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Setembro/Outubro 2005

Boletim do CIM
Director: J. A. Aranda da Silva

c e n t r o d e i n f o r m a ç ã o d o m e d i c a m e n t o
ORDEM DOS FARMACÊUTICOS

Importância dos Estereoisómeros na Terapêutica


ESTEREOISOMERISMO carídeos, fácil é deduzir que a tridimensionalidade tem
E ACTIVIDADE BIOLÓGICA (*) um papel determinante no fenómeno do reconhecimento
Quando moléculas compostas pelos mesmos átomos molecular entre a molécula do fármaco e a biomacro­
têm a mesma fórmula estrutural, mas diferem uma da molécula receptora1. Esse fenómeno é fundamental para
outra unicamente na forma como átomos ou grupos es­ que a bioactividade se manifeste; daí que a existência
tão orientados no espaço, elas são definidas como este­ de qualquer tipo de isomeria, e muito especialmente a
reoisómeros.1 estereoisomeria, tenha implicações na actividade de um
Os estereoisómeros englobam os enantiómeros e os dias­ fármaco. Esta influência pode ser encontrada em várias
tereoisómeros, incluindo estes também os isómeros geo­ famílias de compostos existentes na terapêutica, com
métricos. Os enantiómeros exibem quiralidade devido à aplicações tão importantes e variadas como agentes
assimetria molecular.1 antidepressores, antiarrítmicos, anti-hipertensivos, anti­
Considerando que o local último onde um fármaco irá ‑inflamatórios, anti-histamínicos, antitumorais, opióides,
exercer a sua acção – o receptor alvo – é maioritaria­ psicotrópicos, antibióticos, antifúngicos, antitrombóticos,
mente de natureza quiral, incluindo proteínas e polissa­ entre outros.2

Quadro 1 - Definições de termos utilizados

Compostos meso: diastereoisómeros com dois ou mais centros estereogénicos, em que os quatro grupos em cada um dos centros
contêm um plano de simetria interna.

Configuração: arranjo espacial que distingue um estereoisómero de outro e pode ser expresso pelas designações R ou S, de
acordo com as regras de Cahn-Ingold-Prelog.

Diastereoisómeros: isómeros ópticos que não se relacionam como objecto-imagem num espelho plano, ou seja, não correspondem
a enantiómeros.

Enantiómeros: isómeros ópticos que se comportam um em relação ao outro como objecto e respectiva imagem num espelho
plano ou como mão direita/mão esquerda, ou seja, não são sobreponíveis. O isómero que roda o plano da luz
polarizada para a direita é designado dextrógiro (+) e o que roda para a esquerda é levógiro (-).

Enantiosselectividade: escolha entre dois enantiómeros por uma entidade quiral. A nível biológico refere as diferenças entre enantióme­
ros relativamente aos seus efeitos farmacológicos e terapêuticos, assim como na respectiva toxicidade.

Estereoisómeros: moléculas compostas pelos mesmos átomos, contendo a mesma fórmula estrutural; diferem uma da outra unica­
mente na forma como átomos ou grupos estão orientados no espaço. Podem ser isómeros ópticos (enantiómeros
e diastereoisómeros) ou geométricos.

Isómeros geométricos: não relacionados com actividade óptica e podem ser classificados como cis/trans ou Z/E.

Mistura racémica: contém quantidade igual dos dois enantiómeros. Um processo pelo qual os enantiómeros são separados é desig­
nado resolução.

Quiralidade: propriedade geométrica que, na maior parte dos casos, está associada à existência de, pelo menos, um centro
estereogénico e consequentemente a assimetria molecular. A designação quiralidade deriva da palavra grega
para mão; reflecte assim que as moléculas que se comportam como mão esquerda/mão direita são quirais.

Razão eudísmica: corresponde à razão da actividade do enantiómero mais activo (eutómero) e a do enantiómero menos activo
(distómero).

(*) Para definições ver Quadro 1.


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INFLUÊNCIA DA ISOMERIA GEOMÉTRICA INFLUÊNCIA DO ENANTIOISOMERISMO
Embora os isómeros geométricos se encontrem muito Essa influência manifesta-se a vários níveis, sendo de
menos representados na terapêutica que os fármacos crucial importância reter que a enantiosselectividade é
quirais, um dos exemplos significativos da influência da exibida, não só na fase farmacodinâmica (interacção com
isomeria geométrica na potência da bioactividade pode biomacromoléculas como receptores, enzimas, etc.), mas
ser ilustrado pelo dietilestilbestrol (Fig.1). Este composto também na fase farmacocinética (absorção, distribuição,
metabolismo e excreção).4-6
De entre os estereoisómeros assumem especial impor­
tância os enantiómeros e os respectivos racematos, prin­
cipalmente quando se trata de agentes terapêuticos com
possibilidade de exibirem actividades agonista/antagonis­
ta. Apesar disso, actualmente a maior parte dos fármacos
quirais existe na terapêutica sob a forma de racemato,
embora a tendência para a produção/comercialização dos
enantiómeros puros tenha vindo a aumentar.
Sem dúvida que o caso trágico e sobejamente conhecido
da talidomida racémica, em que o enantiómero R mani­
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festa efeito sedativo e o S é teratogénico, foi marcante


para chamar a atenção para esta problemática.
Para ilustrar a importância da estereoisomeria na tera­
pêutica, serão a seguir indicados alguns casos que exem­
plificam as situações mais frequentes quando se trata da
administração de fármacos quirais.
Um exemplo do “desejável mas pouco comum” é o caso
da estrona em que o enantiómero dextrógiro é activo
como estrogénio e o levógiro é inactivo.7
Figura 1 – Relação estrutural entre o estradiol e o (E)-dietilestilbestrol.
No âmbito de uma situação muito “pouco comum” po­
demos encontrar o exemplo da prometazina, em que os
enantiómeros têm propriedades praticamente idênticas
é um derivado estrogénico sintético, que se pode apre­ no que se refere à actividade anti-histamínica e toxicida­
sentar sob a forma Z ou E, dependendo da orientação dos de, manifestando assim o mesmo tipo de características
substituintes relativamente à ligação dupla.3 farmacológicas.7
No caso do isómero E, a distância entre os grupos hidro­ A situação em que ambos os enantiómeros exibem o
xilo do dietilestilbestrol biomimetiza a existente no es­ mesmo tipo de actividade, mas com potências diferen­
tradiol em meio biológico com uma molécula de água de tes, sendo um mais activo (eutómero) e o outro menos
cristalização, o substrato natural para os receptores es­ activo (distómero), é “muito comum” nas famílias dos
trogénicos. Assim, a potência estrogénica no isómero E é fármacos quirais.
superior à do Z, devido a uma maior complementaridade Para o grupo dos designados β-bloqueadores dos quais o
com o receptor. (S)-propranolol e o (S)-metoprolol são exemplos (Fig. 2),

Figura 2 – Estereoisómeros de diversos fármacos.


os enantiómeros exibem qualitativamente a mesma acti­ é mais potente é o (S)-(+). Acontece que in vivo os pro­

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vidade farmacológica, mas quantitativamente diferente, fenos sofrem uma inversão quiral metabólica, pelo que o
sendo mais potentes na forma (S)-(-) que na forma (R)- enantiómero (R)-(-) se transforma em (S)-(+) (Fig. 4).9
(+). A razão eudísmica é de 130 e 270 respectivamente Essa vantagem é apenas aparente, pois a velocidade e a
para o propranolol e para o metoprolol.8 percentagem de inversão quiral dependem não só da es­
A influência da quiralidade no metabolismo e excreção trutura do fármaco administrado mas também do indiví­
pode ser exemplificada pelo que se passa com o propra­ duo, pelo que na maioria dos casos não é completa, per­
nolol administrado sob a forma de racemato e se torna manecendo assim uma porção do enantiómero (R)-(-) no
mais efectivo por via oral que por via intravenosa.6 organismo. 10 É, por exemplo, o caso do (R)-(-)-ibuprofeno,
Essa aparente anomalia deve-se à estereosselectividade no qual a inversão a (S)-(+)-ibuprofeno activo (Fig. 2)
encontrada na primeira passagem do metabolismo, da se dá em apenas 60%.10 Para além disso, durante a bio­
qual resultam enantiómeros tendo diferente biodisponi­ transformação referida, alguns intermediários levam à
bilidade. formação de “triglicéridos híbridos” que podem exibir
O propranolol sofre três passos metabólicos principais toxicidade.
(1,2 e 3) a considerar (Fig. 3): Em alguns países é já comercializado o enantiómero ac­
tivo (S)-(+) puro do ibuprofeno, designado dexibuprofe­
1. glucuronidação no hidroxilo livre no. Este composto, para além da dose diária necessária
2. oxidação aromática dando o 4-hidroxipropranolol, o em artrite reumatóide ser cerca de um terço da utilizada
qual por sua vez pode também sofrer conjugação, tanto com o racemato, mostrou também um perfil menor de
com sulfato como com ácido glucurónico efeitos adversos.11
3. cisão oxidativa na cadeia lateral aminada.
Considerando a área dos neurofármacos, é de salientar
Cada um destes passos exibe estereosselectividade, sen­ a importância que a questão da quiralidade tem vindo a
do os 1 e 3 selectivos para o enantiómero S e o passo 2 suscitar recentemente,12,13 o que não será de estranhar
preferencial para o R. se pensarmos que alguns neurotransmissores, como é o
Mas, considerando as clearances parciais para os enanti­ caso da adrenalina e do ácido glutâmico, actuam sob a
ómeros de cada um dos passos referidos, verifica-se que forma de enantiómeros puros.
o metabolismo do propranolol é dominado pelo efeito de Um grupo de fármacos em que o estudo da influência da
primeira passagem (pré-sistémico) da 4-hidroxilação, a estereoisomeria na actividade, metabolismo e toxicidade
qual é altamente selectiva para o isómero R menos ac­ tem vindo a sofrer amplo desenvolvimento é o dos agen­
tivo (o eutómero é o (S)-(-) que é e cerca de 100 vezes tes antidepressivos. 13
mais activo que o (R)-(+). Esta situação leva a um en­
riquecimento plasmático no isómero (S)-(-) activo, con­ Podem ser encontrados vários exemplos no grupo dos
tribuindo assim para a aparente potência aumentada do inibidores selectivos da recaptação de serotonina. No
racemato quando administrado oralmente.6 caso da fluoxetina, ambos os isómeros (Fig. 2) apresen­
tam uma inibição equivalente, embora o enantiómero
Os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) do grupo (R)-(-) seja eliminado mais rapidamente. Apesar disso, não
dos profenos (derivados do ácido propiónico) contêm foram encontrados benefícios reais para a sua introdução
um carbono estereogénico e o enantiómero que in vitro na terapêutica como agente antidepressivo, embora se

Figura 3 – Passos metabólicos principais do propranolol.


Boletim do CIM Quando se trata de fármacos quirais, verifica-se que a
maioria se encontra na terapêutica sob a forma de mis­
tura racémica e muito tem sido discutido, principalmente
desde o final dos anos 80, sobre a conveniência ou não da
administração de racematos em relação a enantiómeros
puros. Tendo em conta a enantiosselectividade biológica
já referida, situações diversas podem ser encontradas e
devem ser analisadas caso a caso. Embora existam situ­
ações em que a comercialização de misturas racémicas
possa ser admissível, caso de enantiómeros com potên­
cia e actividades similares, por exemplo, genericamente
a administração de um enantiómero puro pode oferecer
vantagens, nomeadamente doses menores, menos efeitos
indesejáveis, perfis farmacológicos superiores e redução
de interacções com outros fármacos, pelo que as auto­
ridades reguladoras têm vindo a encorajar as indústrias
farmacêuticas a desenvolver fármacos enantiomerica­
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mente puros.
A reavaliação das actividades de racematos e dos enan­
tiómeros puros poderá também levar a resultados muito
interessantes no que concerne à descoberta de novas
aplicações terapêuticas para fármacos já conhecidos.

Madalena M. M. Pinto
Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto

Figura 4 – Representação esquemática da inversão quiral de profenos


in vivo.

encontre em testes clínicos para ser usado na profilaxia Bibliografia


da migraine.11,14 1. Smith D. F. Em: Smith D. F. (ed.). Handbook of Stereoisomers:
Therapeutic Drugs, Boca Raton, Florida, CRC Press, 1989; 1-6.
2. Challener C. A. (ed.). Chiral Drugs, Aldershot, England, Ashgate
Um dos exemplos mais recentes é o do citalopram. Publishing Limited, 2001.
Este antidepressivo foi inicialmente comercializado sob 3. Fullerton D. S. Em: Doerge R. F. (ed.). Wilson and Gisvold’s Text­book
of Organic Medicinal and Pharmaceutical Chemistry, Philadelphia,
a forma de racemato, estando actualmente já disponível
U.S.A., J. B. Lippincott Company, 1982; 675-732.
na terapêutica o enantiómero puro (S)-(+), designado 4. Midha K. K., Rawson M. J., Hubbard J. W. J Pharmacokinet and Bio­
escitalopram (Fig. 2). Conclui-se ser este isómero muito pharm, 1997; 25(6): 743-752.
mais potente que o seu antípoda, com uma razão eudís­ 5. Vermeulen N. P. E. Em: Wainer I. W. (ed.). Drug Stereochemistry,
mica de 167.14 Além disso, o eutómero é considerado um Analytical Methods and Pharmacology, New York, Marcel Dekker
Inc., 1993; 245-280.
inibidor ainda mais selectivo, com um início de acção mais
6. Caldwell J. Chromatogr A, 1996; 719: 3-13.
rápido, aparecendo assim como um agente antidepres­
7. Lima V. L. E. Química Nova, 1997; 20(6): 657.
sivo potente, efectivo e bem tolerado.13,14 8. Aboul-Enein H. Y., Basha L. I. A. Em: Aboul-Enein H. Y e Wainer I.
W. (eds.). The impact of stereochemistry on drug development and
use. John Wiley & Sons, Inc., 1997; vol. 42 in Chemical Analysis,
Para além dos anteriormente indicados, uma reavaliação
1-20.
dos fármacos racémicos existentes no mercado levou, nos 9. Mason J. P., Hutt A. J. Em: Aboul-Enein H. Y e Wainer I. W. (eds.).
últimos tempos, à comercialização de alguns deles como The impact of stereochemistry on drug development and use. John
enantiómeros puros, nomeadamente anti-inflamatórios Wiley & Sons, Inc., 1997; vol. 42 in Chemical Analysis, 45-105.
não esteróides, inibidores da bomba de protões, antimi­ 10. Lennard M. S., Tucker G. T., Woods H. F. Em: Hansch C., Sammes
P. G., Taylor J. B. (eds.). Comprehensive Medicinal Chemistry, Per­
crobianos, anestésicos locais, anti-histamínicos, bloque­
gamon Press, 1990; vol. 5: 196-197.
adores neuromusculares, entre outros.11
11. Hutt A. J., Valentová J. Acta Facultatis Pharmaceuticae Universi­
tatis Comenianae, 2003, L: 7-23.
Conclusão 12. Cordato D. J., Mather L. E., Herkes G. K. J Clin Neurosci, 2003;
10(6): 649-654.
Os exemplos apontados são elucidativos da necessidade
13. Baumann P., Zullino D. F., Eap C. B. European Neuropharmacolo­
de uma utilização criteriosa dos fármacos quirais, pois a gy, 2002: 12: 433-444.
presença do “outro” enantiómero pode ser “benéfica” ou 14. Burke W. J., Kratochvil C. J. Prim Care Companion J Clin Psychia­
“prejudicial”, dependendo da situação em causa. try, 2002; 4(1): 20-24.

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Comissão de Redacção: A. Simón (coordenadora); J. A. Aranda da Silva; M. E. Araújo Pereira; M. T. Isidoro; T. Soares. Os artigos assinados são da responsabilidade dos respectivos autores.

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