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ECONOMIA E POLÍTICA DAS FINANÇAS PÚBLICAS NO BRASIL:

um guia de leitura

Fabrício Augusto de Oliveira

Belo Horizonte, janeiro de 2009


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Obras como autor, co-autor, organizador e co-organizador:

O dilema fiscal: reformar ou remendar? Rio de Janeiro, Editora FGV: CNI,


2007;

Disciplina Fiscal e qualidade do gasto público: fundamentos da reforma


orçamentária. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005;

Federalismo e Integração Econômica Regional: desafios do Mercosul. Rio de


Janeiro, Fundação Konrad Adenauer, 2004;

Descentralização e Federalismo Fiscal no Brasil: desafios da reforma


tributária. Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenauer Stiftung, 2003;

O Orçamento público e a transição do poder. Rio de Janeiro: Editora FGV,


2003;

Contribuintes e Cidadãos: Compreendendo o Orçamento Federal. Editora FGV,


2002;

Crise, Reforma e Desordem do Sistema Tributário Nacional. Campinas, Editora


da Unicamp, 1995;

Autoritarismo e Crise Fiscal no Brasil (1964-1984). Editora Hucitec, 1995,


(indicado pela Câmara Brasileira de Livros para o Prêmio Jabuti de 1996);

Recessão e Inflação: o(des) ajuste neoliberal. São Paulo, Editora Hucitec, 1992;

A Economia Brasileira em Preto e Branco. São Paulo, Editora Hucitec, 1991;

A Reforma Tributária de 1966 e a Acumulação de Capital no Brasil (2ª. edição,


revista e atualizada). Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1991;

A Política Econômica no Limiar da Hiperinflação. São Paulo, Editora Hucitec,


1990;

Os descaminhos da estabilização no Brasil. Belo Horizonte, Diário do


Comércio/Cedeplar, 1989;
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Capítulo I:
Estado e produção de bens públicos no pensamento econômico

1. Introdução
2. Estado e capitalismo no pensamento econômico
2.1. O Estado no Mercantilismo
2.2. O Estado no Capitalismo Concorrencial
2.3. O Estado no Capitalismo Monopolista
2.4. O Estado no Capitalismo Mundializado
3. A visão marxista do Estado
4. Um balanço das posições teóricas sobre o Estado
5. O Estado na economia brasileira
Bibliografia

Capítulo II:
O orçamento público: origens, papéis e gestão
1. Introdução
2. O espaço orçamentário
2.1. As Origens e o Conteúdo do Orçamento Público
2.2. O orçamento nas escolas do pensamento econômico
2.3. Tipos, trajetória e Princípios do Orçamento
3. O processo orçamentário no Brasil
3.1. A evolução do processo orçamentário: 1824-1964
3.2. O regime militar e a desfiguração do processo orçamentário: 1964-1985
3.3. A Constituição de 1988: resgatando os papéis do orçamento como instrumento da
democracia, do controle e do planejamento
3.4. Crise e reformas do processo orçamentário na década de 1990
3.5. As limitações atuais: o orçamento como variável de ajuste das contas públicas
Bibliografia

Capítulo III:
Os gastos públicos: classificação e determinantes
1. Introdução
2. Crescimento e composição dos gastos públicos: explicações teóricas
2.1. As explicações empíricas de Wagner, Peacock e Wiseman
2.2. A teoria tradicional: funções alocativa, distributiva e estabilizadora
2.3. A visão marxista de O’Connor
2.4. A visão neoliberal: public choice e neo-institucionalismo
2.5. Um balanço das posições teóricas sobre os determinantes dos gastos públicos
3. Os gastos públicos no Brasil
3.1. A classificação dos gastos
3.1.1. A classificação institucional
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3.1.2. A classificação funcional


3.1.3. A classificação por categorias econômica
3.2. A evolução dos gastos públicos no Brasil: algumas observações
3.2.1. A evolução dos gastos públicos nas fases de desenvolvimento da economia
brasileira
3.2.2. Os gastos federais e sua finalidade
3.2.3. Gastos federais e desigualdades: redistribuição às avessas?
4. O Estado do capital: da produção ao rentismo
Bibliografia

Capítulo IV:
As receitas públicas: classificação, conceitos e determinantes da carga tributária e de
sua distribuição

1. Introdução
2. As receitas no orçamento
3. A carga tributária
3.1. Conceituação
3.2. Os componentes da carga tributária
3.2.1. Os tributos: impostos taxas e contribuição de melhorias
3.2.2. As contribuições sociais e econômicas
4. A origem dos impostos e os princípios de defesa dos contribuintes
5. Os impostos: características, conceitos e incidência
5.1. Impostos diretos e indiretos: existe uma composição ideal?
5.1.1. Os impostos diretos
5.1.2. os impostos indiretos
6. As opções e dilemas da teoria convencional na construção dos sistemas tributários
6.1. Os princípios da neutralidade e da equidade: algumas observações críticas
6.2. O princípio moderno da competitividade
6.3. Um balanço das limitações da teoria convencional na explicação e determinação das
estruturas tributárias
7. Uma visão alternativa dos determinantes do tamanho e da composição da carga
tributária
7.1. Uma revisão da tese de Hinrich sobre os determinantes da carga tributária
8 A evolução do sistema tributário brasileiro na República (1900-2007)
8.1. A evolução da carga tributária
8.2. A composição da carga tributária
8.3. Um “inferno” tributário: a necessidade de reformas
Bibliografia

Capítulo V:
O déficit público
1. Introdução
2. O déficit público
2.1. Visões teóricas sobre os efeitos e as conseqüências dos déficits públicos
3. Medidas e conceitos de déficits públicos
3.1. Medidas e Conceitos
3.1.1. Métodos e conceitos tradicionais
3.1.2. A medida das Necessidades de Financiamento do Setor Público (NFSP)
4. A evolução dos déficits públicos na história recente do capitalismo
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5. A evolução dos déficits públicos no Brasil


Bibliografia

Capítulo VI: A dívida pública

1. Introdução
2. O papel e os efeitos da dívida pública no pensamento econômico
2.1. A dívida pública no pensamento keynesiano
2.2. As expectativas racionais e a escola novo-clássica: um novo papel para a política
fiscal e para a dívida pública
3. Tipos, custo e riscos da dívida
4. Metodologia e critérios de mensuração da dívida
5. A evolução recente da dívida pública no capitalismo
6. A dívida pública no Brasil
6.1. A dívida mobiliária federal interna: um pouco de história – 1827-1964
6.2. A dívida mobiliária como instrumento de política fiscal e monetária: 1964-2002
6.3. Swaps cambiais e a nova estrutura da dívida mobiliária federal: 2002-2006
6.4. A evolução da Dívida Líquida do Setor Público, como proporção do PIB: 1981-
2007
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INTRODUÇÃO

As transformações recentes conhecidas pelo capitalismo, marcadas pelo processo de


globalização e pelo predomínio do capital financeiro sobre o industrial, mudaram a
realidade e dinâmica do Estado, da política fiscal e das finanças públicas de um modo
geral. A globalização dos mercados financeiros, de produtos e de investimentos, derrubou
as fronteiras que protegiam as economias dos países que integram o sistema capitalista
mundial e tornou a questão da competitividade vital para sua sobrevivência nessa nova
ordem e uma condition sine qua non para torná-lo apto a participar deste processo.

Em torno dos conceitos de competitividade e de eficiência ergueram-se os novos


fundamentos que balizam a ação do Estado e conformam o novo papel conferido à política
fiscal e à tributação: considerado fonte de ineficiência pelo pensamento convencional, ao
Estado voltou a ser recomendado reduzir suas atividades nos campos econômico e social e
cuidar de remodelar suas estruturas e instituições, de modo a contribuir para que o
mercado possa operar de forma eficiente; à política fiscal, considerando sua inocuidade
para a expansão da demanda agregada e os prejuízos que acarreta para o funcionamento
eficiente do sistema, o papel de evitar desequilíbrios orçamentários e de atuar como fonte
de valorização do capital, por meio da dívida pública, garantindo sua sustentabilidade e a
preservação da riqueza financeira; à tributação, em nome da competitividade, o
deslocamento de sua incidência para bases impositivas de menor mobilidade espacial, caso
do consumo, da propriedade imobiliária e do trabalho, principalmente o menos qualificado,
para evitar deslocamentos dos fatores de produção motivados por diferenciais tributários,
assim como a retirada ou atenuação do ônus dos impostos incidentes sobre o capital, em
suas diversas formas, e a desoneração da produção, dos investimentos e das exportações,
sob pena de prejuízos para os países participantes do comércio e do fluxo mundial de
capitais.

Tudo isso significa retirar do Estado e da política fiscal qualquer ação voltada para
proteger/defender a atividade econômica, e do espaço orçamentário, especialmente no
tocante à tributação, qualquer compromisso com a questão da equidade e com políticas de
conteúdo redistributivista. Ou seja, o enfraquecimento de seu papel como agente de
legitimação do sistema, se considerada a visão marxista sobre suas funções, ou de agente
também responsável pela redução das desigualdades sociais, indispensável para manter a
coesão da sociedade, na perspectiva keynesiana. A limitação ou a renúncia de seu papel
como agente de legitimação para acomodar no orçamento os interesses do capital
financeiro e para assegurar supostos ganhos de eficiência para o sistema colocam, contudo,
não poucos riscos para a sua reprodução a longo prazo, já que inevitavelmente
acompanhada do aumento da pobreza e da exclusão social de crescente parcela da
população mundial.

Na atualidade, os manuais de finanças públicas ainda não incorporaram, em sua


totalidade, as novas regras e princípios que passaram a orientar a política fiscal e a
tributação e dificilmente caminharão no sentido de desvelar as verdadeiras causas de seu
surgimento, bem como as conseqüências que podem acarretar para o próprio sistema. Mas,
como no paradigma anterior, continuam enfatizando a necessidade de reformas do Estado
e da estrutura de impostos para ajustá-los às novas exigências colocadas na etapa atual de
desenvolvimento do capitalismo para assegurar competitividade à produção, eficiência ao
sistema econômico e proteção da riqueza financeira, não importando suas conseqüências
para a reprodução no longo prazo do sistema como decorrência do enfraquecimento do
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papel do Estado como agente que contrabalança suas iniqüidades e contribui para sustentar
seu equilíbrio.

Não se trata de uma nova visão teórica sobre o assunto, mas de uma visão mais
radicalizada do pensamento dominante sobre o papel do Estado, num contexto em que,
tendo se libertado de seus oponentes, após a queda do muro de Berlim e o fim do
comunismo, o capital parece ter retomado seus instintos mais primitivos, em que o objetivo
da “acumulação pela acumulação sem limites” representa o guia cego de sua caminhada, e
se esquecido de que sempre que a riqueza não foi minimamente repartida, por meio das
políticas do Estado, de forma a reduzir as desigualdades e promover maior justiça social, o
sistema correu sérios riscos de sobrevivência.

Os primeiros economistas que começaram a refletir sobre as conseqüências e


efeitos das ações do Estado e da tributação sobre o funcionamento do sistema econômico,
assumiram como farol, dessa análise, a “eficiência” idealizada do mercado para contrapô-
la à do setor público, no que foram seguidos por todas as escolas do pensamento
dominante que os sucederam. A busca obsessiva pela “eficiência” do Estado obliterou,
assim, o verdadeiro papel que a este caberia, como agente político, e conduziu à
proposição de princípios abstratos estranhos à sua atuação, assim como à construção de
sistemas tributários “ideais”, como se estes não sofressem a influência de fatores
econômicos, políticos, ideológicos, culturais e da correlação das forças políticas e sociais
que dominam o seu aparelho. Uma visão estreita da natureza das finanças públicas,
despida desses elementos, brotou dessa concepção, propiciando, sempre em nome do
progresso, da eficiência e, na atualidade, da competitividade, a sugestão de normas a serem
seguidas que justificam a montagem de estruturas que terminam lançando o maior ônus da
tributação sobre os ombros mais fracos e condenando a ação redistributivista do Estado
para mitigar desigualdades, por esta provocar desperdícios de recursos e ineficiência do
sistema.

Construída com base nestes conceitos e princípios, a teoria convencional das


finanças públicas colocou, assim, desde o início, Estado e mercado em campos opostos,
considerando que o primeiro não apresenta a suposta “eficiência” na alocação e gestão dos
recursos que seria uma característica do segundo, o que reduziria o nível de bem-estar
geral da sociedade. Ao desconsiderar o papel que o Estado deve desempenhar como agente
político, para garantir o equilíbrio e a reprodução do sistema e o próprio triunfo do capital,
mesmo tendo de sacrificar alguns graus de “eficiência”, a teoria convencional nunca abriu
espaço, em seu arcabouço, nem para abrigar sua participação na vida econômica e social,
nem para estruturas de tributação e de gastos com objetivos redistributivos.

Mas o que a ortodoxia, na sua visão míope do Estado e mercado, sempre negou, a
história se encarregou de fazê-lo em algumas oportunidades para evitar o colapso do
sistema: na grande depressão da década de 1930, seguida dos horrores do nazi-fascismo e
da ameaça do comunismo, a construção teórica de Keynes confirmaria a importância do
Estado e da política fiscal para “salvar” o capitalismo e para garantir sua reprodução,
afastando-se do saber convencional e abrindo espaços para abrigar estruturas de impostos e
de gastos também com objetivos redistributivos, avançando na consolidação do welfare
state; o retorno da ortodoxia nos anos 1970, após a crise da teoria keynesiana, traduziu-se
numa feroz oposição antiEstado, com implicações para as finanças públicas e
conseqüências nefastas para os tecidos econômico e social, logo revista quando o sistema
viu-se ameaçado por crises financeiras consecutivas, acompanhadas do aumento do
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desemprego, da pobreza e da exclusão social. Um Estado bem comportado, regido por


regras claras e instituições fortes, surgiu no corpo teórico da corrente neo-institucionalista,
considerado indispensável para preservar o sistema e para garantir as condições necessárias
para o mercado operar com eficiência. A crise do crédito subprime iniciada nos EUA, em
2007, e que rapidamente se espalhou contaminando todo o mundo capitalista serviu,
também, não só para pôr em xeque a propalada “eficiência” dos mercados, mas também
para novamente reforçar a importância do Estado para salvá-lo de seus desvarios e garantir
sua sobrevivência.

Não é de estranhar que, tendo como ponto de partida o objetivo da “eficiência”


idealizada do mercado, a teoria convencional das finanças públicas, que está presente nos
manuais, tenha sempre se apoiada em “normas e princípios abstratos”, descontextualizados
historicamente, que considera os mais recomendáveis para que a ação do Estado, por meio
da tributação e dos gastos públicos, não comprometa este objetivo nem o equilíbrio
“natural” do sistema. Presa nessa armadilha e confiante no poder regenerador do mercado
e na sua capacidade de corrigir desequilíbrios e de conduzir o sistema a uma situação de
máximo bem-estar, as ações do Estado são tidas como nocivas para o seu funcionamento,
assim como a tributação pelas distorções que provoca. Disso derivam as propostas de
estruturas tributárias que, com o objetivo de proteger o capital, de uma maneira geral, e as
altas rendas, para não prejudicar/obstar o processo de acumulação, retiram do Estado um
de seus principais instrumentos para promover maior justiça social e amortecer os conflitos
e tensões do sistema.

Musgrave, na I Parte de seu livro de 1959, “Teoria das Finanças Públicas”


(Musgrave, 1974:24) chama a atenção para o fato de uma teoria dessa espécie poder ser
abordada de duas maneiras. A primeira, que ele denomina de “teoria normativa, ou ótima,
do setor público [...] procura estabelecer as regras e princípios que proporcionem uma
gestão eficiente da economia pública [...], baseando-se em condições inicialmente
definidas [...]”. A segunda, que ele considera “uma sociologia da política fiscal”,
permitiria “explicar por que estão sendo seguidas as políticas existentes e prever as que
serão seguidas no futuro”. Ou seja, a primeira preocupa-se apenas em identificar
fórmulas/normas para que o Estado atue de forma eficiente, nos diversos campos de sua
atuação. A segunda em explicar e compreender por que ele atua de uma e não de outra
maneira, as forças que influenciam suas decisões e as conseqüências que essas acarretam
para o próprio sistema. Isso significa ir bem mais longe do que sugere o saber
convencional, pois coloca a necessidade de identificar as forças econômicas, políticas,
sociais, que influenciam as decisões do Estado, em cada momento histórico, bem como os
determinantes de suas estruturas de receitas e de gastos, considerando que essas se
traduzem em ônus e bônus para os setores que os pagam e os recebem, refletindo e
espelhando, portanto, aquelas decisões.

A teoria convencional das finanças públicas dedica-se à primeira abordagem e


pode-se dizer que isso explica, de um lado, sua incompreensão da importância do Estado
para o triunfo do capital, ao tratá-los como instituições concorrentes e antinômicas,
quando, na verdade, fazem parte da mesma constituição orgânica; ao que se deve
acrescentar, de outro, o divórcio que mantém com a história, o que a impede de perceber as
forças econômicas, políticas e sociais que influenciam e determinam o próprio objeto de
sua investigação, e que, num movimento pendular – determinado pelas próprias
necessidades do sistema -, estabelecem fases alternadas de maior aproximação/afastamento
entre o capital e o Estado. Este trabalho adota a senda trilhada pela segunda abordagem,
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visando entender, historicamente, o papel do Estado, bem como os determinantes e a


dinâmica das finanças públicas nas várias etapas de desenvolvimento do sistema
capitalista, mas sem abdicar de discutir e apontar as limitações daquela teoria para essa
compreensão.

Embora percorra analiticamente as várias dimensões das finanças públicas e


apresente e problematize os conceitos utilizados nos vários campos deste ramo da ciência
econômica, como os de orçamento, gastos, tributação, déficit e dívida pública, este
trabalho distancia-se, assim, dos manuais convencionais de finanças públicas, à medida
que, em vez de se preocupar em apresentar “fórmulas mágicas” que podem garantir a
eficiência do setor público e do sistema, procura desvelar suas principais fraquezas e
insuficiência para os objetivos pretendidos e, mais importante, o que de fato se busca com
suas formulações. Por essa razão, embora em várias questões o trabalho apresente e discuta
as teorias, os conceitos e os princípios das finanças públicas presentes nos manuais, ele
deve ser visto mais como um “guia” de leitura que tem, por objetivo, compreender e
desvelar sua essência e a do Estado.

Com esse propósito de buscar caminhos alternativos para essa compreensão, ele se
encontra organizado em seis capítulos, além desta introdução. O primeiro realiza uma
visita ao agente responsável pela gestão das finanças públicas – o Estado -, analisando sua
evolução e os papéis que lhe foram sendo conferidos para garantir a reprodução do sistema
capitalista, à luz do processo de produção e de provisão de bens públicos. Seu objetivo foi
o de apreender como a partir das transformações qualitativas e quantitativas ocorridas no
desenvolvimento do capitalismo modificaram-se, historicamente, suas funções. Para
desvelar suas determinações mais gerais e também para entender a complexidade em que
se transformou o Estado nas diversas etapas de desenvolvimento do sistema capitalista,
procura-se, ainda, fazer um contraponto entre a visão convencional sobre o seu papel,
assentada nas funções alocativa, distributiva e estabilizadora; a visão marxista, que
nucleia sua análise nas funções de acumulação e legitimação; a visão neoliberal, para
quem o Estado, de acordo com a sua versão mais radical, a dos rent seeking, nem deveria
existir pelos prejuízos que sua ação acarreta para a economia e a sociedade; e a visão mais
moderna do “neo-institucionalismo” e da corrente teórica da “nova economia política”, as
quais, reconhecendo as limitações do mercado operar, por si só, com eficiência, abrem
espaço para o Estado contribuir nessa tarefa, com estruturas e instituições remodeladas e
eficientes. Uma análise da evolução do Estado no Brasil e de suas transformações no bojo
das principais mudanças operadas no quadro econômico e político até os nossos dias fecha
o capítulo.

O segundo é dedicado à análise do orçamento - a arena onde são tomadas as


decisões sobre as receitas, os gastos e a dívida do Estado, que afetam toda a sociedade. Seu
objetivo é o de demonstrar que, além de uma peça técnica e de um instrumento de
planejamento, o orçamento é, desde as suas origens, uma peça de cunho político, criada
para orientar as negociações sobre a distribuição das quotas de sacrifício que os membros
da sociedade incorrem para financiar as necessidades de recursos do Estado e também para
ser utilizada como um instrumento de seu controle sobre os seus gastos. O capítulo faz,
ainda, uma discussão sobre os princípios orçamentários mais importantes e sobre as várias
fases percorridas por esse instrumento nas sociedades democráticas, analisando, no final, a
experiência brasileira nessa questão.
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No terceiro, é apresentada a estrutura de classificação dos gastos públicos no


Brasil, de acordo com os critérios previstos na Lei 4320/64 e em seus desdobramentos
posteriores, e feita uma análise comparativa da posição das diversas correntes teóricas –
clássica, neoclássica, keynesiana, marxista, da “escolha pública” etc. – sobre o que
consideram os principais determinantes de seu crescimento e de sua composição, bem
como sobre os seus efeitos para a economia e para a questão distributiva. Uma discussão
sumária sobre a evolução dos gastos públicos no Brasil é nele também contemplada.

No quarto procura-se fazer uma discussão sobre a principal fonte de financiamento


do Estado: a tributação. Discorre sobre e problematiza conceitos como os de carga
tributária, tributos, contribuições sociais, impostos diretos e indiretos, e discute as origens
históricas das diversas formas de extração de recursos da sociedade pelo Estado. Realiza
uma discussão aprofundada sobre os princípios de tributação da teoria convencional –
especialmente os da “neutralidade” e “equidade” – e, na atualidade do mundo da
globalização, o de “competitividade”, que se tornou, neste contexto, norma superior da
tributação, procurando desvelar o que de fato se esconde por detrás de seu conteúdo e
mostrar suas dificuldades e limitações para a construção dos sistemas tributários e para a
determinação do tamanho e da composição da carga tributária. Apoiando-se em posições
teóricas distintas sobre essas questões, apresenta uma visão alternativa sobre esses
determinantes – do tamanho da carga tributária e, portanto, do tamanho do Estado, e de sua
composição –, bem como analisa a influência que os impostos sofrem e o papel que
desempenham no processo de acumulação de capital. Com uma avaliação das finanças
públicas em países selecionados e no Brasil, nos períodos analisados, procura-se dar
respaldo às interpretações alternativas apresentadas.

Uma discussão sobre os conceitos, implicações macroeconômicas e sobre os vários


papéis desempenhados pela dívida e o déficit públicos no processo de acumulação e da
importância e/ou restrições que estes representam para o processo de valorização do
capital, é realizada no quinto e sexto capítulos. No quinto, procura-se demonstrar como de
malefício considerado pelos economistas clássicos e neoclássicos para o funcionamento da
economia, o déficit público e a política fiscal transformam-se em instrumentos
regeneradores das forças do sistema, a partir das formulações keynesianas sobre a crise do
capitalismo na década de 1930, para retornarem à condição de vilões nos anos 1970,
juntamente com o Estado, apontados como responsáveis pelos desequilíbrios e
instabilidade que sobre ele se abateram a partir dessa época. Na esteira dessa crise, o
renascimento do neoclassicismo no bojo das transformações que conheceria o capitalismo
com a Terceira Revolução Industrial e o processo de globalização econômica, novamente
confinaria o papel da política fiscal à valorização do capital e à preservação da riqueza
financeira, negando-se, ao Estado, a possibilidade de incorrer em desequilíbrios
orçamentários. O tratamento que passa a ser dado ao déficit público tanto pelo mundo
desenvolvido como pelo restante do mundo e, em especial, pelo Brasil, com base neste
novo paradigma, bem como suas conseqüências econômicas e sociais e os limites que
coloca para o Estado desempenhar suas ações, é analisado ao longo do capítulo.

No sexto, analisa-se a dívida pública desde a sua origem como uma das alavancas
do processo de acumulação primitiva, passando pela visão da teoria econômica neoclássica
que a vê como prejudicial para o funcionamento do sistema e pela de Keynes, que resgata
sua importância para sua revitalização, até desaguar no paradigma teórico atual que a
prioriza como fonte de valorização do capital financeiro e exige, do Estado, sua
sustentabilidade temporal para assegurar o pagamento de seu serviço aos seus credores.
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Nessa perspectiva, déficit e dívida passam a operar como travas do crescimento econômico
e da acumulação produtiva para assegurar a felicidade do capital financeiro. A evolução da
trajetória da relação dívida/PIB nos países desenvolvidos e no Brasil é analisada para
avaliar como esta tem se comportado e que conseqüências acarreta para a reprodução do
sistema, à luz dos novos marcos teóricos que têm pautado a ação da política fiscal.

Elaborado com o objetivo de fazer uma leitura crítica da teoria convencional das
finanças públicas sobre os determinantes e sobre o papel e efeitos das receitas, dos gastos e
da dívida pública na economia, o trabalho percorreu diversos campos de análise dessa área,
contrapondo o pensamento de distintas correntes teóricas sobre essas questões, com o
objetivo de desvelar suas limitações, dificuldades e as que podem ser consideradas efetivas
contribuições para o seu entendimento. Com isso, foi inevitável o pouco aprofundamento
em alguns de seus pontos, que ficaram carecendo de maior desenvolvimento, o que,
entretanto, não compromete os resultados apresentados. Por outro, pretendendo ser útil
para os que se dedicam à pesquisa aplicada na área de finanças públicas, o trabalho
procurou incorporar outros pontos de uma maneira geral não contemplados nas
publicações existentes sobre o tema, como as que dizem respeito às contas do orçamento e
às diversas classificações, conceitos e indicadores que podem ser construídos com as
receitas e os gastos públicos para a análise das finanças públicas.

Quando o trabalho já estava concluído, o IBGE divulgou novos números do PIB


para o período 2000-2005, de acordo com a nova metodologia que passou a adotar para o
seu cálculo, a qual vigora desde 2006. De uma maneira geral, o desempenho da economia
mostrou-se bem mais favorável, mas a nova série trouxe dificuldades para se fazer
comparações com os períodos anteriores. Essa mudança alterou vários indicadores e
variáveis utilizados neste trabalho, como os de carga tributária, superávits fiscais, dívida
pública, considerados como proporção do PIB. Num esforço adicional procurou-se, na
maioria dos casos, fazer a atualização das séries dessas variáveis utilizadas no trabalho,
constatando que não se modificaram as tendências mais gerais apontadas nas análises
desenvolvidas. De qualquer forma, é necessário alertar para a necessidade de se ter algum
cuidado na comparação desses indicadores, a partir de 2000, com os períodos anteriores,
pois nem sempre a melhora ou piora neles registrada podem ser atribuídas a políticas
adotadas por um ou outro governo, mas apenas a essa mudança metodológica.

Vários amigos contribuíram para a sua elaboração. Francisco Luiz Cazeiro


Lopreato, da Universidade Estadual de Campinas, teve a paciência de ler as três primeiras
versões completas e suas observações e sugestões foram de grande importância para
esclarecer-me as principais questões do debate atual sobre a política fiscal e para corrigir
alguns equívocos em que incorrera. Cláudio Gontijo, da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), David Carvalho, da Universidade da Amazônia, Djalma Freire Borges, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Valdemir Pires e Helio Rodrigues, da
UNESP-Araraquara, Paulo Nakatani e Neide Vargas, da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), Álvaro Ramalho Jr. e Ricardo Carneiro, professores da Fundação João
Pinheiro, também me favoreceram com sua leitura e fizeram sugestões enriquecedoras
para sua melhoria. Fernando Amoni leu os capítulos iniciais e chamou minha atenção
especialmente para a pouca ênfase que vinha sendo dada à abordagem das várias teorias
que tratam das finanças públicas. A todos devo agradecimentos pelo resultado final, mas,
como de praxe, nenhum pode ser responsabilizado por erros que subsistiram.
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CAPÍTULO I

ESTADO E PRODUÇÃO DE BENS PÚBLICOS

NO PENSAMENTO ECONÔMICO*
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1. INTRODUÇÃO

Desde a sua formação, o Estado moderno não mais parou de crescer. Desfrutando de um
poder absoluto nas suas fases iniciais, mas com acanhada estrutura material, institucional e
financeira, evoluiu, nos períodos seguintes, para estender seu domínio e ampliar o controle
sobre a sociedade civil em todos os campos da vida econômica e social, ao ser legitimado
como instrumento de organização e de realização da humanidade e ao completar o
processo de constituição de suas estruturas, com a profissionalização das forças armadas e
o avanço da burocracia.

Tendo se tornado senhor da moeda e garantido o financiamento de suas atividades


com a cobrança de impostos consentidos, ao ser legitimado politicamente, viu caírem as
barreiras que ainda limitavam sua ação no campo econômico com a grande crise do
sistema capitalista da década de 1930, quando as idéias keynesianas justificaram sua maior
intervenção na economia para “salvar” o sistema da derrocada. De lá para cá, aumentou
consideravelmente seu poder de extração de receitas da renda e da riqueza geradas nas
economias em geral, as quais atingiram, em alguns casos, mais de 40% deste total, um
nível impensável, quando, apesar de apoiado em um poder absoluto, de origem divina,
engatinhava no processo de sua formação, limitado por condições financeiras, materiais e
institucionais.

Apesar dessa trajetória, a importância e o papel que o Estado tem desempenhado


para a reprodução do sistema econômico capitalista não conquistaram unanimidade no
pensamento econômico. Vilão para alguns, à medida que, de sua ação, acredita-se, geram-
se ineficiências para o sistema econômico, o Estado deveria limitar-se, nessa visão, a
desempenhar poucas atividades, apenas cuidando da ordem e da segurança interna e
externa e protegendo os direitos da propriedade. Considerado, por outros, como
indispensável para garantir as condições de reprodução do sistema e evitar o seu colapso,
pelas contradições que este encerra, ao Estado, para cumprir sua sina e tornar vitorioso o
capital, deveriam ser atribuídas bem mais atividades do que as preconizadas por seus
oponentes. Em meio a este debate, onde ora predomina uma ou outra dessas posições sobre
a dimensão e os papéis que lhe cabem, o fato é que o Estado não parou de avançar e de se
consolidar como instrumento de organização da sociedade e de garantia da reprodução do
sistema, criando as condições necessárias para tanto, mesmo quando retornaram
revigoradas, nas últimas décadas do século XX, as vozes que se opõem à sua presença na
economia.

Este capítulo é dedicado a analisar a evolução do papel do Estado ao longo das


fases marcantes do desenvolvimento do capitalismo, bem como as mudanças que
ocorreram em suas formas de atuação. Para tanto examina, na segunda seção, a evolução
dessa forma de “enxergar” o Estado pelo pensamento econômico dominante, as revisões
nele operadas à luz dessas transformações, bem como os argumentos teóricos utilizados
para justificar o aumento ou redução de suas atividades. Na terceira apresenta, como
contraponto a este pensamento, a visão marxista sobre o papel do Estado, que entende sua
essência como elemento associado ao capital e seus movimentos pendulares como
resultado da necessidade de dar respostas às demandas do sistema para garantir sua
reprodução. Na quarta, faz um balanço “livre” dessas posições, procurando colher
elementos que melhor permitam entender sua natureza, dinâmica e tendências. Na quinta,
analisa, em linhas gerais, a evolução do Estado na economia brasileira, procurando
14

apreender como os elementos dessas teorias influenciaram sua conformação, tamanho e


natureza e refletiram-se nas suas estruturas de financiamento e de gastos.

Desvelar a essência do Estado, com essa leitura, é importante para o propósito


deste trabalho que é o de identificar tanto os determinantes de seus gastos (e de seu
crescimento) como as fontes de onde retira recursos para o seu financiamento, bem como a
que situação pode conduzir este processo no estágio atual de desenvolvimento do
capitalismo, em que sua forma de atuação se encontra sob forte questionamento pela teoria
econômica dominante e pelo mundo dos negócios.

2. A EVOLUÇÃO DO ESTADO NO CAPITALISMO E O PENSAMENTO


ECONÕMICO DOMINANTE

O Estado cumpre na sociedade, desde a sua origem, determinados papéis que


variam em função de sua inserção na realidade histórico-concreta. Para desempenhá-los
precisa ele de dispor de um determinado montante de recursos que serão utilizados para o
funcionamento da máquina pública, a manutenção das forças armadas, o pagamento de
seus funcionários e para a realização de obras demandadas pela sociedade. A dimensão dos
recursos de que necessita varia, assim, em função da dimensão e da amplitude do papel
que desempenha nessa realidade. Papel que se amplia ou se estreita, à medida que se
modificam as condições de reprodução do capital, as quais, por sua vez, refletem-se sobre
a sua natureza e sobre a sua forma de atuação.

Segundo Musgrave & Musgrave (1980, Cap. 1), que atribuem grande importância
às falhas do mercado para explicar sua forma de atuação, “…há explicações ideológicas,
sociais e políticas [para justificar tanto os papéis que cumpre como o seu tamanho], mas o
fato é que o mecanismo do sistema não pode desempenhar sozinho todas as funções
econômicas. A atuação governamental é necessária para guiar, corrigir e suplementar este
mecanismo em alguns aspectos, o que torna o tamanho apropriado do setor público uma
questão técnica ao invés de uma questão ideológica.”

A posição desses autores representa a síntese de um período da história do


capitalismo onde houve o predomínio de determinadas correntes teóricas sobre a
importância do papel do Estado para corrigir essas falhas e para fortalecer e consolidar o
sistema capitalista. Nessa perspectiva, ao Estado caberia desempenhar determinadas
funções – alocativa, estabilizadora e distributiva -, indispensáveis para um eficiente
funcionamento do sistema, as quais o mercado, pela sua natureza, não seria capaz de
cumprir.

Nem sempre, entretanto, essas idéias prevaleceram ao mesmo tempo, assim como
também nem sempre os papéis por ele desempenhados integraram o corpo teórico do
pensamento dominante. Houve períodos na história do capitalismo em que o papel do
Estado consistiu precipuamente em criar e garantir as condições para o triunfo do capital,
ainda que isso implicasse restrições à sua liberdade. Em outros, quando muito se admitia o
desempenho de sua função alocativa para prover a sociedade de bens que o mercado não
seria capaz de produzir, deixando o capital livre das amarras que aparentemente prendiam
seus movimentos ao Estado. Assim como houve períodos em que não somente essas
funções foram ampliadas como também lhe foram conferidas atribuições de forte
regulação da vida econômica para impedir que a concorrência intercapitalista conduzisse o
15

sistema ao colapso. A partir da década de 1980, depois de um longo período de regulação e


de ampliação dos papéis do Estado, ressurgiram, com força, as teses antiestado e anti-
regulamentação, sob o argumento de que sua intervenção provoca mais prejuízos para o
sistema do que o mercado com suas falhas. Tese que não levou muito tempo para
novamente ruir, diante dos estragos produzidos pelas políticas neoliberais e,
posteriormente, com a crise financeira sistêmica provocada pela “bolha” das hipotecas nos
EUA na segunda metade da primeira década do século XXI.

Desse breve relato, pode-se inferir que as funções do Estado tendem a se modificar
historicamente. E, como num movimento pendular, fases de liberdade econômica tendem a
se alternar com fases de maior regulação, modificando-se seus papéis. E mais: a
legitimação de sua forma de atuação encontra, em cada um destes períodos, respaldo em
um conjunto de explicações teóricas que a sustentam e justificam. Por isso, para entender
as transformações qualitativas operadas em seu aparelho e nas suas formas de atuação,
torna-se necessário acompanhar sua trajetória à luz das grandes mudanças ocorridas no
modo de produção capitalista, desde o seu nascimento até os dias atuais, e analisar como o
pensamento teórico dominante, que em alguns períodos condenou sua intervenção no
campo econômico, em outros a justificou como necessária para revitalizar suas forças,
utilizando os mesmos argumentos que antes combatera.

2.1. O Estado e as fases de desenvolvimento do capitalismo

A análise feita em seguida sobre os papéis desempenhados pelo Estado e as


transformações ocorridas em seu aparelho percorre quatro fases marcantes de
desenvolvimento da sociedade capitalista: a) a do período conhecido como Mercantilismo,
que corresponde ao momento em que se gestam as condições necessárias para a
emergência do capitalismo; b) a do período do capitalismo concorrencial, onde
predominam os ideais da doutrina liberal, da liberdade de escolha para o capital em
oposição à forte regulação do período anterior; c) a do período do capitalismo monopolista,
onde novamente o Estado é convocado para intervir e regular o funcionamento do sistema;
e d) a do capitalismo mundializado (globalizado), onde retornam, com força, as idéias de
desregulamentação e de maior liberdade para o capital.

Se é possível fazer uma analogia dessa evolução com as fases do desenvolvimento


da vida humana, podemos identificar no mercantilismo a infância do capitalismo, o
período em que, chegando a um mundo desconhecido e, às vezes hostil, o capital (ou a
criança) precisa contar essencialmente com proteção para nele se situar e se instalar, o que
encontra no Estado (ou no pai). No capitalismo concorrencial, a sua adolescência, período
de rebeldia em que, se sentindo capaz de andar com suas próprias pernas, dispensa a tutela
do pai (do Estado) e se aventura por caminhos ignotos, como dono do mundo. No
capitalismo monopolista, a fase de maturidade, em que se retorna ao lar, reconhecendo a
importância do pai (do Estado) para a travessia da longa jornada da vida com menores
riscos e conflitos. No mundo globalizado, a terceira (ou quarta) idade, em que se
mesclam sonhos juvenis de liberdade com a percepção dos sinais de outono, e, sentindo-se
privado de limites, quer-se reviver projetos e ilusões que se mostraram inviáveis, em outros
períodos, desprezando os riscos que isso representa.

2.1.1. O Estado no Mercantilismo: a infância


16

A história da sociedade capitalista revela que as funções assumidas pelo Estado na


economia expandiram-se consideravelmente a partir do século XX e, mais
especificamente, das adversidades resultantes da crise de 1929, que induziram alguns
governos a acionar a máquina pública, visando atenuar os efeitos deletérios engendrados
sobre o nível de renda e de emprego da economia. Roosevelt nos EUA, ancorado no pacto
social e democrático do "New Deal", e Hitler, na Alemanha, que atemorizou o mundo com
os horrores do nazismo, constituem exemplos conspícuos da forma como o Estado, embora
em direções distintas, entronizar-se-ia na vida econômica e social de forma crescente,
antecipando, em alguns casos, as formulações keynesianas sobre o papel que lhe caberia
desempenhar diante de situações de crise enfrentadas pelo sistema.

Antes da crise de 1929, em plena vigência da doutrina liberal, eram restritas as


funções atribuídas ao Estado. Segundo preconizava essa doutrina, o Estado deveria evitar
imiscuir-se na vida econômica, sob pena de reduzir a eficiência do sistema. Era
imprescindível, nessa perspectiva, que os mecanismos de mercado operassem sem
restrições, sendo o Estado visto como um mero agente consumidor improdutivo e, como
conseqüência, a atividade governamental como um mal necessário. Em virtude disso, era-
lhe reservado o papel de guardião do sistema, o qual se restringia ao cumprimento das
tarefas de mantenedor da ordem e da segurança do país, oferecendo e fornecendo serviços
de defesa, justiça, diplomacia e algumas poucas obras públicas.

O arcabouço teórico que dava amparo à tese de que o Estado deveria ter uma
atuação passiva na economia tinha suas raízes plantadas nas idéias liberais que se
consolidaram no século XVIII e que representaram um libelo contra a doutrina
mercantilista, que imperou durante o período que separa a Idade Média do liberalismo, e
que demarca, historicamente, a época em que ocorre a acumulação primitiva do capital.
Neste período, também conhecido como Mercantilismo, dado o predomínio do capital
mercantil sobre o capital industrial, o Estado, ao contrário daquele que o sucederá,
exerceria um papel tão amplo quanto agressivo na vida da sociedade.

Corresponde o Mercantilismo ao período em que se gestam as condições


requeridas para o advento da sociedade capitalista. É, portanto, um período de transição,
que retém elementos tanto do modo de produção anterior - o feudal - como do que estava
para se instaurar - o capitalista. Mas para liquidar os resquícios do mundo medieval, que
entravavam o desenvolvimento da produção, foi necessário romper com dogmas e crenças
vigentes e quebrar a coluna dorsal das forças que se opunham às mudanças que abririam o
caminho para colocar a produção da riqueza material e do enriquecimento como valor
supremo do homem.

Não foi um processo simples, linear e nem coincidente, no tempo, nos países que o
percorreram. Pelo contrário, foi um processo longo, que exigiu mudanças na visão
predominante de mundo sobre o fim da vida social e do Estado, lutas contra as forças
políticas que sustentavam e se beneficiavam do sistema dominante, e criação das
condições econômicas e também de infra-estrutura necessárias para viabilizar a nova
perspectiva de vida e de realização da humanidade que brota deste período. Para Denis
(1974:98), com as idéias mercantilistas “... teremos, pela primeira vez, diante de nós, uma
teoria da sociedade que se desenvolve essencialmente no âmbito da economia, dado que o
fim da vida social [passa a ser] concebido com um fim econômico e que [...] os meios
encarados para realizar esse fim são também econômicos.”. Condenado pela igreja, a busca
17

pelo lucro oriundo das atividades comerciais e financeiras transforma-se, a partir deste
período, em atividade indispensável para o homem alcançar a felicidade.

A construção da riqueza depende, contudo, nessa doutrina, da participação decisiva


do Estado, o qual, por sua vez, necessita dessa mesma riqueza para seu fortalecimento.
Para os mercantilistas, o enriquecimento de um país é dado pelo lucro do comércio e da
indústria, que, para se materializar, depende do desenvolvimento das atividades
exportadoras, com as quais se garante o fluxo e a abundância de metais (moeda) para a
expansão dos empréstimos essenciais para o desenvolvimento. E é dessa mesma riqueza
que se alimenta o Estado, de acordo com Denis (1974:107) para aumentar seu poder, dado
que é dela que obtém receitas para formar exércitos e constituir tesouros de guerra. Os
interesses dos mercadores – a busca pelo lucro – se confundem e se misturam, nessa visão,
com os interesses do próprio Estado na busca por maior poder.

A criação das condições objetivas para a produção dessa riqueza dependia,


também, da reunião crescente de homens no mercado de trabalho, da implementação de
políticas específicas voltadas para o desenvolvimento do comércio e da manufatura, da
integração do mercado nacional. Insuficientemente forte para comandar essas mudanças, a
burguesia comercial alia-se e se apóia no Estado – e o instrumentaliza – para liquidar com
o particularismo regional fundado na existência da economia natural e nas deficientes vias
de comunicações e para garantir a delimitação das fronteiras nacionais, indispensável para
a implementação dessas políticas.

Tarefa de tal envergadura, só poderia ser realizada por um Estado forte. É isso que
explica porque as idéias mercantilistas, favoráveis ao fortalecimento do Estado, mantêm
uma admirável coerência, uma unidade irrepreensível de pensamento, evidenciando-se em
todas as obras de seus representantes. Não sem razão o Estado atua, nessa época, como o
termômetro da sociedade, como o seu grande regulador, imiscuindo-se em áreas tão
variadas quanto abrangentes, tais como as que se referem, inter alia, ao controle exercido
sobre os salários, à promulgação de leis sobre o desemprego, à concessão de monopólios
para a exploração de determinadas atividades, ao mesmo tempo em que é ele quem
comanda as grandes conquistas coloniais. Nas palavras de Faoro (2000:70), nesse período,

“o Estado organiza o comércio, incrementa a indústria, assegura a


apropriação da terra, determina salários, tudo para o enriquecimento da
nação e o proveito do grupo que a dirige. O mercantilismo opera sob tal
constelação, como agente unificatório e centralizador, versado contra o
disperso e universal mundo da idade média. O Estado, desta forma elevado a
uma posição prevalecente, ganha poder, internamente contra as instituições e
classes particularistas, e, externamente, se estrutura como nação em
confronto com outras nações. Do seu seio, mediante este estímulo, floresce o
absolutismo, consagrado na razão do Estado.”

Com o fortalecimento do Estado, amplia-se o poder do monarca e, com a igreja


minada em suas forças, transfere-se para ele o poder divino. De acordo com Denis
(1974:99) “a nova filosofia política é oposta à concepção católica do Estado defendida na
Idade Média, porque faz do Estado uma força autônoma e não uma realidade subordinada
à igreja.” Nessa época, em que não havia separação entre a esfera pública e a esfera
privada e o governante era identificado com o governo, Estado e rei se tornam absolutos.
Fundado no poder divino, o rei dispõe de poderes ilimitados. Segundo Soboul (1981:
Cap.2): “o rei é a fonte de toda a justiça; de toda a religião; de toda atividade
18

administrativa; da guerra e da paz.” Estado e governante fundem-se, portanto, numa única


entidade, ungida pelo poder divino. É isso que permite compreender a célebre síntese dessa
situação feita por Luís XIV, rei da França entre 1661 e 1715, ao afirmar que “l’état c’est
moi” (“O Estado sou eu”).

Este excessivo poder do Estado constituirá a razão que conduzirá ao seu


enfraquecimento, ao despertar e impulsionar resistências à liberdade com que contava para
cobrar tributos e contrair vultosos empréstimos para o financiamento de suas atividades e
dos governantes, tornando-se, com isso, um crescente obstáculo para o desenvolvimento
das atividades produtivas. As revoluções inglesa de 1648 e de 1688, assim como a
revolução francesa de 1789, representam, na história, pontos culminantes das resistências
que foram surgindo e crescentemente se opondo ao Estado absolutista, as quais, com sua
derrocada, vão imprimir nova feição ao Estado, separando-o, definitivamente, da figura do
governante e estabelecendo mecanismos de controle da sociedade sobre suas formas de
atuação e de decisões tomadas sobre gastos e cobrança de tributos. As transformações que
se operaram nas condições econômicas, políticas e intelectuais, neste longo período em
que o Estado absolutista predominou, encontram-se na base que deu origem à nova
concepção – e configuração – do Estado que brota no século XVIII.

2.1.2. O Estado no Capitalismo Concorrencial: a adolescência

Enquanto o sistema capitalista avançava na construção de suas bases, a existência de um


Estado forte, com grande poder regulatório e intervencionista na vida social e econômica
do país, revelou-se altamente funcional para os objetivos da burguesia nascente. À medida,
entretanto, que o capitalismo sentiu-se suficientemente confiante para andar com os seus
próprios pés, dispensou essa tutela, apontando-a como contrária aos seus interesses e à sua
indispensável liberdade para garantir mais rapidamente, em escala crescente, a sua
reprodução. Com essa mudança, a liberdade de que desfrutava o Executivo, na figura do
monarca, para impor sua vontade, viu-se enfraquecida e sua atuação limitada a poucas
atividades. O avanço das idéias que se opunham ao absolutismo, associado ao surgimento
das explicações mecânicas do mundo combinaram-se para dar lugar à construção das bases
da teoria econômica, onde ao Estado estaria reservado papel importante, mas
complementar às forças endógenas de reprodução do sistema.

No plano político, as obras de Hobbes, Locke e Montesquieu reforçaram a


importância do Estado na organização da sociedade, mas separando-o do governante, ao
descartarem o direito divino que mantinha estes elos e criarem meios para proteger a
sociedade civil do poder arbitrário do soberano. Da obra de Montesquieu, O espírito das
leis, sairia a fórmula que asseguraria o triunfo definitivo do Estado, mas representaria, ao
mesmo tempo, um antídoto contra o seu poder absoluto, ao dividir e distribuir sua
soberania entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário (Cf. van Creveld, 2004:cap. 3).
Com a separação Estado/governante, a esfera pública desprendeu-se da esfera privada,
surgindo, para a sociedade, instrumentos e canais para influenciar e controlar a tomada de
decisões do Estado. Legitimado politicamente, este, em que pese ter sua atuação cerceada
no campo econômico, neste período, estendeu e ampliou rapidamente seu domínio e
controle sobre a sociedade civil em diversos campos, como os da segurança, oferta de
determinados serviços e regulamentação de várias atividades. A constituição de sua
ossatura material e o crescimento da burocracia, juntamente com a profissionalização das
forças armadas à sua disposição, garantiriam a firmeza desta trajetória. Segundo Creveld
(2004:369-370), que resume bem essa trajetória, o Estado
19

“Quando viu a luz do dia pela primeira vez, era relativamente


pequeno e fraco, a ponto de alguns governantes
megalomaníacos o olharem de cima e afirmar que era idêntico à
sua própria pessoa. De então em diante, foi crescendo
incessantemente. A cada estágio, destacava-se da sociedade
civil e se elevava acima dela. Ao fazê-lo, encomendava mapas e
usava-os para fazer declarações políticas sobre si mesmo;
aumentou os impostos e, o que talvez seja mais importante,
concentrou-os em suas mãos. Para completar seu predomínio,
criou forças policiais e de segurança, prisões, forças armadas e
órgãos especializados, responsáveis pela supervisão da
educação e do bem estar social...”.

Por outro lado, à medida que o comércio e a indústria se desenvolviam,


fortalecendo econômica e financeiramente a burguesia, mais esta passava a prescindir
do apoio do Estado para ultimar seus objetivos. Com a realidade objetiva se
transformando, novas idéias sobre o comportamento dos fenômenos da natureza foram
surgindo. As explicações mecânicas do mundo defendidas por Galileu, Descartes e
Locke desmontam a idéia aristotélica da imutabilidade do ser, ao demonstrarem, nas
palavras de Denis (1975:140) que “os movimentos [...] não se devem explicar pela
natureza ou pelas qualidades dos seres, mas como efeitos de certos choques ou de
impulsões comunicados do exterior às coisas”, método que tornaria possível prever um
grande número de fenômenos, por meio de fórmulas matemáticas relacionando suas
causas e efeitos. Foi com esse avanço da ciência que se abriu a possibilidade, que teve
como precursores, na economia, os pensadores da escola conhecida como fisiocracia, de
se aplicar aos fatos humanos os métodos da física. Existiria, nessa perspectiva, uma
“ordem natural”, que regula os movimentos dos seres, sendo possível compreendê-los
por meio da investigação de suas relações de causa e efeitos, apesar de seu controle
direto não estar ao alcance do homem.

Apoiados nessa visão, os economistas clássicos (Smith, Ricardo, Mill)


procuraram compreender o funcionamento do organismo econômico, como se esse
fosse governado por “leis naturais”, as quais, se não subvertidas por fatores externos,
seriam capazes de garantir a eficiência do sistema. Na imagem celebrizada por Smith
existiria uma "mão invisível" que se encarregaria de promover a melhor alocação de
recursos da economia e de conduzi-la para um ponto de equilíbrio “natural”, desde que
assegurada a liberdade também “natural” do comércio (a concorrência) e se mantivesse
o Estado – uma força externa a este organismo – à distância deste mundo. Neste caso,
dispondo cada um de “liberdade” para escolher e decidir sobre suas atividades e
negócios e de realizar livremente trocas no mercado, mecanismo que corrigiria falhas e
desvios cometidos pelos agentes econômicos nas suas decisões de produção, consumo,
trabalho etc. – seriam alcançadas a eficiência e a felicidade individual, traduzindo-se em
benefícios para toda sociedade. O mercado disporia, nessa perspectiva, de mecanismos
estabilizadores automáticos, por meio da concorrência, capazes de corrigir seus
desequilíbrios e garantir eficiência se não sofresse interferências externas.

Em suas obras, portanto, as variáveis econômicas apresentam-se como dotadas


de valores da natureza – valor natural do trabalho, taxa natural de juros, equilíbrio
natural da economia -, cujo curso poderia, contudo, conhecer desvios de suas
“tendências naturais” em decorrência de fricções e entrechoques provocados por
20

problemas surgidos no curso da acumulação, caso, por exemplo, dos efeitos provocados
por uma situação de escassez ou abundância da força de trabalho sobre os salários e
sobre os lucros. Por isso, a preocupação dos economistas clássicos será a de investigar
as leis que determinam a distribuição da renda entre as classes da sociedade envolvidas
no processo de produção – trabalhadores, capitalistas e proprietários de terra – e sua
influência/efeitos sobre o processo de acumulação de longo prazo.

Todos os seus esforços são voltados, diante disso, para identificar a fonte de
valor das mercadorias e as leis que determinam sua distribuição entre os salários, os
lucros e a renda da terra, bem como os fatores que a modificam, durante o processo de
crescimento, provocando desvios de sua “tendência natural”, com prejuízos para a
acumulação. Mas, apesar dessas inevitáveis fricções, se o Estado não se imiscuísse neste
processo, o organismo econômico, por meio de suas leis naturais, seria capaz de corrigir
esses desvios e recolocar a economia em sua trajetória natural. Era, para o que nos
interessa, a senha para se pôr cobro à sua liberdade de intervir na vida econômica, tão
defendida pelos mercantilistas.

Este edifício da economia, no qual não havia lugar para o Estado, recebeu
contribuições de vários autores em sua construção. Comandado por uma “mão
invisível”, ou por leis naturais, o sistema contaria com mecanismos estabilizadores
automáticos que garantiriam uma situação permanente de equilíbrio. Neste sistema, não
havia lugar para a ociosidade do capital e nem crises gerais, já que a Lei de Say,
também incorporada ao modelo teórico de Ricardo, assegurava que toda produção
encontraria mercado; a flexibilidade dos preços, salários e taxas de juros, bem como a
ausência do Estado no interior deste organismo, garantiam a correção de eventuais
desvios da trajetória de equilíbrio da economia; e a igualação da taxa de lucro,
determinada pela concorrência, aparecia resolvendo, por sua vez, os conflitos entre os
distintos tipos e dimensões do capital (industrial, agrícola, financeiro etc.) e garantindo
a reprodução do sistema. Apesar das inevitáveis fricções que poderiam surgir, mantida a
liberdade de cada um de buscar seu interesse pessoal, essa seria o motor (a força, ou
alavanca) que movimentaria a roda da produção da felicidade geral, beneficiando a
sociedade como um todo.

É importante fazer uma distinção sobre o conceito de eficiência utilizado por essa
escola da economia, denominada clássica, pois este conhecerá modificação substantiva nas
escolas que surgirão nos períodos seguintes, conhecidas como neoclássica e novo-clássica.

Como mostra Ramalho Jr. (2006), o conceito de eficiência, na escola clássica, é


resultado “... da liberdade de ação que possui o indivíduo de poder escolher e se dedicar à
atividade em que apresenta maior habilidade e produtividade.” É essa lógica que encontra
no mercado (a mão invisível de Smith) os elementos para a correção de erros de avaliação
e de desvios cometidos pelos agentes econômicos, o que garante eficiência máxima para o
sistema, traduzindo-se em benefícios para o conjunto da sociedade.

2.1.2.1. Abrindo uma exceção para o Estado em nome da eficiência: os bens públicos

Na construção deste edifício, percebeu-se, contudo, que nem tudo poderia ser
produzido e ofertado pelo mercado, já que este não era capaz de captar e transmitir, para
certos tipos de bens, os sinais dos consumidores para o sistema produtivo, o que, se não
corrigido, geraria ineficiência para o sistema como um todo. Era o caso, por exemplo, de
21

alguns bens e serviços que apresentavam características distintas dos que são produzidos
pelo setor privado, por não serem divisíveis para o consumo individual e, por essa razão,
não serem capazes de fornecer os elementos para o cálculo de custos, preços e volume
produzido necessários para a determinação da taxa de lucro, motor primus do sistema.

Essenciais para sua eficiência, a responsabilidade pela produção destes bens de


consumo coletivo – chamados modernamente de bens públicos – passou a ser atribuída ao
Estado, com o seu financiamento sendo garantido pela cobrança de impostos gerais. A
condição para que isso fosse possível, era a de que o Estado não deveria incorrer em déficit
orçamentário, operando, portanto, com contas equilibradas, um dos pilares que sustentava
a visão de equilíbrio geral do sistema. Da construção da teoria econômica, apoiada nos
ideais do liberalismo, derivou-se, assim, uma função específica para o Estado, mais
modernamente conhecida como função alocativa, justificada pela existência de falhas
apresentadas pelo mercado na produção de bens e serviços de consumo coletivo. Pelo que
representa na trajetória do Estado, convém explicitar melhor o seu significado, bem como
as diferenças e características do que aqui chamamos de bens públicos e bens privados. 1

A função alocativa atribuída ao Estado surgiu, neste novo corpo teórico, como
resultado do reconhecimento da incapacidade do mercado de suprir a sociedade de bens e
serviços de consumo coletivo, tais como os conhecemos na atualidade: defesa e segurança
públicas, iluminação de ruas e avenidas, proteção ambiental, etc. Isso porque, como o
consumo desses bens e serviços por determinado(s) indivíduo(s) não obedece ao princípio
da exclusão - um princípio que assegura o acesso ao mercado somente para aqueles que
dispõem de recursos para adquirir determinado produto - por se caracterizar como um
consumo não-rival - seu consumo por um ou mais indivíduos não reduz a sua quantidade
para o consumo de outros - não há meios de o mercado estabelecer/definir seu preço,
tornando-se, portanto, inviável sua produção pelo setor privado. Como se tratam,
entretanto, de bens e serviços indispensáveis para a sociedade, cabe ao Estado destinar
recursos de seu orçamento para produzi-los e satisfazer sua demanda.

São estes denominados bens públicos, os quais não permitem, por apresentarem
essas características, a mensuração da quantidade consumida e, consequentemente, dos
benefícios com eles recebidos pelo indivíduo - problematizando o estabelecimento da
contribuição a ser cobrada pelo poder público -, à medida que os consumidores não se
sentem propensos a revelar a sua escala de preferência por estes bens e serviços.

Contrariamente, os bens privados se caracterizam por sua divisibilidade, por


serem bens de consumo-rival, à medida que alcançam preços de mercado, e por estarem
sujeitos ao princípio da exclusão. Os economistas da escola clássica e, posteriormente, os
da neoclássica, convictos, de acordo com os pressupostos teóricos da livre concorrência,
das virtudes auto-reguladoras do mercado, concordavam que, somente no caso de ausência
de sinais para ele emitidos, caso característico dos bens públicos, estaria justificada a
interferência do Estado para garantir sua oferta e, com isso, aumentar a eficiência do
sistema.
1
Deve-se chamar a atenção para o fato de que não foram os economistas da escola clássica que
desenvolveram estes conceitos e estabeleceram princípios para diferenciar bens públicos de bens
privados. Embora a eles se refiram, foram os economistas da chamada “Síntese Neoclássica” – uma
combinação de teoria keynesiana com teoria neoclássica renovada, de acordo com Osdchaya (1974:289) -
que reuniram em torno de três funções – alocativa, distributiva e estabilizadora – as ações desenvolvidas
pelo Estado, para avaliá-los em termos de eficiência e desenvolveram princípios de distinção entre estes
bens, à luz dos mecanismos do mercado e de equilíbrio do sistema.
22

De acordo com essa visão, apoiada, portanto, na crença de que leis naturais
governavam o organismo econômico (a "mão invisível" de Smith), qualquer interferência
"externa" a esse mundo seria capaz de provocar fricções e de reduzir a eficiência do
sistema. E, como se considerava o Estado uma força externa, à medida que este não surgira
com a sociedade, mas em determinado estágio de seu desenvolvimento, sua presença na
vida econômica era vista como uma barreira que impedia a sociedade de alcançar essa
eficiência. Isto porque, ainda de acordo com essa argumentação, desde que cada indivíduo
tenha liberdade de escolher as atividades de seu interesse e em que apresente condições de
obter maiores ganhos, o resultado final deste processo seria, no conjunto, benéfico para
toda a sociedade. Por isso, o Estado deveria manter-se à margem do sistema econômico,
sem nele intervir e restringir-se a garantir a defesa e a segurança do país. Essa constituiria a
época de ouro do laissez faire, quando se acreditava, como o Dr. Pangloss, de Voltaire,
que tudo corria pelo melhor no melhor dos mundos possíveis.

2.1.2.2. A eficiência em xeque e a escola neoclássica: novos rumos teóricos

Muito cedo, entretanto, os alicerces do liberalismo começaram a sofrer abalos. O


progresso industrial representado pela Revolução Industrial ocorrida na Grã-Bretanha no
século XVIII trouxe, como conseqüência, um aumento tão acentuado da pobreza que
crianças e mulheres terminaram sendo lançadas no mercado, trabalhando em condições
desumanas, para complementar a renda familiar. O progresso evidenciava, assim, a falácia
da premissa liberal: a de que a busca da felicidade e do bem-estar individual resultaria na
felicidade geral. Pelo contrário, assistia-se à confirmação da teoria da seleção natural, que
assegurava aos ricos e poderosos tornarem-se ainda mais ricos e os pobres ainda mais
pobres. Rosseau foi um dos poucos pensadores da escola liberal que desvelaria esse
fenômeno e mostraria a importância da intervenção do Estado na vida econômica e social
para reduzir as desigualdades existentes. Foram, entretanto, as idéias socialistas, que
encontraram um campo fértil para desnudar, primeiramente, de forma assistemática, e,
mais tarde, cientificamente estruturadas, a essência do capitalismo e para pôr a descoberto
o papel que o Estado desempenhava numa sociedade de classes: o de servir de instrumento
para a classe dominante.

Contra essas vozes que ganhavam, pouco a pouco, maior orquestração,


surgiriam, por volta de 1870, trabalhos de três autores, os quais, embora defendendo,
como a economia clássica inglesa, as vantagens do liberalismo econômico, afastavam-se
de suas principais bases teóricas que tinham no trabalho (na força de trabalho) a fonte
de criação de valor, ao enfatizarem apenas o valor da utilidade das mercadorias na sua
determinação. Com isso, a discussão do preço deixou de estar subordinada a
preocupações com o valor “natural” a longo prazo, que marcaram a obra dos
economistas clássicos, e a questão da distribuição dos rendimentos ganhou outra
explicação.

Walras, Jevons e Menger, considerados os fundadores da teoria neoclássica,


apoiados no principio marginal, desenvolveriam, aparentemente sem se conhecerem, a
idéia de ser o produto gerado resultado da participação e combinação dos fatores de
produção trabalho-capital-terra, valendo-se da tese de Say sobre a origem/fonte dos
rendimentos. E, apoiados naquele princípio, de que a distribuição destes rendimentos
entre esses fatores de produção seria determinada pela contribuição marginal
(produtividade marginal, um conceito posteriormente trabalhado e refinado por J.B.
23

Clark) que cada um dava ao processo, avalizada pelo mercado, de acordo com a
utilidade do produto. Substituíram, com isso, a preocupação dos clássicos em investigar
o valor natural das mercadorias no longo prazo, bem como a leis de sua distribuição
entre lucros, salários e rendas, e suas implicações para o crescimento econômico, para a
investigação do processo de alocação de recursos feitas pelas unidades econômicas que
tomavam essas decisões – famílias e firmas – que encontravam, no mercado, os
mecanismos de sua correção, por meio dos preços determinados pela oferta e procura,
para garantir a máxima eficiência do sistema.

Colocados no mesmo pé-de-igualdade pela teoria, os conflitos de classes


desapareceram e, com a distribuição de seus rendimentos sendo determinados pela
utilidade do produto e pela produtividade marginal dos fatores de produção, erigiu-se
uma estrutura teórica em que o mercado, funcionando sem a interferência do Estado,
seria capaz de garantir a reprodução harmônica do sistema.

No mundo surgido da escola neoclássica, que contou com a contribuição de


vários outros autores (Marshall, Wicksell, Böhm-Baverk, Fisher), ergueu-se, assim, um
mundo econômico perfeito, governado por leis naturais e pela concorrência: constituído,
de um lado, de uma multidão de pequenas empresas concorrendo entre si, essas não
dispunham de poder para determinar as condições de oferta, o preço do produto e a taxa
de lucro de suas atividades; contando, de outro, com consumidores soberanos,
indivíduos racionais, egoístas em busca da maximização de suas rendas e utilidades, os
quais, dispondo de todas as informações de mercado, participavam da determinação dos
preços, das quantidades demandadas e do nível de produção requerido, por meio da
manifestação de suas preferências, garantia-se que o sistema operasse com o máximo de
eficiência.

É interessante ressaltar como se modifica, com essa escola, apoiada na perspectiva


utilitarista, o conceito de eficiência e as relações entre os fatores de produção. Nela, e nas
que a sucederam no pensamento dominante, os conceitos de racionalidade e eficiência
passam a ser associadas à perspectiva utilitarista em que cada agente busca a maximização
de suas utilidades de uso (consumo e fatores de produção), com base em pressupostos
dados, deslocando-se e modificando o enfoque analítico utilizado pelos economistas
clássicos. O mercado continua sendo o campo (o guia) de convergência das decisões dos
agentes econômicos e de sinalizador dos ajustes e correções necessárias para a máxima
eficiência alocativa, condicionada, contudo, à restrição orçamentária de cada agente que
dele participa. Mas o que determina essa capacidade orçamentária que este utiliza para
maximizar suas utilidades (consumo de produtos, lucros etc.)?

A resposta da teoria é óbvia: considerando a utilidade dos fatores de produção (a


produtividade, neste caso) para a geração da riqueza social, é a contribuição marginal que
cada um agrega ao produto obtido que determina essa capacidade (a sua remuneração),
variando essa, portanto, em função de sua eficiência. Dessa forma, quanto menos eficiente
o agente, menores os recursos com que contará para satisfazer o princípio de sua
racionalidade maximizadora. Quanto mais eficiente, maior sua contribuição e, portanto,
maior a sua capacidade orçamentária para essa finalidade. Uma espécie de “vale quanto
pesa”, sem possibilidades de correção das desigualdades existentes, já que a teoria não leva
em conta a questão distributiva e opera, em sua lógica de maximização das utilidades, com
o pressuposto de uma estrutura de distribuição de renda dada.
24

Com o objetivo de conferir às ciências econômicas o status de ciência exata e, de


acordo com Barber (1974:191) “refinar suas descobertas sob a forma de proposições
matemáticas”, os economistas neoclássicos procuraram, através da construção de
modelos de equilíbrio geral, definir o ponto em que o sistema estaria operando numa
situação de máxima eficiência. A solução dessa questão terminou sendo encontrada por
Vilfredo Pareto, um economista italiano, que a divulgou em seu trabalho intitulado
“Manual de Economia Política”, publicado em 1907 (Denis, 1974:550-4)

De acordo com a solução de Pareto, considera-se que a economia atinge a


máxima eficiência, quando modificações em dada alocação de recursos não se revelam
capazes de melhorar o nível de bem-estar de um indivíduo sem prejudicar o de outro.
Em linguagem matemática, diz-se que esta solução é representada pelo ponto em que a
taxa marginal de substituição de um bem por outro se iguala à taxa marginal de
possibilidades da produção, indicando que as decisões de escolhas dos agentes
econômicos – unidades familiares, produtivas etc. – atingiram a máxima eficiência,
valendo o mesmo argumento para as decisões tomadas em relação às possibilidades de
combinações possíveis entre lazer, trabalho, poupança, consumo corrente etc. Em
homenagem ao autor, essa situação de equilíbrio passou a ser conhecida, na literatura
econômica, como caracterizando uma situação de “Pareto eficiente” ou de “ótimo de
Pareto”.

O rigor formal pareceu dar, ao modelo, um aspecto de cientificidade que ia


muito além da realidade dos fatos e contextos históricos, mas garantiu seu sucesso por
muito tempo e encantou – e ainda encanta – muitos economistas. Com ele, as classes
sociais saíram de cena, os conflitos desapareceram e a sociedade foi transformada na
soma de indivíduos, os quais, agindo de forma egoísta e racional, eram capazes não
somente de assegurar sua felicidade pessoal, mas também de contribuir para o bem-estar
coletivo, ao mesmo tempo em que o sistema econômico, governado por “leis naturais”
se encontrava protegido de crises, desemprego, desigualdades e instabilidade.

Neste mundo panglossiano, só não existia lugar para o Estado. Nele, o


liberalismo se mantinha de pé para garantir sua harmonia, e ao Estado continuava sendo
recomendado manter-se à distância do que ocorria na esfera da produção e restringir-se
a garantir a ordem e a segurança do país. Na realidade, entretanto, como resultado do
intenso processo de concentração e centralização do capital verificado no final do século
XIX, apenas na teoria o Estado vinha mantendo-se à margem do sistema.

2.1.3. O Estado no Capitalismo Monopolista: a maturidade

Em que pese a teoria, a verdade é que o Estado vinha conhecendo rápidas e


profundas transformações. A monopolização crescente do capital, que teve início na última
quadra do século XIX, colocou a necessidade cada vez maior da intervenção do Estado
nesse processo. Isso, por várias razões. Em primeiro lugar, por ter se tornado
imprescindível sua ação para assegurar mercados externos para a crescente produção
resultante dos países que se industrializaram nesse período - França, Alemanha etc. - e que
disputavam acirradamente a "partilha" do mundo. Era a época do imperialismo
"confessado", que acabou desaguando na Primeira Guerra Mundial, com o Estado
desempenhando papel fundamental nessa disputa.
25

Em segundo, porque se os próprios mecanismos de mercado asseguravam, no


capitalismo concorrencial, a solução dos conflitos através da igualação da taxa de lucros, o
mesmo não ocorreria no capitalismo monopolista que se instaura. À medida que a
atomização cedia espaço às grandes empresas oligopólicas, em condições de impor/ditar
seus preços e de assegurar suas fatias de mercado, o mecanismo que antes se incumbia de
tornar em soma zero as diferenças entre os distintos capitais, perde fôlego, vindo à tona sua
grande heterogeneidade e seus conflitos, como vai deixar claro sobre essa questão, como
se verá ainda neste capítulo, a teoria marxista do Estado.

Diante desses conflitos, tornou-se evidente a importância do Estado, como força


externa ao sistema, para organizar e soldar, por meio da política econômica, os distintos
interesses do capital, atuando como árbitro deste processo para garantir a reprodução do
sistema. Para desempenhar este papel deveria este contar com uma relativa autonomia, e
se integrar crescentemente, ao mesmo tempo, ao processo de reprodução econômica,
penetrando em áreas que, apesar de indispensáveis ao processo de acumulação, não
interessavam ao setor privado assumir, especialmente as que dizem respeito à infra-
estrutura econômica e ao capital social básico (as chamadas “externalidades” econômicas
tão necessárias ao sistema).

Essa mudança no aparelho do Estado, embora não problematizado no corpo teórico


do pensamento dominante, acarretaria, com a transposição destes conflitos para dentro de
seu aparelho, uma série de implicações para a reprodução do sistema, principalmente no
tocante à luta que passaria a ser travada entre os distintos capitais para deter sua
hegemonia e influenciar a condução e o conteúdo da política econômica. Neste contexto, o
Estado se tornaria o responsável pela organização das relações mantidas entre as classes
sociais e suas frações, as quais determinariam, por meio de um equilíbrio de compromissos
entre elas estabelecido, avalizado pelo Estado, a condução da política econômica em geral.
Para o pensamento econômico dominante, que não consegue perceber essa mudança
qualitativa em seu papel, e continua a depositar fé na força dos mecanismos de mercado,
toda e qualquer intervenção do Estado na economia continuava sendo vista apenas como
heresia.

Somente com os desdobramentos da crise de 1929, que provocou quedas


acentuadas nos níveis de renda e de emprego da economia capitalista em geral, é que serão
dadas as condições objetivas para que se justifique, nos campos teórico e prático do
pensamento econômico dominante, a intervenção do Estado na economia. Tarefa que
coube a John Maynard Keynes desenvolver com brilhantismo em seu trabalho lapidar
sobre o emprego, o juro e a moeda, de 1936.

Embora as idéias de Keynes não captem essa politização do Estado, são elas as
responsáveis – ou as que lhe fornecem o arcabouço teórico e a caixa de ferramentas a ser
usada para essa finalidade, através dos instrumentos de política econômica – para justificar
sua intervenção na economia, visando salvar o capitalismo. Foi a partir de sua germinação
e sua difusão que se ampliaram suas tarefas, e deram sustentação teórica ao surgimento do
Estado do bem-estar nas economias desenvolvidas (ou o Estado Providência) e ao Estado
com maior presença na vida econômica nos países de industrialização retardatária,
ancorados em doutrinas teóricas que, tendo como referencial de análise a matriz
keynesiana, caso, por exemplo, da Comissão de Estudos Econômicos para a América
Latina (CEPAL), deram origem ao desenho de Estados com forte conteúdo
desenvolvimentista.
26

Keynes foi, no mínimo, um economista instigante. Integrante dos quadros da escola


neoclássica rompeu com suas premissas teóricas quando suas recomendações e a fé que
aquela depositava no mercado revelaram-se incapazes de retirar o capitalismo da crise em
que mergulhou na década de 1930. Não hesitou, para isso, em desmontar os principais
pilares em que essa se assentava, como a Lei dos Mercados de Say, a concepção
walrasiana sobre o mercado de trabalho e o mito do orçamento equilibrado, e propor
mudanças no papel do Estado para salvar o regime da empresa privada, com o abandono
do laissez-faire integral. Oponente das idéias de Marx sobre o socialismo, apoiou-se em
algumas de suas teses para explicar as crises do capitalismo2, embora modificando
conceitos e significados, e, com sua contribuição teórica, deu origem a um Estado
reformado, vital para sustentar o curso da acumulação e para acomodar, por meio do
avanço do welfare state, as tensões sociais que poderiam colocar em risco sua reprodução.
Abriria de vez, com isso, as portas para o maior avanço do Estado no domínio econômico.

Sua obra "A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, vinda a lume em
1936, estabelecerá os contornos teóricos definitivos e desvelará a importância dos
investimentos públicos para atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e para viabilizar
uma política de pleno emprego. A obra de Keynes representaria, assim, um verdadeiro
libelo contra a ortodoxia imperante, a qual garantia que os ajustes do sistema ocorriam de
forma automática, com a economia tendendo para um único ponto de equilíbrio possível,
sob a condição de que não houvesse entraves à livre flutuação da taxa de juros, do nível de
salários e dos preços.

Keynes, contrariamente, demonstraria a possibilidade de a economia estar em


equilíbrio sem que, necessariamente, este nível correspondesse ao de pleno emprego dos
fatores produtivos. Para ele, este nível constituía um caso particular da teoria, mas não
podia ser tratado como regra geral. A economia poderia muito bem estar em equilíbrio,
mas se defrontar com insuficiência de demanda agregada para atingir o nível ótimo de
plena utilização dos fatores produtivos ou, reversamente, apresentar excesso de demanda
sobre a capacidade produtiva, padecendo de pressões inflacionárias. Qualquer que fosse a
situação, o Estado repontava, em seu arcabouço teórico, como o elemento capacitado para
atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e para corrigir as fortes desigualdades do
sistema, através do manejo da demanda agregada. Se houvesse insuficiência de demanda,
deveria ele atuar como seu criador, seja aumentando seus gastos, seja reduzindo as
imposições tributárias sobre a sociedade ou mesmo fazendo uma combinação de ambos
instrumentos. Com isso expandiria, via multiplicador, os níveis de investimento, de renda e
de emprego da economia. Se a situação, por outro lado, fosse de excesso de demanda, o
caminho percorrido deveria ser o da direção oposta.

2.1.3.1. Ampliando os papéis do Estado: as funções distributiva e estabilizadora

Com as formulações keynesianas, o Estado foi colocado no centro do palco e


assumiu uma importância capital para longevizar a vida do sistema. Embora tenha havido
muita resistência, no início, às idéias de Keynes, elas acabariam por prevalecer,

2
Essa interpretação se encontra em Denis, para quem a explicação de Keynes das crises de superprodução
se aproxima muito da marxista, ao atribuir à insuficiência do investimento a causa de depressão, partindo
de conceitos como o de custo de produção dos bens produzidos no ano (de equipamentos e de consumo)
que equivale “... ao valor da produção nacional líquida, no sentido marxista, i.é, à soma dos salários e da
mais valia.” (Denis, 1974:696-8)
27

especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, e o Estado moderno incorporaria novas


funções e atribuições, aumentando o seu grau de intervenção na economia. De um Estado
teoricamente passivo e improdutivo transformar-se-ia num Estado fortemente
intervencionista, indispensável para a vitalidade e estabilidade do sistema. Além das
restritas funções que vinha desempenhando - regulatória, garantidor da defesa e segurança,
alocativa - passaria ele, nessa nova perspectiva teórica, a desempenhar o importante papel
de mantenedor da estabilidade econômica e de agente responsável pela implementação de
políticas de conteúdo redistributivista, que passaram a ser consideradas necessárias para
garantir a reprodução do sistema no longo prazo. Alguns esclarecimentos devem ser feitos
sobre essas novas funções a ele atribuídas como resultado do reconhecimento de que o
mercado apresentava mais falhas do que era capaz de supor a teoria dominante.

Da mesma forma que a função alocativa, a distributiva decorre do reconhecimento


de ser o mercado incapaz de conduzir a sociedade a uma estrutura de distribuição de renda
que seja considerada justa ou eqüitativa. Isso porque, como o ponto de partida não é o
mesmo para todos, quer interclasses - trabalho e capital, por exemplo - quer intraclasses -
há o pequeno, o médio e o grande capital; o trabalho qualificado, semiqualificado e não-
qualificado; etc. - deixar que os mecanismos de mercado presidam livremente a questão
distributiva implica correr os riscos de se conduzir o sistema a tamanha desigualdade, que
esta, ao se tornar intolerável para as camadas mais pobres, coloque em perigo a sua
reprodução. Foi para corrigir essas falhas do mercado que se passou a atribuir ao Estado,
ainda que isso significasse reduzir a eficiência do sistema, o papel de intervir para
melhorar a estrutura da distribuição da renda e da riqueza, especialmente através do
manejo dos instrumentos de política fiscal.

Ganhou importância, nessa perspectiva, a provisão pelo Estado dos chamados bens
semipúblicos também conhecidos como bens meritórios (merits goods). Diferentemente
dos bem públicos puros, os bens semipúblicos apresentam características semelhantes aos
bens privados, como as de serem divisíveis para o consumo individual, obedecerem ao
princípio da exclusão e tratarem-se de consumo rival. É o caso, por exemplo, dos serviços
de saúde, educação, saneamento, por exemplo.

Sua importância para a sociedade – e também pelas externalidades que gera para o
próprio sistema econômico -, bem como a necessidade de se garantir o acesso ao seu
consumo aos cidadãos que não dispõem de poder de compra para adquiri-los, aumentou
consideravelmente a sua provisão pelo Estado, especialmente a partir das idéias
keynesianas e da importância assumida por políticas redistributivas com a constituição do
welfare state.

O maior cuidado com os efeitos redistributivos também pelo lado da tributação


ganhou também maior importância na política fiscal a partir dessa visão. Exemplos como o
do Imposto de Renda Negativo para garantir níveis mínimos de rendimentos para as
famílias que se situam abaixo da linha de pobreza, combinados com estruturas de impostos
efetivamente progressivos, especialmente em se tratando dos impostos diretos, ou com
regressividade atenuada no caso dos indiretos, passaram a inscrever-se entre essas
preocupações de tornar o Estado um agente minimizador das desigualdades existentes e de
garantir maior coesão social. O importante a reter dessa discussão, é que essa função só
ganharia maior espaço entre as políticas públicas, com a revolução keynesiana, uma vez
que, para os economistas clássicos e neoclássicos, como visto anteriormente, políticas
dessa natureza implicavam redução de eficiência do sistema.
28

Já a função estabilizadora, que só entrou efetivamente em cena a partir das idéias


keynesianas, justifica-se, segundo Musgrave & Musgrave (1980:11), pelo reconhecimento
também de não serem “... o pleno emprego e a estabilidade de preços (...) resultados
automáticos do funcionamento do sistema de mercado [e exigirem, por essa razão] uma
orientação por parte da política implementada pelo setor público. Na ausência dessa
política orientadora, a economia tende a estar sujeita a flutuações significativas e/ou passar
por períodos de desemprego ou inflação".

Para atenuar essas flutuações e possibilitar à economia caminhar ou retornar,


sempre que dela desviada, à trajetória onde se combinam os objetivos de pleno emprego
dos fatores produtivos e de estabilidade monetária, o Estado deve utilizar a sua "caixa de
ferramentas" - instrumentos fiscais, monetários, etc. - para materializá-los. Na ausência de
estabilizadores automáticos do mercado, a ação do Estado, especialmente através do
manejo da política fiscal, passaria a ser vista como decisiva tanto para a criação de
demanda efetiva necessária para a economia retomar sua expansão - e reduzir/absorver o
desemprego - como para desaquecer a atividade produtiva e desacelerar o crescimento do
nível de preços e ainda para conciliar os objetivos domésticos com aqueles vinculados ao
comércio internacional e à balança de pagamentos.

A necessidade de construção/consolidação do Estado do bem-estar no mundo


capitalista, muito como resultado da crise e dos problemas políticos e sociais engendrados
pela depressão da década de 1930, ganhou maior força com o temor, encerrada a Segunda
Guerra Mundial, de que o comunismo soviético poderia, aproveitando-se das precárias
condições sociais em que se encontrava uma Europa em ruínas, se alastrar pela região.
Para enfrentar esse desafio, o Plano Marshall implementado pelos Estados Unidos, bem
como a importância de políticas compensatórias implementadas pelos Estados nacionais
encontraram justificativa, inclusive, no campo ideológico, reforçando o papel do Estado
como agente indispensável para manter a coesão social.

O Estado que brotou do pensamento keynesiano serviu de modelo para o restante


do mundo capitalista, mas assumiu, em outros países e regiões, formas e características
distintas das que apresentou no mundo desenvolvido, variando a intensidade dos seus
graus de intervenção na atividade econômica. Especificamente, na América Latina,
influenciou a formulação das idéias cepalinas sobre o papel nuclear que o Estado deveria
desempenhar para garantir a industrialização da região, diante da fraqueza financeira da
burguesia, atuando como agente estruturante e organizador deste processo, o que deu
origem ao que se conhece na literatura do pensamento da CEPAL como “Estado
desenvolvimentista”3, o qual, no caso do Brasil, tornou-se o principal agente das
transformações de sua economia entre os anos 1930 e 1980, como se verá na análise da
experiência brasileira na parte final deste capítulo.

De qualquer modo, à medida que se foi confirmando essa importância do Estado


para a economia e para o sistema, foi crescente, no mundo capitalista, sua participação na
geração da renda e do emprego. A tabela 1.1 retrata bem essa realidade sobre a
importância assumida pelo Estado na vida econômica de um conjunto de países
desenvolvidos selecionados. Como se percebe, de uma participação em torno de 10% do
PIB/PNB em 1880 - à exceção da França onde esse nível atinge 15% - o Estado vê
3
Para entendimento da teoria da CEPAL, consultar os trabalhos de Cardoso de Mello (1998 ) e da
CEPAL (1951) sobre seus fundamentos.
29

aumentado continuamente seu peso na economia, o qual se acentua a partir da crise de


1929, vindo a responder por níveis equivalentes ou superiores à metade de sua geração em
1985 - é o caso da Alemanha, Inglaterra, França e Suécia - ou em torno de 1/3 de seu
produto, como se observa para os EUA e Japão.

Tabela 1.1
Participação da Despesa Governamental no PIB ou no PNB
(em %)
Países Ano
1880 1929 1960 1985
França 15,0 19,0 35,0 52,0
Alemanha 10,0 31,0 32,0 47,0
Japão 11,0 19,0 18,0 33,0
Suécia 6,0 8.0 31,0 65,0
Inglaterra 10,0 24,0 32,0 48,0
EUA 8,0 10,0 28,0 37,0
Fonte: Banco Mundial: Relatórios sobre o Desenvolvimento Mundial, 1991, p.158

2.1.3.4. A reação a Keynes (e ao Estado keynesiano) pela ortodoxia

Se na vida real as idéias de Keynes deram vida pró-ativa a um Estado renovado, necessário
para corrigir desequilíbrios e atenuar as flutuações cíclicas do sistema, e à política fiscal
um papel nuclear entre os instrumentos de política econômica para ultimar estes objetivos,
no plano teórico, a ortodoxia, após absorver o golpe desferido pela revolução keynesiana
em seus pressupostos, voltaria à carga, com armas renovadas, visando fornecer explicações
para a inflação dos anos 1960 e desmontar a visão positiva que predominava sobre a ação e
intervenção do Estado na economia.

Neste contexto surgiu nessa época, em oposição à visão de Keynes, para quem a
inflação é um fenômeno decorrente do excesso de demanda, a teoria monetarista, a qual,
apoiada em modelos de expectativas inflacionárias, concluía serem inócuas as políticas
fiscais expansionistas voltadas para os objetivos de ampliação da renda e do emprego e
responsáveis pela aceleração do nível de preços e, portanto, pela instabilidade do sistema
econômico.

Essa teoria tomou como ponto de partida para explicar a manutenção da taxa de
inflação a partir do modelo das expectativas, a curva de Phillips, assim conhecida em
homenagem ao trabalho empírico que foi desenvolvido por A.W. Phillips sobre a evolução
do desemprego e da taxa de variação dos salários nominais na Inglaterra entre 1862 e
1957, no qual constatou a existência de uma relação inversa entre essas duas variáveis.
Dois anos mais tarde, em 1960, R.G. Lipsey teorizou a curva de Phillips e formalizou a
existência deste trade-off entre inflação crônica e desemprego, reforçando a tese de que
taxas de desemprego menores podiam ser obtidas por meio de políticas expansionistas,
mas produzindo inflação dos salários nominais e, por extensão, dos preços em geral. Era o
que o pensamento ortodoxo necessitava para assestar suas baterias contra o pensamento
keynesiano.
30

No final da década de 1960, Edmund Phelps e Milton Friedman introduziram os


salários reais neste modelo em substituição aos salários nominais, justificando essa
mudança como um erro que identificaram na teoria original, e concluíram que o dilema
não era exatamente entre inflação e desemprego, mas entre desemprego e inflação acima
das expectativas dos agentes econômicos. Esse desvio, que poderia ser causado por uma
espécie de ilusão monetária dos trabalhadores sobre o valor dos salários, como reflexo da
expansão da atividade produtiva, seria responsável por uma pressão “temporária” exercida
sobre a “taxa natural de desemprego” – uma das hipóteses com que opera essa escola para
explicar o funcionamento do sistema econômico -, à qual se retornaria depois das
inevitáveis correções que seriam feitas no nível de expectativas pelos agentes econômicos,
abortando-se a expansão econômica que deu início a este processo. Para melhor entender
esses argumentos, é preciso esclarecer a visão dessa corrente sobre o funcionamento do
sistema econômico e também como se formam as expectativas inflacionárias desses
agentes.

Para essa teoria, assim como para a escola neoclássica, como visto anteriormente, o
mundo econômico funciona de forma harmoniosa, com os mecanismos de mercado
garantindo a plena utilização dos fatores produtivos e a inexistência de desemprego de
caráter involuntário. A acomodação do sistema aos movimentos cíclicos da economia é
garantida por uma “taxa natural de desemprego”, hipótese central em seu corpo teórico,
que varia para cada economia e em cada contexto histórico. Admite-se, apenas, a
existência do desemprego voluntário e friccional. O primeiro revela uma situação em que o
trabalhador não se dispõe a trabalhar pelo salário vigente no mercado, preferindo manter-se
ocioso. O segundo, um período de transição em que o trabalhador fica momentaneamente
desempregado enquanto não encontra trabalho em outra empresa. Como naquela escola,
tudo se assemelha a uma ficção, sem correspondência no mundo real.

A diferença é que, para essa teoria, os agentes econômicos formam expectativas


sobre a taxa de inflação, porque essa terá influência sobre o salário real. São dois os
elementos que consideram neste processo de formação das expectativas: a) previsão da
taxa de inflação do período seguinte, com base na média das taxas de inflação dos períodos
anteriores; b) como podem ocorrer os desvios mencionados, adiciona-se, a essa previsão,
uma fração de correção proporcional ao erro de expectativa do período anterior. Os agentes
econômicos fazem, portanto, uma adaptação das expectativas, que formaram sobre a
inflação, procurando corrigir o erro que cometeram ou que foram induzidos a cometer pelo
comportamento da economia real. Mas como se explica esse erro?

Quando o governo resolve promover uma política expansionista, a oferta de moeda


aumenta e também a demanda por bens e serviços. Esse aumento leva as empresas a
expandirem a sua produção (a oferta de produtos), demandando mais trabalho, o que eleva
os salários nominais (e também os salários reais por algum tempo). Essa elevação motiva
os trabalhadores ociosos (os do desemprego voluntário) a ingressarem no mercado, já que
os salários se tornam mais atraentes. Acontece que os preços também se elevam até mesmo
como resultado do aumento dos salários nominais (um importante componente dos custos
de produção), provocando uma queda nos salários reais. Diante disso, os trabalhadores
reduzem a oferta de trabalho (retornam à ociosidade, que se torna mais vantajosa) e a
economia retorna ao seu estado natural de equilíbrio do emprego. Mas a inflação adicional
que foi gerada por este movimento (inócuo) permanece e será transmitida para os períodos
seguintes, porque será incorporada aos cálculos de previsão da inflação futura feita pelos
agentes econômicos, garantindo-se, portanto, sua aceleração.
31

As condições e recomendações práticas dessa teoria para a política econômica (para a


ação do Estado) não podem ser mais claras: i) políticas econômicas expansionistas alteram
e afetam, no curto prazo, a economia real e mudam o curso da “taxa natural de
desemprego”, induzindo os agentes econômicos a cometerem erros de avaliação, diante da
elevação dos salários; ii) no longo prazo, quando esses erros são corrigidos, por um
processo de ajustamento das expectativas, retorna-se às condições de equilíbrio da
economia (e do mercado trabalho), abortando-se a expansão econômica produzida por este
movimento; iii) apesar de inócuo, no longo prazo, para a ampliação da renda e do
emprego, este movimento deixa seqüelas para o quadro macroeconômico, já que a inflação
se acelera nos períodos seguintes, pois seu aumento no ano, e também a fração do erro das
expectativas incorporam-se ao cálculo das previsões feitas pelos agentes econômicos sobre
a inflação futura; iv) neste caso, recomenda-se ao governo evitar a aventura de incorrer
em déficit público para implementar políticas expansionistas e manter um rígido controle
sobre a oferta de moeda, pois, ao fim e ao cabo, é esta que explica e sanciona, no longo
prazo, o fenômeno inflacionário.

Apesar de racionais, os agentes econômicos de Friedman estão sujeitos – ou


serem induzidos pela ação nefasta da política econômica – a incorrerem em erros
sistemáticos de previsão sobre a inflação, por serem afetados pelo fenômeno da ilusão
monetária. É essa ilusão que permite a geração de efeitos das políticas expansionistas
no curto prazo, embora esses se esfumem no longo prazo, quando os agentes, através de
um processo de aprendizado e de adaptação, acertarem suas expectativas.

Apesar dessa nova teoria, a supremacia da teoria keynesiana vis-à-vis a ortodoxia


se prolongaria até o início da década de 1970, sustentando, com a implementação de suas
políticas, o longo e vigoroso ciclo de crescimento conhecido pelo capitalismo no período
pós Segunda Guerra Mundial. Somente quando essas políticas começaram a se mostrar
inadequadas para combater um renitente processo inflacionário combinado com o processo
de estagnação e de crise que se abateu sobre a economia mundial nessa época, perderam
força. Independente das causas que estavam na raiz da reversão deste ciclo, o agravamento
da crise nos anos seguintes, diante, inter alia, da crise do dólar, da desestruturação do
sistema monetário e da crise do petróleo, deu ao pensamento ortodoxo os argumentos que
esse necessitava para retornar à cena e apontar o Estado como o grande responsável pelos
desequilíbrios do sistema provocados pelos crescentes déficits e elevados níveis de
endividamento em que este, de um modo geral, mergulhou.

2.1.4. O Estado no Capitalismo Mundializado: a terceira (ou quarta) idade

A crise em que a teoria keynesiana mergulhou na década de 1970 em face da incapacidade


de seus instrumentos de darem respostas à perversa combinação de um processo recessivo
com inflação em alta, abriu espaços para o ressurgimento das idéias liberais, que passaram
a atribuir ao tamanho do Estado na economia e à sua ineficiência na gestão de atividades
consideradas afeitas ao setor privado, as causas primárias da crise, na forma dos
gigantescos déficits públicos que passaram a ser gerados pelos países do mundo capitalista.
Com a memória dos efeitos da Grande Depressão dos anos 30 tendo praticamente se
apagado, graças ao longo ciclo de desenvolvimento do capitalismo iniciado após a
Segunda Grande Guerra, para o que fora decisiva a intervenção estatal, essas idéias
frutificaram revigoradas.
32

A nova concepção teórica sobre o papel negativo do Estado ganhou força com o
avanço da Terceira Revolução Industrial e do processo de globalização, os quais, pelas
suas características, exigiam compromissos com a abertura da economia, o aumento da
concorrência e da eficiência produtiva e com a desregulamentação dos mercados
financeiros e de produtos, o que implicava retirar, novamente, o Estado da vida econômica
por sua ação ser considerada prejudicial para seu funcionamento. No mundo globalizado
(mundializado), em que se restringem os espaços de atuação do Estado, surgem, em
diversos campos, várias contribuições teóricas, contrapondo-se ao pensamento keynesiano,
para dar sustentação à nova investida contra suas ações.

Um apanhado dessas posições de que se valeram – e continuam se valendo – a


forças antiestado, é feito em seguida, dando-se maior ênfase às análises e recomendações
da Teoria da Escolha Pública, que considera o Estado apresentando mais falhas do que o
mercado, devido às imperfeições do mundo político. Embora não se enquadre na visão
neoliberal, que forneceu munição para o retorno, com sucesso, dessas forças, a Teoria da
Regulação é também apresentada, à medida que adiciona elementos que questionam sua
ação enquanto agente que, “em tese”, deveria estar voltado para defender e promover o
interesse público.

a) A Teoria da Regulação

No campo institucional, a Teoria da Regulação de Stigler (1971), Posner (1974) e


Peltzman (1976), de que a regulação, ao contrário do que se acreditava, não favorece o
interesse público, mas protege os interesses da indústria e setores regulados, colocou em
xeque o papel intervencionista do Estado. Tal situação seria resultado de uma relação
promíscua estabelecida entre reguladores, em busca de apoio político, e setores regulados,
visando protegerem-se da concorrência de outras firmas e obterem melhores vantagens
econômicas, por meio de regras de entrada no mercado e estabelecimento mais favorável
de preços para o seu conjunto, o que se traduziria em perda de bem-estar social não
somente pelos custos envolvidos neste processo (custos das agências reguladoras, dos
lobbies etc.), mas também pelos prejuízos e distorções provocados pela ausência de
concorrência.

Nos EUA, a década de 1970, quando esses trabalhos foram publicados, foi
marcada, de um lado, por um amplo processo de desregulamentação, especialmente em
setores da atividade produtiva (setores de transportes, telefonia, petróleo, gás natural),
movimento que pareceu representar a negação – ou seguir a recomendação – da Teoria
da Regulação, como anotam Mattos et. al. na Introdução do livro que organizaram
sobre o tema (Mattos et. al., 2004:16). De outro, várias agências de regulação foram
criadas em outras áreas, como na dos direitos dos consumidores, ambientais,
trabalhistas, da saúde e do bem-estar social. Tais movimentos contraditórios para a
Teoria da Regulação conduziram à sua revisão e refinamento de seus pressupostos por
Peltzman, em 1989 (Peltzman, 1989), que conclui não existir um “único interesse
econômico que captura o ente regulatório” e que se deve “encará-la como fruto de uma
política de coalizões, na qual os políticos tenderão a maximizar suas vantagens por meio
da distribuição a diferentes grupos de interesse envolvidos no jogo regulatório.” (Mattos
et. al., 2004:16)

Desenvolvimentos ulteriores dessa temática, reconhecendo a importância da


regulação em áreas importantes para a sociedade (principalmente na de direitos sociais),
33

cuidaram de sugerir meios de aperfeiçoamento para o funcionamento dessas agências


em nome da eficiência e da legitimidade e aumento de seu controle pelo Executivo,
Legislativo e Judiciário, visando evitar os riscos e impedir sua captura pelos agentes
regulados (Mattos et. al., 2004:18). Em suma, uma espécie de reinvenção do Estado em
que a preocupação com a eficiência remete ao redesenho das instituições e ao
fortalecimento dos mecanismos de controle nos processos de sua interação com a
sociedade.

b) A Teoria das Expectativas Racionais

No campo da macroeconomia, os teóricos da escola novo-clássica de R. Lucas, T.


Sargent e N. Wallace (Rego et. al., 1986:37) acrescentaram mais argumentos para
condenar a intervenção do Estado na economia, na linha anteriormente desenvolvida
pela teoria monetarista (a das expectativas adaptativas), mas corrigindo os erros
sistemáticos de previsão da inflação que os agentes econômicos da última cometiam
provocados pela ilusão monetária.

Os teóricos da chamada escola novo-clássica adotam, como a escola


monetarista, o pressuposto de uma “taxa natural de desemprego”. Para eles, também o
processo inflacionário é um fenômeno essencialmente monetário, mas, ao contrário dos
teóricos daquela escola negam, mesmo no curto prazo, quaisquer efeitos de aumentos na
oferta de moeda sobre as variáveis reais da economia, como no nível de renda e
emprego, restringindo seus impactos apenas ao aumento de preços, ou seja, à geração de
inflação. Descartam, para isso, a hipótese de formação de expectativas adaptativas,
resultado da ilusão monetária dos agentes econômicos, e introduzem, no modelo,
agentes que não se deixam enganar por esse fenômeno (ou se isso ocorre, conseguem
corrigir rapidamente seus erros, evitando que eles se repitam), sendo capazes, portanto,
de formar expectativas de forma racional, e, com isso, neutralizar a ação nefasta do
governo (do Estado) na implementação de políticas expansionistas. Como isso se torna
possível?

Os agentes deste modelo são mais ágeis e atualizados do que o das expectativas
adaptativas: não se guiam por informações do passado, mas do presente (da atualidade)
para a formação de expectativas nem repetem os erros que cometem, procurando
corrigi-los quando atualizam as informações. Os erros tendem a ocorrer não pelas
fraquezas da condição humana (são racionais), mas pela existência de informações
incompletas ou imperfeitas (caso de choques não antecipados, como os de decisões não
divulgadas sobre a implementação de políticas expansionistas tomadas pelo governo,
por exemplo), o que pode produzir, momentaneamente, desvios da economia de sua
posição de equilíbrio. Atualizadas as informações, os agentes rapidamente corrigem
suas expectativas, neutralizando a ação do governo e garantindo a convergência entre a
inflação esperada e a efetiva e a taxa de desemprego efetivo e a taxa de equilíbrio.
Como bem anota Carvalho (2001:216) sobre essa questão:

“Não importa aos teóricos novo-clássicos se, de fato, os agentes


conhecem a teoria econômica que, segundo eles, é capaz de
explicar os fenômenos reais. O que importa é que os agentes
agem como se soubessem de tal teoria. Por exemplo, para se
saber o dia em que é seguro levar o guarda-chuva para o
trabalho não é necessário conhecer os avançados modelos de
previsão meteorológicos. O mesmo pode ser dito em relação à
economia. Não é necessário conhecer a teoria quantitativa da
34

moeda para se saber que um aumento de um estoque de moeda


provoca inflação. Basta reagir elevando os preços e os salários
todas as vezes que o governo inflar a economia com moeda.”

Apesar das diferenças entre os modelos das expectativas adaptativas e racionais


sobre o comportamento dos agentes econômicos neste processo, os resultados a que
chegam sobre o papel do Estado neste processo são os mesmos: concluindo pela
neutralidade da política monetária no longo prazo em relação às variáveis reais da
economia, recomendam que o governo não deve lançar-se na aventura de incorrer em
déficits públicos e utilizar-se da ampliação da oferta de moeda visando estimular o
crescimento da economia, visto que isso apenas se traduziria em aumento da inflação e
da instabilidade do sistema, sem resultados práticos para os objetivos de aumento da
renda e do emprego.

c) A Teoria da Escolha Pública

Para essa escola de pensamento, que se apóia nas mesmas premissas teóricas dos
neoclássicos, mas modifica radicalmente sua posição em relação ao Estado, este é sempre
sinônimo de ineficiência para o sistema, mesmo quando sua atuação visa apenas corrigir
eventuais falhas do mercado. De acordo com este argumento, se o mercado pode, de fato,
apresentar falhas – o que no pensamento neoclássico e keynesiano justifica a intervenção
pública – a ação estatal voltada para corrigi-las – ou mesmo a simples possibilidade de
fazê-lo –, pode revelar-se ainda mais danosa para a eficiência do sistema. Assim, como
também apresenta falhas, que podem ser mais prejudiciais que as derivadas do
funcionamento do mercado, a intervenção do Estado passaria a ser condenada por essa
escola, justificando as proposta de esvaziamento de suas funções e de sua redução à
condição de Estado mínimo, através da implementação de políticas de desregulamentação,
privatização das empresas estatais, encolhimento/extinção do welfare-state etc. É
importante conhecer suas bases teóricas e a linha de argumentos que a conduz a tais
conclusões e propostas.

Conhecida como Escolha Pública (Public Choice), essa escola de pensamento


adota o mesmo método de análise utilizado pela teoria econômica convencional, que
considera, como hipótese de trabalho, o homem um animal egoísta, racional e
maximizador de utilidades, mas dela diverge no que diz respeito à sua aceitação de
considerar a intervenção do Estado necessária para corrigir/atenuar as chamadas falhas do
mercado e, com isso, garantir maior eficiência para o sistema capitalista. Para isso, procura
entender as escolhas orçamentárias como orientadas pela lógica que rege a decisão
alocativa do mercado, considerando as práticas eleitorais da democracia representativa
(onde há a escolha de um candidato de acordo com o seu programa) como o método que
mais se aproxima das decisões consideradas na aquisição de um conjunto de bens no
mercado. Tal como nesta, de acordo com esta teoria, a escolha que o indivíduo faz seria
semelhante ao das trocas econômicas, procurando maximizar suas utilidades (ganhos)
através do voto. Todavia, dada a imperfeição do mercado político vis-à-vis o mercado
econômico, seria considerável a perda de bem-estar para o conjunto da sociedade.

Para seus teóricos, o Estado está sujeito a incorrer em mais falhas do que o
mercado, no processo de produção/provisão de bens e serviços de sua responsabilidade,
tornando-se recomendável reduzir ao máximo suas atividades – daí a concepção do Estado
mínimo – e retransferir para o setor privado muitas de suas atuais atividades. Para essa
escola, portanto, as falhas do mercado não justificam a intervenção do Estado na
35

economia, porque além de não haver nenhuma garantia teórica de que essas serão
corrigidas, a ação estatal pode apresentar falhas ainda mais graves para a eficiência do
sistema.

Desenvolvida nos EUA nas décadas de 50 e 60, a Teoria da Escolha Pública só


despertou atenção na Europa e no Japão na década de 1970, dando origem a várias linhas
de investigação, como a dos Rent Seeking, a Teoria Econômica da Constituição e a Teoria
das Instituições Políticas, as quais, embora apresentem algumas diferenças sobre o papel
que deve ser atribuído ao Estado no sistema, em função de concepções ligeiramente
distintas sobre a questão do funcionamento do mercado, derivam dessa mesma matriz
teórica. Para Buchanan (1979), um de seus autores, que a denomina de “Nova Economia
Política”, seu objetivo é o de “… propiciar um entendimento, uma explicação, da
complexa interação institucional que se desenvolve dentro do setor público” e que tem
implicações para as falhas – em termos de eficiência e equidade – que o governo incorre
como agente ofertante de bens públicos”.

A teoria utiliza como argumento central, para justificar-se, a existência dos


elevados déficits governamentais, que vê como sinônimos de ineficiência e desperdício, os
quais estariam na raiz das crises do capitalismo. O argumento utilizado para comprovar
que o Estado apresenta mais “falhas” que o mercado, e que, de sua ação, geram-se mais
ineficiências para o sistema, na forma de déficits e dívida, consiste em considerar o Estado
também realizando trocas (a essência do mercado) no mercado político. Mas enquanto as
trocas econômicas que são realizadas pelo mercado são eficientes, as trocas realizadas pelo
Estado são ineficientes, devido ao defeituoso mercado político onde ocorrem.

Isso ocorre porque, neste mercado, os atores que nele atuam – eleitores, políticos
profissionais, burocratas etc. -, se guiam pelos mesmos objetivos, que é a maximização de
seus ganhos (utilidades), embora com propósitos distintos, mas sem levarem em conta a
existência de restrições orçamentárias para suas ações (o que não ocorre nas trocas
econômicas), produzindo, como conseqüência, um excesso de gastos em relação às
receitas públicas. Assim, no processo democrático, enquanto o eleitor busca, através de seu
voto, maximizar suas utilidades por determinadas políticas públicas, o objetivo do político
profissional, que patrocina essa oferta, é o de maximizar seu mercado de votos, enquanto o
dos burocratas estatais, responsáveis pela sua implementação, o de assegurar, para si,
prestígio e mesmo maiores salários. Essa multiplicidade de interesses tornaria, segundo a
teoria, o processo democrático gerador de ineficiência na alocação de recursos da
economia, acarretando perdas para o sistema.

É por isso que Buchanan (1979), um dos principais representantes da Teoria da


Escolha Pública, na versão da “Nova Economia Política”, propugna “… um retorno do
Estado ao século XVIII, quando vários limites [constitucionais] foram impostos aos
poderes governamentais, em oposição aos séculos XIX e XX, quando predominou a
presunção [não confirmada] de que diante de garantias constitucionais e de eleições livres
seria possível controlar o governo.” Seu objetivo, portanto, é o de estabelecer limites para a
ação pública, considerando indispensável contar com o respaldo de uma teoria que trate
das instituições e das alternativas de política de governo. É nessa perspectiva que se pode
entender a adoção em países como os EUA, a partir do final dos anos 70 – e sob a
influência da Teoria da Escolha Pública – de limitações, estabelecidas em lei, em relação à
geração de déficits públicos, crescimento da dívida etc.
36

Para Przeworski (1995:26) “a perspectiva central dessa visão (…) é que o mercado
aloca recursos para todos os usos mais eficientemente do que as instituições políticas. O
processo democrático é defeituoso e o Estado é uma fonte de ineficiência. Nessa versão da
teoria, o processo político é visto como inferior ao mercado por causa de suas
imperfeições.” Mas, em sua versão mais radical, na chamada linha de investigação
conhecida como rent seeking – “caçadores de renda” -, “o Estado sequer precisa fazer
alguma coisa para que as ineficiências ocorram: basta a mera possibilidade que possa vir a
fazer qualquer coisa.” Nessa versão, segundo Pzerworski, “não há espaço para política; a
política é simplesmente um desperdício”.

Segundo Hartle (1983), a “Theory of Rent Seeking” tem por objetivo “… fornecer
uma estrutura conceitual que permita analisar o poder dos lobbies para influenciar
mudanças na política econômica, visando obter benefícios com a sua implementação e/ou
escapar de custos delas derivados.” Para isso, ainda segundo sua argumentação, o objetivo
de investigação da Teoria dos Rent Seeking é o de desvendar como os indivíduos ou
grupos (coalizões) com interesse comum investem com o objetivo de:

a) obter um aumento (evitando diminuição) em sua riqueza/renda como resultado


de mudanças na ordem legal;

b) maximizar os benefícios (minimizando os custos) de novas mudanças políticas


que criem direitos não exclusivos.

Ou seja, a teoria pressupõe que existe, por parte dos agentes econômicos, a busca –
caça – de uma renda criada por alguma ação/intervenção do governo e de que estes se
organizam para sua apropriação através do espaço orçamentário, visando maximizar suas
utilidades. Mas que este processo político termina gerando desperdícios que se traduzem,
inevitavelmente, em redução do bem-estar da sociedade. Não porque alguns perdem e
outros ganham com a ação governamental, mas porque a sociedade, como um todo,
termina tendo prejuízos líquidos. Por um lado, porque ela envolve custos; em segundo,
porque gera rendas monopólicas – o aumento de uma tarifa de importação para um
determinado produto (proteção), por exemplo -, fazendo com que o equilíbrio alcançado
não corresponda ao de “Pareto eficiente”; em terceiro, porque recursos são desperdiçados
pelos grupos envolvidos no processo para influenciar o governo na sua decisão, através de
lobbies, campanhas etc. Nessa situação, mesmo que o governo termine decidindo não
intervir, o desperdício de recursos terá garantido uma redução de bem-estar da sociedade.
Nessa situação em que a intervenção do Estado é radicalmente visto como sinônimo de
ineficiência, não há espaço nem para sua atuação nem para o processo político.

Uma maneira de visualizar a perda social oriunda da atividade do rent seeking é


através da fronteira de possibilidade de produção, conforme mostrado no trabalho de
Przeworski (1995:32), cujo gráfico é dele extraído (Gráfico 1), e que é utilizado por
Monteiro (1990) para mostrar os efeitos causados por uma política governamental, em
termos de eficiência, entre a produção importada e a nacional de um determinado bem.

Neste exemplo, BM representa o nível inicial da produção importada e M a


combinação inicial ótima existente entre a produção importada e a nacional, medida no
eixo horizontal, AM. No momento seguinte, alguma forma de regulamento imposto à
economia – um aumento de tarifas, por exemplo - faz com que a quantidade importada
37

caia para BP. Na análise tradicional, o novo equilíbrio da economia seria no ponto MP. Mas
como os setores que foram favorecidos pela medida governamental despenderam recursos
para apoiá-la/legitimá-la, as possibilidades de produção reduzem-se, com a economia
passando a operar em P, um ponto menos eficiente (na curva de possibilidades de
produção), dado o desperdício de recursos. De acordo com esse argumento, mesmo que o
governo apenas anuncie sua intenção de aprová-la e depois abandone a idéia, inevitáveis
gastos serão realizados pelos setores contrários ou favoráveis à sua aprovação,
ocasionando desperdícios de recursos e reduzindo a eficiência do sistema.

Przeworski (1995:32/3) aponta algumas razões que não sustentam essa tese. Para
ele: a) “… nem todas as alocações podem ser comparadas com a linguagem técnica da
eficiência. (…) o ponto M pode se localizar em uma fronteira de possibilidades que é
superior ao ponto P, mas o movimento de P para M prejudicaria alguém: então M não é
Pareto superior a P. Porque, segundo ele, “a menos que haja uma alternativa que deixe
cada um igual ou melhor que antes, uma política não é ineficiente”; b) “dizer que uma
política provoca desperdícios é afirmar que ela reduz a renda nacional, mas não que reduz
necessariamente o bem-estar social [por ser característica] dessas ações beneficiar algumas
pessoas e prejudicar outras”, tornando indeterminados seus resultados, a menos que, alerta
o autor “ a utilidade seja medida em termos de dinheiro”; e c) “se qualquer ponto na
fronteira de possibilidade de produção fosse economicamente possível, P nunca seria
escolhido por um político maximizador de apoio.”

De qualquer forma, para essa escola seria necessário fechar as portas do welfare
state, nos países centrais, e a dos Estados Nacionais Desenvolvimentistas, na periferia do
capitalismo, como observa Affonso (2003:39-40), considerados as principais fontes de
desperdício de recursos e de ineficiência. Dessa concepção, que implica negar às falhas do
mercado a justificativa para a atuação do Estado, a qual integra o corpo teórico do
pensamento clássico, neoclássico e keynesiano, derivaram as primeiras propostas de
reformas do Estado, mais tarde chamadas de “reformas de primeira geração”, tidas como
essenciais para o ajuste macroeconômico, as quais consistem, basicamente, em seu
saneamento financeiro (fonte principal de instabilidade e desequilíbrios do sistema) e na
redução de suas atividades, por meio da privatização das empresas públicas, diminuição
dos gastos sociais e das políticas públicas e da desregulamentação dos mercados em geral.
Em conjunto, essas propostas vão encontrar sua grande síntese, no final da década de 1980,
no projeto que ficou conhecido como “Consenso de Washington”, um receituário
neoliberal com que se pretendeu ensinar aos países como resolver e superar suas crises, por
meio da adoção da fórmula mágica “menos Estado e mais mercado.”

Essa nova concepção teórica talvez não tivesse despertado tanto interesse e apoio
se o mundo capitalista não estivesse se transformando nessa época, com o avanço da
Terceira Revolução Industrial e o processo de globalização, tornando sagrados os
compromissos com a abertura das economias, a concorrência e eficiência e com a
desregulamentação dos mercados financeiros e de produtos. As mudanças ocorridas na
concepção teórica sobre o Estado e o mercado, ao coincidirem com as novas necessidades
do sistema abriram as portas para justificar a onda de privatizações que iniciadas na
Inglaterra no governo conservador de Margaret Thatcher e nos Estados Unidos, de Ronald
Reagan, alastraram-se rapidamente, na década de 1980, pela Europa (Itália, Espanha,
França, Alemanha) e o restante do mundo. Seu coroamento deu-se com a implementação
das propostas contidas no “Consenso de Washington” em economias que apresentavam
vários desequilíbrios no final da década de 1980 e início dos anos 1990, notadamente na
38

América Latina, Leste Asiático, Leste europeu, após a queda do comunismo, vistas como
capazes de garantir sua redenção.

Gráfico 1

Perda de Eficiência por Políticas Governamentais

Produção Importada

BM M

MP

BP p MP

0 AM AP Produção nacional

Suas conseqüências revelaram-se, contudo, em pouco tempo, maléficas e


disfuncionais para a vitalidade e reprodução conjunta do sistema: aumento das
desigualdades, da pobreza e da miséria, acompanhando da desestruturação dos mercados
em geral dos países que as adotaram e do esgarçamento e fragilização das instituições do
Estado, essenciais para garantir o próprio funcionamento do mercado e a base de apoio
político para a continuidade do sistema, brotaram como seus subprodutos negando as
apostas feitas sobre as virtudes do processo de globalização e do encolhimento do Estado.
Mais decisivas para reforçar a percepção que se formou, a partir deste quadro, de que,
como diz Affonso (2003: 89), “o ajuste neoliberal teria ido longe demais”, foram as crises
financeiras que se abateram sobre o mundo nos anos 1990, atingindo, em cadeia, o
México, países do Sudeste Asiático, a Rússia, o Brasil e Argentina, desnudando os
malefícios da globalização e revelando, mais uma vez, que, operando “livremente”, o
mercado revelava-se, paradoxalmente, disfuncional para o sistema.

d) As Teorias de Resgate de um Estado comportado

Não surpreende que nova revisão teórica sobre o papel do Estado tenha sido
39

deflagrada. Segundo Affonso (2003:89), “instituições ‘multilaterais’ ou ‘interestatais’,


como o BIRD, a ONU e o BID passaram a se preocupar, diante deste quadro, em buscar
alternativas às propostas da teoria econômica neoliberal. Quatro questões seriam
apontadas, segundo este autor, no diagnóstico realizado pelo Banco Mundial sobre a
situação dos anos 1990 para justificar essa revisão: “o colapso das economias da antiga
União Soviética e do Leste europeu; a crise fiscal do Estado do bem-estar na maioria dos
países industrializados; a importância do Estado nas economias do ‘milagre’ do leste
asiático; e o desmoronamento do Estado e a explosão de emergências humanitárias em
várias partes do mundo” (BIRD, apud Affonso, 2003:91). Um diagnóstico que parece
associar crises com o enfraquecimento do Estado e melhorias com o seu fortalecimento. Se
correto, não seria o caso de reduzir ao mínimo o Estado, porque isso poderia acarretar a
própria derrocada do capital, mas de ajustá-lo para desempenhar com eficiência suas
funções. Derivam dessa conclusão as propostas chamadas de “segunda geração” de
reformas do Estado, cujo arcabouço teórico, ainda segundo Affonso, é fundamentado
essencialmente na “teoria neo-institucionalista” e na “Nova Economia Política”, podendo
ambas serem vistas como desdobramentos da public choice.

Como ainda coloca Affonso (2003) em seu trabalho, as duas correntes teóricas que
se afirmam no pensamento hegemônico após os desastrosos resultados colhidos com a
implementação das reformas neoliberais de primeira geração, o “Neo-institucionalismo” e
a “Nova Economia Política”, deslocam a ênfase da oposição estéril entre “Estado x
mercado”, que conduziu às propostas do Estado mínimo, para propor alternativas que
conciliem e otimizem sua atuação conjunta. Para a primeira corrente, o neo-
institucionalismo, trata-se de reconstruir e fortalecer as instituições do Estado, visando
torná-lo eficiente, ágil e capaz de contribuir para o funcionamento dos “mercados livres” e
da concorrência. Para a segunda, que admite resultados diferentes do “ótimo de Pareto” e a
inevitabilidade de trade-off entre eficiência, equidade e democracia, ainda segundo aquele
autor, há espaços para acomodar o papel do Estado no sistema, desenhando um novo
sistema regulatório indispensável para garantir uma economia competitiva e inovadora.
Baseadas nos fundamentos teóricos dessas correntes, convergem, na atualidade, as
propostas de reformas (chamadas de “segunda geração”) do Estado formuladas pelo BIRD,
FMI e BID.

Para continuar merecendo conviver com o mercado e desenvolvendo ações, mesmo


limitadas, mas necessárias para garantir a reprodução do sistema, a este Estado, nessa
visão, é terminantemente proibido cometer os seguintes pecados capitais: i) o da
irresponsabilidade fiscal, traduzida na geração de déficits públicos, para o que deve erigir
uma nova institucionalidade com rigorosos mecanismos de controle e acompanhamento de
suas contas, inclusive por parte da sociedade, para evitar que isso aconteça, e
contemplando punições – prisionais, administrativas, pecuniárias – para os administradores
que não cumprirem essa norma; ii) o de desequilíbrio patrimonial, devendo criar as
condições para garantir a sustentabilidade da dívida pública, por meio do pagamento dos
juros de seus credores, mesmo que, para isso, tenha de renunciar ao seu papel de provedor
de políticas essenciais para o desenvolvimento econômico e social.

A crise que se instalou no capitalismo na segunda metade do século XXI


decorrente do estouro da “bolha” dos créditos hipotecários “tóxicos” (subprime) nos EUA,
e que se espalhou, como um rastilho de pólvora, pelo resto do mundo, conduzindo a
economia para um quadro de recessão, colocaria novamente em xeque as teses
predominantes sobre a necessidade de enquadramento do Estado nessas condições. Com o
40

mercado financeiro agonizando, com a queima sem precedentes de parte significativa da


riqueza financeira (virtual), a atividade produtiva sem o oxigênio da liquidez e do crédito,
os Estados, principalmente dos países desenvolvidos, viram-se obrigados a novamente
“salvar” o sistema, por meio de programas trilionários de resgate do sistema bancário, de
empresas, de devedores, credores e investidores, revelando, mais uma vez, a incapacidade
do mercado de se auto-regular e tornando letra morta, pelo menos durante o seu período de
recuperação e regeneração de suas forças, os compromissos fiscais e patrimoniais
estabelecidos pela doutrina do pensamento dominante. Um novo momento de aproximação
do capital e do Estado que, muito provavelmente, voltará a ser rompido tão logo o primeiro
se refaça de seus desvarios.

3. A VISÃO MARXISTA DO ESTADO

Para os marxistas, a ausência de consenso no pensamento dominante sobre o papel que


cabe ao Estado no desenvolvimento do capitalismo – ora afastando-se, ora se aproximando
do capital – explica-se pela sua resistência em incluir, nessa análise, as relações de classes
e as necessidades históricas colocadas para a reprodução do sistema, que se encontram na
raiz de sua evolução e de seu movimento pendular. Com isso, a justificativa de sua atuação
para corrigir falhas do mercado, por meio das funções alocativa, distributiva e
estabilizadora, afigura-se, nas palavras de O’Connor (1977:17/18), “a uma atitude quase
metafísica em relação aos seus determinantes”, enquanto a ingênua proposta de sua
retirada da vida econômica, encampada pela Public Choice, desconhece o fato de que,
para triunfar, o capital depende do triunfo do Estado, já que fazem parte da mesma
constituição orgânica. Por isso, e para entender as crises que surgem de seus movimentos,
bem como as fraturas que ocorrem entre o capital e o Estado, em determinados contextos,
torna-se necessário compreender sua essência, bem como o papel que este desempenha no
processo de reprodução do sistema, o que exige desvelar como as classes sociais e suas
frações se articulam e operam dentro de seu aparelho, influenciando as políticas que
implementa e determinando sua direção.

A visão marxista a respeito do Estado evolui do que Hirsch chama de uma "crítica
ideológica" do Estado, que subentende uma polarização simples entre este e a classe
operária para um estágio em que para apreender "... o modo de funcionamento pelo qual a
dominação da burguesia se reproduz [torna-se crucial] elucidar um campo complexo de
relações entre classes e frações de classes que encontram seu ponto de cristalização
contraditório no sistema institucional do Estado." Ou seja, o tratamento dessa questão
exige que se desvele como "... a classe dominante não apenas justifica sua dominação, mas
consegue preservar o consenso ativo daqueles que são governados", ou, através de que
formas se garante a reprodução da dominação de classes na sociedade capitalista. (Hirsch,
1977:86-7)

Partindo do pressuposto "de que toda sociedade de classe se caracteriza por uma
relação de violência que garante a exploração de uma classe pela outra" Hirsch levanta a
questão chave colocada por Paschukanis: “se o Estado é um instrumento da classe
dominante, por que não se constitui ele num aparelho privado dessa classe e dela se separa,
revestindo-se de um aparelho público institucional, separado da sociedade? Sua resposta é
a de que, diferentemente dos outros modos de produção anteriores, "... numa formação
social capitalista é preciso que a exploração e a reprodução das classes não se efetuem (e
não possam se efetuar) diretamente pela utilização física da violência, mas através da
própria reprodução das relações de produção, regida pela lei do valor." Essa tende a ser
41

transferida para uma força externa ao processo - o Estado -, ocorrendo, assim, uma
separação entre o que ele chama de dominação econômica - a violência "muda", a
exploração, que é inerente ao próprio modo de produção capitalista - e a dominação
política - a violência física - comandada pelo Estado. Para ele "...esta separação do
aparelho de coerção física com relação ao proletariado e à burguesia é o elemento
fundamental da forma de dominação da classe burguesa." (Hirsch, 1977:88)

Mas essa separação entre o aparelho de dominação política e as classes sociais,


indispensável para garantir a reprodução do sistema através do consenso, traz, segundo sua
argumentação, "... conseqüências consideráveis sobre a maneira pela qual a dominação de
classe burguesa se reproduz e se mantém" ao desencadear uma luta política para deter sua
hegemonia e, portanto, sua direção e controle - do Estado -, transferindo para o seu
aparelho a solução dos conflitos entre as classes e suas frações. Como campo
organizacional dessas relações de classes, o Estado, para garantir a reprodução do sistema
a longo prazo, não pode ignorar, entretanto, as demandas das frações não hegemônicas,
assim como deve garantir que a classe operária se reproduza materialmente. É dessa sua
forma de atuação, que se pode compreender as duas principais funções, de acordo com
O’Connor (1977), que ele cumpre no processo de garantir a reprodução da dominação de
classes a longo prazo: as de acumulação e legitimação.

Para O’Connor "... o Estado capitalista tem de tentar desempenhar essas duas
funções básicas, que são, muitas vezes, contraditórias. São essas funções que determinam o
volume e a alocação das despesas estatais distribuídas, respectivamente, entre capital social
e despesas sociais ( 1977:19).

Entende-se pela função acumulação o papel que lhe é atribuído de assegurar a


valorização do capital, garantindo-lhe lucratividade. Para tanto, ele destina uma fatia de
seus recursos para investimentos em capital social, que aumenta indiretamente o lucro
capitalista. No esquema de O’ Connor, o capital social compreende: a) o investimento
social, que consiste em projetos que aumentam a produtividade da força de trabalho ou que
rebaixam os custos de produção da empresa, aumentando sua taxa de lucro, tais como os
investimentos em infra-estrutura econômica - estradas, aeroportos, ferrovias, etc. -, no
ensino, em cursos de treinamento/especialização técnica, em P & D, etc.; b) os gastos com
consumo social, que compreendem projetos/programas que rebaixam o custo de
reprodução da força de trabalho e, portanto, o valor dos salários, como os relativos aos
transportes de massas, instalações médico-hospitalares, seguros de saúde, desemprego, etc.

A função legitimação deriva da necessidade de se obter o consenso e o apoio das


classes sociais e suas frações às ações do Estado. Isso significa que este, embora
comprometido com o processo de acumulação, deve também destinar recursos de seu
orçamento para assegurar a reprodução material da classe dominada - base em que se
assenta a reprodução do próprio sistema - e, com isso, garantir, a coesão social em torno
dos projetos implementados, evitando-se questionamentos do sistema e garantindo a
legitimidade da ação estatal. Os recursos do orçamento destinados para essa finalidade,
O’Connor os classifica como Despesas Sociais, as quais se referem aos gastos
previdenciários e a programas voltados, de uma maneira geral, para a pobreza e para os
desassistidos do sistema.

Nessa perspectiva, o Estado aparece como o organizador da estrutura das relações


de classes e de suas frações, contando, para isso, com uma relativa autonomia, o que lhe
42

confere a aparência de sobrepairar acima dessas mesmas classes e perseguir, por moto
próprio, o bem estar geral da sociedade.

O esquema analítico de O’Connor, como ele mesmo reconhece, dificulta a


classificação das despesas estatais de acordo com as categorias utilizadas, porque muitas
delas podem se desdobrar tanto em investimento e consumo como em despesas sociais.
Por isso é necessário, no estudo de cada caso, fazer as adaptações necessárias e definir,
com critérios próprios, as que podem ser incluídas/arroladas nas funções de acumulação e
legitimação.

Cabe notar que não existem regras nem quotas específicas para a distribuição ou
aplicação dos recursos apropriados pelo Estado tanto nesses campos de sua atuação como
no seu interior. Cada contexto e realidade histórico-concretos determinam essas
necessidades, de acordo com o objetivo de garantia da reprodução do sistema. Como
apontam Salama e Mathias (1983:9-11), “nos países capitalistas desenvolvidos, o Estado
intervém relativamente mais na reprodução da força de trabalho do que no setor produtivo,
ao contrário do que se constata nos países subdesenvolvidos.” Isso se explica porque, na
primeira, as forças produtivas já foram devidamente constituídas, dispensando o Estado de
ocupar áreas mais afeitas ao capital, enquanto na segunda essas se encontram em fase de
constituição, dependente de sua ação. Por isso, as estruturas orçamentárias e o padrão de
intervenção do Estado costumam ser distintos nessas realidades, embora persigam os
mesmos objetivos.

Dependendo, portanto, do estágio de desenvolvimento da economia, maior ou


menor prioridade podem ser dadas a cada uma dessas funções e, no seu interior, a
determinados gastos que atendam as demandas e necessidades de reprodução do sistema.
Acentuados desequilíbrios entre as duas (em favor da acumulação ou da legitimação)
tendem a gerar forças de oposição e questionamento do Estado, e, portanto, das bases do
sistema: no caso da primeira, pela redução do lucro; no da segunda, pelo aumento das
desigualdades e da massa de excluídos. É nessa espécie de “fio da navalha” que o Estado
deve procurar se equilibrar para manter as condições de sua reprodução.

A partir dos resultados encontrados é que se obtêm os elementos que permitirão


investigar as forças que governam o volume e a distribuição dos gastos e a distribuição do
ônus representado pelo seu financiamento entre os membros da sociedade. Para tanto,
ingressa-se no campo da forma de articulação entre o setor público e o privado, no estudo
dos lobbies empresariais e de grupos na elaboração orçamentária e no estágio em que se
encontra a correlação das forças sociais e a sua representação ao nível do poder legislativo.

Ao contrário da vertente ortodoxa/tradicional, que baliza/justifica a intervenção do


Estado na economia a partir de falhas apresentadas pelo mercado, mas não desvela os
determinantes do volume e da composição/alocação dos gastos governamentais entre
setores/regiões, etc. e nem a forma como se distribui o ônus de seu financiamento entre as
classes sociais e suas frações, a vertente marxista entende que é a partir da compreensão
das necessidades postas pela acumulação de capital e do estágio da estrutura das relações
de classes, que determinam a natureza e o papel do Estado na economia, é que se pode
entender a dinâmica da política fiscal traduzida em seus efeitos sobre receitas e gastos
orçamentários.
43

4. UM RESUMO DAS VISÕES TEÓRICAS SOBRE O PAPEL DO ESTADO E A


PRODUÇÃO DE BENS PÚBLICOS

Um relato resumido da trajetória percorrida pelo Estado, de acordo com a leitura


precedente, pode ser feito da seguinte maneira:

1. Na fase correspondente à acumulação primitiva necessária para fundar as bases


do sistema capitalista, o papel do Estado, diante da fraqueza da burguesia
nascente, é crucial não somente para sua constituição, mas também para
liquidar as resistências do antigo regime que se opunham ao seu florescimento;

2. Uma vez assentadas as bases desse sistema, que opera sob os pressupostos
teóricos da livre concorrência, o Estado se torna desnecessário para o seu
funcionamento. Isto porque, de acordo com a doutrina liberal, o mercado
dispõe de mecanismos auto-reguladores capazes de corrigir seus desequilíbrios
e, segundo a visão marxista, apesar de produzir e reforçar suas desigualdades, a
lei do valor opera plenamente no capitalismo competitivo. Nessa perspectiva,
ao Estado caberia apenas a tarefa de garantir as condições externas para a
reprodução do sistema e atuar para corrigir falhas localizadas na alocação de
recursos, que levam à perda de eficiência do sistema;

3. Quando o sistema competitivo desmorona – se é que ele esteve de pé fora dos


manuais – e é substituído por estruturas não-competitivas, o mercado perde o
seu poder auto-regulador e a lei do valor, na perspectiva marxista, deixa de
operar na sua plenitude. Nessa situação, onde as condições endógenas de
reprodução do sistema deixam de existir, torna-se necessária a intervenção do
Estado para garanti-las e impedir sua derrocada;

4. Para Keynes, a entrada em cena do Estado, através da implementação de


políticas indutoras de investimentos e geradoras de renda e emprego,
combinadas com políticas de conteúdo redistributivo, torna-se uma exigência
para evitar que as forças autofágicas e autodestrutivas do mercado conduzam o
sistema para o colapso. Neste sentido, sua proposta tem por propósito salvar o
capitalismo, dotando o Estado, através da política fiscal, de capacidade para
desempenhar esse papel. Na sua caixa de ferramentas voltada para essa
finalidade, ganham relevância, assim, as políticas de estabilização e as voltadas
para a redução das desigualdades, incentivando e fortalecendo o Estado do
bem-estar;

5. Na visão marxista, a lei do valor, ao deixar de operar na sua plenitude, impede


o mercado também de auto-regular os conflitos e de garantir as condições de
reprodução do sistema, o que leva o Estado a assumir e desempenhar as
funções de acumulação e legitimação para garantir essa reprodução. Com
isso, e como não é mais o mercado que garante essas condições, que são
transferidas para dentro do aparelho estatal, politizando a economia, surge uma
disputa entre as diversas frações do capital para deter a hegemonia política no
comando das ações do Estado e para assegurar o seu controle;
44

6. A crise das idéias keynesianas na década de 70, provocadas pela sua


incapacidade de dar respostas ao fenômeno da estagflação, associada às
dificuldades financeiras do Estado do bem-estar, bem como as evidências
conflitantes, na perspectiva marxista, de que as funções de acumulação e
legitimação desempenhadas pelo Estado, colocavam em risco a reprodução do
sistema, desencadearam um contra-ataque do pensamento neoliberal, que
passou a atribuir ao Estado a responsabilidade pelos desequilíbrios do sistema e
a sugerir, como saída para a crise, o esvaziamento de suas funções. O sucesso
alcançado pela intervenção estatal no pós-guerra, garantindo maior estabilidade
para o sistema capitalista, fortaleceu a confiança da burguesia em si mesma,
levando-a, novamente, a pretender caminhar com os próprios pés, dispensando
sua tutela;

7. Os resultados colhidos com as propostas de “encolhimento” do Estado, nas


décadas de 1980 e 1990, levaram o pensamento dominante a recuar de sua
posição radicalmente antiestado e à sua revisão: já que é ele necessário para
garantir a reprodução do sistema, à medida que o mercado não dispõe de
mecanismo para tanto, deve-se procurar reciclar e regular suas instituições,
capacitando-o a melhor desempenhar suas funções, com maior eficiência e a
um custo mais baixo para a sociedade e o capital. Contidas nas teorias “neo-
institucionalista” e na “Nova Economia Política”, desdobramentos da Public
choice, são as idéias que, na atualidade, deram – e dão - respaldo teórico às
propostas do Estado gerencial, que opera com eficiência. Uma espécie de
reconhecimento de que “ruim com o Estado, pior sem ele”. Mas que a crise da
segunda metade do século XXI colocaria novamente em questionamento ao
exigir a intervenção dos governos, de modo geral, para salvar o mercado de
suas próprias mãos, por meio de programas de resgate do sistema.

Desse relato fica evidente que: a) o papel desempenhado pelo Estado capitalista
tem uma determinação histórica, que só pode ser entendido no contexto das necessidades e
crises do sistema e das condições exigidas para sua reprodução; b) nos momentos em que o
mercado mostrou-se incapaz de garantir, endogenamente, essas condições, o Estado foi
convocado para desempenhá-las, politizando a economia, ao trazer para o seu seio a
regulação dos conflitos entre as classes e suas frações; c) o aumento crescente de seu papel
na economia, como resultado desse processo, terminou conduzindo-o a um forte
desequilíbrio financeiro, que passou a ser identificado como a causa primária da crise do
sistema, cuja remoção se torna indispensável, na visão neoliberal, para restaurar as suas
forças e recuperar sua eficiência. A implementação de suas propostas nessa direção
mostrou-se, contudo, contrárias aos seus propósitos, exigindo a reintrodução, sob outra
forma, do Estado no sistema.

Embora difiram no tocante à funcionalidade do Estado para o sistema capitalista, as


escolas neoclássica e neoliberal, aí incluída a corrente dos rent seeking, consideram o
Estado como um agente que responde, passivamente, às demandas que lhe são
encaminhadas pelos indivíduos e, o que é pior, incapaz de fazer sua filtragem de acordo
com o seu conteúdo e resultados para o bem-estar coletivo. Neste sentido, é um Estado
que, sem vida própria, torna-se presa fácil de interesses particulares – não de classes –
destituídos de compromissos com a coletividade, mas que conseguem, através de vários
expedientes, estratagemas e alianças, influenciar e determinar suas linhas de ação e o
45

objetivo de seus gastos. Se assim fosse, não restam dúvidas de que o mercado seria, do
ponto de vista da eficiência, superior ao Estado. Mas a tese – nunca comprovada – de que
as preferências individuais, expressas nessas demandas, podem ser agregadas para
determinar a oferta de bens e serviços pelo Estado, torna essas posições insustentáveis
teoricamente. As teorias neo-institucionalista e a Nova Economia Política procuram
flexibilizar essas posições sobre o Estado e mercado, mas não vão além, em sua essência,
dessa tentativa de acomodação “controlada” do primeiro no sistema.

O que parece mais problemático naquela teoria (a dos rent seeking) é a sua
obsessão em opor Estado e capital, em considerá-los pólos opostos, antinômicos, e
compará-los do ponto de vista da eficiência, quando, na verdade, constituem partes
integrantes do mesmo sistema, cabendo ao primeiro o papel de criar as condições
necessárias para a reprodução do sistema. O que torna a questão da eficiência irrelevante
para o processo, uma vez que, em alguns momentos, essa talvez tenha de ser “sacrificada”
para que o capitalismo triunfe enquanto modo de produção.

Nessa perspectiva, tanto na visão de Keynes como na marxista, o Estado aparece


como vital para assegurar a reprodução do sistema. Na de Keynes, que não opera com o
conceito de classes sociais, o cumprimento, pelo Estado, das funções alocativa, distributiva
e estabilizadora, é indispensável para amortecer as flutuações cíclicas do sistema e garantir
sua reprodução. Na marxista, a necessidade de o Estado atuar como agente da acumulação
e da legitimação desvela a sua essência, a simbiose que estabelece com o capital, a sua
construção – e transformações em sua ossatura material e em suas formas de intervenção -,
de acordo com as exigências políticas e/ou econômicas surgidas nas diversas fases/etapas
de desenvolvimento do capitalismo.

Não se trata, aqui, de um Estado que responde passivamente às demandas dos


cidadãos/indivíduos, mas um Estado com vida própria e autonomia – relativa, para não
se descolar dos interesses do capital – que atua exatamente para garantir as condições de
reprodução do capital. Isso não significa a existência de relações harmônicas entre o
capital e o Estado, porque o primeiro quer desfrutar de liberdade que o segundo cerceia,
mas… para o seu próprio bem! As relações entre Estado e capital são, assim, de
permanente tensão, mas a verdade – e o relato anterior sobre a trajetória do capitalismo
confirma isso – é que sempre que o mercado julgou-se capaz de prescindir do Estado, a
reprodução do sistema correu riscos, seja por problemas de governabilidade, de
insuficiência do processo de acumulação ou do surgimento de crises sistêmicas provocadas
pela sua capacidade de criar, na ausência de mecanismos regulatórios, riquezas artificiais
que não encontram respaldo na economia real. É essa permanente tensão que explica a
alternância de fases de liberdade econômica, quando o capital busca se desprender do
Estado, com fases de forte regulação, tornada necessária para seu funcionamento e sua
continuidade.

A maior insatisfação que existe em relação à visão marxista do Estado, que mostra
claramente os limites que a propriedade privada dos meios de produção coloca para a
melhor alocação de recursos pela sociedade, é a ausência de espaços para o processo
democrático influenciar nesse processo (ver, para essa crítica, Przeworski, 1995). Mas
essa não parece uma crítica relevante. Porque, sempre que pressionado – e as conquistas da
sociedade na construção de um capitalismo mais democrático não podem ser ignoradas – o
sistema acabou por acomodar as demandas da sociedade, legitimando-as, sem colocar em
risco seus alicerces.
46

Pode ser que o atual enfraquecimento do Estado, devido à crise financeira em que
se encontra mergulhado e à sua crescente incapacidade de continuar provendo bens
públicos essenciais à sociedade, mesmo dela extraindo níveis elevados de receitas, por
meio da tributação, conduza à consolidação de novas formas de sua atuação ou até mesmo
à sua substituição por outros meios alternativos de organização da sociedade e de
relacionamento com o capital. Se isso ocorrer – e só a história o dirá – as novas estruturas
que surgirem terão de acomodar essas novas situações. Ou o capital já não mais será o
mesmo sem o Estado.

5. O ESTADO NA ECONOMIA BRASILEIRA4

O Estado brasileiro não percorreu os mesmos caminhos de seus antecedentes na Europa e


nos EUA. Descoberto por Portugal em 1500, o Brasil, enquanto colônia até 1822, não
passava de mera extensão – e propriedade – da metrópole. Com a independência alcançada
em 1822, sem ruptura, inaugurou um período de transição de sua economia, regido por
herdeiros da ex-metrópole, permanecendo praticamente sob seu controle e sem conseguir
desmontar o instituto da escravidão, o que só ocorreria em 1888 e, portanto, sem criar as
condições para o avanço e fortalecimento da sociedade civil, indispensável para o exercício
do poder do Estado, entendido em seu sentido mais amplo.

Com a instalação da República em 1889 e a promulgação da Constituição de 1891


é que se pode demarcar, mais claramente, o início da construção do Estado no país. Trata-
se de um Estado, contudo, no início de sua formação, presa das oligarquias e de interesses
regionais, destituído de ossatura material, institucional, econômica e social, incapaz,
portanto, de implementar políticas de âmbito nacional e de funcionar como um Estado
moderno, capitalista, entendido, na análise de Weffort como “... um órgão (político) que
tende a afastar-se dos interesses imediatos e a sobrepor-se ao conjunto da sociedade como
soberano.” Weffort, apud Draibe, 1985:22).

De acordo com essa perspectiva, segundo Draibe (1985:60) somente com a


“Revolução de 30 [é que seria inaugurada] a etapa decisiva do processo de constituição do
Estado brasileiro. A quebra das ‘autonomias’ estaduais que amparavam os ‘pólos
oligárquicos’ resultou numa crescente centralização do poder: concentraram-se
progressivamente no Executivo Federal os comandos da política econômica e social, bem
como a disposição sobre os meios repressivos e executivos. O Estado seguirá federativo na
sua forma, mas os núcleos de poder local e regional serão subordinados cada vez mais ao
centro onde se gestam as decisões cruciais. Este momento de centralização e concentração
do poder, sob os múltiplos aspectos em que se expressou, conduzirá o Estado brasileiro a
uma forma mais avançada de Estado nacional, capitalista e burguês”.

Com base neste sucinto relato feito sobre a evolução do Estado na economia e no
pensamento econômico, e da trajetória por este percorrida no Brasil, é possível fazer uma
periodização visando situar o seu envolvimento na economia brasileira, a partir da

4
Não se pretende, aqui, reconstituir, com detalhes, as várias etapas de formação do Estado brasileiro.
Vários autores, como Draibe (1985), Prado (1985) e Martins (1985), entre outros, realizaram, com
competência e clareza, essa análise. Nosso propósito visa apenas resgatar, nessa evolução, os elementos
dessa trajetória que se enquadram nas teorias discutidas nas seções anteriores que influenciaram sua
conformação, tamanho e papéis, refletidos nas suas estruturas de financiamento e de gastos.
47

instauração da República, no país, até os dias atuais. São três os períodos que podem ser
destacados:

a) o que se estende até o início da década de 1930, revela um Estado frágil institucional,
econômica e financeiramente, destituído de condições de implementar políticas de
âmbito nacional.

No campo econômico, e de acordo com os números relativos à sua participação na


geração de renda na economia, apresenta as características de um Estado de cunho liberal,
marcado pela política do laissez faire. Acompanhando as tendências mundiais, restringem-
se suas atividades, até mesmo pelas suas limitações financeiras, a episódicas e localizadas
incursões nas atividades econômicas do país. Sua participação na economia circunscreve-
se, de um lado, à sua atuação no campo financeiro, através do Banco do Brasil e de
algumas caixas econômicas e, de outro, ao fornecimento de garantias de rentabilidade
mínima para que companhias estrangeiras realizem investimentos em infra-estrutura no
País, notadamente no setor de ferrovias.

Do ponto de vista da política econômica, contudo, sob o controle das oligarquias


regionais mais poderosas, instaladas nos estados de São Paulo, Minas Gerais e, com menor
intensidade, no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, é um Estado com forte poder
regulatório, que intervém expressivamente na atividade econômica, principalmente através
da adoção de medidas protecionistas voltadas para defender os níveis de produção e de
renda dessas mesmas oligarquias, ou seja, do setor hegemônico da economia - o cafeeiro.

Liberal na aparência e intervencionista na prática, o Estado brasileiro, desse


período, não precisa contar com volumes significativos de recursos para o desempenho de
suas funções e se vale, como principais instrumentos de captação de suas receitas, dos
impostos incidentes sobre o comércio exterior, notadamente o de Importação, de
competência da União, e o de Exportação, cujos recursos eram destinados para os estados
da federação. Até 1930, como se pode confirmar na Tabela 1.2, a relação Despesas
Governamentais/PIB, aí incluídas as relativas aos estados e municípios, raramente
superaria a casa dos 15%;

b) o que se inicia nos anos 30 e se prolonga até início dos anos 80, um Estado que deu
início, avançou e consolidou suas bases materiais e institucionais, libertando-se dos
interesses oligárquicos imediatos e colocando-se em condições de atuar como um
Estado moderno, capitalista e de implementar políticas de âmbito nacional. Neste
período é um Estado que se caracteriza por um forte envolvimento, intervencionismo e
regulação em vários campos da vida econômica e social – educacional, trabalhista,
previdenciário etc. No campo econômico, antecede, com essa atuação, já nos anos 30,
as formulações keynesianas a respeito do novo papel que este deveria cumprir diante
das dificuldades postas pela crise mundial deflagrada em 1929, ao mesmo tempo que
se coloca como precursor das idéias cepalinas sobre a sua importância para o processo
de desenvolvimento das economias atrasadas.5

As características e o ímpeto revelados na sua forma de intervenção colocam-no na


condição de Estado desenvolvimentista, na perspectiva teórica da CEPAL, ao atuar como
elemento estruturante do processo, comandante do processo de acumulação e formulador e
executor das políticas necessárias para a indispensável industrialização, que se acreditava
5
Uma brilhante análise deste processo é realizada por Draibe (1985).
48

capaz de liquidar a pobreza e a miséria existentes no País. Na perspectiva marxista,


representa o período em que a prioridade do Estado é conferida à função acumulação,
visando avançar na constituição das forças produtivas especificamente capitalistas, embora
pelos conflitos e desigualdades que este processo engendra, alguma atenção comece
também a ser dada à função legitimação, mas longe de representar compromisso com a
criação e consolidação de um welfare-state.

Para tanto, chama para si a responsabilidade de investir, na condição de Estado-


empresário, nos setores considerados estratégicos para a industrialização - energia,
mineração, aciarias etc. - e, através do manejo das políticas fiscal, cambial e monetário-
creditícia de orientar os investimentos privados para os setores considerados cruciais para
o processo. Com isso, o País vê deslanchar o seu processo de industrialização, mas
apresentando características, entretanto, completamente distintas das observadas no mundo
desenvolvido e sem que se resolvessem os problemas do atraso e da miséria (Cardoso de
Mello, 1977). Do ponto de vista de sua capacidade de alargamento das bases do
capitalismo no País e do quadro instrumental com que contava para o desempenho dessa
tarefa, o Estado desenvolvimentista conhece dois momentos distintos.

Um que se estende dos anos 30 até 1964, quando, ancorado em bases fiscais e
financeiras frágeis e respaldado por um pacto político - a base do "Estado de
Compromisso" - que lhe impedia a realização de reformas instrumentais - tributária,
financeira etc. - indispensáveis para o cumprimento de seu novo papel, o Estado se vê
compelido a lançar mão da empresa pública como instrumento de financiamento, através
da contratação de recursos externos, e da criação de inúmeros fundos fiscais vinculados
para assegurar recursos de investimentos para os setores nascentes. De fato, como se pode
observar na Tabela 1.2, apesar do maior esforço de investimentos que passou a ser exigido
do Estado, os gastos governamentais da administração direta situaram-se, até o ano de
1964, em torno de modestos 15% do PIB.

Outro, que se inicia em 1964, é marcado pelas profundas reformas realizadas no


quadro instrumental do Estado, pelo governo autoritário que assume o poder. As reformas
tributária, financeira, previdenciária, administrativa etc. revitalizam as bases de
financiamento do Estado, removendo os obstáculos inibidores de um novo ciclo de
crescimento, e inauguram uma nova era - que se revelará efêmera - de considerável
expansão da economia, tendo como seu principal condutor o Estado desenvolvimentista
com suas bases fiscais e financeiras fortalecidas. Só para se ter uma idéia deste
fortalecimento, basta constatar, ainda na Tabela 1.2., que os gastos públicos saltam de algo
em torno de 15% do PIB em 1965 para cerca de 25% em 1975. O envolvimento do Estado
no processo se dá com tamanha intensidade, entretanto, que em pouco tempo ele se vê
mergulhado numa profunda crise fiscal, que, ao mesmo tempo em que mina as suas bases,
representa também um reflexo da crise do Estado desenvolvimentista;

c) o que tem início, nos anos 80, revela um Estado em crise, mergulhado numa profunda
crise fiscal, dardejado pelo surgimento das idéias neoliberais, questionado em sua
dimensão e eficiência pelas mesmas elites que o mantiveram prisioneiro de seus
interesses, enquanto vigorou o pacto que deu sustentação ao desenvolvimentismo.
Marcado por acentuados desequilíbrios fiscais e financeiros e com a economia
submetida a permanentes ondas de instabilidade, o Estado, concluída a administração
do presidente José Sarney (1985-1989), que representou o ocaso do já moribundo
projeto desenvolvimentista, se tornará presa fácil do novo pensamento dominante, o do
49

neoliberalismo, que enxerga em suas ações as causas dos problemas que afetam a
eficiência do sistema e, na redução de seu papel e de sua retirada do mundo
econômico, o caminho para sua salvação.

Por essa razão, o Estado que começou a ser reconstruído neste período, no Brasil,
seguiu as recomendações preconizadas pela doutrina neoliberal, consubstanciadas nos
postulados do Consenso de Washington, representando uma ruptura com o Estado de
vertente keynesiana/cepalina. Ao contrário do Estado que atuou, nas etapas anteriores do
desenvolvimento do País, como condutor, organizador e agente estruturante deste
processo, com forte atuação na constituição de suas bases, por meio das empresas estatais,
dos investimentos públicos e da implementação de políticas voltadas para estimular o
investimento privado, o modelo de Estado que surgiu deste novo paradigma passou a
assentar-se no compromisso de ampliação dos espaços para garantir a soberania do
mercado.

Tudo isso significava, em poucas palavras, promover reformas tanto para sua
retirada da vida econômica como para remover obstáculos que se opunham ou limitavam a
ação do capital privado, sobretudo o internacional, na busca de maior eficiência, casos da
elevada carga tributária e de sua incidência sobre a produção, os investimentos e a as
exportações, da forte regulamentação dos mercados, em geral, e, inter alia, do baixo grau
de abertura da economia.

Nessa visão, em que não há mais lugar para o Estado intervencionista nos campos
econômico e social, a este se recomenda libertar da herança keynesiana/cepalina para
aliviar o capital do fardo, do ônus que suas políticas impõem e representam para o
crescimento e a estabilidade da economia, reduzindo o seu tamanho e reformando suas
instituições para gerir, com responsabilidade, suas finanças, visando não perder
credibilidade, tendo como prioridade a garantia de pagamento, aos seus credores, da dívida
pública e de seus encargos. Mesmo que, para isso, fosse necessário comprometer, na
perspectiva marxista, o seu papel como agente de legitimação.

É este novo Estado, modificado em sua ossatura material, em suas instituições e em


seus objetivos-alvos, que, aderindo ao ideário dessa doutrina, os governos Collor (1990-
1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) dariam início tanto à construção como
ao fortalecimento de suas bases, com a adoção de políticas de abertura comercial e
financeira, de desregulamentação da economia e de desmonte do setor público e das
políticas sociais, de modo geral, privatizando empresas estatais e promovendo/reduzindo o
compromisso do Estado com compromissos com a oferta de políticas públicas, em prol das
forças de mercado, ao mesmo tempo em que encaminharam uma série de reformas para
realizar seu ajustamento financeiro e assegurar uma gestão responsável de suas finanças,
traduzida em equilíbrio fiscal e garantia de sustentabilidade e pagamento da dívida pública
e de seus encargos.

Ironicamente, para garantir o pagamento dessa dívida, foi nesses governos que a
carga tributária conheceu crescimento inédito, ultrapassando a casa dos 35% do PIB – uma
receita produzida por uma estrutura totalmente descomprometida com os princípios da
tributação, como os da competitividade, da neutralidade e da equidade. Seduzidos pela
nova doutrina dominante, empenharam-se, na realidade, em ajustá-lo às exigências do
processo de globalização, não medindo esforços para retirar do Estado o seu papel como
50

agente de “legitimação”, circunscrevendo-o ao de “acumulação”, apesar das implicações


que isso poderia representar para o sistema.6

Com o governo Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu o comando do país em
2002, essa política não somente foi mantida como aprofundada, apesar de se terem
registrado alguns pequenos avanços no campo social, especialmente com o fortalecimento
do programa ‘Bolsa-Família”, indispensável para a legitimação do governo, dando-se
prosseguimento à desmontagem de suas bases materiais e financeiras como agente
responsável pela implementação de políticas essenciais para o desenvolvimento e para o
bem-estar social. A remodelagem (ou “reinvenção”) de seu aparelho, em nome da
eficiência e eficácia, bem como a limitação de seu papel à de agente “regulador”, reflete as
exigências colocadas pelo capital, nestes tempos de globalização, em que o afastamento do
Estado dessas atividades é por ele considerado essencial para garantir seu “curso natural”,
sem incorrer em ônus excessivo representado pela necessidade de manter o apoio e coesão
das classes dominadas, por meio de políticas redistributivas, que drenem parcela
substancial de seus ganhos. Tema, cuja discussão é retomada nos capítulos seguintes.

6
Essas questões são retomadas e discutidas com maior profundidade nos próximos capítulos.
51

Tabela 1.2
A Evolução do Estado na economia brasileira na República
1889-2006

Períodos Características
• reduzida participação nas atividades
produtivas;
1ª República • manejo da política econômica,
Estado liberal e economia agroexportadora principalmente da política cambial, para
(1889-1930) defender os interesses do setor hegemônico,
o cafeeiro;
• carga tributária e gastos públicos entre 10%
e 15% do PIB
• Avanço e consolidação de suas bases
materiais e institucionais;
• Forte intervencionismo na vida econômica e
social;
Estado Desenvolvimentista e Industrialização • Carga tributária e gastos orçamentários ainda
1ª fase: 1930-1964 reduzidos (entre 15% e 20% do PIB) devido
à estreiteza das bases de tributação e dos
compromissos políticos (“Estado de
compromisso”);
• Mecanismos complementares de
financiamento: empresas públicas, fundos
vinculados, déficits e dívida
• Reformas do quadro instrumental e
institucional (tributária, administrativa,
Estado Desenvolvimentista, Autoritarismo e financeira etc.) para aumentar eficiência e
Redemocratização capacidade de financiamento;
2ª fase: 1964-1989 • Forte intervencionismo na economia, com
ampliação das empresas estatais;
• Elevação da carga tributária e dos gastos
orçamentários para 25% do PIB
• Crise fiscal;
• Predomínio das idéias neoliberais;
• Retirada da atividade econômica, com
privatização de estatais, desregulamentação e
Globalização, Neoliberalismo e Crise Fiscal: desmonte de políticas sociais e regionais;
1990-(...) • Reformas das instituições, ajustes e
compromissos com a política de
sustentabilidade da dívida;
• Elevação da carga tributária, que ultrapassa a
casa dos 35% do PIB, para promover o
ajuste fiscal;
• Aumento dos gastos com o pagamento dos
juros da dívida, para evitar seu descontrole.
Fonte: elaboração do autor.
52

BIBLIOGRAFIA

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São Paulo, Editora 34, 2004;
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Zahar;
54

CAPÍTULO II

O ORÇAMENTO PÚBLICO: ORIGENS, PAPÉIS E GESTÃO*

Fabrício Augusto de Oliveira


55

1. INTRODUÇÃO

A análise desenvolvida no Capítulo I sobre a evolução e os papéis do Estado na


economia teve o propósito de demonstrar que, de acordo com as tarefas que lhe são
atribuídas historicamente, deve ele dispor de um determinado montante de recursos para
desempenhá-los. A dimensão que estes podem assumir e as forças que governam a
distribuição de seu ônus entre os membros da sociedade, questões insatisfatoriamente
tratadas pela teoria convencional das Finanças Públicas, têm profundas implicações não
somente pelos impactos que podem acarretar para o aparelho produtivo como também
pelos efeitos que engendram na órbita da distribuição. Assim, qualquer tentativa de avaliar
os impactos macroeconômicos e sociais da política fiscal, não pode deixar de investigar: a)
os mecanismos e instrumentos de que ele dispõe para a obtenção desses recursos; b) a
forma que assumem as relações entre o Estado e a sociedade, que conferem ao primeiro o
poder de extração de recursos, com a anuência da segunda; e c) os princípios que norteiam
a distribuição do ônus que a tributação representa para os membros que compõem a
sociedade.

Stricto sensu as receitas públicas do Estado moderno provêm fundamentalmente


de duas fontes: 1) da exploração de seu patrimônio e das atividades de suas empresas,
resultantes do desempenho de seu papel de Estado-empresário; 2) da tributação imposta à
sociedade. Podem-se apontar, ainda, outras fontes de receitas resultantes, por exemplo, do
exercício de seu poder de polícia, como as decorrentes da cobrança de multas, que não se
classificam como tributos ou, ainda que raras, as referentes às doações que são recebidas
pelo governo, seja por residentes do país, seja pela ajuda financeira a ele prestada por
outros governos.

Lato sensu costumam-se incluir no rol das receitas, os empréstimos (ou dívidas)
realizados pelo setor público, na forma de títulos ou contratos, à medida que os mesmos
configuram entradas de recursos nos cofres públicos. Embora pela sua importância no
financiamento do setor público e pela sua crescente participação nos sistemas financeiros
modernos, tal instrumento mereça uma análise detida de suas implicações
macroeconômicas, não pode ele ser considerado uma receita propriamente dita do setor
público, mas uma alternativa de financiamento de seus gastos em face da insuficiência de
recursos próprios para materializá-los. O fato é que, embora se possa identificar uma
diversidade de fontes de onde se originam as receitas públicas, são predominantes as que
se vinculam ao Estado-empresário e à tributação.

Ambas são de natureza distinta, sendo, portanto, diversos os efeitos por elas
engendrados sobre a produção e a distribuição. As receitas provenientes da atividade
empresarial do Estado não constituem ônus para a sociedade - a não ser nos casos em que
o governo tenha de lançar mão de recursos fiscais para viabilizar sua implantação ou cobrir
eventuais prejuízos que elas apresentem - mas afetam, via de regra de forma positiva, a
riqueza gerada no país, contribuindo para a valorização do capital em geral, à medida que
geralmente se tratam de empresas que fornecem matérias-primas e bens intermediários
para o setor privado a preços subsidiados.

A atuação empresarial do Estado foi de grande importância, principalmente nos


países de industrialização retardatária do final do século XIX, para suprir as demandas do
sistema por infra-estrutura econômica e capital social básico e destravar os óbices que
impediam o curso mais suave da acumulação. Nos países menos desenvolvidos, este papel
56

ganhou dimensão ainda maior, no século XX, pois, diante de uma burguesia fraca
financeiramente, a ele foi atribuída a responsabilidade pelo alargamento, avanço e
consolidação das bases do capitalismo. Este quadro começou a ser desmontado com o
avanço das idéias liberais e ganhou força a partir da década de 1980, quando um vigoroso
processo de privatização das empresas estatais, respaldado na tese sobre a necessidade de
encolhimento do Estado tornou-se dominante no mundo capitalista e disseminou-se,
ideologicamente, no mundo em desenvolvimento, reduzindo expressivamente o plantel das
empresas estatais no setor produtivo.

Já a tributação, que significa a extração de recursos do setor privado pelo Estado


para o financiamento de seus gastos previstos no espaço orçamentário, não somente tem
implicações que podem ser perversas para o funcionamento do aparelho produtivo, se não
forem observados determinados princípios relativos à sua neutralidade e à capacidade da
economia de suportar o peso de sua incidência, como representa ônus direto para a
sociedade, podendo afetar, de forma positiva ou negativa, a estrutura de distribuição de
renda prévia à sua cobrança.

A análise que é feita, em seguida, contempla apenas a área de atuação do Estado


que ocorre dentro do espaço orçamentário, onde se avalia o significado e as origens da
peça orçamentária e os determinantes e implicações para a economia e a sociedade das
receitas e dos gastos estatais, seu papel como instrumento de política econômica – e de
planejamento – e sua importância para a valorização do capital em geral e para a
reprodução do sistema.

2. 0 ESPAÇO ORÇAMENTÁRIO

2.1. Origens, Conteúdo e papéis do Orçamento Público

Costuma ser de indiferença, de uma maneira geral, a atitude que os cidadãos


adotam em relação à elaboração e ao processo de negociação da peça orçamentária entre
os poderes Executivo e Legislativo. Envolto em números aparentemente frios e contendo
tecnicalidades muitas vezes indecifráveis para o cidadão comum, o Orçamento Público,
onde estão dispostas as receitas e os gastos administrados pelo Estado, parece uma figura
de ficção que somente interessa e é inteligível para os que são responsáveis pela sua
elaboração/aprovação/execução. É nessa arena, entretanto, que são tomadas decisões sobre
os objetivos de gasto do Estado e dos recursos necessários para o seu financiamento, que
afetarão, para melhor ou pior, a vida dos cidadãos. Vejamos essa questão mais de perto.

Nas finanças públicas, o Orçamento constitui, stricto sensu, a peça através da qual
se administram as receitas, as despesas e a dívida dos poderes públicos. Como todo
instrumento, é ele também determinado historicamente, tendo assumido em diferentes
períodos, papéis e feições distintas. No período liberal, por exemplo, prevaleceria entre
economistas e financistas, a opinião de que a obtenção de um Orçamento Equilibrado -
situação em que as receitas não são inferiores às despesas - constituía um indicador
inquestionável de uma boa e sadia administração financeira.

Todavia, as adversidades econômicas resultantes da crise de 1929 e a difusão e


aceitação das idéias keynesianas sobre o papel do Estado na economia, provocariam uma
ruptura com essa concepção e o Orçamento, de uma simples peça de escrituração
contábil, assumiria o importante papel de um poderoso instrumento de política econômica,
57

manejado quer para amortecer as flutuações cíclicas da economia, ao ser direcionado para
influir sobre o nível de investimento e de emprego, quer para combater as oscilações do
nível de preços e mesmo para promover uma melhor distribuição de renda.

Como se percebe, o Orçamento teria evoluído, nesta breve incursão histórica


realizada, de uma mera peça de escrituração contábil para um importante instrumento de
política econômica, transformando-se, também, em elemento indispensável para o
processo de planejamento. Essa sua funcionalidade instrumental oblitera, entretanto, as
relações sociais e políticas que estão envolvidas na definição dos objetivos de gastos e
receitas do Estado, colocando, com isso, uma cortina de fumaça na dimensão política da
peça orçamentária.

Na verdade, a decisão sobre os objetivos de gastos do Estado e a definição sobre a


origem dos recursos para financiá-los obedecem a critérios não somente econômicos, mas
predominantemente políticos, espelhando a direção tomada na sua definição e a correlação
das forças sociais e políticas atuantes na sociedade. É aqui que reside a feição política da
peça orçamentária, no seio da qual se travam os embates entre os representantes das classes
e de suas frações para definir a direção e a forma de ação do Estado, ao mesmo tempo em
que se transforma ela em um importante instrumento de controle que a sociedade possui
sobre o Executivo, através de seus representantes políticos. Não por outra razão Baleeiro
afirma que:
“A origem do orçamento não se prende a elucubrações de técnicas nem
à preocupação de racionalizar a máquina financeira. Uma pequena e
multissecular cadeia de lutas políticas tornou a elaboração orçamentária
indispensável ao equilíbrio dos interesses antagônicos em volta do
poder.” (1978:398)

Os estudos que tratam da origem do orçamento público costumam identificar seu


embrião no art. 12 da Carta Magna da Inglaterra, promulgada pelo rei conhecido como
João Sem Terra (...), em 1215, conforme mostra Giacomoni (1992, Cap. 3), onde se
estabelecia que

“Nenhum tributo ou auxílio será instituído no Reino, senão pelo seu


Conselho Comum, exceto com o fim de resgatar a pessoa do Rei,
fazer seu primogênito cavaleiro e casar sua filha mais velha uma vez,
e os auxílios para esse fim serão razoáveis em seu montante.”

Na verdade, este artigo, que é considerado, ao mesmo tempo, como o nascedouro


do imposto consentido e embrião do orçamento público, não foi resultado da “livre”
vontade do rei, mas fruto das exigências e pressões feitas pela nobreza feudal para limitar o
seu poder na cobrança de impostos, em reação à infrutífera tentativa por ele feita, à época,
de deles exigir maior contribuição para a cobertura de suas despesas. Enfraquecido, o rei
viu-se instado a promulgar a Carta Magna e fazer concessões à nobreza, à igreja e às
cidades, condicionando a cobrança de novos impostos à sua aprovação pelos órgãos de
representação política da época.7

7
A Carta Magna (na verdade, uma declaração de direitos) foi assinada pelo rei João da Inglaterra (1199-
1216), dito João Sem Terra, irmão de Ricardo “Coração de Leão”, em 15 de junho de 1215, perante o alto
clero e os barões do reino, e além do compromisso com ela assumido pelo rei de só cobrar impostos e
decidir sobre questões de guerras consultado o “Conselho de Nobres”, incluiu o direito de locomoção e de
58

Obliterado pelo absolutismo, este pequeno ensaio de legitimação do imposto e de


controle das finanças do rei, as quais se confundiam, como visto no capítulo anterior, com
as do reino (do Estado), seria retomado com maior vigor quando os pesados encargos
impostos a seus súditos, na forma da cobrança de tributos e de tomada compulsória de
empréstimos, conduziram à deflagração da Revolução Inglesa de 1648, que culminou com
o julgamento, a condenação e decapitação do rei Carlos I e com a confirmação, pelo
Parlamento, da legitimidade do imposto apenas quando aprovado pelo órgão de
representação política.

Esta representou, contudo, apenas mais uma etapa na longa marcha deste processo,
que somente seria concluído em 1688, com a eclosão de uma nova revolução inglesa,
conhecida na literatura como “Revolução Gloriosa”, que consolidaria o princípio do
consentimento do tributo e estabeleceria, de forma definitiva, a separação entre as finanças
do rei e as do Estado, dando início à estruturação de mecanismos para exercer o controle
também de seus gastos. Os aperfeiçoamentos que gradualmente foram sendo introduzidos
nestes instrumentos de controle das finanças do Estado, pelos representantes políticos da
sociedade, conduziriam, em 1822, à aprovação, pela primeira vez, no Parlamento inglês, da
peça que atualmente conhecemos como orçamento público, com a qual se passou a fixar e
a autorizar, em cada exercício, não somente a receita, mas também a despesa do Estado.

Da mesma forma que ocorreu na Inglaterra, foram as resistências políticas colocadas


ao poder indiscriminado e arbitrário dos governantes, em geral, à cobrança de impostos
e/ou à tomada compulsória de empréstimos, que se encontram na raiz do surgimento de
instrumentos de controle sobre o Estado, e, portanto, dos orçamentos públicos. Na França,
somente após a Revolução de 1789, que deu fim, com seus desdobramentos, à ordem
feudal que predominava e aos desvarios de Luís XVI e Maria Antonieta, é que foi adotado
o princípio do consentimento popular do imposto, dando origem ao orçamento para a
administração e controle das contas do Estado. Em 1815, como desdobramento dessa
iniciativa, passou-se a aprovar a lei orçamentária anual, mas ainda sem maiores
detalhamentos das dotações expressas neste documento, o que só viria a ocorrer em 1831,
quando o controle parlamentar sobre as finanças do governo se tornou completo. Da
experiência francesa, neste campo, surgiram princípios importantes para melhorar o
controle das finanças do Estado, via orçamento, como os da anualidade, da universalidade
e o de não afetação das receitas, cujo conteúdo discute-se mais à frente.

Nos EUA, após a conquista da independência, também motivada pelo excesso de


impostos cobrados pelo governo inglês, a instituição orçamentária começou a ser erguida:
desde 1802, a Câmara dos Representantes passou a contar com uma Comissão de Meios e
Recursos, a qual manteve, até 1865, pleno controle sobre as finanças do governo. A partir
daí, com o objetivo de evitar os vícios, desperdícios e corrupção inerentes a uma
administração permanente e centralizada, esse poder foi distribuído entre várias comissões,
melhorando a qualidade das decisões e do controle sobre as ações e gastos do governo.

Essa breve incursão à história do orçamento confirma que, na sua origem, sua
criação deveu-se à necessidade de se contar com um instrumento de controle efetivo das
ações do Estado, no que tange às suas decisões sobre a extração de impostos da sociedade
e sobre a realização de seus gastos, numa época em que a atividade do planejamento

permanência dos cidadãos no reino (o direito de “ir e vir”), sendo também considerada precursora do
instituto do “hábeas corpus”, no campo jurídico.
59

governamental, ou seja, do manejo de suas receitas e gastos para o atingimento de


determinados objetivos, sequer era cogitado, até mesmo pelo desperdício e esterilidade que
representavam as finanças públicas para o pensamento dominante.

Destinadas, assim, precipuamente ao sustento do Estado (daí a expressão “Lei de


Meios”), as receitas extraídas da sociedade, que passaram a ser administradas por meio do
orçamento, fizeram deste um instrumento de controle político e financeiro de suas ações,
ajudando a mantê-lo dentro de certos limites então considerados suportáveis para o
funcionamento da economia. Somente quando o Estado expande consideravelmente suas
atividades no século XX e desloca parte considerável da riqueza produzida para o
orçamento e a ele incorpora também a atividade do planejamento para garantir a obtenção
de melhores resultados com as suas ações, é que ganha maior força, no seu interior, o
processo das escolhas orçamentárias, traduzidas na definição de seus objetivos de gastos,
que afetam a equação da distribuição da renda e da riqueza.

De uma arena de controle sobre o montante de receitas cobradas para o seu


sustento, por meio de registros contábeis de suas contas, este se transforma numa
importante arena de negociação, onde se decide como se distribuirá o ônus da tributação
entre os membros da sociedade e quem ou quais setores se beneficiarão com a sua
destinação/uso, em função das prioridades públicas estabelecidas como resultado dos
embates que se travam entre as forças políticas representadas nos Poderes Executivo e
Legislativo no processo de escolhas dos programas governamentais.

O Orçamento pode ser visto, portanto, como o espelho da vida política de uma
sociedade, à medida que registra e revela, em sua estrutura de gastos e receitas, sobre que
classe ou fração de classe recai o maior ou o menor ônus da tributação e as que mais se
beneficiam com os seus gastos. É ainda Baleeiro quem afirma revelar

“... o orçamento [uma] transparência em proveito de que grupos


sociais e regiões ou para solução de que problemas e necessidades
funcionará precipuamente a aparelhagem de serviços públicos. Por
exemplo, se o custeio relativo será suportado com mais sacrifício por
esses mesmos grupos sociais ou por outros; enfim, a maior ou menor
liberdade de ação do Poder Executivo na determinação de todos
esses fatos do ponto de vista das regiões, classes, partidos, interesses
e aspirações, etc.” (1978:397/8)

Schumpeter, que também percebeu muito bem essa dimensão do Orçamento,


escreveria que

"As finanças públicas são um dos melhores pontos de partida para


uma pesquisa da sociedade, embora não exclusivamente, de sua vida
política." (Schumpeter apud O’Connor, 1977:16)

2.2. O orçamento nas escolas do pensamento econômico

Para os autores das escolas clássica e neoclássica, o orçamento era apenas um instrumento
de controle das contas governamentais, elaborado com o objetivo de conter suas ações – e
seus gastos – dentro de limites que não se tornassem disfuncionais para a eficiência do
sistema econômico. Prevalecia, portanto, para essa escola, a visão do orçamento como um
instrumento contábil, enquanto mecanismo de controle de suas receitas e de sua aplicação
60

de acordo com as finalidades estabelecidas pelos parlamentos, na condição de


representantes da sociedade. A obtenção de um Orçamento Equilibrado, ou seja, de uma
situação em que os gastos não são superiores às receitas, não somente era vista e apontada
como uma virtude do governante, mas também como condição necessária para garantir o
equilíbrio do sistema econômico, como foi visto no capítulo I.

Para a escola keynesiana, que não vê o Estado como um agente passivo,


improdutivo, mas como um agente capaz, por meio de suas ações, de influenciar o nível,
a intensidade e a trajetória da atividade econômica, o orçamento é o instrumento que lhe
permite coordenar e planejar suas atividades, visando otimizar seus resultados e
alcançar seus objetivos nos campos econômico e social. Mesmo que para isso tenha de
operar com um Orçamento Desequilibrado, ou seja, incorrendo em déficit público, tal
situação seria plenamente justificada para garantir a correção dos problemas do sistema
e permitir seu retorno a uma situação de equilíbrio, propiciando as condições para o
financiamento dos déficits que foram gerados.

Já para os representantes da escola neoliberal (na perspectiva da escolha


pública) diferem, em relação à visão marxista, os atores que atuam nessa arena, a forma
como se articulam e os resultados que são produzidos, como decorrência de sua ação, no
tocante à distribuição do ônus tributário, dos gastos públicos e à gestão das finanças,
bem como de sua funcionalidade para o sistema. Para o primeiro grupo, os políticos
profissionais, que tomam decisões sobre a estrutura das receitas e dos gastos estatais
representam indivíduos que os elegeram através de votos, visando a maximização de
suas utilidades por determinados bens públicos, e são influenciados, nesse processo,
pela formação de grupos de pressão, lobbies etc., que disputam determinadas políticas
públicas, cuja ação, em interação com os objetivos desses políticos – a maximização e
garantia de apoios – termina provocando distorções na alocação de recursos,
conduzindo a desvios em relação às demandas dos eleitores, à geração de monumentais
déficits orçamentários e ao aumento da ineficiência do sistema.

Na visão marxista, que opera com o esquema de classes sociais, os governos


agem, segundo Miliband (Miliband apud Przeworski, 1995:116-8) “no interesse do
capitalismo, porque os capitalistas controlam as instituições estatais e as utilizam como
instrumentos para a realização de seus interesses.” Para ele, controlando uma enorme
parcela da riqueza, a classe dominante consegue, através de seu poder econômico,
colocar uma “elite no poder” para defender os seus interesses. E é essa “elite” –
políticos eleitos, funcionários nomeados (a burocracia), juízes etc. – que vai tomar
decisões para preservar e garantir as condições de reprodução do sistema e de
valorização do capital, sendo, portanto, altamente funcional para a sua existência.

É nessa perspectiva que O’Connor (1977:203) considera as finanças tributárias


como uma forma de exploração econômica que requer, por isso, análise de classe. Para
ele

"(...) cada mudança importante no equilíbrio das forças políticas e


classistas é registrada pela estrutura tributária. Dizendo-o de outro
modo, os sistemas tributários são apenas formas particulares dos
sistemas de classes."

O orçamento não pode ser entendido, portanto, apenas como uma peça técnica e
instrumental de política econômica e de planejamento, através da qual o Poder Executivo
61

procura cumprir determinado programa de governo ou viabilizar determinados objetivos


macroeconômicos. A definição sobre o programa a ser implementado para a sociedade,
através do Estado, implícito no orçamento, ou os objetivos de política econômica a serem
atingidos, por afetarem de forma diferenciada os interesses das classes e de suas frações
envolvem, necessariamente, negociações entre os seus representantes políticos, tornando-o
o canal através do qual se expressam suas reivindicações, ocorrendo sua aprovação
somente quando é obtido o consenso em torno das questões mais polêmicas.

2.3. Tipos, trajetórias e Princípios do Orçamento

É importante conhecer os tipos e a trajetória percorrida pelo orçamento desde a sua


elaboração até a sua conclusão para se ter clareza sobre as etapas deste processo, sobre o
seu significado e sobre os problemas que podem surgir na sua tramitação. De modo geral,
os orçamentos podem ser elaborados de maneiras distintas, dependendo dos sistemas de
governo dominantes no país. De acordo com Silva (2002), os orçamentos podem, de
acordo com essa definição, ser de três tipos: i) legislativo, que é o tipo de orçamento
utilizado em países de governo parlamentarista, cuja elaboração, votação e aprovação é de
responsabilidade do Poder Legislativo, cabendo ao Poder Executivo sua execução; ii)
misto, que é o tipo de orçamento utilizado como resultado da interação entre os Poderes
Executivo e Legislativo na sua elaboração e definição, cabendo ao último sua execução e
ao primeiro acompanhar e fiscalizar essa execução; iii) executivo, que é o tipo do
orçamento praticado em países de regimes autoritários, cuja elaboração, aprovação,
execução e controle cabem ao Poder Executivo, mesmo que se atribua ao Legislativo
algum papel, que geralmente é decorativo, neste processo.

No caso do tipo misto, que é a forma de construção atual do orçamento no Brasil,


sua elaboração é atribuição do Poder Executivo, que o define em função dos planos e
programas de governo, os quais sofrem a influência dos representantes das classes e de
suas frações instalados nos aparelhos do Estado. Em seguida, o orçamento é submetido à
aprovação do Poder Legislativo, que possui, nessas sociedades, autonomia para confirmá-
lo, rejeitá-lo ou modificá-lo. O seu resultado final dependerá, obviamente, da correlação
das forças sociais ali representadas e das alianças e composições políticas estabelecidas em
torno de questões mais polêmicas, como, por exemplo, as que se referem à distribuição do
ônus tributário e às prioridades conferidas aos gastos públicos.

O orçamento afigura-se, assim, em princípio, à peça através da qual a sociedade


decide, através de seus representantes políticos, sobre os objetivos de gastos do Estado e
sobre a origem dos recursos para financiá-los e, além disso, à peça através da qual ela
exerce um controle sobre a ação do Estado. Em princípio, porque, na prática da execução
orçamentária, o Executivo pode modificar prioridades que foram nele incluídas,
enfatizando umas em detrimento de outras, ou simplesmente não as materializando, no
caso de o orçamento ser apenas de caráter autorizativo. De qualquer forma, da leitura de
seus resultados (da execução) é sempre possível, à luz das áreas e setores com eles
beneficiados, fazer inferências sobre o estágio em que se encontra a estrutura das relações
sociais e políticas de uma dada sociedade.

Enquanto peça de controle da sociedade sobre o Estado, há de se ter clareza que o


papel do Poder Legislativo não se esgota com a sua aprovação. Após aprová-lo, deve ele
fazer um acompanhamento de sua implementação e exigir
62

"... demonstração completa e minuciosa de cada tributo e de cada


gasto programado, com especificação dos fins e limites para que os
parlamentos [e a sociedade] não sejam ludibriados pelos monarcas
[ou presidentes e ministros]." (Baleeiro, 1978:404)

É também através do orçamento que se pode avaliar a situação financeira do


governo, fazendo-se um cotejo entre suas receitas e despesas. É preciso ter clareza sobre o
fato de que o mesmo pode apresentar-se, como resultado da estratégia da política
econômica adotada, ora superavitário, ora deficitário, não significando a ocorrência deste
último caso encontrar-se o governo em condições financeiras e fiscais frágeis. Mas se o
orçamento apresentar-se cronicamente deficitário, com crescente endividamento público,
este pode ser visto como um indicador de que o Estado se encontra com insuficiência de
recursos para o desempenho de suas funções, devendo rever/reorientar sua estrutura de
gastos e/ou reciclar seus mecanismos de financiamento.

O cumprimento pelo orçamento de seus papéis como instrumento de planejamento,


de controle sobre o Estado etc. exige, em contrapartida, a observância e vigência de
determinados princípios (ou regras) que dão consistência e eficácia à instituição
orçamentária. Embora sujeitos às injunções históricas e modificações em seus conteúdos,
alguns dos princípios que ainda estão contemplados no corpo das constituições modernas,
são indispensáveis para possibilitar, ao orçamento, o cumprimento de sua finalidade
primordial, que consiste em ser uma peça importante do processo de planejamento e de
controle da sociedade sobre o Executivo. Entre estes se destacam:

a) os princípios da unidade, da totalidade e da universalidade, os quais,


simplificadamente, significam que os orçamentos das unidades governamentais
devem englobar todas as receitas, de um lado, e todas as despesas, de outro, e
serem reunidos e consolidados em uma única peça que permita a avaliação, o
acompanhamento e a fiscalização das contas públicas pelos representantes da
sociedade;

b) o princípio do orçamento bruto, o qual estabelece que as receitas e despesas


devem ser dispostas na peça orçamentária pelos seus valores brutos e não
líquidos, visando evitar dúvidas sobre os seus montantes realmente envolvidos;

c) o princípio da anualidade - autorização do orçamento por um período


determinado, que geralmente é de um ano;

d) o da não-afetação das receitas, que visa impedir o comprometimento de


receitas com o estabelecimento de vinculações para não limitar a autonomia do
Estado na definição das prioridades públicas;

e) os da discriminação e especialização, que tem por objetivo deixar claras, e de


forma pormenorizada, a origem e a destinação dos recursos orçamentários;

f) o da exclusividade, que restringe o tratamento da lei orçamentária à matéria


estritamente financeira, dela excluindo outros dispositivos estranhos à
estimativa de receitas e à fixação das despesas para o exercício fiscal; e

g) os princípios da clareza (transparência), da publicidade (divulgação do


orçamento) e da exatidão da peça orçamentária, indispensáveis para que a
63

sociedade se inteire e acompanhe os movimentos do Estado na gestão dos


gastos públicos.8

Além destes ainda pode ser apontado o princípio do equilíbrio - herança clássica
que expressa a preocupação dessa corrente com as conseqüências para a estabilidade
monetária de um excesso de gastos sobre as receitas.

Todavia, numa sociedade onde os ideais democráticos encontram-se fragilizados, o


Poder Executivo tende a adquirir autonomia em relação ao Legislativo, passando ele, por
moto próprio, a decidir sobre os destinos do país. Neste processo ocorre, via de regra, um
enfraquecimento ou violação destes princípios pelos governantes, perdendo a peça
orçamentária as condições para o cumprimento de suas funções, ao mesmo tempo em que
fica livre o caminho para que o Executivo formule programas de governo que certamente
tenderão a beneficiar as frações de classes que lhe dão sustentação política. Segundo
Baleeiro

"Quanto mais um regime se afasta do ideal do Estado-de-direito,


tanto menos o Parlamento decide sobre o conteúdo do orçamento
público, sobre a tributação e as despesas." (Baleeiro,1978)

Quando isso ocorre, tudo se passa como se o Estado se corporificasse apenas no


Executivo, que passa a constituir a fonte de onde emana todo o poder, e se afastasse da
sociedade ao transformar, em peças decorativas ou esvaziadas de seu papel, os demais
poderes constitucionais. Reinando soberano, a peça orçamentária passa a refletir, nessa
situação, os objetivos do Executivo e de suas bases políticas, deixando de ser um
instrumento de controle que a sociedade possui sobre as ações do Estado. Com isso, as
questões relativas à distribuição do ônus tributário e à destinação dos gastos públicos
passam a ser decididas no âmbito do Executivo, impondo ao Poder Legislativo perda de
autonomia para influir na sua definição e para desempenhar o seu papel no concerto dos
poderes constitucionais. O Executivo se vê livre, assim, para estabelecer, com as forças
que constituem suas bases de sustentação, os objetivos a serem perseguidos através da
política econômica. Nessa situação, somente ocorrendo mudanças na correlação das forças
sociais ou situações que provoquem o debilitamento das bases do autoritarismo, é que se
torna possível resgatar o orçamento como uma peça que permita à sociedade, em seus
vários segmentos politicamente representados, impedir que os governantes continuem a
decidir, como os Deuses do Olimpo, sobre os desígnios da nação.

Esse maior poder de influência do Executivo na feitura e determinação da peça


orçamentária não é, contudo, exclusividade de regimes autoritários. Mesmo em sociedades
democráticas, a evolução do sistema capitalista, marcado por crises periódicas, guerras e
conflitos entre as nações e pela necessidade de intervenção do Estado na economia e na
vida social, tendeu, historicamente, a conduzir a uma progressiva concentração de poderes
– e de recursos – nas mãos do Estado Nacional e, dentro dele, do Executivo, em detrimento
dos demais poderes, enfraquecendo a fórmula idealizada por Montesquieu, na sua obra “O
espírito das leis”, a respeito da divisão de atribuições e de equilíbrio entre os poderes
constituídos.

8
Para os pontos acima, consultar: Giacomoni, James. Orçamento Público. 4ª edição. São Paulo, Atlas,
1992.
64

Não bastasse esse fortalecimento progressivo do Executivo, ao conduzir à criação


de mecanismos legal/institucionais que lhe atribuem maior liberdade e autonomia para
tomar decisões sobre várias questões, alterando a equação deste equilíbrio, também as
características do próprio processo orçamentário favorecem e reforçam essa tendência. Por
ser geralmente de caráter autorizativo – condição que não obriga o Executivo a gastar o
que foi aprovado, a não ser no caso de despesas consideradas obrigatórias – é amplo o seu
espaço e forte o poder de pressão que detém sobre os parlamentares para ajustar, na sua
execução, o orçamento de acordo com os seus interesses e objetivos.

Instrumentos que fazem parte da execução, como contingenciamentos de gastos,


abertura de créditos adicionais, empenho, liquidação e liberação de recursos para projetos
autorizados no orçamento, transformam-se, nas mãos do Executivo, em mecanismos de
pressão e negociação para impor seus desideratos e submeter o Congresso à sua vontade.
Neste caso, em que predomina – ainda que em graus variados – os objetivos do Executivo,
a peça orçamentária deixa de traduzir, em sua plenitude, os interesses da sociedade como
um todo expressos por seus representantes políticos. Para resgatar este papel, ou um novo
arranjo orçamentário-institucional teria de ser construído ou revista a fórmula proposta por
Montesquieu sobre a soberania dos poderes para contrabalançar o excessivo avanço do
Poder Executivo.

3. O PROCESSO ORÇAMENTÁRIO NO BRASIL

3.1. A evolução do processo orçamentário no Brasil: 1824-1964

Data de 1824 a primeira exigência de elaboração formal do orçamento no Brasil


determinada pela Constituição Imperial deste mesmo ano, após a conquista da
independência de Portugal em 1822. Dificuldades na sua implementação, à época, levam
alguns autores a considerar, segundo Giacomoni (1992), a Lei de 14/12/1827 como a
primeira lei de orçamento do Brasil, embora essa também tenha esbarrado em dificuldades
para ser implementada. Por isso, considera-se que, efetivamente, o primeiro orçamento no
país somente viria à luz em 1830, quando foram aprovadas a previsão das receitas e a
fixação das despesas para o exercício fiscal de 1831. Sua elaboração, de competência do
Poder Executivo, e a atribuição de sua aprovação ao Poder Legislativo, o configuram como
um orçamento do tipo misto, embora se deva considerar que, enquanto predominou o
Império no país, o 4º Poder (o Poder Moderador) dispusesse de condições para fazer
prevalecer sua vontade.

No período da República, que se inicia em 1889 com a transformação da forma de


organização política do país em uma federação, as formas de elaboração do orçamento vão
oscilar de acordo com os regimes políticos que nele se alternam. No período que vai até
1930, marcado por forte influência liberal e descentralização do poder, até mesmo como
resposta à forte centralização do período imperial, a elaboração do orçamento determinada
pela Constituição de 1891, bem como a fiscalização das contas do Executivo, passaram à
responsabilidade do Congresso Nacional. Um orçamento, portanto, caracteristicamente, do
tipo legislativo, restringindo-se o papel do Executivo à sua execução.

Com a Revolução de 1930 e a reacomodação das novas forças políticas, a


Constituição de 1934 reatribuiria ao Poder Executivo a competência de sua elaboração e,
ao Legislativo, a votação e aprovação de suas contas, configurando um orçamento do tipo
65

misto. Com o advento do Estado Novo em 1937 e o mergulho do país em um regime


ditatorial que se estenderia até 1945, todo o controle e todas as decisões sobre matéria
orçamentária passariam para as mãos do Poder Executivo, que reinaria soberano, neste
período, impondo suas vontades à sociedade em vários campos, caracterizando um
orçamento, portanto, do tipo executivo. A redemocratização do país iniciada em 1945,
cujos anseios foram incorporados à nova Carta Constitucional de 1946, reatribuiu ao Poder
Legislativo a competência de votar e aprovar as contas do Executivo, que seria responsável
pela sua elaboração e execução, reintroduzindo o processo orçamentário do tipo misto, no
qual Executivo e Legislativo interagem na sua definição.

Essa situação perduraria até 1964, quando um novo golpe de Estado comandado
pelos militares instalaria novamente, no país, um regime autoritário, transformando o
orçamento numa peça utilizada para viabilizar e materializar seus objetivos como donos do
poder, sem terem de prestar contas à sociedade, caracterizando o orçamento, mais uma
vez, como de tipo executivo. Antes de examinar um pouco mais detalhadamente as
características do orçamento vigente até 1988, quando foi aprovada uma nova Carta
Magna do país comprometida com os objetivos de redemocratização, após a queda do
regime militar em 1985, convém tecer alguns comentários sobre a evolução da instituição
orçamentária no Brasil entre 1831 e 1964, à luz dos papéis que lhe são atribuídos.

Enquanto peça instrumental das finanças do Estado, o orçamento no Brasil, no


longo período que se estende de 1831 a 1964, desempenhou papéis limitados, podendo-se
destacar a de ter servido como registro e administração de suas contas.

Como arena de negociação sobre as suas decisões de gastos, apenas no breve


período que vai de 1946 a 1964 essas condições efetivamente existiram, tendo sido nos
demais a expressão de interesses mais particulares e localizados que dominavam o
aparelho do Estado, como foi no Império, na República Velha (a política dos governadores
conhecida como “café com leite”) e durante a ditadura Vargas.

Como instrumento de planejamento, que ganha importância após a Segunda


Guerra, a instituição orçamentária não havia evoluído o suficiente para absorver e
incorporar este benefício. Com o golpe de 1964 reimplanta-se, no país, o orçamento do
tipo executivo, tornando-o expressão dos interesses e projetos dos novos donos do poder,
impedindo o desempenho de seu papel como arena de negociação, como instrumento de
planejamento, inclusive pela conjuntura macroeconômica que se mostra desfavorável para
essa finalidade, e como instrumento capaz de revelar a verdadeira situação das contas do
Estado, ou seja, até mesmo como instrumento contábil. É o que se discute em seguida.

3.2. O processo orçamentário após 1964

3.2.1. O regime militar e a desfiguração do processo orçamentário

O Brasil, no período compreendido entre 1964-1984, quando vigorou o Estado


burocrático-autoritário, constitui um exemplo conspícuo de ocorrência de uma completa
desfiguração do processo orçamentário. Seus principais princípios foram violados e/ou
obscurecidos, como os da unicidade, da transparência e do equilíbrio, e o orçamento
transformado em um instrumento funcional para os novos donos do poder viabilizar seus
planos e projetos, descaracterizando-o enquanto instrumento de controle do Estado, da
gestão de suas contas e de planejamento. Isso por algumas importantes razões.
66

Em primeiro lugar, porque retirou-se, do Legislativo, o seu poder de decidir sobre


matéria orçamentária ao atribuir-lhe o papel meramente decorativo de aprovar ou rejeitar
integralmente a mensagem do governo, sem autonomia para modificá-la através de
emendas, o que, na prática, o transformou em um orçamento do tipo executivo. Em
segundo, porque se esvaziou gradativamente o Orçamento Fiscal, ao mesmo tempo em que
se criaram outros orçamentos - como o monetário, o das estatais, o do sistema financeiro
habitacional, o da Previdência Social etc. -, cuja aprovação era decidida no nível do
Executivo, para ele transferindo a responsabilidade pela gestão de expressiva parcela dos
recursos públicos, com o que o princípio da unicidade e da transparência orçamentárias
viram-se eclipsados.

Na parafernália orçamentária que se estruturou, o Executivo ainda se viu de mãos


livres para decidir, à sombra do orçamento por ele próprio elaborado, sobre a distribuição
de benesses para setores conjunturalmente em dificuldades que lhe davam apoio político
ou para a realização de obras que lhe rendessem dividendos, à medida que detinha pleno
controle da administração da dívida pública, outorgada pela Lei Complementar no. 12, de
1971, com a qual cobria suas necessidades adicionais de recursos sem ter de prestar conta
ao Congresso - e à sociedade - de seus atos. O resultado destes vinte anos de arbítrio foi,
como mostra a história brasileira recente, um Estado falido, desestruturado institucional e
financeiramente, mergulhado em déficits colossais e incapaz de cumprir, minimamente,
suas tarefas sociais.

Nessas condições, o orçamento não cumpria nenhum dos papéis anteriormente


discutidos: absorvendo apenas 20% dos recursos mobilizados pelo setor público, não era
capaz de refletir a verdadeira situação das contas públicas, com o Orçamento Geral da
União (OGU), apresentando-se praticamente superavitário em todos os anos, quando, na
realidade, o governo já se encontrava mergulhado numa profunda crise financeira e fiscal,
traduzida na geração de elevados déficits, que eram mascarados pelo arranjo institucional e
orçamentário adotado; dispondo na principal peça orçamentária de uma parcela reduzida
dos recursos públicos, inviabilizava-se sua utilização como instrumento efetivo de
planejamento, contra o que também jogava o quadro macroeconômico de elevada inflação
e acentuada instabilidade que marcou este período, acompanhada de permanentes tensões
políticas; espelho das vontades do Executivo, não desempenhava o papel de arena de
negociação sobre a origem das receitas cobradas na forma de tributos e sobre a definição
das prioridades públicas.

Com o fim do regime militar em meados da década de 1980, seguiu-se a


convocação de um Congresso Constituinte para elaborar uma nova Carta Constitucional
para o País, onde se desmontou a armadilha orçamentária que havia sido erigida pelo
Estado autoritário em seu benefício. Em sua nova arquitetura, foram reatribuídos poderes
ao Legislativo para modificar, observadas certas condições, a proposta orçamentária,
transformando-o em um orçamento do tipo misto; ampliou-se o Orçamento Geral da União
(OGU), resgatando-se, formalmente, os princípios da unidade-universalidade,
incorporando-se, a ele, outras peças orçamentárias antes sob a iniciativa exclusiva do
Executivo; e criaram-se condições e mecanismos, também formais, para o exercício do
controle do déficit público, para sua utilização como instrumento do planejamento e para o
acompanhamento e fiscalização da execução orçamentária por parte do Congresso. Vale a
pena, assim, conhecer mais detalhadamente, as principais peças do novo sistema que
surgiu e a dinâmica do processo orçamentário que potencialmente se descortinou.
67

Quadro 2.1
Tipos de orçamento praticados no Brasil

Período Tipo
1831-1891 Misto
1891-1934 Legislativo
1934-1937 Misto
1937-1945 Executivo
1946-1964 Misto
1964-1988 Executivo
1988-(...) Misto

3.2.2. A moldura orçamentária na Constituição de 1988: recuperando o orçamento


como instrumento da democracia, de controle do Estado e de planejamento

São três as peças que passaram a integrar o sistema e o novo processo


orçamentário: o Plano Plurianual de Aplicações (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) e os Orçamentos Anuais (Lei Orçamentária). Entre elas estabeleceu-se uma forte
interação, à medida que se determinou que as mesmas fossem compatibilizadas entre si,
tendo como referência as prioridades definidas no PPA.

O Plano Plurianual de Aplicações (PPA), que deve ter a duração correspondente ao


período de um mandato de governo, e ser encaminhado ao Congresso Nacional até quatro
meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro presidencial, vigorando,
portanto, até o final do primeiro ano da administração subseqüente, deve fixar, de forma
regionalizada, as diretrizes, os objetivos e as metas da administração pública federal para
as despesas de capital, bem como para as despesas de custeio delas decorrentes e ainda
para as relativas aos programas de duração continuada (art. 165, I, 1º).

Com o PPA, procurou-se, assim, sanar um dos problemas limitadores do


orçamento como um instrumento do planejamento, presente na versão anterior do
Orçamento Plurianual dos Investimentos (OPI), que consistia no estabelecimento de meras
dotações financeiras, excluindo a definição de metas físicas, o que se revelou inviável em
ambientes inflacionários. Além de contornar estes problemas, e permitir sua retificação por
lei durante sua vigência, flexibilizando, portanto, a possibilidade de revisão de seus
objetivos e metas, o PPA cumpre o papel de balizar a elaboração das outras peças do
sistema - a LDO e a Lei Orçamentária Anual - que, com ele, devem ser compatibilizados.

Com isso, além de espelhar, efetivamente, o conteúdo de um programa de governo,


ele representa, nessa perspectiva, um importante instrumento para a ação do planejamento
e, ao condicionar a elaboração da LDO e da Lei Orçamentária, ele se transforma, também,
em um instrumento de controle dos objetivos do gasto governamental. Foi com essa
preocupação que o texto constitucional estabeleceu que os planos e programas nacionais,
regionais e setoriais nele previstos deveriam ser elaborados em consonância com o Plano
Plurianual e serem apreciados pelo Congresso Nacional.
68

À Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que representou, por sua vez, uma
novidade no processo orçamentário, são atribuídas as seguintes funções: a) definir as metas
e prioridades da administração pública federal - ou seja, do Plano Plurianual -, incluindo as
despesas de capital para o período subseqüente; b) orientar a elaboração da lei
orçamentária anual; c) dispor sobre alterações na legislação tributária; d) estabelecer a
política de aplicação de recursos das agências financeiras de fomento (BNDES e Caixa
Econômica Federal, por exemplo); e e) autorizar a criação de cargos e carreiras, concessão
de vantagens ao funcionalismo e contratação de pessoal.

Devendo ser encaminhada pelo Executivo para a apreciação do Legislativo até o


dia 15 de abril de cada ano, que disporá de dois meses e meio para votá-lo e devolvê-lo à
Presidência para sanção - até 30 de junho, portanto -, a LDO representa, na prática, a arena
de negociação do orçamento, podendo, por essa razão, ser apontada como a fase mais
importante de todo o processo. É aí que devem ser negociadas as alterações na legislação
tributária, decididos quais os setores que deverão ser contemplados com financiamentos
governamentais, negociada a concessão de vantagens e o aumento do quadro do
funcionalismo etc. Como ao Congresso passou a ser permitida a apresentação de emendas
modificadoras do orçamento - desde que compatíveis com o PPA e acompanhadas da
indicação dos recursos necessários -, tornando-se co-responsável de todo o processo,
ampliaram-se as possibilidades de que os projetos aprovados e as mudanças requeridas
para viabilizá-los estejam em consonância com as prioridades estabelecidas pelos
participantes do jogo orçamentário, na perspectiva da public choice, ou como resultado
dos embates travados entre as classes e as frações de classes, de acordo com visão
marxista.

A Lei Orçamentária Anual compreende, por sua vez, três segmentos: o Orçamento
Fiscal, o Orçamento de Investimento das Empresas Estatais e o Orçamento da Seguridade
Social. Deve ser encaminhada pelo Executivo para o Congresso até o dia 31 de agosto de
cada ano, votado e devolvido ao Presidente da República até o dia 15 de dezembro, o qual,
por sua vez, tem a responsabilidade de sancioná-lo com ou sem vetos.

A Lei Orçamentária deveria representar, na verdade, o orçamento que foi


negociado na fase da LDO. A abrangência com que foi contemplada na Constituição de
1988 indica a preocupação dos constituintes em resgatar os princípios da unidade-
universalidade orçamentários e criar condições, com isso, para seu manejo como
instrumento de planejamento e de controle do Executivo e de seus gastos. Condições
reforçadas com a exigência de que o Orçamento Fiscal seja acompanhado de
demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e as despesas, das isenções,
anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.

Ademais, a proibição da realização de operações de crédito acima das despesas de


capital e do uso da dívida publica para o pagamento de pessoal, bem como a limitação dos
gastos com folha de salário do funcionalismo - para as três esferas da federação - revelam
uma preocupação com um maior controle das contas públicas e, portanto, com o princípio
do equilíbrio. Assim, como a proibição de vinculação entre receitas e despesas reforça o
princípio da não-afetação das receitas, prisioneiras, em períodos anteriores, de interesses
cartoriais e fisiológicos no espaço orçamentário.

Fechando o processo, a fiscalização interna da execução do orçamento aprovado é


atribuída, por sua vez, a uma Comissão Mista Permanente, formada por senadores e
69

deputados do Congresso, a quem cabe, também, examinar e emitir parecer sobre o Plano
Plurianual, a LDO, o Orçamento Anual e os créditos adicionais solicitados e também sobre
os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição. Para o
desempenho da tarefa de fiscalização por essa Comissão, determina a Constituição que o
Executivo deve publicar, até 30 dias após o encerramento de cada bimestre, relatório
resumido da execução orçamentária, constituindo este, portanto, o instrumento utilizado
para avaliar a compatibilização entre as contas do governo e as diretrizes estabelecidas. O
controle externo, por sua vez, é também de responsabilidade do Congresso Nacional, que
conta, para o desempenho desse papel, com a participação dos Tribunais de Contas, a
quem cabe, entre outras funções, apreciar e julgar as contas prestadas anualmente pelo
Executivo, na figura do presidente da República.

As etapas do processo orçamentário anual no Brasil definidas na nova moldura que


brotou da Constituição de 1988 e de seus desdobramentos, neste incluídas as inovações
contempladas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que é abordada em seguida, se
encontram retratadas no quadro 2.2. Como se percebe, prevê-se uma interação entre o
Executivo e o Legislativo desde o início do processo com a LDO até a sua conclusão, com
o primeiro apresentando a prestação final da execução e de suas contas ao segundo, que
tem a responsabilidade de avaliá-las e aprová-las.

A nova moldura orçamentária legada pela Constituição de 1988 representou, de


fato, uma grande contribuição para a construção de um Estado democrático. Recuperou
formalmente as condições para o processo de planejamento, fortaleceu o poder do
Legislativo na sua definição, integrou os níveis nacional, regional e setorial, preocupou-se
com a questão relativa às desigualdades regionais de renda e transformou-se num
instrumento potencial de controle da sociedade sobre o Estado.

Apesar de todos esses avanços, na prática quase nada funcionou e o orçamento,


longe de se transformar em um eficiente instrumento de administração e planejamento das
contas públicas funcionou, na realidade, como um esquema de corrupção e malversação de
recursos públicos. Situação que, ao lado dos sistemáticos atrasos que passaram a ocorrer na
sua aprovação pelo Congresso Nacional, terminou desaguando na formação de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 1993, para investigar a raiz de seus
problemas e desvios, depois que veio à tona o seu manejo por alguns parlamentares
integrantes da Comissão Mista de Orçamento, responsável pela avaliação e aprovação da
proposta do Executivo (que ficaram conhecidos como “anões do orçamento”) para aprovar
projetos de seus interesses e de seus pares. Com a crise do orçamento dos primeiros anos
da década de 1990 abriu-se uma nova oportunidade, com as mudanças que aí se iniciam,
para mais uma vez se avançar no aprimoramento de sua gestão.
70

Quadro 2.2.
ETAPAS E FASES DO PROCESO ORÇAMENTÁRIO

ETAPA 1: ELABORAÇÃO E DEFINIÇÃO DO ORÇAMENTO

• Elaboração, discussão e aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), à luz do PPA


Período: 15 de abril a 30 de junho

• Elaboração, pelo Executivo, à luz da LDO, do Projeto de Lei Orçamentária (PL), a ser
encaminhado para apreciação do Congresso Nacional
Período: 01 de julho a 31 de agosto

• Avaliação pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO) da proposta do Executivo,


a quem cabe elaborar um relatório substitutivo para votação no plenário do Congresso para ser
transformado em lei.
Período: 01 de setembro a 15 de dezembro, prazo final para ser devolvido ao Executivo
para sua sanção pelo presidente da República.

• Avaliação pelo Executivo da consistência das re-estimativas de receitas e gastos realizadas pelo
Legislativo, à luz do cenário macroeconômico da época e das metas fiscais estabelecidas, e
correção de eventuais desequilíbrios que forem identificados, através do processo de
contingenciamento dos gastos.
Período: até 30 dias após a sanção da Lei Orçamentária Anual pelo presidente da
República

ETAPA 2: EXECUÇÃO E FISCALIZAÇÃO

• Execução, ao longo de doze meses, do orçamento autorizado. Devido às flutuações da


conjuntura, o orçamento, nessa fase, pode sofrer ajustes, através da abertura de créditos
adicionais – suplementares, especiais, e extraordinários -, a maioria sujeita a negociações entre
o Executivo e o Legislativo.

• Acompanhamento e Fiscalização, pelo Legislativo, da execução do orçamento, ao longo do


exercício fiscal, através do exame de relatórios periodicamente produzidos pelo Executivo para
essa finalidade, como os de execução orçamentária simplificada, de gestão fiscal e de prestação
de contas.

ETAPA 3: PRESTAÇÃO DE CONTAS

• Encaminhamento pelo Executivo, encerradas e fechadas as contas do exercício fiscal, da


prestação de contas do orçamento executado do ano anterior, que será apreciado pelo Tribunal
de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do Legislativo, que pode sugerir sua aprovação ou
rejeição.
71

3.2.3. Crise e reformas no campo orçamentário na década de 1990

Guardia (1997), que avaliou em sua dissertação de mestrado os primeiros anos de


implementação do novo processo orçamentário contemplado na Constituição Federal de
1988, identificou três aspectos que continuavam bloqueando o seu papel como instrumento
de planejamento e de controle da sociedade sobre os gastos do Executivo. Segundo seu
estudo, eram eles:

1. a continuidade da prática de subestimação das receitas, através de projeções


irreais para as taxas inflacionárias, o que terminava se traduzindo em aumentos
nominais da arrecadação ao longo do exercício fiscal e exigindo a aprovação de
“leis de excesso” para sua alocação. Numa situação de despesas desindexadas,
ou de indexações diferenciadas, e diante das barganhas que se realizam entre o
Executivo e o Legislativo para a aprovação de créditos adicionais, dificilmente
a redistribuição desses recursos seria feita de forma a garantir as dotações
originais previstas para determinadas despesas, alterando sua composição e,
portanto, os objetivos de gasto previamente acertados e estabelecidos;

2. a precariedade da sistemática de elaboração da proposta orçamentária do poder


público, que continuava não contando com critérios para a definição de
prioridades e de diretrizes dos gastos; de procedimentos para a avaliação das
despesas, em termos da eficiência e eficácia dos gastos; e da ausência de bases
para a estruturação do orçamento – e do planejamento -, já que o instrumento
voltado para este objetivo – a classificação funcional-programática –
continuava relegada a um plano secundário;

3. o desinteresse do próprio legislativo em cumprir e aprimorar as novas regras


estabelecidas, porque contrárias aos interesses particulares de seus membros,
quer no que se refere à previsibilidade mais realista das receitas, à apresentação
de emendas mais consentâneas ao bem público (menos clientelistas) ou à
observância dos prazos estipulados para a aprovação do orçamento. Com isso,
tanto superestimativas irreais de receitas terminavam sendo realizadas pelo
Congresso para abrigar maior quantidade de emendas – essas, uma vez
aprovadas, cristalizam interesses difíceis de serem contrariados, mesmo na
ausência de recursos – como os recursos sofriam um processo de pulverização
para atender a essas demandas, comprometendo o processo de planejamento e
modificando as tomadas de decisões anteriores sobre a alocação dos recursos
públicos.

Deve-se também ressaltar, como apontado anteriormente, a responsabilidade do


Executivo com a manutenção e continuidade dessa situação, omitindo-se no
encaminhamento e negociação de propostas para materializar os objetivos, neste campo,
perseguidos com a Constituição de 1988. Dispondo de instrumento legais da execução
orçamentária e, sendo o orçamento de caráter apenas autorizativo, era – e continua sendo –
grande a sua margem de manobra e de poder para continuar garantindo a aprovação de
seus projetos no Congresso, por meio de negociações na liberação de recursos de emendas
parlamentares. Além disso, com o manejo desses instrumentos (contingenciamentos,
abertura de créditos especiais, empenho etc.) torna-se sempre possível ajustar o orçamento
aos seus objetivos. Uma situação, portanto, que, se desfavorável para a sociedade, não
72

constituía motivo de preocupação também para o Executivo, já que continuava funcional,


assim como para o Legislativo, para seus propósitos.

Este era, no entanto, apenas um lado da moeda, explicado por interesses


particulares dos parlamentares e mesmo despreparo do Congresso para exercer as novas
prerrogativas que lhe foram reservadas no capítulo orçamentário, contando com a omissão
do Executivo nessa questão, o que era obscurecido por um ambiente inflacionário em que
se tornam irreais as projeções orçamentárias. Do outro lado, subsistiam, do período
anterior, normas e regras do processo decisório orçamentário, que mantiveram abertas
brechas para a ação ilícita e deletéria destes grupos na gestão dos recursos públicos,
ajudados também por um quadro macroeconômico marcado por alta inflação e acentuada
instabilidade monetária que mascarava os números do orçamento continuamente revistos e
reajustados com a aprovação de créditos adicionais para as diversas rubricas. A profunda
crise fiscal em que se encontrava mergulhado o setor público desde a década de 1980
aparecia como um complicador adicional a dificultar a utilização do orçamento como
instrumento eficiente para o atingimento dos objetivos de governo.

Mudanças no campo da gestão e do controle orçamentários oriundas da CPI do


Orçamento e no campo institucional motivadas pela exigência de um ajuste fiscal confiável
para o programa de estabilização, o Plano Real, lançado em 1994, bem como os próprios
benefícios com este gerados para a realização de projeções mais realistas de receitas e
gastos, com o fim da inflação, se somaram, a partir de meados da década de 1990, para que
o orçamento pudesse ser retirado do mundo da ficção.

As novidades introduzidas no processo orçamentário após a conclusão dos


trabalhos da CPI, em abril de 1994, não foram pequenas, como apontam Rezende e Cunha
(2004, Cap. 3). Com a Resolução no. 2, do Congresso Nacional, aprovada em 1995, a
autonomia do relator-geral foi bastante reduzida. Como coordenador da equipe responsável
pela avaliação da proposta do Executivo e a apresentação de um projeto substitutivo do
orçamento para votação no plenário do Congresso, o relator-geral passou a compartilhar
essa tarefa com sete relatores adjuntos, também responsáveis pelos trabalhos das
subcomissões, vedando-se a designação de mais de dois parlamentares pertencentes ao
mesmo partido ou bloco parlamentar.

Caso algum partido político não contasse com a indicação de algum de seus
parlamentares para as relatorias, passou a lhe ser permitido indicar observadores para o
acompanhamento destes trabalhos, reforçando sua fiscalização. Em 2001, os relatores
adjuntos foram extintos, mas foi mantido o caráter colegiado das relatorias, que passaram a
se distribuir em dez áreas temáticas (Poderes do Estado e Representação; Justiça e Defesa;
Agricultura e Desenvolvimento Agrário; Infra-estrutura; Educação, Cultura, Ciência e
Tecnologia, Esporte e Turismo; Saúde; Assistência e Previdência Social; Integração
Nacional e Meio Ambiente; Planejamento e Desenvolvimento urbano). Nessa mudança, a
idéia de que entre olhares vigilantes que se cruzam e se fiscalizam, se nem todos estiverem
maculados, há sempre uma chance para a ética.

A mudança de composição da Comissão, com a qual se procurou reforçar os


mecanismos de controle e fiscalização, veio acompanhada da exigência de registro,
definição de critérios, de parâmetros e de regras para a apresentação e acolhimento das
emendas de parlamentares – individuais e coletivas – no Parecer Preliminar por ela
emitido sobre a proposta orçamentária apresentada pelo Executivo, devendo ser aqueles
73

rigorosamente observados. Já no Parecer Preliminar, documento que marca o início


formal da apreciação da Proposta de Lei Orçamentária (PL), devem ser, assim,
estabelecidos, além dos critérios para a apresentação de emendas pelos deputados, os
recursos com que contarão os relatores setoriais para atendê-las e os tetos previstos para
remanejamentos que poderão ser feitos no interior das dotações globais de cada função.

A definição de valores uniformes para cada parlamentar, que podem ser


distribuídos em até 20 emendas, visou retirar deste instrumento o poder que antes dispunha
o relator-geral para cooptar, favorecer ou mesmo atrair parlamentares para apoiar seus
interesses. Já para as emendas coletivas, que podem ser apresentadas pelas comissões do
Senado e da Câmara e pelas bancadas estaduais e regionais, buscou-se incentivá-las, pelo
que representam em termos de melhor otimização dos recursos públicos, ao não terem
definidos os limites de seus valores, embora devam observar, em conjunto, os tetos globais
destinados pelo relator-geral para essa finalidade. A partir de 2000, passou-se a reservar
para o acolhimento das emendas parlamentares, diante da escassez de recursos previstos
para essa finalidade, parcela das dotações à conta da reserva de contingência no orçamento,
abrindo, com isso, uma frente de conflito com o Executivo para o seu uso.9

Limitado o poder do relator-geral, definidas regras claras para a apresentação de


emendas parlamentares, inclusive com o estabelecimento de limites para os seus valores,
garantida a transparência das decisões com sua divulgação no Parecer Preliminar, com as
mudanças no campo orçamentário adotadas após a conclusão dos trabalhos da CPI, o
Congresso se colocou, aparentemente, em melhores condições, apesar dos limites
existentes à sua atuação, de participar da elaboração do orçamento e torná-lo mais
confiável. Nessa mesma direção, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000,
também contribuiria para o fortalecimento da instituição orçamentária no Brasil, ao exigir
maior realismo na sua elaboração e compromissos dos governantes com uma gestão fiscal
responsável.

Embora não tenha sido criada especificamente para essa finalidade, a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) aprovada pelo Congresso Nacional, no mês de maio do ano
2000, foi mais um instrumento que surgiu, neste período, para fortalecer o orçamento para
os objetivos do planejamento governamental e para o controle das finanças do Estado.
Criada para ser um instrumento de controle e de equilíbrio fiscal, a LRF, ao exigir das
administrações públicas responsabilidade na gestão de suas finanças, sob pena de severas
punições, forneceu as condições legais e formais necessárias para o planejamento, o
controle e a transparência das contas públicas. Isso, por algumas razões.

Em primeiro lugar, porque o seu cumprimento pressupõe a elaboração de um


orçamento realista, a existência de mecanismos de redução das despesas no caso de
frustração das receitas projetadas e de medidas que disciplinam os acréscimos de gastos de
natureza continuada no tocante à clara identificação dos recursos necessários para o
financiamento de suas atividades de custeio. Além disso, a LRF estabelece limites para os
gastos com pessoal e para o endividamento das três esferas de governo, controlando canais
importantes que garantiam a multiplicação dos gastos públicos. Respeitadas essas
condições, o orçamento poderia deixar de ser uma peça de ficção e transformar-se em um
instrumento efetivo para a atividade de planejamento.

9
Para os pontos acima, consultar o trabalho coordenado por Rezende & Cunha (2004).
74

Em segundo porque, para assegurar o controle e a transparência dos atos públicos,


a LRF estabeleceu que os Planos Plurianuais (PPAs), as Leis de Diretrizes Orçamentárias
(LDOs) e as Leis Orçamentárias Anuais (LOAs), assim como pareceres prévios,
prestações de contas e relatórios definidos em lei, devem ser amplamente divulgados pelas
administrações públicas, inclusive por meio eletrônico. Ao dar ênfase à publicidade para a
transparência e controle das contas públicas, a LRF reforçou a importância desse princípio
do orçamento, crucial para a sociedade acompanhar e fiscalizar os atos dessas
administrações. A exigência de elaboração periódica de suas contas, prevista em seus
artigos, por meio do Relatório Resumido de Execução Orçamentária (bimestral) e do
Relatório de Gestão Fiscal (quadrimestral), bem como sua divulgação obrigatória, abriu as
portas para a sociedade ter acesso a informações, até então praticamente fechadas a sete
chaves, e se inteirar tanto dos atos como da situação financeira dos entes governamentais,
capacitando-se a melhor julgar os governantes e cobrar os resultados de sua administração.

Em terceiro, porque a LRF contempla, também, a participação popular no processo


de elaboração e discussão dos PPAs, LDOs e LOAS, através da realização de audiências
públicas, criando canais para a sociedade influenciar diretamente nas decisões de gastos
dos governos, tornando mais democrático esse processo.

Embora tenha surgido num contexto de demandas e exigências da ideologia


neoliberal, preocupada com a criação de instrumentos e instituições voltadas para garantir
uma gestão fiscal responsável e, com isso, assegurar condições de sustentabilidade da
dívida pública, como se analisa no capítulo VI, o importante a destacar, para o que nos
interessa aqui, é que a LRF abriu boas perspectivas para se contar com maior realismo do
orçamento. Com ela volta-se a consagrar o princípio do equilíbrio do orçamento – herança
clássica e neoclássica -, prevendo-se, inclusive, punições – prisionais, administrativas e
pecuniárias – em caso de seu descumprimento.

Se cumpridas e materializadas, as mudanças nela contempladas poderiam retirar o


orçamento e as suas peças – PPAs, LDOs e LOAs - do mundo da ficção e transformá-los
em instrumentos efetivos de planejamento, de controle da sociedade sobre o Estado e em
canais diretos de participação da sociedade nas decisões tomadas sobre os objetivos de
gastos dos governos em geral.

As melhorias introduzidas pelo Congresso no processo orçamentário, como


resultado dos trabalhos da “CPI do Orçamento”10, somadas à aprovação da LRF, que
representou um importante avanço institucional para tornar o orçamento mais realista e
mais eficiente o controle dos gastos governamentais, juntamente com a estabilidade
10
O escândalo da chamada “máfia das ambulâncias”, desvelado em meados de 2006, que levou à
instalação da “CPI dos Sanguessugas” para investigar dezenas de parlamentares envolvidos no esquema,
revelou que essas foram insuficientes para barrar/dificultar a prática de pilhagem do Estado, dentro do
Legislativo, com as reformas e mudanças introduzidas no controle e fiscalização do processo
orçamentário após os resultados apresentados pela “CPI do Orçamento”, em 1994. O esquema armado
pelos parlamentares que dele participavam consistia em aprovar no orçamento e conseguir a liberação de
recursos para a compra de ambulâncias para prefeituras do país (uma demanda de forte apelo social), com
preços superfaturados, em troca do recebimento de polpudas comissões (propinas) das empresas
beneficiadas com suas vendas. Como ocorreu à época do escândalo dos “anões do orçamento”, tornou-se
ainda mais claro a necessidade de se ir mais longe no aprimoramento dos instrumentos de controle e de
fiscalização de poderes que, como representantes da sociedade, deveriam proteger/defender seus
interesses, e não promover e participar do assalto ao dinheiro público, desvirtuando os papéis do
orçamento.
75

monetária alcançada com o Plano Real, a partir de 1994, dando mais consistência às
previsões de gastos e receitas dos governos em geral, aparecem como mudanças que
indicavam para uma melhor organização orçamentária e para o resgate deste instrumento
enquanto mecanismo de controle, planejamento etc. O que se assistiu, contudo, a partir da
segunda metade dos anos de 1990, foi à reprise de um período de grandes incertezas e de
acentuada desorganização orçamentária, situação que se mantém até os dias atuais.

3.2.4. As limitações atuais: o orçamento como instrumento do ajuste fiscal

Apesar das melhorias e inovações introduzidas no processo orçamentário brasileiro, o fato


é que este instrumento no Brasil do Plano Real, não tem conseguido desempenhar pelo
menos dois importantes papéis que lhe são reservados: o de instrumento de planejamento e
o de campo de escolhas orçamentárias e de definição/reorientação das prioridades públicas.

Tal situação se explica, por um lado, pelo forte e crescente engessamento


(enrijecimento) que tem marcado o orçamento público federal, com o avanço de despesas
obrigatórias em sua estrutura, a partir da Constituição Federal de 1988, e, de outro, pelo
compromisso assumido pelo país, a partir de 1999, de destinar parcela considerável de sua
receita para o pagamento dos juros da dívida pública, tornando-o um compromisso
sagrado, inescapável, por adquirir, nessa situação, o status de uma despesa obrigatória.

Para esse enrijecimento concorrem tanto as receitas que são vinculadas ao


financiamento de uma área específica como as despesas que decorrem de direitos
legalmente constituídos. A título de exemplo, o quadro 2.3 mostra, no primeiro caso, as
principais vinculações de impostos e contribuições contempladas no orçamento federal de
2002, onde se destacam como áreas beneficiadas, a educação e a seguridade social (saúde,
assistência e previdência social). Já entre as despesas obrigatórias, incluem-se, entre as
mais importantes, as do custeio dos benefícios da Previdência Social e do pagamento dos
servidores ativos e inativos da União, além das transferências constitucionais que são
previstas para estados e municípios. O avanço dessas vinculações combinado com o
aumento das despesas obrigatórias no orçamento, entre as quais se incluem o pagamento
de parcela dos juros da dívida propiciado pela geração do superávit primário, têm sido
responsáveis por limitar as políticas do governo em prol do desenvolvimento, por ser
pequeno o percentual de recursos que sobra para ser usado para essa finalidade.

Nessa situação, nem o orçamento se apresenta como um campo onde são decididos
os objetivos de gastos do governo, já que parcela expressiva destes se encontra pré-
definida, nem como instrumento confiável de planejamento, à medida que os reduzidos
gastos de natureza discricionária, ou seja, aqueles que podem sofrer cortes (entre os quais
se incluem os investimentos) podem continuamente ser ajustados para garantir o
pagamento dos juros, tornando-se, portanto, incertos.
76

Quadro 2.3
Vinculações das Principais Receitas de Impostos e de Contribuições Sociais no Orçamento de 2002
(em %)

Receitas Vinculações
Impostos
Importação 18% para a educação após dedução de 20% para a DRU
Exportação 18% para a educação após dedução de 20% para a DRU
ITR 50% para os Municípios Educação: 18% após transferências constitucionais e
DRU
IR FPE: 21,5% FPM:22,5% Fundos Educação: 18%, após transferências
Regionais: constitucionais e dedução para a DRU
3%
IPI FPE: 21,5% FPM:22,5% Fundos Fundo Educação: 18%,
Regionais: Compensação às após Transf.
3% Exportações: Const. e DRU
10%
IOF 18% para a educação após dedução de 20% para a DRU
IOF-ouro Estados: 30% Municípios: 50% Educação: 18% após transferências Constitucionais e
DRU
Contribuições Sociais
Cofins Seguridade/Previdência: 80%
Pis/Pasep FAT: 60% BNDES: 40%
Salário-Educação FNDE: 1/3 Secretarias Estaduais de Educação: 2/3
CPMF Saúde: 42,1% Previdência: 21% Fundo de Pobreza: 21,1%
Cont. Prev. – RGPS Custeio dos Benefícios Previdenciários: 100%
Cont. Prev. – Serv. Aposentadoria do Setor Público: 100%
CSSL Seguridade Social: 80%
Fonte: Cunha, Armando & Rezende, Fernando (2003)

Quadro 2.4
Conceitos de Despesas
Despesas Obrigatórias: são despesas protegidas por alguma norma constitucional ou legal, cuja cobertura
conta com fontes específicas de receitas vinculadas (educação, saúde, por exemplo) ou que decorrem de
direitos legalmente constituídos, como as que se referem, entre outras, ao custeio dos benefícios da
Previdência Social, o pagamento dos servidores públicos ativos e inativos e as transferências constitucionais
e legais intergovernamentais. A partir de 1999, o superávit primário, ao ser incluído no orçamento federal
como meta prioritária a ser atingida, adquiriu também o status de despesa obrigatória.
Despesa Contingenciável ou Discricionária: Despesas que não são de caráter obrigatório, sendo
passíveis, portanto, de remanejamento, contingenciamento e de cortes no orçamento, como as que dizem
respeito a investimentos, ao custeio da máquina pública e às políticas sociais não protegidas por algum
dispositivo constitucional/legal.

como as que dizem respeito a investimentos, ao custeio da máquina pública e às políticas


sociais não protegidas por algum dispositivo constitucional/legal.

A tabela 2.1 fornece uma boa visão dessa situação. Em 2004, o peso das chamadas
despesas discricionárias se encontrava reduzido a 8,5% do bolo orçamentário, contra cerca
de 80% das obrigatórias e quase 12% referentes ao pagamento dos juros, uma tendência
que tem se acentuado no tempo, como se pode confirmar pelo exame dos números ali
apresentados. Como as despesas discricionárias incluem, também, os gastos com o custeio
da máquina pública, isso significa que o grau de liberdade que se dispõe no orçamento para
a realização de “escolhas orçamentárias” é ainda menor que os 8,5% mencionados,
77

recaindo predominantemente os ajustes, quando estes se tornam necessários para garantir o


atingimento das metas fiscais, sobre os investimentos e sobre as políticas sociais que não
contam com proteção legal que lhes garanta recursos no orçamento, diferentemente do que
ocorre, por exemplo, com a saúde e educação.11 Nessa situação, qualquer atividade de
planejamento também se torna comprometida, inviabilizando as metas a serem atingidas,
pelo governo, nos campos econômico e social, que dependem da realização e
materialização destes investimentos.

Tabela 2.1
EVOLUÇÃO DAS DESPESAS DO GOVERNO FEDERAL: 1998-2004
Participação (%) no Total
ANO Evolução das Despesas
Obrigatórias Discricionárias Juros Pagos Total
1998 84,9 12,1 3,0 100,0
1999 79,2 9,9 10,9 100,0
2000 81,0 10,5 8,5 100,0
2001 80,1 12,0 7,9 100,0
2002 80,2 10,2 9,6 100,0
2003 81,7 7,6 10,6 100,0
2004 79,9 8,5 11,7 100,0
Fonte: CMO/Congresso Nacional. Elaboração do autor

Os dados contidos na tabela 2.2 não deixam dúvidas sobre essa questão. Como nela
se observa, os investimentos do governo têm sido crescentemente sacrificados em relação
às dotações autorizadas pelo Congresso, especialmente depois de 1999, para garantir o
cumprimento de metas fiscais estabelecidas para o pagamento dos juros da dívida, visando
sustentar o padrão de ajuste fiscal adotado, inviabilizando, com isso, qualquer tentativa ou
proposta de planejamento de longo prazo. Apenas em 2004 constata-se uma ligeira
reversão desta tendência, mas seguida de um rápido retorno à situação anterior pelo menos
em relação ao montante dos investimentos do exercício efetivamente pagos, apesar de
todo o discurso do governo sobre as prioridades do crescimento econômico.

Como os números de sua execução demonstram, isso significa que, por opção da
política econômica e das forças políticas que apóiam o governo, os interesses beneficiados
com os pagamentos dos juros – o capital financeiro nacional e internacional –
conseguiram incrustar-se no orçamento e passaram a comandar as decisões de gastos em
seu benefício, com prejuízo para o desenvolvimento e para a oferta de políticas públicas à
sociedade pelo Estado. Um tema que será retomado mais detidamente nos próximos
capítulos.

11
Nas estatísticas do orçamento, as despesas obrigatórias aparecem sempre subestimadas porque os
agentes responsáveis pela sua feitura – o Ministério do Planejamento e também o Congresso Nacional –
continuam, ainda na atualidade, classificando como discricionárias despesas que são, na realidade,
obrigatórias, como por exemplo, as destinadas à saúde por determinação da Emenda Constitucional
29/2000.
78

Tabela 2.2.
Gastos orçamentários com investimentos do Orçamento Fiscal e da Seguridade
Social: 1999-2007
(em bilhões correntes)

Ano Autorizado Liquidado (B) Pago (C)


(A) Valor B/A (%) Valor C/A (%)
1999 9,08 6,97 76,8 3,77 41,5
2000 14,72 10,10 68,6 5,20 35,3
2001 19,49 14,58 74,8 5,82 29,8
2002 18,18 10,12 55,7 4,54 25,0
2003 13,94 6,45 46,3 2,29 16,5
2004 15,24 10,86 71,3 5,10 33,4
2005 23,37 17,32 74,1 5,88 25,2
2006 26,15 19,60 75,0 6,56 25,1
2007 42,06 34,02 80,1 8,62 20,5
Fonte: CMO. Senado Federal

Visto como normalmente é divulgado no Brasil, o orçamento apresenta-se como


um documento simples, podendo-se dizer até “inocente”, que apenas registra as receitas e
despesas do governo e os resultados financeiros alcançados pela administração pública.
Um retrato sintético deste documento é apresentado no quadro 2.5, onde seus componentes
de receitas e gastos são classificados por categorias e subcategorias econômicas, podendo-
se confirmar que pouco revelam para o leigo em finanças públicas extrair informações
sobre a natureza do Estado. Mesmo quando a classificação das despesas aparece divulgada
por funções (ou por áreas de atuação do Estado), isso pouco muda, porque muitas dessas
ações ficam escondidas em atividades do Estado não claramente nelas explicitadas. Por
trás desses números atuam, contudo, forças políticas e sociais que produzem esses
resultados – tanto das receitas como dos gastos – os quais, pela sua dimensão, afetam, de
forma importante, a situação econômica e social da população, pelos impactos que
exercem sobre a produção e a estrutura de distribuição de renda.

Por isso, considerando a necessidade de se ir além deste quadro e investigar os


objetivos de gastos do Estado – enfim, suas prioridades -, as fontes que os financiam e as
forças que influenciam e determinam quais as classes e frações de classes, bem como os
setores e regiões, que se beneficiam com suas despesas, e os que arcam com o seu ônus,
coloca-se a necessidade de se transpor essa cortina que estampa esses números e resultados
e adentrar a arena onde essas decisões foram e são tomadas. É o que se procura fazer, em
seguida, para a despesa e a receita públicas, desagregando-as em suas várias formas de
apresentação e procurando compreender seus principais determinantes.
79

Quadro 2.5
Orçamento Sintético da União
RECEITAS DESPESAS
Receitas Correntes Despesas Correntes
Tributária Custeio
Contribuições Transferências Correntes
Patrimonial
Despesas de Capital
Agropecuária, Industrial e Serviços Investimentos
Transferências Correntes Inversões Financeiras
Outras Receitas Correntes Transferências de Capital
Receitas de Capital
Operações de Crédito
Alienação de Bens
Amortização de Empréstimos
Transferências de Capital
Outras Receitas de Capital
Receita Orçamentária Total (ROT) Despesa Orçamentária Total (DOT)
Fonte: Lei 4.320/64
80

BIBLIOGRAFIA

1. Baleeiro, A. (1978). Uma Introdução à Ciência das Finanças. 12a. edição. Rio de
Janeiro, Forense;

2. Comparato, Fábio Konder (1999). A afirmação histórica dos direitos humanos. São
Paulo, Editora Saraiava;

3. Giacomoni, J. (1992). Orçamento Público. 4a. edição. São Paulo, Atlas;

4. Guardia, E. (1992). Orçamento Público e Política Fiscal: aspectos institucionais e a


experiência recente (1985-1991). Campinas, IE/UNICAMP, novembro (Dissertação
de Mestrado);

5. O’Connor, J. (1978). USA: A Crise do Estado Capitalista. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

6. Przeworski, A. (1995). Estado e Economia no Capitalismo. Rio de Janeiro, Relume-


Damará;

7. Rezende, F. & Cunha, A. (coordenadores), 2002. Contribuintes e cidadãos:


compreendendo o orçamento federal. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas;

8. Rezende F. & Cunha, A. (coordenadores), 2004. O orçamento público e a transição do


poder. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas;

9. _______________________________________, 2003. O orçamento público e a


transição de poder. Rio de janeiro, Fundação Getúlio Vargas;

10. Site: www.contasabertas.uol.com;

11. Silva, Lino Martins (2002). Contabilidade governamental: um enfoque administrativo.


5ª edição. São Paulo, Atlas.

12. Soboul, Albert (1981). 3ª edição. História da Revolução Francesa. Rio de Janeiro,
Zahar;
81

CAPÍTULO III

OS GASTOS PÚBLICOS:

CLASSIFICAÇÃO E DETERMINANTES*

Fabrício Augusto de Oliveira


82

1. INTRODUÇÃO

Durante um longo período na história do capitalismo os gastos realizados pelo governo,


embora considerados necessários para a reprodução da sociedade capitalista, eram vistos
como improdutivos, incapazes, por isso, de gerar efeitos multiplicadores para a economia.
Essa visão, que nasce com o pensamento liberal e segue dominante na teoria econômica
até as três primeiras décadas do século XX, é que dá suporte às posições que recomendam
que, sendo o Estado uma fonte de desperdício da riqueza produzida, e, portanto, de
redução do bem-estar social, devem ser reduzidas suas atribuições para evitar maiores
prejuízos para a economia e a sociedade.

Essa era uma visão ainda influenciada tanto pelo estilo de vida faustosa e
dispendiosa que levavam os monarcas e seus familiares nos primórdios do capitalismo
como pelo custo que representava o sustento da corte e dos parasitas que nela
gravitavam para a sociedade e a economia: considerados improdutivos, os recursos
retirados do setor privado para o financiamento do Estado, via tributação, reduziam a
capacidade de poupança e investimento da economia e, portanto, suas bases de
desenvolvimento, sem nenhuma compensação pelos gastos por ele efetuados.

Musgrave (1973:95/6) cita uma passagem da obra de Adam Smith, a Riqueza


das Nações, em que este parece condenar a cobrança de impostos sobre o capital porque
“(...) são todos eles impostos mais ou menos antieconômicos que provocam o
crescimento da receita do soberano, que raramente mantém senão trabalhadores
improdutivos às expensas do capital do povo, que mantém trabalhadores produtivos”
(Smith, apud Musgrave, 1973:95/6). Embora Musgrave afirme que Smith tenha sido
mal interpretado, chamando a atenção para o fato de “o termo improdutivo, da maneira
por ele empregada, não querer dizer inútil, mas apenas que não contribui para a
formação de capital”, era essa a visão predominante à época, entre vários autores, sobre
o desperdício que significavam as despesas públicas.

Ainda segundo Musgrave (1973:97) Ricardo, por sua vez, “(...) julgava as
despesas públicas tal desperdício que não sentiu necessidade de discuti-las em sua obra
‘Os Princípios da Economia Política e da Tributação’. Satisfez-se em endossar ‘(...) a
máxima dourada de M. Say, de que o melhor de todos os planos financeiros é o de
menor montante” (Musgrave, 1973:97). Por isso, Musgrave conclui não ser de admirar
que “(...) ao fim do século havia se tornado um hábito entre os autores de tratados das
finanças públicas, na Europa Continental, especialmente entre os franceses e alemães,
considerar Finanças Públicas como ciência da tributação e dar pouca atenção ao aspecto
de despesas do problema”.

Vozes isoladas que discordavam dessa posição, como a de Stuart Mill (1995: 95-6)
argumentavam, sem resultados práticos, que os gastos governamentais, dependendo de sua
destinação, poderiam gerar efeitos multiplicadores ainda maiores que os gastos privados.
Para ele

“se o governo – como provavelmente acontece – gastar livremente


tanto da importância recolhida quanto teriam gasto os pagadores de
impostos no emprego direto da mão-de-obra, como na contratação de
marinheiros, soldados e policiais, ou em liquidar dívidas – operação
esta que até aumenta o capital -, as classes trabalhadoras não somente
não perdem o emprego com o imposto, senão que possivelmente podem
83

até ganhar algum outro, e a totalidade do imposto, nesse caso, recai


exclusivamente sobre quem recai.”

Foi, assim, somente com as formulações keynesianas sobre os efeitos gerados


pelo gasto público sobre o nível de renda e do emprego da economia que a tese existente
sobre sua improdutividade seria desmistificada. Como visto, a preocupação central da
obra de Keynes foi a de buscar respostas para a grave crise em que mergulhou o sistema
capitalista na década de 1930, ignorando solenemente os argumentos teóricos do
pensamento ortodoxo de que mecanismos automáticos estabilizadores do sistema, uma
vez acionados, seriam capazes de resolvê-la. Ao introduzir, em seu trabalho, a
investigação dos determinantes dos níveis de renda e emprego nas economias
industriais, bem como as causas das flutuações econômicas, Keynes chegou a resultados
muito distintos dos considerados pela teoria dominante e demonstrado tanto a
irrealidade de seus principais pressupostos – a Lei dos Mercados de Say, que negava a
possibilidade de crises de superprodução; a lei walrasiana do mercado de trabalho, que
descartava a existência de desemprego de caráter voluntário -, como a de que, se
aplicados ao organismo econômico os remédios por ela prescritos, a situação tenderia a
se agravar ainda mais.

Na análise de Keynes, o mundo econômico se defrontava, naquele período com


um problema de insuficiência de demanda agregada – fenômeno não previsto no corpo
teórico neoclássico -, causando desemprego, redução do nível de investimentos e
aumento progressivo da crise. Neste caso, os remédios convencionais, como o de
redução dos salários para reduzir o desemprego, mesmo se possível diante do maior
poder e resistência adquiridos pelos sindicatos para impedi-lo, só tenderia a agravar a
situação, pois deprimiria ainda mais a demanda, reduzindo a renda agregada, e,
consequentemente, os investimentos, que teriam nesta seu principal determinante (e não
na taxa de juros, como considerava a teoria convencional). Ora, se a despesa privada de
consumo mais a de investimento eram insuficientes para retirar a economia da crise e
assegurar uma renda de pleno emprego, isso só poderia ser resolvido por meio do
aumento da despesa pública. De acordo com Napoleoni (1979:96) essa conclusão
“representa uma mudança radical em relação à teoria tradicional: com ela é confiada ao
Estado a tarefa não somente de assegurar certos serviços [para a sociedade], mas, num
sentido bem mais imperativo, de assegurar certo nível de renda nacional”.

Keynes apoiou-se, nessa construção teórica, no artigo de Richard Ferdinand


Kahn, que fora publicado na revista britânica Economic Journal, em 1931, intitulado “A
relação do investimento nacional com o desemprego”. Nele, este autor procurou
demonstrar, segundo Denis (1974:700) “que os investimentos nos trabalhos públicos,
tais como a construção de estradas, podem ser um remédio extremamente eficaz contra
o desemprego.” Construiu, nessa demonstração, o instrumento de política econômica
conhecido como o multiplicador do investimento, que ocuparia posição vital no modelo
keynesiano para a compreensão das flutuações econômicas do sistema e para a
determinação do volume de demanda adicional que teria de ser criada para se alcançar o
nível de renda necessário para o atingimento dos objetivos do pleno emprego da força
de trabalho. Mas, para Keynes, ainda segundo Napoleoni (1979:100), “se o desemprego
decorre de um problema de insuficiência de demanda efetiva e não de deficiência da
capacidade produtiva, então o que importa na despesa pública é apenas o seu montante
e não o seu conteúdo [composição]”.
84

Em sua argumentação Keynes reconhecia, contudo, que a má distribuição de


renda resultante da existência de mercados operando em situação de concorrência
imperfeita – um mero desvio no modelo convencional – “não colocava apenas um
problema social de igualdade, mas também um problema estritamente econômico, em
termos da possibilidade de se conseguir altos níveis de emprego” (Napoleoni, 1979:95).
A política fiscal, bem implementada, poderia contribuir, de acordo com essa
perspectiva, por meio de políticas redistributivas, para fortalecer as condições
necessárias para a revitalização das forças da demanda agregada e, portanto, para a
expansão da renda e do emprego.

Com a aceitação e difusão das idéias keynesianas, especialmente após a Segunda


Guerra (o próprio Keynes previa que seriam necessários dez ou mais anos para suas
idéias serem aceitas), o Estado foi colocado no centro do sistema econômico e social e a
política fiscal adquiriu posição nuclear entre os instrumentos de política econômica.
Como observa Napoleoni (1979:96) “... com a despesa pública [...] como elemento
determinante do nível de renda e emprego, então o Estado [foi] automaticamente
incluído nas forças economicamente decisivas que compõem um sistema social.”
Estavam derrubadas, com isso, do ponto de vista teórico, as barreiras que o impediam
de intervir na economia, possibilidade que passou a ser considerada necessária para
“salvar” o sistema, com a ampliação de suas funções como agente indispensável
também para assegurar a estabilidade econômica e uma melhor distribuição de renda.
Como conseqüência, a política fiscal passou a ocupar lugar privilegiado entre os
instrumentos de política econômica colocados à sua disposição, dando origem a estudos
sobre os efeitos dos gastos governamentais, bem como às causas de seu crescimento,
sobre a produção e a distribuição e ao aprimoramento dos planos de contas dos
governos (os orçamentos), de forma a torná-los instrumentos mais eficientes de
planejamento.

Segundo Dalton (1970: Caps.18 e 19), que reconhece o caráter eminentemente


político da teoria das finanças públicas, uma estrutura de gastos ideal, que brotou dessa
nova concepção, deveria contemplar pelo menos dois objetivos:

i) contribuir para expandir ao máximo a produção, de forma a compensar


os efeitos negativos engendrados na economia pela tributação. Nesse
sentido, torna-se recomendável evitar as aplicações estéreis e
improdutivas, a menos que a situação econômica ou algum fato político o
exija;

ii) ser voltada para reduzir as desigualdades da renda social, priorizando-se


os gastos nas áreas que mais favoreçam as camadas mais pobres da
sociedade, como as de educação, saúde, habitação popular etc.

Com armas teóricas renovadas, a ortodoxia procurou desmontar, com a crise do


capitalismo a partir da década de 1970, como foi visto no Capítulo I, a visão keynesiana
sobre os efeitos e impactos engendrados pelos gastos públicos sobre a atividade
produtiva, os níveis de renda e de emprego, retornando-se à visão pré-keynesiana
existente sobre a inocuidade da política fiscal para esses objetivos e sobre as
perturbações por ela causadas no tecido econômico, associando-a e responsabilizando-a
85

pelos fenômenos da inflação e da instabilidade, que marcaram o capitalismo a partir


dessa época.

Apesar disso, e das pressões que se seguiram para a redução do papel do Estado,
continuou significativa sua participação na apropriação da riqueza gerada, por meio da
cobrança de tributos, e elevados os seus gastos no conjunto da economia. Ou seja, pelo
orçamento continuou – e continua – transitando um volume expressivo dessa riqueza,
garantindo-lhe a condição de um poderoso instrumento que pode alterar a distribuição
de renda do país e uma arena, na qual, por essa razão, travam-se embates entre as
classes sociais e suas frações visando melhorar suas posições.

No que diz respeito ao tamanho do Estado, trabalho de Batista Jr. (1996) revela
que, apesar do discurso neoliberal, tanto os gastos públicos como os níveis de
tributação, como proporção do produto nacional bruto (PNB), continuaram a aumentar
nos países membros da OCDE. Apoiado em estudo produzido por este organismo, este
autor conclui que tal fato teria se verificado não somente em países como EUA, Japão e
Alemanha como também no conjunto de países que integram o G-7 e os da OCDE entre
os períodos de 1978-81 e 1992-1995, como mostra a tabela 3.1.

Tabela 3.1
Setor Público nos Países Desenvolvidos¹
(Média dos períodos em % do PIB)

Países Carga tributária Gasto público Dívida Pública


Líquida
1978-81 1992-1995 1978-81 1992-1995 1978-814 1992-95
EUA 30,2 30,6 30,7 33,7 21,6 49,0
Japão 31,5 33,8 31,5 33,8 15,1 6,5
Alemanha 44,9 46,1 47,8 49,2 12,0 36,4
G-7² 33,2 35,9 35,8 39,6 21,2 42,0
OCDE³ 34,0 37,0 36,7 41,0 20,55 41,86
Fonte: Organisation for Economic Cooperation and Development. OECD Economic Outlook,
June 1995 & June 1996. In: Batista Jr. (1997)
(1) Inclui governos centrais, estaduais e locais
(2) Inclui Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão, Reino Unido e EUA;
(3) Subconjunto dos países membros da OCDE. Inclui países do G-7 e Austrália, Áustria,
Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Grécia, Holanda, Islândia, Noruega, Portugal e
Suécia;
(4) Exclui Islândia
(5) Exclui Austrália, Áustria, Grécia, Irlanda e Portugal;
(6) Exclui Grécia, Irlanda e Portugal

É a mesma conclusão a que chega Dupas, em trabalho de 2001 (Dupas,


2001:105/6), onde confirma que “em todas as economias avançadas, os gastos dos
governos têm crescido, e rapidamente, como proporção do produto nacional bruto
(PNB).” Ainda segundo este autor, “nos países desenvolvidos, sua média manteve-se
em vigorosa ascensão: 27,9% (1960), 42,6% (1980), 44,8% (1990) e 45,9% (1996).
Dentre esses países, EUA e Japão [registraram] as menores proporções de gastos de
86

governo com relação ao seu PNB (33% e 36%, respectivamente). [Mas] neles também
se observaram taxas crescentes de 1960 a 1996.” O que o leva a concluir que “em plena
era da globalização e do discurso neoliberal sobre o Estado, a participação dos gastos do
governo no produto nacional continua a aumentar”.

A distribuição dessa expressiva – e crescente – parte da riqueza que é apropriada


pelo Estado, via tributação, entre as classes, frações de classes, regiões e setores da
sociedade, é decidida durante as fases do processo de elaboração, discussão e aprovação
da peça orçamentária, pelos poderes Executivo e Legislativo, onde essas forças se
encontram politicamente representadas, transformando-o, portanto, na arena em que
essas escolhas são realizadas e, portanto, em que são definidos os beneficiários desses
gastos.

É essa condição do orçamento de funcionar como arena política, na qual se


manifestam e se expressam esses interesses, que permite compreender por que uma
estrutura de gastos ideal dificilmente é garantida pela realidade do Estado
interpenetrado, em suas várias dimensões e instâncias, por forças políticas que atuam
para defender os interesses de quem representam e negociam as decisões de seus gastos,
de forma a acomodar e garantir seus ganhos. Especialmente após o espetacular
crescimento que conheceria o Estado (e os seus gastos), transferindo para o orçamento
parcela expressiva da riqueza gerada pelo setor privado, tornaram-se ainda mais
renhidas as disputas entre as classes e suas frações (ou pelos vários grupos de interesse)
pela apropriação desse quinhão, raramente produzindo os resultados esperados por
Keynes, especialmente no tocante à questão distributiva. Isso não significa que esses
não possam ser alcançados, mas para isso, ou a sociedade em todos os seus segmentos,
deve contemplar entre os seus objetivos, a preocupação com o compromisso de maior
igualdade, ou a correlação das forças sociais e políticas deve estar pendendo para as
classes menos favorecidas. É neste sentido, que deve ser entendida a afirmação feita por
Baleeiro em seu trabalho (Baleeiro, 19876:86), de que

“Em todos os tempos e lugares, a escolha da despesa envolve um ato


político, que também se funda em critérios políticos, isto é, nas idéias,
convicções e interesses revelados nos entrechoques dos grupos
detentores do poder.”

Dela depreende-se que a estrutura da despesa governamental deve revelar, em


cada realidade e em cada contexto histórico, as forças econômicas e políticas que, com
maior poder de influência sobre as decisões de gasto do Estado – ou seja, as que
determinam sua direção e tendências -, conseguem acomodar, no orçamento, seus
interesses. Uma situação que pode ser apreendida por meio da leitura dos resultados de
suas contas, cujos registros foram aprimorados após as formulações keynesianas para
viabilizá-lo também como instrumento de planejamento, embora não revelem as
negociações, acordos e acertos realizados nos bastidores do Executivo e do Legislativo
para definir as políticas que deverão ser priorizadas.

Como tal, o orçamento faz parte da grande casa de negócios comandada pelo
Estado, e é dele – embora não somente – que o capital, assim como os mais poderosos
econômica e politicamente, em disputa com os setores menos favorecidos que, em tese,
deveriam ser seus principais beneficiários, procuram também se valer para se apropriar
87

da parcela da riqueza gerada pelo conjunto da sociedade. As decisões sobre o destino


do dinheiro nunca são, quando não convém politicamente, claramente explicitadas,
porque negociadas num domicílio oculto com o dono do poder político, ao qual poucos
têm acesso, para usar uma imagem de Braudel (apud Arrighi, 1996:250). O resultado
dessas decisões aparece, contudo, registrado nos orçamentos em diversas – e muitas
vezes propositadamente obscuras – rubricas, cuja leitura pode fornecer pistas e
elementos para identificar os que estão se beneficiando de seus gastos. Antes, porém,
de avançar nessa “leitura” é importante conhecer como as várias escolas de pensamento
interpretam essa tendência de crescimento dos gastos e que classificação analítica
propõem para sua estrutura e composição, visando entender sua natureza, bem como a
do Estado.

2. CRESCIMENTO E COMPOSIÇÃO DOS GASTOS PÚBLICOS:


EXPLICAÇÕES TEÓRICAS

O forte crescimento dos gastos públicos (do Estado), bem como a multiplicidade de
papéis e funções que passaram a ser-lhe atribuídas após a revolução keynesiana,
despertaram o interesse, nos meios acadêmicos, pela realização de estudos voltados
para explicar as razões deste crescimento e/ou identificar as forças que influenciam a
composição de seus gastos. De vertentes teóricas distintas, as respostas dadas por esses
autores (ou escolas de pensamento) para essas questões, nem sempre foram
satisfatórias, quando não limitadas. Mas é possível identificar, em alguns casos,
elementos importantes que ajudam a compreender as forças que governam
(influenciam) sua composição – e também seu crescimento – e a razão de o Estado,
recorrentemente, esbarrar em crises financeiras periódicas, colocando a necessidade de
realizar reformas tanto em seus instrumentos como na sua forma de atuação e em suas
bases de financiamento.

A rigor, as teorias que tratam dessas questões podem ser classificadas em três
tipos: um, que se preocupa, utilizando dados empíricos sobre a evolução dos gastos do
Estado, em demonstrar sua tendência de crescimento e arrolar as suas causas, mas sem
se preocupar em compreender as forças que interagem no seu interior e influenciam
(determinam) suas decisões. Tudo se passa, como colocado por O’Connor (1977),
como se “forças estranhas” atuassem definindo as atribuições do Estado, com este
respondendo passivamente a essas influências. Neste grupo, se encontram as
explicações de Wagner, Peacock e Wiseman. Outro que, à luz de uma construção
teórica que se apóia na hipótese das “falhas” que apresenta o mercado, sugere normas e
define as funções que devem ser desempenhadas pelo Estado para corrigir as
ineficiências do sistema. Um terceiro que procura apreender, embora com perspectivas
distintas, como essa disputa se trava dentro do orçamento e como os interesses
representados no Estado influenciam e moldam sua estrutura de gastos, bem como as
conseqüências que essa situação pode ocasionar para a sua saúde financeira. Aqui, a
política perpassa todo o Estado, invade e se expressa no orçamento, mas diferem a
forma e os objetivos de sua instrumentalização, bem como os beneficiários e os
resultados finais dos gastos por ele realizados. Neste destacam-se as escolas neoliberal
e marxista. Um breve relato delas é feito em seguida.
88

2.1. As Explicações empíricas de Wagner, Peacock e Wiseman12

As explicações de Wagner e de Peacock e Wiseman são essencialmente empíricas e


apóiam-se em estatísticas sobre a evolução dos gastos públicos em alguns países
industrializados para constatar seu crescimento, restringindo-se, no entanto, a apontar
alguns elementos que podem justificar esse comportamento.

Os estudos empíricos de Adolf Wagner sobre essa questão nos países


industrializados levaram-no a concluir que “... à medida que cresce o nível de renda (...) o
setor público cresce sempre a taxas mais elevadas, de tal forma que a participação relativa
do governo na economia cresce com o próprio ritmo de crescimento econômico do país”
(Wagner apud Rezende, 1977:30). Dessa tendência derivou-se o que é conhecida como a
“Lei de Wagner”, que pode ser traduzida no “aumento incessante das atividades estatais
em maior velocidade que o ritmo de crescimento da economia” e que mais tarde seria
confirmada empiricamente por Richard Bird para os casos do Reino Unido, Alemanha e
Suécia entre 1910 e 1960.

Embora causas de diversas naturezas tenham sido apontadas para explicar este
comportamento – crescimento demográfico, aumento do grau de urbanização e da renda
per capita da população, traduzindo-se em ampliação da demanda por bens e serviços
públicos ofertados pelo Estado; diversificação das funções estatais decorrentes do avanço
do capitalismo etc. – a tese de Wagner incorre em pelo menos dois problemas que não a
tornam capaz de dar respostas adequadas para este fenômeno: o primeiro, por considerar
que o simples aumento da demanda por bens e serviços ofertados pelo Estado garante o
aumento de sua oferta, como se este operasse sem restrições orçamentárias; o segundo, por
não explicitar as forças políticas, econômicas e sociais que influenciam suas decisões de
gasto, o que o impede de perceber não somente como as necessidades colocadas pela
acumulação de capital ampliam as demandas sobre o Estado, como este tem de dar
respostas, também, para as demandas oriundas de outros setores e camadas sociais,
influenciando o nível e a composição destes gastos.

Peacock e Wiseman procuraram, por sua vez, suprir a deficiência da tese de


Wagner de que “os gastos não encontram limites à sua expansão”, considerando serem
estes limitados pelas possibilidades de incremento na tributação, o que só ocorrerá, para
eles, quando a sociedade se mostrar disposta a arcar com o seu ônus. De acordo com sua
tese, embora os indivíduos estejam sempre dispostos a demandar maior quantidade de bens
e serviços do Estado isso não significa que concordem com elevações da carga tributária
para financiá-los. Isso só tenderia a ocorrer em períodos de perturbações de ordem sócio-
econômica, causadas, por exemplo, por depressões econômicas, guerras, calamidades etc.,
que arrefecem essas resistências, abrindo-se espaços para o aumento dos impostos e,
portanto, para o financiamento de gastos adicionais. Tendo estes se tornado efetivos, a
sociedade tenderia a aceitar, mesmo nos períodos posteriores às perturbações ocorridas,
níveis mais elevados de tributação, sancionando, ainda que parcialmente, o crescimento
das despesas verificado.

A influência destes fatores sobre os gastos foi chamada por estes autores de “efeito-
translação” e confirmada em seus estudos empíricos sobre as despesas governamentais da
12
Uma visão mais aprofundada das teses desses autores pode ser encontrada em Rezende (1977, 2001) e
em Musgrave & Musgrave (1980).
89

Grã-Bretanha. Musgrave & Musgrave (1980: cap. 6) que a testaram para os Estados
Unidos, nos períodos anteriores e posteriores às duas grandes guerras e às da Coréia e do
Vietnã, confirmaram ter ocorrido, de fato, uma elevação dos gastos que depois se
reduziram, mas se estabilizaram em um patamar mais alto do que o inicial. Mas, como
argumentam, teria ocorrido também, nestes períodos, aumento dos gastos civis (e não
apenas militares) que explicam parcialmente o crescimento dos gastos totais. O que os leva
a aceitá-la parcialmente, mas não verem na teoria de Peacock e Wiseman “... uma
explicação definitiva para o crescimento dos dispêndios públicos (...) pelos menos para os
EUA” (Musgrave & Musgrave, 1980:122).

2.2. A teoria tradicional: funções alocativa, distributiva e estabilizadora.

Podem ser encontradas em todos os manuais de Finanças Públicas, as funções, como visto
no Capítulo 1, que a teoria tradicional atribui ao Estado: a alocativa, a distributiva e a
estabilizadora. Na sua origem, são funções que foram sendo gradativamente incorporadas
às suas atividades para compensar as “falhas” que o mercado apresenta, visando torná-lo
eficiente.

Com o papel do Estado restrito no pensamento clássico e neoclássico à função


alocativa, foi com Keynes, e com o novo papel que passou a ser-lhe atribuído, que as
funções distributiva e estabilizadora ganharam relevância, diante das necessidades de se
amortecer as flutuações cíclicas da economia, alimentar as forças da acumulação e garantir
um mínimo de coesão social para a reprodução mais harmônica e suave do sistema.

A organização e classificação dos gastos do Estado em torno dessas funções foi


realizada pela vertente teórica da “Síntese Neoclássica” e seu objetivo, como esclarece
Musgrave (1974, v.1) foi o de fornecer elementos para a construção de um “plano
orçamentário ótimo”, do ponto de vista da eficiência, diante dos trades-off que envolvem
essas questões e das restrições orçamentárias a que está sujeito o Estado. O melhor
conhecimento da estrutura destes gastos, em determinadas conjunturas, que determinariam
maior ou menor ênfase em uma ou outra dessas funções, facilitaria o planejamento
orçamentário e o remanejamento de verbas, tornando mais eficiente o processo, à luz das
limitações dos recursos públicos e dos papéis atribuídos ao Estado.

Com essa perspectiva, as contas do orçamento podem ser distribuídas e


classificadas de acordo com essas funções, identificadas como destinadas a assegurar: a)
ajustamento na alocação de recursos (oferta de bens públicos puros, como segurança,
justiça, meio-ambiente; políticas de correção de preços de mercado de bens necessários
para a população ou para a atividade produtiva; compensação de deseconomias externas
etc.); b) ajustamento na distribuição de renda e da riqueza (oferta de políticas públicas,
como saúde, educação, assistência e mecanismos de transferência de renda); e c) garantir a
estabilização econômica (implementação de políticas de receitas, gastos e dívida para
combater o desemprego, a inflação e para manter o equilíbrio macroeconômico interno e
externo). A combinação dessas políticas deve ser feita – e daí seu caráter normativo – de
forma a assegurar um “plano orçamentário ótimo”, ou seja, contribuir para manter a
eficiência do sistema.

A preocupação com a construção de um “plano orçamentário ótimo” (eficiente) por


parte de Musgrave, tendo como referência as funções atribuídas pela teoria tradicional ao
Estado, como decorrência das “falhas” do mercado, recebeu críticas ácidas por parte de
90

O’Connor (1977:17) por ignorar “a estrutura social do Estado [das forças políticas que
dominam seu aparelho] e a compreensão de suas funções econômicas e políticas” e
dedicar-se apenas ao exame de sua eficiência. Nas suas palavras: “Musgrave vislumbra
‘um plano orçamentário ótimo’ com base em condições inicialmente estabelecidas”. E
busca, então, “por meio de regras e princípios (...) ver como isso pode ser conseguido (...) e
chama isto de ‘uma teoria normativa ou optimal de condução da coisa pública”.

De qualquer forma, foi com essa visão teórica sobre o papel mais intervencionista
do Estado, visando assegurar condições de eficiência do sistema, que a sua participação na
ordem econômica e social ampliou-se consideravelmente, especialmente após a crise dos
anos de 1930, quando, sem respostas adequadas da teoria convencional para combatê-la, as
idéias keynesianas ganharam força e espaço no pensamento econômico.

2.3. A Visão Marxista de O’Connor

Para O’Connor, cujo trabalho tem como objetivo central “desvendar os princípios que
governam o volume e alocação das finanças e despesas públicas e a distribuição do ônus
fiscal pelas diversas classes sociais” (O’Connor, 1977) a teoria normativa de Musgrave
não dá respostas adequadas para essa questão. Nas suas palavras “ela apenas se contenta
em reconhecer a necessidade do Estado para ajudar o mercado e a traçar regras e princípios
que servem a uma conduta eficiente da economia.”

Na sua perspectiva, o crescimento e a composição dos gastos do Estado capitalista


são determinados por duas funções básicas – às vezes contraditórias – que ele tem de
desempenhar para garantir a reprodução a longo prazo do sistema, que são: a) a da
acumulação, que constitui as próprias bases de seu poder e arrecadação; e b) a de
legitimação, com a qual busca garantir a coesão e consenso das classes e frações de
classes em torno de um projeto econômico hegemônico.

É o cumprimento dessas funções, cuja natureza e amplitude variam de acordo com


a evolução e as necessidades históricas colocadas para a reprodução do sistema, que
explica, no tempo, o crescimento dos gastos estatais - bem como a sua composição -, e
também a origem das crises fiscais a que estão sujeitos os Estados. Isto porque, para ele,
“… o crescimento do setor estatal e da despesa estatal funciona cada vez mais como a base
de crescimento monopolista e da produção total (...) porque, dado o aumento do caráter
social da produção [aprofundamento da especialização, necessidades crescentes de
educação etc.] e da tendência ao declínio da taxa de lucro e da estagnação econômica, é
através do Estado que se garante a lucratividade do sistema, através da socialização do
investimento social e do capital de consumo”. E como “o crescimento do setor
monopolista é irracional, no sentido de se fazer acompanhar pelo desemprego, pobreza
etc.” é também o Estado que tem, “para assegurar a lealdade das massas e manter sua
legitimidade, de responder às várias demandas daqueles que sofrem os custos do
crescimento econômico.” (O’Connor, 1977)

É, portanto, o cumprimento dessas funções contraditórias com as quais se busca


garantir a valorização global do capital, crescentemente dependente dos gastos estatais –
função acumulação – e de atendimento das demandas sociais – função legitimação, que
também absorve recursos crescentes, dada a irracionalidade do sistema -, que gera
tendências inexoráveis para a geração de crises econômicas, sociais, políticas e,
inevitavelmente, de crises fiscais, já que as despesas tendem a crescer mais rapidamente
91

que as receitas para financiá-las. Neste sentido, são crises geradas pelas próprias
contradições do sistema, e os déficits fiscais – ou “brechas fiscais” como ele os chama –
não resultam da ação egoísta dos indivíduos, como quer a teoria da “escolha pública”, mas
das próprias necessidades de sobrevivência e reprodução do sistema.

Nessa perspectiva, se o Estado deixar o mercado operar “livremente”, como este


aparentemente deseja, e as classes dominadas forem deixadas à sua própria sorte, o sistema
capitalista, pelas suas próprias contradições e pelas convulsões sociais que podem se
acentuar com o aumento dos excluídos e do questionamento de suas bases, pode muito
rapidamente caminhar para a derrocada. As turbulências econômicas e sociais que têm se
verificado no mundo desde os anos 1990 apenas parecem confirmar que, de fato, esse não
é um bom caminho para ser percorrido.

2.4. A Visão neoliberal: public choice e neo-institucionalismo

Com a crise financeira em que mergulharam os Estados, de uma maneira geral, a partir da
década de 1970, colocando em xeque a visão keynesiana sobre o papel intervencionista do
Estado, surgiram novas contribuições teóricas, como visto no capítulo I, que, tendo a
economia do governo como objeto de investigação, incorporaram, em seu arcabouço,
elementos para identificar tanto as causas da ineficiência e iniqüidade dos gastos públicos
como de seu crescimento, no tempo, assim como as forças que conduzem o Estado à
geração de elevados déficits, os quais estariam na raiz dos desequilíbrios e das crises mais
recentes do sistema capitalista, e a propor, diante disso, uma redefinição de seu papel. São
elas: a “teoria da escolha pública” e a do “neo-institucionalismo”.

Para os autores da escola conhecida como “escolha pública” (public choice), são
os conflitos de interesses existentes entre os agentes envolvidos no processo de definição
dos gastos públicos - eleitores, políticos, burocratas etc. – que explicam não somente a sua
composição como também o seu crescimento descomunal, provocando gigantescos
déficits, que terminam minando o sistema e colocando em risco sua capacidade de
reprodução. Para essa escola, o Estado é sempre sinônimo de desperdício e sua atuação
apresenta mais “falhas” do que o mercado, o que justificaria sua retirada do cenário ou a
sua redução a uma condição “mínima” (“Estado mínimo”), restrito a apenas a algumas
atividades necessárias para complementar as necessidades do sistema. Mas o que explica
as falhas do Estado?

Para responder a essa questão, a teoria transpõe o método de análise da teoria


econômica convencional que considera, como hipótese de trabalho, o homem um animal
egoísta, racional e maximizador de utilidades, para o campo do governo, procurando
entender como se dá a interação entre os distintos atores que dele participam – eleitores-
consumidores, políticos, burocratas – e que, ao buscarem satisfazer seus interesses
particulares, provocam desperdício e fazem o Estado incorrer em mais “falhas” do que o
mercado.

Isso porque, enquanto no “mercado econômico”, as trocas efetuam-se entre dois


agentes que decidem realizá-las desde que o resultado seja benéfico para ambos,
maximizando suas utilidades à luz de suas condições e restrições financeiras, no “mercado
político” há uma multiplicidade de agentes envolvidos nessas trocas – políticos, eleitores
etc. -, procurando cada um maximizar suas utilidades – políticas públicas, votos, prestígio
etc. – sem levarem na devida conta a situação financeira do Estado, ou seja, as suas
92

restrições orçamentárias. É dessa ação, que torna as “trocas políticas” ineficientes vis-à-vis
as trocas econômicas, que nascem os déficits públicos, os quais, alimentando o
crescimento da dívida submetem o sistema a ondas permanentes de instabilidade.

Diante dessa situação, a Teoria da Escolha Pública levanta como principal bandeira
a necessidade de estabelecer limites constitucionais aos poderes governamentais e impor
regras rígidas para o comportamento dos políticos e da burocracia estatal, visando
recuperar a confiança do povo nas instituições políticas tradicionais. É neste sentido que se
pode entender a adoção em países como os EUA a partir do final dos anos 70 - e como
uma contribuição da Teoria da Escolha Pública - de limitações, contempladas em lei, à
geração de déficits públicos, de crescimento da dívida etc.

Para uma corrente mais radical dessa escola, abrigada sob o manto da “Theory of
Rent Seeking" (ou Teoria dos Caçadores de Renda), o Estado é sempre fonte e sinônimo
de desperdício, não sendo necessário a materialização de sua ação para que isso ocorra,
bastando apenas anunciá-la. Isso porque entre o simples anúncio e sua aprovação ou
rejeição, estarão sendo despendidos recursos pelos agentes que a ela se opõem ou a apóiam
– uma medida de política econômica, via de regra, favorece um ou mais setor em
detrimentos de outros – e também pelos próprios órgãos do Estado encarregados de
apreciá-la, gerando ineficiências e desperdícios para a sociedade. Por isso, a retirada (e até
mesmo extinção) do Estado da vida econômica e social aparece como sendo mais benéfica
para a sociedade, do ponto de vista da eficiência, do que a sua presença, sendo
recomendável transferir suas funções para o mercado.

É bem provável que, levadas ao pé-da-letra, as recomendações da public choice


teriam reduzido substancialmente o tamanho do Estado na vida econômica e social,
transferindo para o mercado muitas de suas ações. Todavia, embora tal movimento tenha
se iniciado com a onda de privatizações que varreu os países desenvolvidos a partir da
década de 1980 e avançou com força redobrada sobre os países em desenvolvimento na
década de 1990, o fato é que ele perdeu força ainda nessa última década, quando os efeitos
dessa política revelaram, claramente, que o inevitável aumento da pobreza dele decorrente
assim como as crises que se sucederam em efeito-dominó, não poderia dispensar a ação do
Estado.

Com isso, a proposta do “Estado mínimo” da corrente mais radical da public choice
terminou sendo substituída pela do “Estado eficiente” da corrente neo-institucionalista na
década de 1990, a qual, reconhecendo que o mercado não conta com a “eficiência” que lhe
é atribuída, por problemas de “assimetria de informações” e de “risco moral” e mesmo da
ausência de “mercados completos”, caberia ao Estado criar as condições ideais, do ponto
de vista institucional, para que o sistema possa operar ou pelo menos gravitar em torno do
ponto de equilíbrio ótimo, ou seja, de máxima eficiência. O Estado retornaria, nessa visão,
como indispensável para garantir a continuidade e reprodução do sistema, mas um Estado
“comportado, ágil, enxuto e eficiente”, funcionando com regras claras, finanças
equilibradas e instituições sólidas e confiáveis capazes de garantir que este se colocaria em
condições tanto de honrar seus compromissos como de assegurar o pagamento das dívidas
contraídas e, dessa maneira, assegurar a preservação da riqueza financeira privada.

Apesar, portanto, do discurso neoliberal sobre o Estado, o fato, como conclui Dupas
(2001:106), é que “em plena era da globalização (...) a participação do governo no produto
nacional [continuou] a aumentar.” E que isso se devia ao fato de que diante da “tendência
93

de crescente exclusão social decorrente do atual modelo econômico”, a participação


atuante do Estado, que passou a ser defendida pela corrente neo-institucionalista e também
por organizações internacionais, como o Banco Mundial, substituiu a proposta do Estado
mínimo, voltando a ser considerada como decisiva para o desenvolvimento econômico e
social e para garantir a reprodução do sistema. Se se manteve nessa trajetória,
modificaram-se, contudo, as estruturas de seus gastos, já que os orçamentos públicos
passaram a ser ajustados para abrigar os novos interesses dominantes nessa etapa de
desenvolvimento do capitalismo, visando garantir a sustentabilidade da dívida pública e o
pagamento de seus encargos ou, o que significa a mesma coisa, a preservação da riqueza
financeira.

A configuração da política fiscal a partir dessa nova perspectiva sobre o papel do


Estado e da importância adquirida por compromissos assumidos pelos governos com
políticas de preservação da riqueza financeira pode ser avaliada pelas alterações registradas
na composição dos gastos nos orçamentos públicos. Ainda segundo Dupas (2001), apoiado
em artigo do The Economist sobre o assunto, os gastos públicos, nos países desenvolvidos,
conheceram crescimento significativo, entre 1960 e 1990, em quase todos seus
componentes, com maior destaque para os juros da dívida, à exceção dos investimentos
públicos, que declinaram. As mesmas tendências confirmam-se para os países da OCDE a
partir dos anos 1980 e para os países do Oriente Médio, da África, da Ásia, do Pacífico, da
América Latina e do Caribe (Dupas, 1998:106).

Os dados extraídos do trabalho de Batista Jr. (1997) também confirmam, como


anteriormente visto, não somente a tendência de aumento dos gastos públicos como o
maior avanço, no orçamento, dos juros da dívida, como mostra a tabela 3.2. À exceção do
Japão, que manteve deprimida a taxa de juros na tentativa de escapar de uma recessão
prolongada, todos os demais países (e conjuntos de países), incluídos na tabela, viram
aumentar consideravelmente no orçamento a participação dos juros da dívida, abrigando e
acomodando os interesses do capital financeiro neste espaço.

Tabela 3.2
Total de gastos orçamentários e despesas com juros da dívida, por países e grupos de
países.
(Média de períodos, em % do PIB)
Países 1978-81 1992-1995
Total Juros 2/1 (%) Total Juros 2/1 (%)
Gastos (1) Líquidos (2) Gastos (1) Líquidos (2)
EUA 30,7 1,2 3,9 33,7 2,1 6,2
Japão 31,5 0,3 0,9 33,8 0,3 0,9
Alemanha 47,8 1,2 2,5 49,2 2,7 6,4
G-7 35,8 1,5 4,2 39,6 2,7 6,8
OCDE 36,7 1,5 4,1 41,0 3,0 7,3
Fonte: Fonte: Organisation for Economic Cooperation and Development. OECD Economic
Outlook, June 1995 & June 1996. In: Batista Jr. (1997)

A posição mais realista sobre o papel do Estado da corrente neo-institucionalista


vis-à-vis a da public choice não modificou, contudo, as novas prioridades para ele
definidas nessa nova etapa de desenvolvimento do capitalismo, que é a de garantir a
sustentabilidade da dívida e o pagamento de seus encargos, por meio da geração de
94

superávits fiscais, mesmo que, se necessário, tendo de comprometer/sacrificar políticas


essenciais para o desenvolvimento sustentado. Uma recomendação que, na perspectiva da
teoria marxista, embora atenda os interesses de um segmento do capital e lhe garanta a
apropriação da riqueza, coloca sérios problemas para a reprodução global do sistema.

2.5. Um balanço das posições teóricas sobre os determinantes dos gastos públicos

Um pequeno balanço das diversas posições teóricas apresentadas nesse capítulo que
procuram explicar os determinantes do crescimento dos gastos públicos – e, portanto, o
tamanho do Estado -, permite que sejam extraídas as seguintes conclusões:

1. as explicações empíricas de Wagner, Peacock e Wiseman revelam-se


insatisfatórias para dar conta desse fenômeno. A de Wagner considera um
Estado que sempre responde de forma positiva à ampliação da demanda por
bens e serviços públicos da sociedade, sem problematizar a questão de suas
fontes de financiamento, o que torna frágeis suas bases. A de Peacock e
Wiseman enfrenta essa questão, mas ao associar esse crescimento a
“significativas perturbações políticas e econômicas” não se habilita a explicar a
razão pela qual na ausência dessas condições, como ocorreu após a Segunda
Guerra Mundial, as despesas do Estado continuaram, de modo geral,
expandindo-se no sistema capitalista;

2. a da teoria tradicional, que reúne e funde as contribuições dos clássicos,


neoclássicos e keynesianos, transmutando-as, por meio da Síntese Neoclássica,
em funções que cabem ao Estado para corrigir as “falhas” do mercado, embora
tenha justificado e dado amparo teórico à sua expansão a partir da década de
1940, não revela, e nem é este o seu objetivo, as forças que atuam em seu
interior e influenciam suas decisões de gastos, tomando-as como dadas e
necessárias para garantir a eficiência do sistema;

3. a dos neoliberais, embora possa exercer um certo fascínio ao abordar os


conflitos e interesses entre os agentes que participam do processo político, não
é também satisfatória. A public choice, além de conceber um Estado sem vida
própria, que apenas responde às demandas da sociedade, filtradas por políticos
e burocratas, a hipótese que utiliza na sua construção de “agregação das
preferências individuais” é de difícil formatação e nunca foi comprovada. Com
isso, fica comprometido todo o seu arcabouço teórico.

4. A corrente neo-institucionalista, apesar de reconhecer a importância do Estado


para garantir a sobrevivência e reprodução do sistema, subordina suas ações ao
cumprimento de compromissos com a sustentabilidade da dívida, mesmo que,
para isso, tenha de abrir mão de seu papel como agente “conciliador” do
sistema, estabelecendo, portanto, limites claros para sua atuação neste campo;

5. a marxista é, dentre as demais, a que melhores elementos fornece para a


compreensão desse fenômeno. Não somente porque se apóia em leis
tendenciais – e reais – do capitalismo – tendência de declínio da taxa de lucro,
por exemplo – para demonstrar a necessidade do Estado para assegurar sua
lucratividade e reprodução através do aumento dos gastos públicos, mas
também porque desvela como a necessidade de legitimar o sistema – e com
95

isso garantir o consenso entre classes dominantes e dominadas – atua nessa


mesma direção e influencia a sua composição. Mesmo que a teoria ainda não
tenha conseguido identificar com clareza os mecanismos utilizados para essa
finalidade, não há dúvidas de ser a que apresenta maior consistência e maior
riqueza para o entendimento e explicação dessa questão.

O importante a retirar dessa discussão é que o orçamento, na perspectiva analisada,


fornece, por meio das propostas e resultados dos gastos orçamentários do Estado, uma
“leitura” dos que mais deles se beneficiam, em cada época, e, portanto, de suas prioridades,
que são basicamente definidas – embora não somente – sob a influência dos que exercem
maior controle sobre as suas decisões.

Embora o Estado tenha de atender a múltiplos interesses, com o objetivo de manter


a coesão social indispensável para a reprodução do sistema, certo é que, em cada etapa
histórica, predominam, no orçamento, os interesses da fração de classe hegemônica. Foi
assim com o capital produtivo, enquanto este manteve subordinados o capital comercial e o
financeiro e quando o investimento público era visto como essencial para garantir sua
reprodução em escala ampliada. Foi assim com o capitalismo democrático keynesiano,
quando o avanço do welfare state colocou-se como indispensável para afastar os temores
de alastramento das bandeiras comunistas no Ocidente, conduzindo a um grande
crescimento dos gastos sociais. E assim tem ocorrido na etapa atual de desenvolvimento do
capitalismo globalizado, em que a força do capital financeiro manifesta-se nessas
estruturas do orçamento com o aumento significativo das despesas financeiras com o
pagamento de juros da dívida pública, dando uma nova conformação à política fiscal.
Alguns exemplos ajudam a entender melhor essa questão.

Num contexto em que predominam os interesses do capital financeiro, como ocorre


na atualidade, que dão à política fiscal uma determinada configuração, tendem a ganhar
maior importância, na estrutura de gastos do Estado, as despesas financeiras com o
pagamento de juros da dívida pública (que aparecem registrados na rubrica “Juros da
Dívida” na classificação por categorias econômicas, e na de “Administração” ou
“Encargos Especiais” na classificação funcional), vis-à-vis os gastos com o setor
produtivo, por exemplo, na rubrica “Investimentos”, que são essenciais para garantir a
lucratividade do capital produtivo, embora o resultado final obtido seja a valorização
global do capital. Neste caso, as políticas sociais e compensatórias costumam também ser
reduzidas ou mesmo sacrificadas para garantir aquele objetivo.

Contrariamente, um Estado comprometido com o social – o que pode ser resultado


de uma correlação de forças políticas mais favorável para as classes dominadas ou mesmo
das necessidades de reprodução do sistema – tende a priorizar, em sua estrutura, maiores
gastos com políticas sociais, como foi no caso do welfare state. Tudo isso significa que a
estrutura ideal de gastos postulada pela teoria das finanças públicas, como colocado por
Dalton (1970), que deveria refletir o compromisso com uma maior produção e melhor
distribuição, não necessariamente corresponde à que se observa na prática orçamentária do
Estado, já que esta sofre forte influência dos interesses das classes e frações de classes que
influenciam e governam suas decisões.

Entre estes dois exemplos existem várias situações possíveis, considerando o seu
papel de garantir a coesão social que é essencial para a reprodução do sistema. Quando,
96

contudo, o Estado é instado, pelas forças que o dominam, a abandonar essa posição em que
exerce o papel de “conciliador”, como ocorre na atualidade, para garantir a apropriação e
materialização da riqueza financeira, que nasce de seu próprio ventre ao cumprir funções
essenciais para o sistema, os resultados revelaram-se desastrosos e exigiram revisões e
readaptação de seu papel para evitar que as forças autofágicas do mercado o conduzissem
ao colapso.

3. OS GASTOS PÚBLICOS NO BRASIL

3.1. A classificação dos gastos

São várias as formas de classificação dos gastos e de sua apresentação na peça


orçamentária, variando de país para país, os dispositivos que normatizam a matéria. De
uma maneira geral, sua classificação obedece a critérios que visam propiciar condições ao
Poderes Constituídos - Legislativo, Executivo e Judiciário – e também à sociedade de
exercerem controle sobre os seus níveis e sobre a execução das decisões tomadas a respeito
de seu destino, bem como para viabilizar as atividades de planejamento, de avaliação de
seus impactos sobre a economia como um todo e de controle das contas públicas.

No orçamento brasileiro e nas publicações oficiais que divulgam os seus resultados


consolidados, as despesas públicas aparecem classificadas segundo três critérios distintos,
contemplados na Lei 4320, de 17/3/64, e nas modificações posteriores introduzidas nessa
matéria. Cada um deles fornece elementos, também distintos, para a sua análise, que vão
da identificação dos órgãos responsáveis pela sua execução - as chamadas unidades
administrativas ou ministérios - aos que revelam as realizações do governo, através dos
objetivos de seus gastos traduzidos na destinação que é dada aos recursos de que dispõe o
governo e ainda aos que desvelam suas implicações macroeconômicas e propiciam a
construção de indicadores para a avaliação de sua situação financeira e para a identificação
de seus principais pontos de estrangulamento e das potencialidades que podem ser
exploradas para sua melhoria. São eles: a) a classificação institucional ou departamental; b)
a funcional programática; c) a classificação por categorias econômicas, por elementos e
subelementos.

3.1.1. A classificação institucional

Segundo Giacomoni (1992:87), "... este é o mais antigo critério de classificação da


despesa", sendo o seu objetivo principal o de "... evidenciar as unidades administrativas
responsáveis pela sua execução." É um critério útil para que se identifiquem, portanto, os
órgãos para os quais são destinados os recursos e para que se cobrem responsabilidades,
através de avaliações que venham a ser realizadas, sobre os resultados efetivamente
alcançados pelo governo. A classificação parte dos três níveis de Poderes - Legislativo,
Judiciário e Executivo - os quais, por sua vez, são desdobrados em órgãos e seus
respectivos subórgãos. Integram o Executivo, por exemplo, a Presidência da República e
os ministérios - educação, saúde, transportes etc. Estes, por sua vez, são compostos por
várias unidades administrativas, responsáveis pela execução dos projetos e das atividades
estabelecidas no programa de governo.

Embora permita identificar a distribuição dos recursos pelos órgãos


governamentais e o agente responsável pela execução dos projetos e atividades, a
classificação institucional, se utilizada isoladamente, não possibilita uma visão clara sobre
97

os objetivos de gastos do governo e nem fornece elementos para avaliar os seus impactos
na vida social e econômica como um todo. Isso pode ser obtido somente através do exame
dos demais critérios de classificação dos gastos.

3.1.2. A classificação funcional

A classificação funcional-programática, instrumento indispensável para a utilização do


orçamento como peça de planejamento, representou um aperfeiçoamento da classificação
funcional que, adotada no Brasil de forma embrionária a partir de 1933, evoluiu nas
décadas seguintes até a sua consolidação pela Lei 4320, de 17/3/64, que confirmou sua
estrutura com dez funções, cada uma sendo subdividida em dez subfunções. Este foi um
passo importante para a criação das condições para a implantação das técnicas do
Orçamento-Programa, no País, o que, contudo, só viria a ocorrer, em 1974, com a
introdução da classificação funcional-programática, através da Portaria no. 9, de 28/0l/74.
Com ela, as funções foram ampliadas de 10 para 16 e desdobradas em programas, os quais,
por sua vez, foram subdivididos em subprogramas e estes em projetos e atividades. Nessa
nova estrutura, a função de Educação e Cultura, por exemplo, teria, entre outros, um
programa voltado para o Ensino Superior e, neste, subprogramas contemplando o Ensino
da Graduação, a Pós-Graduação etc. (Giocomoni, 1992:93). Os Projetos e Atividades
seriam os instrumentos, com os quais, se procuraria materializar os objetivos estabelecidos.

Apesar de representar um avanço em relação ao sistema anterior, a classificação


funcional-programática tornou inviável, na prática, a estruturação de um orçamento capaz
de aferir os resultados produzidos para a população. De acordo com sua concepção,
enquanto à classificação funcional caberia definir as áreas beneficiadas com o gasto
público, à programática seria reservado o papel de definição de seu objetivo. Como esses
não eram padronizados entre as distintas esferas de governo, esse papel passou a caber à
classificação funcional, tornando-se o gasto meramente classificatório, prejudicando a
lógica do orçamento-programa e, consequentemente, a atividade do planejamento.

Para superar essas dificuldades e aprimorar o sistema como instrumento mais


adequado para o planejamento, nova mudança foi introduzida nessa estrutura, em 1999,
pela Portaria no. 42, de 14/04, do Ministério de Orçamento e Gestão (MOG). Com a
mudança, a funcional-programática foi extinta, e a classificação funcional passou a se
subdividir em subfunções, tornadas obrigatórias para todas as unidades da federação –
tornando-se, portanto, comparáveis -, e os programas deixaram de ser classificatórios,
tornando-se flexíveis para cada esfera de governo, definidos de acordo com os seus
objetivos.

Neste novo modelo, as funções foram elevadas para 28, passando a explicitar
atividades surgidas com as transformações decorrentes do desenvolvimento econômico e
social mais recentes e a destacar outras que, embora importantes, se encontravam
agregadas a outras funções, tendo-se criado, também, uma categoria chamada de
“operações especiais”, na qual são agrupadas as “despesas que não contribuem para a
manutenção das ações do governo, das quais não resulta um produto, e não geram
contraprestação direta de bens ou serviços.” Apesar das dificuldades que ainda subsistem
para o manejo deste instrumento para as atividades do planejamento, essas mudanças
contribuíram para melhorar a “leitura” das áreas beneficiadas pelos gastos governamentais
e, portanto, de suas prioridades, inclusive com a apropriação na conta “operações
especiais” de dispêndios que não se encontram com elas relacionadas O quadro 3.1
98

relaciona as 28 funções, bem como apresenta, a título de exemplo, uma de suas subfunções
contempladas na Portaria 42/99.

Quadro 3.1
Orçamento da União:
Classificação funcional das despesas

Funções Subfunções (exemplo)


01 – Legislativa Ação Legislativa
02 – Ação Judiciária Ação Judiciária
03 – Essencial à Justiça Defesa da Ordem Jurídica
04 – Administração Planejamento e Orçamento
05 – Defesa Nacional Defesa Aérea
06 – Segurança Pública Policiamento
07 – Relações Exteriores Relações Diplomáticas
08 – Assistência Social Assistência ao Idoso
09 – Previdência Social Previdência Básica
10 – Saúde Atenção Básica
11 – Trabalho Fomento ao Trabalho
12 – Educação Ensino Fundamental
13 – Cultura Difusão Cultural
14 – Direitos da Cidadania Assistência aos Povos Indígenas
15 – Urbanismo Serviços urbanos
16 – Habitação Habitação Rural
17 – Saneamento Saneamento Básico Rural
18 – Gestão Ambiental Controle Ambiental
19 – Ciência e Tecnologia Desenvolvimento Científico
20 – Agricultura Promoção de Produção Vegetal
21 – Organização Agrária Reforma Agrária
22 – Indústria Promoção Industrial
23 – Comércio e Serviços Promoção Comercial
24 – Comunicações Comunicações Postais
25 – Energia Conservação de Energia
26 – Transporte Transporte Aéreo
27 – Desporto e Lazer Desporto Comunitário
28 – Encargos Especiais Refinanciamento da Dívida Interna
Fonte: Portaria MOG no. 42, de 14/4/1999 (DOU de 15/4/1999)

Necessária, do ponto de vista da técnica orçamentária, para a atividade do


planejamento, a classificação funcional dos gastos públicos permite, ao mesmo tempo,
analisar os objetivos de programa de um governo, traduzidos nas prioridades econômicas e
sociais estabelecidas pelas suas diversas rubricas, tais como, educação, saúde, saneamento,
agricultura, indústria etc. Através de suas informações, torna-se possível construir alguns
indicadores e avaliar o peso e a importância atribuídos, por exemplo, aos programas
sociais, como os que se referem aos gastos com habitação e urbanismo, educação e cultura
e saúde e saneamento. Assim, como também é possível extrair ilações sobre o montante
relativo de recursos destinados a amparar os setores produtivos e a infra-estrutura
econômica, como os que dizem respeito, à agricultura, indústria, comércio, serviços,
comunicações etc. Ou ainda a determinar o volume de despesas requeridas para
manutenção das atividades de governo nas suas funções legislativa, judiciária, de
99

administração e planejamento etc. O fato é que, com essa classificação do gasto tornou-se
possível obter elementos para traçar um retrato do governo que revele suas prioridades nos
campos econômico, social, regional etc. e identificar os grupos, os setores econômicos e as
regiões que mais dele se beneficiam.

3.1.3. A classificação por categorias econômicas

A classificação das despesas por categorias econômicas é o resultado da importância que


passou a adquirir, especialmente a partir do predomínio das idéias keynesianas sobre o
papel do Estado na economia, o conhecimento da situação das contas públicas, em seus
vários componentes, para a avaliação de seus impactos e implicações para a economia
como um todo. Além da importância de seu conhecimento para as contas nacionais, à
medida que fornecem indispensáveis informações para calcular a contribuição do governo
à geração de renda nacional, através dos investimentos públicos e de seu consumo - e
também para captar a influência de sua gestão no processo inflacionário -, a análise das
despesas por categorias econômicas é importante, nas finanças públicas, por algumas
importantes razões: a) por ser possível classificá-las de acordo com o seu grau de rigidez e,
com isso, determinar a vulnerabilidade das finanças em estudo e os estrangulamentos
existentes; b) por poder se identificar, a partir do peso relativo de cada componente no seu
total, os que exigem e são passíveis de ajustamento, especialmente numa situação de
desequilíbrios fiscais e financeiros do Estado; e c) por se ter maior clareza sobre os que
podem ser usados como variáveis de ajuste sem que seja afetado o funcionamento normal
da máquina pública.

A adoção da classificação da despesa, de acordo com o critério econômico no


Brasil, ocorreu, como visto anteriormente, com a promulgação da Lei 4320/64, que
estabeleceu duas categorias - as despesas correntes e as despesas de capital - e cinco
subcategorias a elas vinculadas - as despesas de custeio e as transferências correntes, no
caso da primeira, e os investimentos, as inversões financeiras e as transferências de capital,
para a segunda. Sobre estes componentes algumas palavras devem ser ditas.

Os gastos de custeio são aqueles destinados a garantir o funcionamento da máquina


pública e a oferta de serviços públicos e compõem-se, predominantemente, dos gastos com
pessoal - ativos e inativos - e das demais despesas, especialmente material de consumo. É
através deles que se mede a participação do governo no consumo global da economia. As
transferências correntes dizem respeito ao repasse de recursos realizado entre as esferas
governamentais - constitucionais ou voluntárias - destinada ao financiamento de uma
despesa corrente.

As despesas com investimentos encontram-se, por sua vez, vinculadas à realização


de obras pela administração pública, incluindo as que são destinadas à aquisição de
imóveis para sua realização, bem como para os programas especiais de trabalho, aquisição
de instalações, equipamentos e material permanente e constituição ou aumento do capital
de empresas que não sejam de caráter comercial ou financeiro. Representa a contribuição
do governo à formação bruta de capital fixo da economia. Já as inversões financeiras
referem-se tanto à aquisição de imóveis ou de bens de capital já em utilização como à
aquisição de títulos representativos de capital de empresas já constituídas ou à constituição
ou aumento de capital de entidades ou empresas que visem aos objetivos comerciais e
financeiros. Note-se que a distinção entre as despesas com Investimentos e as classificadas
como Inversões Financeiras deve-se, simplesmente, aos seu efeitos multiplicadores
100

diferenciados sobre a economia: as primeiras representam a criação de riqueza nova,


irradiando efeitos multiplicadores mais poderosos para a economia e a renda nacional; as
segundas, por dizerem respeito à riquezas existentes, não geram efeitos positivos para a
renda nacional, implicando apenas a transferência de propriedades entre os agentes
econômicos. Já as Transferências de Capital, à semelhança do que foi observado para as
Transferências Correntes, referem-se aos repasses de recursos, previstos ou não
constitucionalmente, entre as esferas governamentais, para a realização de investimentos
ou inversões financeiras.

Vale chamar a atenção para o fato de que na consolidação das contas


governamentais, considerando as distintas esferas de governo, essas subcategorias se
reduzem às Despesas de Custeio, Investimentos e Inversões, que são as informações que
interessam mais de perto para o cálculo das contas nacionais.

A classificação por elementos complementa, por sua vez, a classificação por


categorias econômicas, ao revelar, a um nível mais desagregado, os componentes
responsáveis pelas despesas. Assim, as Despesas Correntes (categoria econômica) inclui as
Despesas de Custeio (subcategoria econômica), as quais, por sua vez, se subdividem em
Pessoal, Material de Consumo, Serviços de Terceiros e Encargos, Diversas Despesas de
Custeio (elementos). Estes podem ainda ser desagregados em subelementos, embora essa
discriminação não seja uma exigência obrigatória da Lei 4320/64 (Giocomoni, 1992:101).
O elemento Pessoal desdobra-se, por exemplo, em Pessoal civil, militar e obrigações
patronais. Serviços de Terceiros e Encargos em Remuneração de Serviços Pessoais e
Outros Serviços e Encargos. Diversas Despesas de Custeio em Sentenças Judiciárias e
Despesas de Exercício Anteriores. E assim por diante para as demais subcategorias. A
importância desse critério é que, além de facilitar o controle contábil dos gastos, tanto a
nível interno como externo, ele propicia a construção de uma série de indicadores de
grande utilidade para a avaliação da situação das finanças governamentais, para a
identificação de seus pontos de estrangulamento e das potencialidades que podem ser
exploradas para melhorar/equilibrar receitas e despesas.

No Quadro 3.2 apresenta-se, de forma sintética, como essas despesas aparecem


dispostas na peça orçamentária, de acordo com essas diversas classificações – categorias e
subcategorias econômicas, elementos e subelementos. O exemplo utilizado é o do
orçamento da União, mas nem todos os desdobramentos da classificação por elementos e
subelementos são neles considerados, servindo apenas para ilustrar sua estrutura.13
Ressalte-se que essas informações podem ser obtidas para cada órgão, departamento ou
ministérios/secretarias de governo e também por objetivos de gastos, de acordo com o
critério funcional. Isso significa que o cruzamento das informações contidas nos diversos
critérios de classificação dos gastos – institucional, funcional e categorias econômicas,
elementos e subelementos – fornece amplo material para balizar análises sobre
desempenho e resultados alcançados pelo governo em seus diversos campos de atuação e
também para avaliar o estado de sua saúde financeira, suas principais vulnerabilidades e as
alternativas mais favoráveis para a correção de eventuais desequilíbrios existentes.

Tão ou mais importante, é que propiciam, também, uma “leitura” não somente dos
setores econômicos mais priorizados no orçamento, em cada época – o setor produtivo,
financeiro etc. – como os que são mais sacrificados, neste processo, para que o Estado
acomode/inscreva seus interesses no orçamento.
13
Para a classificação completa desses componentes, consultar a Lei 4320/64
101

QUADRO 3.2
ORÇAMENTO DA UNIÃO:
Classificação das despesas por categorias econômicas

ESPECIFICAÇÃO CLASSIFICAÇÃO
DESPESAS CORRENTES (1) Categoria Econômica
Despesas de Custeio Subcategoria Econômica
Pessoal Elemento
Pessoal Civil Subelemento
Material de Consumo Elemento
Serviço de Terceiros e Encargos Elemento
Remuneração Serviços Pessoais Subelemento
Diversas Despesas de Custeio Elemento
Sentenças Judiciárias Subelemento
Transferências Correntes Subcategoria Econômica
Transferências Intragovernamentais Elemento
Subvenções Econômicas Subelemento
Transferências a Instituições Privadas Elemento
Subvenções Sociais Subelemento
Transferências Intergovernamentais Elemento
Transferências a Estados e D. Federal Subelemento
Encargos da Dívida Interna Elemento
Juros da Dívida Contratada Subelemento
Encargos da Dívida Externa Elemento
Juros da Dívida Contratada Subelemento
Contribuição p/ o Patrimônio Servidor.Público/Pasep Elemento
Diversas Transferências Correntes Elemento
DESPESAS DE CAPITAL(2) Categoria Econômica
Investimentos Subcategoria Econômica
Obras e Instalações Elemento
Inversões Financeiras Subcategoria Econômica
Aquisição de Imóveis Elemento
Transferências de Capital Subcategoria Econômica
Transferências Intragovernamentais Elemento
Auxílio para Territórios Subelemento
Transferências Intergovernamentais Elemento
Transferências a Estados e Municípios Subelemento
Transferências ao Exterior Elemento
Amortização da Dívida Interna Elemento
Amortização da Dívida Subelemento
Amortização da Dívida Externa Elemento
Amortização da Dívida Subelemento
Diferenças de Câmbio Elemento
Diversas Transferências de Capital Elemento
DESPESAS ORÇ. TOTAL (DOT) = (1+2)
Fonte: Lei 4.320/64

3.2. A evolução dos gastos públicos no Brasil: algumas observações

Não existem estatísticas sobre os gastos públicos no Brasil, considerando as três esferas de
governo, para analisar sua evolução em todas as dimensões aqui tratadas e nem é este o
objetivo deste trabalho. Só a partir de 1947, ano em que começaram a ser calculadas as
contas nacionais, passou-se a contar com dados mais confiáveis sobre os gastos públicos,
mas, ainda assim, as mudanças de metodologias utilizadas para essa mensuração
dificultam avaliações comparativas sobre sua evolução, sendo grande o risco de se incorrer
102

em equívocos.

Diante dessas limitações, essa seção é modesta: dedica-se apenas, com as


informações disponíveis, avaliar a evolução desses gastos, à luz da trajetória conhecida
pela economia brasileira nas várias etapas de seu desenvolvimento e do papel que o Estado
nelas desempenhou, à luz de algumas posições teóricas apresentadas. Seu objetivo,
portanto, restringe-se em detectar essas tendências, conhecendo as limitações dessas
estatísticas.

Com essa perspectiva, desenha um panorama geral da evolução desses gastos,


procurando situá-los nos distintos contextos históricos, e foca a análise de alguns aspectos
importantes da atualidade – composição dos gastos por categorias econômicas e avaliação
das prioridades a eles conferidas, bem como a sua conformação diante da predominância,
no aparelho do Estado, dos interesses do capital financeiro -, restringindo-a apenas aos do
governo federal para o período 1994-2005. Perdem-se, com isso, alguns elementos dessa
evolução, mas para os propósitos deste trabalho, esses não são tão significativos.

3.2.1. A evolução dos gastos públicos nas fases de desenvolvimento da economia


brasileira

Estatísticas recentemente divulgadas pelo IBGE (2006), relacionados no quadro 3.3


mostram terem sido inferiores a 20% do PIB os gastos efetuados pelas três esferas de
governo no Brasil – União, Estados e Municípios -, no período que vai até 1930,
confirmando as tendências que se observavam em nível mundial no sistema capitalista e o
papel não intervencionista do Estado na vida econômica, em consonância com as idéias
preconizadas pelo pensamento liberal. Apenas entre 1907 e 1914 registraram-se gastos das
três esferas de governo, como proporção do PIB próximos deste percentual, com estes
mantendo-se nos anos restantes do período, e mais especialmente durante a Primeira
Guerra Mundial, abaixo dos 15%. Ainda assim, os níveis de arrecadação deste período
foram inferiores aos gastos primários realizados14, indicando a existência de acentuados
desequilíbrios orçamentários nessa etapa.

Como foi visto na parte final do Capítulo I, eram restritas, neste período, as
atividades do Estado na vida econômica e social, não necessitando este, portanto, de contar
com volumes mais significativos de receitas para desempenhá-las. Frágil fiscal e
financeiramente, o Estado que ainda engatinhava no processo de construção de suas bases
materiais, financeiras e institucionais, é prisioneiro das oligarquias regionais e é, sob o
comando destas, que formula e implementa políticas intervencionistas nas áreas de seu
interesse – política cambial, de defesa e proteção do café etc. –, mas muito pouco
imiscuindo-se no mundo dos negócios. Por isso, são mais reduzidas suas necessidades de
receitas, com essas raramente ultrapassando o montante de 15% do PIB.

Com a crise de 1929 e a mudança no comando político do país, que pôs fim à era de
hegemonia da “política dos governadores”, o Estado avançou, a partir daí mais
rapidamente, no processo de construção de suas bases, desprendendo-se dos interesses que
antes tutelavam suas ações e tornando-se mais fortemente intervencionista nos campos
econômico e social.

14
Gastos orçamentários primários excluem as despesas financeiras decorrentes da dívida pública (correção
e juros), referindo-se, portanto, ao que se pode chamar de gastos reais, no sentido de não financeiros.
103

Neste processo, que antecede e posteriormente é avalizado pelas formulações


keynesianas, de acordo com a vertente teórica do pensamento da CEPAL (Comissão de
Estudos Econômicos para a América Latina), cujas principais características foram
discutidas no capítulo I, que delas deriva, o Estado colocou-se como agente impulsionador
e organizador do processo de industrialização, como o agente responsável pelo
alargamento de suas bases, o que lhe conferiu o status de “Estado desenvolvimentista”. A
economia agro-exportadora, dominante no período anterior, cede a liderança, neste
processo, para a industrialização, inaugurando-se um novo padrão de acumulação, que se
liberta, ainda que com limitações, da dependência externa para a obtenção de lucros, e que
passa a ter sua dinâmica determinada pela variável endógena “investimento”.15

O Estado que surge neste contexto necessita para desempenhar suas novas atividades
de contar com volumes bem mais expressivos de receitas para o financiamento do aumento
de suas despesas. Não é isso, entretanto, o que ocorre com as finanças das três esferas de
governo, tendo-se registrado, até 1964, pequenos aumentos da carga tributária e dos gastos
públicos orçamentários dessas administrações, como proporção do PIB. Cabe, diante disso,
a pergunta: por que não se avançou no financiamento tributário, neste período, e de que
alternativas se valeu o Estado para desempenhar seu novo papel?

O aumento da carga tributária esbarrou em problemas tanto de ordem econômica


como política. No campo econômico, o avanço da industrialização não propiciou, de
imediato, a constituição de bases internas à tributação, que permitisse a sua expansão na
dimensão requerida pelo novo papel do Estado, o que seria viabilizado só mais a
médio/longo prazo. No campo político, o pacto populista em que se apoiou o Estado no
período que vai até o início dos anos 1960, impediu a realização de reformas mais
profundas do sistema tributário, já que poderiam provocar descontentamentos e fissuras
nas bases políticas e sociais que o sustentavam.

Diante dessas dificuldades, o Estado lançou mão, como alternativa de financiamento


de suas atividades, das empresas públicas, e criou, em boa medida, fundos vinculados para
garantir recursos para as áreas e setores específicos, à margem do sistema tributário, como
apontam os trabalhos de Prado (1985), Draibe (1985) e Martins (1985). Além disso, fez
uso do instrumento do endividamento e da emissão de moeda para atender suas
necessidades, como se constata pelo exame do Quadro 3.3, neste período, que revela, em
boa parte dos anos, uma carga tributária inferior aos gastos primários realizados.

Tal situação só começaria a ser modificada a partir de 1964, com a realização de um


golpe militar no país, com o qual se fechariam as janelas de negociação e se abririam,
autoritariamente, as portas para os novos donos do poder realizar as reformas instrumentais
do Estado, impondo à sociedade o seu “projeto de nação”. Neste contexto, várias reformas
foram realizadas em pouco tempo – administrativa, tributária, financeira, do mercado de
capitais, entre outras -, permitindo ao Estado recuperar e ampliar sua capacidade de
financiamento não inflacionária e colocar-se em condições de continuar operando como
principal comandante do processo de crescimento do país.

Com finanças revitalizadas e contando, a partir daí, com a dívida pública como
instrumento complementar de financiamento, os gastos públicos conheceram novo
impulso, até mesmo pelo papel mais proeminente que o Estado passou a ocupar na
15
Para estes pontos ver Cardoso de Mello (1998)
104

condução deste processo. Como se percebe no Quadro 3.3, se até 1964 os gastos primários
orçamentários dos três níveis de governo se situaram em torno de 20% do PIB, seu
crescimento foi significativo, a partir daí, atingindo um nível próximo de 25% em 1970, o
qual se manterá, com algumas oscilações, até 1985 – último ano do regime militar –
devido às crises econômicas que conhecerá o país em vários destes subperíodos e à perda
de receitas tributárias em que o Estado incorrerá para favorecer o capital, as altas e médias
rendas da sociedade, destinando-lhes uma série de incentivos, isenções e benefícios fiscais
para garantir sua sustentação com o apoio destes setores/segmentos (Oliveira, 1991).

O envolvimento exacerbado do Estado no processo de acumulação, que ocorreu


durante o regime militar (1964-1985), em detrimento de sua função legitimação, à medida
que as políticas sociais foram relegadas a uma segundo plano, conduziu-o, já na segunda
metade da década de 1970, a se defrontar com um forte desequilíbrio nas contas públicas,
tornando disfuncional o padrão de financiamento estruturado em meados da década de
1960.

Apesar de os níveis da carga tributária contidos no Quadro 3.3 se mostrarem


superiores às despesas primárias dos três níveis de governo, esses números ocultam os
fortes desequilíbrios fiscais deste período, por duas importantes razões: i) parte dos gastos
fiscais do governo federal se encontravam sendo contabilizados no Orçamento Monetário,
do Banco Central, subestimando os seus gastos totais, que apareciam registrados no
Orçamento Geral da União (OGU); ii) os encargos da dívida já haviam conhecido um
significativo crescimento, representando uma fonte importante de desequilíbrio dessas
contas, se considerados os seus resultados nos conceitos operacional ou nominal, como
será visto no Capítulo VI.

Com a economia mundial mergulhando numa prolongada crise econômica, que se


estenderá até a primeira metade da década de 1980, a situação do país se agravaria, ao ser
castigado também pelos efeitos da crise da dívida externa, em 1982, obrigando-o a
promover sucessivos processos de ajustes recessivos, o que conduzirá o Estado
burocrático-autoritário a perder o apoio de suas bases políticas de sustentação e,
finalmente, à sua queda e substituição, em 1985, por um novo governo civil.

Na verdade, é no elevado endividamento externo, exacerbado com os investimentos


do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), do Governo Geisel (1974-1978), que se
encontra a raiz dos problemas que conduziram à crise do Estado desenvolvimentista e à
progressiva perda de apoio do governo militar, em decorrência dos ajustamentos, de
conteúdo recessivo, que este optou por realizar na década de 1980.

A crise da dívida externa, que já dava sinais evidentes de eclosão no final de década
de 1970, terminou ganhando forças com o “2º choque do petróleo”, em 1979, e com a forte
elevação dos juros norte-americanos, em 1980, que praticamente triplicaram, aumentando
acentuadamente os desequilíbrios da balança de pagamentos dos países endividados,
notadamente dos subdesenvolvidos, exigindo ajustamentos em suas economia, via
contração da demanda agregada.

A crise da dívida externa, em 1982, agravou essa situação, com a exaustão das fontes
externas de financiamento da economia e fez o mundo capitalista mergulhar numa
prolongada recessão, incluindo o Brasil, que também optou por trilhar esse caminho, da
qual só começaria a sair em 1984/85. Três anos seguidos de aguda crise econômica foram
105

suficientes para acabar de minar as bases do autoritarismo, no Brasil, e, em 1985, depois de


vinte anos de domínio do Estado autoritário-burocrático, o poder se transferiria para um
governo civil.

O novo governo que assumiu em 1985, cujo mandato se estende até 1989,
imprimiria, para atender demandas sociais reprimidas, durante o regime militar, uma
expressiva elevação dos gastos orçamentários primários, como se constata no Quadro 3.3,
mesmo numa situação de redução da carga tributária, devido à crise econômica que
enfrentava o país, do estreitamento das bases de tributação, dado o aumento do peso das
exportações na formação do produto nacional, já que essas são praticamente isentas da
incidência de impostos, e da instabilidade monetária que marcou a segunda metade dessa
década no Brasil.

Os resultados desses anos de transição de um governo militar para um governo civil


democraticamente eleito, em que os gastos públicos correram “soltos”, foram a geração de
elevados e gigantescos déficits do setor público, acompanhados de uma considerável
elevação da relação Dívida Líquida do Setor Público/PIB, que ultrapassou a casa dos 50%,
e a manutenção da economia numa permanente situação de instabilidade, prestes a
ingressar, a qualquer momento, num processo de hiperinflação. Neste cenário, que marca o
ocaso do Estado desenvolvimentista, cuja crise já se tornara evidente desde o início dos
anos 1980, é que começam a ganhar força e apoio, as propostas do pensamento neoliberal
de redução do papel do Estado na economia, consubstanciadas no decálogo do Consenso
de Washington, de 1989. Aderindo ao seu receituário, os governos que assumirão o
comando do país, a partir de 1990, darão uma nova conformação ao Estado no país, mas
nem por isso, ironicamente, os gastos públicos, como proporção do PIB, deixarão de
manter-se numa trajetória de contínuo crescimento.

O conteúdo da política econômica que passou a ser implementada a partir deste


período – e que permanece até os dias atuais – tem expressado, com pequenas variações e
ênfases diferenciadas em um ou outro aspecto – as recomendações do pensamento
ortodoxo: saneamento financeiro do Estado, com retirada gradual de seu papel na oferta de
políticas de cunho social e regional, juntamente com o deslocamento de suas prioridades
para garantir o pagamento da dívida pública e de seus encargos financeiros, por meio da
geração de elevados e crescentes superávits fiscais.

Nessa nova equação, o Estado desenvolvimentista viu-se substituído por um Estado


rentista, dado a prioridade conferida ao ajuste fiscal, à sustentabilidade da dívida e à
manutenção de elevadas taxas de juros para manter sob controle a demanda e garantir
fontes de financiamento público. Com isso, enfraqueceram-se os recursos destinados para
os investimentos públicos e as políticas sociais, com as últimas só conseguindo se
sustentar, paradoxalmente, pela natureza do ajuste implementado, que fez do aumento da
carga tributária e, principalmente das contribuições sociais, seu instrumento preferencial.

É este fato que explica por que, mesmo sendo fiéis, ainda que com algumas
diferenças, aos postulados da doutrina neoliberal, os governos Collor (1990-1992), Itamar
Franco (1992-1994), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e, posteriormente, Luiz
Inácio Lula da Silva (2003-...), não conseguiram reverter a trajetória de crescimento dos
gastos orçamentários, o que exigiu uma elevação contínua da carga tributária para seu
financiamento, contrariando a tese de encolhimento do Estado. De fato, como mostra a
tabela 3.3, depois de atingirem 29% do PIB em 1989, esses gastos ultrapassaram a casa
106

dos 30% já a partir de 1990 e fecharam a década em torno de 35-36% do PIB, sendo
sustentados, em parte, por expressivos aumentos da carga tributária e, em boa medida, pelo
aumento do endividamento público.

Este comportamento dos gastos representa um paradoxo no corpo da nova doutrina e


pode colocar dúvidas sobre as verdadeiras intenções dos governantes a respeito de seu
comprometimento com seus postulados. Em várias questões essas dúvidas não existem: foi
nestes governos que se promoveu a abertura rápida da economia, deu-se início à venda das
empresas estatais, inclusive altamente lucrativas, para o setor privado, a preços de
liquidação, avançou-se no desmonte definitivo do Estado desenvolvimentista, reformando
e renovando as estruturas do aparelho estatal para torná-lo eficiente e responsável
fiscalmente, tudo bem de acordo com as propostas neoliberais, que vêem essas ações como
indispensáveis para remover os obstáculos que barram o reencontro da economia com o
crescimento e a estabilidade monetária. Como entender que esses governos que tanto se
empenharam – e têm se empenhado – em seguir essa cartilha tenham fracassado, pelo
menos até 2006, no propósito de reduzir o tamanho de seus gastos, os quais continuam em
trajetória de elevação?

Para entender isso, e essa história será contada de forma sintética, é possível começar
afirmando que isso tem acontecido porque caíram numa armadilha, da qual ainda não
conseguiram se libertar, ao adotarem um padrão de ajuste das contas públicas, atendendo
às exigências de compromissos com maior responsabilidade fiscal e com a sustentabilidade
da dívida pública, o qual carrega uma contradição intrínseca: apoiado predominantemente
no aumento da carga tributária, visando garantir as receitas adicionais para a geração de
superávits primários, indispensáveis para manter a relação dívida/PIB sob controle, este
aumento termina garantindo, também, a elevação dos gastos, por contarem os impostos e,
principalmente as contribuições sociais, com normas legais e constitucionais que
garantem boa parte de sua arrecadação (cerca de 80%) para determinados beneficiários
(estados e municípios) e para o financiamento de determinadas áreas sociais.

Neste caso, o governo ao aumentar as receitas, visando garantir ganhos adicionais


para o pagamento dos juros da dívida, coloca em movimento mecanismos de ampliação de
transferências intergovernamentais para estados e municípios e de outros gastos correntes
para diversas áreas sociais (educação, saúde, assistência, previdência, combate à pobreza),
dada essa vinculação, em desacordo com o ajuste pretendido e com o receituário
neoliberal, à medida que esse movimento termina alimentando o próprio crescimento do
Estado.

Não sem razão têm ganhado força, neste processo, propostas de reformas que
contemplam ou priorizam a desvinculação das receitas com esses gastos. Se aprovadas,
essa armadilha poderá ser desfeita, o ajuste e a redução da relação Dívida/PIB poderão ser
alcançados, e o Estado e as políticas sociais finalmente enquadradas no receituário
neoliberal, o qual tem, como diretrizes, o predomínio e a soberania do mercado. Neste
caso, em que políticas essenciais para o desenvolvimento correm o risco de ser
fragilizadas, quando não abandonadas, para garantir o ajuste fiscal e o compromisso com o
objetivo de sustentabilidade da dívida, o Estado poderá estar se enfraquecendo enquanto
agente responsável por garantir a coesão social necessária para a reprodução do sistema.

As conseqüências de todo este processo – grau de vinculação das receitas,


enrijecimento orçamentário, necessidade de geração de superávits primários fiscais para o
107

pagamento dos juros da dívida etc. – para os investimentos públicos, as políticas sociais, o
crescimento econômico e para o próprio processo orçamentário, são analisadas, em
seguidas, tendo como foco a estrutura de gastos apenas do governo federal, para o período
de 1994-2007, quando o compromisso com o ajuste fiscal tornou-se prioridade absoluta.

Quadro 3.3
Evolução das Despesas Primárias e da Carga Tributária das três esferas de governo
1948-1999

Fases Desenvolvimento/ Anos e Despesas Carga


Características médias de Primárias/ Tributária
Períodos PIB (%)* Bruta
(% do PIB)**
1900-1905 13,98 12,59
ª 1906-1910 17,40 12,41
1 República
Estado liberal e economia agroexportadora 1911-1915 19,14 11,14
(1889-1930) 1916-1920 11,30 7,00
1921-1925 11,57 7,53
1926-1930 13,12 8,89
1931-1935 15,32 10,23
Estado Desenvolvimentista e Industrialização: 1936-1940 16,25 12,50
1ª fase: 1930-1964 1941-1945 14,91 12,71
1946-1950 16,98 13,88
1951-1955 18,78 15,44
1956-1960 20,38 17,42
1961-1965 21,02 16,98
1966-1970 23,86 23,99
Estado Desenvolvimentista e Autoritarismo: 1971-1975 22,46 25,31
2ª fase: 1964-1985 1976-1980 22,52 25,10
1981-1985 23,14 25,25
Transição Democrática
e Constituição de 1988: 1986-1990 27,55 25,15
1985-1989
1991-1995 32,63 26,99
1996 33,93 28,63
Crise Fiscal, Globalização e Ajustes: 1997 33,25 28,58
1990-(...) 1998 36,00 29,33
1999 35,81 31,74
2000 - 32,74
Fonte primária dos dados: IBGE. Estatísticas do Século XX. Rio de Janeiro, FIBGE, 2006. Elaboração do
autor.
(*) Exclui despesas com juros e encargos da dívida e empresas estatais
(**) Inclui as três esferas de governo

3.2.2. Os gastos federais e sua finalidade

Não causa surpresa, diante dessa nova configuração da política fiscal, que a estrutura dos
gastos do governo federal revele, no período 1994-2007, expressiva mudança na sua
composição, registrando perda crescente de participação dos “investimentos públicos” e
contínuo avanço das despesas com “juros e encargos da dívida”, com “benefícios
previdenciários” e com as “transferências para estados e municípios”.

Como mostra a tabela 3.3, o aumento da participação das “despesas correntes”, na


despesa total, de 66%, em 1994, para 83%, em 2007, explica-se pelo crescimento da
108

participação relativa dos gastos com “juros e encargos” em mais de cinco pontos
percentuais, nessa estrutura, neste período, de seis pontos dos gastos com “benefícios
previdenciários” e também de seis pontos percentuais a mais das “despesas com
transferências” realizadas para os governos subnacionais – estados e municípios.

Tabela 3.3.
Composição da Despesa Liquidada do Governo Federal: 1994/2005
(em %)
1994 1998 1999 2001 2003 2005 2006 2007
Grupo de Despesa
Despesas Correntes 66,2 65,7 71,5 76,6 77,8 85,4 79,0 83,1
Pessoal e Encargos Sociais 17,2 15,8 16,2 17,1 16,0 15,5 13,4 14,7
Juros e Encargos da Dívida 9,3 10,2 14,2 13,8 13,3 14,8 18,9 17,7
Outras Despesas Correntes 39,7 39,7 41,1 45,7 48,5 55,1 46,7 50,7
Transf. a Estados e Municípios 11,4 12,4 13,1 15,6 16,3 19,4 15,9 17,3
Benefícios Previdenciários 16,1 17,6 18,2 19,5 22,0 23,5 20,3 22,5
Demais Despesas Correntes 12,2 9,7 9,8 10,6 10,2 12,2 10,5 10,9
Despesas de Capital 33,8 34,3 28,5 23,4 22,2 14,6 21,0 16,9
Investimentos 3,6 2,7 2,2 3,8 1,3 2,9 2,3 1,3
Inversões Financeiras 5,4 23,5 17,8 5,3 4,8 3,6 3,3 3,4
Amortização da Dívida* 24,7 8,0 8,5 14,3 16,1 8,1 15,4 12,2
Outras Despesas de Capital 0,1 0,1 - - - - - -
Total* 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte primária dos dados: Tesouro Nacional/Ministério da Fazenda. Elaboração do autor.
(*) Exclui refinanciamento da dívida

Como os demais componentes das “despesas correntes” (pessoal e encargos sociais


e outras despesas correntes) não foram suficientemente reduzidos para acomodar o
aumento relativo verificado nestes gastos, o seu avanço na estrutura orçamentária só tem
sido possível com o aumento da carga tributária combinado com a redução das “despesas
de capital”, estreitando-se o espaço no orçamento para este tipo de gasto do governo
federal. De fato, tendo representado, em 1994, 34% dos gastos orçamentários, as “despesas
de capital” ingressaram, a partir daí, numa trajetória de declínio, atingindo 16,9% em 2007,
após terem esboçado uma recuperação em 2006. Este processo evidencia a perda de
capacidade do governo de garantir a oferta de infra-estrutura econômica adequada para o
crescimento sustentado, com os gastos em “investimentos”, que tiveram sua participação
relativa reduzida em mais de 60% no total de gastos entre 1994 e 2007, depois de
conhecerem uma recuperação entre 2004 e 2005. Cabe notar que, em 2007, os gastos com
juros e amortização da dívida (excluída a parcela de seu refinanciamento) comprometera
27% do total dos gastos orçamentários, confirmando o significativo espaço nele ocupado
pelo capital financeiro.

Entre as “leituras” que podem ser feitas sobre as mudanças na composição dessa
estrutura é a de que o avanço no espaço orçamentário dos ganhos do capital financeiro com
a dívida pública, resultado da política econômica de elevadas taxas de juros, que se
acentuaram com o Plano Real, combinado com o crescimento de algumas despesas
obrigatórias – benefícios previdenciários e transferências para estados e municípios – têm
restringido, crescentemente, a capacidade de oferta do Estado de políticas essenciais para o
desenvolvimento, principalmente por exigirem o sacrifício dos investimentos. Capturado
por estes interesses, o orçamento enfraqueceu-se como instrumento de planejamento e dos
gastos públicos como propulsores do crescimento, esterilizando, com o peso dos custos
109

financeiros da dívida, em sua estrutura, parcela significativa dos impostos arrecadados da


sociedade para o financiamento de seus gastos.

A pergunta que se procura responder em seguida é a seguinte: ainda que reduzidos


proporcionalmente, os recursos do orçamento que são destinados para o financiamento das
políticas sociais atendem ao objetivo de contribuir para a redução das desigualdades
interpessoais de renda? Essa questão é relevante, considerando que, diante da configuração
anti-redistributiva postulada para a política tributária no processo de globalização, cujo
conteúdo é examinado no próximo capítulo, a responsabilidade pelo cumprimento deste
papel (de redução das disparidades sociais) tem sido atribuída, pelos teóricos do novo
modelo de desenvolvimento do capitalismo, exclusivamente aos gastos públicos, à medida
que se considera que os impostos, pelas distorções que acarretam na alocação de recursos
na economia e na questão da competitividade, não devem ser utilizados para essa
finalidade.

3.2.3. Gastos federais e desigualdades: redistribuição às avessas?16

Como instrumento de redução das desigualdades sociais, o gasto público federal,


no Brasil, encontra-se longe de cumprir esse papel, o que, como visto anteriormente, deve
representar um objetivo a ser alcançado, para as finanças públicas, numa estrutura “ideal”
de gastos realizados pelo Estado. Estudo realizado pela Secretaria de Política Econômica,
do Ministério da Fazenda, em 2005, reconhecia que “a ação do Estado [...] é, ainda, pouco
eficaz em reduzir a desigualdade de renda. [E] enquanto nos demais países combinam-se
políticas universais com políticas específicas de modo que uma fração das transferências
líquidas de recursos públicos seja destinada aos grupos de menor renda, no Brasil as
transferências líquidas essencialmente preservam a desigualdade de renda. Isso significa
que um montante maior de recurso per capita é destinado aos grupos de maior renda.”
(SPE/MF, 2005:1)

Contrária aos objetivos do crescimento, porque priorizando crescentemente os


interesses do capital financeiro, a estrutura de gastos do governo federal opera, também,
como um instrumento que contribui para as desigualdades de renda no país, reforçando o
perfil altamente regressivo do sistema tributário. Vejamos a razão disso.

A tabela 3.4, extraída do estudo da SPE (2005), apresenta a estrutura do gasto


social do governo federal para o período 2001-2004. Como se percebe, 3/5 (60%) destes
gastos referem-se, em 2004, à cobertura de benefícios da previdência social, 11,6% à
saúde, 5,6% à assistência social, 4,4% à educação e cultura e 3,8% aos programas de
proteção ao trabalhador. Programas como os de organização agrária e habitação e
saneamento absorveram, cada um, apenas 0,6% do total, cabendo aos programas de
benefícios ao servidor público e ao sistema “S” cerca de 1,3%.

Não é preciso muito esforço para concluir, como se faz neste estudo, ser esse
padrão de gasto inadequado para melhorar a estrutura da distribuição de renda no país.
Absorvendo 60% do total dos gastos, grande parcela dos benefícios previdenciários, como
se aponta neste trabalho (2005), é apropriada por pessoas que se encontram nos grupos de
renda mais alta. O que se explica pelas desigualdades existentes no mercado de trabalho,
que favorece com maiores salários e, consequentemente, com maiores valores de
16
A análise que se segue apóia-se predominantemente no trabalho da Secretaria de Política Econômica do
Ministério da Fazenda “Orçamento Social no Brasil”, divulgado pelo governo em 2005.
110

aposentadorias, as camadas de renda mais favorecidas da população, que possuem


melhores condições de estudo, de preparação/aprendizado e de emprego. A maior
expectativa de vida desses grupos vis-à-vis os mais pobres, garante-lhe, também, desfrutar
por um tempo mais longo desses benefícios, pressionando os gastos previdenciários no
tempo. O argumento de que esse grupo contribui com valores mais elevados não se
justifica, neste caso, à medida que boa parte do benefício é financiada pelo conjunto da
sociedade, já que no caso da contribuição patronal seu custo é transferido para os preços
dos produtos das empresas e, no caso da do governo, coberta com impostos gerais. Um
típico caso de concentração de benefícios e difusão de custos, tornando a Previdência
também um instrumento que contribui para reforçar a má distribuição de renda no país.17

Tabela 3.4
Orçamento Social do Governo Federal
2001-2004
Componentes do Gasto 2001 2002 2003 2004
Social Federal % PIB % no % PIB % no % PIB % no % PIB % no
total total total total
Gasto Direto 13,3 83,6 13,6 90,0 13,8 90,8 14,2 88,8
Previdência Social 8,8 55,3 9,1 60,3 9,4 61,8 9,6 60,0
Saúde 1,8 11,3 1,8 11,9 1,7 11,2 1,8 11,2
Assistência Social 0,7 4,4 0,8 5,3 0,8 5,3 0,9 5,6
Educação e Cultura 0,7 4,4 0,7 4,6 0,7 4,6 0,7 4,4
Proteção ao trabalhador 0,6 3,7 0,6 3,9 0,6 3,9 0,6 3,8
Organização Agrária 0,1 0,6 0,1 0,7 0,1 0,7 0,1 0,6
Habitação e saneamento 0,2 1,3 0,1 0,7 0,1 0,7 0,1 0,6
Benefícios ao servidor 0,2 1,3 0,2 1,3 0,2 1,3 0,2 1,3
Sistema “S” 0,2 1,3 0,2 1,3 0,2 1,3 0,2 1,3
Outros* 2,6 16,4 1,5 10,0 1,4 9,2 1,9 11,2
Total 15,9 100,0 15,1 100,0 15,2 100,0 16,0 100,0
Fonte primária dos dados: Secretaria de Política Econômica/MF (2005). Elaboração do autor.
(*) Inclui: i) renúncias tributárias; ii) empréstimos; iii) subsídios implícitos; iv) ajuste patrimonial.

O oposto ocorre na área da Assistência social a qual, pelas características


predominantes de seus beneficiários, considera-se dotada de forte poder redistributivo, já
que seus programas têm, como objetivo, igualar/reduzir diferenças no acesso de
oportunidades da população e garantir algum tipo de proteção social para idosos,
deficientes físicos e para outros grupos que dela também necessitam. O programa “Bolsa-
Família”, que absorveu perto de 30% dos recursos destinados para essa área, em 2004,
constitui um bom exemplo deste poder redistributivo, à medida que se estima que mais de
80% de seu gasto seja apropriado pelo grupo dos 40% mais pobres da população. A
ampliação que conheceu este programa a partir do governo Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-...), que aumentou o número de famílias com ele beneficiadas de cinco milhões em
2002 para 11,1 milhões em 2006 – cerca de 25% da população brasileira – e para R$ 10
bilhões os recursos a eles destinado no orçamento, contribuiu para reforçar o poder

17
Os benefícios previdenciários para as camadas de menor renda, especialmente os vinculados à
assistência social, têm sido apontados como importante fonte de renda principalmente para as localidades
e regiões mais pobres do país e como instrumento de redistribuição de renda e de diminuição da pobreza.
Embora positivos neste sentido, o efeito conjunto de seus resultados não permite endossar posições
otimistas sobre sua capacidade de modificar para melhor a equação da distribuição de renda apenas por
garantir algum nível mínimo de rendimentos diretos para essa faixa da população.
111

redistributivo dos programas sociais do governo e retirar um contingente nada desprezível


da população da condição de pobreza. Do ponto de vista da redução das desigualdades, os
resultados alcançados, embora positivos, têm sido acanhados, tanto que o Índice de Gini
que em 1986 foi de 0,588 conheceu uma apreciável piora na década de 1990 para só voltar
a declinar a partir de 1999: tendo retornado ao nível de 0,589 em 2002 ingressou numa
trajetória de persistente queda a partir de 2003, atingindo 0,556 em 2007, mas ainda
deixando o Brasil bem situado no ranking dos países com maior desigualdade na
distribuição de renda no mundo.18

O mesmo não se verifica, pelo menos com essa intensidade, no programa de


proteção do trabalhador, que tem como principais subprogramas o Seguro-Desemprego e o
Abono Salarial, os quais, apesar de desenhados para beneficiar os trabalhadores de mais
baixa renda, têm seus recursos distribuídos de forma aproximadamente proporcional entre
as diversas classes de renda. Como são programas de natureza contributiva, ou seja, que
exigem, para seu recebimento, o pagamento de contribuições por parte do beneficiário,
deles são excluídos os trabalhadores do setor informal, que compõem, em sua maioria, a
base da distribuição de renda no país.

No caso da educação, os programas de ensino público mais favoráveis aos grupos


mais pobres são os da pré-escola e do ensino fundamental, enquanto no ensino superior
quase 50% dos estudantes se encontram no topo da distribuição de renda. Todavia,
enquanto o ensino fundamental recebeu 15% dos recursos destinados a essa área, em 2004,
o ensino superior respondeu por cerca de 55% do total dos gastos realizados.

Em se tratando da saúde, embora não existam estimativas sobre o seu poder


redistributivo, é necessário considerar, nessa avaliação, que gastos elevados do SUS são
realizados com a cobertura de tratamentos de tipos de doenças que exigem aparelhos
sofisticados e de alta complexidade, mais comuns na população idosa, que é composta, em
boa medida, por pessoas que figuram no topo de distribuição de renda, até mesmo pela
maior expectativa de vida que este grupo possui.

Embora importantes para a questão distributiva, os reduzidos gastos do governo


federal com habitação e saneamento e organização agrária, políticas que não possuem
proteção legal no orçamento, estando por isso sujeita a contingenciamento de seus gastos
sempre que estes se tornam necessários, não permitem vislumbrar impactos e mudanças
significativas na estrutura da distribuição de renda no país.

Não surpreende, diante disso, que uma importante conclusão do trabalho tenha sido
a de que essa situação “realça a importância de se prosseguir com o debate sobre o papel
do orçamento social no Brasil e sobre reformas que possam elevar sua eficiência e eficácia
na redução da pobreza e das desigualdades sociais.” (Cf. SPE/MF, 2005:1).

4. O ESTADO DO CAPITAL: DA PRODUÇÃO AO RENTISMO


18
Dados extraídos do Ipeadata. O Índice de Gini mede o grau de distribuição da renda e da riqueza,
variando entre 0 e 1: quanto mais próximo de 1maior o nível de concentração da renda e, inversamente,
quanto mais próximo de 0 melhor a distribuição. O Índice, contudo, pode não ser capaz de revelar a
desigualdade existente, subestimando-a, pois a renda dos mais ricos, principalmente as originárias de
aplicações financeiras e de exploração da propriedade (aluguéis) costuma ser subdeclarada ou mesmo não
declarada. Como têm sido exatamente as aplicações financeiras que mais têm se beneficiado da política
de elevadas taxas de juros adotada no Brasil desde a década de 1990, os resultados do índice podem estar
distorcidos por essa razão.
112

Constitui característica dos países subdesenvolvidos, como apontam Salama e Mathias


(1983:9-11), priorizarem mais as intervenções no setor produtivo, objetivando avançar no
processo de constituição das forças produtivas do que na reprodução da força de trabalho
(esta, também, integrante da função acumulação, na classificação de O’Connor) e na
diminuição dos excluídos do sistema (função legitimação), como se verifica nos países
desenvolvidos, onde aquelas, por já se encontrarem devidamente constituídas, exigem
menos de suas ações neste campo.

No Brasil, o Estado desenvolvimentista que brotou da crise de 1930 e legitimou


suas ações, nos planos teórico e intelectual, com as idéias keynesianas/cepalinas,
empreendeu um gigantesco esforço para construir as bases materiais do sistema e
alavancar o processo de desenvolvimento, intervindo fortemente na esfera produtiva, via
participação de empresas estatais em vários setores da atividade econômica e da
implementação de políticas econômicas destinadas a estimular e incentivar o investimento
privado, tendo muito pouco se dedicado a realizar esforços para garantir a reprodução da
força de trabalho e promover políticas de inclusão social, no longo período de seu domínio,
que se estende até o final da década de 1980.

A prioridade conferida à acumulação, justificada pelo baixo nível de


desenvolvimento das forças produtivas e pela necessidade de garantir seu avanço, como
condição para libertar o país da situação de atraso econômico, desemprego e pobreza da
população, impediu que nele se construísse um Estado do bem-estar, nos moldes dos
países desenvolvidos, onde este já se tornara uma realidade, influenciado pelos laços de
solidariedade que se fortaleceram após o término da Segunda Guerra Mundial e que
encontraram, na teoria keynesiana, justificativa teórica.

Embora o Brasil tenha dado passos importantes nessa direção desde a década de
1940, no campo dos direitos trabalhistas e previdenciários, esforços que foram ampliados
com as reformas realizadas na década de 1960, as quais aumentaram a capacidade de
financiamento do Estado, esses avanços, vistos em conjunto, ficaram longe de configurar
um Estado de bem-estar, com as necessidades da acumulação continuando a exigir e a
absorver a maior fatia dos recursos e receitas que transitavam pelo orçamento público, via
incentivos, isenções, benefícios fiscais, subsídios creditícios e pesados investimentos nas
áreas de infra-estrutura e da indústria de base. A ênfase no setor produtivo, em detrimento
de gastos em áreas sociais (incluindo as necessárias para a reprodução da força de
trabalho), permitiu ao país a construção de suas bases econômicas, mas reforçou e ampliou
desigualdades já acentuadas de renda – interpessoais e inter-regionais -, e aumentou os
níveis de pobreza, colocando-o entre os campeões no mundo capitalista nestes quesitos.

Com o fim do regime militar, em 1985, e sua substituição por um governo civil,
demandas reprimidas por políticas de inclusão social procuraram ser atendidas na nova
Constituição promulgada em 1988, principalmente com a destinação de maiores recursos
para o financiamento das áreas contempladas na Seguridade Social – saúde, previdência e
assistência. Este objetivo, que poderia promover uma mudança nas prioridades do Estado,
finalmente ao dedicar maior atenção a este campo, terminou, contudo, sendo
comprometido por duas razões que merecem ser repisadas.

A primeira refere-se ao inconsistente arranjo financeiro que foi estruturado para o


seu financiamento, apoiado principalmente em contribuições sociais e descolado de um
113

projeto de redistribuição de encargos entre os entes da federação brasileira. Como o


governo federal inicialmente perdeu receitas para estados e municípios com a
descentralização tributária promovida, tal situação, diante da ampliação de suas
responsabilidades no atendimento das demandas sociais, levou-o a adotar um padrão de
ajuste fiscal, inclusive com mecanismos de desvinculação de receitas para as áreas sociais
que, em pouco tempo, conduziu à “implosão do conceito de Seguridade Social”, nas
palavras de Rezende (2004), enfraquecendo suas bases de financiamento.

A segunda – mais importante – deve-se ao fato de o país, tendo aderido, a partir da


década de 1990, ao receituário neoliberal, ter se comprometido em retirar ou reduzir o
papel do Estado de seu compromisso com a oferta de políticas públicas e de inscrever,
entre suas obrigações no orçamento, a garantia de pagamento da remuneração do capital
financeiro. Tornado sagrado, o pagamento dos juros da dívida passou a ocupar um espaço
crescente no orçamento, como mostram os dados apresentados para o governo federal na
seção anterior, expulsando, gradativamente, entre os seus beneficiários, as políticas sociais
e os gastos com investimentos públicos. Programas como o “Bolsa-Família”, que têm
contribuído para reduzir os níveis de pobreza e indigência e mesmo a estrutura da
distribuição de renda, embora tenha ganhado mais espaço no orçamento, os recursos para
ele destinados ainda continuam muito limitados (algo próximo a 1% de seus recursos) para
não comprometer os compromissos assumidos com o pagamento dos juros da dívida e não
contrariar, como decorrência, os interesses do capital financeiro.

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Capital no Brasil. Belo Horizonte, Editora Oficina de Livros;

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um estudo sobre o setor público descentralizado. Campinas, IE/Unicamp (Dissertação
de Mestrado);

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Brasil. Brasília, SPE/MF;

18. Rezende, F. (1977). Finanças Públicas. São Paulo: Editora Atlas.

19. Rezende, F. (2004). Reforma tributária, federalismo fiscal e desenvolvimento regional.


Brasília, ms.
115

CAPÍTULO IV

AS RECEITAS PÚBLICAS:

CLASSIFICAÇÃO, CONCEITOS E DETERMINANTES

DA CARGA TRIBUTÁRIA E DE SUA DISTRIBUIÇÃO

Fabrício Augusto de Oliveira


116

1. INTRODUÇÃO

O governo financia os seus gastos orçamentários predominantemente por meio da


cobrança de tributos. Complementarmente, pode lançar mão da contratação de dívida, sob
a forma de títulos e contratos, quando a arrecadação se revela insuficiente para cobrir seus
gastos ou para financiar projetos e programas que não contam com dotações
orçamentárias. Neste capítulo, analisa-se o primeiro componente – a tributação -, com
ênfase nos seus aspectos conceituais, nos seus determinantes e na sua composição. Pela
sua importância e suas implicações macroeconômicas, a dívida pública é tratada
separadamente no capítulo VI.19

Assim como ocorre com os gastos que podem impactar positiva ou


negativamente o crescimento e a distribuição, também a tributação afeta a economia e a
posição dos agentes econômicos nessa estrutura. Ao extrair recursos do setor privado
para financiar os seus gastos, o Estado pode modificar a equação da distribuição de
renda, que poderá melhorar, caso seu maior ônus seja lançado sobre as rendas mais
altas, ou piorar, caso ocorra o contrário. São várias as combinações possíveis relativas
ao mix de impostos que podem ser feitas e diversos os impactos que delas podem
resultar para essas questões, assim como são vários os argumentos teóricos utilizados
para justificar a opção feita por uma delas.

Para conhecer os argumentos teóricos utilizados para justificar essa escolha, bem
como as próprias limitações historicamente colocadas pelo próprio sistema tributário a
este processo, torna-se necessário apreender e esclarecer a natureza e características dos
impostos e também analisar, criticamente, as recomendações feitas pela teoria
convencional para a construção de sistemas “ideais”, à luz dessas características e dos
princípios que defende para o que considera uma desejável estrutura de tributação.
Conhecidas essas características e as limitações que a teoria enfrenta para materializar
este objetivo, abre-se o caminho para a apresentação de uma proposta alternativa com
vistas a identificar os determinantes do tamanho e da composição da carga tributária,
procurando-se resgatar e enfatizar a historicidade de suas estruturas.

2. AS RECEITAS NO ORÇAMENTO

Tal como aparecem no orçamento, as receitas de que o Estado lança mão para financiar
os seus gastos, não se restringem às que são recolhidas por meio da cobrança de tributos
e de contribuições sociais e econômicas. Além dessas, conta com receitas oriundas: i) da
exploração de atividades econômicas por seus órgãos e unidades orçamentárias,
classificadas como receitas agropecuária, industrial e de serviços; ii) da exploração de
seu patrimônio, na forma de juros, aluguéis e dividendos (receitas patrimoniais); iii) das

19
Como senhor da moeda conta, também, com a receita de seignoriage (senhoriagem) para financiá-lo,
obtida por meio da colocação de base monetária no sistema necessária para viabilizar os processos de
troca, da produção, do consumo e dos investimentos. Independentemente de a moeda emitida ser ou não
considerada passivo do governo, o que leva a diferentes conceitos de senhoriagem, há concordância de
que ao introduzi-la no sistema por meio dos canais com que conta para isso (mercado de títulos, de
câmbio, compras governamentais) aquele financia parte de seus gastos com essa receita.. No primeiro
caso, em que se considera que a moeda em circulação não constitui um passivo, o governo se apropria de
parte da riqueza do setor privado com a sua emissão; no segundo, em que a moeda é considerada um
passivo, essa apropriação ocorre porque esse passivo não paga juros. Este tema será retomado no Capítulo
V, mas para uma boa discussão de seus conceitos e implicações vale a pena ver o trabalho de Jaloretto
(2007).
117

transferências que recebe de pessoas jurídicas, físicas e também de outras unidades de


governo (transferências correntes e de capital); iv) da venda de seu patrimônio
(alienação de bens); e v) da dívida contratada, que aparece contabilizada, no orçamento,
como operações de crédito, que é analisada com maiores detalhes no capítulo VI.

Para os objetivos deste trabalho, a análise que se segue centra-se na investigação


dos componentes de financiamento compreendidos pelas receitas tributárias e de
contribuições, por algumas razões que devem ser ressaltadas: i) são elas que representam,
de fato, ônus monetário direto para a sociedade, já que as demais derivam diretamente da
exploração de atividades econômicas e de seu patrimônio, incluindo a sua venda, pelo
Estado ou de transferências recebidas, cujo ônus já se encontram contabilizados por outras
unidades de governo ou não representam custos para a sociedade, se realizadas por pessoas
físicas ou jurídicas; ii) no caso da dívida, embora esta se transforme no imposto de amanhã
e, portanto, em ônus futuro, a análise de suas características e implicações
macroeconômicas é feita de maneira mais detalhada no capítulo VI. O conjunto das
receitas de tributos e contribuições compõe o que é definido, nas finanças públicas, como
Carga Tributária.

3. A CARGA TRIBUTÁRIA

3.1. Conceituação

Conceitualmente, a Carga Tributária é um indicador que expressa a relação entre o volume


de recursos, que o Estado extrai da sociedade para financiar as atividades que se encontram
sob sua responsabilidade, e o produto ou a renda nacional de um determinado país.20 Visto
dessa maneira, este indicador é obtido através da seguinte fórmula:

Carga Tributária (Ct) = Tributos/(PIB,PNB)

Essas atividades, entretanto, são diversas e podem envolver desde as tarefas


vinculadas às funções básicas do Estado - primordialmente financiadas através de tributos -
às decorrentes de seu papel de avalista ou administrador de determinados contratos - como
o da Previdência Social, por exemplo - ou ainda de mobilizador de recursos para viabilizar
atividades consideradas relevantes do ponto de vista econômico e social. Existem, ainda,
no Brasil, outros tipos de contribuições – sociais e econômicas - que apresentam
características semelhantes às dos tributos, cuja receita é destinada para o financiamento de
uma despesa específica. Em todos esses casos, as contribuições são também consideradas
na medição da Carga Tributária, pois também constituem prestações pecuniárias de caráter
compulsório instituídas em lei e cobradas mediante atividade administrativa plenamente
vinculada (artigo 3º do Código Tributário Nacional), implicando extração de recursos da
sociedade, embora o Estado atue, em alguns casos, apenas como intermediário deste
processo.

É por essa razão que a mensuração da Carga Tributária no Brasil considera,


segundo Afonso & Vilela (1991), "... tanto a receita de impostos, taxas e contribuições de
melhoria como [...] as receitas provenientes da cobrança de contribuições (para financiar a

20
No caso da renda transferida para o exterior ser inexpressiva não faz muita diferença usar o Produto
Interno Bruto (PIB) ou o Produto Nacional Bruto (PNB) para estabelecer o nível da carga tributária.
Todavia, sendo essa transferência elevada, o agregado mais adequado de ser considerado é o PIB para evitar
distorções no seu cálculo. (Ver Afonso & Vilela, 1991)
118

intervenção estatal em áreas sociais e econômicas) e, no caso de recolhimentos atrasados,


da dívida ativa e de multa e juros de mora."21 Neste caso, a fórmula para o cálculo da
Carga Tributária se transforma em:

Carga Tributária (Ct) = Impostos + Taxas + Contribuições de Melhoria +


Contribuições Sociais e Econômicas/(PIB, PNB)

Todavia, segundo a classificação das contas nacionais, e para confusão da análise


de sua composição, tais receitas costumam ser apresentadas de forma agregada, reunidas
sob a forma de impostos diretos e indiretos. Tal classificação deve ser observada com
cuidado, dependendo dos objetivos de análise que se realiza sobre o tema, pois pode
conduzir a equívocos sobre a incidência e a natureza dos tributos. Isso porque, com ela,
termina-se atribuindo características indevidas de incidência a alguns de seus
componentes, como ocorre, por exemplo, com a Contribuição Previdenciária paga pelo
empregador, que é incluída no primeiro grupo, quando se sabe que, por constituir custos de
produção, é ela repassada para os preços. De outro lado, porque classifica como impostos,
tributos de outra natureza, como as taxas e contribuições de melhoria, os quais,
diferentemente dos primeiros, pressupõem contrapartida direta de benefícios prestados pela
administração pública aos contribuintes que os recolhem, como é visto em seguida. De
acordo com essa classificação, a Carga Tributária é dada por:

Carga Tributária (Ct) = (Impostos Diretos + Impostos Indiretos)/(PIB, PNB)

Pelos desestímulos que os impostos podem provocar para a produção, o trabalho


etc. e também pelos efeitos que irradia sobre a distribuição - à medida que a tributação
nada mais significa que a apropriação, pelo Estado, de parcela da renda gerada pelo setor
privado - uma preocupação, na área das finanças públicas, tem sido a de procurar
identificar limites considerados suportáveis pela economia para o tamanho da carga
tributária e para a sua composição.

Mas existe, de fato, uma carga tributária que pode ser considerada ideal para todas
as economias ou esta é determinada historicamente, alterando-se de acordo com as
condições político-econômicas da realidade em que se insere o Estado? Em outras
palavras, existe um nível ótimo de tributação - e de sua composição - que pode ser
considerado adequado, indagando como o faz Hinrich (1972) "para todas as sociedades ou
para uma sociedade em todos os tempos?" Para responder a esta pergunta, é necessário,
antes, conhecer as características dos principais componentes da carga tributária, visando
obter elementos que permitam avaliar os seus efeitos diferenciados sobre a atividade
econômica e sobre a distribuição de renda, bem como as distintas visões teóricas que
existem sobre estes impactos.

3.2. Os Componentes da Carga Tributária

No Brasil, são três as categorias de tributos que podem ser cobrados pelos poderes
públicos, de acordo com a Constituição Federal de 1988 (art. 145) e o Código Tributário
Nacional: a) os impostos; b) as taxas; e c) as contribuições de melhoria. Além desses

21
Juridicamente, as multas não são consideradas tributos, pois representam sanção de ato ilícito. Todavia,
as multas oriundas de tributos não pagos são, obviamente, decorrentes dos tributos, e as outras multas (de
trânsito, por exemplo) são incluídas em razão de seu caráter compulsório, embora juridicamente não
representem tributação, mas punição de ato ilícito.
119

tributos previstos no capítulo tributário, a Constituição também autoriza, à União, no art.


149, instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse
das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas
respectivas áreas. Pelas suas características e, dado também o seu caráter compulsório,
essas também são incluídas na medição da carga tributária. Uma discussão sobre as
principais características destes componentes, bem como do que representam para o
contribuinte em termos de ônus e benefícios, é feita em seguida.

3.2.1. Os tributos: impostos, taxas e contribuições de melhoria

O imposto representa, na visão mais moderna derivada da teoria keynesiana, uma


contribuição compulsória instituída e cobrada pelo Estado para o financiamento das
atividades que lhes são atribuídas pela sociedade. Nessa visão, sua cobrança não pressupõe
ressarcimento ou contrapartida direta para o contribuinte, através da prestação de serviços
ou da concessão de benefícios por parte do poder público, constituindo-se, portanto, em
ônus tributário direto para a população. Isso não significa, entretanto, que o Poder
Executivo tenha plena liberdade para decidir sobre o destino a ser dado aos recursos
arrecadados através deste instrumento, devendo suas decisões de gastos ser aprovadas e
sancionadas pelo Legislativo.

Assim como não detém, em princípio, liberdade plena para decidir sobre o destino
dos recursos que arrecada, por razões que serão discutidas mais à frente, a instituição e
cobrança de tributos pelo Estado devem respeitar determinados princípios, nas sociedades
modernas, que têm, por objetivo, defender os contribuintes de eventuais abusos que
possam vir a ser cometidos pelos governantes no tocante à tributação. São esses princípios
que informam as relações Estado/contribuinte no tocante a essa matéria e estabelecem
limites ao seu poder de tributar, ao mesmo tempo em que podem estabelecer exigências e
condições para impedir que sejam criados impostos de má qualidade, prejudiciais tanto
para a sociedade como para a economia.

No Brasil, os princípios que regulam e balizam as condições de cobrança dos


impostos, visando estabelecer limites ao poder de tributar do Estado e proteger o
contribuinte contra a ação do Estado, encontram-se claramente explicitados no capítulo da
“Ordem Tributária” da Constituição de 1988, como os da legalidade, anterioridade,
anualidade e isonomia. Além disso, para evitar a instituição de impostos de má qualidade
para o sistema, o texto constitucional proibiu, no art. 154, inciso I, a criação de impostos de
incidência cumulativa (em cascata), ao mesmo tempo em que garantiu, por se tratar de um
país de organização federativa, que todo novo imposto criado, cuja competência passou a
ser exclusiva da União, deve ter 20% de sua arrecadação destinados para os governos
subnacionais – estados e municípios (art. 157, I).22

As taxas, ao contrário dos impostos, pressupõem, por sua vez, para sua cobrança, o
exercício de atividades regulares inscritas no âmbito do poder de polícia da administração
pública ou a prestação de alguma espécie de serviço público à comunidade. De acordo com
isso, elas podem ser classificadas, respectivamente em: a) taxas regulatórias; e b) taxas
remuneratórias.

22
Pelas suas características e por se tratarem da principal fonte de financiamento do governo, os impostos
são examinados mais detidamente nas próximas seções deste capítulo.
120

As taxas regulatórias têm, por objetivo, impedir, restringir ou regular o exercício de


determinadas atividades que afetam a vida e o interesse da população. É o caso, por
exemplo, de licenças concedidas para a abertura, localização e funcionamento de
estabelecimentos de atividades comerciais e industriais; de autorização para edificações e
modificações nos edifícios; da fiscalização dos equipamentos e casas de diversões sujeitas
ao controle da segurança, ordem, bons costumes; da posse ou porte de armas; da aferição
de pesos e medidas etc.

As taxas remuneratórias resultam da prestação de algum serviço oferecido pelo


setor público à comunidade, os quais, por envolverem custos, devem ser distribuídos entre
os seus usuários diretos. Assim, os serviços de iluminação pública23, coleta domiciliar de
lixo, conservação de pavimentação, por exemplo, permitem às distintas esferas de governo
instituírem taxas a serem cobradas dos beneficiários destes serviços.

É importante ter clareza que a cobrança da taxa independe da utilização do serviço


pelo contribuinte. Para a sua cobrança basta o serviço estar à disposição do contribuinte,
independentemente deste utilizá-lo. Por exemplo: se a prefeitura de determinado município
implantar um sistema de coleta de lixo em um bairro, os custos deste serviço poderão ser
distribuídos entre todos os imóveis nele localizados, independente de sua ocupação,
devendo o seu proprietário arcar com o ônus que lhe cabe.

Cabe ainda destacar que as taxas, quer ou não ancoradas no poder de polícia,
devem sempre se revestir do caráter de contraprestação inerente a essa espécie de tributo.
Devem arcar, com o seu ônus, apenas os que usufruem dos serviços prestados, ou que
provocam, de alguma forma, despesas dos cofres públicos ao realizar algum ato.

Já a contribuição de melhorias tem como fato gerador, de acordo com a


Constituição Federal de 198824, a realização de obras pelas administrações públicas que
resultem em benefícios para a população residente de uma área, localidade e/ou região,
como, por exemplo, de calçamento e pavimentação de ruas, de construção de sistemas
viários, viadutos etc. Dificuldades técnicas para sua cobrança, principalmente no que diz
respeito à identificação dos contribuintes beneficiados que devem participar do rateio de
seus custos, no entanto, dificultando sua cobrança pelas administrações públicas, em geral,
têm levado estas a substituí-la pela cobrança de taxas.25

Como é fácil perceber da argumentação acima, as taxas e as contribuições de


melhoria ao pressuporem uma contraprestação de serviços ou resultarem de benefícios
ofertados/transferidos para os detentores de um imóvel, diferem dos impostos, que têm,
como característica, exatamente a ausência de contrapartida direta para os contribuintes,
configurando-se, efetivamente, como um ônus monetário direto a eles imposto.

3.2.2. As contribuições sociais e econômicas

As Contribuições Sociais, utilizadas como fontes de financiamento das atividades do


Estado é um fenômeno típico do século XX, que trouxe, nas transformações ocorridas a

23
No Brasil, com sua cobrança questionada judicialmente, a Emenda no. 39, de 19/12/2002, transformou
a cobrança da taxa de iluminação pública em contribuição de custeio deste serviço.
24
Constituição Federal de 1988, art. 145, inciso III.
25
Para um bom histórico deste tributo no Brasil, das dificuldades técnicas para sua cobrança e para o seu
potencial de arrecadação, ver o trabalho de Biava (1986).
121

partir da década de 1930, a necessidade de reformar o capitalismo e criar/expandir o


Estado do bem-estar, consubstanciado na ampliação dos benefícios sociais -
previdenciários, seguro-desemprego etc. - para a população. O esquema de financiamento,
adotado pela maioria dos países que decidiram pela sua construção, foi estruturado,
embora com diferenças no tocante às alíquotas de contribuição e aos contribuintes do
sistema - empresas, empregados, governos -, com fontes vinculadas de receitas incidentes,
de uma maneira geral, sobre as folhas de salários, assumindo, assim, as características de
um imposto indireto, já que repassado para os preços, pelo menos no tocante à parcela de
responsabilidade da empresa.

No Brasil, o grande impulso conhecido pelas Contribuições Sociais ocorreu a partir


do golpe de 1964, quando se instaurou, no País, o Estado burocrático-autoritário com o
objetivo de garantir o crescimento acelerado a qualquer custo. Comprometido com este
objetivo e com a necessidade de liberar recursos orçamentários para amparar e fomentar o
processo de acumulação procurou-se criar mecanismos que permitissem, às políticas
sociais, capacidade de se autofinanciarem, funcionando nos moldes de uma empresa
privada, sem a necessidade de contarem com recursos fiscais.

Ao mesmo tempo, diante da incapacidade do setor privado de constituir um


funding de longo prazo para o financiamento dos investimentos requeridos para o
crescimento econômico, buscou-se, também, com a criação de algumas dessas
contribuições, complementar, lado-a-lado com a "poupança externa", as necessidades de
recursos do sistema. A maior facilidade de criação das contribuições vis-à-vis os tributos
tradicionais, que deveriam, em geral, obedecer ao princípio da anualidade, juntamente com
a maior agilidade e autonomia que desfrutavam as autoridades governamentais para a
gestão e liberação dos recursos oriundos das Contribuições Sociais, repontavam como
fatores importantes que justificavam a preferência pela sua criação em detrimento dos
impostos tradicionais.

Com isso, além da Contribuição Previdenciária de empregados e empregadores


voltada para o financiamento das aposentadorias e atendimento à saúde26, liberando o
espaço orçamentário dos gastos nessa área, seguiu-se a criação do Salário-Educação, cujos
recursos seriam destinados para o ensino fundamental, em 1964; do Fundo de Garantia de
Tempo de Serviço (FGTS), em 1967, para a habitação popular e saneamento; do Programa
de Incentivo à Formação do Programa do Trabalhador - público e privado - (PIS/PASEP)
em 1970/71; do Fundo de Investimento Social (FINSOCIAL) em 1982, para a cobertura
de várias áreas sociais - habitação popular, alimentação etc. Além dessas contribuições
voltadas para o financiamento público, outras destinadas à cobertura de atividades do
próprio setor privado - ensino, apoio técnico etc. - passaram a integrar a estrutura da carga
tributária no Brasil, a partir dessa época, como as que dizem respeito, por exemplo, ao
“Sistema S” (SENAC, SESI, SESC, SEBRAE etc).

Mas foi a partir da Constituição de 1988, com a qual se promoveu um processo de


descentralização tributária em prol dos estados e municípios, combinada com uma
ampliação dos direitos sociais, inscritos no capítulo da “Ordem Social”, que as
contribuições ganharam maior impulso e viram sua participação aumentar rapidamente na
composição da carga tributária. Explica-se a razão.

26
Com a Constituição de 1988, a Contribuição Previdenciária passou a integrar as fontes de
financiamento da Seguridade Social.
122

Preocupados em ampliar e garantir recursos cativos e estáveis para o financiamento


das políticas sociais, os constituintes de 1988 procuraram: i) substituir o sistema de
proteção social vigente até 1988, marcado, do ponto de vista de seu alcance e cobertura,
pelo caráter excludente dos programas, por outro mais amplo, de caráter universal,
incluindo, no texto constitucional, o conceito de Seguridade Social, que incorporou esses
compromissos; ii) ampliar e diversificar as bases de financiamento deste sistema,
reduzindo sua dependência das contribuições incidentes sobre a folha de salários, com o
objetivo de atenuar sua sensibilidade aos ciclos econômicos, diminuindo incertezas sobre
suas receitas, e de romper com a associação até então existente entre contribuições e
benefícios, o que era indispensável para o compromisso com a sua universalização. Para
isso, além das contribuições sobre as folhas de salários, estendeu-se, à Seguridade, a
possibilidade de financiamento de suas atividades por meio da criação de contribuições
incidentes sobre o lucro e o faturamento das empresas, de acordo com o art. 195, da
Constituição; iii) visando tornar essas receitas exclusivas da Seguridade Social, a esta foi
atribuído orçamento próprio, o Orçamento da Seguridade Social (OSS), formalmente
separado do Orçamento Fiscal.

É possível que essa nova institucionalidade não trouxesse maiores implicações para
a ordem tributária, caso às contribuições fossem estendidos os mesmos princípios e
limitações previstos para os tributos. Tratadas, no entanto, à margem do sistema tributário,
as contribuições tiveram tratamento diferenciado e, ao contrário dos tributos contemplados
na Ordem Tributária, ficaram fora do alcance de vários princípios e condições
estabelecidos para a sua criação.

De um lado, combinados, o art. 149 da Constituição, que atribuiu competência


exclusiva à União para instituir contribuições sociais para o financiamento de suas áreas de
atuação, com o art. 195, § 5º, que veda a criação, ampliação ou extensão de qualquer
benefício sem a correspondente fonte de custeio, abriram a janela para sua maior
exploração em caso de eventual insuficiência de recursos para os programas contemplados
na Seguridade Social.

De outro, ao contrário dos tributos, cuja criação foi condicionada, inter alia, à
observância dos princípios da anualidade e da não cumulatividade, a cobrança das
contribuições foi limitada apenas à exigência da noventena (art. 195, § 6º) e, não tendo sido
discriminados seus fatos geradores, sua incidência ficou fora, na prática, das regras que
limitam o exercício da competência residual (art. 154, I). Além disso, diferentemente da
exigência da destinação, para os governos subnacionais, de 20% da arrecadação dos
impostos instituídos pela União, no exercício de sua competência residual (art. 157, I),
nenhuma regra de partilha foi estabelecida para as contribuições sociais, significando que
suas receitas seriam inteiramente apropriadas pelo governo federal.27

A separação formal entre o Orçamento Fiscal e o da Seguridade Social, bem como


de suas receitas, combinada com regras diferentes para a criação e administração de suas
fontes de financiamento, daria origem a um sistema de tributos, que alguns autores
(Rezende et. al., 2007) caracterizam como de “dualidade tributária”, o qual estaria na raiz
de vários problemas que a economia brasileira se defrontaria posteriormente: enquanto o

27
Uma exceção a essa regra foi introduzida, pela primeira vez, em 2003, com a aprovação da Emenda
Constitucional n. 42/03, quando, por pressão dos estados e municípios, o governo federal, para impedir a
rejeição de sua proposta, concordou em destinar 25% (percentual posteriormente ampliado para 29%) da
arrecadação da CIDE-combustíveis para esses níveis de governo.
123

sistema de tributos, da Ordem Tributária, contou com regras claras sobre o poder de
tributar do Estado, sobre a partilha de receitas com os demais entres da federação e sobre a
proibição da criação de impostos cumulativos (em cascata), o de contribuições, da Ordem
Social, viu flexibilizadas ou simplesmente ignoradas essas condições, ficando livre para
garantir as fontes de custeio necessárias para a Seguridade, como se pode constatar no
exame do quadro 4.1.

Quadro 4.1
Dualidade tributária:
dois sistemas de impostos com regras diferentes

Regras Impostos Contribuições


Tradicionais Sociais
Princípios
• Legalidade Sim Sim
• Anualidade Sim Não (noventena)
• Vinculação a despesa específica Não Sim
Incidência
• Não cumulativos Sim Não
Repartição das receitas com outras esferas Sim Não
Fonte: Rezende, Oliveira & Araújo (2007)

Foram essas vantagens – e facilidades – que levaram o governo federal a


intensificar a exploração dessas contribuições em detrimento dos impostos tradicionais
após a Constituição de 1988: inicialmente visando recuperar perdas de receitas que lhe
haviam sido impostas com as mudanças introduzidas no capítulo tributário e a capacitar-se
a atender as novas responsabilidades que lhe foram atribuídas na provisão de políticas
sociais; posteriormente, para garantir melhores condições fiscais para o programa de
estabilização, o Plano Real, que foi implementado em 1994, e para assegurar receitas
indispensáveis para o cumprimento da política de austeridade fiscal adotada a partir de
1999.

Um exame do quadro 4.2 não deixa dúvidas sobre a maior exploração dessas
contribuições que passou a ser feita pelo governo federal a partir dessa época, aproveitando
a janela aberta pelo art. 195 da Constituição Federal e beneficiando-se das facilidades – e
vantagens – de sua criação. Já em 1988, mal promulgada a Constituição, criou a
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, que teve sua cobrança iniciada em 1989; em
1990, mudanças na forma de incidência do PIS, entre as medidas adotadas pelo Plano
Collor para realizar um ajuste fiscal mais confiável, contribuíram também para elevar sua
arrecadação, ao mesmo tempo em que a alíquota do Finsocial foi elevada de 0,6% para
2%; em 1991, diante dos questionamentos judiciais sobre a legalidade da cobrança do
Finsocial, este foi substituído pela Contribuição ao Financiamento Social (Cofins), cujas
alíquotas e base de cálculo seriam também posteriormente ampliadas; em 1996, com o
objetivo de garantir fontes mais estáveis e seguras de receitas para a área da saúde foi
criada a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que substituiu
o Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira (IPMF), que vigorou em 1994,
para ajudar a fortalecer o ajuste fiscal provisório que foi realizado para viabilizar a
124

implementação do programa de estabilização, o Plano Real28; em 2001, a criação da


Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) incidente sobre o consumo
de combustíveis.

Quadro 4.2.
Contribuições Sociais e Econômicas no Brasil

Contribuições Ano de instituição


Contribuição Previdenciária 1964
Salário Educação 1964
Sistema “S” 1942
FGTS 1967
PIS/PASEP 1970/1971
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) 1989
Finsocial/COFINS 1982/1991
IPMF/CPMF 1994/1996
CIDE – Combustíveis 2001

Benéficas para os objetivos de arrecadação do governo, devido à sua elevada


produtividade e por não terem de ser partilhadas com os governos subnacionais, as
contribuições, que passaram a ocupar espaço crescente na estrutura tributária, geram, pelas
suas características de incidência, vários problemas para a sociedade, a economia e a
federação: não tendo de obedecer ao princípio da anualidade, mas apenas ao da noventena,
enfraquece os mecanismos de defesa do cidadão contra as investidas tributárias do Estado;
espécie de tributo indireto, com incidência em cascata, prejudica a questão da equidade,
tornando o sistema tributário mais iníquo; incidindo cumulativamente (em cascata) é
também prejudicial para as questões da neutralidade e da competitividade externa da
economia, por terem como fatos geradores, em geral, o faturamento e receita bruta das
empresas e a folha de salários do setor privado e do setor público, operando como força
contrária ao crescimento econômico; sem ter suas receitas divididas com estados e
municípios, enfraquece a autonomia destes governos e aumenta sua dependência de
recursos do Poder Central.

Como será visto na última seção deste capítulo, onde se analisa a evolução do
sistema tributário brasileiro, reside na prioridade conferida pelo governo federal à cobrança
das contribuições em detrimento dos impostos tradicionais, como fonte de arrecadação,
uma das principais causas que o conduziria rapidamente a uma situação de
degenerescência e o transformaria em um instrumento antípoda da equidade, da federação
e do crescimento econômico.29

28
A CPMF seria extinta a partir de 2008, depois de o Congresso rejeitar o projeto do Poder Executivo
para sua prorrogação.
29
Como será visto na parte final deste capítulo que trata da evolução do sistema tributário no Brasil, as
contribuições sociais com incidência cumulativa, depois de verem crescer expressivamente sua
participação na carga tributária, começaram a ser reduzidas, a partir de 2002, com a extinção parcial da
cumulatividade do PIS e da Cofins, diante das pressões exercidas pelo empresariado nessa questão e,
principalmente, das exigências feitas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a modernização da
estrutura tributária brasileira.
125

Avaliadas de acordo com a sua natureza, essas contribuições assumem


características distintas. Há, por um lado, as que podem ser classificadas como
patrimoniais, como o FGTS e, na sua origem, o PIS/PASEP, que constituem fundos dos
trabalhadores administrados pelo Estado e que, sob certas condições especificadas em lei,
podem ter seus recursos por eles retirados. Há, por outro, as que são vinculadas a uma
modalidade não escrita de contrato social, através das quais o Estado garante determinados
benefícios aos trabalhadores, como os que se referem à aposentadoria, auxílio-família etc. -
no caso da Contribuição Previdenciária30. E as que podem ser classificadas tipicamente
como tributos vinculados ao financiamento de gastos sociais, como as da COFINS e da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e da Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira (CPMF), por exemplo. Por se tratarem de extração compulsória
de recursos do contribuinte, assemelham-se a tributos, de incidência indireta31, porque
passíveis, em princípio, de serem transferidas para os preços dos produtos, e apresentam
características, como os da cumulatividade e da iniqüidade, por exemplo, prejudiciais para
o sistema tributário enquanto instrumento de desenvolvimento econômico e social de um
determinado país.

4. AS ORIGENS DOS IMPOSTOS E OS PRINCÍPIOS DE DEFESA DOS


CONTRIBUINTES

Uma breve incursão na história da humanidade revela que as receitas públicas na


Antigüidade eram obtidas ou pela mera extorsão ou confisco das riquezas dos povos
subjugados e/ou pela imposição coercitiva de tributos sobre os povos aliados (Gaspar
Filho, 1982: 34-5). O Estado estabelece e distribui, nesse período, como soberano pleno,
"quotas de sacrifício" entre os seus súditos, sem quaisquer preocupações com a obtenção
de seu consentimento.

Essa situação perduraria no período feudal, mas alguns progressos seriam aí


registrados no que toca às receitas públicas e ao poder de tributar do Estado. Como ocorria
na Antigüidade, parcela importante da produção dos servos continuava a ser apropriada,
compulsoriamente, para atender às necessidades de recursos dos monarcas e dos senhores
feudais. Mas nessa evolução surgiriam novas formas e regras também distintas de um
sistema de coleta de impostos, que irão constituir a base dos sistemas tributários modernos.
Explicam-se as origens deste processo.

Ainda que os monarcas vivessem dos rendimentos dominiais de suas terras, nem
sempre estes se mostravam suficientes para cobrir suas necessidades, especialmente diante
da ocorrência de certos eventos, comuns à época, como eram as guerras. Em virtude dos
pactos de lealdade e cooperação recíproca estabelecidos entre monarcas e senhores feudais,
estes se viam instados a atender às solicitações que lhes eram feitas por aqueles, sendo suas
"quotas de contribuição" definidas através de Conselhos ou Assembléias, que constituíam
o locus onde se buscava o consenso em torno dessa questão. Representam estes Conselhos,
onde se estabelecia a partilha da "quota de sacrifício" entre os que gravitavam em torno do
poder, o nascedouro do imposto consentido, que constituiria a forma de coibir os abusos
de tributação exercidos pelo Estado, e que viria a constituir a pedra angular das sociedades

30
A partir de 1993, a arrecadação do INSS passou a financiar, com exclusividade, os benefícios da
Previdência Social.
31
A rigor, apenas a contribuição previdenciária recolhida pelo trabalhador não se enquadra nessa
classificação, por ser diretamente descontada, pela empresa, de seu salário.
126

modernas democráticas na defesa e garantia dos contribuintes (Baleeiro,1978:397-408).


Por isso, ele afirma que:

"... desde a alta Idade Média, no seio de vários povos da Europa, os


monarcas encontravam dificuldades em criar impostos novos e
majorar os antigos, ou levantar empréstimos forçados, sem o
consentimento de certos órgãos colegiados que pretendiam falar em
nome dos contribuintes."32

O princípio do consentimento do tributo pelos representantes dos contribuintes,


que remonta à época feudal, seria, entretanto, eclipsado, em graus variados, durante a
vigência do Absolutismo. A Revolução Britânica de 1688, a Independência Americana e a
Revolução Francesa em 1789, o resgatariam e, a partir daí, ele se difundiria por toda a
Europa e América, sendo incorporado às Constituições dos regimes democráticos dos
séculos XIX e XX. Conquistado o direito de autorizar as receitas do Estado como forma de
defender e garantir os contribuintes dos abusos dos governantes, conquistou-se, também, o
direito do Poder Legislativo de autorizar também as despesas do poder público e de
exercer controle e fiscalização sobre os gastos programados, visando coibir mordomias e
gastos excessivos por parte dos governantes.

Assim, embora continue dispondo de sua força soberana para instituir e cobrar
tributos, o Estado moderno viu limitado o seu poder de tributação pelas exigências,
previstas em lei, de só poder fazê-lo se contar com o consentimento da sociedade, através
de seus representantes políticos, em obediência aos princípios constitucionais
universalmente consagrados nas constituições democráticas. À conquista do Legislativo
para a autorização das receitas e despesas públicas, as sociedades modernas incorporariam,
em suas cartas constitucionais, outros princípios que informam o Estado sobre o seu poder
e que têm, por objetivo, proteger os contribuintes de eventuais abusos dos governantes.

Entre estes princípios, devem ser destacados os que se referem à legalidade do


tributo, à anualidade e à irretroatividade (anterioridade) da lei tributária. O primeiro
estabelece que um imposto só possa ser cobrado uma vez que tenha sido instituído em lei.
O segundo assegura ao contribuinte, salvo nos casos previstos no próprio texto
constitucional, que alterações introduzidas no quadro tributário - criação de novos
impostos ou majoração de suas alíquotas - só poderão entrar em vigor no exercício fiscal
seguinte. O terceiro veta essas alterações para fatos geradores ocorridos antes da instituição
da lei, impedindo, portanto, que tenham elas efeito retroativo.

São estes princípios, que informam e respaldam a relação Estado/sociedade no


campo fiscal, que visam permitir ao cidadão ter certeza quanto aos dispêndios com
impostos que deverá efetuar no decorrer de um exercício fiscal, impedindo que as regras
do jogo sejam alteradas ao sabor da necessidade de recursos governamentais. Espelham,
em conjunto, uma das máximas da tributação de Smith (1983:248) que diz:

"O imposto que cada indivíduo é obrigado a pagar deve ser fixo e não
arbitrário. A data do recolhimento, a forma de recolhimento, a soma a

32
Formalmente, o nascedouro do “imposto consentido” encontra-se associado à edição da Carta Magna
da Inglaterra, em 1215, pelo rei João Sem Terra, como foi visto no capítulo 2, que trata do Orçamento
Público.
127

pagar, devem ser claras e evidentes para o contribuinte e para


qualquer outra pessoa. Se assim não for, toda pessoa sujeita ao
imposto está mais ou menos exposta ao arbítrio do coletor, o qual
pode aumentar o imposto para qualquer contribuinte que lhe é odioso
ou então extorquir, mediante a ameaça de aumento do imposto,
algum presente ou gorjeta para si mesmo. A indefinição da taxação
estimula a insolência e favorece a corrupção de uma categoria de
pessoas, que são, por natureza, impopulares, mesmo quando não
insolentes ou corruptas. A certeza sobre aquilo que cada indivíduo
deve pagar é, em matéria de tributação, de tal relevância que,
segundo entendo e com base na experiência de todas as nações, um
grau muito elevado de falta de equidade de impostos nem de longe
representa um mal tão grande quanto um grau muito pequeno de
incerteza ou indefinição."

Mas se estes princípios repontam - desde que respeitados - como fundamentais para
que o sistema tributário contribua para democratizar as relações entre o Estado e os
cidadãos, a influência exercida pelos tributos sobre as órbitas produtiva e distributiva, à
medida que implicam transferências de recursos do setor privado para o setor público, e o
seu papel para o equilíbrio político em nações organizadas sob a forma de federação,
terminaram dando luz a outros princípios também contemplados na teoria convencional
das finanças públicas relativos à necessidade do sistema ser estruturado de forma a ser
neutro no tocante ao processo produtivo, de contribuir para melhorar a estrutura da
distribuição de renda e propiciar, através de uma adequada distribuição das receitas entre
as esferas governamentais, o equilíbrio federativo.

Por essa razão, uma das questões mais polêmicas a respeito dos tributos - e de
difícil consenso entre os economistas e os que lidam com o tema - refere-se à sua
distribuição entre impostos diretos e indiretos ou à combinação entre ambos, que
provocariam menores distorções no funcionamento do sistema econômico e na estrutura da
distribuição de renda, bem como qual seria a repartição mais adequada da arrecadação
entre as unidades da federação - Governo Federal, Estaduais e Municipais. Antes de
entrarmos na discussão destes princípios - e problematizar as várias posições a seu respeito
- cabe, entretanto, apresentar as principais características desses grupos de impostos.

5. OS IMPOSTOS: CARACTERÍSTICAS, CONCEITOS E INCIDÊNCIA

5.1. Impostos regressivos, progressivos e proporcionais

Na teoria das finanças públicas, os impostos assumem, em função de sua incidência e de


seu comportamento em relação ao nível de renda dos contribuintes, três formas: os
impostos regressivos, os progressivos e os proporcionais.

Um imposto é considerado regressivo à medida que mantém uma relação inversa


ao nível de renda do contribuinte. Neste caso, a participação do imposto no nível de renda
é maior para os contribuintes que se situam nas faixas inferiores, decrescendo à medida
que se passa para faixas mais elevadas. É isso que lhe imprime um caráter regressivo: a
regressão que ocorre em função do crescimento da renda, penalizando mais os
contribuintes de menor poder aquisitivo.
128

O imposto é considerado progressivo quando a situação ocorre de forma inversa,


com ele mantendo uma relação positiva com o nível de renda. Assim, sua participação na
renda aumenta à medida que essa cresce, o que lhe imprime o caráter de progressividade e
de justiça fiscal: arcam com maior ônus da tributação os indivíduos em melhores
condições de suportá-lo, ou seja, aqueles que obtém maiores rendimentos.

O imposto proporcional é aqueles cuja imposição não promove alterações na


estrutura da distribuição de renda. Sua relação com o nível de renda ocorre, portanto, de
forma proporcional. O ônus do tributo é, nesse caso, idêntico, em termos relativos, para
níveis diferenciados de renda.

O Gráfico 1 ilustra bem essas situações. Como se percebe, quando o imposto é


progressivo, sua participação no nível de renda do contribuinte, medida pela relação (I/Y),
aumenta à medida que essa cresce. No caso do imposto regressivo, comportamento oposto
se verifica. E, quando proporcional, essa relação se mantém constante.

Gráfico 1: Relação Tributo/Renda por


Tipo de Imposto

I/Y

progressivo

proporcional

regressivo

renda (Y)
129

O mesmo raciocínio pode ser feito para a avaliação do grau de equidade de um


sistema tributário, considerando o conjunto dos impostos que o integram. Embora
composto por impostos de natureza progressiva, regressiva ou proporcional, o sistema
será considerado progressivo, em seu conjunto se, após a cobrança dos impostos,
registrar-se melhoria na estrutura da distribuição de renda. Regressivo, se essa piorar. E
proporcional se ela mantiver-se intacta. Essa questão é importante, porque não se pode
avaliar um sistema considerando isoladamente cada tributo. Dadas as bases de
incidência dos impostos, um sistema tributário sempre contará com a presença de
impostos progressivos, regressivos e proporcionais (Cf. Dalton, 1972). Importa avaliar,
diante disso, quais são predominantes em termos de ônus para a sociedade, porque a
regressividade de alguns impostos podem muito bem estar sendo mais do que
compensada com a progressividade de outros e vice-versa.

5.2. Impostos Diretos e Indiretos: existe uma composição ideal?

O fato de um sistema tributário incorporar impostos progressivos, regressivos e


proporcionais, resulta das próprias características dos fatores que lhes dão origem. Para
esclarecer esse ponto deve-se considerar que as bases modernas de incidência dos impostos
são a renda, a propriedade, a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços. De
acordo com essas bases, pode-se agrupá-los em dois grandes conjuntos: os impostos
diretos e os impostos indiretos.

Os impostos diretos são os que incidem diretamente sobre a renda e o patrimônio,


sendo assim chamados porque, em princípio, não são passíveis de transferência para
terceiros, significando que o contribuinte que o recolhe aos cofres públicos é o mesmo que
efetivamente arca com o seu ônus. Os impostos indiretos são os que incidem sobre a
produção e o consumo de bens e serviços, sendo passíveis, também em princípio, de
transferência para terceiros – o consumidor desses bens/serviços -, significando que sua
incidência econômica – real – ocorre de forma indireta, mediada pela participação do
contribuinte legal – o empresário produtor/vendedor – no processo.

Independente de se tratar de um imposto direto ou indireto, sua cobrança afeta, de


imediato, a renda do contribuinte, o que termina interferindo nas suas decisões sobre
consumo, investimento, trabalho, lazer etc., modificando as combinações dessas
possibilidades que considera mais vantajosas para si nessa nova situação. Essa mudança
afeta, por sua vez – e em alguma medida -, de acordo com a teoria convencional, a
produção, com reflexos sobre a eficiência do sistema. Essa influência pode se dar,
entretanto, de forma diferenciada, caso se tratem de impostos diretos ou indiretos ou de
combinações distintas destes, o que sempre despertou polêmicas entre os que se dedicam –
em todos os tempos – aos estudos das finanças públicas sobre sua melhor composição ou
que impostos seriam preferíveis a outros, do ponto de vista dessa eficiência. Mas outras
características dos impostos também influenciam esse debate.

Teoricamente – e sem entrar no mérito da questão de sua incidência econômica –


os impostos diretos, por terem como base para sua cobrança a renda e o patrimônio dos
contribuintes, são considerados impostos mais adequados para a questão da
progressividade, e, portanto, para políticas redistributivas de renda, já que suas alíquotas
podem ser estabelecidas em função daquelas bases. Os impostos indiretos, por sua vez,
por terem como base de incidência o consumo – e não a renda – são considerados
impostos regressivos, cujos efeitos nocivos sobre a estrutura da distribuição de renda
130

podem ser atenuados – mas não eliminados – com a definição de alíquotas seletivas e
diferenciadas de acordo com a essencialidade do produto que gravam.

Ora, se assim é, considerando que dois princípios caros à teoria convencional – o


da equidade e o da neutralidade da tributação (com o objetivo de assegurar a eficiência
do sistema) - são fundamentais na sua construção, seria de esperar que impostos
progressivos – diretos - seriam preferíveis a impostos regressivos – indiretos – ou que,
dada a necessidade de combiná-los, considerando as bases de incidência da economia, os
primeiros seriam predominantes nessas estruturas.

O que parece óbvio, entretanto, à primeira vista, não é tão simples para a teoria,
porque ao se contemplar a questão da equidade, não raro sacrifica-se algum grau de
eficiência do sistema, estabelecendo-se, portanto, um trade-off entre esses dois princípios,
que se não pode ser inteiramente equacionado deve, pelo menos, ser atenuado com uma
estrutura de impostos que acarrete menos prejuízos para o seu bom funcionamento. Ou
que, na medida do possível, que os ganhos obtidos com a questão da equidade compensem
as perdas decorrentes da perda de sua eficiência. Além disso, porque, dado o mal resolvido
problema da incidência da tributação, não haveria nenhuma garantia de que impostos
progressivos contribuam, de fato, para melhorar a estrutura da distribuição de renda.

Essas não são questões triviais para a teoria econômica convencional das finanças
públicas. Pelo contrário, são questões que constituem os principais alicerces sobre os quais
se apóia para sugerir a construção “ideal” de estruturas tributárias que não alterem, a ponto
de conduzir ao desmoronamento, o equilíbrio do edifício central da vida econômica
garantido pelas leis do mercado.

Nem todos, entretanto, pensam assim. Por isso, antes de discutir essas questões,
cabe dar uma rápida passada em algumas visões distintas a respeito do que poderia ser
considerada a composição "ideal" destes impostos na estrutura tributária, mais
recomendada para atender àqueles princípios, considerando que essas serão retomadas à
frente para serem contrapostas ao pensamento convencional.

De início, não se pode esquecer da visão mais simplista – irônica e fálica - atribuída
à alegoria de Gladstone (apud Dalton, 1972:54) que comparava, segundo Dalton, "essas
duas fontes de renda a "duas simpáticas irmãs" entre as quais ele tinha de ser
"perfeitamente imparcial", por acreditar que, como Chanceler do Erário, "não somente lhe
era permitido, mas era mesmo de seu dever prestar homenagem a ambas", costuma ser a
referência preferida de vários autores para reforçarem sua linha de argumentação em outra
direção.

Para Hinrich (1974:12) “... essa abordagem de que a receita deve provir, em partes
aproximadamente iguais, dos impostos diretos e dos indiretos" carece de uma perspectiva,
quer histórica, quer teórica. Isto porque, segundo ele "não há um sistema ideal que seja o
melhor para todos os países ou para um determinado país em todos os tempos", visto que
"o processo de mobilização social e desenvolvimento econômico significa necessariamente
que os tipos, dimensões e proporções de crescimento das bases tributárias e econômicas
(...) modificam-se no curso do desenvolvimento, necessitando constantemente de
modificações nas alíquotas e formas de tributação...".
131

Na mesma linha de argumentação, Musgrave & Musgrave (1980:646) sustentam


que "os problemas associados à formulação e administração dos diversos impostos diferem
da estrutura da economia em que eles são aplicados e das atitudes do público com relação à
tributação. Porém, eles também diferem com o estágio do desenvolvimento econômico...".

Ou seja, o que se pode deduzir dessas posições, é que constitui um equívoco


definir, a priori, como na alegoria de Gladstone, que sugere um desejável equilíbrio entre
impostos diretos e indiretos, uma composição "ideal" da carga tributária, e que, antes, essa
composição é resultado de um processo histórico determinado por forças políticas,
econômicas e sociais. Mas essa tese, sobre a qual esse trabalho se apóia não nos dispensa
de avaliar criticamente as respostas que a teoria econômica dominante buscou para essa
questão, procurando resolver, simultaneamente, os limites de ação do Estado - e, portanto,
de seu tamanho -, as tarefas que deveria desempenhar no sistema e a necessária cobertura
de recursos para realizá-las, bem sua distribuição entre os membros da sociedade.

Duas correntes teóricas destacam-se neste sentido: a) as das vertentes clássica e


neoclássica, que procuram através de uma construção teórica derivada de princípios
abstratos formulados para a tributação - os princípios da neutralidade e da equidade e, mais
recentemente, da competitividade -, fornecer propostas práticas para estruturas desejáveis
da tributação; e b) a de filiação keynesiana, que, questionando as posições da teoria
dominante no tocante, inter alia, ao papel do Estado, da política fiscal, e dos déficits
orçamentários, amplia as funções estatais na economia e sugere, com isso, a possibilidade
de outras estruturas.

Cabe, assim, para os propósitos deste trabalho, percorrer criticamente, os


argumentos teóricos desenvolvidos por seus autores, visando avaliar seu conteúdo, alcance
e limites para explicar as estruturas tributárias. Antes disso, porém, coloca-se como
necessário conhecer as características e a evolução dos impostos diretos e indiretos, de
forma a obter elementos que permitam justificar/compreender determinados argumentos
que nelas são desenvolvidos.

5.2.1. Os Impostos Diretos

Os impostos diretos são aqueles cuja geração do fato fiscal ocorre a partir do momento em
que uma determinada renda (ou lucro) é ganha (auferida) ou da existência de uma riqueza
acumulada (materializada) no tempo. No primeiro caso são conhecidos como impostos
incidentes sobre a renda (Imposto de Renda) e, no segundo, sobre o patrimônio. Incidem,
portanto, sobre os rendimentos auferidos pelos trabalhadores em geral, sobre os juros e
ganhos financeiros, os aluguéis e demais arrendamentos, os lucros das empresas e ganhos
de capital (ou seja, sobre a renda em suas diversas formas) e ainda sobre a propriedade e a
riqueza (a riqueza, também em suas diversas formas).

Não são, por isso, pelo menos a nível teórico, passíveis de transferência para
terceiros, ocorrendo, caso isso se confirme, uma coincidência entre o que, na linguagem
jurídica, denomina-se contribuinte de direito e contribuinte de fato e, na linguagem da
economia, de incidência legal e de incidência econômica, que é, de fato, a que interessa do
ponto de vista de seu gravame. Isto significa que o contribuinte responsável pelo
recolhimento do imposto aos cofres públicos seria, pelo menos teoricamente, o mesmo que
arca efetivamente com o seu ônus.
132

O Imposto de Renda moderno é um imposto típico da sociedade capitalista, onde


os conceitos de renda e fortuna se desprenderam da base imobiliária – da propriedade – e
se vincularam ao de riqueza gerada no processo de produção. Mas mesmo com a
instauração desse modo de produção, somente com o fortalecimento de suas bases, que
também exigiu maior capacidade tributária do Estado para participar da vida econômica e
social do país, foi que se tornou possível sua cobrança, num contexto de expansão da
produção, de elevação dos níveis de renda per capita da população e de declínio da
importância da propriedade – basicamente imobiliária – como principal fonte de riqueza e
de geração de recursos para o financiamento estatal. No capitalismo financeirizado, como
será visto mais à frente, além da produção, aumentariam potencialmente seu espaço nas
estruturas de tributação os impostos incidentes sobre os rendimentos financeiros, embora
essa possibilidade tenha sido enfraquecida com as regras limitadoras estendidas à sua
cobrança em virtude da considerável mobilidade espacial destes recursos.

Sua origem data de 1798, conforme aponta Baleeiro (1978:321-2), quando W.Pitt o
criou – em caráter extraordinário – para financiar as despesas da guerra que a Inglaterra
então travava com Napoleão Bonaparte. Com o seu término, o imposto foi extinto em
1816, mas, restabelecido em 1842, novamente como fonte extraordinária – e emergencial –
de receita, terminou definitivamente integrado, a partir daí, à estrutura tributária inglesa.

Seu potencial de receita e sua adequação às novas formas de geração de riquezas


do sistema econômico, levaram a Suíça a adotá-lo em 1840, a Áustria em 1849 e a Itália
em 1864. Na última década do século XIX, Austrália, Nova Zelândia, Prússia e Holanda
seguiram o mesmo caminho. A França, depois de tentar criá-lo infrutiferamente, nessa
mesma época, conseguiu aprová-lo em 1913 e iniciar sua cobrança quatro anos depois, em
1917.

Nos EUA, depois de criado também como imposto extraordinário durante a Guerra
da Secessão e de sua cobrança ter sido feita também em 1894, a Corte Suprema, segundo
Baleeiro (1978:321-2) terminou declarando-o inconstitucional em 1896. Somente em
1913, depois de aprovada a 16ª Emenda à Constituição, o imposto seria legalizado e teria
reiniciada sua cobrança. No Brasil, sua criação ocorreria em 1922 e, vinte anos depois, na
Argentina.

Instituído, portanto, como um imposto extraordinário, destinado inicialmente ao


financiamento de despesas de guerra, o Imposto de Renda, pelas suas características de
incidência e potencial de arrecadação, acabou se generalizando por todos os países do
mundo capitalista depois da Segunda Guerra e se transformando na principal fonte de
receita do Estado nas economias mais desenvolvidas.

Para seus defensores, o Imposto de Renda apresenta virtudes que o tornam uma
forma superior de tributação em relação às demais. Por um lado, a base de sua incidência –
a renda – espelha melhor a capacidade de contribuição dos indivíduos e propicia melhores
condições para a aplicação do princípio da equidade, de acordo com a máxima de que
“quem ganha mais deve pagar mais”, já que permite o estabelecimento de alíquotas
diferenciadas – e progressivas – definidas em função de seus níveis, o que não ocorre com
a tributação indireta.

Por outro, ao possibilitar ao contribuinte conhecer o montante de sua contribuição


para o financiamento do Estado, porque diretamente por ele recolhida, reponta como um
133

instrumento importante para a formação e o desenvolvimento da “consciência tributária” e


para o fortalecimento de mecanismos de controle sobre as atividades do governo. Outras
vantagens, como a maior eficácia dos impostos progressivos para a estabilização da
economia, surgiria posteriormente com as idéias keynesianas sobre o papel do Estado – e
da política fiscal – nesse processo.

Como tudo em economia envolve controvérsias, não poderia ser diferente com a
questão da tributação. Para Kaldor, de acordo com Rezende (Rezende, 1974:21) “um
mesmo nível de rendimento total em um determinado ano não representa necessariamente
uma mesma capacidade de gasto”, o que enfraquece o critério “nível de renda” como
indicador da capacidade de contribuição. Isso porque não somente as várias formas de
rendimentos (trabalho, aluguéis, ganhos de capital etc.) envolvem riscos diferentes em
relação às oscilações do comportamento da economia como atendem a diferentes
necessidades dos contribuintes e são, às vezes, distintas em relação à regularidade de seus
fluxos, com alguns sendo, inclusive, de caráter transitório.

Nesse caso, segundo Rezende, para Kaldor “… se os critérios de equidade


baseiam-se em noções de utilidade de renda do ponto de vista da satisfação das
necessidades individuais, a capacidade de satisfazer essas necessidades através da
aquisição de bens e serviços é que deve medir a respectiva capacidade de contribuição”
(Rezende, 1974:22). Ou seja, a capacidade de gastos seria, nessa perspectiva, tecnicamente
superior ao fluxo anual de renda como indicador dessa capacidade.

Mas há outros argumentos, que serão discutidos detalhadamente nesse capítulo,


que procuram também questionar a tributação progressiva como instrumento eficaz para
garantir a equidade da tributação. De acordo com essa linha de argumentação, por
subordinar-se a um conceito subjetivo de “igual sacrifício”, a tese de que a equidade na
tributação pressupõe uma distribuição progressiva da carga tributária implica admitir duas
hipóteses nunca comprovadas: a) que a utilidade marginal da renda decresce com o seu
aumento; e b) que a taxa desse decréscimo se comporta de acordo com os requisitos
referentes a diferentes critérios de “igualdade de sacrifício”, seja ela proporcional,
marginal ou mesmo de igualdade absoluta.

Finalmente, embora se reconheça a maior eficiência do imposto de renda para a


implementação de políticas agregadas pelo Estado, pelos seus efeitos mais diretos e
imediatos sobre a renda disponível da população, e também para a implementação de
políticas econômicas voltadas para o desenvolvimento econômico, social etc., dada sua
maior abrangência e sua maior capacidade de alterar os sinais de mercado, argumenta-se
que se este imposto recair sobre as rendas mais elevadas e os lucros das empresas, afeta
adversamente a capacidade de poupança global da economia, atuando como fator inibidor
dos investimentos e, consequentemente, do crescimento econômico.

Controvérsias à parte, o Imposto de Renda viu aumentar, ao longo do tempo e à


medida que o capitalismo consolidava suas bases, sua participação na geração de receitas
tributárias, principalmente nos países desenvolvidos.

Ao contrário do imposto de renda, o imposto sobre o patrimônio – o estoque de


riqueza – é, de modo geral, antigo nas estruturas tributárias dos mais diversos países.
Nos primórdios da sociedade capitalista em que a produção voltada para o mercado
ainda não modificara, de forma visível, a equação da geração de riqueza, a propriedade
134

se destacava como uma das principais bases tributáveis, assegurando sua importância
na geração de recursos para o financiamento do Estado.

Tratava-se de um imposto que incidia sobre as mais diversas formas de


propriedade – terra, gado, mobília, imóveis etc. -, cuja importância começou a declinar
com o avanço e consolidação do modo de produção capitalista, com suas bases de
incidência tornando-se mais restritas e seletivas, e o imposto incidente sobre a
propriedade imobiliária transformando-se em um tributo tipicamente local, de
competência dos municípios/localidades. Atualmente, o imposto incide, de modo geral,
sobre a riqueza não-financeira (imóveis, automóveis, terra etc.) e financeira (ações,
títulos etc.), sendo cobrado de várias formas: imposto sobre patrimônio, herança e
doações, propriedades urbanas e rurais etc.

Apesar da resistência secular das classes dominantes à sua cobrança, atualmente


é um imposto adotado por quase todos os países do mundo capitalista, principalmente
pelos mais desenvolvidos, ainda que não seja considerado uma fonte importante de
geração de recursos para o financiamento do Estado. Seu principal papel tem sido o de
contribuir para atenuar/corrigir iniqüidades da tributação e para evitar que a excessiva
concentração da riqueza produza fortes questionamentos do sistema.

O Brasil conta atualmente em sua estrutura tributária com seis impostos que
incidem sobre o patrimônio: o imposto sobre grandes fortunas (IGF); sobre a
propriedade rural (ITR); heranças e doações (ITCD); propriedade de veículos
automotores (IPVA); propriedade imobiliária urbana (IPTU); e transmissão de bens
imóveis inter-vivos (ITBI).

Apesar desse número abundante, esses impostos, em conjunto, geram receitas


desprezíveis, que se situam em torno de 1% do PIB. Ausência de regulamentação que
impede sua cobrança (caso do IGF); ou de regulamentação apenas parcial (caso do
ITCD), que restringe suas bases de incidência; de grandes níveis de sonegação e de
fiscalização extremamente precária (ITR); e ainda de pouco empenho na sua cobrança,
como acontece com o IPTU, principalmente por parte dos pequenos/médios municípios,
são causas que explicam, em alguma medida, essa baixa produtividade e o fato da
propriedade ser sub-taxada no país.33

Quadro 3.3
Brasil: Impostos Diretos

Imposto Ano da instituição


Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IR) 1922
Propriedade Territorial Rural (ITR) 1891/1934
Propriedade Territorial Urbana (IPTU) 1891/1934
Grandes Fortunas (IGF) 1988
Transmissão Causa-Mortis e Doações (ITCD) 1891/1988
Transmissão de Imóveis Inter-Vivos 1934/1988
Propriedade de Veículos Auto-Motores 1986
Fonte: Brasil. Constituição Federal

33
Dificuldades de financiamento dos municípios no Brasil, somadas, na atualidade, às exigências da Lei
de Responsabilidade Fiscal aprovada, no ano 2000, de coibir a prática da renúncia fiscal, têm contribuído
para o seu aumento, principalmente do IPTU e do IPVA, mas o fato é que sua contribuição ainda continua
pouca expressiva diante de seu potencial de arrecadação.
135

5.2.2. Os Impostos Indiretos

Os impostos indiretos são aqueles que têm justificada a sua cobrança no fato de uma
determinada renda ser gasta (despendida). Incidem, portanto, sobre a produção, a
circulação e o consumo de bens e serviços. Sua principal característica é a de que,
contrariamente, aos impostos diretos, podem ser objeto de repercussão para terceiros, os
quais, no final das contas, são os que arcam com o seu ônus, embora os mesmos sejam
recolhidos aos cofres públicos pelos vendedores. Ocorre, neste caso, uma nítida separação
entre o contribuinte de direito (a empresa que produz e vende bens e serviços) e o
contribuinte de fato (o consumidor que os adquire).

Essa separação termina gerando o que pode ser chamado de fetiche do imposto:
por um lado, o responsável pelo seu recolhimento - o vendedor - nutre a ilusão de que
recai, sobre seus ombros, o seu ônus, quando se sabe que este, ao integrar a sua estrutura
de custos, termina sendo, via de regra, repassado para os preços e utilizado, enquanto não
recolhido, como fonte de financiamento de seu capital de giro a custo zero; por outro, o
consumidor - o contribuinte de fato -, especialmente quando o imposto não é destacado do
preço da mercadoria, tende a não perceber a contribuição tributária envolvida no ato da
compra - para não dizer sobre o seu montante -, inibindo o reforço da consciência que
poderia resultar deste processo sobre os vínculos existentes entre impostos, cidadania e
Estado.

São duas as bases de incidência que existem como alternativa para o


estabelecimento do imposto sobre as vendas: a) a que contempla como fato gerador o valor
das transações realizadas (faturamento da empresa, receita bruta etc.); e b) a que considera
apenas o valor agregado do produto (a remuneração dos fatores de produção) durante o seu
ciclo de vida até chegar às mãos do consumidor final. Neste caso, ele pode ser instituído
como um imposto geral de base ampla sobre as vendas - o consumo em última instância -
ou como um imposto seletivo sobre alguns poucos produtos. Uma combinação de
impostos gerais complementados com impostos seletivos costuma ser encontrada em
várias estruturas tributárias, seja com objetivos arrecadatórios, seja com o objetivo de
coibir/penalizar/desestimular o consumo de certos bens.

Ambas as formas permitem situar o momento de sua cobrança em apenas um


estágio do processo de produção e comercialização - chamado de imposto uniestágio - ou
nas suas várias etapas - imposto multiestágio -, com a diferença de que o imposto sobre
transações não permite, pela sua natureza, deduções/reduções tributárias pagas nos ciclos
antecedentes, o que contraria o princípio da neutralidade da tributação, como veremos. O
mesmo não ocorre, entretanto, com o imposto sobre o valor agregado, embora aqui,
algumas qualificações tenham de ser feitas entre impostos gerais e seletivos.

A existência do imposto sobre transações remonta, segundo Due (Due, 1974:158) à


Idade Média, mas sua adoção moderna teria início somente em 1904 nas Filipinas, onde se
estabeleceu uma baixa alíquota sobre as transações realizadas. Incidindo inicialmente sobre
as atividades comerciais terminou evoluindo para um imposto geral sobre as vendas. A
partir daí foi, gradativamente, sendo adotado por outros países: Alemanha em 1918, França
em 1920, seguidos por Itália, Bélgica e Áustria, até se difundir e ser adotado em vários
continentes. (Due, 1974:158-159). No Brasil, os principais impostos sobre transações
integraram sua estrutura até 1958 e 1966, respectivamente nas figuras do Imposto de
136

Consumo (IC), de competência federal, e do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC),


criado em 1934, de competência estadual.

Due (1974) aponta duas vantagens que possui o imposto sobre o movimento de
transações: a) não ser necessária a delimitação de setores específicos e a identificação dos
negociantes, uma vez que incide uniformemente sobre todas as firmas; e b) a maximização
da receita, por serem todas as transações tributáveis. Mas assinala, em contrapartida, tantas
desvantagens, que chega a considerar "[...] seu emprego contínuo [...] intolerável em
termos de eficiência, melhor desenvolvimento e equidade." Entre as principais, cabe
apontar: a) os efeitos engendrados na organização da produção e da distribuição, visto a
tributação fomentar intensamente a conexão entre produção e circuitos de distribuição,
promovendo artificialmente a integração e tolhendo a especialização; b) as influências
perversas na alocação de recursos, ao distorcer os preços relativos da economia, em função
do número variado de transações para diferentes produtos; e c) os nocivos efeitos
distributivos causados pelo imposto, visto penalizar mais os consumidores que demandam
bens, cujas etapas de comercialização alcançam maior número. (Due,1974:162-6)

Nocivo, assim, para o funcionamento do aparelho produtivo e gerador de efeitos


perversos para a questão distributiva, o imposto sobre transações viu ampliado este seu
anacronismo no estágio atual do sistema capitalista, marcado pelo avanço do processo de
globalização e abertura dos mercados, que tem conduzido ao aumento do grau de
exposição das economias, que a ele se integram, à concorrência internacional.

Destarte, embora de mais fácil cobrança, por se tratar de um imposto cumulativo,


no sentido econômico (ou em "cascata", à medida que o imposto pago nas etapas
anteriores vai integrando a base de seu cálculo nas etapas seguintes), afigura-se a um
tributo que, incompatível com os princípios da equidade, da neutralidade e da
competitividade, por não permitir a plena desoneração de sua incidência da produção, dos
investimentos e das exportações, está sendo removido dos sistemas de impostos, em geral,
e sendo remetido para ser inscrito, na história, como exemplo a não ser adotado.

Já o imposto sobre o valor adicionado (IVA), uma forma mais moderna do imposto
sobre as vendas, teve sua aparição como idéia proposta por Von Siemens ao Governo
Alemão em 1918 ( Due, 1974:168). Entretanto, somente em 1935, a Argentina, e em 1948,
a França, o introduziram em seus sistemas de impostos, mas com sua incidência restrita à
produção industrial. Em 1954, a França ampliou essa base de incidência, a ela
incorporando o estágio atacadista. Somente a partir de meados da década de 60, sua
incidência, em todos os estágios da produção e da distribuição, se tornaria uma realidade.
O Brasil, pioneiramente, o adotou em 1966, na forma do Imposto sobre a Circulação de
Mercadorias (ICM), seguido, posteriormente, dos países da Europa pertencentes ao
Mercado Comum até se disseminar, na atualidade, pela maioria das economias (Quadros,
1995:89).

O Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) apresenta o mérito, ainda segundo Due
(1974:171), de ao ser "... aplicado unicamente ao valor adicionado de cada firma, e não às
receitas brutas, não afetar a organização da produção, o grau de integração e a alocação de
funções particulares, com a condição de que todos os setores, inclusive o varejista, sejam
abrangidos".
137

Apesar de pioneiramente ter caminhado no sentido de remover os impostos


indiretos "em cascata" de sua estrutura em 1966, o Brasil acabou adotando, na verdade,
dois IVAs, à época, sendo um de base ampla e de competência estadual - o Imposto sobre
Circulação de Mercadorias (ICM), que substituiu o Imposto sobre Vendas e Consignações
(IVC) - e outro de competência federal e com base restrita aos produtos industrializados - o
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que substituiu o antigo Imposto de
Consumo (IC). Além disso, manteve, na esfera municipal, o Imposto sobre Serviços (ISS),
que incide sobre a receita bruta das empresas prestadoras de serviços, com características
cumulativas ("em cascata"), já que, cobrado nas etapas intermediárias da cadeia de
produção e circulação, não pode ser compensado nas etapas posteriores.

Não bastasse essa complexidade da estrutura, dada a superposição da incidência


destes impostos, com efeitos de cumulatividade sobre o consumo, que não pode ser
integralmente desonerado, este quadro viu-se agravado, a partir de 1980, pela adoção de
um princípio misto de origem e destino, no caso do então ICM - mantido com a criação do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transportes Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) em 1988 - na tributação das transações
interestaduais, que facilita a sonegação e estimula as "guerras fiscais" entre os estados. (
Quadros, 1995:78)

Segundo Quadros (1995:75-6) são duas as principais alternativas para a adoção do


IVA, sendo ambas capazes de gerar o mesmo efeito do ponto de vista da arrecadação:

a) um imposto de estágio único, incidente apenas na última etapa do processo, ou


seja, no momento da venda ao consumidor final. Esta alternativa, adotada nos EUA., onde
o imposto é acrescentado ao preço da mercadoria adquirida pelo consumidor, apresenta
como vantagens o fato de não gravar as etapas anteriores do ciclo de produção e
comercialização do produto e de reforçar o conceito de cidadania tributária. Em
contrapartida, caso não sejam fortes os laços de solidariedade tributária existentes no país,
sua adoção requer, para coibir a sonegação, a montagem de um eficiente mecanismo de
administração e fiscalização do imposto, cujos custos podem não compensar os ganhos
com ele obtidos;

b) um imposto de múltiplos estágios, que incide sobre o valor que é adicionado na


forma de remuneração aos fatores de produção - lucros, salários etc. - em todas as etapas
do ciclo de produção e comercialização do produto. Segundo Quadros (1995), este é o
imposto que se conhece na literatura como IVA, adotado no Brasil, Europa e na maioria
dos países, o qual pressupõe que o imposto recolhido na fase precedente seja compensado
na posterior, conduzindo, num processo em cadeia, seu valor para o preço final do produto.

São três os métodos utilizados para a apuração de seu valor: o método da adição, o
da subtração e o do crédito do imposto.

Segundo Rezende, (Rezende, 1977:61), pelo primeiro, o valor adicionado é


calculado, através da soma dos pagamentos realizados aos fatores de produção - salários,
lucros etc. - num determinado período de tempo. Ao valor encontrado, aplica-se a alíquota
estipulada em lei, obtendo-se o valor do imposto a pagar.

Pelo segundo, o valor adicionado é calculado, subtraindo-se do total de vendas o


valor das compras realizadas, inclusive as referentes às de bens de capital, o que torna
138

isentos os rendimentos líquidos do capital. À diferença encontrada, aplica-se a alíquota


estabelecida para obter o imposto devido.

Pelo terceiro, que é "... uma variante do método da subtração, ao total das vendas
efetuadas no período t aplica-se a alíquota do IVA e subtrai-se deste resultado o total do
IVA referente ao total das compras efetuadas, também no período t." Ainda segundo
Rezende (idem:61), "este método apresenta a vantagem de autofiscalização tributária, uma
vez que o direito ao uso do crédito fiscal está condicionado ao lançamento do imposto
recolhido na nota fiscal."

O imposto, por sua vez, pode ser calculado segundo dois critérios: a) "por fora"; e
b) "por dentro". A diferença entre estes dois critérios diz respeito ao fato de se excluir
(primeiro critério) ou não (segundo critério) o imposto da sua base de cálculo. Isso
significa que, no primeiro caso (cobrança “por fora”) o imposto não incide sobre ele
próprio (“em cascata”), encarecendo o preço do bem, já que o seu valor não faz parte de
sua base de cálculo. No segundo (cobrança “por dentro”), o valor do imposto ao ser
incorporado ao preço do bem para ser calculado pela alíquota legal (“em cascata”),
aumenta o seu preço final, pois será mais elevado que na situação anterior.

Quando o imposto é cobrado "por fora" tem-se, assim, que a alíquota nominal é
idêntica à alíquota efetiva para ele estabelecida. Quando o imposto o imposto é incluído na
sua base de cálculo, a alíquota efetiva é maior do que a alíquota nominal (legal). Isso
significa que o preço final da mercadoria é maior, a uma mesma alíquota nominal, se o
imposto é calculado "por dentro" do que aquele que é cobrado "por fora". (Rezende,
1977:60)34

Outra característica deste imposto diz respeito ao princípio que governa sua
cobrança de acordo com o momentum de incidência: a) o da origem (ou da produção) e o
do destino (ou do consumo). A opção por uma ou outra forma de cobrança tem
implicações para o comércio exterior, para o gravame dos bens de capital e para as
relações intergovernamentais, quando os países que o adotam se encontram organizados
sob a forma de uma federação e o imposto é de âmbito estadual.

Quando governado pelo princípio da origem (produção), a existência de "fronteiras


econômicas" entre países e dentro de um mesmo país - caso não seja ele de âmbito
nacional - torna mais difícil a desoneração plena das exportações de sua incidência, bem
como os bens de capital, assim como se tornam mais complexas, do ponto de vista da
administração, cobrança e distribuição de sua arrecadação, as relações
intergovernamentais.

Se, pelo contrário, sua incidência se dá pelo princípio do destino, a desoneração das
exportações e dos bens de capital pode ser facilmente garantida pelo estabelecimento de
alíquota zero para estes setores, assim como ficam equacionados os problemas causados
34
O cálculo "por fora" do imposto é dado pela fórmula: PF = PP + rPP, onde PF corresponde ao preço final
da mercadoria, PP o preço do produtor e r a alíquota do imposto. Já o cálculo "por dentro" é feito através da
seguinte fórmula: PF = PP + rPF. Neste caso, como é fácil perceber, o imposto integra a base de seu cálculo,
tornando a alíquota efetiva maior que a nominal. Um exemplo ajuda a esclarecer melhor essa questão. Um
imposto com uma alíquota legal de 25% terá, se cobrado “por dentro”, uma alíquota efetiva de 33,3%, de
acordo com a fórmula acima, onde, resumidamente, PP /1-r.
139

pela existência de "fronteiras econômicas" dentro de um mesmo país federativo, caso seja
ele de competência das esferas estaduais. Em face dessas suas características, a tendência
moderna, diante do processo de abertura das economias e de integração dos blocos
regionais, é a de adoção dos IVAs pelo princípio do destino.

Segundo Quadros (1995:76) "as principais características do IVA europeu são:


incidência de forma ampla sobre toda a cadeia de produção e circulação; incidência de
forma não cumulativa; não-incidência sobre bens de capital - onera apenas o consumo -, o
que o caracteriza como um IVA-consumo; não tributação das exportações, caracterizando-
o como um imposto cobrado segundo o princípio do destino nas relações internacionais; e
incidência seletiva em função da essencialidade dos bens. Complementarmente, nesses
países, a tributação do consumo é suplementada por "excise taxes" incidentes sobre alguns
produtos específicos de consumo final."

Quadro 4.4

Brasil: Impostos Indiretos

Imposto Ano da instituição


Importação (II) 1808
Exportação (IEx) 1818
Produtos Industrializados (IPI) 1966
Operações Financeiras (IOF) 1966
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) 1923/1988
Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) 1891/1966
Fonte: Brasil. Constituição Federal

6. AS OPÇÕES E OS DILEMAS DA TEORIA CONVENCIONAL NA


CONSTRUÇÃO DOS SISTEMAS TRIBUTÁRIOS

Aparentemente, e conhecendo-se as características dos impostos, pode parecer trivial, uma


vez definido o montante de recursos de que o Estado necessita para o desempenho de suas
funções, escolher o mix - a composição ideal - da carga tributária, abstraindo, obviamente,
da capacidade da economia de comportar essa combinação, como o faz a teoria
convencional das finanças públicas.

Se corretas as características dos impostos, anteriormente apontadas, a preferência


pela cobrança de impostos diretos, especialmente incidentes sobre a renda, combinados
com impostos indiretos gerais sobre o consumo - isentando-se os bens de capital, por
exemplo - pareceria uma opção mais adequada para o atingimento daqueles objetivos.

Para a teoria convencional, essa nunca foi vista, contudo, como uma questão trivial.
Isso porque a cobrança de impostos afeta, de uma maneira geral, a estrutura prévia de
distribuição de renda e interfere no processo de alocação de recursos da economia,
podendo comprometer o ponto de equilíbrio de máxima eficiência em que o sistema opera
– um de seus pressupostos. Para ela, diante disso, o melhor sistema de tributação seria o
que menos interferisse nesse processo, ou que se apresentasse, digamos, “neutro”, para que
140

o sistema não se desviasse de seu leito natural de equilíbrio, causando perda de bem-estar
para a sociedade. Para garantir isso, seria necessário identificar esses efeitos e estabelecer
normas de tributação adequadas para conciliar os objetivos da equidade com o da
neutralidade da tributação, procurando encontrar uma solução para os inevitáveis trades-off
em que estes incorreriam.

Isso ocorre porque, de acordo com os manuais de finanças públicas, os impostos


podem gerar, de uma maneira geral, de acordo com sua incidência, dois efeitos - o efeito-
renda e o efeito-substituição - que repercutem no comportamento dos agentes
econômicos, alterando suas decisões no tocante à poupança, lazer, trabalho etc., e
aumentando, consequentemente, os custos de eficiência do sistema. Nessa situação,
mesmo que o Estado aplique produtivamente os impostos que recolhe da sociedade seria
gerado, como argumentam Musgrave & Musgrave (1980: Cap. XXI), um excesso de
gravame, traduzindo-se em perda de bem-estar social, à medida que as decisões dos
agentes econômicos sobre investimentos, trabalho, poupança etc. seriam afetadas e
desviadas do ponto ótimo de eficiência do sistema em que este estaria, em tese, operando
antes da cobrança dos impostos.

Por essa razão, a teoria das finanças públicas procurou, desde as primeiras
teorizações feitas sobre o funcionamento do mercado pelos clássicos e, posteriormente
pelos neoclássicos, sugerir normas, apoiadas na formulação de princípios teóricos abstratos
da tributação, formulados à luz dos critérios de eficiência – como os da “neutralidade” e da
“equidade” – que deveriam balizar a construção dos sistemas tributários, visando reduzir
sua interferência no processo de alocação de recursos com o objetivo de garantir o
funcionamento eficiente do sistema.

Sua preocupação não foi, assim, a de procurar compreender os determinantes ou


buscar explicações para a formação e composição das estruturas tributárias, mas o de
identificar as condições e sugerir normas que deveriam ser observadas na construção
destes sistemas, de forma a não provocar, ou pelo menos minimizar, perdas de eficiência
que a cobrança de impostos poderia provocar, nessa visão, para a atividade econômica, e,
portanto, para o bem-estar social. A rigor, tanto o princípio da neutralidade como o da
equidade vinculam-se, na sua origem, a este objetivo, embora, posteriormente, ao último
tenham passado a ser atribuídos compromissos com a questão redistributiva.

Com a abertura das economias no capitalismo globalizado, o princípio da


competitividade, um desdobramento do princípio da neutralidade/eficiência assumiu, por
sua vez, a condição de norma superior da tributação, passando a orientar as reformas nos
sistemas tributários dos países integrados a este processo, com recomendações de exclusão
ou redução da incidência/cobrança de impostos da produção, dos investimentos, das
exportações e dos fatores de produção que apresentam alta mobilidade espacial, como, por
exemplo, a mão-de-obra técnica mais qualificada.

Um rápido exame do conteúdo de cada um deles, bem como de seu significado e


dos problemas, dificuldades, limitações e implicações que apresentam para a construção
destes sistemas, é feito em seguida, visando estabelecer as bases para a formulação de uma
proposta alternativa de compreensão dos determinantes e condicionantes tanto do tamanho
como da composição de suas estruturas.
141

6.1. Os Princípios da Neutralidade e da Equidade: algumas observações críticas

Tanto o princípio da Neutralidade quanto o da Equidade da tributação foram


originalmente construídos com o objetivo de garantir que, apesar do Estado e da
necessidade de cobrança de impostos para financiar suas atividades, o sistema tributário
deveria ser estruturado de forma a evitar que o organismo econômico seja desviado de seu
leito “natural” de equilíbrio, o qual corresponde ao da máxima eficiência possível ou ao
“ótimo de Pareto”.

O primeiro postula que para manter-se nessa situação (de máxima eficiência) a
tributação deve ser “neutra” em relação às decisões sobre a alocação de recursos,
priorizando impostos que não modifiquem os preços relativos determinados pelo mercado
nem afetem as decisões dos agentes econômicos no que diz respeito à sua capacidade de
trabalhar, economizar e investir, pois isto reduziria a eficiência do sistema, provocando
perda no nível de bem-estar da sociedade.

O segundo, o princípio da equidade, baseado também na hipótese de que o sistema


se encontra em equilíbrio e, como conseqüência, com uma dada estrutura de distribuição
de renda que pode ser considerada ótima, que a tributação não altere a posição dos agentes
econômicos com políticas redistributivas, pois isso implicaria também perdas de eficiência
e redução do bem-estar geral da sociedade. Daí a sugestão de J. Mill de que “um imposto
atuando justamente devia deixar a condição relativa de diferentes classes de contribuintes
sendo a mesma antes e depois do imposto” (Mill apud Myrdal, 1984: 243, nota de pé-de-
página n. 11).

Como os impostos geram, no entanto, “efeito-renda” e “efeito-substituição”,


afetando e modificando as decisões e posições dos agentes econômicos, a melhor
alternativa para manter a neutralidade da tributação seria a cobrança de um imposto
uniforme per capita de todos os cidadãos, considerado o mais capaz de gerar um gravame
total nulo. Mas, como um imposto dessa natureza representa um antípoda da equidade, que
mais tarde seria vinculada a princípios de justiça e sócio-políticos e, consequentemente, a
políticas redistributivas, sugere-se que as distorções devem ser, pelo menos, minimizadas,
adotando-se impostos que provocam menos distorções, tais como o Imposto Geral sobre o
Consumo e o Imposto Geral sobre a Renda, mas com alíquotas proporcionais.

Considerando os serviços ofertados pelo Estado, o “ideal” considerado para este


objetivo seria vincular a cobrança do imposto ao benefício diretamente recebido pelo
cidadão, pois, neste caso, as posições dos agentes não seriam alteradas no sistema,
mantendo-se seu status de equilíbrio. Dificuldades de operacionalização deste critério (do
benefício), dada a natureza de indivisibilidade dos bens públicos, levaram à formulação de
um novo critério para atender o princípio da equidade, o da “capacidade de contribuição”,
o qual, apesar de desconsiderar os benefícios resultantes do pagamento do imposto, não se
revelaria também teoricamente factível porque, baseado em curvas de utilidade da renda
dos indivíduos, cuja exata inclinação não é conhecida, dadas as dificuldades destes
manifestarem suas preferências, necessidades e prioridades, deixaria indeterminado como
o ônus tributário deve ser distribuído entre os contribuintes de forma a garantir para todos
o “mesmo grau de sacrifício”.
142

Não surpreende, assim, que apesar de continuarem figurando nos manuais de


Finanças Públicas, tais princípios apenas costumam ser usados e repetidos como um
mantra para justificar determinadas políticas nem sempre favoráveis à sociedade como um
todo.

De um lado, como aponta Dalton (1972:109-116) não é possível comprovar que o


aumento de imposto: i) reduz o desejo de trabalhar do indivíduo, como postula o princípio
da neutralidade, porque “tudo vai depender da elasticidade de sua procura de renda, nos
termos do esforço e sacrifício que faz para obtê-la: se inelástica, constitui estímulo à
economia e a trabalho; se elástica, a hipótese por ela adotada, desestímulo, mas não há
nenhuma evidência de que isso ocorra”; ii) da mesma forma, mesmo que o imposto reduza
a capacidade de poupança dos indivíduos, isso não necessariamente prejudica os
investimentos, pois no capitalismo moderno são as empresas que os garantem através dos
lucros e do crédito e também do recebimento de tratamentos tributários diferenciados
conferidos pelo governo para sua realização, tais como a imposição de alíquotas mais
baixas sobre lucros não distribuídos, entre outras formas; iii) mais grave, e com ele
concordam Musgrave & Musgrave (1980) e Myrdal (1984) é que a obsessão com a
questão da neutralidade da tributação, bem como o método que utiliza, impede a teoria de
ver o que ocorre pelo lado dos gastos que o Estado realiza. Porque “(...) se os resultados da
tributação forem bem aplicados, o estímulo à produção resultante dessa despesa poderá ser
muito mais forte que a redução da produção resultante da tributação. As finanças públicas,
consideradas em conjunto seriam, então, responsáveis pelo aumento da produção” (Dalton,
1974:123).

Na verdade, tanto Dalton como Musgrave & Musgrave filiam-se à vertente


keynesiana, a qual, ao ampliar os papéis e funções do Estado para além de meras questões
alocativas, como no pensamento clássico e neoclássico, abriu espaços para o surgimento
do Princípio do Maior Benefício Social, apoiado na análise da relação custo-benefício,
onde o que interessa, de fato, é o resultado líquido produzido pela tributação e pelas
despesas governamentais para a sociedade.35

É ainda Dalton (apud Pires, 1996:29) quem sintetiza bem este novo Princípio, já
em 1936, quando começam a entrar em cena as funções distributiva e estabilizadora do
Estado, em seu trabalho sobre Finanças Públicas:

“Na base das finanças públicas há um princípio que não se pode


esquecer. É o que se pode chamar de princípio do maior benefício
social. Toda operação de finanças públicas se traduz numa série de
alterações do poder aquisitivo total e de modificações subseqüentes
na utilização dos recursos econômicos. Essas mutações são feitas
através de tributação ou por outros meios (...) As variações no poder
aquisitivo total processam-se através do orçamento, dos bancos ou de
ambos simultaneamente. De um modo geral, ocorre visível aumento
de poder aquisitivo sempre que o orçamento apresenta déficit ou
quando os bancos ampliam o crédito; visível diminuição desse poder
se verifica quando o orçamento apresenta saldo ou quando os bancos
restringem o crédito (...) O melhor sistema de finanças públicas é o
que assegura maior benefício social como resultado das operações
que leva a efeito."

35
Para uma avaliação cuidadosa da crítica e discussão destes princípios consultar o trabalho de Pires
(1996).
143

Foram tempos em que a teoria keynesiana ensaiava os primeiros passos de uma


trajetória que se mostraria vitoriosa para o desenvolvimento vigoroso do capitalismo
até os primeiros anos da década de 1970. Tendo eclipsado, mas não desalojado dos
manuais da teoria convencional, o “princípio da neutralidade” e colocado em cena o
“princípio do maior benefício social”, este perderia força quando a crise que se abateu
sobre o sistema nessa década colocou em questionamento as idéias de Keynes, bem
como o papel da política fiscal como produtora de benefícios econômicos e sociais. No
retorno triunfante da ortodoxia, o “princípio da neutralidade” voltaria a ocupar papel
preponderante, dele sendo derivado, nas transformações conhecidas pelo capitalismo
nas décadas de 1980 e 1990, “o princípio da competitividade”.

Já o critério da “capacidade de contribuição”, baseado em curvas de utilidade da


renda de caráter essencialmente subjetivo, com o qual se pretendeu, exigindo-se “igual
sacrifício” de todos os contribuintes, manter em equilíbrio o sistema com a mesma
estrutura de distribuição de renda, não poderia ter recebido crítica mais contundente do
que a feita por Myrdal:
"(...) a teoria da capacidade falha de ponta a ponta. Nem a tributação
proporcional nem, como alguns prefeririam, a progressiva, pode ser
deduzida da exigência de igual sacrifício. Não conhecemos o tipo da
curva de utilidade marginal da renda. Nem poderemos jamais conhecê-
la, pois o conceito todo é metafísico. Demais, não podemos determinar o
significado de "igual sacrifício", sem ambigüidade. Está aberta a várias
interpretações possíveis, cada uma das quais é tão boa ou tão má quanto
qualquer outra. Além disso, o argumento repousa sob a suposição de que
a distribuição existente é correta (...) hipótese logicamente incompatível
com o argumento em que ela se baseia. Finalmente, não só o sacrifício
igual não deriva do princípio utilitarista da maximização da utilidade,
como, na realidade, o contradiz."

O fato é que a teoria das finanças públicas não conseguiu encontrar respostas
satisfatórias para dar um tratamento simultâneo aos princípios da neutralidade e da
equidade, visando assegurar a eficiência do sistema econômico. No caso do Princípio da
Equidade, se tecnicamente é possível concluir com Musgrave & Musgrave (1980:179)
que, dadas suas limitações em relação aos problemas distributivos - critério do benefício -
e à indeterminação no fornecimento dos serviços públicos - critério da capacidade de
pagamento -, além das dificuldades práticas que existem para sua mensuração, "nenhuma
dessas abordagens é de fácil interpretação ou implementação", torna-se possível também
concluir serem tais critérios meras figuras de ficção, utilizadas para justificar a imposição,
através de consenso, da cobrança de tributos da sociedade. É por isso que para O’Connor
(1977:204), tais princípios não passam de slogans com os quais “as classes dominantes,
normalmente, ou tentam esconder ou justificar e racionalizar ideologicamente a exploração
tributária”.36

36
Críticas agudas e detalhadas destes princípios podem ser encontradas em Myrdal (1984), Musgrave &
Musgrave (1980), Dalton (1972), O’Connor (1977) e Pires (1996).
144

6.2. O princípio moderno da competitividade

A globalização dos mercados financeiros e de produtos, um fenômeno que vem se


aprofundando desde a década de 1980, juntamente com o avanço e consolidação dos
blocos regionais e a formação de áreas de livre comércio, colocaram a exigência de
reformas nos sistemas de tributação dos países envolvidos neste processo, visando adequá-
los a essa nova realidade do capitalismo. Assim como novos parâmetros de referência
foram estabelecidos para a política fiscal no campo do gasto público, da dívida, do déficit,
nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo, à luz do pensamento dominante, também
no campo da tributação a preocupação com a questão da competitividade e da eficiência
conduziu à formulação de novas diretrizes e normas que devem ser observadas na
estruturação dos sistemas tributários que se considera a ela mais adequadas.

Tornado norma superior da tributação, o princípio da competitividade passou a


orientar as mudanças que tiveram início, a partir dessa época, nas estruturas tributárias dos
países participantes do comércio e do fluxo mundial de capitais, com o objetivo de
retirar/atenuar o ônus dos impostos incidentes sobre o capital, em suas diversas formas, e
desonerar a produção, os investimentos e as exportações, sob pena de redução dos
investimentos e/ou das exportações.

Ou seja, para neutralizar efeitos adversos para a competitividade de sua produção


provocados por incidências diferenciadas de tributos vis-à-vis os concorrentes no mercado
internacional, e para participar, em melhores condições de igualdade, do fluxo mundial de
capitais, a estes países passou a ser recomendada a reforma de suas estruturas tributárias,
visando harmonizá-la com as dos demais, o que significa dar tratamento privilegiado ao
capital, remover impostos de má qualidade de seus sistemas (como os impostos
“cumulativos”, que distorcem preços relativos e aumentam o custo da produção) e
desonerar a produção, de uma maneira geral, transferindo o custo de financiamento do
Estado para outras bases impositivas.

Com essa perspectiva, a harmonização das políticas tributária deve ser alcançada,
de acordo com Rezende (2001, Cap. 14) com o ajustamento dos impostos incidentes nos
mercados financeiro, de produtos e do trabalho. No mercado financeiro, onde, como
lembra este autor, “o dinheiro é a mercadoria que circula com maior facilidade e rapidez,
os ajustes devem também ser feitos em curto espaço de tempo, extinguindo práticas
tributárias diferenciadas que fogem ao padrão aceitável internacionalmente.” Isso significa,
para ele, “...abandonar práticas comuns no passado [como a de tributar] o lucro auferido
por empresas estrangeiras (no momento da realização e por ocasião de sua remessa ao país
de origem), ajustar a incidência do imposto sobre as aplicações financeiras ao padrão
internacional e garantir a estabilidade das regras tributárias.”

No mercado de produtos, a regra a ser seguida é a de extinguir completamente os


impostos que afetam a competitividade no mercado internacional e isentar as exportações
de qualquer incidência tributária. Para isso, é necessário: i) proteger os investimentos de
sua cobrança; ii) extinguir impostos cumulativos de sua estrutura, pois estes encarecem as
exportações, já que não conseguem ser integralmente compensados, e colocam em
desvantagem a produção voltada para o mercado doméstico em relação ao produto
importado, quando este não sofre, nos países de origem, a incidência de impostos dessa
natureza; e iii) priorizar a cobrança de impostos, de base ampla, incidentes sobre o valor
145

agregado, os IVAs, por não provocarem distorções nos preços relativos, permitirem mais
facilmente a desoneração dos investimentos e das exportações e, por isso, serem mais
condizentes com a questão da competitividade.

Já no mercado de trabalho, segundo Rezende (2001, Cap. 14), as pressões


internacionais para a harmonização são menores não somente pelas diferenças que existem
nas estruturas e dinâmicas destes mercados nos distintos países como também porque a
cobrança de contribuições sobre a folha de salários constitui uma prática
internacionalmente comum.

De qualquer forma, a recomendação, nas suas palavras, é a de “reduzir custos


decorrentes de pesados encargos trabalhistas para ganhar melhores condições de competir
no mercado internacional”, o que significa desonerar as empresas das contribuições
previdenciárias e extinguir direitos trabalhistas (a exemplo do instituto do 13º salário e o
das férias constitucionais existentes no Brasil) que oneram seus custos de produção. Da
mesma forma, para evitar o desestímulo ao trabalho e a fuga de mão-de-obra técnica mais
qualificada para outros países, que dão tratamento tributário mais favorecido para essa
fonte de renda, sugere-se a redução do leque das alíquotas marginais do Imposto de Renda
incidente sobre as pessoas físicas, retirando também deste imposto qualquer compromisso
com a questão da equidade, o que já vem sendo realizado em diversos países, entre os
quais o Brasil.

De acordo com essas recomendações, caso seguidas à risca, as estruturas dos


sistemas tributários deverão adquirir uma configuração em que as bases impositivas serão
as de menor mobilidade territorial (para evitar deslocamentos dos fatores de produção
motivados por diferenciais tributários), enquanto o mix de impostos deverá ser formado
preponderantemente pelos que incidem sobre a renda pessoal (de preferência com
alíquotas proporcionais), sobre o consumo (na forma do IVA, complementado com
impostos especiais cobrados sobre alguns produtos – bebidas, fumo, combustíveis etc.), e
sobre a folha de salários (contribuições), dos quais as empresas muito certamente deverão
ser isentas.

Como se percebe, uma estrutura em que a preocupação com a eficiência e a


competitividade não deixa mais lugar para compromissos com a questão da equidade pelo
lado da tributação e para a distribuição de seu ônus de forma mais justa, como sempre
defenderam os economistas e pensadores das finanças públicas.

Com o princípio da competitividade, desfaz-se a máscara do pensamento


dominante em relação a essas preocupações, anteriormente expressas nos princípios do
benefício e da capacidade de contribuição, sob o argumento de não ser o sistema tributário,
pelas distorções que acarreta para o bom funcionamento do sistema econômico, o campo
propício para a correção das desigualdades interpessoais de renda, cuja solução seria
melhor encontrada no campo do gasto público. É por isso, que muito da ênfase das
recomendações das políticas fiscais, inclusive oriundas de instituições como BIRD, BID
etc. se deslocam para este campo, visando melhorar a eficiência e resultados dos gastos
para a sociedade, por meio de instrumentos como os da descentralização das políticas
sociais, aumento da participação direta de seus representantes na definição do orçamento,
formação de conselhos gestores dessas políticas, em geral etc.
146

Para O’Connor (1977:204), como visto anteriormente, “as classes dominantes ou


tentam esconder ou justificar e racionalizar ideologicamente a exploração tributária [por
meio] de ‘slogans’ como os de ‘justiça’ ou ‘equidade tributária’ ou ‘incentivos ao
progresso”. Normas como essas fazem parte do jogo da dissimulação para justificar
estruturas que terminam lançando o maior ônus da tributação sobre os ombros mais fracos,
sempre em nome do progresso, da eficiência e, na atualidade, da competitividade.

Para os arautos dessa nova ordem (e norma) não há espaços, no campo tributário,
para políticas redistributivas, as quais devem ser confinadas ao campo do gasto público,
que não é, como se sabe, propriamente um campo que consegue atender os interesses das
classes menos favorecidas da sociedade.

Para o capital e as classes e frações mais favorecidas, a nova norma não poderia ser
mais bem-vinda: com ela retira-se qualquer veleidade distributiva do espaço tributário,
torna praticamente imunes ou apenas suavemente taxados o capital e as altas rendas, e
transfere a responsabilidade deste processo para um campo em que os mais poderosos
política e economicamente exercem maior influência na sua definição: o do gasto público.
E, o que é também importante, liberta a teoria da incômoda tarefa de continuar insistindo
em encontrar soluções mais adequadas ou menos indesejáveis para os inevitáveis trades-
off existentes entre eficiência e equidade.

Uma importante questão não pode deixar de ser considerada como conseqüência
deste processo. O estreitamento das bases de incidência da tributação indica que o Estado
poderá ter de se contentar com menores receitas para financiar suas atividades – o que está
de acordo com o pensamento neoliberal – ou, caso contrário, aumentar o esforço tributário
de setores que atualmente arcam com o seu ônus.

Como o tamanho da dívida pública e o compromisso de pagamento de seus


encargos aos credores do Estado não permitem reduções significativas na carga tributária,
dados os seus compromissos com a defesa dos interesses do capital financeiro, é mais
razoável contar com o deslocamento da tributação para os segmentos atualmente mais
penalizados com essa contribuição, entre os quais se inclui, de forma importante, a classe
média. Neste caso, e há evidências de que este segmento da sociedade tem também sido
conduzido a um grau crescente de empobrecimento, o Estado pode estar perdendo a
legitimidade de sua atuação e o sistema correndo riscos de ter questionadas as estruturas
que garantem sua reprodução.

6.3. Um balanço das limitações da teoria convencional na explicação e determinação


das estruturas tributárias

A principal conclusão que pode ser extraída da discussão anterior é a de que são
insuficientes as bases da teoria das finanças públicas para explicar e determinar as
estruturas tributárias. Apoiada em normas e princípios abstratos que considera
indispensáveis para a construção de sistemas tributários “ideais”, visando manter o sistema
operando com eficiência, a teoria desconsidera as forças políticas, econômicas e sociais
que determinam suas estruturas, as quais, ao contrário do que preconiza, podem lhe dar
uma conformação distinta ou não comportarem as combinações de impostos que sugere.

A norma, por um lado, apresenta-se problemática para aplicação geral em


realidades econômicas diferenciadas, além de inconsistente em seus objetivos diretores de
147

preservar o funcionamento com eficiência do sistema e promover, ao mesmo tempo,


redistribuição dos frutos do crescimento, sem sacrificá-lo em alguma medida. A
descontextualização histórica dos princípios com que opera a impede, por outro lado, de
compreender por que a realidade das estruturas tributárias destoa, em geral, de seus
ensinamentos, raramente os sancionando.

Como vimos, a análise do conteúdo dos princípios da neutralidade e da equidade,


considerados tanto o critério do benefício como o da capacidade de pagamento, revelou,
por um lado, como não se consegue, através deles, determinar os níveis de tributação e dos
gastos - e, portanto, a própria dimensão do Estado, como pretendido pela ortodoxia
neoclássica - ao mesmo tempo que indicou, por outro, as dificuldades práticas de sua
aplicabilidade e as questionáveis recomendações deles derivadas para a configuração dos
sistemas tributários.

Procurando explicar as razões dessa fragilidade e limitação da teoria, Myrdal


(1984:133) chama a atenção para o fato de que, além do problema da incidência
econômica do imposto que continua mal resolvido "...em nenhum outro campo fez a
intrusão da metafísica tão mal quanto aqui [sendo] quase toda a teoria das finanças
públicas um [mero] refinamento de certos princípios diretores, tais como "economia" ou
"equidade". E ainda que "...as doutrinas econômicas normativas são em grande parte
racionalizações de atitudes políticas e, na teoria das finanças públicas, provavelmente
ainda mais do que alhures, porque pressões políticas mais fortes atuam sobre ela."
(idem:133/4)

Essas limitações da teoria convencional das finanças públicas, muito em razão de


se ter como ponto de partida esses princípios diretores, terminam indeterminando o
sistema, por ser

"característico da teoria que conclusões concretas de todo tipo podem


ser e foram, de fato, tiradas de qualquer série de princípios. Assim, a
tributação regressiva, proporcional, progressiva e degressiva, foram
todas justificadas e refutadas tanto pelo princípio da capacidade como
pelo princípio do interesse." (idem:134)

E, de forma ainda mais clara, sobre as raízes dessas divergências e indeterminação:

"todos os participantes nessa discussão de princípios compartilham a


convicção de que há de haver uma norma superior que toda a política
orçamentária deveria obedecer. Para começar, essa norma é
estabelecida. É uma fórmula vazia; por exemplo: que toda tributação
deve ser "justa"; que a despesa deve ser "econômica"; que os indivíduos
devem ser tratados como "iguais" etc. Quase qualquer frase servirá se
for suficientemente destituída de significação. Nenhuma significação
empírica concreta é determinada, e naturalmente nenhuma significação
a priori pode ser deduzida. A norma é, então, usada como se fosse
significativa, isto é, pergunta-se que políticas práticas se podem seguir a
partir delas. Um conteúdo concreto nela se introduz, e assim, as
diferenças de opinião surgem obviamente.” (idem:134/5)

Nem mesmo o surgimento da teoria da "escolha pública” a partir da década de 70,


no século XX, operando com o conceito de democracia representativa e transpondo para a
determinação das demandas por bens públicos a soberania do eleitor, em substituição à
148

soberania do consumidor prevalecente para o caso dos bens privados, através do mercado
de votos, conseguiria respostas satisfatórias para essa questão, pela debilidade de seu
arcabouço teórico.

Já a vertente keynesiana, apesar de não operar com os princípios da teoria


convencional - os da equidade e da neutralidade - e atribuir outras funções ao Estado,
como as de natureza distributiva e estabilizadora, que deram substância ao princípio do
maior benefício social, e outro status para a política fiscal e para os déficits orçamentários,
também não logrou estabelecer parâmetros/referências para a estruturação mais
recomendada dos sistemas de impostos. A não ser naqueles casos em que os rendimentos e
a riqueza se revelam, nas mãos de seus detentores, desfavoráveis para a propensão a
consumir da economia e, portanto, para a fragilidade da demanda efetiva e para os
estímulos ao crescimento, como é o caso dos ganhos originários dos lucros de capital, das
heranças etc. (Keynes, 1983:253/4).

É bem verdade que com a norma mais moderna da competitividade, a teoria


consegue libertar-se das restrições colocadas pelo compromisso com a equidade e, em
nome da eficiência num mundo globalizado, recomendar a construção de sistemas que
dêem tratamento privilegiado à produção, aos lucros, às exportações e aos fatores de alta
mobilidade espacial (incluindo a mão-de-obra qualificada), livrando-se dos incômodos
trades-off que a limitavam.

Contudo, como norma derivada de um contexto em que predomina a concorrência


internacional, as estruturas de impostos com ela propostas, que estão orientando as
reformas tributárias de diversas economias no mundo, ao ignorar as forças políticas que
influenciam essas estruturas e privilegiar o capital e as altas rendas neste processo,
transferindo o ônus da tributação em que estes incorriam para os setores menos
favorecidos da sociedade, descomprometendo-se com políticas redistributivas neste
campo, pode estar abrindo uma senda de conflitos com esses setores, cuja reação poderá
neutralizar seus propósitos e produzir um formato distinto do que preconiza. Para entender
isso, apresenta-se, em seguida, uma visão alternativa dos determinantes do tamanho e da
composição da carga tributária, procurando apreender como as forças econômicas,
políticas e sociais interagem neste processo.

7. UMA VISÃO ALTERNATIVA DOS DETERMINANTES DO TAMANHO E


DA COMPOSIÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA

Segundo Dalton (1970:155) "sei lá" (no how) foi considerada a melhor resposta
dada por Edwin Cannan, em 1921, à pergunta dirigida a vários economistas pela
Associação Britânica, preocupada com os níveis atingidos pela carga tributária na Grã-
Bretanha, sobre a capacidade tributável de um país. Traduzida, a pergunta referia-se, em
outras palavras, ao peso da carga tributária que uma economia pode suportar sem provocar
desestímulos aos investimentos, à produção e ao trabalho.

A resposta de Cannan, que parece transmitir desconhecimento do assunto, é


reveladora, na verdade, de sua complexidade e das múltiplas variáveis que entram na
determinação não somente do tamanho, mas também da composição da carga tributária.
Por isso, os que se arriscaram, como Colin Clarck, como ainda aponta Dalton (1970:156),
a estabelecer o teto de 25% do produto nacional como limite para a tributação de uma
economia, com vistas a evitar o seu ingresso numa trajetória de elevação dos preços e de
149

estagnação da produção, viram suas teses ruírem, especialmente a partir do momento em


que a reforma do capitalismo se tornou necessária e o Estado do bem-estar vital para sua
reprodução no longo prazo. Afinal, ao contrário do que a tese de Clarck indicava, o mundo
desenvolvido viu seus níveis de tributação atingir percentuais correspondentes a 30%, 40%
e, em alguns casos, como nos países escandinavos, a até 50% do produto nacional, no bojo
de um ciclo de crescimento, que se iniciou no período após a Segunda Guerra Mundial e se
estendeu até os anos 70, sem precedentes na história do capitalismo.

Mas se não é possível estabelecer um tamanho ideal de carga tributária, mesmo


porque, lembrando as palavras de Hinrich (1972:12) “... não existe um sistema tributário
ideal para todas as sociedades ou para uma sociedade em todos os tempos", também não se
pode concordar com a posição de Dalton (1972:157), que sugere eliminar a expressão
capacidade tributável de qualquer discussão séria nas finanças públicas. Isto porque,
através do exame de seus determinantes torna-se possível obter elementos que permitem
extrair ilações sobre as condições histórico-concretas em que ela pode apresentar-se mais
ou menos elevada e em avaliar as possibilidades e limites postos para a realização de
eventuais reformas que se coloquem como necessárias para determinadas estruturas
tributárias.

Hinrich (1972), que realizou um amplo estudo sobre o nível de arrecadação e sobre
as mudanças registradas nas estruturas tributárias durante o processo de desenvolvimento,
para um conjunto de países, aponta três variáveis determinantes do tamanho e da
composição da carga tributária:

a) o grau de abertura da economia, à medida que o comércio exterior enseja, por


um lado, a cobrança de impostos de importação e exportação, ampliando as bases da
tributação dos países que iniciam este processo, e irradia, por outro, efeitos benéficos para
outros setores da economia, aumentando a capacidade de extração de recursos, através de
tributos, por parte do Estado;

b) o nível de renda per capita, que, como indicador do grau de desenvolvimento


do país, delimita a dimensão dos recursos a serem obtidos pelo Estado, via tributação, ao
constituir a expressão da base real de sua incidência. Países com baixos níveis de renda
per capita, neste caso, apresentariam reduzido potencial para a cobrança de impostos,
dado a alta propensão ao consumo da população, ao contrário de países com elevada renda
per capita, onde as menores propensões ao consumo e ao investimento ampliam espaços
para o aumento da receita governamental;

c) o estilo cultural, que é entendido, por Hinrich (1972:25), como a "... a tradição
tributária que se desenvolveu em certo país ou que lhe foi imposta". Este estilo cultural
estaria, segundo ele, na raiz da explicação das preferências que determinados países
revelam pela adoção de impostos diretos em detrimentos dos indiretos e vice-versa,
repontando como o principal fator explicativo, portanto, da composição da carga tributária.

Analisando a importância que assumem estes determinantes para explicar o nível e


as mudanças tributárias ocorridas nos países estudados, de acordo com os estágios de
desenvolvimento em que se situam, Hinrich conclui serem distintas as influências de cada
um no processo, com o seu peso alterando-se em função da evolução da sociedade e da
economia. Considerando, assim, uma linha evolutiva da humanidade, que teria como ponto
de partida as sociedades tradicionais, passando pelo que ele chama de sociedades
150

transicionais, para chegar às sociedades ditas modernas, ele resume, em cada uma, o que
seriam os determinantes mais significativos da estrutura da receita governamental:

a) nas primeiras - as chamadas sociedades tradicionais - o poder militar, derivando


a receita governamental predominantemente "... de fontes não tributárias e/ou de impostos
diretos tradicionais - impostos sobre a terra, rebanho, impostos capitais, produção agrícola,
direitos sobre a água e outros do mesmo gênero" (pp.38-45);

b) nas segundas - sociedades transicionais - a abertura econômica ou comércio


exterior, numa primeira etapa, dando origem aos impostos sobre importação e exportação,
com os impostos tradicionais entrando em declínio relativo tanto em relação à receita
arrecadada como à renda nacional. Numa segunda etapa, à medida que o país ingressa num
processo de desenvolvimento de suas atividades internas, e a renda per capita se expande,
os impostos sobre o comércio exterior começam a declinar e a serem suplantados pelos
que incidem sobre a produção e o consumo internos, aos quais se agregam, mais no final
do processo, os impostos diretos, ditos modernos, incidentes sobre a renda das pessoas
físicas e jurídicas;

c) nas sociedades modernas, "... dentro dos limites estabelecidos pela prevalência
da tributação interna, o estilo fixado pelos fatores culturais e/ou políticos” é que vai
determinar não somente o tamanho da carga tributária - e, portanto, do Estado -, mas
também a sua composição, ou seja, o mix de impostos diretos e indiretos.

Em síntese, e de acordo com a argumentação desenvolvida por Hinrich se


considerarmos os países de acordo com o seu grau de desenvolvimento, distintos serão os
determinantes do tamanho e da composição da carga tributária em cada etapa deste
processo.

Nos países subdesenvolvidos37, onde é baixo o nível de renda per capita, é a


abertura econômica a variável chave para explicar o nível e a estrutura da receita
governamental. Como a base da tributação é estreita e pouco diversificada, já que apoiada
predominantemente nas atividades do comércio exterior, tenderão a ser mais reduzidos os
níveis de receita do governo, assim como serão predominantemente os impostos indiretos
os responsáveis pela sua geração.

Nos países em desenvolvimento (emergentes, na atualidade), que deram início ao


seu processo de industrialização e de intensificação de suas atividades internas, observa-se
uma forte correlação entre níveis de renda per capita e receita governamental, dada a
ampliação e diversificação da base tributária, ao mesmo tempo em que os impostos
indiretos internos, numa primeira etapa, adquirem maior importância que os externos,
sendo acompanhados, numa fase posterior, dos impostos diretos modernos.

Por fim, nas economias desenvolvidas, que apresentam maior diversidade da base
da tributação e níveis elevados de renda per capita, são as preferências político-culturais

37
Era essa a classificação que se fazia dos países, à época, considerando o seu grau de desenvolvimento.
Os países pobres, que ainda não haviam dado início a este processo, integravam o grupo dos
subdesenvolvidos. Os que o haviam iniciado (take-off), o grupo dos países em desenvolvimento. Um
terceiro era composto pelos países desenvolvidos. Na atualidade, essa classificação restringe-se às
economias desenvolvidas e às emergentes, desconsiderando-se o primeiro grupo.
151

por impostos diretos ou indiretos e pelos serviços que o Estado pode prestar, os
determinantes do tamanho e da composição das estruturas tributárias.

Sua conclusão, diante disso, é a de que "... os fatores determinantes das estruturas
tributárias para os países em desenvolvimento parecem ser mais fundamentalmente
econômicos que culturais - o caráter das bases econômicas a serem tributadas, tais como o
setor de comércio exterior, e as modificações dessas bases são mais importantes do que
alguns estilos de tributações hereditários, [como], por exemplo, o [do] modelo britânico de
impostos sobre a renda ou [o das] patentes francesas" (idem: 28).

A maior influência dos fatores político-culturais no nível e na composição das


receitas governamentais constituiria, assim, um privilégio de economias desenvolvidas,
que apresentam níveis elevados de renda per capita e uma base de tributação
diversificada, que permite tanto escolhas entre impostos diretos e indiretos como a opção
por maiores ou menores serviços prestados pelo Estado.

Tanto isso é verdade, que Hinrich argumenta que "... um complexo estado
democrático industrializado poderia funcionar com setor público, digamos, entre 20 e 40%
[do produto nacional]. O ponto onde ele se fixa dentro ou acima, desta faixa, é mais
provavelmente, determinado não pelas necessidades estruturais - que demandariam,
digamos, apenas 20% - mas pelos compromissos ideológicos, visando um estado do bem-
estar social e/ou a segurança e defesa de um sistema ideológico existente" (idem: 5).

O exame dos dados contidos no Tabela 4.2, extraído do trabalho de Musgrave &
Musgrave (p.647), que fornece comparações entre as estruturas tributárias de amostras de
países com diferentes níveis de renda per capita, confirma muito a tese de Hinrich.

Fica evidente, pela sua análise que, quanto mais baixos os níveis de renda per
capita, menor o tamanho da carga tributária, tendendo esta a se elevar, à medida que
aqueles se elevam, trazendo, consigo, uma ampliação da demanda dos bens e serviços
públicos, o que coloca a questão das bases econômicas - e tributárias - como um fator
condicionante de sua dimensão.

Também fica evidente, por outro lado, que nos países de mais baixo nível de renda
per capita, são predominantes os impostos sobre o comércio exterior - importação e
exportação - e sobre a produção e vendas de bens e serviços, sendo reduzida a contribuição
dos impostos diretos para a geração de receitas do Estado.

À medida, entretanto, que se eleva a renda per capita, tende a aumentar a


participação desses impostos na arrecadação, especialmente do imposto de renda, assim
como também se eleva a dos impostos incidentes sobre a folha de pagamentos, voltados
predominantemente para financiar os benefícios providos pelos sistemas de previdência
social.

Essa configuração dos sistemas tributários, que têm como condicionante o estágio
de desenvolvimento atingido pela economia de um dado país, o papel atribuído ao Estado,
que é determinado historicamente, e as próprias lutas políticas em torno da composição dos
impostos, não encontra explicações nas teorias dominantes sobre as finanças públicas,
como vimos anteriormente. O que não deve causar estranheza.
152

Dado o seu caráter a-histórico e normativo, a teoria convencional das finanças


públicas, ancorada em três princípios abstratos da tributação - o da neutralidade e o da
equidade e, mais recentemente, da competitividade -, contenta-se em formular propostas
concretas para o que considera o melhor sistema de impostos, mas despidas de qualquer
contextualização histórica. Com isso, "o que deve ser" para a teoria não encontra respaldo
na realidade objetiva.

Ainda que se tratasse de estruturas econômicas e bases tributárias homogêneas - o


que não é o caso - e a teoria não apresentasse as inconsistências e dificuldades de
aplicabilidade destes princípios não se conseguiria explicações para as diferenças
existentes entre os países que se situam no mesmo estágio de desenvolvimento, mas que
apresentam dissimilitudes em relação à dimensão do Estado e de seus papéis, ao tamanho
da carga tributária e à sua distribuição entre impostos diretos e indiretos. Neste caso, as
explicações teriam de ser buscadas essencialmente no campo político-social, nas
concepções predominantes nesta realidade sobre o papel do Estado e dos impostos nos
campos da economia e da distribuição.

Tabela 4.2
Composição Média das Estruturas Tributárias para uma Amostra de Países com
Vários Níveis de Renda Per Capita

Impostos Renda per capita (em US$)


Até 100 100-200 200-300 300-400 400-500 500-900 EUA
Como percentagem do PNB (%)
Renda 1,9 2,6 2,8 3,6 3,4 4,8 14,8
Propriedade 0,5 0,3 0,6 1,0 1,2 1,4 5,7
Comércio Exterior 4,6 4,4 5,5 4,6 3,5 2,6 0,3
Produção e Vendas 3,4 4,5 4,3 5,2 4,2 1,7 5,3
Subtotal 11,6 12,7 14,4 13,4 12,1 16,7 25,0
Folha de Pagamentos 0,5 0,5 1,4 3,0 2,1 2,9 5,7
Total 12,0 13,2 15,8 16,4 14,3 19,6 30,8
Como percentagem da Receita Tributária Total (%)
Renda 16,3 19,6 17,5 22,3 23,4 24,7 48,2
Propriedade 4,1 2,0 3,9 5,9 8,4 7,5 11,9
Comércio Exterior 38,5 33,4 35,2 27,9 34,7 13,5 0,9
Produção e Vendas 28,0 33,8 27,3 30,6 29,2 8,5 17,2
Subtotal 96,7 96,3 91,3 81,8 84,9 85,3 81,5
Folha de Pagamentos 3,3 3,7 8,7 18,2 15,1 14,7 18,5
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: Musgrave & Musgrave (1980:647)

A tese de Hinrich, apoiada em fortes evidências empíricas das estruturas dos países
pesquisados não parece, contudo, ter sido bem aceita pelo pensamento dominante ou ter
sido mal entendida por outras correntes das finanças públicas que se dedicaram à sua
análise. Ao negar as normas como elementos estruturadores dos sistemas tributários e
colocar em ação as forças econômicas, políticas, sociais e culturais na sua determinação,
Hinrich resgata a historicidade dessas estruturas e rejeita a pretensão ortodoxa de ser
153

possível construir “sistemas tributários ideais” coerentes com o equilíbrio geral do sistema,
apoiada naqueles princípios “abstratos”.

Ora, na visão de Hinrich “não existe um sistema tributário ideal para uma
sociedade em todos os tempos e nem para todas as sociedades ao mesmo tempo”, porque
são distintos os estágios de desenvolvimento de suas economias, as suas bases de
tributação e, consequentemente, o mix de impostos que pode ser cobrado em cada época.
Isso significa que as recomendações que brotam das normas nem sempre podem ser
atendidas, porque não encontram uma realidade histórico-concreta capaz de abrigar
impostos que satisfaçam àqueles princípios.

Em algumas sociedades, ainda que predominem preocupações com a questão da


equidade, seu nível de desenvolvimento pode não viabilizar a cobrança de impostos sobre
a renda, tendo esta de se contentar com impostos indiretos, reconhecidamente regressivos.
Em outras, devem predominar os impostos sobre o comércio exterior, visto o mercado
interno ainda não se encontrar devidamente constituído e, portanto, as bases de tributação
para a cobrança dos impostos internos (indiretos e diretos) não se encontrarem formadas.
Apenas nas sociedades desenvolvidas torna-se possível, na sua argumentação, optar entre a
cobrança de impostos diretos ou indiretos (as bases da tributação já se encontram
devidamente constituídas, permitindo essa escolha) ou por uma melhor composição de
ambos, uma decisão cuja influência ele atribui a fatores culturais e/ou políticos, ou às
preferências da sociedade por impostos diretos ou indiretos. O peso por ele atribuído a
fatores culturais nessa escolha abriu brechas para críticas desabonadoras à sua tese.

Segundo Rezende (2001:251) “a argumentação racional [da tese de Hinrich, a este


respeito] escondia uma boa dose de preconceitos. A supremacia da cultura anglo-saxônica,
em comparação com a latina, do ponto de vista da atitude do contribuinte perante o fisco,
foi freqüentemente citada como um atributo importante para explicar as diferenças
encontradas na comparação internacional de países ocidentais, com respeito às respectivas
estruturas de tributação. O comportamento cronicamente irresponsável dos cidadãos
latinos seria a causa da menor ênfase nos tributos sobre a renda e a propriedade encontrada
em países latino-americanos subdesenvolvidos, vis-à-vis aqueles que sofreram a influência
colonizadora de outras culturas”.

Rezende (2001:251) parece ter reduzido a tese de Hinrich a apenas um aspecto.


Tanto que afirma que seu objetivo foi o de ter procurado “dar uma roupagem científica à
tese de que o aumento da participação do imposto de renda no orçamento público seria um
resultado natural do próprio desenvolvimento”. Tese que teria sido desmontada a partir da
década de 1980, quando “a ênfase que a literatura ocidental atribuía ao papel do imposto
sobre a renda começou a arrefecer”, em virtude das novas exigências colocadas pelo
processo de globalização com a abertura das economias e com a importância assumida,
neste processo, pela norma da competitividade.

Não foi bem essa a intenção de Hinrich. Sua preocupação foi a de estabelecer uma
“Lei Geral de Evolução das Estruturas Tributárias durante o Processo de Desenvolvimento
Econômico”, tendo concluído que, quando este se completa, as bases da tributação
permitem escolhas entre várias composições possíveis de impostos diretos e indiretos.

O problema, que originou essas críticas, deve-se ao fato deste autor, ao procurar
compreender a razão de alguns países contarem com mais impostos diretos, em sua
154

estrutura, do que de indiretos, e vice-versa, ter atribuído a fatores culturais (preferências)


essas causas. Para ele, os países anglo-saxônicos teriam, por essa razão, preferência pela
tributação direta, enquanto os latinos, incluídos os latino-americanos subdesenvolvidos,
pela indireta, o que parece estar em desacordo com sua própria tese. Por isso procura-se,
em seguida, fazer algumas qualificações sobre sua tese e, a partir disso, reorientá-la para
melhor definir os determinantes que efetivamente influenciam, condicionam e moldam as
estruturas tributárias, à luz da diversidade das estruturas das economias existentes e dos
contextos sociais e políticos em que se inserem.

7.1. Uma revisão da tese de Hinrich sobre os determinantes da Carga Tributária

A posição de Hinrich é correta em relação à influência exercida pelos fatores


econômicos nos níveis e na composição da carga tributária, mas imprecisa ao atribuir, ao
estilo cultural, uma vez diversificada a base da tributação, a responsabilidade pela
preferência de um país por impostos diretos e indiretos.

Impostos diretos são, consensualmente na literatura sobre finanças públicas,


impostos mais adequados e mais eficazes para a implementação de políticas
comprometidas com a justiça fiscal, ao contrário dos impostos indiretos, que têm a
regressividade como sua principal característica. Mas se podem ser considerados impostos
mais civilizados, à medida que mais consentâneos com a questão da equidade, geralmente
é forte a resistência das classes dominantes à sua imposição, ancoradas em argumentos que
pretendem provar seus efeitos perversos para os investimentos, a formação de poupanças
etc. Por isso, remeter para o estilo cultural de uma sociedade o poder de determinação da
composição da carga tributária significa, na verdade, enfraquecer o conteúdo de sua tese, e,
com isso, renunciar ao entendimento de ser a luta distributiva, que se desenvolve no campo
essencialmente político, que se encontra em sua raiz.

Em várias passagens de seu trabalho, o próprio Hinrich parece concordar com isso,
como, por exemplo, onde afirma que "tais sistemas tributários são produto do inter-
relacionamento histórico das forças políticas e econômicas dentro de cada país" ou ainda
que "mudanças nos sistemas tributários podem acelerar ou retardar a realocação dessas
forças políticas e econômicas subjacentes" (Hinrich,1972:24). Neste sentido, o
determinante "estilo cultural" poderia ser mais propriamente entendido, e com maior
capacidade de expressar o seu sentido e de propiciar elementos mais realistas para a análise
dos resultados dessa disputa/luta entre as classes sociais e suas frações em torno do sistema
tributário, como a relação de força entre as classes sociais e políticas ou, de forma mais
simplificada, a correlação das forças políticas e sociais.

No mesmo sentido, é possível fazer algumas qualificações em relação ao papel que


o Estado desempenha neste processo. Produto da sociedade, o Estado cumpre
determinados papéis na vida econômica e social de um país, que são determinados
historicamente. São esses papéis que lhe são atribuídos e que pressupõem que a sociedade
esteja disposta a contribuir com recursos para o seu financiamento, que determinam,
abstraindo das limitações colocadas pelas bases da tributação, os níveis da carga tributária.

É assim que se pode compreender porque o Estado, de cunho liberal, não precisa
contar com volumes significativos de recursos para suas atividades, já que estas estão
restritas ao fornecimento à sociedade de alguns poucos bens e serviços, como os de defesa
e segurança da ordem interna e externa do país. Da mesma forma é que se entende, porque
155

a falência conhecida pelo liberalismo por mais de meio século, a partir dos
desdobramentos da crise dos anos 30, introduziu, pela necessidade de salvar o sistema e de
garantir a sua reprodução no longo prazo, demandas ampliadas para o Estado nos campos
econômico e do bem-estar, o que exigiu elevações expressivas nos seus níveis de
arrecadação. Assim como, se vitoriosas, as teses neoliberais da atualidade, diante da crise
do pensamento keynesiano e do Estado do bem-estar, poderiam ser decisivas para sua
redução e, portanto, para a diminuição dos níveis das cargas tributárias no mundo
capitalista.

Por isso, é que parece problemático, e parcial, como o faz Hinrich, determinar, para
uma economia desenvolvida, as necessidades estruturais mínimas de recursos por parte do
Estado - que ele, hipoteticamente, situa em torno de 20% do produto nacional - e atribuir
níveis mais elevados de tributação - e a sua determinação - aos "... compromissos
ideológicos, visando um Estado do bem-estar social e/ou segurança e defesa de um sistema
ideológico existente." Seja porque essas necessidades estruturais mínimas sofrem uma
determinação histórica, podendo o próprio Estado do bem-estar não ter sido mais do que o
seu reflexo para garantir a reprodução do capital, é necessário apreender, em toda a sua
complexidade, o papel que, historicamente, o Estado desempenha na sociedade e na
economia, para extrair ilações sobre o nível da carga tributária exigida para o cumprimento
de suas funções.

Em face da discussão acima, é possível reorientar/aprimorar a tese de Hinrich a


respeito dos determinantes do nível e da composição da carga tributária. As três variáveis
por ele apontadas na sua determinação - abertura da econômica, nível de renda per capita
e estilo cultural - podem perfeitamente, e sem prejuízos para os resultados de seu trabalho,
ser substituídas por outras que expressam/revelam mais corretamente essa influência. São
elas:

a) o padrão de acumulação e o estágio de desenvolvimento da economia de um


dado país;

b) o papel que o Estado desempenha na sua vida econômica e social; e

c) a correlação das forças sociais e políticas.

O padrão de acumulação e o estágio de desenvolvimento atingido pelo país,


medido por indicadores como o nível de renda per capita, condiciona as bases de
incidência da tributação e, portanto, as possibilidades da arrecadação e de sua distribuição
entre impostos diretos e indiretos. Economias predominantemente agro-exportadoras, por
exemplo, com um mercado interno restrito e reduzidos níveis de renda per capita, terão
suas bases tributárias formadas principalmente pelos impostos indiretos sobre o comércio
exterior e por alguns poucos impostos internos, limitando as possibilidades de ampliação
das receitas tributárias. Nestes, de fato, os fatores econômicos tendem a se sobrepor aos
políticos tanto na determinação do nível como na composição da carga fiscal.

Diferentemente, países que apresentam uma estrutura econômica industrializada e


diversificada, com níveis de renda per capita mais elevados, ao contarem com uma base
de tributação mais ampla e com maior diversidade, que permite a cobrança de impostos
internos diretos e indiretos, além dos externos, são dotados de maior flexibilidade, tanto
156

para estabelecerem níveis mais elevados de arrecadação, como para optarem por
composições diferenciadas da estrutura de seus impostos. Nessa determinação, são os
fatores políticos que tendem a se sobrepor aos econômicos.

Assim, é que o nível da carga tributária será definido em função do papel que será
atribuído ao Estado pela sociedade. Se a intervenção do Estado na vida econômica e social
do país é considerada nociva para o funcionamento do sistema, como preconiza o ideário
liberal, suas atividades tenderão a ser mínimas e reduzidas suas necessidades de recursos.
Se, contrariamente, a sua atuação no campo econômico e social é considerada vital para a
reprodução do sistema, ampliando-se e diversificando-se as demandas que lhe são
endereçadas por bens e serviços públicos, suas necessidades de recursos serão maiores e a
carga tributária mais elevada. Definido o montante de recursos que ele terá de contar para
o desempenho de suas tarefas, que são determinadas historicamente, é que se coloca a
questão da distribuição de seu ônus entre os membros da sociedade, cuja definição tende a
ocorrer como resultado da correlação das forças políticas e sociais que têm inscrito seus
interesses no interior de seus aparelhos.

É neste sentido que a correlação das forças políticas e sociais atuantes no sistema
encontra-se na base da determinação da distribuição dos impostos em diretos e indiretos,
ou seja, na composição da carga tributária. Caso essa correlação seja desfavorável aos
trabalhadores, por exemplo, tenderão a predominar, na estrutura tributária, os impostos
indiretos, que são caracteristicamente regressivos e instrumentos que contribuem para
piorar a distribuição de renda, com baixas incidências sobre a renda, os lucros e o
patrimônio. Caso a luta política se revele favorável para a atenuação das desigualdades
sociais, certamente os impostos diretos adquirirão maior importância, como o comprovam
a experiência dos países desenvolvidos. Distante, portanto, do estilo cultural, o que aparece
como decisivo, nessa determinação da composição da carga tributária, são as lutas
políticas, sendo os resultados alcançados explicados pela correlação das forças sociais.

Vistas as posições doutrinárias da teoria das finanças a respeito da incidência e dos


efeitos da tributação, direta e indireta, nos campos econômico e social, não restam dúvidas
de que são nelas que se apóiam defensores e críticos de uma ou de outra para a formulação
de propostas concretas para o sistema de impostos. Encoberta por discussões que priorizam
essas tecnicalidades tributárias e os seus impactos na economia e na distribuição, as
disputas em torno dessa questão obliteram, na verdade, uma luta que se trava entre as
classes sociais e suas frações, cuja decisão vai ocorrer no âmbito essencialmente político,
em função da relação das forças sociais e políticas representadas nos parlamentos.

Os autores (e escolas de pensamento) que se apóiam em normas para sugerir


construções ideais de sistemas tributários ignoram essa complexidade da questão
tributária ou não a levam em conta nas suas proposições. Estabelecida, a norma se torna
universal e deve ser acatada, sob pena do país que não adotá-la incorrer em prejuízos,
independentemente de sua estrutura econômica, de suas bases de tributação e das
condições de vida de sua população, comportá-la ou não. Por isso não conseguem
compreender, na maioria das vezes, porque suas propostas de reformas não vingam.

A regra moderna da competitividade é apenas mais um exemplo dentre as que


foram discutidas neste trabalho, diferenciando-se das demais apenas porque despida do
pudor com que as últimas terminam justificando um tratamento privilegiado para o capital,
em suas várias formas, e para as altas rendas. Com ela, estabelecida a necessidade ditada
157

pelo novo padrão de acumulação do capitalismo globalizado, de que nem o capital, nem a
produção, nem as exportações devem ser tributados, assim como não deve haver
tratamento tributário diferenciado para os fatores de produção com grande mobilidade
espacial (inclusive da força de trabalho qualificada) seguiram-se as recomendações para a
realização de reformas dos sistemas tributários, visando adequá-los ao novo padrão, no
qual não há mais espaços para políticas redistributivas por meio da tributação.

É bem verdade que o padrão de acumulação se alterou com o surgimento de novas


bases impositivas criadas com a revolução ocorrida nos sistemas de informação e
telecomunicações e com a globalização dos mercados financeiros e de produtos, exigindo e
condicionando mudanças no quadro tributário, em nome da harmonização e da
competitividade. É também verdadeiro que se modificou a concepção a respeito do papel
do Estado, primeiramente na perspectiva da public choice, para quem este deveria reduzir
ao mínimo suas atividades, e, posteriormente, com a corrente neo-institucionalista, a qual,
embora reconhecendo sua importância para a sobrevivência do sistema, sugere uma série
de reformas em seus aparelhos, as quais, ao fim e ao cabo, também reduzem sua
participação na economia.

Apesar disso, o passo mais importante que foi dado com a nova norma tributária de
desonerar, em boa medida, o capital e as altas rendas e transferir o ônus em que estes
incorrem para os setores menos favorecidos, só encontram explicação no fato da
correlação das forças políticas ter se alterado significativamente em prol dos primeiros,
com a queda do muro de Berlim e o afastamento de cena de seu principal oponente – o
comunismo. Com o caminho livre, o capital não encontraria resistências e/ou deixaria de
ter motivos para continuar mantendo a política tributária como instrumento desfavorável
aos seus interesses, procurando garantir, por meio do Estado, mudanças em seu conteúdo,
justificadas em nome da competitividade. Funcional para o sistema, essas mudanças
carregam, contudo, fortes conflitos que podem inviabilizá-las.

Se levadas ao pé-da-letra, essas recomendações implicam promover uma


redistribuição do ônus tributário entre os membros da sociedade, isentando ou reduzindo a
tributação sobre os setores que com elas se busca proteger, o que exigirá a transferência de
uma carga adicional, mantido o tamanho atual do Estado, para os demais. O que pode não
encontrar correspondência nem nas bases de tributação de muitos países, principalmente
dos que se encontram em fases mais incipientes de desenvolvimento, nem na capacidade
de muitos setores arcarem com esse ônus adicional, abrindo espaços para a possibilidade
de deflagração de movimentos de revolta tributária e de oposição às propostas de reformas
nessa direção.

Não sem razão, mesmo nos países mais desenvolvidos, que apresentam melhores
condições de promover essa redistribuição, os avanços têm sido lentos nessa direção, pois,
afinal, há resistências a vencer, e continua elevada a participação dos impostos diretos na
sua estrutura. Como mostra a tabela 4.3, nos países desenvolvidos, apesar do avanço da
tributação indireta, em relação aos períodos anteriores, como resultado deste processo, os
impostos diretos – renda e propriedade – ainda respondiam, na média dos primeiros anos
do século XXI, por mais de 40% de sua arrecadação. Nos países em desenvolvimento, que
apresentam estruturas bem menos homogêneas de distribuição de renda, as mudanças
promovidas nessa direção têm, também, reduzido a participação dos impostos diretos,
tornando o sistema mais iníquo, mas estes ainda representam, em média no período
considerado, quase 30% da carga tributária. Já o Brasil, que tem destoado do restante do
158

mundo capitalista em matéria de tributação e explorado, com denodo, impostos indiretos


de incidência cumulativa, a carga tributária registrada em 2005 apresentou uma
predominância ainda maior da tributação indireta (cerca de 50%) e menor participação dos
impostos incidentes sobre a renda e o patrimônio (cerca de 23%), o que o torna um caso
exemplar de utilização do sistema tributário como poderoso instrumento concentrador da
distribuição de renda.

A continuidade dessas tendências, como exigência do estágio atual do


desenvolvimento capitalista, deve continuar, embora com ritmos diferentes para cada país,
ou conjunto de países, aumentando o predomínio da tributação indireta nas estruturas
tributárias e enfraquecendo o seu papel como instrumento redistributivo. Com isso, a
norma da competitividade, que ignora a historicidade das estruturas e o conflito
distributivo da tributação, as condições econômicas, sociais e políticas existentes em cada
país, pode conduzir ao enfraquecimento da legitimidade do Estado na cobrança de
impostos e produzir um resultado que não corresponda aos pretendidos pelos abnegados
defensores dos interesses do capital e das classes dominantes. Pois, sem justiça fiscal é
difícil garantir a coesão social, no meio de tanta desigualdade produzida pelo sistema, e
essa muito dificilmente vai encontrar respostas do lado do gasto público, como pretendem
alguns teóricos que defendem essa neutralidade da tributação sobre o funcionamento do
sistema econômico.

Tabela 4.3.
Carga tributária Bruta, por conjuntos de países, de acordo com suas bases de incidência

Bases de Incidência % no total da carga tributária


Brasil (2005) Países Países em
desenvolvidos desenvolvimento
(média) (média)
Bens e serviços 50,1 27,3 39,9
Renda, lucros e ganhos 20,4 37,2 24,8
Propriedade 3,1 5,0 4,1
Contribuições sociais sobre salários 22,2 27,2 24,2
Outros 4,3 3,3 7,0
Carga tributária total 100,0 100,0 100,0
Fonte: Afonso & Meirelles (2006)

8. A EVOLUÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO NA


REPÚBLICA (1900-2007)

A análise da evolução da estrutura tributária brasileira no período republicano


desenvolvida nessa seção tem como referência a tese de Hinrich sobre os fatores
determinantes dessas estruturas, mas na forma modificada na seção anterior. Assim,
considera, como seus principais determinantes, o padrão de acumulação e o grau de
desenvolvimento da economia, o papel do Estado e a correlação das forças sociais e
políticas atuantes no sistema. Os dados contidos na tabela 4.4 confirmam que, de fato, os
níveis de tributação não somente se elevaram, à medida que o País foi se desenvolvendo e
elevando seus níveis de renda per capita, como a sua composição – entre impostos
indiretos (externos e internos) e diretos – parece ter acompanhado, com algumas diferenças
os padrões detectados em seu estudo. À guisa de conclusão faz, no final, uma radiografia
das principais mazelas e distorções que atualmente marcam o sistema.
159

8.1. A evolução da carga tributária

Em relação ao tamanho da carga tributária, é possível perceber que o seu aumento tende a
ocorrer sempre em períodos marcados por alterações em sua estrutura econômica e no
processo de industrialização, com a intensificação das atividades internas e elevação dos
níveis da renda per capita.

Até 1930, com a economia apoiada na atividade agro-exportadora, altamente


dependente do comércio exterior para a realização dos lucros do sistema e contando com
um mercado interno incipiente e um Estado limitado em suas funções na vida econômica e
social, de acordo com os ideais do liberalismo, a carga tributária manteve-se em torno de
12%, à exceção do ano de 1913, quando foi superior a 15%.

Entre 1930 e 1964, apesar da reorientação do padrão de acumulação da economia,


cujo eixo dinâmico foi deslocado para dentro do país, com os investimentos internos
passando a impulsionar o processo de industrialização, apoiado pelo Estado, que se torna
fortemente intervencionista, ao se responsabilizar pela construção da infra-estrutura e da
produção dos bens intermediários necessários para viabilizá-la, a carga tributária deu um
salto, passando de 12,5% em 1929 para 17% em 1964. Este processo esbarrou, contudo,
em dificuldades, porque encontrou, especialmente nas etapas iniciais, um Estado limitado
em suas condições fiscais e financeiras, sem condições de realizar reformas mais
profundas no sistema tributário, que ampliasse sua capacidade de financiamento, e sem
poder contar com aportes de recursos externos, dada a interrupção destes fluxos resultante
da crise internacional da década de 1930.

As dificuldades de uma reforma mais ampla do sistema tributário esbarravam, de


um lado, na própria estreiteza das atividades internas e, portanto, nas ainda limitadas bases
de tributação do país; e, de outro, na vigência do pacto político que foi estabelecido entre o
Estado e as classes dirigentes – pacto conhecido como “Estado de compromisso” – que
inibiria a adoção de medidas voltadas para o aumento da tributação. Nessas condições,
para levar à frente o projeto de industrialização que teve início neste período e foi
ampliado, mas enfrentando as mesmas limitações, nos períodos seguintes, o Estado teve de
contar, primordialmente, com outras fontes de recursos, o que conseguiu com a criação de
uma série de “fundos vinculados” destinados ao financiamento de setores específicos
(transportes, energia etc.) e com o envolvimento da empresa pública neste processo, como
analisado em Prado (1985), Draibe (1986) e Martins (1985).

Já durante o período do Plano de Metas (1956/61), quando se implementou no país


o que Lessa (1981) considerou “...a decisão mais sólida tomada de forma consciente em
prol do processo de industrialização no Brasil”, o sistema tributário, que poderia ter se
beneficiado dessas transformações e do aumento significativo da renda per capita, não
conheceu qualquer mudança significativa em sua estrutura, em virtude da continuidade
daquele pacto, tendo-se explorado seu novo potencial apenas na margem, com a carga
tributária aumentando cerca de 2 pontos percentuais do PIB. Com essas limitações, o
Estado teve de lançar mão, nesse período, do mecanismo inflacionário de financiamento de
seus gastos (emissão de moeda) para complementar suas necessidades de recursos e de
contar com expressiva entrada de capital estrangeiro, na forma de empréstimos e
investimentos diretos, abrindo as portas para a internacionalização da economia brasileira.
160

Só depois deste período, que conduziu ao colapso do pacto populista, à crise


econômica da primeira metade da década de 1960 e ao golpe militar de 1964, quando se
redefiniram as alianças políticas entre as classes dominantes e as frações do capital a elas
associadas, é que foram criadas as condições para a realização de uma série de reformas na
economia brasileira, entre as quais figurava, de forma importante, a do sistema tributário,
propiciando um crescimento mais rápido da carga tributária e adequando-a às necessidades
de financiamento não inflacionário do governo. Como o aprofundamento do processo de
industrialização, no período anterior, fortaleceu e diversificou as bases econômicas do país,
a reforma realizada, sob o comando do regime militar, encontrou campo fértil para garantir
mudanças de vulto na estrutura tributária e expandir a arrecadação.

Com a reforma tributária de 1966 promoveu-se uma grande modernização do


sistema, substituindo-se impostos cumulativos por impostos sobre o valor agregado e
criando-se, ao mesmo tempo, condições para o imposto de renda assumir participação mais
relevante em sua estrutura. Presidida, contudo, pelo compromisso com o processo de
acumulação, o sistema foi ajustado para transferir parcela importante da receita arrecadada
para o capital, as médias e altas rendas, reduzindo o potencial das mudanças realizadas
para a obtenção de uma carga tributária mais robusta e o papel do imposto de renda na sua
geração, o que manteria ou mesmo aprofundaria o seu grau de iniqüidade. 38

A partir da reforma de 1966 até os dias atuais distinguem-se três períodos que
apresentam comportamento distinto para a carga tributária.

No primeiro, que vai até o final da década de 70, a carga tributária, apesar do forte
engajamento do Estado no processo de acumulação - engajamento marcado por
expressivas renúncias de receitas públicas e generosas concessões de incentivos fiscais -,
manteve-se em torno de 25% do PIB. Isto, como se pode perceber na tabela 4.4, apesar do
considerável crescimento que conheceu a economia brasileira, neste período, e do aumento
da renda per capita (esta mais que dobra entre 1965 e 1980), devido à utilização
exacerbada do instrumento tributário como ferramenta da acumulação, transformando o
país em um verdadeiro paraíso fiscal para o capital, as médias e altas rendas, o que
conduzirá o Estado a defrontar-se, no final da década, com uma grave crise fiscal. Para
complementar suas necessidades de recursos, o Estado não titubearia em lançar mão
fortemente da poupança externa, num período de excessiva liquidez internacional, com os
empréstimos sendo feitos em condições bastante atraentes, o que, mais tarde, com a
explosão dos juros americanos no final da década de 1970, o conduziria a uma situação de
“encilhamento” fiscal/financeiro.

No segundo, que se estende ao longo de toda a década de 80, a carga tributária


reduz-se em conseqüência da crise econômica em que o País se viu mergulhado, que afeta
mais negativamente a tributação indireta, e também do estreitamento da base de tributação
provocado pelo redirecionamento da economia para o exterior, visando a obtenção de
elevados saldos na balança comercial. Imunes, em boa medida, à tributação, o aumento da
participação das exportações no PIB reduziria os recursos gerados para o Estado através da
cobrança de impostos. Com isso, se aprofundaria a crise fiscal em que este se viu
enredado, de um lado, pelo excessivo engajamento com a acumulação; e de outro, como
conseqüência do elevado endividamento externo contraído nos anos 1970, cujos custos

38
Para uma análise aprofundada do papel do sistema tributário como ferramenta da acumulação neste
período consultar: Oliveira, F. A. de. A Reforma tributária de 1966 e a acumulação de capital no Brasil.
Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1991 (2 ª edição).
161

foram dramaticamente ampliados com a explosão dos juros norte-americanos no final


dessa década e com a crise da dívida externa que ajudou a paralisar a economia mundial –
e brasileira – na primeira metade dos anos 1980. Como resultado, a economia brasileira
passou, desde essa época, a defrontar-se, recorrentemente, com a ameaça de instauração de
um processo hiperinflacionário, o qual somente seria afastado em 1994, com a
implementação do Plano Real.

Tabela 4.4
Evolução da Carga Tributaria no Brasil, nos ciclos de desenvolvimento econômico
1913-2004

Períodos/Características ANO Carga PIB per


Tributária capita (em
(% do PIB) Mil US$ de
2004)
1900 10,6 0,49
1905 15,1 0,51
1ª República (1889/1930): 1910 12,5 0,54
Economia Agroexportadora 1915 8,4 0,54
1920 7,0 0,64
1925 7,9 0,71
1930 8,4 0,85
1935 10,7 0,98
1940 13,6 1,13
Industrialização e Estado Desenvolvimentista: 1945 12,6 1,25
1ª fase (1930-1964) 1950 14,4 1,59
1955 15,1 1,90
1960 17,4 2,40
1964 17,0 2,57
1965 19,7 2,55
1970 26,0 3,29
Estado Desenvolvimentista (2ª fase) 1975 25,2 4,69
e Autoritarismo: 1964-1985 1980 24,5 5,91
1985 24,1 5,61
1988 22,4 5,87
1989 24,1 5,94
1990 29,6 5,58
Redemocratização, 1994 27,9 5,80
Crise Fiscal e Globalização: 1985-(...) 1995 28,4 5,97
2000 30,3 6,11
2001 31,9 6,10
2002 32,4 6,17
2003 31,9 6,15
2004 32,8 6,41
2005 33,8 6,52
2006 34,2 6,67
Fontes: i) até 1989: IBGE. Estatísticas do Século XX. Rio de Janeiro, FIBGE, 2006; ii) 2001-2006:
IBGE/Ipeadata – séries revisadas do PIB; iii) PIB per capita: Ipeadata: acesso em 20/03//2008.
162

Como se percebe, não ocorre, a partir desta década, mudanças significativas na


renda per capita do país, nem se consegue, durante a vigência do regime militar, realizar
quaisquer reformas de maior profundidade no sistema tributário, dado que a correlação de
forças políticas tornou-se, diante do agravamento da crise, desfavorável para essa
iniciativa. Tal reforma só viria a ocorrer em 1988, quando a queda do regime militar levou
à convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte para elaborar uma nova Carta
Magna para o país.

No terceiro, que se inicia, em 1990, com a edição do programa de estabilização,


conhecido como Plano Collor, e se estende até os nossos dias, a carga tributária conheceria
uma expressiva elevação, vindo a atingir 34% do PIB na década seguinte, sem que
mudanças estruturais importantes tenham sido introduzidas no sistema. Vale notar que o
grande salto registrado no seu tamanho, neste período, não se explica nem pelo fato de que
o país tenha conhecido um intenso processo de desenvolvimento e ampliado suas bases de
tributação ou mesmo como decorrência, de forma expressiva, do Estado do bem-estar. Pelo
contrário, tanto a economia permaneceu praticamente estagnada a partir da década de 1980
como foi inexpressivo o aumento da renda per capita.

Neste caso, o aumento da carga tributária, antes que produto do desenvolvimento


foi obtido praticamente com as mesmas bases da tributação existentes, elevando
exacerbadamente o ônus imposto à sociedade para atender à lógica do ajuste fiscal que
passou a orientar a política econômica, visando garantir a cobertura de déficits públicos e o
pagamento de juros das dívidas contraídas pelo Estado para apoiar e alimentar, em parte,
os ciclos de acumulação dos períodos anteriores, e, de forma mais significativa a partir da
década de 1980, como resultado das políticas de ajuste implementadas que mantiveram
permanentemente elevadas as taxas de juros, garantindo o predomínio do capital financeiro
sobre o capital industrial. Como conseqüência deste processo, o sistema tributário foi
sendo transformado, gradativamente, em antípoda do crescimento e da justiça fiscal.

Note-se que, voltado para sustentar a lógica do ajuste fiscal e o pagamento dos
juros dos credores do Estado, o sistema tributário perdeu sua conexão com o setor
produtivo, tendo se transformando, inclusive, em seu adversário, e que o custo adicional
com ele exigido passou a penalizar não somente a própria produção e, portanto, frações
importantes do capital, como também as classes trabalhadoras, já que o aumento da carga
tributária tem sido obtido predominante por meio de impostos indiretos e contribuições
sociais e econômicas. Uma mudança de equação na forma de atuação do Estado, ditada
pelo novo padrão do capitalismo internacional, que prioriza os interesses do capital
financeiro, e que, tudo indica, tem gerado questionamentos crescentes à legitimidade de
seu papel atual.

8.2. A composição da carga tributária

Também com algumas diferenças, em alguns períodos, a mesma trajetória


observada para a evolução da carga tributária, pode ser confirmada para a de sua
composição, como mostra a tabela 4.5 para os impostos federais. Nela percebe-se que
até 1930, com o dinamismo da economia apoiado no comércio exterior, o imposto de
importação aparece como o principal responsável pela geração das receitas públicas,
respondendo por mais de 50% da arrecadação, enquanto não alcançava 30% a
participação dos impostos sobre a produção, principalmente na figura do Imposto sobre
163

o Consumo (IC), o atual IPI, sendo desprezível a geração de receitas pelo Imposto de
Renda. Contando com incipiente atividade industrial, mercados urbanos em fase de
constituição e com a classe operária em formação, a estreiteza do mercado interno e,
como conseqüência, das bases de tributação, não oferecia condições para a cobrança
adequada destes impostos, especialmente do imposto de renda, cabendo aos impostos
sobre o comércio exterior este papel.

Com a mudança no padrão de acumulação ocorrido a partir dos anos 30, a


intensificação dos processos de industrialização e de urbanização, os impostos indiretos
internos vão, gradativamente, adquirindo maior importância, enquanto entram em
declínio os impostos incidentes sobre o comércio exterior. Note-se que este processo se
aprofunda a partir da década de 40, quando começa a adquirir maior importância
também os impostos diretos, na figura do Imposto de Renda, o qual, apesar de criado
em 1922, vinha se apresentando como fonte desprezível de receita. O que chama a atenção
em relação aos padrões identificados por Hinrich é que, a partir de meados dos anos 50, e
mais ainda dos anos 60, a participação dos impostos diretos - do IR, em especial - declina
como proporção da carga tributária, aumentando a dos impostos indiretos internos. Tal
comportamento poderia estar confirmando sua hipótese da influência dos fatores culturais
na determinação da composição da carga tributária, sendo os indiretos preferidos pelos
países latinos, incluídos os latino-americanos subdesenvolvidos. Algumas considerações
devem ser feitas, contudo, a respeito dessa sua trajetória no Brasil.

A estrutura tributária brasileira vigente até os anos 1960 primava pelo


anacronismo, dela fazendo parte, inclusive, impostos de conteúdo medieval, caso do
Imposto sobre Indústrias e Profissões, além de outros que não possuíam muito bem
definido seu fato gerador. Impostos indiretos de incidência cumulativa (em cascata), casos
do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC) e do Imposto de Consumo (IC), este até
1958, conviviam com um Imposto de Renda, com base estreita de incidência e reduzido
potencial de arrecadação. Tudo isso apontava para a existência de estrutura ineficiente de
arrecadação, de natureza pró-cíclica, que foi altamente prejudicada com a crise que se
abateu sobre a economia brasileira no final dos anos 1950 e se prolongou até os últimos
anos da década seguinte. Não é de se estranhar, portanto, diante deste quadro, as oscilações
que conhece a composição da carga tributária até meados dos anos 1960.

A reforma modernizadora do sistema de 1965/67 depurou a estrutura tributária da


maioria dos impostos de má qualidade, introduziu a figura do imposto sobre o valor
agregado (ICM e IPI) e modernizou, ampliando consideravelmente sua base de incidência
e reajustando suas alíquotas, o Imposto de Renda, criando, assim, condições para este
aumentar sua contribuição na geração de receitas para o Estado. Contudo, a opção feita
pelos donos do poder, à época, de utilizá-lo como instrumento em favor da acumulação,
isentando, reduzindo alíquotas e concedendo uma série interminável de incentivos para os
setores que se pretendia priorizar, esvaziou seu potencial de arrecadação e reforçou o papel
da tributação indireta no financiamento dos gastos públicos, dotando o sistema, com essa
composição, de um perfil perverso para a questão da equidade, ao lançar o maior peso do
ônus tributário sobre os ombros mais fracos.
164

Tabela 4.5
Composição da Arrecadação Federal (*)
1923/1964
ANO Importação Produtos Rendas e Selos e Outros Total
Industrializados* Proventos Afins Tributos
1923 50,3 29,8 5,1 14,7 0,1 100,0
1924 51,9 27,3 2,2 18,5 0,1 100,0
1925 56,0 24,2 2,6 17,1 0,1 100,0
1926 47,8 30,1 2,9 19,0 0,2 100,0
1928 55,2 25,9 4,0 14,8 0,1 100,0
1929 54,8 25,2 4,5 15,3 0,2 100,0
1930 50,2 28,3 5,0 16,4 0,1 100,0
1933 47,3 28,7 6,8 16,3 0,9 100,0
1935 47,6 27,2 8,1 16,4 0,7 100,0
1940 35,9 38,7 15,1 10,2 0,1 100,0
1945 14,5 40,0 33,2 12,2 0,1 100,0
1950 10,9 41,0 35,8 12,2 0,1 100,0
1955 4,6 36,0 39,8 13,3 12,9 100,0
1960 11,2 42,4 31,6 12,9 1,9 100,0
1964 7,2 51,3 28,1 10,9 2,5 100,0
Fonte: Direção Geral da Fazenda Nacional. Assessoria de Estudos, Programação e Avaliação. 78
anos de Receita Federal: 1890/1967. Rio de Janeiro, 1968.
(*) Imposto de Consumo até 1966

Não é possível atribuir, nessa situação, a influência de fatores culturais à


composição da carga tributária no Brasil, após a reforma de 1965/67, mas a uma decisão
consciente de política econômica destinada a incentivar o crescimento econômico a
qualquer custo e expandir a renda das classes média e alta da sociedade, o que foi
considerado estratégico para injetar forças à estrutura industrial implantada no período
anterior. Excludente e concentracionista, o modelo econômico que é implementado a partir
deste período, nasce exclusivamente como projeto dos novos donos do poder, à margem e
divorciado, portanto, dessas influências culturais, e que faz, dada a sua essência, do sistema
tributário regressivo (iníquo) um de seus principais pilares. Uma decisão, portanto,
essencialmente política, que não encontra oposição num quadro de forte repressão do
aparelho do Estado, cujo conteúdo será mantido até que o próprio Estado começa a
sucumbir diante do grande esforço realizado para amparar o capital e as forças políticas
que o apoiaram nesse projeto.

Passado o período de ufanismo no país, que ficou conhecido na literatura como o


que produziu o “milagre econômico brasileiro” (1968-1974), e também o do mal sucedido
projeto do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), do Governo Geisel (1974-
1979), de incluir a economia brasileira no rol das potências do Primeiro Mundo, a ressaca
dos projetos do regime autoritário esbarrou, sem tempo para recuperar-se, na crise da
dívida externa, que veio à tona no início dos anos 1980, e aprofundou a crise vivida pelo
Brasil, a qual, por sua vez, se viu acompanhada de uma crise fiscal, política e de Estado, à
medida que este passou a ter questionadas suas ações, inclusive pelas forças políticas e
econômicas que constituíam suas bases de sustentação.

O período que vai de 1980 a 1994 é marcado, em virtude deste quadro, por fortes
tensões, mesclado por um ambiente macroeconômico de instabilidade, paralisia da política
econômica voltada para objetivos de curto prazo (crise fiscal e ameaça de hiperinflação),
165

enfraquecimento e queda do regime militar e resgate da democracia, com a subida de um


governo civil ao poder, que renovou, em 1985, as esperanças da população num futuro
melhor. Apesar disso, não foi possível transformar o sistema tributário num instrumento de
justiça fiscal e corrigir as mazelas que este apresentava como resultado de sua utilização
como instrumento da acumulação.

Mergulhado numa crise fiscal de grandes proporções, enfrentando uma grave crise
econômica nos primeiros anos da década de 1980, e questionado em suas bases de atuação,
o Estado autoritário não conseguiu avançar nenhuma reforma de profundidade do sistema
tributário, que fosse capaz de recompor sua capacidade de financiamento, porque isso
exigiria a formação de um novo arco de alianças que o ocaso do regime militar não
propiciava. Enfrentando os mesmos problemas e contando, na sua condução, com os
mesmos atores da ordem anterior, dadas as alianças políticas que foram estabelecidas para
garantir a transição política, o Estado que surgiu, no período seguinte, também não
conseguiu, nem mesmo com a elaboração de uma nova Constituição para o país,
modificar, de forma importante, o formato da estrutura tributária vigente. Com isso, essa
continuaria assentada nas mesmas bases anteriores, com o peso dos impostos indiretos e
das contribuições sociais aumentando, inclusive, sua participação na carga tributária.

A tabela 4.6 não deixa dúvidas a este respeito. Como se percebe, considerando os
tributos cobrados pelas três esferas de governo – União, estados e municípios – os
impostos diretos – renda e patrimônio – raramente ultrapassaram a participação de 20% no
total da carga tributária, enquanto os que incidem sobre bens e serviços situaram-se em
torno de 50% até 1994. Se aos últimos forem adicionadas as contribuições sociais que
recaem sobre a mão-de-obra (Contribuição Previdenciária, FGTS, Salário-Educação etc.)
essa participação se eleva para cerca de 75-80%, desvelando o acentuado peso da
tributação indireta na estrutura de impostos do país.

É preciso ter clareza, contudo, de que algumas iniciativas voltadas para melhorar o
perfil da estrutura tributária brasileira no capítulo tributário da nova Constituição não
foram bem sucedidas, sendo barradas, às vezes, pelos representantes das classes
dominantes, ou inviabilizadas, em sua regulamentação, pela justificativa de mudanças de
prioridades do governo. Entre essas se deve destacar a proposta apresentada no Congresso
constituinte de instituição de um imposto sobre o patrimônio líquido, o qual, na Comissão
de Sistematização, foi substituído por um vago imposto incidente sobre as grandes fortunas
inscrito na Constituição mas não regulamentado (portanto, sem condições de ser cobrado)
até os dias atuais (Oliveira, 1995:80). Outra, aos princípios da isonomia e da
progressividade do imposto de renda, os quais, também contemplados na Constituição, em
momento algum foram observados, continuando-se a garantir tratamento favorecido não
somente para os lucros das empresas como para os ganhos de capital em geral (aplicações
financeiras, em bolsas de valores etc.).39

39
Para os pontos acima, ver: Oliveira, Fabrício Augusto de. Crise, reforma e desordem do sistema
tributário nacional. Campinas, Editora da UNICAMP, 1995, Cap. IV.
166

Tabela 4.6
Composição da Receita Tributária Brasileira
1980-2004

ANO Comércio Bens e Patrimônio Renda Mão-de- Outros Total


Exterior Serviços obra
1980 2,9 40,7 1,1 12,3 24,3 18,8 100,0
1985 1,7 41,8 0,7 21,3 24,3 10,2 100,0
1988 1,9 45,0 0,9 20,8 23,6 7,8 100,0
1990 1,3 48,9 1,0 19,7 22,8 6,3 100,0
1994 1,7 51,6 1,3 16,1 22,2 7,0 100,0
1998 2,4 43,8 3,3 17,5 23,4 9,6 100,0
1999 2,6 46,8 3,0 17,0 21,7 8,9 100,0
2004 1,4 45,5 2,8 18,0 18,6 13,7 100,0
Fontes: i) até 1999: dados disponibilizados pela extinta Secretaria para Assuntos Fiscais do
BNDES; ii) a partir de 1999: dados atualizados por Afonso e Meirelles (2006)

Aliás, o próprio governo civil já estava se encarregando, em outras frentes, de


enfraquecer o imposto de renda como instrumento de justiça fiscal. No final de 1988, na
gestão de Maílson da Nóbrega no Ministério da Fazenda, no Governo Sarney (1985-1990),
aprovou-se um pacote fiscal para entrar em vigor em 1989, que contemplou, entre outras
medidas voltadas para minorar a crítica situação das contas públicas, a redução de
alíquotas do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), então em número de oito,
distribuídas progressivamente de acordo com os níveis de renda dos contribuintes, para
apenas duas (10% e 25%), estreitando, ainda mais, suas condições de atuar como
instrumento mais eficiente de distribuição eqüitativa do ônus tributário entre os membros
da sociedade.

Justificada como necessária para o país começar a ajustar sua estrutura às


tendências internacionais da tributação, determinadas pelas novas regras do processo de
harmonização tributária e pela questão da competitividade, a mudança (posteriormente, a
alíquota de 10% foi aumentada para 15% e a de 25% para 27,5%, em 1994) foi prejudicial
para o princípio da progressividade e para a garantia de contribuição mais significativa das
rendas mais elevadas para os cofres públicos. 40

Se essa possibilidade se desfez nos primeiros anos do governo civil e na própria


Constituição, elaborada ao calor dos anseios da população por mais direitos sociais e
justiça fiscal, a situação da estrutura tributária pioraria ainda mais, a partir dos anos 90,
caminhando na contramão de todos os princípios das finanças públicas. O padrão de ajuste
fiscal adotado pelo governo federal para recuperar perdas de receitas para estados e
municípios provocadas pelas mudanças nas regras de competência e de repartição
federativa de recursos, no capítulo tributário da Constituição, contou predominantemente
com a exploração de contribuições sociais, de natureza cumulativa, o que tornou o sistema
tributário ainda mais regressivo e divorciado de compromissos com a questão da
competitividade, onerando mais pesadamente a produção e as exportações.

40
Cf. Oliveira, F. A. de. A política fiscal e o reordenamento institucional do setor público na Nova
República. Campinas, IE/UNICAMP, mimeo, 1990.
167

Posteriormente, com a implementação do Plano Real, a exigência de se contar com


uma situação fiscal mais confortável levou o governo a aprofundar esse mesmo padrão de
ajuste, procurando ampliar a carga tributária para atender seus novos compromissos, sem a
realização de reformas de modernização do sistema. Explorando, como no quadro anterior,
principalmente as contribuições sociais e econômicas, o sistema aprofundou seu grau de
degeneração e descaracterizou-se, de vez, como instrumento de justiça fiscal e de política
econômica. Comandado pela lógica do ajuste fiscal e tratado como avalista do pagamento
dos ganhos do capital financeiro (dos juros da dívida do Estado), renunciou aos princípios
estabelecidos até mesmo pela teoria convencional, aí incluído o da competitividade, e
transformou-se num obstáculo para o crescimento econômico e para a redução das
desigualdades.

8.3. Um “inferno” tributário: a necessidade de reformas

Favorável para a arrecadação, porque predominantemente assentado em impostos indiretos


e contribuições sociais e econômicas de elevada produtividade e de mais fácil cobrança, o
sistema tributário brasileiro evoluiu, desde a reforma de 1966 e, posteriormente, à de 1988,
ampliando as distorções existentes e incorporando novas mazelas, para atender as
necessidades de recursos do Estado, o que o transformaria em um instrumento divorciado
das questões da equidade, do crescimento econômico e da federação.

Estudo realizado pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo


(Fecomércio)41, em 2005, confirmaria a elevada e crescente regressividade do sistema
tributário brasileiro, como mostra a Tabela 4.7. Como se constata de seu exame, as
famílias que ganhavam até 2 salários mínimos em 1996 suportavam uma carga tributária
de 28,2% do total de seus rendimentos, com esta reduzindo-se gradativamente para os
níveis de renda mais elevados, chegando a apenas 14,8% para as que recebiam entre 20 e
30 salários mínimos e a 17,9% para as famílias com mais de 30 salários.

Em 2004, como resultado da brutal elevação da carga tributária ocorrida a partir de


1999, motivada pelos compromissos com o ajuste fiscal e apoiada predominantemente em
contribuições sociais e econômicas – caracteristicamente regressivas -, a situação só tendeu
a piorar: para as famílias com até 2 salários mínimos, a carga tributária deu um salto para
48,8% (o maior aumento em pontos percentuais), enquanto para as demais faixas de renda
esse aumento situou-se entre 13,5 e 15,6 pontos percentuais, à exceção das famílias com
mais de 30 salários, cujo aumento foi apenas de 8,7 pontos.

Dado o elevado peso dos impostos indiretos e das contribuições sociais na estrutura
da arrecadação (cerca de 80%), tal situação de iniqüidade não surpreende, não podendo ser
considerado nenhum exagero dizer que a estrutura tributária no Brasil opera como um forte
instrumento de concentração de renda no país, inibindo a expansão do mercado interno e
as forças do crescimento sustentado. E ainda que, dada a multiplicidade de outras fontes e
bases de arrecadação, dada a diversificação de sua base produtiva e o pequeno peso da
tributação indireta nessa estrutura, a opção que foi realizada nada tem a ver com meras
influências culturais, mas com decisões de política econômica influenciadas por
compromissos assumidos com programas de austeridade/ajuste fiscal, mas com o
lançamento de seu ônus sendo direcionados para os ombros mais fracos da sociedade,

41
Fecomércio. Simplificando o Brasil: propostas de reforma na relação economia do governo com o setor
privado. São Paulo, 2005.
168

diante das fortes resistências das classes e frações de classes, que dominam o aparelho do
Estado, de darem sua contribuição.

Tabela 4.7
Carga tributária sobre a renda total das famílias em 1996 e 2004

Renda mensal Carga tributária total Acréscimo da carga


familiar (em % da renda familiar) tributária (em
pontos percentuais)
1996 2004
Até 2 SM 28,2 48,8 20,6
2a3 22,6 38,0 15,4
3a5 19,4 33,9 14,5
5a6 18,0 32,0 14,0
6a8 18,0 31,7 13,7
8 a 10 16,1 31,7 15,6
10 a 15 15,1 30,5 15,4
15 a 20 14,9 28,4 13,5
20 a 30 14,8 28,7 13,9
+ de 30 17,9 26,3 8,4
Fonte: Fecomércio. Simplificando o Brasil: propostas de reforma na relação economia do governo
com o setor privado. São Paulo, 2005.

Altamente iníquo, o sistema tributário brasileiro terminou transformando-se,


também, em força anticrescimento: de um lado, o aumento da carga tributária em mais de
seis pontos percentuais do PIB (ver tabela 4.4), entre 1994 e 2006, imperativo colocado
pelo compromisso com o ajuste fiscal, ao aumentar o custo da produção nacional (“custo-
Brasil) e reduzir a renda disponível da sociedade, conduzindo ao estreitamento do mercado
interno, já seria forte o suficiente para minar as forças do crescimento; mas, de outro, o
rápido avanço, em sua estrutura, das contribuições sociais e econômicas – de incidência
“em cascata”, cumulativa -, que respondem, atualmente por cerca de 40% da carga
tributária, reforçaria ainda mais essa situação, distorcendo preços relativos e prejudicando
a competitividade da produção nacional, num mundo globalizado em que esse princípio se
transformou em norma superior da tributação e tornou-se vital para garantir mercados
externos para o país.

Não bastasse isso, e também por força do ajuste que continua em curso, o governo
federal deu início, na década de 1990, a um processo de “desconstrução federativa,
reduzindo gradativamente a participação relativa dos governos subnacionais no “bolo
tributário”, notadamente a dos estados, e criando mecanismos legais para controlar seus
gastos e endividamento, processo que teve o seu ponto culminante com a promulgação da
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no ano de 2000.

Por todas essas razões, as regras tributárias deixaram o campo do bom senso e se
multiplicaram, tornando a legislação extremamente complexa para os contribuintes, a
ponto de o sistema passar a ser tratado e visto como um verdadeiro “manicômio
tributário”. Por isso, para ser bem sucedida e para conseguir resgatá-lo como instrumento
de justiça fiscal e como ferramenta que opera a favor do crescimento, qualquer reforma
169

que venha a ser realizada para modernizá-lo não pode simplesmente deixar de lado estes
problemas caso contrário estará, inexoravelmente, fadada ao fracasso.

Tal como se apresenta na atualidade, é possível, assim, confirmar que a estrutura


tributária brasileira se encontra divorciada de qualquer um dos princípios recomendados
inclusive pela teoria convencional. Visto pelo lado do comprometimento de suas receitas
com o pagamento dos juros da dívida, pode-se entender que o Estado subordinou até
mesmo dogmas dessa teoria para garantir a felicidade do capital financeiro e a valorização
do capital em geral, ainda que penalizando outras frações do capital (o setor produtivo) e
abrindo mão do crescimento e do papel do instrumento tributário como redutor das
desigualdades. O que, distante de influências culturais, explica-se mais pelos interesses
concretos das frações do capital que dominam, na atualidade o seu aparelho e
influenciam/determinam a direção e o conteúdo da política econômica.

BIBLIOGRAFIA

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IPEA, Texto para Discussão no. 583.
171

CAPÍTULO V

O DÉFICIT PÚBLICO*

Fabrício Augusto de Oliveira


172

1. INTRODUÇÃO

Déficit e dívida pública e, por extensão, o Estado, encontram-se na cadeira de réus desde a
década de 70, acusados, pelo pensamento econômico ortodoxo, de serem responsáveis
pelas ondas de instabilidade que têm marcado a economia mundial desde essa época.
Depois de terem contribuído decisivamente para o longo ciclo de expansão do capitalismo
iniciado após a Segunda Grande Guerra, sob a liderança hegemônica dos Estados Unidos,
os desequilíbrios financeiros dos Estados, causados, de modo geral, pelas ondas de
instabilidade que se abateram sobre a economia mundial e exacerbaram as taxas de juros
internacionais, causando a explosão das dívidas públicas, transformaram-se nos vilões que
obstam seu curso e inibem o funcionamento dos mecanismos de mercado. “Nem dívida,
nem déficit, nem Estado”, parecem ser as palavras de ordem do pensamento dominante,
para que o sistema capitalista de produção possa seguir seu curso natural, liberto das
amarras que o prendem ao Estado e que tolhem suas possibilidades de realização plena.

Não surpreende o ressurgimento dessas idéias no final de um longo ciclo de


expansão do sistema, que parece ainda estar reorganizando/reestruturando suas bases e
seus agentes para sustentar a nova etapa em que ingressou. Entre esses agentes figura, de
forma central, o Estado, porque, apesar das vozes apologéticas do mercado, “o capitalismo
só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado (Braudel, 1977, apud
Arrighi, 1996:11/12). Mas não o Estado carcomido pela crise fiscal e financeira,
endividado, a que este último ciclo de expansão do sistema conduziu, mas um Estado
renovado em suas bases de financiamento, em suas formas de intervenção e em seu quadro
instrumental, adequados à nova realidade. Enfim, um Estado que cumpra a sua sina de
fazer o capitalismo triunfar e não a de se opor aos seus desígnios. É isso – e somente isso –
que essas idéias antiestado, velhas em sua forma, preconizam. Por que somente os
ingênuos – os que se guiam pela aparência do mercado – acreditam que o capitalismo viva
sem o Estado, quando este faz parte de sua constituição orgânica.

Déficit e dívida pública não são apenas instrumentos de política econômica e


mecanismos de financiamento do Estado. São antes, na sua origem, as bases que têm
sustentado e garantido a lucratividade e reprodução, em escala ampliada, do sistema
capitalista, principalmente quando esse não consegue mais materializar, na órbita
produtiva, seu objetivo de geração de lucros. Neste caso, as expansões financeiras, que se
alimentam precipuamente da dívida pública e das políticas monetárias, substituem a órbita
real da economia, asseguram os lucros capitalistas e prolongam essa etapa até que o capital
conclua sua reorganização para uma nova etapa de expansão. Neste processo, o Estado,
ainda que temporariamente, acaba se desorganizando, processo que tornam inoperantes e
ineficazes, inclusive, seus instrumentos de intervenção no campo econômico. Somente a
renovação de suas bases e o seu saneamento financeiro podem recolocá-lo em condições
de voltar a cumprir os seus desígnios.

Neste capítulo, bem como no capítulo VI, procura-se tratar dessas questões, sem
descurar de discutir os conceitos, fundamentos e as implicações macroeconômicas do
manejo da dívida e dos déficits públicos pelo Estado. No capitalismo globalizado (ou
mundializado) a aparente obsessão antiestado, antidívida e antidéficit atinge níveis
inauditos e talvez nunca, como agora, os instrumentos de política econômica dos Estados
nacionais tenham se tornado tão inoperantes diante da profunda crise financeira em que
estes se encontram mergulhados. “Não é este o Estado que o capitalismo necessita” – é na
verdade, o que essas vozes querem dizer; por isso é preciso recuperá-lo em outras bases,
173

com uma nova ossatura material e novas formas de atuação para o sistema.

2. OS DÉFICITS PÚBLICOS

Quando a receita (R) arrecadada pelo governo com a cobrança de tributos é igual
ou superior aos gastos (G) que efetua para o desempenho de suas funções, tem-se uma
situação conhecida como de equilíbrio orçamentário, ou de superávit fiscal, onde RG.
Segundo os economistas das escolas clássica e neoclássica, tem-se, em ambos os casos,
uma situação considerada como indicadora de uma boa e sadia administração financeira.
Isso porque, ao conseguir equilibrar suas contas, não ser necessário ao governo ter de
recorrer ao financiamento de seus desequilíbrios, por meio da emissão de moeda, dando
origem a períodos de instabilidade associados à aceleração do processo inflacionário, ou
por aumento do endividamento, o que poderia comprometer a sua saúde financeira no
futuro, obrigando-o a recorrer a emissões monetárias.

Contrariamente, quando R<G, tem-se uma situação de desequilíbrio orçamentário


ou, o que quer dizer a mesma coisa, de déficit fiscal. Um resultado que, considerado uma
heresia pelos que depositam fé irrestrita na capacidade dos mecanismos de mercado de
corrigirem os desequilíbrios da economia, teve como seu principal defensor o economista
John Maynard Keynes (1983). Em sua obra lapidar de 1936 “A Teoria Geral do Emprego,
do Juro e do Dinheiro”, Keynes demonstraria que, em determinadas conjunturas, o déficit
público, gerado pela intervenção do Estado na atividade econômica, poderia se transformar
no mais eficaz instrumento capaz de atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e de
garantir a trajetória de crescimento em direção aos desejáveis objetivos de pleno emprego
dos fatores produtivos da economia. Nessa perspectiva, os empréstimos, de origem pública
ou privada, passaram a ser vistos como benéficos para garantir a lucratividade e a
reprodução do sistema em escala ampliada.

Desde que a teoria de Keynes se mostrou bem sucedida no longo e vigoroso


ciclo de expansão do capitalismo iniciado após a Segunda Guerra Mundial, até o
momento em que os Estados, de uma maneira geral, começaram a vergar sob o peso dos
crescentes encargos financeiros de suas dívidas, na década de 1970, o foco do debate,
no campo das finanças públicas, esteve principalmente centrado nos efeitos do déficit e
da dívida pública sobre a economia, na sua importância e conseqüências para a gestão
da política monetária e nos seus limites para o surgimento de situações de instabilidade
provocadas pelas incertezas em relação à capacidade dos governos de honrarem seus
compromissos. Adotando a hipótese de que a dívida brota do déficit, ou seja, de que é
contratada para cobrir desequilíbrios orçamentários do governo, discutem-se, em
seguida, as visões teóricas predominantes em cada período histórico, em termos dos
efeitos do déficit sobre a economia, bem como o novo tratamento que passou a ser
conferido à política fiscal na etapa atual de desenvolvimento do capitalismo.

2.1. Visões teóricas sobre os efeitos e as conseqüências dos déficits públicos

Uma questão cercada de polêmica entre os economistas de escolas teóricas


distintas – neoclássica, keynesiana (em seus diversos extratos), monetarista e novo-clássica
- diz respeito aos efeitos que os déficits públicos provocam no equilíbrio macroeconômico.
Para a escola neoclássica e os monetaristas, que acreditam na existência de mecanismos
estabilizadores automáticos de mercado, os déficits são sempre sinônimos de malefício e
devem, a todo custo, ser evitados, dados os efeitos nocivos que provocam sobre o nível de
174

preços e sobre a alocação de recursos, reduzindo a eficiência do sistema e retirando-o de


seu ponto de equilíbrio natural. Contrariamente, para a escola keynesiana, cujos
ensinamentos foram apropriados e transformados pela vertente conhecida como Síntese
Neoclássica, os déficits representam um instrumento de política econômica, cujo manejo é
justificado para atenuar as flutuações cíclicas do sistema e para viabilizar objetivos de
pleno emprego sempre que a economia se defronta com insuficiência de demanda efetiva,
tornando o sistema mais eficiente, sem os riscos de provocarem impactos sobre o nível de
preços, ou quando há necessidade de prover o governo de recursos não inflacionários. Para
os teóricos da “escolha pública” (public choice), que também se filiam ao neoclassicismo
e que também ganharam espaço com a crise da teoria keynesiana, não somente os déficits
como o próprio Estado constituem antípodas do mercado, da eficiência e do equilíbrio do
sistema, devendo, por essa razão, serem mantidos sob rígido controle, sendo mesmo
desejável, como preconizam sua corrente mais radical, a dos rent seeking, que
desapareçam para o bem da comunidade.

Assim é que para a teoria econômica ortodoxa, para a qual não existe sociedade,
mas indivíduos realizando cálculos racionais, que conduzem a economia para um ponto
de máxima eficiência e de bem-estar (o ótimo de Pareto), o Estado seria mais útil para a
comunidade se não existisse, deixando, assim, de produzir os indesejáveis déficits. Para
Keynes, que desmontou criticamente, em sua obra, as premissas teóricas dessa escola “as
características do mundo pressupostas pela teoria ortodoxa não são as da sociedade
econômica em que realmente vivemos, daí resultando que seus ensinamentos sejam
enganadores e desastrosos quando tentamos aplicá-los aos fatos da experiência.” (keynes
apud Ormerod, 1996:75/6)

A ressurreição da ortodoxia, na década de 1970, liderada pelos teóricos das


expectativas racionais e, em particular, pela escola novo-clássica, diante da crise do
capitalismo e das idéias keynesianas, colocou novamente em xeque essa questão, e tanto o
Estado como o déficit público voltaram a ser considerados vilões dos desequilíbrios
macroeconômicos e, consequentemente, da instabilidade do sistema. Por isso, é bom
compreender o lugar que a questão do déficit público ocupa no corpo teórico dessas
escolas, qual papel desempenha e que conseqüências pode acarretar para o funcionamento
e o equilíbrio do sistema econômico.

Quando o governo incorre em déficit ele pode financiá-lo através: a) do aumento


da tributação; b) da emissão de moeda, expandindo a base monetária e legitimando-a
através da colocação de títulos do Tesouro Nacional junto às autoridades monetárias
(Banco Central); e c) da contratação de dívida junto ao público. Quais os efeitos que essas
formas de financiamento provocam sobre o equilíbrio macroeconômico e qual a melhor
alternativa que menos custos representariam para a sociedade?

Para o neoclassicismo, os déficits públicos sempre estiveram fora de questão.


Seriam uma espécie de tumor introduzido por um agente estranho – o Estado – no
organismo saudável do sistema econômico, dotado de capacidade de regeneração – e de
correção – de eventuais desequilíbrios surgidos. Já Keynes, questionando a eficiência
destes mecanismos auto-reguladores, que não davam mostras de entrar em ação após anos
transcorridos da crise econômica dos anos 1930, considerou não existirem problemas na
geração de um déficit temporário financiado pela expansão monetária, com a colocação de
títulos da dívida junto às autoridades monetárias, numa situação em que a economia se
encontrasse operando abaixo do pleno emprego dos fatores produtivos. Para ele, o
175

aumento da demanda efetiva daí resultante estimularia a atividade econômica, ao ampliar


os níveis de consumo e de investimentos, injetando, assim, forças para seu retorno ao
ponto de equilíbrio de pleno emprego, ao mesmo tempo em que a arrecadação aumentaria,
permitindo, com isso, a cobertura, ainda que parcial, do déficit inicialmente gerado. Esses
efeitos seriam, contudo, bem menos significativos, no caso de o déficit ser financiado por
meio da dívida junto ao público ou pelo aumento da tributação, considerando que, nestes
casos, não haveria a criação de um novo poder de compra, visto que apenas seriam
transferidos recursos do setor privado para o setor público, limitando o atingimento do
objetivo de se retirar a economia da crise e de se alcançar o equilíbrio de pleno emprego.42

Diferente seria, contudo, o caso de uma economia operando num horizonte de


equilíbrio de longo prazo, com fatores produtivos plenamente utilizados, que corresponde
à única situação possível de equilíbrio no mundo neoclássico. Neste caso, a necessidade de
prover recursos adicionais para o governo (e não a de criar demanda efetiva para estimular
a atividade econômica) poderia causar efeitos mais ou menos danosos para a economia,
dependendo da escolha feita por uma das alternativas de financiamento mencionadas –
emissão de moeda, tributação ou dívida junto ao público - por serem distintos os seus
impactos sobre a demanda agregada, a inflação e o equilíbrio macroeconômico.

Na visão de Keynes, um déficit permanente financiado pela emissão de moeda


pode, neste caso, gerar inflação e reduzir a demanda agregada privada, mas apenas se essa
expansão for superior à taxa de crescimento da capacidade de oferta da economia e à
variação do nível de preços (à inflação). Se ultrapassado esse limite e o governo continuar
emitindo moeda para se financiar, a taxa de inflação inevitavelmente continuará subindo,
rompendo-se o equilíbrio macroeconômico existente, à medida que aumentam as pressões
sobre a demanda por parte do setor público e privado, que estarão competindo entre si pela
aquisição de bens e serviços, podendo conduzir a economia à hiperinflação (Dornbusch &
Fisher, 1999: Cap. 14).

Mas se este mesmo déficit for financiado, por outro lado, com um aumento de
impostos, a demanda agregada seria afetada apenas na medida em que os efeitos
multiplicadores do gasto do governo sejam maiores que os do setor privado, considerando
que a renda disponível deste se reduz, mas os seus gastos tendem a cair menos, de acordo
com sua propensão marginal de consumo e investimento. Cabe lembrar, contudo, nem
sempre ser viável politicamente o financiamento do déficit através do aumento de impostos
em determinadas conjunturas, não podendo ser considerada esta uma alternativa com que o
governo poderá contar, a qualquer momento, para aumentar a capacidade de financiamento
não inflacionário de seus gastos.

No caso do financiamento do déficit ser feito através da colocação de títulos da


dívida junto ao público, os efeitos seriam diferentes, porque embora também sejam
transferidos recursos do setor privado para o governo, a riqueza dos indivíduos aumentaria
devido ao pagamento de juros, com a demanda por bens e serviços podendo também
aumentar em decorrência do que se chama na economia de “efeito-riqueza”.

Nessa perspectiva, portanto, os déficits podem representar problemas para o caso


de uma economia que, encontrando-se numa situação de equilíbrio de pleno emprego, os
financie de forma inadequada, via emissão excessiva de moeda, provocando impactos
inflacionários, ou aumentando a demanda agregada, com a ampliação da riqueza dos
42
Para estes pontos ver Dillard (1976:Cap. VI)
176

indivíduos devido aos ganhos gerados com o pagamento dos juros da dívida. Nesse último
caso, déficits permanentes, que são financiados através do aumento da dívida podem
pressionar as taxas de juros e potencializar o “efeito-riqueza”, rompendo o equilíbrio
existente.

Essa visão de Keynes de que os déficits públicos afetam as variáveis reais da


economia e que podem contribuir, em situação de crise, para expandir a renda e o
emprego, reconduzindo-a ao ponto de equilíbrio macroeconômico, sem provocar inflação,
tornou-se dominante, para sensaboria do pensamento ortodoxo, enquanto o capitalismo
conseguiu manter-se numa trajetória de forte crescimento após a Segunda Grande Guerra,
confirmando o sucesso dos modelos e políticas inspirados nessa escola.

A partir de meados da década de 1960, contudo, quando o capitalismo começou a


emitir sinais de desequilíbrios, suas idéias passaram a ser questionadas pela corrente
teórica conhecida como monetarismo (na verdade, o neoclassicismo transfigurado),
capitaneada pelo economista Milton Friedman. Para essa corrente, como já tivemos
ocasião de apontar nos capítulos anteriores, o déficit público só é capaz de irradiar efeitos
sobre as variáveis reais da economia no curto prazo, transformando-se em mera inflação no
longo prazo, à medida que os agentes econômicos corrijam/adaptem suas expectativas
sobre o seu comportamento, retirando o sistema de seu ponto de equilíbrio natural.

Embora as posições dessa escola afigurem-se como uma negação da teoria


keynesiana no tocante ao papel do Estado e da política fiscal, não se pode considerar que
tenha ocorrido, com ela, uma ruptura radical com o seu pensamento, à medida que
considera, mesmo que no curto prazo, que a última engendra efeitos sobre a renda, o
emprego, o investimento etc. Com isso, o debate teórico envolvendo os economistas da
síntese neoclássica e os da escola monetarista continuou sendo realizado em torno dos
efeitos gerados pelo déficit público sobre a inflação, das conseqüências da disputa de
financiamento pelo Estado com o setor privado (efeito crowding out) e também do gasto
público sobre a demanda agregada e de suas implicações para os resultados da balança
comercial. Só a partir da década de 1970, essas questões começaram a esmaecer, quando,
diante da crise econômica que se abateu sobre a economia mundial, nesse período,
combinando a expansão do déficit público com a aceleração inflacionária, acentuaram-se
as críticas aos modelos de inspiração keynesiana e abriram-se as portas para o predomínio
da visão que surgiu sobre as expectativas racionais dos agentes econômicos, e da escola
conhecida como novo-clássica, as quais representariam, de fato, no campo teórico, uma
ruptura radical com aquele pensamento no tocante ao papel do Estado e à política fiscal,
como vimos no Capítulo I. 43

Por outro lado, as transformações conhecidas pelo capitalismo, a partir da década


de 1980, com a globalização dos mercados de crédito e de produtos e com a queda das
barreiras ao livre fluxo comercial e financeiro, cuidariam de garantir um novo tratamento
para a questão fiscal, sustentada na visão daquela escola, distinto do que predominara no
período anterior, ajustando-a à nova realidade econômica. No plano comercial, a exigência
da competitividade se encarregaria de dela retirar quaisquer compromissos com objetivos
redistributivos, como discutido no Capítulo IV. No plano financeiro, a liberalização
financeira e o passeio do dinheiro no mundo em busca de lucratividade, tornariam maiores
os riscos dos agentes envolvidos neste processo e passariam a exigir dos governos a
43
O que se segue apóia-se, em boa medida, no trabalho de Lopreato (2006), que realizou uma excelente
síntese sobre a evolução da visão convencional sobre a política fiscal.
177

adoção de medidas e regras mais confiáveis de maior controle de suas contas para
garantir a sustentabilidade de suas dívidas, bem como a garantia de políticas econômicas
consistentes com o objetivo de valorização desses capitais, sob pena de não contarem com
recursos para o seu financiamento e sujeitarem as economias de seus países a ondas de
instabilidade.

Ora, se de acordo com a escola novo-clássica, a política fiscal é sempre inócua em


seu objetivo de afetar as variáveis reais, já que os agentes econômicos, cujas expectativas
são racionais, neutralizam seus efeitos, atuando preventiva/ defensivamente, os déficits
nada mais geram do que inflação e endividamento público, que desviam a economia de seu
leito natural de equilíbrio e provocam instabilidade. Se assim é, a discussão sobre os
impactos por eles engendrados na demanda agregada, na renda e no emprego, perde
qualquer sentido e, considerando os efeitos prejudiciais que causam para a eficiência e o
equilíbrio do sistema, torna-se apenas uma questão de bom senso sua condenação. Nessa
perspectiva, é que se pode entender as teses e posições agressivamente antiestado que se
tornaram dominantes nas décadas de 1980 e 1990, catapultando o pensamento neoliberal e
justificando as propostas de reforma que surgiram para a redução, ao mínimo, de suas
atividades. Deixava de existir, assim, neste novo quadro teórico, espaço para a política
fiscal, projetando-se um progressivo esvaziamento do Estado, caso continuassem a
prosperar as propostas de reformas que passaram a ser sugeridas na onda neoliberal que
rapidamente se espalhou pelo mundo.

Se dispensado de seus serviços como agente responsável pela formulação e


implementação de políticas de demanda agregada, os resultados colhidos pelas reformas de
cunho neoliberal, nas décadas de 1980/90, muito rapidamente voltariam a desvelar a
importância do Estado para o bom funcionamento do sistema, especialmente no âmbito da
nova etapa de desenvolvimento do capitalismo, caracterizada pelo processo de
globalização, que subordinou o capital industrial ao financeiro: seguidas crises financeiras
internacionais ocorridas na década de 1990, na economia internacional, foram suficientes
para mostrar que, deixado à própria sorte, o mercado não conseguiria se ajustar e corrigir
seus desequilíbrios, sendo crescentes os riscos do capital financeiro de sucumbir aos novos
problemas colocados nessa nova etapa de desenvolvimento. Seu papel, no entanto, distinto
do que desempenhara no período em que predominou o keynesianismo, seria, como bem
coloca Lopreato (2006:2): “[o de garantir] a rentabilidade dos títulos públicos como espaço
de valorização do capital, bem como [oferecer] salvaguardas aos bancos e empresas nas
crises e [defender] a lucratividade de outros ativos atraentes ao capital”.

Para cumprir este novo papel, o Estado teria de tornar-se confiável para os agentes
privados, já que atuaria predominantemente como espaço de valorização da riqueza
financeira, significando que seus passivos (ou sua dívida) não podem apresentar riscos de
inadimplência, ou, em outras palavras, que seu pagamento deve ser dado como líquido e
certo, com o Estado sendo capaz de honrá-lo, sustentá-lo não só nas condições vigentes,
mas também nos cenários construídos a partir do comportamento esperado para as
variáveis que influenciam a relação dívida/PIB. O grau dessa capacidade seria medido por
um critério especialmente criado para essa finalidade, o risco-país, associado ao tamanho
da dívida interna pública, à dívida externa e ao desempenho apresentado pelo país no
tocante à economia e aos fluxos anuais de suas contas públicas, tornando-se o balizador
das expectativas dos agentes econômicos sobre essa capacidade e definidor das taxas de
juros cobradas sobre os empréstimos por ele demandado: variando inversamente ao nível
deste risco, o prêmio exigido (as taxas de juros) atuaria como fator de estímulo para
178

manter confiáveis os fundamentos fiscais, ou, ao contrário, como instrumento punitivo de


sua negligência nessa questão.

Essa idéia de sustentabilidade da dívida, que nada mais significa do que a garantia
de pagamento de seu estoque e de seus encargos para os detentores dos títulos públicos,
passaria a balizar as expectativas dos agentes econômicos sobre a capacidade do Estado de
honrar seus compromissos e a dar uma nova conformação à política fiscal: o papel dessa
passaria a se restringir à garantia de controle das contas públicas e da sustentabilidade da
dívida, dada a influência que, de acordo com a renovada teoria ortodoxa baseada nas
expectativas racionais, essas exercem sobre o comportamento esperado pelos agentes
econômicos de variáveis econômicas vitais para o bom funcionamento da economia, como
o da taxa de juros, do câmbio, do balanço de pagamentos e da inflação. Com fundamentos
fiscais confiáveis, reduzem-se ou se removem as incertezas sobre a ação nefasta do Estado,
formando-se expectativas favoráveis para o comportamento das demais variáveis e,
consequentemente, para o desempenho mais eficiente da economia, que contaria com
maiores aportes de recursos, a custos mais baixos, para os investimentos. Como coloca
Lopreato (2006:8), a tarefa que passou a ser conferida à política fiscal, neste novo
paradigma, “é a de servir de pilar de sustentação e farol do comportamento esperado de
outras variáveis econômicas”.

A centralidade que adquiriu a política fiscal neste quadro tem a ver, portanto, de
acordo com os argumentos da teoria dominante, com sua influência sobre as expectativas
dos agentes econômicos a respeito do comportamento futuro esperado dessas variáveis.
Caso a política fiscal, como âncora da estabilidade macroeconômica, mostre-se mal
sucedida, os agentes – racionais – reverão suas expectativas sobre essas variáveis,
colocando em xeque a política econômica e dando início a um período de turbulências para
a economia. 44

Para que a política econômica tenha credibilidade e ganhe reputação,


convalidando as expectativas destes agentes, é necessário que a política fiscal seja
confiável e que o Estado, além de conseguir manter-se, aos seus olhos, como bom pagador,
contendo a relação dívida/PIB em parâmetros sustentáveis, administre bem os fluxos
anuais de suas receitas e gastos, de acordo com a situação apresentada por aquela relação.
Caso elevada, a política fiscal deve estabelecer e perseguir, com denodo, metas de
contenção fiscal, ou de geração de superávits fiscais, que a reduza para níveis confiáveis
para os agentes econômicos. Da mesma forma, se enquadrada em limites confiáveis, o
resultado anual dos fluxos orçamentários deve ser contido em níveis que não
comprometam sua trajetória futura. Os resultados dos fluxos anuais (déficits ou superávits)
transformam-se, assim, no farol que ilumina, no presente, a trajetória futura da dívida,
sendo determinante para o sucesso ou insucesso da política econômica. Isso lhe confere
uma aparente centralidade, mas o que está em jogo, de fato, neste caso, é a trajetória da
relação dívida/PIB, que vai determinar a capacidade do Estado de continuar garantindo a
valorização do capital e o pagamento da riqueza financeira.

44
Para uma avaliação mais detalhada das inter-relações entre essas variáveis, ver o trabalho já
mencionado de Lopreato (2006).
179

O nível do resultado nominal das contas públicas que deverá ser alcançado para
garantir a estabilidade da relação dívida/PIB, é dado pela seguinte fórmula, extraída do
trabalho de Giambiagi & Além (1999:170):45

f = d. y / (1+y) + s, onde:

f = Necessidades (nominais) de Financiamento do Setor Publico;


d = relação dívida/PIB;
s = senhoriagem como proporção do PIB;
y = taxa nominal de crescimento do PIB.

De acordo com essa fórmula, o nível das necessidades de financiamento do setor


público (f) – déficit/PIB - requerido para estabilizar a relação dívida/PIB (d) varia
diretamente com o tamanho da relação dívida/PIB, o crescimento nominal da economia e a
senhoriagem. Ela indica que, supondo, por exemplo, uma relação dívida/PIB (d), de 60%,
uma taxa de crescimento real da economia de 3% no ano, uma taxa de inflação de 2% (o
que significa uma taxa de crescimento do PIB nominal de 5,06%) e um nível de
senhoriagem de 1% do PIB, o déficit nominal máximo em que poderá incorrer o governo
será de 3,036% do PIB para manter estabilizada a dívida em 60%. Caso o crescimento do
PIB não corresponda às expectativas e cresça apenas 3%, mantendo-se constantes as
demais variáveis consideradas, o déficit não poderá ser superior a 1,812% do PIB,
exigindo esforço fiscal adicional. Se o PIB real cair 1%, o déficit deverá ser contido em
0,594% para impedir o crescimento da relação dívida/PIB.

Cabe notar, contudo, que essa fórmula ao considerar o resultado nominal, não
contempla de forma explícita a influência dos efeitos da taxa de juros sobre a própria
dívida e o esforço fiscal real que deverá ser realizado pelo setor público para manter
estabilizada a relação. Introduzindo a taxa de juros (i) na fórmula, ainda de acordo com
Giambiagi & Além (1999:166/7), temos:

h = d. [(i – y) / (1 + y)] – s, sendo

h = resultado primário como proporção do PIB;


d = relação dívida/PIB;
s = senhoriagem como proporção do PIB;
y = taxa de crescimento nominal da economia;
i = taxa de juros.

Neste caso, ainda segundo estes autores (1999:167), em que se passa a considerar o
resultado primário, como proporção do PIB, para garantir a estabilização da dívida, este se
apresenta como “(...) uma função direta da própria relação dívida/PIB e da taxa de juros e
uma função inversa do crescimento da economia – para certa taxa de inflação e da
senhoriagem. Níveis superiores (inferiores) aos definidos [na fórmula] geram uma queda
(aumento) da relação dívida/PIB”.

45
Os diferentes conceitos e medidas utilizados para a avaliação das contas públicas são apresentados e
discutidos mais detalhadamente na próxima seção.
180

Nessa nova fórmula, é o resultado primário, portanto, que deve ser fixado para
garantir a estabilidade da relação dívida/PIB, no caso de o país encontrar-se enquadrado
nos padrões convencionalmente estabelecidos internacionalmente, em níveis aceitáveis
para os agentes econômicos, ou para reduzi-la, caso acima destes níveis. Excluídos,
portanto, os juros da dívida do conceito, o resultado primário deverá ser superavitário para
garantir o pagamento dos juros, descontados os efeitos da variação do PIB e da
senhoriagem, para que a relação não aumente, ou realizar ainda maiores esforços, caso ela
se encontre em patamares mais elevados.

O resultado dos fluxos orçamentários (déficit/superávit) revela-se, assim, de


natureza móvel, devendo sempre ser ajustado, caso as projeções para as outras variáveis
que nele interferem não se confirmem (nível de arrecadação, de gastos, taxas de juros,
crescimento econômico, inflação), porque se trata de uma variável dependente,
subordinada à garantia do atingimento da meta estabelecida para a relação dívida/PIB, o
farol que ilumina as expectativas dos agentes econômicos.

Nessa perspectiva, o nível do superávit estabelecido para garantir uma trajetória


confiável para a dívida pública adquire o status de uma despesa obrigatória, enquanto os
gastos discricionários tornam-se meros resíduos, à medida que sacrificados sempre que
ocorrem desvios das metas estabelecidas para a relação dívida/PIB. Neste caso, os
aumentos necessários no esforço fiscal realizado, traduzem-se, via de regra, em cortes de
despesas públicas essenciais para a sociedade e a economia, visto que essas, nessa
perspectiva teórica, perderam prioridade para o objetivo da estabilidade macroeconômica,
que somente os agentes econômicos podem validar se tiverem confiança nos atos e na
situação financeira do setor público. 46

Para isso, e para remover incertezas sobre o seu cumprimento, os agentes


econômicos devem ser convencidos de que o governo tem essas metas como objetivo
prioritário, sagrado, inescapável, garantindo que essas serão atingidas, dando-lhes o
status, inclusive, de leis, como instituições confiáveis. O enquadramento do Estado nesse
novo desenho da política fiscal conduziu, assim, a modificações na sua forma anterior de
atuação, fechando canais que lhe davam flexibilidade na condução da política econômica e
estabelecendo regras e procedimentos legais às quais deve se submeter e rigorosamente
obedecer para ganhar credibilidade em suas ações e validar as expectativas dos agentes
econômicos sobre o comportamento das variáveis econômicas. Com isso, entraram em
cena diversas regras (instituições), muitas formalizadas em lei, voltadas para este objetivo,
como as de estabelecimento de limites para determinados gastos públicos (pessoal,
investimentos etc.), envolvendo os três poderes do Estado, de endividamento, de equilíbrio
das contas públicas, da forma de atuação do Banco Central, para que possa atuar de forma
independente e não ser influenciado politicamente em suas ações de guardião da
estabilidade monetária etc.

O novo regime fiscal que brotou dessa nova concepção sobre a política fiscal
explica porque o controle permanente das contas públicas tornou-se um elemento chave da
política econômica, exigindo do Estado abrir mão de seu papel como agente
implementador de políticas de desenvolvimento e de bem-estar: diferentemente do que

46
Isso não significa que, por si, o atingimento da meta estabelecida para esse resultado garanta o
cumprimento da meta estipulada para a relação dívida/PIB. Como se verá no próximo capítulo, que trata
da dívida, outros fatores interferem na sua trajetória, nem sempre se conseguindo, mesmo com esforços
fiscais adicionais, sua estabilidade ou redução.
181

ocorria no mundo keynesiano em que sua intervenção era vista como vital para garantir a
estabilidade do sistema e a coesão das forças sociais, até mesmo, se necessário, com a
geração de déficits, a estabilidade macroeconômica passou a exigir, de acordo com o novo
paradigma teórico, um Estado que gaste pouco – afinal, não são inócuos os seus gastos
destinados para aquela finalidade? -, tenha suas contas equilibradas e cumpra o seu papel
de espaço de valorização da riqueza financeira e de garantia de sua conversão em riqueza
real. Geração de superávits primários e controle da relação Dívida/PIB tornaram-se, nessa
perspectiva teórica, a palavra de ordem para suas políticas na nova ordem que se instaurou,
mesmo que, para isso, tenha de abdicar de seu papel como agente de legitimação do
sistema.47

Nas próximas seções procura-se examinar como esse novo paradigma tem
influenciado – e em que medida – a condução da política fiscal na economia mundial e,
mais especificamente, no Brasil. Antes disso, apresenta-se, em seguida, os conceitos e
metodologias de avaliação dos resultados das contas públicas que podem ser – e são -
utilizados para esse objetivo.

3. MEDIDA E CONCEITOS DOS DÉFICTS PÚBLICOS

3.1. Medida e Conceitos

Existem diversos métodos de avaliação do desempenho das contas públicas, cada um


retratando uma situação que pode atender aos objetivos de quem as analisa, mas nem por
isso apresentar-se em condições de permitir a identificação de seus resultados efetivos num
determinado período, não sendo eles, por isso, substituíveis entre si. Entre esses métodos
podemos destacar os que podem ser classificados como “tradicionais” e os que surgiram
mais recentemente na literatura econômica das finanças públicas. 48

3.1.1. Métodos e conceitos tradicionais

Entre os métodos ou conceitos tradicionais, o mais conhecido e utilizado é o de Resultado


Orçamentário, obtido pela diferença entre as Receitas (Correntes e de Capital) e as
Despesas (também Correntes e de Capital). Este resultado pode, contudo, revelar-se
enganoso no caso da avaliação da situação financeira do setor público num determinado
período, pois inclui a rubrica “Operações de Crédito”, que nada mais representa do que
uma dívida contratada para cobrir algum desequilíbrio em que a administração pública
incorreu, seja pela realização de gastos imprevistos, de dispêndios que não contavam com
dotação orçamentária ou como decorrência de frustração das receitas previstas.
Considerando isso, um resultado orçamentário equilibrado pode esconder uma situação de
efetivo desequilíbrio dessas contas.

47
A crise em que mergulhou o capitalismo em 2007/2008, em conseqüência do colapso do crédito
subprime na economia norte-americana, que sustentou uma fantástica multiplicação da riqueza financeira
(virtual), por meio de fundos de investimentos de hedge e derivativos, modificou ainda que
temporariamente essa visão: ainda que envolvidos em programas de severos ajustes fiscais e com finanças
debilitadas, os Estados capitalistas foram convocados para socorrer os mercados e salvar instituições e
empresas de falências, com o lançamento de pacotes fiscais e monetários salvadores, mesmo tendo, para
isso, de abandonar a rigidez das regras fiscais estabelecidas pelo novo paradigma teórico e terem de
incorrer em vultosos déficits e em aumento preocupante do endividamento público.
48
Para maior detalhamento e avaliação dessas metodologias, ver os trabalhos de Ramalho (1997) e
Oliveira (2006).
182

Uma maneira de se perceber melhor essa situação consiste em excluir as


“Operações de Crédito” do conjunto das receitas, obtendo-se o que alguns autores chamam
de “Resultado Fiscal” (Receitas – Operações de Crédito – Despesas), pois aí fica claro
que, se negativo, o desequilíbrio (ou déficit) terá de ser coberto com a contratação da
dívida pública (ou seja, com a tomada de empréstimos, na forma de Operações de Crédito).
Ressalve-se, contudo, que o mesmo termo é utilizado com diversos significados,
dependendo do instrumental analítico utilizado e dos objetivos pretendidos.

Um outro método que permite refinar a análise dessa avaliação é o que considera
apenas a Receita Corrente (exclui, portanto, as Receitas de Capital), comparando-o à
Despesa Corrente. O resultado obtido - Resultado Corrente - revela a capacidade do setor
público de financiar as despesas de capital sem ter de recorrer ao endividamento. Caso o
Resultado Corrente seja negativo, isso significa que, além de ter de recorrer à dívida para
cobrir suas despesas correntes, também a integralidade de seus investimentos, bem como a
amortização da dívida, só podem ser feitos por esse instrumento, revelando que suas
finanças se encontram em situação crítica.

Qualquer desses métodos pode ser obscurecido, contudo, do ponto de vista da


avaliação da situação financeira do governo, porque o orçamento inclui tanto receitas
como despesas de caráter transitório, esporádico e excepcional, as quais podem conduzir a
conclusões equivocadas sobre suas condições de equilíbrio ou de desequilíbrio. Por isso,
há necessidade de uma metodologia adequada para o seu cálculo, que leve em conta todas
essas questões, para que se tenha melhor clareza sobre o desempenho efetivo de suas
contas.

3.1.2. A medida das Necessidades de Financiamento do Setor Público (NFSP)

A medida de aferição do resultado das contas do setor público que vem sendo
utilizada no Brasil desde 1983 – ano em que o País teve de recorrer ao Fundo Monetário
Internacional (FMI), após a crise da dívida externa deflagrada em 1982, para obter
empréstimos que lhe permitissem honrar seus compromissos externos – é conhecida como
Necessidades de Financiamento do Setor Público-NFSP (originalmente Public Setor
Borrowing Requirements ou PSBR). Nessa fórmula, caso R>G, as necessidades de
financiamento são negativas, ou seja, as contas apresentam-se superavitárias, dispensando,
portanto, financiamento. Caso R<G, as necessidades são positivas, indicando uma posição
deficitária que necessita de financiamento.

As NFSP, assim denominadas porque se referem ao montante dos financiamentos


– internos e externos – tomados juntos a terceiros pelo setor público, para cobrir suas
necessidades de recursos no caso de apresentarem-se negativas, são divulgadas em termos
líquidos, excluindo-se de sua medição, portanto, o refinanciamento das amortizações de
empréstimos contratados anteriormente (quando essas são incluídas têm-se as NFSP
brutas). São apresentadas também em termos absolutos (o montante de financiamentos
contratados) e como proporção do Produto Interno Bruto (PIB).

Sua abrangência contempla os resultados das contas das três esferas de governo
(federal, estadual e municipal), incluindo a administração direta e descentralizada
(autarquias, fundações, fundos governamentais etc.); as empresas estatais (também dos três
níveis de governo – federal, estadual e municipal); e o Banco Central. Depois de ter
conhecido várias alterações desde o início de sua apuração, atualmente, os resultados das
183

contas dessas esferas de governo são apresentadas, no Brasil, de forma consolidada, em


três segmentos: Governo Central (inclui o Governo Federal, o Banco Central e o INSS);
Estados e Municípios; e Empresas Estatais.

Essa abrangência das NFSP contém uma imprecisão, em termos de seus resultados,
que não pode ser negligenciada. Ao englobar os diversos segmentos do setor público na
sua medição, ou seja, aqueles que exercem funções típicas de governo, em seus diversos
níveis, juntamente com o setor produtivo – as empresas estatais das três esferas -, que não
dependem de recursos fiscais para suas operações/atividades, as NFSP não se restringem à
aferição dos resultados orçamentários do setor público, mas consideram o montante de
recursos (por isso o termo NFSP) necessários para cobrir o excesso de dispêndios
realizados (no caso de apresentarem-se positivas, ou seja, deficitárias), incluídos os
investimentos das empresas estatais em relação às suas receitas.

Explicando melhor: se os desequilíbrios gerados nos órgãos que exercem funções


típicas de governo configuram-se efetivamente como déficits, o mesmo não pode ser dito
em relação aos apresentados pelo setor produtivo estatal, já que este, à semelhança do setor
privado, incorre em lucro ou prejuízo (e não em superávit ou déficit). E se este
desequilíbrio resulta da realização de investimentos, que cedo ou tarde terminarão
garantindo retorno para essas empresas, não tem sentido equiparar seus resultados aos de
um déficit, quando se trata, na verdade, de operações de financiamento típicas de
atividades empresariais, cujo pagamento será efetuado com suas receitas operacionais.

Essa inclusão do setor produtivo estatal entre os segmentos que passam a ser
sujeitos a respeitar os limites de endividamento do setor público como um todo e a
contribuir para os esforços fiscais dele exigidos em situação de ajustamento de suas contas,
desconsidera sua natureza e desvirtua seus objetivos, à medida que limita suas
possibilidades de investimentos, principalmente se este tiver de ser realizado com a
contratação de dívida e exige que suas empresas operem com a máxima rentabilidade com
o objetivo de gerar os frutos para o ajuste pretendido, impedindo que sejam usadas como
instrumentos de política econômica. Afeta, enfim, a soberania do país na condução de sua
política econômica para o atingimento de seus objetivos.

As NFSP podem ser aferidas nos conceitos nominal, operacional e primário49.


As NFSP, em termos nominais, correspondem ao montante de financiamento demandado
pelo setor público para cobrir suas despesas, inclusive com o pagamento de juros devidos
da dívida pública – interna e externa - e com a atualização monetária e cambial de seu
estoque (o componente inflacionário), para as quais suas receitas não são suficientes. Uma
forma mais direta – e menos imprecisa – de sua medição é a de considerar o seu resultado
como a variação nominal dos saldos da dívida líquida do governo (a variação do saldo da
dívida interna mais os fluxos externos, estes sendo convertidos para a moeda nacional pela
taxa de câmbio do período). Neste caso, NFSP-nominais = variação da dívida nominal.

49
Para maior detalhamento desses conceitos, ver o trabalho de Giambiagi e Além (1999: Cap. 6)
184

Quadro 4.1.

Resultados das contas públicas


Quando as receitas são insuficientes para cobrir suas despesas, gera-se um déficit orçamentário. Quando são
iguais ou superiores, tem-se equilíbrio ou superávit orçamentário.
Entre os métodos tradicionais utilizados nessa avaliação três se destacam: o Resultado Orçamentário, o
Resultado Fiscal e o Resultado Corrente. O primeiro inclui, do lado das receitas, as “Operações de Crédito”
(contratação de dívida), o que prejudica a avaliação, pois uma situação de equilíbrio pode esconder outra
oposta de desequilíbrio. O segundo, exclui as “Operações de Crédito”, revelando o desequilíbrio existente e
como foi financiado. O terceiro, mostra a capacidade da administração pública de financiar seus gastos
correntes e seus investimentos sem ter de recorrer ao endividamento.
Na metodologia do Banco Central, são três os conceitos utilizados para avaliar o resultado das
contas públicas: o nominal, o operacional e o primário. O nominal considera, além dos gastos ativos do
governo (ou despesas primárias), os juros e a correção monetária da dívida, incorporando, portanto, o
efeito da inflação sobre as contas públicas. O operacional exclui a correção monetária da dívida (o efeito
inflação). O primário exclui também os encargos da dívida na forma de juros nominais.
Em situação de estabilidade monetária, o conceito operacional perde significado, sendo
relevantes apenas os conceitos nominal e primário.

Em termos operacionais, medida que não pode ser confundida com o resultado
convencional de operações de produção de bens e serviços fornecidos pelo setor público,
as NFSP são obtidas excluindo-se, das NFSP-nominais, a correção monetária e cambial da
dívida. Neste caso, NFSP-operacionais = (NFSP-nominal – correção monetária e cambial
da dívida). Este conceito não é de fácil mensuração, pois exige a aplicação dos índices
correspondentes da correção monetária aos diversos componentes da dívida. Em períodos
de alta inflação, este é o conceito mais relevante, pois desconsidera os efeitos da inflação
sobre a dívida, mas quando a inflação é baixa, essas diferenças tendem a desaparecer, e o
resultado operacional a convergir para o resultado nominal, perdendo importância o seu
cálculo, como ocorreu no Brasil depois do lançamento do Plano Real, em 1994, com o que
se reduziu o imposto inflacionário. 50

Já medidas pelo conceito primário, excluem-se, das NFSP operacionais, os gastos


com o pagamento de juros nominais da dívida. Temos, neste caso, que: NFSP-primárias =
(NFSP-nominais – juros nominais (correção + juros reais da dívida). Este corresponde,
portanto, ao resultado das contas ativas/reais do governo, que exclui a dimensão financeira
da dívida de seu cálculo. Ao excluir os juros nominais da dívida do cálculo do déficit, o
critério torna mais claro o esforço fiscal que terá de ser feito pelo governo para ajustar suas
contas e a economia de recursos que terá de fazer (o superávit primário que terá de gerar)
para o pagamento dos encargos da dívida, de forma a mantê-la em níveis confiáveis para
os credores.

4. A EVOLUÇÃO DOS DÉFICITS PÚBLICOS NA HISTÓRIA RECENTE DO


CAPITALISMO

50
Por essa razão, o Banco Central do Brasil deixou de divulgar as estatísticas relativas ao cálculo deste
conceito, restringindo-as às dos resultados primário e nominal.
185

Depois do vigoroso ciclo de crescimento conhecido pelo capitalismo após a Segunda


Guerra, a década de 1970 inaugura, como resultado da crise que se instala em nível
mundial, o que se pode chamar de “a era dos déficits públicos”, os quais servirão de
munição para o pensamento ortodoxo defenestrar a presença do Estado na economia e
propor sua retirada de cena como único remédio capaz tanto de impedir como de corrigir
os desequilíbrios do sistema.

A tabela 5.1, que mostra e evolução dos déficits públicos gerados por um conjunto
de países desenvolvidos, que compõem o G-7, não deixa dúvidas sobre os efeitos
perversos da crise econômica sobre as finanças estatais. Constata-se, de sua análise para o
conjunto desses países, a manutenção de uma situação de equilíbrio/superávit orçamentário
até o ano de 1973, com as poucas exceções dos resultados apresentados pelos EUA e Itália.
A partir de 1974, como resultado do 1º choque do petróleo, que conduziu à implementação
de processos recessivos de ajustamento dessas economias, os déficits públicos se elevam
rápida e explosivamente, atingindo seu ápice no ano seguinte, quando correspondem a
4,3% do Produto Nacional Bruto (PNB) conjunto gerado por esses países.

O reingresso da economia mundial numa trajetória de lento crescimento, a partir de


1976, coloca em movimento forças antidéficits e esses iniciam um processo de redução até
retornarem ao nível de 1,7% em 1979. O 2º choque do petróleo e a política restritiva norte-
americana adotada nessa época terminam interrompendo esse processo e jogando
novamente a economia mundial na crise – que se prolongará até meados da década – com
conseqüências nefastas para os desequilíbrios do setor público que voltam novamente a
ampliar-se rapidamente e a atingirem, em 1983, o mesmo nível de 1975.

Tabela 5.1
Saldos Orçamentários Efetivos
(em % do PNB/PIB)
Países/Ano 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1979 1980 1983
EUA 1,1 1,8 0,3 -0,6 0,3 4,2 -0,6 1,2 4,1
Japão -1,9 -1,4 -0,4 -0,5 -0,4 2,7 4,8 4,5 3,3
Alemanha -0,2 0,2 0,5 -1,2 -1,3 5,7 2,7 3,1 2,7
França -0,9 -0,7 -0,8 -0,9 -0,6 2,2 0,7 -0,2 3,4
Reino Unido -3,0 -1,5 1,2 2,6 3,7 4,5 3,2 3,8 3.3
Itália 5,0 7,1 9,2 8,5 8,1 11,7 9,5 8,0 11,8
Canadá -0,9 -0,1 -0,1 -1,0 -1,9 2,4 1,8 2,7 6,2
Total G-7 0,1 0,9 0,6 0,0 0,8 4,3 1,7 2,4 4,2
Fonte: OCDE. In: Chouraqui (s/d)
(-) superávit; (+) déficit

A instabilidade que se instalou na economia capitalista na década de 1970 tem clara


origem, nesse movimento, no abandono, pelos EUA, da conversibilidade do dólar, em
agosto de 1971, e na desestruturação dos mercados financeiros que se seguiu aos seus
desdobramentos. Acompanhadas dos choques que se verificaram nos preços das matérias-
primas e do petróleo, os ajustes realizados pelas economias desenvolvidas foram mantidos,
com graus diferenciados, ao longo de toda a década, com a economia mundial sendo
novamente lançada em nova fase recessiva, no seu final, com a política que foi adotada
também pelos EUA, conhecida como “juros altos, dólar forte”, visando ajustar sua
economia e resgatar a hegemonia da moeda norte-americana. Com a recessão produzida e
a conseqüente redução de suas receitas tributárias, somadas ao aumento do custo do giro
186

de suas dívidas devido à implementação de políticas monetárias restritivas, que se


prolongaram até meados da década de 1980, as finanças públicas das economias
capitalistas, em geral, ingressaram numa trajetória de progressiva deterioração, com
aumento considerável de seus déficits.

Cabe, diante disso, indagar como o faz Chouraqui (s/d): por que políticas
monetárias restritivas e recessão operam como madrastas para as finanças públicas?
Porque, para ele:

a) a recessão provoca queda das receitas públicas e aumento dos gastos, devido
principalmente ao crescimento das transferências realizadas pelo governo para
o setor privado provocado pelo aumento do desemprego;

b) com o desequilíbrio orçamentário, a dívida pública cresce e a elevação das


taxas de juros aumenta os seus custos, ampliando o peso do componente
financeiro no orçamento;

c) a inflação, por sua vez, opera no sentido de elevar os dispêndios públicos, em


termos nominais, especialmente no que diz respeito aos componentes de
transferências indexados, como é o caso das aposentadorias, por exemplo; e

d) o objetivo de reduzir os níveis de desemprego leva o governo a adotar medidas


para incentivar/estimular a atividade econômica, abrindo mão de receitas e
ampliando seus desequilíbrios e seus níveis de endividamento.

Ao atuar, portanto, para corrigir os desequilíbrios do sistema e evitar que sua


reprodução seja colocada em xeque, o governo aumenta o desequilíbrio de suas finanças, o
que, por sua vez, coloca, em marcha, forças de instabilidade, que só poderão ser atenuadas
através da retomada do crescimento. Mas a continuidade desse processo, por um tempo
prolongado, ao se traduzir num crescimento explosivo da dívida pública – e no aumento
crescente do peso de seus encargos no orçamento – tende a reduzir as possibilidades de sua
reversão e a se transformar numa barreira para o Estado continuar desempenhando o seu
papel de revitalizar as forças do sistema. Nessa situação ele se transforma num óbice para
o processo de acumulação e em presa fácil das correntes antiestado que o apontam como
causa primária da crise e dos desequilíbrios do sistema.

Embora seja possível identificar no movimento real do capitalismo na década de


1970, e nas políticas econômicas adotadas para enfrentar o quadro de adversidades dele
oriundas, forças de enfraquecimento das finanças do Estado, a ortodoxia encontrou, nessa
situação, a oportunidade que esperava, como vimos nos capítulos anteriores, para
novamente assestar as baterias de várias correntes teóricas – teoria das expectativas
adaptativas e racionais e da public choice – contra sua intervenção e participação na vida
econômica e social, apontando-o como responsável pelos desequilíbrios e instabilidade do
sistema.

Ignorando, portanto, as causas que deram origem a essa situação, mas debitando-a
exclusivamente ao gigantismo e ao excesso de seus gastos, a ortodoxia, fortalecida pelas
necessidades do processo de globalização e de preservação da riqueza financeira, na forma
da dívida pública que conheceu uma expansão considerável, encontrou campo fértil para
187

formular e introduzir em cena, especialmente na década de 1990, um conjunto de regras


fiscais que têm, como principal objetivo, o controle de suas finanças e de seus níveis de
endividamento.

A preocupação com as condições de sustentabilidade da dívida ganhou, assim,


espaço na literatura internacional que trata das finanças públicas nessa década, como
aponta Giambiagi (2001), e tornou-se elemento central de modelos teóricos e
econométricos para determinar como o Estado deve se comportar para evitar o descontrole
de sua dívida – e o risco de seu não pagamento -, condicionando e controlando a trajetória
de seus fluxos orçamentários.

Nestes modelos, o controle do déficit público, fonte que alimenta e de onde nasce a
dívida, ganharia tratamento prioritário, para ele passando a ser estabelecidos limites de
forma a não comprometer a capacidade de solvência do Estado, tornando prioridade
absoluta, em seus orçamentos, compromissos com o pagamento de juros aos seus credores,
mesmo que com o sacrifício de despesas essenciais para a sociedade (daí, o desmonte do
welfare state e do Estado desenvolvimentista), para evitar que crises mais agudas o
conduzam à inadimplência e à destruição dessa riqueza.

Com este objetivo, de acordo com Giambiagi (2001:80), “a experiência bem-


sucedida da “Lei Gramm-Rudman-Hollings” – conhecida como “Lei Gramm Rudman” -,
aprovada nos EUA, nos anos 1980, definindo medidas para o controle do déficit público”
deste país, serviu para referenciar a elaboração de um conjunto de regras fiscais, contidas
no Tratado de Maastricht, de 1992, da União Européia (UE) que deveriam ser
rigorosamente cumpridas para garantir aos países integrantes deste bloco econômico
acesso à futura moeda única da comunidade. Entre essas regras, destacam-se o teto de 3%
do PIB do déficit público nominal e de 60% do PIB do estoque da dívida pública, como
instrumentos efetivos para colocar limites ao que passou a ser considerada nefasta a ação
do Estado e para evitar que este continuasse operando como fonte de instabilidade do
sistema.

Como resultado dessas novas regras e exigências, a situação dos fluxos


orçamentários destes países melhorou sensivelmente desde os anos 1970, os quais, como
visto, foram marcados pelo surgimento de déficits elevados, até o final da década de 1990.
Os dados contidos na tabela 5.2 não deixam dúvidas sobre esses resultados: os déficits
primários médios de 1,5% do PIB dos países da OCDE entre 1981/85 foram transformados
em superávits também de 1,5% do PIB, no período 1996/2000, indicando um ajuste
correspondente a 3% do PIB; nos países da União Européia (UE), esse ajuste foi ainda
maior, atingindo 4% do PIB, com eles transformando uma posição deficitária de 1,9% do
PIB em um superávit de 2,1% entre estes períodos.

No que diz respeito ao déficit nominal (que inclui os juros da dívida), os


ajustamentos que foram realizados também propiciaram, nessa perspectiva, ganhos
consideráveis: o déficit médio nominal da UE de 5% de 1981-85 caiu para 2% do PIB, no
período 1996-2000, enquanto o dos países da OCDE passou de 4% para 1,7% entre estes
períodos, registrando ajustes em torno de 3% do PIB.

Entre os países considerados, alguns chamam a atenção pela melhor performance


apresentada. Os EUA, por exemplo, que registraram um déficit primário médio de 1,5% do
PIB, entre 1981/85, conseguiram gerar, em média, um superávit de 2,9%, no período de
188

1996/2000. Já o seu déficit nominal médio de 4% do PIB do primeiro período praticamente


desapareceu, tendo-se registrado uma situação de quase equilíbrio fiscal entre 1996/2000.
Para isso contribuiria, de forma significativa, a adoção de políticas expansionistas, que
propiciaram a este país, a partir de 1991, ingressar num acelerado ciclo de crescimento,
que durou cerca de dez anos, combinando aumento de receitas tributárias com a geração de
superávits fiscais e melhorando expressivamente o desempenho de seus resultados
orçamentários.

Tabela 5.2
Resultados primário e nominal das contas públicas para um conjunto de países selecionados
– médios por períodos -
(em % do PIB)

Países Resultado Primário Resultado Nominal


1981/85 1986/90 1991/95 1996/00 1981/85 1986/90 1991/95 1996/00
Estados Unidos 1,5 0,8 0,9 -2,9 4,0 4,1 4,5 0,2
Japão 1,1 -2,5 0,2 4,7 2,8 -1,3 0,6 5,8
Alemanha 0,4 -0,7 0,3 -1,0 2,5 1,4 2,9 2,1
França 1,1 -0,3 1,8 -0,4 2,7 1,8 4,7 2,7
Itália 4,7 2,9 -1,5 -4,8 11,3 10,8 9,1 3,2
Reino Unido -0,2 -1,9 3,6 -1,9 3,1 0,9 6,0 0,9
Canadá 2,5 -0,3 1,4 -5,5 5,6 4,2 6,5 -0,6
Total G-7 1,5 -0,1 0,8 -1,3 4,1 3,0 4,2 1,8
Países da OCDE 1,5 -0,2 0,7 -1,5 4,0 2,8 4,0 1,7
Países da EU 1,9 -0,1 0,9 -2,1 5,0 3,7 5,4 2,0
Fonte: Giambiagi (2001)
(+) déficit; (-) superávit

Embora não tenham seguido a mesma trajetória expansionista dos EUA, também
os países que integram o G-7 viram melhorar suas condições fiscais, ainda que não na
dimensão alcançada por aquele país. A Itália, por exemplo, transformou um déficit
primário médio de 4,7% em 1981-85 em um superávit de 4,8% do PIB entre 1996/2000
(ajuste de 9,5% do PIB) e conseguiu reduzir o déficit nominal de 11,3% para 3,2% entre
estes períodos. A mesma trajetória percorrida, ainda com menor intensidade, pelo Canadá.
Apenas o Japão, dentre esses países, continuou vendo progressivamente suas contas
públicas se deteriorarem, com o déficit primário atingindo, em média, 4,7% no período
1996/2000, e o nominal 5,8% do PIB, o que se deve, segundo Giambiagi (2001:70) “... à
combinação de [uma situação de] estagnação econômica [...] - que afeta negativamente as
receitas [...] - com tentativas de incentivar a economia, durante 1998/2000, através de
medidas fiscais de estímulo à demanda”. De todo modo, esses resultados indicam, para
este autor, “que, nos países industrializados, a tolerância em relação aos déficits elevados
que marcou os anos 80 e a primeira metade dos 90, deu lugar a uma atitude de crescente
zelo em favor de orçamentos mais ajustados.” (Giambiagi, 2001:76). Esse maior zelo não
foi, no entanto, mantido por muito tempo.

A partir da década atual, este maior esforço fiscal perdeu força nos primeiros anos
entre os países desenvolvidos do G-7, seja pelas dificuldades e resistências encontradas na
desmontagem das políticas do welfare, seja pelo baixo crescimento do período, ou ainda,
como no caso dos EUA, pela expansão dos gastos ocorrida após os ataques terroristas ao
World Trade Center, em 2001, e, após 2003, ao seu envolvimento na Guerra do Iraque.
Isso os levou, novamente, a incorrer em déficits nominais mais elevados, superando, em
189

sua maioria, os limites estabelecidos no Tratado de Maastricht. Como se constata na tabela


5.3, à exceção do Canadá, que continuou colhendo superávits nominais em suas contas, e
do Japão, que prosseguiu na política de redução do déficit nominal, ainda que este
continuasse se mantendo elevado, todos os demais países deste grupo viram a situação se
agravar na década pelo menos até o ano de 2003 vis-à-vis 2000. França, Alemanha, Itália,
Reino Unido e EUA que, neste último ano, ou haviam reduzido apreciavelmente seus
desequilíbrios fiscais ou apareciam como geradores de superávits (Reino Unido e EUA),
voltaram a registrar déficits crescentes, sendo que, em 2005, todos haviam praticamente
retornado ou superado o nível de 3% do PIB.

Tabela 5.3
Resultado nominal das contas públicas dos países do G-7
(em % do PIB)

Países G-7 2000 2001 2003 2005 2006 2007


Estados Unidos -1,6 0,4 4,8 3,3 2,2 2,7
Japão 7,6 6,3 8,0 5,0 3,8 3,2
Alemanha -1,3 2,8 4,0 3,3 1,5 0,2
França 1,5 1,5 4,1 3,0 2,4 2,7
Itália 0,8 3,1 3,5 4,2 3,4 1,6
Reino Unido -1,4 -0,6 3,3 3,3 2,6 2,7
Canadá -2,9 -0,7 0,1 -0,8 -1,3 -1,4
Fonte: Fonte: Fundo Monetário Internacional (FMI). Extraído no dia 09/04/2007 e em 13/01/2009,
do site: http:/www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2006/02/data/weoselgr.aspx.
(+) déficit; (-) superávit.

A partir de 2004, no entanto, devido ao forte crescimento registrado na economia


mundial – média de 5% ao ano até 2007 -, com impactos altamente positivos sobre as
receitas públicas, combinado com o avanço das políticas de ajuste, verifica-se um novo
período de substancial melhora dos resultados orçamentários nestes países. Uma melhoria,
contudo, que novamente deverá ser eclipsada pelo esforço realizado por seus governos,
traduzido no lançamento de bilionários pacotes fiscais e monetários na economia, para
salvar instituições financeiras, empresas, consumidores, devedores e credores da crise
instalada no mundo com o estouro da “bolha” das hipotecas imobiliárias. Tanto que já se
projetam déficits superiores a 7% do PIB para os EUA e Reino Unido para os anos de
2009 e 2010. Uma situação, da qual os demais países também não deixarão de escapar,
pelo seu engajamento neste processo.

5. A EVOLUÇÃO DOS DÉFICITS PÚBLICOS NO BRASIL

É longa a história que se pode contar sobre a utilização dos conceitos de


mensuração do déficit público no Brasil. O conceito de NFSP nominais foi introduzido no
programa de ajustamento da economia brasileira acordado com o FMI, em 6 de janeiro de
1983, na Primeira Carta de Intenções que o País assinou e enviou àquela instituição,
comprometendo-se, inclusive no campo fiscal, com o atingimento de determinadas metas.

Durou pouco como parâmetro relevante para a avaliação do desempenho da


política fiscal. Um renitente e descontrolado processo inflacionário, que garantia,
independentemente do fato de se estar implementando uma política fiscal austera, um
190

déficit nominal elevado, frustrou seguidamente as metas acertadas, até que, para evitar
novos descumprimentos, introduziu-se, na Terceira Carta de Intenções, em 15/9/1983, o
conceito operacional (descontado, portanto, o componente inflacionário), que passou a ser
considerado o parâmetro relevante para a avaliação dos resultados alcançados na área
fiscal.

Posteriormente, em virtude do crescimento explosivo do estoque da dívida e,


consequentemente, de seus encargos, amplificados também por políticas monetárias
ortodoxas, a participação crescente dos juros da dívida na composição das NFSP levou à
introdução, na sua medição, do conceito primário, entendido como o que melhor refletiria
o esforço realizado pelo governo para equilibrar suas contas. Um conceito que, na verdade,
fornece uma medida mais cristalina do ajuste que o setor público terá de realizar em suas
contas para garantir o pagamento, aos seus credores, dos juros de sua dívida.

Na história mais recente do Brasil o setor público passou a incorrer em elevados


déficits, como proporção de seu PIB, a partir do final dos anos 70 – situação que não se
modificou até os dias atuais. A tabela 5.4 apresenta a evolução dos resultados das contas
públicas para o período 1981-2007, nos conceitos nominal, operacional e primário, de
acordo com a abrangência mencionada, ou seja, abarcando os segmentos do Governo
Central, dos Estados e Municípios e das Empresas Estatais. Neste período é possível
identificar comportamentos distintos em cinco subperíodos, nos quais a política fiscal ora
assumiu um perfil restritivo, ora expansionista.

No período 1981-1984 – últimos anos do regime militar -, foi implementado um


forte ajuste recessivo da economia, diante dos efeitos provocados pela crise da dívida
externa, em 1982, e da identificação da existência de um elevado desequilíbrio das
contas públicas desde o final da década de 1970, tendo-se procurado, ao mesmo tempo,
sanear e restaurar as condições financeiras do setor público. Como mostra a tabela,
foram gerados, como resultado do ajuste realizado, consideráveis superávits fiscais
primários (4,2% do PIB em 1984) e reduzidos os déficits operacionais (de 6,3% em
1981 para 2,9% do PIB em 1984), embora tenham permanecido expressivos os déficits
nominais, em virtude da elevada taxa de inflação deste período, que se situou em tornou
de 200% ao ano.

No período da Nova República (1985-1989), sob o comando do governo civil de


José Sarney, uma política fiscal expansionista veio acompanhada de forte aceleração do
nível de preços, conduzindo a economia para um quadro de superinflação, apesar das
tentativas, sem sucesso, de revertê-lo, por meio do lançamento de três programas de
estabilização: Plano Cruzado, em 1986; Plano Bresser, em 1987 e Plano Verão, em
1989. Como se percebe na tabela, nos dois primeiros anos do novo governo, os
superávits primários foram reduzidos em relação a 1984 e praticamente desapareceram
entre 1987-1989, provocando a elevação dos déficits operacionais, que atingiram 7,1%
do PIB neste último ano. Com a aceleração inflacionária e a ameaça de instauração de
uma hiperinflação no país, o déficit nominal ultrapassou a casa dos 50% do PIB, em
1988, e atingiu 85% em 1989.

Nos governos Collor (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994), um novo


esforço de ajuste das contas públicas foi realizado, à luz das propostas contidas no
chamado Consenso de Washington (privatizações de empresas estatais;
desregulamentação dos mercados; redução do papel do Estado na economia etc.), cujas
191

idéias passaram a ser dominantes e orientadoras das políticas econômicas no país. O


ajuste realizado, apoiado em medidas de aumento de impostos, muitas de natureza once
for all, cortes de gastos e de desvalorização da riqueza financeira, com o bloqueio e
suspensão, por dezoito meses, do pagamento dos encargos da dívida interna, melhorou
substancialmente as finanças públicas e reduziu, consideravelmente, a relação
Dívida/PIB, bem como os custos dela decorrentes. Como mostra a mesma tabela,
consideráveis superávits primários foram gerados em todo o período (5,6% do PIB em
1994), garantindo, à exceção de 1991-1993, também a geração de superávits
operacionais. Como, contudo, a inflação rapidamente retornou à cena, após a
implementação dos Planos Collor I e II e se acelerou reconduzindo o país a um novo
quadro pré-hiperinflacionário, o déficit nominal manteve-se elevado e crescente,
novamente ultrapassando a casa dos 60% do PIB em 1993.

Com o lançamento do Plano Real, em julho de 1994, inaugura-se uma nova fase
da política fiscal. Embora originalmente, o ajuste das contas públicas tenha sido
considerado vital para o sucesso deste programa de estabilização, sua arquitetura, no
primeiro período (1994-1998), apoiada nos pilares de um câmbio sobrevalorizado,
combinado com uma taxa real de juros excessivamente elevada, que contribuiria mais
do que os resultados primários alcançados, para a geração de consideráveis déficits
nominais e para o aumento da relação Dívida/PIB, e também a uma rápida abertura
comercial da economia brasileira, mostraram-se desastrosas para os resultados obtidos.

Embora o novo paradigma teórico que irá orientar o conteúdo e o novo papel da
política fiscal, a partir deste momento, como espaço de valorização e preservação da
riqueza financeira e de sustentabilidade da dívida, já começasse a ganhar força,
especialmente diante das ondas de turbulências e instabilidade que marcaram o sistema
financeiro internacional, com as crises da economia mexicana (1994), do Sudeste
Asiático (1997), e posteriormente da Rússia (1998), o Brasil, neste período, ainda não
havia se enquadrado plenamente em seu receituário. Isso só vai ocorrer após a crise que
também conhecerá o Plano Real no final de 1998, exigindo alteração nas peças do
modelo de estabilização, com a inclusão, nas suas bases, de compromissos com a
adoção de medidas mais rigorosas para corrigir os desequilíbrios fiscais e controlar o
crescimento da dívida.

De fato, como mostra a tabela 5.4, os superávits primários praticamente


voltaram a desaparecer na primeira fase do Plano Real, provocando uma forte elevação
dos déficits operacionais (resultado da política de juros altos), que atingiram 7,4% do
PIB em 1998. Em decorrência, contudo, da significativa redução da inflação, o
componente de correção monetária da dívida perdeu força e os resultados nominais
tenderam a convergir para os operacionais, situando-se abaixo de 10% do PIB. De
qualquer forma, no final do período, como resultado dessa deterioração, o nível de
endividamento aumentara consideravelmente e, sem contar com reservas externas
suficientes para honrar seus compromissos, o país não encontrou alternativa senão a de
recorrer ao FMI. Do acordo realizado com essa instituição, com o qual se obteve um
empréstimo de US$ 41,5 bilhões, resultou uma mudança no modelo de estabilização, no
qual a política fiscal ganharia centralidade, tornando-se obrigatório, sagrado,
inescapável, o compromisso de geração de superávits fiscais primários do setor público
brasileiro para conter/reduzir o crescimento da dívida pública como proporção do PIB.
192

Nessa segunda fase do Plano, que teve início em 1999 e se prolonga até os dias
atuais, sua arquitetura passou a apoiar-se nos seguintes pilares: i) câmbio flutuante; ii)
metas de inflação baixas e rígidas; e iii) geração de superávits fiscais primários elevados
e crescentes no tempo, ajustados sempre que necessário para conter/reverter o
crescimento da relação dívida/PIB.

Note-se que o novo modelo se ajusta fielmente às orientações da nova visão


teórica que se tornou dominante sobre o papel do Estado e da política fiscal, que
discutimos na seção 2.1. O novo regime fiscal que com ele se inaugura, segue as
recomendações internacionais de atribuir à política fiscal a responsabilidade com a
geração de superávits fiscais, com o objetivo de garantir a sustentabilidade da dívida, e,
com isso, validar as expectativas dos agentes econômicos sobre o comportamento
esperado de variáveis centrais para o desenvolvimento, como a taxa de juros, o câmbio,
a situação do balanço de pagamento, a inflação etc.

Em países com elevados níveis de endividamento, caso do Brasil, a exigência do


ajuste a ser realizado seria ainda maior e o país teria de se comprometer, para garanti-lo,
com a realização de uma série de reformas no aparelho do Estado e em suas instituições,
nos campos tributário, previdenciário, administrativo -, como com a criação de
mecanismos institucionais que transmitissem aos agentes econômicos, a confiança de
que o governo estaria empenhado em sua realização, assegurando credibilidade e
reputação para a política econômica. A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF), em 2000, cuja exigência foi incluída no acordo assinado com o FMI, e a
inclusão na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a partir do ano 2000, transformando
em lei o compromisso com a geração de uma determinada meta para o superávit
primário, visando controlar o crescimento da dívida pública, inscrevem-se na nova
institucionalidade que passou a ser recomendada para que a política fiscal
desempenhasse seu novo papel: a de servir como espaço de valorização do capital
financeiro e de garantir o pagamento de sua riqueza aplicada em títulos públicos.

Com o Plano Real na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o Governo Fernando


Henrique Cardoso teve de ajoelhar-se, assim, perante o FMI e transformar o setor
público em máquina produtora de superávits primários crescentes e elevados para essa
finalidade, e abdicar do papel do Estado como agente responsável tanto pela
implementação de políticas públicas essenciais para o desenvolvimento como para a
redução das desigualdades interpessoais e inter-regionais de renda, papel que,
proeminente no paradigma keynesiano, perdeu importância na etapa atual de
desenvolvimento capitalista e na renovada visão teórica da ortodoxia, devendo ser
sacrificado em nome da estabilidade macroeconômica.

A natureza do ajuste que vem sendo realizado no Brasil não deixa dúvidas sobre
o primado dessa questão na condução da política fiscal e do abandono, pelo Estado, de
políticas essenciais para o desenvolvimento, em diversos campos, para garantir receitas
para o pagamento da dívida.
193

Tabela V.4
Necessidades de Financiamento do Setor Público
Conceitos Nominal, Operacional e primário
1981-2005 – (em % do PIB)

Ano Necessidades de Financiamento (% do PIB)*


Nominal Operacional Primário
1981 13,26 6,31 ND
1982 16,37 6,89 ND
1983 20,75 3,15 -1,70
1984 24,61 2,88 -4,20
1985 28,73 4,42 -2,61
1986 11,22 3,58 -1,59
1987 31,89 5,63 0,99
1988 53,73 4,87 -0,91
1989 85,43 7,09 1,03
1990 30,15 -1,32 -4,69
1991 26,75 0,19 -2,71
1992 45,75 1,74 -1,58
1993 64,83 0,80 -2,18
1994 26,97 -1,57 -5,64
1995 7,28 5,00 -0,26
1996 5,87 3,40 0,10
1997 6,11 4,31 0,96
1998 7,93 7,40 -0,02
1999 9,98 3,41 -3,23
2000 4,48 1,17 -3,47
2001 4,76 1,28 -3,36
2002 9,36 -0,01 -3,55
2003 3,31 0,81 -3,89
2004 2,26 -1,83 -4,17
2005 2,75 2,23 -4,35
2006 2,90 1,38 -3,86
2007 2,17 -1,41 -3,97
Fonte: i) para o superávit primário de 1983-1984: FGV. Conjuntura Econômica. Rio de janeiro,
FGV, vários números; ii) para os dados de superávit primário, operacional e nominal dos
demais anos: Ipeadata; acesso em 20/03/2008.
(*) Já incorpora as mudanças introduzidas nestes indicadores com a revisão do cálculo do PIB
realizada pelo IBGE em 2005.
Obs: déficit (+); superávit (-)

Para o Governo Central (Governo Federal, Banco Central e INSS) os resultados


projetados passariam a ser obtidos por meio da elevação da carga tributária e repressão
dos gastos no orçamento em investimentos e em políticas sociais que não contam com a
proteção de alguma norma legal ou constitucional, ao contrário do que ocorre com a
saúde, a educação e o fundo de combate à pobreza, entre outras. Para as empresas
estatais, também incluídas neste esforço, apesar da natureza de suas atividades, pela
redução de seus investimentos. E, para o segmento dos estados e municípios, com a
renegociação de suas dívidas com a União, com a qual se garantiu a geração de um
superávit primário anual correspondente a 13% de sua Receita Corrente Líquida (RCL)
e a aprovação de uma legislação, na forma da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em
194

2000, que teve o objetivo de disciplinar seus gastos, limitar seus níveis de
endividamento e assegurar seu engajamento neste compromisso.

Apesar de bem sucedida neste objetivo, tal postura implicou sacrificar o


crescimento econômico, com a redução drástica de recursos orçamentários e das estatais
para investimentos e com a manutenção dos instrumentos preferenciais do ajuste –
elevada e crescente carga tributária, combinada com taxas de juros estratosféricas -,
deixando-se de aproveitar – e navegar – na onda de prosperidade que conheceria a
economia mundial a partir de 2002. De fato, tendo se expandido à medíocre taxa anual
de 1,6% no segundo mandato de FHC (1999-2002), que também foi marcado por fortes
turbulências e crises externas, essa situação pouco se alteraria no governo de Luiz
Inácio Lula da Silva (2003-2006), cuja expansão não foi além de 3,4% ao ano, que
também manteve a economia prisioneira dos compromissos com a geração de ainda
mais significativos superávits primários do que no período anterior.

Verdadeiras travas do crescimento, os dados da tabela 5.5 não deixam dúvidas


sobre essa reorientação da política fiscal ocorrida, a partir de 1999, nem do sucesso que
as metas para ela estabelecidas têm alcançado. Tendo atingido 3,23% do PIB em 1999,
os níveis de superávit primário, como proporção deste agregado macroeconômico,
revelam um contínuo crescimento nos anos seguintes, tendo ultrapassado 4% em 2005.
Com isso, reduziram-se, expressivamente os déficits operacionais, tendo-se obtido,
inclusive, superávit nas contas públicas, neste conceito, em 2004 e 2007. A queda
ocorrida no superávit primário a partir de 2006 deve-se ao fato de que o governo, tendo
recebido o aval do FMI, passou a descontar de seu cálculo, a partir de 2005, parte das
despesas realizadas com investimentos selecionados e listados no instrumento
conhecido como Projeto Piloto de Investimentos (PPI).

É importante registrar que os resultados alcançados têm sistematicamente


superado, com folga, as metas inicialmente estabelecidas, como se confirma no exame
da tabela 5.5, revelando que tem sido ainda maior o sacrifício exigido da economia e da
sociedade, traduzido em termos de redução dos investimentos públicos e da oferta de
políticas sociais, que o governo anuncia e divulga no orçamento. Isso se explica por que
pode tornar-se, como vimos anteriormente, necessário um ajustamento na meta
estabelecida se esta revelar-se insuficiente para garantir o atingimento de seu principal
objetivo, que é o controle da relação dívida/PIB, a qual é influenciada por outras
variáveis (taxa de juros, câmbio, PIB, inflação) sobre as quais o governo não dispõe de
pleno controle.

Isso significa não ser o superávit primário que se persegue como meta-objetivo,
mas o controle da dívida, devendo aquele sempre ser ajustado quando a última, tendo
sua trajetória desviada por outros determinantes, comprometer os resultados para ela
projetados. Dependendo, portanto, das condições do quadro macroeconômico, a
exigência de maiores superávits primários para controle da relação dívida/PIB pode
continuar garantindo seu avanço no espaço orçamentário e continuar esvaziando,
crescentemente, o papel do Estado na oferta de políticas públicas essenciais para a
sociedade e para o desenvolvimento. É importante, por isso, para avaliar se os
sacrifícios que têm sido exigidos da sociedade com essa política têm gerado resultados
concretos para este objetivo central, que permitam vislumbrar sua solução, examinar o
cerne da questão: o significado, os determinantes e as implicações da dívida pública.
195

Tabela 5.5
Superávits fiscais primários do setor público consolidado
Metas projetadas, revistas e realizadas
Brasil: 1999 – 2005 (% do PIB)
Ano Metas
Acordo com o Acordo com o Acordo com o Acordo com o Realizadas
FMI de 1998 FMI de 2001 FMI de 2002 FMI de 2004
1999 2,60 - - 3,23
2000 2,80 - - - 3,47
2001 3,00 3,35 - - 3,36
2002 - 3,50 3,88 - 3,55
2003 - - 3,88 - 3,89
2004 - - 4,25 - 4,17
2005 - - - 4,25 4,35
2006 - - - - 3,86
2007 - - - - 3,97
Fonte: Metas dos acordos: referem-se a metas estabelecidas de acordo com a metodologia
anterior do PIB calculada pelo IBGE, referenciada ao ano de 1985, constantes do
programas do FMI; metas realizadas, de acordo com o novo cálculo do PIB revista pelo
IBGE em 2005 e referenciada ao ano 2000: Ipeadata: acesso em 20/03/2008.
196

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12. KEYNES, J. M. (1983). A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo:
Abril Cultural, (Série “Os Economistas”);
13. LOPREATO, Francisco L. C (2006). O papel da política fiscal: um exame da visão
convencional. Campinas, Instituto de Economia/UNICAMP, Texto para discussão
n.119;
14. MARX, K. (1971). 2a. edição. O Capital; crítica da Economia Política. São Paulo,
Civilização Brasileira;
15. MUSGRAVE, R. & MUSGRAVE, P. (1980). Finanças Públicas: teoria e prática. Rio
de Janeiro: Campus; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo;
16. OLIVEIRA, F.A. de (1995). Autoritarismo e Crise Fiscal no Brasil: 1964-1984. São
Paulo: Hucitec.
17. OLIVEIRA, F.A. de (2005). Escolhas orçamentárias: a dimensão macroeconômica.
Belo Horizonte, mimeo;
18. ORMEROD, P. (1996). A Morte da Economia. São Paulo: Companhia de Letras.
19. RAMALHO, V. (1997). “Revendo a Variedade de Conceitos de Déficit Público”. In:
Meyer, A. (org,). Finanças Públicas: ensaios selecionados. Brasília: IPEA; São Paulo:
FUNDAP
20. REZENDE, F. (1977) Finanças Públicas. São Paulo: Editora Atlas.
197

CAPÍTULO VI

A DÍVIDA PÚBLICA*

Fabrício Augusto de Oliveira


198

1. INTRODUÇÃO

Na sua origem, a dívida pública surgiu como instrumento complementar de financiamento


de gastos do Estado, sempre que os impostos se mostravam insuficientes para cobrir suas
necessidades e este esbarrava em resistências da sociedade para aumentá-los.

Nos anos em que o capitalismo ensaiava seus primeiros passos, monarcas e


Estados conseguiriam financiar, com a sua contratação, além dos gastos faustosos de
suas cortes, que não conseguiam ser cobertos por impostos, também os custos das
guerras em que se envolviam, dos grandes descobrimentos além-mar, da expansão e
exploração do sistema colonial, tendo sido decisivo o papel por ela desempenhado para
a emergência da sociedade capitalista e para o fortalecimento dos mercados nacionais.
Discorrendo, não sem ironias sobre suas origens, Marx (1971, Livro I, Cap. XXIV: 872)
apontaria que

“… a dívida pública, cujas origens vamos encontrar na Idade Média, em


Gênova e Veneza, apoderou-se de toda a Europa durante o período
manufatureiro. Impulsionava-a o sistema colonial com seu comércio marítimo
e suas guerras comerciais. O regime de dívida pública implantou-se primeiro
na Holanda. A dívida do Estado, ou seja, a sua venda – seja ele despótico,
constitucional ou republicano – imprime sua marca à era capitalista. A única
parte da riqueza nacional que é realmente objeto de posse coletiva dos povos
modernos é… a dívida pública. (…) o crédito público torna-se credo do capital.
E o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, é substituído
pelo de não ter fé na dívida pública.”

Vista nessa perspectiva, a dívida catapultou o poder do Estado de impulsionar a


acumulação primitiva muito além do que lhe propiciaria a cobrança de impostos para
financiar atividades essenciais para o modo de produção capitalista e de garantir, por meio
do pagamento de seus encargos, a multiplicação dessa riqueza e o fortalecimento e a
expansão da burguesia nascente. Ainda para Marx

“a dívida pública converte-se numa das alavancas mais poderosas da


acumulação primitiva [uma acumulação que não resulta do modo de produção
capitalista, mas é seu ponto de partida]. Como uma varinha de condão, ela dota
o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o, assim, em capital, sem ser
necessário que seu dono se exponha aos aborrecimentos e riscos inseparáveis
das aplicações industriais e mesmo usuárias.” [O mais grave nesse processo é
que] “os credores do Estado nada dão, na realidade, pois a soma emprestada
converte-se em títulos da dívida pública facilmente transferíveis, que
continuam a funcionar em suas mãos como se fosse dinheiro.” (pp. 872-3)

Sobre os custos que a dívida representaria para a sociedade, Marx não tinha a menor
dúvida de que seriam as camadas menos favorecidas da sociedade que acabariam arcando
com o seu ônus, por se tratar de uma transferência da riqueza intermediada pelo Estado
para o capital, que, mais cedo ou mais tarde, teria de ser coberta pelo aumento de impostos.
Para ele
199

“apoiando-se a dívida pública na receita pública, que tem de cobrir os juros e


demais pagamentos anuais, tornou-se o moderno sistema tributário o
complemento indispensável do sistema de empréstimos nacionais. Os
empréstimos capacitam o governo a enfrentar despesas extraordinárias, sem
recorrer imediatamente ao contribuinte, mas acabam levando o governo a
aumentar posteriormente os impostos. Por outro lado, o aumento dos impostos
causado pela acumulação de dívidas sucessivamente contraídas, força o
governo a tomar novos empréstimos sempre que aparecem novas despesas
extraordinárias. O regime fiscal moderno encontra seu eixo nos impostos que
recaem sobre os meios de subsistência mais necessários, encarecendo-os,
portanto, e traz em si mesmo o germe da progressão automática. A tributação
excessiva não é um incidente; é um princípio.” (p.874)

Funcional para o Estado e o capital, foi também com a dívida pública nacional
que se cimentaram as bases necessárias para impulsionar o desenvolvimento de um
sistema de crédito internacional, indispensável para garantir o avanço do processo de
internacionalização do modo capitalista de produção, como assinala Marx, ao analisar
os ciclos de expansão ocorridos nas cidades-Estados italianas, na Holanda, na Inglaterra
e nos EUA:

“com a dívida pública nasceu um sistema internacional de crédito, que


freqüentemente dissimulava uma das fontes de acumulação primitiva neste ou
naquele país. Assim, as vilezas do sistema veneziano de rapina constituíram
uma das bases ocultas dos abundantes capitais da Holanda, a quem Veneza,
decadente, emprestou grandes somas de dinheiro. O mesmo aconteceu entre a
Holanda e a Inglaterra. Já no começo do século XVIII (…) a Holanda deixara
de ser a nação dominante no comércio e na indústria. (…) e o empréstimo de
enormes capitais, especialmente a seu concorrente mais poderoso, a Inglaterra
[tornou-se] um de seus negócios principais. Fenômeno análogo [que] sucede
hoje entre a Inglaterra e Estados Unidos.”(p.874)

Marx conseguiu identificar, com essa análise, a importância capital da dívida


pública para a emergência e expansão do modo de produção capitalista, o papel que esta
desempenhou nos seus longos ciclos de crescimento e a pressão que exerce sobre o
sistema de impostos dos países que a contratam. Não há nada de romântico no seu
surgimento e nem motivos nobres na sua expansão: este movimento é determinado
pelas necessidades da acumulação, com o Estado garantindo o alargamento, muito além
do que lhe propiciaria a cobrança de tributos, das bases do sistema. Pode-se mesmo
dizer que se a dívida pública ajudou a gerar o capitalismo, ao mesmo tempo em que se
tornou seu filho indissolúvel, o sistema não teria logrado atingir os níveis atuais de
desenvolvimento – e menos ainda na velocidade em que isso ocorreu – sem a sua ajuda
(e a do Estado). Mas assim como alimenta o capital, a dívida põe em força – ou lastreia
– movimentos que colocam em risco sua reprodução.

Tal como os impostos – e a dívida nada mais significa do que o imposto


adicional de amanhã -, sua contratação em níveis elevados pode desencadear
resistências políticas ou interferir negativamente no funcionamento do sistema
econômico.

Excessos na cobrança de impostos e na contratação de empréstimos por parte do


Estado desencadearam revoltas na população, que se encontram na raiz das revoluções
200

ocorridas na Inglaterra, em 1648 e 1688, e na França, em 1789. Os economistas


clássicos, por outro lado, não tendo explorado, em suas análises, o papel por ela
desempenhado, como destacado por Marx, para alimentar as forças do sistema
capitalista, viam o financiamento do Estado, por meio da dívida, como opção que
poderia comprometer seu bom funcionamento. Posição que seria compartilhada pela
escola neoclássica, já que considerada, por esta, produto de uma gestão irresponsável
das contas públicas, sua existência colocava em xeque o equilíbrio natural do sistema,
como já apontamos anteriormente.

Foi com Keynes, e com a nova concepção de Estado e do papel do déficit


público que dele surgiram, que o papel da dívida pública e a política fiscal ganharam
espaço e legitimidade no pensamento econômico, enquanto instrumentos de política
econômica que deveriam ser utilizados para o atingimento dos objetivos de pleno
emprego. Também com Keynes, o papel da dívida deixou de estar restrito ao
financiamento dos gastos governamentais (a sua feição fiscal), tendo se transformado
também em importante instrumento de política monetária (a feição monetária),
manejado para regular a liquidez e as taxas de juros da economia.

Enquanto perdurou o longo ciclo de vigoroso crescimento do capitalismo, a


política fiscal foi manejada como elemento ativo da política macroeconômica, com os
debates teóricos sendo dominados, neste campo, pela busca de condições mais ideais
para sua combinação com a política monetária, visando garantir, ao mesmo tempo,
estabilidade de preços com objetivos de pleno emprego. Isso começou a mudar nos anos
1970, com a crise do capitalismo e o surgimento de desequilíbrios acentuados das
contas do setor público, que abriram espaço para o renascimento da ortodoxia,
comandada pela escola novo-clássica, com base no comportamento das expectativas
racionais dos agentes econômicos, cujas conclusões negam a capacidade da política
fiscal de interferir/afetar as variáveis reais da economia e, consequentemente, a
eficiência das políticas de administração das políticas de demanda agregada voltadas
para aqueles objetivos.

Somadas a isso, as transformações conhecidas pelo capitalismo a partir da


década de 1980, caracterizadas pelo processo de globalização dos mercados –
financeiros e de produtos – deram vida a um movimento acelerado de capitais
percorrendo o mundo em busca de lucratividade que teriam, de um lado, de encontrar
um espaço para sua valorização e, de outro, condições de sustentabilidade, ou seja, de
garantias de seu retorno, exigindo, portanto, capacidade de solvência do agente
responsável por sua valorização – o Estado. Este, o papel que será atribuído à política
fiscal nessa nova etapa de desenvolvimento do capitalismo: garantir a valorização dos
capitais que circulam no mundo em busca de lucratividade e as condições de
sustentabilidade da dívida por ele contratada, para não afetar negativamente as
expectativas – racionais – dos agentes econômicos sobre o comportamento futuro da
economia. De instrumento ativo da política econômica, na perspectiva do pensamento
keynesiano, a política fiscal e a dívida pública se transformam, assim, na âncora que
garante ganhos e assegura o pagamento da remuneração do capital financeiro aplicado
em títulos públicos.

Este capítulo examina a problemática da dívida pública, bem como do que


representa, na atualidade, este seu novo papel no processo de valorização do capital e
das implicações que pode acarretar para a reprodução global do sistema. Para melhor
201

situar essas questões, procura-se resgatar, em seguida, os argumentos empregados pelas


distintas escolas de economia para justificar suas posições contrárias ou favoráveis à sua
existência, em função de seus efeitos na economia, bem como para atribuir-lhe ou
negar-lhe o desempenho de papéis específicos neste processo.

2. O PAPEL E OS EFEITOS DA DÍVIDA PÚBLICA NO PENSAMENTO


ECONÔMICO

No pensamento clássico e neoclássico não há espaços, como vimos, nem para o déficit
nem para a dívida pública como instrumentos de política econômica capazes de
influenciar o crescimento econômico e o nível de emprego, apenas deles resultando
ineficiências alocativas e redução do bem-estar, motivos suficientemente fortes para
evitar que os governos deles lancem mão.

No pensamento econômico, essa questão ganhou relevância e passou a ser


cercada de polêmica, a partir do momento em que Keynes (e mais contundentemente
seus seguidores, como Alvin Hansen, por exemplo), opondo-se a essas teses, defendeu,
em sua obra de 1936, A Teoria Geral do Juro, do Emprego e do Dinheiro, a importância
do déficit e da dívida pública como instrumentos anticíclicos das economias de
mercado, as quais, por suas características inerentemente instáveis, justificam a ação do
governo que pode contribuir, de acordo com suas conclusões, por meio do manejo da
política fiscal, para reverter situações indesejáveis de crises econômicas, redução dos
investimentos e da renda, aumento do desemprego involuntário etc.

Implementada com sucesso no período da pós-Segunda Guerra Mundial, essa


política foi colocada em xeque a partir dos anos 1970, diante da instabilidade que se
abateu sobre a economia mundial, que passou a conviver com um cenário de inflação e
desemprego (combinação que não tinha lugar nos modelos keynesianos), abrindo
espaço para o surgimento de novas interpretações teóricas sobre este mesmo fenômeno,
de extrato neoclássico, opostas às de Keynes. O debate sobre a política fiscal e o papel
da dívida como instrumento de política macroeconômico se encontra, por isso, centrado,
na atualidade, nessas duas escolas de pensamento, a keynesiana e a das que se apóiam
na hipótese das expectativas racionais dos agentes econômicos, cujos principais
argumentos são discutidos em seguida.

2.2. A dívida pública no pensamento keynesiano

A grande questão colocada neste debate é a seguinte: os custos da dívida (sim, por que
sua contratação implica pagamento de encargos na forma de juros) são compensados
pelos benefícios (se existem) que com ela se pode obter?

A posição de Keynes, que já apresentamos em capítulos anteriores, apóia-se no


questionamento que faz do mercado dispor de mecanismos endógenos auto-reguladores
capazes de garantir o nível ótimo de ocupação dos fatores produtivos. Para ele, esse
representa apenas um ponto possível na curva de possibilidades de equilíbrio, mas a
economia pode estar operando em pontos menos favoráveis, com níveis mais reduzidos
de renda e de emprego correspondentes àquela situação.

Na sua teoria, em que o princípio da demanda efetiva ocupa posição nuclear, o


nível de renda – ou da atividade econômica – é determinado pelas decisões do gasto
202

capitalista, especialmente em investimentos. Como essas decisões dependem do estado


de confiança desses agentes sobre o futuro da economia, e, portanto, de suas
expectativas, caso essas se tornem desfavoráveis, esse gasto será afetado, contraindo o
nível de renda e emprego na dimensão de seus efeitos multiplicadores. Iniciado, este
processo encontra elementos para se auto-alimentar e se auto-reforçar, ao estender seus
efeitos para o consumo e afetar a rentabilidade das empresas. É neste caso, que o papel
do Estado se torna vital para retirar a economia dessa situação, como criador de
demanda efetiva, preenchendo o gap existente entre o nível de produção corrente e o da
capacidade produtiva instalada.

Em caso de recessão, o remédio mais eficaz seria o que injetasse, no sistema, um


poder de compra novo, o que levaria Keynes a justificar o aumento dos gastos do
Estado, cujo déficit seria coberto por meio da emissão de moeda – uma das formas de
contratação de dívida – como instrumento válido nessas situações. De todo modo, em
outras situações, dado o caráter instável do sistema e das expectativas dos agentes
econômicos, o papel anticíclico desempenhado pelo Estado, por meio da política fiscal,
mesmo que incorrendo em déficit e dívida, seria importante para atenuar as flutuações
cíclicas da economia e assegurar sua trajetória de pleno emprego.

Mas uma pergunta ainda continua, por enquanto, sem resposta: os benefícios
gerados com essa política compensam os riscos que pode representar a dívida para o
equilíbrio macroeconômico e os seus custos para a sociedade, ou sua expansão pode ser
administrada em níveis que não comprometam este equilíbrio e não agravem a situação
das contas públicas, afastando os temores de aumento dos impostos para pagá-la?

Para Keynes, num contexto de insuficiência da demanda efetiva, a própria


recuperação e expansão da atividade econômica se encarregariam de aumentar a
arrecadação e garantir o pagamento dos encargos da dívida contraída no período de
crise, sendo evidentes, neste caso, os benefícios gerados tanto para a economia como
para a sociedade.

Já em períodos em que a economia opera numa situação de equilíbrio de longo


prazo, mas da política fiscal são exigidas intervenções para mantê-la nessa trajetória, é
indispensável contar com uma boa coordenação entre a política fiscal e a monetária para
evitar efeitos colaterais desfavoráveis da dívida para o sistema econômico, bem como
para manter, ao mesmo tempo, reduzidos os seus custos, garantindo a capacidade de
solvência do Estado. Como isso se torna possível?

Na perspectiva dos manuais convencionais de macroeconomia, a dívida pode


gerar impactos sobre a demanda agregada, sobre a inflação e sobre as expectativas dos
agentes econômicos no tocante à capacidade do governo de honrar seus compromissos.
Com a economia operando numa situação de equilíbrio de longo prazo, o grande desafio
do governo é o de manejar as políticas fiscal e monetária, de forma a evitar que esses
efeitos comprometam os objetivos da estabilidade.

Nesse modelo, a variável-chave que pode manter em equilíbrio o sistema,


tornando compatíveis as decisões de consumo, poupança e investimento com os
objetivos de pleno emprego e de estabilidade monetária, é a taxa de juros. Esse deve
ser, portanto, o alvo prioritário das autoridades monetárias, de forma a manter reduzidos
os custos da dívida (afastando os temores de aumento de impostos), juntamente com os
203

incentivos à poupança e ao investimento, evitando pressões inflacionárias. O governo


deveria buscar, assim, pautar suas ações com o objetivo de determinar a composição
“ideal” da dívida em termos de prazos – curto, médio, longo -, que seria capaz de
melhor ajustar a taxa de juros a estes objetivos.

Por essa razão, o mercado de títulos da dívida pública conheceria significativo


crescimento a partir das formulações keynesianas a respeito de sua influência sobre as
taxas de juros e do papel que o Estado deveria desempenhar na economia, pois seria,
principalmente por meio deste mercado que o governo poderia garantir uma boa
coordenação entre as políticas fiscal e monetária e conciliar os objetivos de pleno
emprego e da estabilidade monetária.

É por isso que, neste modelo, a questão da administração da dívida torna-se


extremamente relevante, pois será necessário determinar qual será melhor sua
composição, em termos de prazos de vencimento – de custos e de prazos – e de sua
estrutura de juros, que atenda as preferências dos investidores e que propicie custos mais
baixos (encargos) do financiamento público, de modo a não despertar expectativas
desfavoráveis junto aos agentes econômicos de que a piora das contas públicas representa
o prenúncio de aumento de impostos, prejudicando a estabilidade econômica. Uma
sintonia fina entre a política fiscal e a monetária representava, assim, o desafio a ser
vencido para permitir ao governo desempenhar seu papel anticíclico, mantendo, ao mesmo
tempo, reduzidos os custos de financiamento da dívida.

2.3. As expectativas racionais: um novo papel para a política fiscal e para a dívida
pública

Baseada no modelo neoclássico-monetarista com expectativas racionais, para a escola


novo-clássica, que representou uma ruptura radical com o pensamento keynesiano, a
dívida pública nada mais representa do que um fator de ineficiência alocativa, sendo
significativos os riscos que coloca para o crescimento econômico e a estabilidade
monetária. Uma tese, contudo, que só teve sua fundamentação concluída, após conhecer
vários desdobramentos teóricos.

De acordo com Hermann (2002:26), o modelo em que se apoiou essa escola,


inicialmente, para fundamentar essa crítica é o da equivalência ricardiana proposto por
Barro (1974), cujo argumento central “é o de que o financiamento do gasto público com a
emissão de dívida tem o mesmo efeito sobre a atividade econômica que seu financiamento
através de impostos.” Segundo essa autora (2002:26-27), duas hipóteses básicas do
comportamento dos agentes privados justificam a equivalência macroeconômica
estabelecida entre a dívida e os impostos:

i) a de que os agentes se comportam de forma racional ao formar suas


expectativas com relação às principais variáveis econômicas, utilizando e
interpretando todas as informações disponíveis sem incorrerem em “erros”,
a não ser os que podem ser causados pela insuficiência das que são
prestadas pelo governo (consideradas, portanto, exógenas no modelo);

ii) a de que os agentes definem a distribuição de sua renda entre consumo e


poupança, visando manter um padrão estável de consumo ao longo de toda
a sua vida, mesmo diante de variações correntes da renda disponível.
204

Ora, se assim é, caso o governo incorra em déficit, aumentando a dívida pública,


para fomentar políticas expansionistas, os agentes não se virão tentados a aumentar seu
consumo como decorrência do aumento de sua renda. Se assim agirem, podem sancionar
os aumentos de preços realizados pelas empresas para também se protegerem, reduzindo
seu poder de compra, com mais inflação. Como agentes que agem racionalmente, são
capazes de perceber que o aumento da dívida inevitavelmente levará a um aumento dos
impostos no futuro, o que reduzirá sua capacidade de consumo. Procurarão, diante disso,
preservar o seu padrão de consumo e economizar (poupar) a renda adicional obtida como
resultado da política governamental implementada, colocando-se em condições de pagar o
imposto de amanhã e manterem seu consumo.

Dessa maneira, os agentes neutralizam a ação do governo e o déficit público – e a


dívida – não traz nenhum benefício para o crescimento econômico, sendo idêntico ao
resultado que se obteria com um aumento de impostos, numa situação de orçamento
equilibrado em que o multiplicador do gasto é igual a 1. Ora, se o déficit, financiado pela
dívida, não interfere no crescimento, não existiria nenhuma justificava para o governo dele
se utilizar para essa finalidade, sendo-lhe recomendado operar com uma política fiscal de
permanente equilíbrio orçamentário para benefício do sistema econômico e da sociedade.

De qualquer forma, mesmo que as recomendações dessa escola fossem seguidas,


restaria saber como equacionar a montanha de dívida pública que se acumulara nas mãos
do Estado, muito como resultado, como vimos no capítulo V, das crises, recessão,
intempéries financeiras e instabilidade que marcaram o mundo capitalista na década de
1970, e identificar os efeitos que essa poderia ter na formação das expectativas dos agentes
econômicos a respeito do comportamento das principais variáveis econômicas, como taxa
de juros, câmbio, balanço de pagamento, que poderiam afetar o crescimento, numa
condição de desconfiança sobre a capacidade de solvência do Estado.

De fato, como analisa Lopreato (2006:20), o conceito de equivalência ricardiana,


ao supor que a geração de uma poupança negativa por parte do setor público “é
compensada por um aumento equivalente da poupança do setor privado (...), mantendo
inalterado o valor da poupança nacional, [disso decorre que] o produto, a taxa de juros e o
saldo de transações correntes não são afetados.” Ou seja, tendo demonstrado que o déficit
e a dívida são neutros para o crescimento econômico, o modelo não revela como podem
prejudicá-lo, afetando negativamente a formação das expectativas dos agentes sobre o
comportamento esperado das variáveis econômicas determinantes deste comportamento e
que tratamento deveria ser dado à essa questão para reverter essa situação e mantê-las
estabilizadas.

Uma solução para essa questão era importante, pois permitiria dar alguns passos
adiante, visando demonstrar como o controle do déficit – e também da dívida -, de forma
permanente, era essencial para evitar maiores prejuízos para a atividade econômica. E,
também, para dar consistência às políticas de ajuste fiscal que começaram, sob a
influência das idéias teóricas da public choice, a ser implementadas na década de 1980,
por diversos países desenvolvidos e emergentes, visando à redução das atividades do
Estado e da relação dívida/PIB, mas que não vinham se mostrando bem sucedidas, mesmo
porque, sustentadas por cortes indiscriminados de gastos e aumento de impostos,
revelaram-se desastrosas em seus resultados até mesmo para o próprio funcionamento do
mercado.
205

Essa questão não era sem importância porque, mesmo que se controlasse o fluxo (o
déficit) existia um estoque gigantesco de dívida que, continuando a ser alimentado por
taxas instáveis de juros – num mundo de instabilidade -, mantinha pulsante a dúvida sobre
a capacidade de solvência do setor público e, portanto, sobre a preservação da riqueza
financeira que se encontrava em suas mãos. Um novo passo nessa direção foi dado,
segundo Lopreato (2006:21), por Blanchard (1984), que destacou a questão da
necessidade de sustentabilidade da dívida (a garantia de que seria honrada) e sua
influência na determinação da taxa de juros, chamando a atenção, contudo, para os efeitos
gerados pelo nível corrente do déficit público sobre essa variável. Isso porque, déficits
elevados, necessitando de financiamento, afetam de início, de acordo com estes
argumentos, a taxa real de juros de longo prazo, porque sinalizam que a dívida deve
continuar crescendo, aumentando seus riscos e tornando mais elevados os custos de seu
carregamento.

O movimento esperado de sua expansão, associado à geração de déficits,


terminaria contaminando, também, a taxa de juros de curto prazo, prejudicando as
decisões de investimentos e o nível de consumo corrente e, consequentemente, o
crescimento econômico. Existiria, assim, um elo entre as taxas de juros esperadas e as do
presente, que são afetadas pela trajetória dos déficits correntes que influencia as
expectativas dos agentes sobre a trajetória da dívida e vice-versa. Garantir condições de
sustentabilidade da dívida, controlando o déficit em níveis compatíveis para evitar seu
crescimento, ou produzindo superávits fiscais no caso dela se encontrar em níveis mais
altos dos que os aceitáveis internacionalmente, surgiu, com o vínculo estabelecido, como o
caminho lógico a ser seguido para a redução das taxas de juros: com metas rigorosamente
estabelecidas e perseguidas para o déficit público, capazes de garantir a
sustentabilidade/redução da relação dívida/PIB, os agentes antecipariam seus resultados e,
prevendo a queda de juros no futuro, concordariam com sua redução no presente, já que as
condições fiscais do governo estariam melhorando. Com isso, abrir-se-iam os caminhos
para uma trajetória de crescimento sustentado.

Num mundo capitalista em transformação, no qual a abertura dos mercados


financeiros aumentou o passeio do dinheiro no globo e o capital financeiro subordinou o
capital industrial, tal associação, nessa perspectiva analítica, encontrou terreno fértil para
justificar teoricamente a necessidade de os Estados realizarem um rigoroso controle dos
fluxos orçamentários e do estoque de suas dívidas para assegurar a remuneração e a
preservação dos capitais aplicados em títulos públicos: países com elevadas relações
dívida/PIB passariam, neste caso, a ser considerados de maior risco e, por isso, punidos
com a cobrança de taxas mais elevadas de juros e sujeitos a maior volatilidade dos fluxos
de capital. Para escapar dessa situação deveriam se submeter à realização de um ajuste
estrutural e permanente de suas contas, capaz de convencer os agentes de que conseguirá
cumpri-lo e de que sua situação fiscal tende prospectivamente a melhorar.

A fiscalização do cumprimento deste dever de casa passou a ser atribuído às


agências de rating (de classificação de risco), especificamente criadas para essa finalidade
– uma espécie, portanto, de fiscais do capital financeiro internacional -, que passaram a ter
de atribuir, periodicamente, notas a esses países em função dos resultados por eles
alcançados. Caso essas sejam favoráveis, os custos dos financiamentos são reduzidos (a
taxa de juros cai) e melhora o seu poder de atração do fluxo dos investimentos diretos, já
que se tornam portos mais seguros. Caso piorem, ocorre uma situação inversa, podendo
206

estes se defrontar, dependendo da gravidade da situação, com fuga de capitais pela


desconfiança que inspiram, seguida de fortes e acentuadas ondas de instabilidade.

O compromisso com a sustentabilidade/redução da dívida, por meio de


controle/redução do déficit ou com a geração de superávits fiscais primários torna-se,
nessa perspectiva analítica, um ato sagrado, que subordina a política fiscal à sua
veneração, ainda que tenham de sacrificar as demais políticas do Estado, para que se
abram as portas do paraíso controladas e patrulhadas pelo capital financeiro e por seus
funcionários, onde ao país, que é temente a desequilíbrios fiscais do Estado, reserva-se o
prêmio de poder desfrutar do crescimento econômico em bases sustentáveis.

A chave que lhe pode garantir a entrada neste paraíso, é dada, como vimos no
capítulo V, pela fórmula, novamente aqui destacada, que define o nível limite do déficit
em que pode incorrer ou do superávit primário que terá de gerar para assegurar que a
dívida não ingresse numa trajetória insustentável de crescimento, colocando em risco seu
pagamento e deteriorando as expectativas dos agentes econômicos em relação ao
comportamento das variáveis centrais da economia, como taxa de juros, câmbio, balanço
de pagamento etc.

h = d. [(i – y) / (1 + y)] – s, sendo

h = resultado primário como proporção do PIB;


d = relação dívida/PIB;
s = senhoriagem como proporção do PIB;
y = taxa de crescimento nominal da economia;
i = taxa nominal de juros.

Diante disso, a grande questão que se coloca é a seguinte: quais são as chances de o
país conseguir atingir a meta estabelecida para a relação dívida/PIB, uma vez definido o
esforço fiscal (h) que terá de fazer? Para respondê-la, procura-se, em seguida, avaliar os
determinantes da dívida, ou seja, de (d), visando colher elementos necessários para essa
avaliação.

3. TIPOS, CUSTOS E RISCOS DA DÍVIDA

A dívida pública apresenta-se sob diversas formas: i) emissão de moeda, que representa
um débito do Estado para com a sociedade; ii) contratual, que resulta de contratos
assinados na aquisição de produtos, serviços e empréstimos realizados pelo setor público
junto a agentes internos e/ou externos; iii) mobiliária, com a qual o governo obtém
recursos que necessita vendendo título no mercado financeiro, com prazos determinados
de resgate.

A emissão de moeda (também conhecida como receita de senhoriagem) não


implica custos para o governo (ou seja, não se paga juros sobre o débito contabilizado),
mas são claros os limites definidos para sua utilização, os quais são dados pela quantidade
de moeda exigida para dar livre curso aos processos de produção, circulação e consumo de
bens e serviços na economia. Se ultrapassados estes limites, podem-se gerar inevitáveis
efeitos inflacionários (excesso de moeda em relação à quantidade de bens e serviços
produzidos), tornando disfuncional este mecanismo.
207

Os custos (juros) das demais formas de dívida – contratual e mobiliária –


dependem de uma série de condições, nem sempre sendo conhecidos a priori. Somente no
caso em que a taxa de juros é fixa, o governo consegue saber, com precisão, quanto de
juros terá de pagar para o agente que o financia. Mas quando a taxa de juros se encontra
vinculada/atrelada ao comportamento esperado de algum índice ou variável cujo
desempenho/resultado só será conhecido no futuro, não é possível a ele conhecer, de
antemão, a não ser estimativamente, o custo em que incorrerá com a dívida e o esforço
que terá de fazer para pagá-la.

Isso pode soar estranho, mas nem sempre o governo consegue escolher a melhor
forma ou os melhores prazos da dívida que lhe propiciariam menores custos e um perfil
mais adequado de pagamento, pois isso depende de diversos fatores, inclusive das
expectativas dos agentes econômicos sobre o comportamento futuro das principais
variáveis econômicas, bem como da capacidade de solvência do tomador (o contratante da
dívida, isto é, o setor público).

Considerando que o custo (prêmio) da dívida, ou seja, a taxa de juros, mantém uma
relação direta com os seus prazos, é mais interessante para o governo financiar suas
necessidades de recursos por meio da emissão de títulos de curto prazo. Isso, no entanto,
pode não ser recomendável, quando consideradas as pressões permanentes por sua
monetização a que estarão submetidas as autoridades monetárias com uma estrutura de
dívida de curto prazo, que podem ter implicações inflacionárias. Já uma dívida de longo
prazo, apesar de tornar mais elevados os seus custos, amplia os horizontes de atuação da
política monetária e melhora a confiança dos agentes econômicos na capacidade do Estado
de honrar seus compromissos, dado o perfil mais adequado de sua estrutura. Nessas
condições, é essencial a atuação da autoridade monetária para “equilibrar” a estrutura de
prazos da dívida com a taxa de juros que melhor concilie os objetivos de custos mais
baixos com estabilidade monetária. Dependendo, contudo, da conjuntura econômica e do
estado de confiança dos agentes sobre o comportamento futuro da economia, a melhores
opções para o governo, à luz destes objetivos, podem não se mostrar viáveis.

Exemplificando: necessitando o governo de financiamento, os policy makers


podem considerar ser mais recomendável vender títulos de longo prazo a uma taxa de
juros prefixada. Mas se, por parte do mercado, há a expectativa de que as taxas de juros
tendem a subir, os emprestadores preferirão títulos de curto prazo, ainda que com taxas
menores (reduzindo, portanto seus custos), esperando se beneficiar de ganhos maiores no
futuro, ou taxas pós-fixadas. Processo inverso ocorre caso sejam esperadas taxas de juros
decrescentes pelos mesmos agentes: neste caso, os investidores preferem taxas prefixadas,
enquanto para o governo as pós-fixadas seriam mais vantajosas. Somente no caso em que
as expectativas são de que não devem ocorrer alterações nas taxas de juros, as de curto e
longo prazo tendem a ser convergentes, sendo indiferente, do ponto de vista de seus
custos, o horizonte temporal da dívida.

Também o “grau de confiança” dos investidores na capacidade do governo de


honrar o pagamento da dívida contratada influencia essas questões. Se o grau de confiança
é baixo, decorrente de um elevado nível de endividamento, o governo verá reduzir-se sua
capacidade de determinar prazos e taxas de juros, tornando-se refém do mercado. Este,
diante dos riscos mais elevados para financiá-lo tenderá a exigir, tendencialmente, juros
mais elevados e prazos mais curtos. Se o grau é alto, o governo dispõe de autonomia e
208

capacidade para determiná-los.

Uma dívida contratual, por outro lado, pode revelar-se mais interessante se
contratada à taxa de juros fixa. Nem sempre isso é possível. Principalmente em ambientes
de instabilidade, o emprestador procura criar mecanismos que protejam suas aplicações de
perdas, podendo exigir ajustes nas taxas de juros cobradas sobre os empréstimos que
realiza, em períodos contratualmente estabelecidos, tornando-as de natureza flutuante,
reajustáveis em função do comportamento imprevisto de algumas variáveis que as afetem.
Ou exigir a criação de mecanismos de hedge (proteção) para aplicações que interessam ao
governo.

Além disso, a dívida pode ser de origem interna e externa, ou ainda, no caso da
interna, ter alguns de seus componentes vinculados/atrelados às variações de moedas
estrangeiras, como o dólar, por exemplo. Isso acrescenta dificuldades para a avaliação de
seus custos, pois o câmbio, principalmente quando flutuante, é determinado pela interação
entre as forças de oferta e demanda de divisas, que são afetadas por expectativas formadas
com base na situação da balança de transações correntes, do nível de reservas externas, da
capacidade de pagamento do país, enfim por variáveis/indicadores que espelham o seu
grau de vulnerabilidade. No caso das expectativas se tornarem desfavoráveis, pode ocorrer
um choque cambial negativo (desvalorização da moeda nacional), modificando a paridade
e aumentando os custos da dívida externa, quando cotada em moeda nacional. O contrário
também pode ocorrer, reduzindo seus custos.

Não é incomum, também, no curso de um ajuste, surgirem dívidas que não haviam
sido consideradas na sua projeção, resultantes, por exemplo, de demandas judiciais contra
o governo – trabalhistas, indenizações de medidas que provocaram prejuízos para alguns
setores etc. -, que podem comprometer as metas estabelecidas para a relação dívida/PIB.
São essas consideradas dívidas ocultas, também chamadas de passivos contingentes ou,
mais popularmente, de esqueletos que, uma vez reconhecidos, têm de ser quitadas.

Vista dessa maneira, a dívida (e seus custos) é determinada por variáveis que não
são apenas financeiras, como é o caso dos juros. Além desses não poderem ser
determinados ex-ante, com precisão, pelas razões apontadas, há também variáveis de outra
natureza que influenciam sua trajetória, como o câmbio e os passivos contingentes que, se
desfavoráveis, tornam insuficiente o esforço do superávit primário previsto, exigindo sua
ampliação, dado tratar-se de uma variável de ajuste (dependente) neste modelo.

Quer-se dizer com tudo isso, que são grandes as incertezas que existem sobre os
custos efetivos da dívida, o que torna a fórmula sagrada para o ingresso no paraíso do
crescimento sustentado, apresentada na seção anterior, apenas uma possibilidade, que
pode ou não se confirmar, em função do comportamento de variáveis, que não se
encontrando sob o controle do governo, determinam seus custos e trajetória. Caso esse não
se confirme, e níveis menores de déficit ou de maiores superávits sejam exigidos para
atingir a meta estabelecida para a relação dívida/PIB, outras despesas do Estado terão de
ser sacrificadas para que se mantenha nas mãos a chave do paraíso.

Cabe, em seguida, avaliar os critérios que são utilizados na medição da dívida,


visando obter elementos que permitam analisar o desempenho dos ajustes realizados por
países que se comprometeram com o processo de sua estabilização/redução, bem como
para comparar os resultados por eles alcançados.
209

4. METODOLOGIA E CRITÉRIOS DE MENSURAÇÃO DA DÍVIDA

A mensuração da dívida do conjunto do setor público não é, ao contrário do que possa


aparentar, uma tarefa metodológica fácil. Isso, por algumas importantes razões.

Dada a diversidade e heterogeneidade dos diversos segmentos que integram o


setor público – governo federal, banco central, estados e municípios, empresas estatais,
fundações, autarquias etc. -, torna-se necessária a existência de um órgão responsável
pela reunião dos diversos orçamentos e registros contábeis dessas unidades que
informem a posição de seus ativos e passivos para o levantamento da posição de suas
dívidas.

Como esses segmentos realizam entre si diversas operações, ostentando posições


credoras e devedoras cruzadas internamente, é necessário, para evitar erros de dupla
contagem, os quais magnificariam indevidamente a dívida, fazer a depuração dessas
operações para o cálculo correto de sua posição.

Mas assim como existe uma estrutura de passivos desses segmentos (o que se
pode chamar de “dívida bruta”) também dispõem eles de um conjunto de ativos, na
forma de reservas externas, créditos a receber etc., que podem ser deduzidos da dívida
bruta para determinação de sua posição líquida, a qual espelha o grau efetivo de seu
endividamento, ou seja, a sua “dívida líquida”.

A consideração, contudo, da dívida pública “liquida” coloca alguns problemas


que podem mascarar a verdadeira situação do governo. Entre os ativos que este detém,
alguns podem ser considerados “podres”, no sentido de incobráveis, apesar de
continuarem figurando no balanço patrimonial como um crédito a receber. Outros,
como as reservas externas, por exemplo, apesar de constituírem um ativo líquido e
certo, não podem ser integralmente disponibilizados para seu pagamento, a menos que
se queira incorrer em crises, o que não é o caso. Diferentemente de outros países, o
Brasil adota o conceito de Dívida “Líquida”, considerando os ativos e passivos
financeiros do Banco Central, incluindo, também nessa medição, a base monetária.

Os índices de correção dessas estruturas de passivos e ativos, utilizados para o


cálculo da dívida, também aparecem como uma dificuldade metodológica adicional.
Dada sua origem (interna e externa), a diversidade de contratos e de formas e
remuneração da dívida (mobiliária, contratual, etc.) também se torna necessário
harmonizar os diversos índices que as corrigem, para que se possa acompanhar sua
evolução e posição no tempo.

Os indicadores do tamanho (montante) da dívida e de seus encargos (juros e


amortização), que devem ser pagos em um determinado período (um ano, por exemplo)
devem ser apresentados em termos absolutos e relativos.

No primeiro caso, seu montante corresponde, em termos absolutos, ao valor do


saldo da dívida calculado num dado momento; em termos relativos, esse valor é
relacionado à magnitude de uma determinada variável econômica registrada no período
de sua medição, como o Produto Interno Bruto ou a Receita Pública (DP/PIB; DP/RP),
210

por exemplo, que mostram a sua proporção em relação à riqueza gerada no país ou às
receitas de seu devedor.

No segundo caso, a carga da dívida refere-se, em termos absolutos, ao montante


de recursos destinados para o pagamento de seus encargos (juros e amortização), num
determinado período. Em termos relativos, à relação entre esses compromissos (juros e
amortização) e a Receita ou Despesa Públicas, que mostra o grau de comprometimento
dos recursos públicos com o seu pagamento ou a participação desse componente no
total das despesas do governo.

Uma análise mais desagregada, em todos esses casos, pode separar a dívida por
origem (interna e externa) e introduzir outras variáveis para calcular seu peso em
relação à determinadas riquezas ou receitas geradas, como o nível de reservas externas
ou as receitas de exportação, por exemplo, no caso da dívida externa.

5. REVENDO A FÓRMULA DO SUPERÁVIT PRIMÁRIO

Conhecendo melhor o comportamento das variáveis que são consideradas na fórmula


mágica que pode abrir as portas do paraíso para o crescimento em bases sustentáveis,
deve-se avaliar, agora, sua situação e a capacidade do modelo de garantir o atingimento
do objetivo da política fiscal que é a estabilização/redução da relação dívida/PIB.
Considerando que

h = d. [i - y] / [1 + y] – s, que pode ser mais claramente traduzida na seguinte


fórmula:

SP/Y = D/Y. [i - ∆Y] / [1 + ∆Y) - s

Abstraindo de s (a receita de senhoriagem), temos que a variável de ajuste


(dependente) para manter estabilizada a relação dívida/PIB (d = D/Y) é o superávit
primário (SP), que é calculado de forma ex-ante, projetada uma determinada taxa de
juros (i) e uma variação do produto (∆Y).

Lembrando que o superávit primário influencia o comportamento de Y (o gasto


público é um componente da formação da renda), e que i, que influencia tanto D como
Y, é determinada pela política monetária, que reage às expectativas dos agentes e/ou à
garantia de que determinadas metas traçadas pela política sejam alcançadas (o controle
da inflação, por exemplo), conclui-se que o governo não dispõe de controle sobre Y e i
(são variáveis exógenas à política econômica), podendo seus resultados se desviarem,
no curso do ajuste, das projeções realizadas para calcular o superávit primário (SP).

Se acontecer, portanto, de i projetada sofrer elevação, devido a um choque


cambial negativo, a um repique inflacionário ou à mudanças de expectativas dos
agentes, os juros nominais serão maiores que os projetados, aumentando D, o produto
(Y) tenderá a diminuir, dados os efeitos negativos sobre o consumo e o investimento. Se
mantido o objetivo de manter estabilizada ou de redução da relação Dívida/Y, o
superávit terá de ser aumentado, por meio de cortes de gastos e/ou de aumento de
impostos, deprimindo ainda mais Y, com efeitos negativos sobre a relação D/Y,
mantendo a economia num circulo vicioso que a empurra e aprofunda sua trajetória de
211

recessão e, mais grave, sem nenhuma garantia de que o objetivo da política fiscal seja
alcançado.

Situação inversa pode ocorrer, caso i caia em relação ao nível previsto, mas essa
situação, em economias submetidas a esses ajustes, com acentuados desequilíbrios, é
mais difícil de verificar, porque a relação D/Y pode continuar desfavorável, ou, se isso
ocorrer, as mudanças podem ser dar de forma mais lenta e/ou serem neutralizadas por
mudanças adversas das expectativas provocadas por outros fatores.

Por essa razão, os ajustes deste processo têm de ser dinâmicos e confiáveis para
os agentes econômicos de que haverá sustentabilidade da dívida no longo prazo,
corrigindo-se rapidamente os desvios ocorridos e/ou compensando-os em períodos
subseqüentes, ainda que sacrificando despesas com outras ações do Estado. Não basta,
portanto, numa perspectiva de longo prazo, apenas garantir sua sustentabilidade, mas
também convencer os agentes econômicos de que ela será efetivamente honrada e que
não há riscos de default, mesmo que se sujeitando o Estado, para isso, ao abandono de
outras funções essenciais para a economia e a sociedade.

De qualquer forma, em qualquer dessas situações, a fórmula mágica apresenta


um viés pró-cíclico, como conclui Hermann (2006:20-23, itálicos acrescentados), que
apresenta um modelo, no qual essas variáveis são inter-relacionadas, para concluir “ser
esta a antítese do papel estabilizador que, normalmente, se espera da atuação do
governo na economia [e que, na verdade], a política fiscal [deste modelo] visa apenas o
equilíbrio financeiro do próprio setor público, [configurando-se com um
comportamento] autista, que expressa o seu desligamento da realidade.”

5. A EVOLUÇÃO RECENTE DA DÍVIDA PÚBLICA NO CAPITALISMO

Apesar do acordo de Maastricht ter estabelecido, em 1992, o nível de 60% da relação


dívida/PIB a ser atingido pelos países que integram a União Européia (UE), e este limite
ter se tornado a referência internacional de política fiscal como garantia de que a dívida se
mantém em níveis sustentáveis, passados quinze anos da entrada em vigor deste acordo,
nem os principais países da UE, nem outros países desenvolvidos conseguiram se
enquadrar, à exceção do Reino Unido, nessas novas regras. Mesmo o Reino Unido, apesar
de ainda manter sua relação Dívida Bruta/PIB abaixo de 60% tem visto esta deteriorar-se
progressivamente no tempo.

A tabela 6.1, que mostra a trajetória da relação dívida/PIB para os países que
integram o G-7, de 1990 a 2007, confirma essa tendência. Como ali se percebe,
comparado a 1990 – ano que antecede o Tratado de Maastricht – no ano de 2000 apenas
os EUA e Canadá haviam conseguido melhorar sua posição de endividamento, tanto em
termos brutos como líquidos, resultado da política de equilíbrio orçamentário que
adotoram, verificando-se agravamento da situação para os demais. O ano de 2005
comparado ao de 2000 mostra, por outro lado, uma piora significativa da posição dos
EUA, do Japão, da Alemanha e França e um ligeiro aumento do nível de endividamento
da Itália e do Reino Unido, com melhora apenas na situação do Canadá. Tal fato pode
encontrar respostas, como já visto, no baixo crescimento dos primeiros anos da década e
na resistência da população à desmontagem das políticas do welfare, e, no caso dos EUA,
nos efeitos provocados pelos ataques terroristas ao WTC, em 2001, e pela Guerra do
Iraque sobre os gastos públicos.
212

Por outro lado, entre 2005 e 2007, a Alemanha, França, Itália e Canadá – o último,
principalmente -, melhoraram sua situação de endividamento, certamente beneficiando-se
do expressivo crescimento da economia mundial no período 2003-2007, embora com suas
dívidas brutas situando-se ainda acima de 60% do PIB. Os EUA, continuando envolvidos
na Guerra do Iraque, mantiveram sua dívida – bruta e líquida – nos mesmos patamares de
2005, enquanto o Japão e também o Reino Unido continuaram com a dívida em expansão
como proporção do PIB, embora o último continue sendo o único país, dessa relação,
perfeitamente enquadrado – quer em relação à dívida líquida ou bruta – nos limites de
60% estabelecidas no acordo de Maastricht. Uma situação que, já não favorável, deve
deteriorar-se consideravelmente a partir de 2008/2009, dados os elevados gastos efetuados
pelos governos em geral, mas especialmente pelos dos países desenvolvidos, para mitigar
a crise gerada pelos ativos tóxicos das hipotecas e para evitar a derrocada do sistema.

Tabela 6.1
Evolução da relação Dívida Bruta e Dívida Líquida, como proporção do PIB, dos países do G-7

Países G-7 1990 2000 2005 2007


Líquida Bruta Líquida Bruta Líquida Bruta Líquida Bruta
Estados Unidos 49,4 64,8 39,5 57,2 43,4 60,6 43,2 60,7
Japão 15,3 69,3 60,4 142,5 84,6 191,6 90,6 195,4
Alemanha 20,7 42,2 51,5 58,7 61,8 66,4 57,7 63,2
França 24,6 34,4 47,0 56,6 56,7 66,4 54,2 63,9
Itália 89,5 94,6 103,4 109,1 102,7 105,8 101,0 104,0
Reino Unido 21,3 27,3 34,2 41,6 37,4 42,1 38,2 44,0
Canadá 61,8 93,2 65,3 101,5 30,0 70,4 23,3 64,2
Fonte: Fundo Monetário Internacional (FMI). Extraído no dia 09/04/2007, do site:
http:/www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2006/02/data/weoselgr.aspx

Políticas monetárias restritivas, baixo crescimento do produto, afetando


negativamente a arrecadação, dificuldades e resistências da população destes países, em
geral, à desmontagem de políticas de bem-estar social e de direitos trabalhistas,
arduamente conquistadas, ajudam a entender a razão da frouxidão dos ajustes
recomendados pelo novo paradigma. Se o capital vislumbrou essa possibilidade, quando
deixou de ter oponente, e fundamentou e instrumentalizou teoricamente o Estado para este
objetivo, a realidade econômica, política e social destes países continuou colocando
dificuldades para o cumprimento das novas ordens recebidas. Situação que deve se
agravar com a contra-ordem recebida para o Estado salvar o mercado do desvario em que
este se enredou com a crise do crédito subprime que veio à tona, em 2007, nos EUA e que
rapidamente se espalhou pelo mundo contaminando todo o sistema financeiro. Diferente,
contudo, é o caso das economias emergentes, de quem continua sendo exigido manter-se
fiel ao mandamento do ajuste para avançar na construção e consolidação de seu sistema
econômico. Nestes, o descumprimento das ordens e das normas costuma ser punido com a
negação das condições necessárias para esse avanço, enquanto a preservação da virtude,
entendida como a insistência com que se persegue o ajuste capaz de garantir a
sustentabilidade da dívida, pode ser premiada com a chave que permite ao país candidatar-
se a ingressar no paraíso do crescimento e da prosperidade. São essas condições e
possibilidades que se examina, em seguida, para o caso do Brasil.

6. A DÍVIDA PÚBLICA NO BRASIL


213

Em 1824, o Brasil realizou a primeira contratação de um empréstimo externo, o qual,


somado ao que foi contraído no ano seguinte, em 1825, disponibilizaria para o país
recursos correspondentes a 3.686.200 libras esterlinas. Dois anos depois, em 1827, com
base nas determinações da Constituição Imperial de 25/03/1824, uma lei, promulgada no
dia 15 de novembro, estabeleceria as bases do sistema da dívida pública interna fundada,
da consolidação da dívida flutuante anterior a 1826, das condições para sua emissão,
resgate e remuneração, e do agente responsável pela sua administração, que seria a Caixa
de Amortização, que tinha como órgão máximo a Junta de Administração, a qual contava
com representantes do governo e do empresariado (Carneiro Leão, 1998:1-3). Desde essa
época, o governo brasileiro tem se apoiado, para complementar suas necessidades
adicionais de recursos, num mix de fontes que combina a emissão de moeda com a de
títulos da dívida pública interna e com a dívida externa. 51

Essas fontes de financiamento alternaram-se de importância ao longo da história,


ora com a dívida externa assumindo posição predominante, ora a dívida interna. Após as
reformas da economia brasileira realizadas em 1964, com as quais o país modernizou suas
estruturas de financiamento, a dívida externa transformou-se, rapidamente, na principal
fonte complementar de financiamento do Estado, padrão que vigorou até a década de
1980, quando, com a eclosão da crise da dívida externa, tornou-se inevitável seu
esgotamento. Apesar disso, sua preponderância manteve-se até os primeiros anos da
década seguinte, quando representou algo em torno de 60% do total da dívida líquida do
setor público.

Contudo, já a partir da década de 1980, com a exaustão das fontes externas de


financiamento, deu-se início a um processo de substituição da dívida externa pela interna,
visando reduzir a dependência e exposição do país a esses credores. Na década de 1990 e,
especialmente após a implementação do Plano Real, este processo foi intensificado e, com
a melhoria das contas externas a partir de 1999, o país continuou avançando, de forma
mais acelerada, na redução deste endividamento, substituindo-o por dívida interna. Como
resultado, como mostra a tabela 6.2, a dívida interna líquida do setor público já
representava 95% do endividamento total em dezembro de 2005, enquanto a dívida
externa apenas 5%. Como resultado da acelerada acumulação de reservas internacionais,
decorrente dos expressivos saldos da balança de pagamentos verificados a partir de 2004 e
do forte ingresso de capitais atraídos pelas elevadas taxas reais de juros praticadas pelo
Brasil, a dívida externa líquida do setor público tornar-se-ia negativa em 2006, como
mostra a mesma tabela, fato inédito na história brasileira, e continuaria em trajetória de
redução em 2007, enquanto a dívida interna líquida passaria a representar 121% de seu
total.

Por outro lado, a composição da Dívida Líquida Interna do Setor Público (DLI)
evidencia o papel crescente e, atualmente, preponderante da dívida mobiliária interna do
governo federal no seu total, como mostra a Tabela 6.3. Como se percebe de seu exame, a
participação dos títulos públicos do Tesouro Nacional tem se situado, no período recente,
em patamares próximos ou mesmo superiores, como em 2006 e 2007, aos da DLSP. Pela
importância que essa dívida representa no total da Dívida Líquida do Setor Público
(DLSP) e por suas implicações para a política fiscal e para a dinâmica do endividamento, é
importante conhecer sua evolução, estrutura, bem como as características dos títulos
51
A composição dessas fontes desde 1850 até a década de 1980 pode ser encontrada no trabalho de
Goldsmith (1997)
214

públicos, visando obter elementos para melhor avaliar essa questão, no Brasil, na
atualidade.

Tabela 6.2
Dívida Líquida do Setor Público, por origem interna e externa: 1994/2007
(em R$ milhões)
Anos Dívida Interna Dívida Externa Dívida Líquida Total
Líquida Líquida
Valor % Valor % Valor %
1994 108.806 70,9 44.357 29,1 153.162 100,0
2000 451.841 80,2 111.322 19,8 563.163 100,0
2002 654.312 74,3 226.796 25,7 881.108 100,0
2004 818.065 85,5 138.931 14,5 956.997 100,0
2005 952.185 95,0 50.300 5,0 1002.485 100,0
2006 1.130.902 106,0 -63.538 -6,0 1067.363 100,0
2007 1.393.138 121,1 -242.781 -21,1 1.150.357 100,0
Fonte: Banco Central do Brasil e Ipeadata (acesso em 15/01/2009).

Tabela 6.3
Brasil: Dívida Líquida do Setor Público, Dívida Interna Líquida e Dívida Mobiliária
Federal: 2000-2005
(em % do PIB)

Ano Dívida Líquida Dívida Interna Dívida Mobiliária 2/1 (%) 3/2
Setor Público (1) Líquida (2) Federal (3) (%)
2000 45,5 36,5 41,3 80,2 113,2
2001 48,4 38,9 45,7 80,4 117,5
2002 50,5 37,5 35,7 74,3 95,2
2003 52,4 41,7 42,0 79,6 100,7
2004 47,0 40,2 39,8 85,5 99,0
2005 46,5 44,1 45,4 94,8 102,9
2006 44,7 47,4 45,8 105,6 97,3
2007 42,7 51,7 45,5 121,0 106,6
Fonte: Banco Central do Brasil e Ipeadata (acesso em 15/01/2009).

6.1. A dívida mobiliária federal interna: um pouco de história - 1827-196452

Além da emissão da dívida interna realizada em 1827, durante o Império foram realizadas
várias outras emissões de títulos da dívida interna para atender a objetivos variados, como
os de cobertura de déficits orçamentários, despesas com pacificações das províncias, com
a Guerra do Paraguai, entre outros. Tratava-se de Apólices nominativas, vendidas a
pessoas físicas, com prazos longos de resgate (a emissão de 1827 estipulava um prazo de
100 anos), taxas de juros que oscilaram entre 5 e 7%, reduzidas amortizações e regras de
prescrição da dívida que, a partir de 1851, passou a ser de cinco anos. Nem com essas
condições, o Governo Imperial parece ter se comportado como bom pagador, como
assinala Carneiro Leão (1998:5), ora suspendendo as amortizações, ora reduzindo a taxa
de juros, com a conversão de títulos, o que o levou a defrontar-se com dificuldades para
colocar seus papéis junto ao público, principalmente entre 1840 e 1860.

52
Este item baseia-se principalmente no trabalho de Carneiro Leão (1998)
215

Com o advento da República, algumas inovações foram introduzidas no sistema e


formato da dívida pública interna, no período que vai até 1964: a) autorização para
emissões de títulos ao portador, em 1890; b) consolidação da dívida do Império e sua
substituição por novos títulos, uniformizando-os, com taxas de juros menores (4%), e
prescritibilidade de cinco anos dos antigos; c) realização de uma grande emissão, em
1897, para retirada do excesso de papel-moeda de circulação resultante da contratação de
um empréstimo externo que seria contraído no ano seguinte.

As emissões que se seguiram à de 1897, tiveram por objetivo: a) cobertura de


déficits orçamentários: b) retirada de papel-moeda em circulação; c) financiamento de
diversas obras, entre as quais a dragagem da bacia da Guanabara e a melhoria do Porto do
Rio de Janeiro; d) pagamento de empréstimos compulsórios realizados junto a pessoas
físicas e jurídicas para o financiamento de despesas com guerras; e) pagamento de
investimentos realizados em rodovias e ferrovias, por meio do lançamento de Obrigações
Rodoviárias e Ferroviárias; f) pagamento do empréstimo tomado entre 1952 e 1956 para a
Formação do Fundo de Reaparelhamento Econômico, que começaria a ser pago em 1958.

Duas outras consolidações da dívida ainda seriam realizadas, neste período, nos
anos de 1956 e 1962. A consolidação de 1956 visou padronizar a dívida e melhorar o seu
controle, já que existiam, na época, de acordo com Carneiro Leão (1998:11), “mais de
cento e trinta tipos de títulos, com impressões diversas e prazos longos.” Isso também era
necessário para propiciar, ao sistema bancário, condições de identificar seus titulares e a
legitimidade dos títulos para valer-se da nova regra, dada pela Instrução n. 108 da
Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), que passou a permitir-lhe que 50%
do depósito compulsório a ser recolhido poderiam ser realizados em títulos da dívida
pública. Nessa consolidação, todos os títulos em circulação foram substituídos por novos,
classificados em 4 grupos, com prazos de resgate entre 21 e 68 anos e taxas de juros
variadas, prevalecendo a regra da prescritibilidade de cinco anos.53

A consolidação de 1962 foi realizada, por um lado, para atender a demanda do


mercado financeiro por prazos menos longos e taxas de juros uniformes para os títulos da
dívida, e, por outro, para abrir espaços para o governo obter financiamento não
inflacionário para a cobertura de seus déficits, por meio de emissão da dívida. Para isso,
foi autorizada, pela Lei 4069, de 11/06/1962, a emissão de títulos de Recuperação
Financeira, com o “objetivo de unificar a dívida pública interna da União, excetuadas as
obrigações do Fundo de Reaparelhamento Econômico, e para cobrir déficits
orçamentários”.

Nessa nova consolidação, as taxas de juros foram uniformizadas em 7%, os prazos


de vencimento reduzidos e o resgate previsto de ser realizado à proporção de 5% ao ano
seguinte à sua emissão, em vinte prestações anuais iguais, modificando-se, portanto, as

53
A Lei 2997, de 28/11/1956, que tratou dessa reestruturação, foi seguida pela Instrução n. 1, da Caixa de
Amortização, publicada no Diário oficial da União em 30/01/1957, na qual se estabeleceu “o segundo
semestre de 1957 como o período em que os títulos deverão ser entregues para análise da autenticidade e
substituição por novos.” A mesma Instrução estipulou que, a partir de 01/01/1958, os títulos anteriores
[deixarão] de ter validade jurídica e que nenhum pagamento se realizará sem que os títulos hajam sido
substituídos”. É esse, na verdade, o argumento jurídico que o governo tem utilizado, na atualidade, para
eximir-se do pagamento de dívidas pleiteado, na forma de apólices, anteriores a 1955, por herdeiros de
titulares que não as substituíram, à época, cuja prescrição teria ocorrido em 31/12/1962 (Carneiro Leão,
1998:10-12)
216

regras anteriores. O prazo final para a troca dos títulos foi estabelecido em 27/11/1967,
com a publicação da Instrução de Serviço n. 2, da Caixa de Amortização, que foi
publicada no Diário oficial da União, em 27/11/1962.

Tendo obtido êxito no processo de reestruturação da dívida, o mesmo não ocorreu,


contudo, com o objetivo de garantir o financiamento do déficit do governo, por meio da
emissão de títulos da dívida, já que a instabilidade política da época, bem como o nível de
sua remuneração, diante de um quadro de alta e ascendente inflação, não despertaram
interesse junto aos investidores. A bem da verdade, desde a década de 1930, não eram
pequenas as dificuldades que o governo vinha enfrentado para viabilizar a colocação de
seus papéis, por alguns motivos que merecem comentários, já que condicionarão as
mudanças introduzidas neste sistema em 1964.

As dificuldades para colocação de títulos da dívida pública interna deviam-se a


uma série de fatores econômicos e institucionais. De um lado, a inexistência de um
mercado de capitais, aliada à fraqueza de fundos internos de poupança, limitava essa
possibilidade, restringindo sua subscrição a poucos investidores. De outro, a inflação, que
já começara a prejudicar as emissões no final da década de 1930, avançou nos anos 1940 e
acelerou-se nos últimos anos da década de 1950, tornando negativa a remuneração dos
títulos públicos. Como a Lei da Usura, vigente desde 1933, proibia o pagamento, pelo
governo, de juros nominais superiores a 12%, não havia como compensar os efeitos
negativos da inflação e tornar atrativas as aplicações nesses títulos. Essas questões só
serão equacionadas com as reformas financeira e bancária que serão realizadas no Brasil
entre 1964/67, pelo governo militar que assumirá o poder, as quais darão, inter alia, uma
nova conformação para a dívida interna fundada, viabilizando-a como instrumento de
financiamento não inflacionário do governo.

6.2. A dívida mobiliária como instrumento de política fiscal e monetária: 1964-2002

Os principais objetivos perseguidos com as reformas – tributária, financeira,


administrativa, do mercado de capitais etc. – realizadas em meados da década de 1960
foram os de saneamento da economia e de criação das condições para a retomada do
crescimento econômico com estabilidade monetária. Com elas procurou-se: a) redefinir o
padrão de financiamento da economia, garantindo fontes mais seguras e estáveis de
crédito de longo prazo para o investimento e para atender as demandas de consumo da
população; b) readequar o aparelho do Estado ao novo papel que este vinha
desempenhando como condutor do processo de desenvolvimento, recuperando a confiança
dos agentes no crédito público e garantindo-lhe fontes de financiamento não
inflacionárias.

No campo da dívida mobiliária interna pública, foi autorizada a emissão, com a


reforma do sistema financeiro (Lei 4595/64), de Obrigações Reajustáveis do Tesouro
Nacional (ORTNs), com vencimento de dois e cinco anos e juros respectivos de 6% e 8%,
com cláusula de correção monetária para o financiamento de déficits orçamentários. Com
a cláusula de correção monetária conseguiu-se tornar letra morta, na prática, a “lei da
usura” de 1933, e, por meio da concessão de um elenco de incentivos fiscais para
estimular a aquisição de títulos do governo, garantir a atratividade dessa aplicação e dar
início à remoção das dificuldades que obstavam a expansão do mercado de capitais e
desses papéis. Em 1967, o Decreto-lei n. 263, de 28/02/67, autorizou o Poder Executivo a
promover o resgate dos títulos que não possuíam cláusula de correção monetária,
217

estabelecendo o prazo de seis meses para sua apresentação por seus titulares, prazo que
posteriormente, com a regulamentação deste decreto, foi estendido para 04/01/1969,
quando então prescreveriam.

O novo arranjo estruturado a partir dessa época para viabilizar a dívida interna
fundada como mecanismo de financiamento não inflacionário do Estado revelou-se bem
sucedido: em pouco tempo, os déficits orçamentários passaram a ser integralmente
cobertos com a emissão de ORTNs e o estoque da dívida mobiliária, como proporção do
PIB, evoluiu de 0,14%, em 1964, para 4,4%, em 1970. Estes constituíram, contudo,
apenas os primeiros passos na construção e constituição deste mercado, que conheceria
avanços importantes a partir deste último ano, com o lançamento das Letras do Tesouro
Nacional (LTNs) e a extensão de seu papel para os objetivos de política monetária.

Em 1970, depois da utilização das ORTNs, com prazo decorrido, em caráter


experimental, como instrumento de política monetária, seriam criadas as LTNs, como
títulos de curto prazo (vencimento com 91, 182 e 365 dias) considerados mais adequados
para essa finalidade. Mas somente dois anos depois, com um mercado de títulos “maduro”
propiciado pelo seu alargamento, foi que o governo passou a dispor de condições para
manejar, com eficácia, a dívida pública para esses objetivos.

Durante o período em que a ORTN e a LTN (até 1986) foram os principais papéis
da dívida mobiliária do governo federal contava-se, portanto, com títulos de duas
naturezas e de riscos distintos: o primeiro, pós-fixado, corrigido pela inflação e com
remuneração real de juros, estipulados em função de seus prazos de vencimento; o
segundo, prefixado, com taxas de juros nominais negociadas nos leilões de venda destes
títulos, balizadas por expectativas dos agentes sobre as tendências das principais variáveis
da economia. Enquanto a ORTN representava um porto seguro para as aplicações
financeiras, principalmente em conjunturas de instabilidade macroeconômica, a LTN era o
instrumento com o qual se respondia às expectativas dos agentes, podendo seus resultados
produzirem perdas ou ganhos para seus participantes, de acordo com o comportamento
efetivo das taxas nominais de juros.

Em tese, enquanto as ORTNs estariam vinculadas à política fiscal, financiando as


necessidades de recursos do Tesouro Nacional, as LTNs deveriam ser títulos utilizados
especificamente para a condução da política monetária. Na prática, contudo, essa
separação praticamente não existiu, porque, em 1971, a Lei Complementar n. 12, de
08/11/1971, transferiu a responsabilidade plena pela administração da dívida pública,
incluindo a do Tesouro Nacional, para o Banco Central. Com isso, os títulos passaram
indistintamente a ser utilizados tanto para efeitos da política monetária como da fiscal, não
sendo possível diferenciá-los em função destes objetivos, já que esses se confundiam.

Note-se que até 1980, com o Estado contando predominantemente com


financiamento externo, a dívida mobiliária interna, como proporção do PIB, conheceu um
modesto crescimento comparado ao nível registrado em 1970. De fato, depois de evoluir
de 4,4% do PIB, naquele ano, para 7,2%, em 1979, registrou-se um novo recuo deste
índice, em 1980, ano em que a prefixação da correção monetária determinada pelo então
ministro da Fazenda, Delfim Netto, comprometeu a credibilidade dos títulos e da dívida
pública emitida pelo Estado.

Na década de 1980, a economia brasileira mergulhou num quadro de estagnação,


218

como resultado da crise da dívida externa que marcou este período, e, sem contar com
fontes alternativas de financiamento, o país viu intensificarem-se as pressões sobre a
moeda nacional e acelerar-se o processo inflacionário. Diante disso, começou a promover
o processo de substituição da dívida externa pela interna, dando grande impulso à dívida
mobiliária, que saltou de 5,1% do PIB, em 1980, para 16,5%, em 1985, e 32% em 1989,
ano em que a hiperinflação batia às portas da economia brasileira. Neste período, a dívida
fundada em títulos estava sendo rolada diariamente no overnight, tendo se transformado,
na realidade, em dívida de curtíssimo prazo, dada a desconfiança que existia sobre a
capacidade do governo de honrá-la.

Neste quadro de instabilidade, sucessivos planos de estabilização, ortodoxos e


heterodoxos, foram sendo implementados com o objetivo de reverter este processo, com o
instrumento da dívida mobiliária interna sendo continuamente modificado para adaptar-se
a essa nova realidade e para conciliar os objetivos de política econômica com as demandas
dos investidores por segurança, liquidez e rentabilidade dos títulos públicos. Apesar disso,
apenas por um breve período no Plano Collor (1990-1991), com o qual se promoveu um
seqüestro da riqueza financeira e uma desvalorização parcial da dívida, ocorreria uma
redução em sua dimensão, como proporção do PIB, tendo caído para 30% no primeiro ano
e para 26% em 1991. A partir de 1992, retoma-se sua trajetória de expansão, que será
intensificada com o Plano Real, lançado em 1994, que contará, entre os principais pilares
de sua arquitetura, com a manutenção de elevadas taxas de juros para garantir o processo
de estabilização, ainda que com prejuízos para as contas públicas e para o endividamento
do país.

Até o lançamento do Plano Real, com o qual se conseguirá abater a inflação e


afastar a ameaça da hiperinflação, os títulos da dívida pública foram sendo modificados,
ampliados e tendo diversificados os seus índices de correção, prazos e formas de
remuneração para ajustarem-se àquelas demandas e atender as necessidades de
financiamento do governo e aos objetivos da política econômica. Da substituição da
ORTN pela Obrigação do Tesouro Nacional (OTN), em 1986, realizada pelo Plano
Cruzado, que promoveu a desindexação da economia brasileira, seguiram-se a criação das
Letras do Banco Central (1986), das Letras Financeiras do Tesouro, em 1988, do Bônus
do Banco Central (LBCs), em 1990, e das Notas do Tesouro Nacional, em 1991.

Quadro 6.1
Títulos da Dívida Mobiliária no Brasil a partir de 1964

Tipo Ano de Função Indexador


criação
ORTN 1964 Política fiscal/financiamento Inflação
LTN 1970 Política monetária Juros nominais prefixados
OTN 1986 Política fiscal/financiamento Sem indexação
LBC 1986 Política monetária Selic diária
LFT 1988 Política fiscal/financiamento Selic
BBC 1990 Política monetária Juros prefixados ou Selic
NTN 1991 Política fiscal/ financiamento/ IGP-M, IPCA, TR, câmbio
Política Monetária
Fonte: Elaboração do autor.
219

Com características distintas, principalmente no que se refere a prazos de


vencimento (curto e longo prazos) e de remuneração, no caso de serem prefixados, quando
a remuneração é definida em função de seu valor de face, ou pós-fixados, quando
indexados a uma variável macroeconômica (índices de preços, câmbio, taxa de juros
SELIC) esses títulos propiciaram, ao governo, enquanto o Banco Central deteve
autonomia para emiti-los, enfrentar situações de turbulências e de volatilidade do quadro
macroeconômico, que se acentuaram na década de 1990 e nos primeiros anos do século
XXI, bem como de conseguir financiamento para cobertura de seus desequilíbrios
orçamentários. O quadro 6.2, montado a partir do trabalho de Fortuna (1996) apresenta as
principais características destes títulos no período em análise.

Como se percebe, corrigida e remunerada por indexadores que são afetados pelas
expectativas dos agentes econômicos – câmbio, juros, inflação – e que determinam o
deslocamento para um ou outro tipo de dívida, movimento que se varia em função do grau
de turbulência da economia e da confiança na capacidade do governo de honrar seus
compromissos, os encargos dessa dívida tornaram-se de difícil previsibilidade, porque
dependentes do comportamento de variáveis sobre as quais os governo não dispõe de
pleno controle.

Quadro 6.2.
Principais características dos títulos da dívida mobiliária federal interna

Títulos do Tesouro Nacional Títulos do Banco Central


Notas do Tesouro Nacional (NTNs): Letras do Banco Central (LBCs):
Títulos pós-fixados que pagam juros de 6% ao ano, Títulos que possuem características idênticas às
isento do Imposto de Renda. Subdividem-se em LFTs, com vencimento de curto prazo e
várias séries, que se distinguem pelo fator de rendimentos atrelados à taxa de juros SELIC. Por
correção (câmbio, IGP-M, TR) e pelos prazos de serem pós-fixados, funcionando como quase-
vencimento. Como instrumentos de política fiscal, moeda, não eram adequados para a implementação
apresentam, de um modo geral, perfil de mais longo de políticas monetárias ativas, mas instrumentos
prazo, tendo sido criadas basicamente com a importantes para serem utilizados no caso de
finalidade de alongar o prazo de financiamento da situações de turbulência, desconfiança e incertezas
dívida do Tesouro do mercado
Letras do Tesouro Nacional (LTNs): Bônus do Banco Central (BBCs):
Títulos prefixados, de curto prazo, emitido para a Títulos de curto prazo, prefixados, ou de
cobertura de déficits orçamentários, apresentando rentabilidade pós-fixada, definida pela taxa SELIC,
características similares às do Bônus do Banco e, por essa razão, adequado para a prática de
Central (BBCs) políticas monetárias ativas
Letras Financeiras do Tesouro (LFTs): Notas do Banco Central (NBCs):
Títulos de curto prazo, remunerados pela taxa Títulos com rentabilidade pós-fixada, possuindo
média de juros pós-fixada. Trata-se, portanto, de diversas séries, cada qual com índice de correção
títulos que não acarretam perdas para o sistema próprio (câmbio, taxa Selic etc.). No caso da série
financeiro no caso de elevação das taxas de juros atrelada ao dólar, eram importantes instrumentos
para acalmar o mercado no caso de turbulências
externas e de incertezas em relação ao câmbio

Fonte: Fortuna (1996)

Em 2002, uma nova mudança ocorreria na política de administração da dívida, com


a proibição do Banco Central de emitir títulos, prerrogativa que lhe fora outorgada pela
Lei Complementar n. 12, de 1971. Embora a Constituição de 1988 já tivesse determinado
220

essa proibição, restringindo sua ação ao objetivo de regular a oferta de moeda ou a taxa de
juros, podendo, para tanto, adquirir títulos do Tesouro para essa finalidade, a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), de 04/05/2000 (LC 101/2000), que regulamentou o
capítulo das finanças públicas da Constituição, vedaria, expressamente no art. 34, a
emissão de títulos da dívida pelo Banco Central, a partir de 2 anos de sua publicação, ou
seja, a partir de 02/05/2002. Com isso, a atuação do Banco Central ficou limitada, para
cumprir seu papel determinado pela Constituição de 1988, aos títulos que possuía em
carteira e a novos instrumentos que criaria para essa finalidade, que teriam também
impactos sobre os custos da dívida contratada.

6.3. Swaps cambiais e a nova estrutura da dívida mobiliária federal: 2002-2006

Tendo perdido o poder de emitir títulos da dívida pública, a partir de 2002, o Banco
Central passou a lançar mão, neste ano, para os objetivos de política monetária e de
controle da volatilidade do câmbio, das operações conhecidas como swap cambial. O
objetivo dessa operação, que consiste basicamente na troca de rentabilidades futuras entre
ativos financeiros, foi o de oferecer mecanismo de proteção (hedge) aos investidores
contra eventuais desvalorizações/valorizações da moeda nacional ou de acomodar o
investimento especulativo, reduzindo ou fortalecendo a demanda por moeda estrangeira,
visando atenuar a volatilidade cambial.

No contrato de swap cambial firmado, com valor e prazos definidos, um dos


participantes aposta na variação do câmbio e outro na variação dos juros (CDI-over), sendo
os contratos registrados na BM&F. No vencimento do contrato, se a variação cambial mais
o cupom cambial (que é definido em função das expectativas de variação da taxa cambial e
da taxa de juros) superar a variação do CDI-over, quem apostou no dólar recebe a
diferença de quem apostou nos juros e vice-versa.

De acordo com a situação das reservas externas, tendências e oscilações do


câmbio, o Banco Central passou a operar, a partir de 2002, nas duas direções para reduzir
sua volatilidade. No caso de aumento da demanda por dólar, que sempre se acentua
quando surgem incertezas sobre a disponibilidade, pelo país, de reservas em moeda
estrangeira, provocando a desvalorização da moeda nacional e pressões sobre o nível de
preços, o Banco Central passou a ofertar contratos de swaps em que assume os custos com
títulos com correção cambial e recebe títulos com variação dos juros internos, o que
corresponde, na prática, à venda de divisas para atender demandas de hedge ou de
especulação. No caso contrário, conhecido como swap cambial reverso, o Banco passou a
receber a variação do câmbio, ficando o investidor (o mercado) com a variação dos juros, o
que corresponde, também na prática, à compra de moeda estrangeira, pelo governo,
visando controlar/atenuar a valorização (quando considerada excessiva) da moeda
nacional.

No tocante à composição da dívida mobiliária federal interna, por tipo de


indexador, a Tabela 4.4 fornece uma boa idéia de como a conjuntura econômica afeta sua
evolução, interferindo nas expectativas dos agentes econômicos e na sua preferência por
determinados títulos, em função dos riscos que representam e dos hedges que propiciam, e
como o governo, nestes casos principalmente, torna-se impotente para escolher/determinar
a melhor composição da dívida que seria mais favorável em termos de custos, perfil e da
maior eficácia deste instrumento para os objetivos da política econômica, mantendo-se
prisioneiro do mercado.
221

Assim como muitas aves e peixes migram em determinadas estações do ano em


busca de melhores condições de sobrevivência e de reprodução, também o capital
financeiro busca portos mais seguros para fugir de ambientes marcados por incertezas,
visando evitar prejuízos e assegurar rentabilidade. Não importa se isso impõe custos mais
elevados para o governo na política de administração da dívida e enfraquece os
instrumentos de política monetária, mas sim que o capital está procurando
defender/proteger sua riqueza de eventuais perdas que podem ocorrer neste cenário e/ou
dos riscos de default da dívida pública. Nestes casos, não há como o governo escolher o
que poderia ser a melhor composição da dívida, em termos de prazos, juros, eficácia
deste instrumento, tendo de se submeter às demandas e exigências do mercado para
continuar garantindo financiamento de suas necessidades de recursos e para evitar o
agravamento da situação.

Tabela 4.4.
Composição da Dívida Mobiliária Federal Interna, fora do BC, por indexador
- final de período –
Indexador 1996 2000 2002 2003 2005 2006 2007
Prefixado 61,0 14,8 2,2 12,5 27,9 36,1 37,3
Câmbio 9,4 22,3 22,4 10,8 2,7 1,3 0,9
Selic 18,6 52,2 60,8 61,4 51,8 37,8 33,4
Índice de Preços 1,8 5,6 12,5 13,5 15,5 22,5 26,3
Outros 9,2 5,1 2,1 1,8 2,1 2,2 2,1
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Total R$ milhões 176.211 510.698 556.066 701.999 972.847 1.093,5 1.224,8
(% do PIB) 21,8 41,3 35,7 42,0 45,4 45,8 45,5
Fonte: Banco Central do Brasil. Relatórios Anuais 1999, 2003, 2005, 2006 e 2007.

A composição da dívida mobiliária federal interna, contida na Tabela 4.4, para o


período 1996-2007, é emblemática dessa situação. No primeiro ano, o cenário de relativa
calmaria que se seguiu após a crise da economia mexicana, em 1995, aliada ao sucesso
alcançado pelo Plano Real nos primeiros anos, aumentaram a confiança dos agentes
econômicos na economia brasileira, o que se refletiu, também, na composição da dívida,
com os títulos prefixados respondendo por mais de 60% do total que se encontrava em
mãos do mercado, e apenas cerca de 30% corrigidos pelo câmbio, taxa de juros over/Selic
e índices de preços. Essa situação começou a mudar – e muito rapidamente – com a crise
financeira que se abateu sobre os países asiáticos, no segundo semestre de 1997, a qual
evidenciou os riscos de default nas economias emergentes, dando início a uma migração
dos papéis prefixados, que sinalizam maior confiança na política econômica e nos rumos
da economia, para papéis de menor risco (protegidos contra a inflação), como os
corrigidos pelos juros ou índices de preços, ou que garantem hedge, proteção contra
eventuais desvalorizações da moeda nacional, como os que contam com cláusula de
correção cambial.

A moratória da economia russa de agosto de 1998, seguida do colapso do Plano


Real, em janeiro de1999, aceleraram ainda mais essa migração e, já no final de 1999,
havia se modificado radicalmente a composição da dívida mobiliária federal, por
indexadores. Neste ano, cerca de 85% dos títulos se encontravam atrelados ao câmbio
(24%) e aos juros over/Selic (61%) e apenas 9,2% eram prefixados. Uma composição que
não somente traduzia a desconfiança dos agentes econômicos sobre a política econômica e
sobre os rumos da economia, como na capacidade do governo brasileiro de honrar seus
222

compromissos, refletidas no aumento do risco soberano do país.

Este quadro se manteve sem muitas alterações até 2002, diante de um cenário
internacional marcado por agudas e seguidas crises (crise da economia argentina,
desaceleração do crescimento da economia norte-americana, ataques terroristas nos EUA,
em 2002, entre outras) e do temor despertado, no Brasil, em 2002, da vitória do candidato
da oposição às eleições presidenciais, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos
Trabalhadores (PT), que poderia mudar radicalmente a política econômica, dando início a
um processo de quebra de contratos e de desvalorização da dívida, o que terminou não
ocorrendo. Neste ano, o risco-país chegou a atingir 2.400 pontos, assistiu-se a uma forte
fuga de capitais e o Brasil teve de prorrogar, às pressas, com a anuência dos principais
candidatos, o acordo com o FMI até o final de 2003 para evitar o agravamento da situação.
Refletindo este cenário de instabilidade e alta volatilidade do câmbio, os títulos da dívida
mobiliária federal atrelados ao câmbio, aos juros over/Selic e a índices de preços, saltaram
para 96%, enquanto os prefixados viram sua participação reduzida a meros 2,2%, como
mostra a Tabela 4.4. Nessa situação, à política monetária restava apenas acompanhar e
sancionar os movimentos e exigências do mercado.

A partir de 2003, tendo o governo que assumiu o comando do país se mostrado em


perfeita sintonia com a política econômica que vinha sendo anteriormente implementada e
tornado-se confiável para o mercado, os temores de choques e eventuais “calotes” da
dívida foram se desfazendo gradualmente, com o risco-país entrando em trajetória de
queda, abrindo espaço para uma nova etapa de melhoria na composição da dívida. Outros
fatores também contribuiriam para isso.

O colapso do Plano Real levou o governo, desde janeiro de 1999, ao abandono do


câmbio semifixo e à sua substituição pelo câmbio flutuante, provocando uma expressiva
desvalorização da moeda nacional, o que permitiu dar início à reversão dos elevados
déficits na balança comercial do país e à sua transformação em crescentes superávits,
reduzindo os desequilíbrios em conta-corrente e o grau de vulnerabilidade externa da
economia brasileira.

Por outro lado, passadas as intempéries que marcaram o mundo até 2002, os ventos
que açoitaram a economia internacional perderam força e essa reingressou numa trajetória
de calmaria e de crescimento, capitaneado por políticas expansionistas dos EUA, como
desdobramento dos ataques terroristas de 11 de setembro e da Guerra do Iraque, e pela
formidável expansão da economia chinesa, contribuindo para catapultar preços e
quantidades das commodities e impulsionar as exportações de países como o Brasil,
melhorando os resultados de suas contas externas.

Sem crises à vista, a aversão global ao risco declinou e os investidores externos,


num cenário de abundância da liquidez internacional, voltaram a intensificar as aplicações
nas economias emergentes, especialmente nas que viram o risco-país declinar
expressivamente e cuja política econômica tornara-se crível, ajustada às novas exigências
do mercado financeiro e do capitalismo globalizado, caso, entre outros, do Brasil.

Com a geração de elevados e crescentes superávits na balança comercial e, a partir


de 2003, também na de transações correntes, juntamente com a recomposição e aumento
expressivo das reservas internacionais, o país deu início ao processo de redução do
endividamento e de sua vulnerabilidade externa, o que lhe garantiu continuar sendo
223

premiado pelas agências de rating, por seu bom comportamento, com consecutivas quedas
do risco-país, assegurando, num processo auto-alimentador, a continuidade do fluxo de
recursos externos. Ao mesmo tempo, a partir deste ano, começou, com este cenário mais
favorável, a reduzir o grau de exposição da dívida mobiliária ao câmbio, promovendo sua
troca por outros indexadores ou substituindo-a por contratos de swaps cambiais.

Os dados contidos na Tabela 4.4 registram novamente a ocorrência de uma


mudança radical na estrutura e composição da dívida pública entre 2002 e 2007. A dívida
atrelada ao câmbio caiu rapidamente, tendo sido praticamente extinta em 2007, quando
representou apenas 0,9% de seu total. Com a maior confiança dos investidores no país,
assistiu-se a uma migração dessa e, em menor proporção, da dívida corrigida pelos juros
Selic, que caiu de 61% para 33,4% entre 2002 e 2007, para a dívida prefixada, que
avançou sua participação de 2,2% para 37,3%. Já os títulos corrigidos por índices de
preços (IGP-M, IGP-DI e IPCA) viram sua participação saltar de 5,6% para 26,3% neste
mesmo período.

Costuma-se argumentar que, do ponto de vista dos custos que representa para o
governo, uma estrutura não pode ser considerada boa ou ruim em relação a outra se não
forem considerados os ativos e seus respectivos indexadores, que aquele possui, em
termos de reservas estrangeiras, créditos a receber, empréstimos realizados, entre outros.
Deste ponto de vista, é um argumento lógico, como colocado no trabalho da Câmara dos
Deputados (2005:63) sobre a dívida pública: “... ter uma dívida indexada ao câmbio não
[torna] as contas públicas mais vulneráveis a movimentos da taxa cambial se o governo
também [possuir], ao mesmo tempo, ativos cujo valor também [varia] com a relação de
troca entre a moeda estrangeira e o Real.” E, mais à frente, de que “o mesmo raciocínio se
aplica aos outros indexadores da dívida.” O grande problema reside, contudo, nessa
equivalência.

O mesmo trabalho (Câmara dos Deputados, 2005:63-4) apresenta o nível de


descasamento entre os ativos e passivos do governo federal, por indexadores, para os anos
de 2003 e 2004. Apenas no caso da correção por Índices de Preços, o governo apresentava
um ativo maior do que o passivo, estimado em torno de R$ 225 bilhões, indicando que,
neste caso, não haveria pressões de custos adicionais com a migração para títulos com este
indexador, embora no caso de “uma inflação menor do que a esperada haveria um efeito
líquido negativo sobre a situação patrimonial do governo.” No caso dos demais
indexadores, era considerável o descasamento existente entre ativos e passivos,
desfavorável para o governo: apesar da melhoria ocorrida com a redução do grau de
exposição da dívida ao câmbio, o passivo superava o ativo, no caso deste indexador, em
R$ 226 bilhões, em 2004; o da dívida corrigida pelos juros Selic, em R$ 489 bilhões,
indicando piora progressiva; e o dos títulos prefixados, em R$ 191 bilhões. O
descasamento líquido entre ativos e passivos alcançou, neste ano, um valor de R$ 673
bilhões, superando os R$ 575 bilhões do ano anterior, indicador de maior deterioração
deste quadro.

Além do descasamento entre os indexadores dos ativos e passivos, outra questão


que deve ser considerada na avaliação da capacidade do governo de honrar seus
compromissos diz respeito aos seus prazos de vencimento. Isso é importante porque,
mesmo na hipótese em que detenha ativos que lhe permita pagar a dívida, estes podem não
estar disponíveis ou serem utilizados para essa finalidade, já que seu vencimento se dará
algum tempo depois, tornando o governo, na prática, ilíquido, e obrigando-o à contratação
224

de nova dívida ou à sua rolagem.

O mesmo trabalho da Câmara dos Deputados (2005:64-5) apresenta também este


descasamento de prazos entre os vencimentos da dívida mobiliária federal interna e os
ativos do governo federal para os anos de 2003 e 2004. Ali se constata a existência de um
grande descasamento de prazos de vencimento entre todos os indexadores da dívida e os
que corrigem os ativos governamentais, indicando, como nele se coloca, um “grande
potencial de instabilidade.” Mesmo com a melhoria registrada em alguns desses
indexadores – câmbio, índice de preços e prefixados – pela política de alongamento dos
prazos e redução da exposição da dívida, notadamente no caso do câmbio, estes ganhos
teriam sido mais do que neutralizados, no biênio, pela ampliação do descasamento da
dívida corrigida pela SELIC, que aumentou sua participação no dívida total, mas viu
encurtar-se, consideravelmente, seus prazos de vencimento de 30,8 para 15,5 meses.
Como resultado, o descasamento entre esses prazos dos ativos e passivos aumentou, para o
conjunto dos indexadores, de 108,9 para 116,9 meses de 2003 para 2004.

Para o que nos interessa, o importante a reter de toda essa discussão é que a alta
sensibilidade da dívida mobiliária aos movimentos do câmbio, dos juros e da inflação,
variáveis sobre as quais o governo não dispõe de controle, torna uma incógnita seus
custos, que são determinados por sua composição e prazos de vencimento, os quais
definem sua remuneração, à luz das expectativas dos agentes econômicos sobre a
condução da política econômica, os rumos da economia e a capacidade de solvência do
governo. Se em períodos de calmaria e confiança, o governo pode até conseguir algum
sucesso em impor ao mercado a melhor estrutura da dívida que lhe seja mais favorável,
em termos de prazos, custos e de eficácia do instrumento, isso não representa uma norma,
notadamente em países, como o Brasil, que apresenta um elevado grau de vulnerabilidade
fiscal e, apesar, de reduzida nos últimos anos, também externa.

Considerando essas características da dívida mobiliária interna, a qual correspondia


a quase 50% do PIB, em 2007, procura-se, em seguida, avaliar a trajetória da dívida
líquida do setor público, como proporção do PIB, cujo controle, especialmente a partir de
1999, adquiriu centralidade na política fiscal para garantir sua sustentabilidade, tornando-
se um compromisso sagrado, que passou a subordinar todas as demais funções do Estado.
O objetivo é o de avaliar se os resultados que têm sido alcançados com essa política têm
compensado os custos que representa para a economia e a sociedade e em que medida
abrem-se, com ela, perspectivas de melhores dias para o país. Ou ainda se, devido ao fato
de não se dispor de controle sobre seus principais determinantes, pode-se estar travando
uma luta que não representa uma garantia para a abertura das portas para o seu ingresso no
tão desejado paraíso da prosperidade econômica.

7. A EVOLUÇÃO DA DÍVIDA LÍQUIDA DO SETOR PÚBLICO NO BRASIL,


COMO PROPORÇÃO DO PIB

No Brasil, desde 1986, o conceito utilizado para a mensuração da dívida pública, em


conjunto, é o de Dívida Líquida do Setor Público (DLSP). Para sua medição deduz-se
dos passivos financeiros do setor público os ativos financeiros de sua propriedade, como
os créditos junto ao setor privado, reservas externas etc. Além disso, para evitar erros de
dupla contagem, depura-se, das posições intragoverno, operações credoras/devedoras
que magnificariam indevidamente seu montante. O conceito é abrangente, incluindo, na
sua medição, a situação do Governo Central – Governo Federal e banco Central -, dos
225

Estados e Municípios e das Empresas Estatais, e a dívida de origem interna e externa de


cada um desses segmentos.

A tabela 5.5 mostra a evolução da DLSP/PIB no Brasil desde 1981. Chama-se a


atenção para o fato de não ser possível entender e explicar o seu comportamento
dissociado: a) do comportamento das Necessidades de Financiamento do Setor Público
(NFSP), também conhecidas como uma medida de “déficit público”, por ser essa uma
das principais causas de sua variação; b) das variáveis que afetam o valor de seu
estoque, como as que dizem respeito às alterações ocorridas nas taxas de juros e na
política cambial; e c) do Produto Interno Bruto (PIB) que ocupa, naquela relação, o
papel de denominador.

Feitas essas observações, constata-se, na análise dos números ali constantes,


uma acentuada elevação da relação DLSP/PIB entre os anos de 1981 e 1984, quando
essa aumenta de cerca de 27% no primeiro ano para mais de 50% no último. Medida,
assim, em relação ao PIB, a dívida líquida mais do que dobra no prazo de apenas três
anos. Um resultado que parece surpreendente, à primeira vista, porque apesar dos
déficits mais elevados nos primeiros anos da década, o forte – mas não estrutural –
ajuste fiscal realizado pelo então Ministro do Planejamento, à época, Delfim Netto,
terminaria reduzindo-o, no conceito operacional, para 2,9% do PIB em 1984 – o menor
nível de toda a década. Por outro lado, entretanto, devido à implementação de uma
deliberada e voluntária política recessiva no biênio 1981-1982, que passou a ser
monitorada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) a partir de 1983, o PIB contraiu-
se, em termos reais, só retornando a uma trajetória de crescimento positivo no ano
seguinte, liderado pelo aumento expressivo das exportações brasileiras. Essa contração
do denominador (do PIB) atuaria, portanto, de forma adversa para elevar a relação
DLSP/PIB. Mas não foi só. Também a política cambial implementada no período, que
promoveu a maxidesvalorização de 30% da moeda nacional em fevereiro de 1983 e
aplicou, em seguida, índices de correção do câmbio que desconsideravam a inflação
externa, contribuiu, de forma ainda mais importante, para sua elevação, ao inchar os
passivos externos cotados em moeda nacional.

No período que se estende de 1985 a 1989, ocorre uma redução lenta, mas
praticamente contínua, da relação DLSP/PIB, com essa atingindo 41,0% nesse último
ano. Redução que ocorre num contexto de rápido e crescente aumento dos déficits
públicos provocados principalmente pela política irresponsável de gastos do governo
Sarney, quando este negociou – e conseguiu – a ampliação de seu mandato presidencial
de quatro para cinco anos. A redução da relação DLSP/PIB explica-se, nessa situação,
como apontam Giambiagi & Além (Giambiagi & Além, 1999:156): a) por um
expressivo crescimento do PIB nesses cinco anos, que conheceu uma variação real
acumulada de 24%; b) pelo aumento da receita de senhoriagem resultante dos planos de
estabilização implementados nesse período (Plano Cruzado, em 1986; Plano Bresser,
em 1987; e Plano Verão, em 1989); e c) por desvalorizações parciais promovidas na
dívida pública como resultado da mudança de seus indexadores com a implementação
daqueles planos e por inevitáveis efeitos corrosivos da inflação provocados sobre o seu
estoque em situação de indexação imperfeita. A esses fatores, ainda se pode acrescentar
a política cambial desse período que, por vários e longos momentos, manteve o câmbio
sobrevalorizado, especialmente durante o Plano Cruzado e Verão, reduzindo, quando
cotados em moeda nacional, os passivos externos do país.
226

Entre 1990 e 1994, a relação DLSP/PIB mantém-se na trajetória de queda,


embora mais rápida e acentuada, atingindo 30% do PIB nesse último ano – o menor
desde 1981. Vários fatores contribuíram para isso, cabendo destacar: a) a desvalorização
da dívida mobiliária promovida pelo Plano Collor lançado no mês de março de 1990; b)
o forte – mas também não estrutural - ajuste fiscal implementado no período, com o
qual foram colhidos superávits tanto primário como operacionais nas contas públicas; c)
o avanço do programa de privatizações das empresas estatais, cujas receitas começaram
a ser destinadas para o abatimento do estoque da dívida; d) a continuidade da geração
expressiva de receitas de senhoriagem como decorrência do processo inflacionário; e e)
o acordo da dívida externa realizado nesse período, que propiciou desconto de seu valor
na sua reestruturação. 54 Com isso, apesar de um crescimento mais modesto do PIB no
período, a relação Dívida/PIB caminhou em direção aos níveis registrados no início da
década de 1980.

Passados os dois primeiros anos do lançamento do Plano Real, em julho de


1994, a relação DLSP/PIB retornou à trajetória de rápido crescimento, atingindo 45%
em 1999, um aumento, portanto, de cerca de 15 pontos percentuais do PIB em apenas
cinco anos. A favor da redução dessa relação, jogaram papel importante: a) o processo
de privatizações das empresas estatais, cuja aceleração gerou expressivas receitas
destinadas para o abatimento da dívida; b) o aumento progressivo – e firme – da carga
tributária, que atingiu cerca de 30% no final da década; e c) a redução dos gastos
públicos, principalmente os da área social. Em contrapartida, atuando em sentido
contrário, podem-se destacar as seguintes forças: a) o modesto crescimento do PIB no
período; b) a redução das receitas de senhoriagem com a redução da taxa inflacionária
para níveis rastejantes; c) a política monetária que, manejada como principal âncora do
Plano Real, ao manter nas nuvens as taxas de juros, encareceu pornograficamente os
custos da dívida e transformou-se na principal causa da geração de elevados déficits
públicos e de aumento do estoque da dívida mobiliária; e d) a incorporação ao seu
estoque de alguns “passivos ocultos” do setor público (conhecidos mais popularmente
como “esqueletos“), entre os quais, o mais importante, refere-se ao Fundo de
Compensação das Variações Salariais (FCVS).55

54
Para alguns desses pontos, ver o trabalho de Giambiagi & Além (1999:158/9)
55
O FCVS (Fundo de Compensação das Variações Salariais) foi criado pela Resolução n. 25, de
16/06/1967, do Conselho de Administração do extinto Banco Nacional de Habitação (BNH) com o
objetivo principal de garantir a quitação, junto aos agentes financeiros dos saldos devedores
remanescentes de contrato de financiamento habitacional, firmado com mutuários finais do Sistema
Financeiro de Habitação (SFH), em relação aos quais tenha havido, quando devida, contribuição ao
FCVS, o que era o caso da maioria desses contratos. Para isso, além do capital inicial com que foi
constituído, contaria com contribuições mensais dos mutuários e semestrais dos agentes financeiros, em
percentuais que incidiriam, respectivamente, sobre o valor das prestações da casa própria e dos saldos
imobiliários concedidos no âmbito do SFH. Criado originalmente, portanto, com o propósito de garantir o
equilíbrio financeiro dos contratos desses financiamentos, o FCVS foi sendo desvirtuado de sua
finalidade, à medida que o governo foi concedendo, ao longo do tempo, sucessivos subsídios aos
mutuários do SFH, na forma de subcorreções das prestações da casa própria, e assumindo, junto às
instituições financeiras responsáveis pela concessão desse financiamento, a responsabilidade pelo custo
que representavam, que nele foram se acumulando sem cobertura e pagamento e transformando-se em
créditos dessas instituições contra o Tesouro Nacional. Em 1996, a Medida Provisória n. 1529, convertida
na Lei 10.150, de 21/12/2000, autorizou à União a novação dessas dívidas e o seu pagamento no prazo de
30 anos, contados a partir de 01/01/1997, com oito anos de carência para o pagamento dos juros e doze
anos para o pagamento do principal. Balanço atuarial do FCVS, em 31/12/2005, indicava uma dívida
potencial de R$ 76,73 bilhões originária de contratos encerrados e em curso, o que revela bem a dimensão
deste passivo do governo (“esqueleto”) e a importância que representa na situação de endividamento do
Estado.
227

Com a mudança no modelo de estabilização em 1999, por força do acordo com o


FMI e com a adesão incondicional do país ao novo paradigma teórico favorável ao
capital financeiro, a política fiscal ganhou centralidade, com o país comprometendo-se
com a geração de superávits primários fiscais elevados e crescentes para garantir o
pagamento dos juros da dívida dos credores do Estado, visando evitar o seu crescimento
como proporção do PIB. Todavia, apesar do grande esforço fiscal que passou a ser
realizado a partir deste ano, com a obtenção de superávits fiscais que ultrapassaram o
nível de 4% do PIB, nos anos de 2004 e 2005, nem assim a relação Dívida/PIB
conseguiu manter-se numa trajetória de queda consistente, tendo, pelo contrário,
aumentado cerca de 8 pontos percentuais do PIB entre 1999 e 2003, recuando, a partir
de 2004, pela conjunção de uma série de fatores favoráveis: a) a manutenção, em torno
de 4% do PIB, dos superávits primários gerados, mesmo após a redução de parte das
despesas com investimentos (PPI), que passou a ser feita a partir de 2005; b) o mais
expressivo crescimento econômico registrado no período 2004-2007, beneficiado pela
bonança da economia internacional; e c) a valorização excessiva da moeda nacional em
relação ao dólar, o que reduziu o valor da dívida externa quando cotada em reais.

Tabela 5.5
Dívida Líquida do Setor Público (DLSP)
1981-2005 (em % do PIB)
ANO Governo Central* Estados e Empresas Estatais Total
Municípios
1981 7,2 4,2 15,3 26,7
1982 8,8 5,4 18,2 32,4
1983 19,1 6,4 25,9 51,4
1984 21,6 7,0 26,9 55,5
1985 18,7 7,0 26,3 52,0
1986 19,9 6,5 22,7 49,1
1987 19,9 6,8 22,9 49,6
1988 18,9 6,6 21,5 47,0
1989 19,6 5,8 14,8 40,2
1990 16,9 6,6 17,5 41,0
1991 12,8 7,2 18,1 38,1
1992 12,1 9,2 15,7 37,1
1993 9,6 9,2 13,8 32,6
1994 12,9 10,0 7,1 30,0
1995 12,1 9,7 6,1 28,0
1996 14,7 10,7 5,4 30,7
1997 17,3 12,0 2,6 31,8
1998 23,3 13,2 2,4 38,9
1999 27,3 14,7 2,5 44,5
2000 28,5 15,0 2,0 45,5
2001 30,2 16,8 1,4 48,4
2002 32,1 16,8 1,6 50,5
2003 33,2 18,2 1,0 52,4
2004 29,5 17,2 0,2 47,0
2005 30,8 16,2 -0,5 46,5
2006 30,8 15,2 -1,4 44,7
2007 30,3 13,8 -1,5 42,7
Fontes: 1) para 1981-1990: Giambiagi, F. A política fiscal do Governo Lula em perspectiva histórica: qual é o limite
para o aumento do gasto público? Rio de Janeiro, Ipea: TD 1169, março de 2006; 2) para 1991-2007: Ipeadata
(acesso em 20/03/2008), já com os índices revisados de acordo com a nova metodologia de cálculo do PIB pelo
IBGE.
(*) Inclui base monetária como parte da dívida interna

Mesmo com essa melhoria, apenas no segundo mandato do governo Luiz Inácio
Lula da Silva (2007-2010) começou-se a, controladamente, flexibilizar a política fiscal e
228

a direcionar alguns de seus frutos para projetos estratégicos de longo prazo, visando
remover alguns pontos de estrangulamento da economia brasileira no campo na infra-
estrutura econômica, mas sem colocar em risco o compromisso com a geração dos
superávits primários. Além da retirada de seu cálculo das despesas com investimentos
públicos, a partir de 2005, o governo lançaria, em 2007, o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), contemplando novos investimentos em diversas áreas e também o
Programa de Desenvolvimento Produtivo (PD), com a mesma finalidade. Contudo, a
crise financeira que eclodiu em 2007/2008 nos EUA e se espalhou pelo resto do mundo,
deve esfriar o ímpeto destes projetos de longo prazo, podendo também, com a
desaceleração econômica esperada para o Brasil nos próximos anos, interromper os
ganhos que vinham sendo obtidos na melhoria da relação dívida/PIB.

Desse comportamento da relação dívida/PIB ao longo deste período fica claro,


portanto, que o superávit primário representa apenas uma das variáveis que influenciam a
sua trajetória sobre a qual o governo detém controle. As demais, como as taxas de juros, o
câmbio e mesmo o PIB, para não falar de passivos contingentes, são exógenas à política
econômica, podendo minar os resultados gerados com o superávit primário e não garantir
quedas consistentes da dívida. Ao tornar-se credor líquido do mundo a partir do início de
2008, (quando as reservas externas tornaram-se superiores às obrigações do país com o
exterior), o Brasil conseguiu, pelo menos, romper com a contaminação que o desequilíbrio
do câmbio representava para o montante de sua dívida externa, numa situação de
desvalorização da moeda nacional, passando até a se beneficiar deste movimento. Mas
continuam “soltas” no modelo outras variáveis, como os juros, o comportamento do
produto, os passivos contingentes, que podem frustrar ganhos em sua redução mesmo que
a política fiscal esteja sendo implementada de acordo com o figurino exigido pelo
pensamento dominante.

Quer-se dizer, com isso, relembrando a fórmula sagrada para se chegar ao paraíso,
apresentada nas seções anteriores, que o superávit primário, embora necessário, não é
suficiente por si, para garantir a abertura de suas portas, mas apenas para permitir ao país a
ele candidatar-se. Para isso, terá de contar com condições extremamente favoráveis do
cenário externo e interno – como no período 2003-2007 -, o que não é comum, para que os
ganhos obtidos não se esfumem diante de novas crises, exigindo, como no caso de Sísifo,
que todo trabalho tenha de ser permanentemente reiniciado.

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