completo, alegando que o sentido e narrativa do
filme se perderiam com os cortes e por isso não haveria razão para o filme ser
liberado. Foi o que aconteceu no segundo caso que analisaremos aqui.
Como praticamente todos os filmes tinham algum plano censurado, os
cineastas começaram a praticar o que se chamava de “tática boi de piranha”,
que nada mais era que rodar e incluir no filme cenas desnecessárias, que
tinham como único objetivo servirem de moeda de troca na (muitas vezes,
23
longa) negociação de cortes exigidos pela censura. Dessa forma, alguns filmes
incluíam uma cena erótica um pouco mais ousada, esperando que os censores
se concentrassem nela e deixassem o resto do filme passar. No entanto, já que
a cada vez o filme passava por um grupo de censores diferentes, não havia
uma fórmula exata sobre o que seria censurado. Apesar de não possuir dados
quanto a isso, podemos imaginar que muitas vezes esses planos ousados e
desnecessários acabavam não sendo censurados, fazendo parte do corte final
liberado pela censura. Dessa forma, a própria censura acabava criando uma
necessidade dos cineastas serem mais “imorais” e “subversivos”, na tentativa
de despista-la. Seria interessante realizar um estudo que rastreasse esses
planos inseridos já com o objetivo de serem cortados.
Vamos agora ao caso do “Enterro da Cafetina”. O filme passou pela vistoria
dos três técnicos de censura em julho de 1971. Os pareceres foram os
seguintes:
24
Parecer 1:
25
26
Parecer 2:
27
28
Parecer 3:
29
A primeira coisa a ser notada é a diferença de formato entre cada um dos
pareceres. Cada um segue um padrão diferente do outro, sendo que o primeiro
tem um formato de questionário, o segundo de texto corrido e o terceiro está
divido em três tópicos.
Em seguida é interessante comparar a sinopse e o parecer que cada um fez do
filme. O primeiro técnico da censura escreve um argumento bastante objetivo,
quase listando os acontecimentos do filme, seguindo o padrão de seu
formulário-questionário. Segundo ele, a mensagem do filme se resume a uma
linha: “ironiza aspectos da cultura brasileira, notadamente o tabu da
virgindade.” Apesar do filme ser picante, o censor acredita que seja “sem
implicações suficientemente contundentes a ponto de confundir valores morais
de espectador amadurecido.”
O questionário do item C desse primeiro parecer chama a atenção pela
tentativa de categorizar os diversos temas “sensíveis” para a censura. As
cenas de sexo são dividas em três: excitantes, aberrações ou superficiais.
Podemos imaginar que apenas as superficiais eram aceitas pelos censores. Já
as cenas de violência poderiam ser sangrentas, superficiais ou sádicas. Raças,
religiões e Segurança Nacional eram temas que só tinham a opção contra ou a
favor, sem especificar de que raças ou religiões especificas de tratava.
O segundo parecer já deixa transparecer um pouco mais a personalidade do
técnico de censura, neste caso, uma mulher. Com palavras mais rebuscadas e
tentando demonstrar um entendimento de alta cultura, a censora utiliza o termo
“enterro sui generis” fora de contexto. Segundo ela, apesar do título chegar “até
provocar certa repulsa”, o filme exclui “a ideia do pornográfico e ofensivo,
chegando a agradar e a divertir o público.” Ela comenta que o filme “mostra a
transformação da sociedade de hoje”, deixando a entender que talvez o filme
faça uma crítica de certa forma às mudanças de costume da época. Já o
terceiro parecer (pessoalmente, meu favorito) segue outra linha. O censor em
questão mostra sua personalidade e utiliza mais adjetivos que os outros,
descrevendo o enterro como “uma bacanal etílica ao som do samba FITA
AMARELA”. Segundo ele, o filme provoca a desmoralização da religião, dos
30
grupos “comuno-terroristas” e da “autoridade policial que não sabia identificar
um livro esquerdista”, além de ofender “a coletividade carioca pela afirmação
de que é o “RIO, paraíso da prostituição vespertina.” Ele é o único que deixa
transparecer o critério politico em seu parecer e a apontar trechos que
poderiam ser considerados subversivos (“grupo comuno-terrostita” e
“desmoralização da autoridade policial”). No entanto, ao recomendar uma
remontagem do filme, se concentra no que chama de “termos de baixa cultura”
e pede que sejam retiradas as partes “pornofônicas e pornocênicas”, sem se
preocupar em retirar cenas com teor político.
Ao comparar lista de cortes recomendados de cada um, também notamos
grandes diferenças. Os três apenas concordam que o filme deve ser liberado,
porém proibido para menores de 18 anos. Enquanto o primeiro não recomenda
nenhum corte, a segunda recomenda dois cortes de diálogo e o terceiro, quatro
cortes de dialogo. De acordo com os três censores, nenhuma cena completa
ou imagem em si só é imprópria e deve ser retirada. Ambos concordam que a
expressão “pra vaca que te pariu” deve ser cortada. A censora acredita que a
expressão de conotação sexual “abre as pernas minha filha” deve ser retirada,
enquanto o terceiro censor se preocupa mais com expressões “de baixo calão”
como “mijar” e “rabo”.
Esse tipo de censura a frases ou diálogos era extremamente comum e os
cineasta geralmente utilizam dois recursos para enfrenta-los. O primeiro era a
redublagem da palavra ou frase imprópria. Um caso bastante significativo de
como a dublagem podia mudar completamente o sentido de um filme é o de “À
meia-noite levarei sua alma” (1964), dirigido por José Mojica Marins. Foi
recomendada a sua interdição total por alguns censores, que ficaram bastante
chocados. A solução encontrada foi a redublagem. No final do filme, o
personagem Zé Caixão reafirmava, ao morrer, sua total descrença em Deus,
gritando “Eu não creio! Não creio!” Para que o filme fosse liberado, foi imposto
que o personagem deveria dizer um texto totalmente oposto, dessa forma se
redimindo e passando uma boa mensagem ao público. Dessa forma, o filme
acabou sendo liberado pela censura com Zé Caixão dizendo no final
31
“Deus...Sim... Deus é a verdade! Eu creio em tua força. Salvai-me!”3
Felizmente, hoje podemos encontrar o filme com seu final original e não
redentor.
O segundo foi criado especificamente para o período e faz parte do que José
Carlos Avelar vai chamar de “linguagem inventada pela censura” (AVELAR
apud GOMES, 2014, p. 83), ou seja, recursos cinematográficos criados
especificamente para lidar com um conteúdo censurado. Neste caso, trata-se
do que foi chamado de “voz out”, ou simplesmente a supressão do som no
momento em que o personagem falava algo improprio, sem substituição por
outra coisa. O efeito é bastante cômico, uma vez que podemos ver a boca do
personagem claramente se mexendo e nenhum som saindo dela, sendo que
muitas vezes é possível adivinhar pela leitura labial qual o palavrão ou
expressão “de baixo calão” que ele estava falando. Esse efeito acabava muitas
vezes chamando mais atenção para a palavra impropria do que se ela fosse
dita, de forma corriqueira.
É importante reparar na anotação feita a mão no final do primeiro parecer, que
diz: “À decisão da Chefia, tendo em vista os pareceres discordantes dos
censores.” A principio, isso indica que o filme deverá agora passar por um
quarto parecer, superior aos três anteriores, que tomará a decisão final.
Entretanto, no documento a seguir vemos que o filme ainda passa por dois
outros pareceres, um do Chefe da Seção de Censura e outro do Chefe do
SCDP:
3
Conforme narrado por SIMÕES (1998, p. 87)
32
33
34
Na primeira página, vemos a lista de cortes proposta pelo Chefe de
Departamento. De acordo com o bilhete escrito à mão na segunda página, os
cortes foram propostos por técnicos de seu departamento. No entanto,
notamos que há dois cortes sugeridos que ainda não haviam aparecido: um de
uma cena inteira e outro da expressão “tiro na bunda”. A cena que o Chefe de
Departamento recomenda tirar é a sequência na delegacia, onde a autoridade
policial teria sido “desmoralizada”, segundo um dos técnicos da censura. A
cena é de claro teor político, sendo citados o partido UDN e a Rússia soviética.
Podemos ver a anotação à mão ao lado da lista da primeira, com um N nas
sugestões de corte não acatadas. Finalmente, quem decide definitivamente os
cortes exigidos é o Chefe da SCDP. A cena de teor político, apesar de não ter
sido apontada nos três pareceres iniciais, será uma das censuras. A decisão
final fica oficializada pelo Certificado de Censura de três de agosto de 1971 e
sua lista de cortes anexada, que deverá sempre acompanha-lo:
Paralelamente a esse processo, em que o filme foi examinado cinco vezes, o
produtor Jece Valadão se preocupa com as datas de estreia de seu filme, e
escreve uma carta em 29 de julho para o Departamento de Censura:
35
36
37
Ao que o Chefe de Departamento da Censura responde em onze de agosto de
1971:
38
Para além do conteúdo da troca de cartas, que me parece interessante pelo
teor bajulador de Jece Valadão e pela postura defensiva da resposta do Chefe
do Departamento, afirmando que a carta de Valadão estava “eivada de
inverdades”, incluo as cartas para reforçar algo que acredito já ter ficado claro
até agora: o alto nível de burocracia dentro do Departamento de Censura,
marcado por uma estrutura vertical pela qual o filme deve passar diversas
vezes, informações redundantes, documentos que vem e vão e impessoalidade
no trato com o realizador, uma vez que o Chefe da SCDP responde pelo
departamento e não com nenhum responsabilidade pessoal pelas decisões
tomadas. A questão da burocracia foi bastante discutida durante a residência,
principalmente durante a leitura de Christopher Lasch, que aponta a burocracia
como um dos pilares do do que o autor chama de “Cultura do narcisismo”,
dando prominência ao narcisista.
Para se ter uma ideia da infraestrutura burocrática organizada ao redor da
Censura durante o período da ditadura militar, podemos olhar para o número
de censores no país em seu começo e em seu final. Em 1969, haviam cerca de
30 censores, enquanto no fechamento da DCDP em 1988 haviam
aproximadamente 240 censores em todo o país. (SIMÕES, 1998, p. 77).
Passemos agora ao segundo caso, referente ao filme “Cangaceiras eróticas”.
Aproveito para lembrar que esse foi o filme brasileiro mais visto do ano de
1974, conforme a tabela da Ancine citada na página 13 desse trabalho. O
órgão responsável pela censura é agora o DCDP.
39
Parecer 1 de 3 abril de 1974, assinado por três técnicos de censura:
40
Curiosamente, há mais dois documentos de pareceres de técnicos da censura
que datam de cinco dias depois, oito de abril de 1974:
Parecer 2, assinado por dois técnicos da censura:
41
Parecer 3, assinado por um técnico da censura:
42
Podemos ver uma padronização nos relatórios agora, diferente da SCDP. Os
três pareceres, assinados no total por seis censores, concordam que o tema é
“social”, “sócio-rural” ou “pseudo-social”. Para a dupla de censores do segundo
parecer, a mensagem é “negativa, ferindo à moral e aos costumes.” O primeiro
parecer é mais enfático, considerando que o filme é “totalmente amoral e não
apresenta nenhum valor educativo, artístico ou cultural.” Dos seis censores,
cinco recomendaram a não-liberação do filme.
No entanto, mais uma vez o Chefe do Departamento será solicitado e, junto
com o Chefe da DCDP, vai determinar o destino definitivo do filme:
43
44
45
Apesar de se tratar de um órgão diferente, o funcionamento da DCDP é
extremamente parecido com o da SCDP, sendo que o Chefe de Departamento
da Censura continua sendo o mesmo: Wilson de Queiroz Garcia. O filme
finalmente será liberado para maiores de dezoito anos, com aproximadamente
quinze minutos de cortes, com cenas inteiras sendo completamente
censuradas.
Ao analisar esses dois casos, surge uma questão: havia ou não critérios
objetivos que balizavam a censura? No primeiro caso, do filme “O Enterro da
cafetina”, os relatórios parecem completamente subjetivos e determinados por
um julgamento de valor do censor, sem seguir um padrão. No segundo caso,
parece haver mais coerência nos pareceres, mas em última instância, a
decisão é tomada pelo Chefe do Departamento de Censura, contrariando a
maioria dos técnicos que sugeriu a não-liberação.
A primeira conclusão a que chegamos com esses dois estudos de caso se
relaciona à descontinuidade e complexidade do próprio regime. Diversos
autores (NAPOLITANO, 2014;; GASPARI, 2014) sublinham hoje o caráter
desorganizado do golpe e de seu desenvolvimento. Apesar de haver um
ideário utópico de dominação por parte dos militares, sabemos que haviam
grupos com visões divergentes dentro do próprio regime e que não havia um
plano pré-estabelecido para a ditadura. Como afirmou Douglas Attila Marcelino,
precisamos levar em conta o “caráter um tanto contingente de muitas das
medidas repressivas”, inclusive da censura. Vimos que havia uma certa cartilha
a ser levada em consideração pelos censores, mas na prática a censura não
era tão objetiva e estruturada.
Em seguida, temos que aceitar que existe uma “subjetividade inerente ao
exame de qualquer produção cultural” (ATTILA MARCELINO, 2011, p. 69) e no
caso da censura não será diferente. É possível perceber que para alguns dos
técnicos de censura, o parecer sobre os filmes é exercício poético, em que
podem usar palavras rebuscadas e fazer análises estéticas.
46
VI. Parte prática: a videoinstalação
O desdobramento prático de minha pesquisa será uma videoinstalação, na
qual pretendo utilizar tanto as imagens censuradas possíveis de serem
encontradas atualmente quanto os próprios documentos da censura. Desta
forma, não irei captar ou criar novas imagens, mas sim reutilizar e ressignificar
imagens já existentes e transformar um objeto aparentemente sem nenhum
valor artístico (documentos oficiais da censura) em parte de uma obra de arte.
Esse tipo de trabalho de ressignificação de imagens me interessa bastante e
me parece muito importante, ainda mais levando em consideração a reflexão
de Lipovetsky sobre a saturação da produção e circulação de imagens. Já
produzimos tantas imagens no passado, e mais ainda no último século, que
acredito que a reflexão sobre elas seja de igual (ou maior) importância quanto
a produção de novas imagens. Hoje em dia, com a tecnologia avançada das
câmeras e a internet, praticamente qualquer pessoa pode produzir e exibir
suas imagens. Vamos descartando as imagens antigas, como se nunca
tivessem existido ou não tivessem importância, como descartamos o o
passado. O resgate dessas imagens censuradas é, portanto, um ponto crucial
para o projeto.
A principal questão que discutimos durante o processo foi como realizar essa
instalação de forma a conciliar uma criação estética com a parte didática. A
videoinstalação não será apenas educativa e não pode correr o risco de
parecer uma instalação de museu sobre a ditadura. No entanto, ela tampouco
pode se reduzir à estética, esquecendo o seu valor histórico. A questão se
resume em encontrar a melhor forma para esse conteúdo.
Desde o começo, quando fui selecionada para a residência, sabia que queria
projetar as imagens consideradas impróprias e que acabaram sendo cortadas
dos filmes. Com as listas de cortes da censura em mãos, pesquisei quais filmes
possuíam versões digitais para a televisão nas quais esses planos cortados
tivessem sido reinseridos. Selecionei seis filmes que possuem versões digitais
integrais, com base em diferentes critérios, mas tentando abranger a década
de 1970 em sua extensão. São eles:
47
- Bonitas e Gostosas (1979) – Escolhido por ser um representante típico do
gênero de pornochanchada, ou seja, da comédia erótica carioca. Dirigido por
Carlo Mossy, o “rei da pornochanchada carioca” e divido com 3 episódios.
- Enterro da Cafetina, O (1971) – Além de ser um dos estudos de caso para
minha pesquisa, bastante significativo no que diz respeito à burocracia e aos
critérios dos censores, foi escolhido por ter uma cena completa de censura
política em meio a vários pequenos exemplos de censura moral de diálogos.
- Cangaceiras Eróticas (1974) – Como analisamos acima, o filme teve
recomendação de ser completamente interditado, sendo finalmente liberado
com diversas cenas inteiras cortadas. É o filme com maior tempo de cenas
censuradas: aproximadamente 15 minutos.
- Dama do Lotação, A (1978) - Exemplo de adaptação de Nelson Rodrigues,
bastante recorrente na época, com Sônia Braga no papel principal. Teve
principalmente cenas de teor sexual censuradas, particularmente cenas longas
ou em lugares de profanação (como um cemitério). Uma cena de lesbianismo
sumiu para sempre do corte final. É até hoje o terceiro filme brasileiro com
maior bilheteria de todos os tempos, com mais de seis milhões de
espectadores4.
- Ilha dos Prazeres Proibidos (1978) – Dirigido por um direto paulista aclamado,
Carlos Reichenbach, o filme retrata uma espécie de ilha utópica, paraíso do
amor livre e da libertinagem. Além de censura sonora, tem planos de cenas de
sexo censuradas que me parecem simbólicos do que era aceito ou não
moralmente pelos censores. Por exemplo, todas as cenas em que a mulher
está por cima no ato sexual foram cortadas, enquanto as outras puderam
permanecer.
4
Fonte: site Adoro Cinema: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-
110592/?page=10, acessado em 28 de novembro de 2015.
48
- Terror e Êxtase (1979) – “Pornosocial” ou “pornodrama,” teve principalmente
as cenas de usos de drogas censuradas, sendo que as de sexo e violência
passaram batido pela censura.
Com essa seleção, acredito que conseguimos mostrar exemplos dos diversos
tipos de censura moral pelas quais os filmes passavam, além de um exemplo
de censura política. As cenas censuradas desses filmes foram editadas em um
vídeo com seis telas, onde os seis filmes passam simultaneamente (ver DVD
em anexo). O som foi editado por mim e aumenta ou diminui de forma
arbitrária. Dessa forma, controlo o olhar do espectador e faço com que ele
tenha uma postura ativa, tendo que procurar de imagem à qual o som pertence
a cada mudança.
Quando comecei a residência, apresentei um projeto expografico para
videoinstalação completamente diferente do atual. Gostaria de inclui-lo aqui,
para que as mudanças que ocorreram em decorrência do processo da
residência fiquem claras. Essa era a ideia inicial para a montagem:
6,90M
6,10M
49
Como se nota, a ideia inicial era ter a projeção dos trechos censurados na
mesma sala dos documentos. O visitante entraria na sala e logo de depararia
com os trechos censurados sendo projetados em loop. Ao se virar para sair,
encontraria uma parede cheia de documentos da censura.
O que se tornou claro para mim durante a residência é que esse formato era
muito asséptico e minimalista, não comportando a complexidade do meu
assunto. Senti que faltavam informações para o visitante entender exatamente
do que se tratava. Além disso, a experiência estética não traduzia a sensação
condizente com tudo que eu havia pesquisado e aprendido.
Outra questão importante era traduzir o tema da burocracia para a experiência
estética. A burocracia esteve presente em nossa discussão já na entrevista
para a residência NECMIS e procurei a melhor maneira de formaliza-la. Com
esse intuito, idealizei um ambiente bastante fechado e claustrofóbico, que
cause um certo desconforto. Seguindo esse caminho, cheguei em uma nova
expografia para a videoinstalação. A ideia é que ela tenha um aspecto
cenográfico forte, não se limitando a ser uma mera projeção das imagens
acompanhada da exposição dos documentos. A expografia foi idealizada para
a sala “Lan House”, logo na entrada do MIS-SP. A escolhe desse espaço não é
aleatória. Além de possuir o tamanho perfeito para a instalação, a sala é lugar
de muito movimento e pela qual praticamente todos os visitantes passam,
mesmo que apenas na frente. As imagens em 3D da exposição estão
impressas a seguir e se encontram em versão digital em alta qualidade no DVD
de dados anexo a esse trabalho.
A nova disposição da videoinstalação terá três ambientes, que serão divididos
por dry wall, criando uma estrutura labiríntica composta por dois corredores
retangulares e uma sala quadrada. O primeiro corredor lateral leva o visitante à
esquerda, enquanto o segundo corredor leva o visitante para o fundo da sala
“Lan House”, chegando ao miolo da instalação, onde está a sala de projeção
principal (ver FIGURA 1). Todas as paredes estarão cobertas por feltro verde
musgo, que, além de ajudar na criação da atmosfera escura e burocrática,
ajuda a abafar o vazamento de som entre os ambientes.Primeiro, o visitante
50
terá que entrar na instalação através de uma cortina, como se entrasse em
uma sala de cinema, já que uma parte da entrada será fechada por uma
parede de dry wall. Nessa parte exterior, estará o texto informativo sobre a
instalação, assim como algumas informações didáticas para que o público
jovem entenda do que se trata (informações sobre a ditadura militar, a
presença da censura nessa época, etc). Concordamos que essas informações
são necessárias, tendo em vista o desinteresse atual pela história sublinhado
por Lipovetsky e o sentido de descontinuidade história apontado por Lasch. No
entanto, o texto não pode ser demasiadamente didático, já que é preciso deixar
uma margem de interpretação para o visitante. Nessa parede exterior haverá a
classificação indicativa da instalação, uma vez que ela possui imagens
consideradas impróprias abaixo de uma certa idade. Ao lado da classificação
indicativa, haverá reproduções de matérias sobre o atual debate no STF sobre
se a classificação indicativa é ou não uma forma de censura. Desta forma,
trazemos a reflexão sobre o assunto para o contemporâneo e questionamos de
que forma(s) a censura ainda faz parte de nossa sociedade. (ver FIGURA 2).
Imagem
1
-‐
Planta
Baixa
51
52
Imagem
3
-‐
Sala
1:
Luz
e
sombras.
Vista
lateral.
Imagem
4
-‐
Sala
2:
Luz
e
sombras.
53
Virando à direita, o visitante entrará no segundo ambiente, um corredor com
arquivos de aço (típicos de escritório) em ambos os lados. Será um ambiente
estreito, como que dificultando o acesso do visitante às informações. (VER
IMAGEM 5). Para chegar à última e principal sala, o visitante terá que passar
no meio dos arquivos. Algumas gavetas estarão abertas e exibirão cópias dos
arquivos originais da censura, iluminados por um backlight e protegidos por um
vidro (ver IMAGEM 6). O visitante não poderá tocar nos documentos, mas terá
acesso a alguns pareceres e listas de cortes selecionados por mim e
relacionados aos seis filmes escolhidos para a projeção.
Imagem
5
-‐
Sala
2:
Arquivos
54
Imagem
6
-‐
Detalhe
documento
Depois de passar por esses dois corredores, o visitante finalmente chegará na
sala principal, que será mais espaçosa que as outras. Os seus filmes serão
projetados digitalmente no maior tamanho possível (de acordo com o recuo do
projetor). Haverá bancos para que as pessoas possam de sentar e ficar quanto
tempo desejarem observando as imagens e sons censurados. (ver IMAGEM 7)
Como cada filme tem uma duração diferente de cenas censuras, há uma
possibilidade de combinação enorme entre as imagens das seis telas. O vídeo
terá aproximadamente 30 minutos e estará em loop. Quando quiser, o visitante
sairá por um corredor ao lado da entrada, não tendo que passar novamente por
nenhum dos ambientes que o levaram até ali.
55
Imagem
7
-‐
Sala
3:
Censura
liberada
56
Conclusão
Acredito que esse ano de residência foi essencial para o desenvolvimento do
projeto “Prazeres Proibidos”. A leitura das bibliografias selecionadas, que não
teriam sido escolhidos por mim se não fosse a residência, por não serem
diretamente relacionadas ao meu assunto, acrescentaram dimensões novas e
pertinentes ao trabalho, tanto na reflexão teórica quanto na estruturação da
proposta prática.
No entanto, como escrevi no meu projeto de inscrição para a residência,
acredito que, no meu caso, o processo só se conclui no contato com o público,
com a realização da videoinstalação, quando essas imagens e arquivos vierem
à luz. Será nesse momento que poderei dar como concluída a residência e
avaliar exatamente quais foram seus resultados.
Por ora, continuo na expectativa do impacto que essas imagens terão nos
visitantes do MIS-SP, com a esperança de que consiga transmitir algo do que
aprendi e refleti sobre a censura, tanto no sentido restrito da ditadura quanto no
sentido amplo de seus funcionamento e princípios.
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ANEXO 1 – Dvd de dados
Conteúdo:
1) Documentos da Censura referentes aos casos estudados “O Enterro da
Cafetina” e “Cangaceiras eróticas”;;
2) Imagens 3D da videoinstalação em alta definição;;
3) Vídeo com modelo do conteúdo da projeção digital com trechps
censurados.
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Bibliografia
A.DE LIMA, Venício. A censura disfarçada. In: Censura em debate. São Paulo:
ECA/USP, 2014.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. RJ, Zahar Editora, 1991.
COSTA, M. C. (Org.) A censura em debate. São Paulo: ECA/USP, 2014.
CRAVO ALBIN, Ricardo. Driblando a censura. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud. RJ: Ed:
Zahar, 1979.
LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro.
Imago Editora. 1ª Edição. 1987.
LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio. São Paulo. Manole. 1ª
Edição. 2005.
SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância. São Paulo: SENAC, 1998.
ATTILA MARCELINO, Douglas. Subversivos e pornográficos. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2011.
MATTOS, Sérgio. Mídia controlada: a história da censura no Brasil e no mundo.
São Paulo: Paulus, 2005.
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