Você está na página 1de 5

GOODWILL, QUAL O TAMANHO DA

CONTA?

Ainda na quarentena e perplexo com a crise econômica que se estabelece,


continuo a leitura das demonstrações financeiras de 2019 com um olhar mais
atento para um dos Ativos mais instáveis em tempos de vacas magras e
considerado como uma das linhas de balanço mais cinzentas. Este ativo é o
goodwill ou ágio por expectativa de rentabilidade futura (“goodwill”) para o
qual, faço algumas considerações às informações publicadas nas
demonstrações financeiras das empresas incluídas no IBOVESPA*.

De uma forma geral e um pouco simplista, em uma combinação de negócios


como uma aquisição de controle de outra companhia, a empresa adquirente
reconhece o goodwill pela diferença entre a contraprestação transferida para a
aquisição do controle da adquirida e o valor justo dos ativos identificáveis
adquiridos líquido dos passivos assumidos. Na prática, o adquirente incorpora
ao goodwill o valor de um ativo intangível adquirido que não seja identificável
na data da aquisição.

A combinação ou um simples somatório dos valores reportados como goodwill


pelas empresas não financeiras incluídas no IBOVESPA*, e calculados com base
nas demonstrações financeiras preparadas de acordo com o BR GAAP e IFRS,
totalizou em 31 de dezembro de 2019 o montante de R$ 201 bilhões atingindo
a surpreendente proporção percentual de 188% em relação ao somatório dos
correspondentes lucros apurados no exercício findo naquela data por esse
grupo de empresas no valor de R$ 107 bilhões. Confesso que me surpreendi
com a relevância deste ativo intangível pois, o estoque de goodwill nos
balanços é quase duas vezes o lucro anual de todas as empresas não financeiras
do IBOVESPA*. Isso sem contar com o saldo de goodwill das empresas
financeiras apresentado em suas demonstrações contábeis de acordo com as
IFRS. Os bancos Bradesco, Santander e a Holding financeira do Itaú,
apresentaram em 2019 o saldo total de goodwill no montante de R$ 45
bilhões.

É de se destacar que de acordo com as práticas contábeis adotadas no Brasil e


com as IFRS, o goodwill não deve ser amortizado mas, sim ter seu valor contábil
submetido ao teste de recuperabilidade de acordo com o Pronunciamento
Técnico CPC 01 (R1) – Redução ao Valor Recuperável dos Ativos (IAS 36).

A unidade geradora de caixa à qual o goodwill tiver sido alocado deve ser
testada anualmente para verificar a necessidade de redução ao valor
recuperável e sempre que houver indicação de que a unidade possa estar
desvalorizada, comparando-se seu valor contábil, incluindo o próprio goodwill,
com o valor recuperável da unidade. Se o valor contábil da unidade ultrapassar
seu valor recuperável, a entidade deve reconhecer a perda por desvalorização.

E aqui reside um dos grandes desafios que as empresas estão enfrentando na


elaboração de seus balanços deste ano de 2020 a começar pelas informações
trimestrais (ITRs). Evidentemente considerando a magnitude da recessão global
e brasileira muito preliminarmente já estimada e as mudanças de perfil de
consumo esperadas, não resta dúvida quanto a presente indicação que
determinadas unidades geradoras de caixas das empresas possam estar
desvalorizadas e assim, não apenas o goodwill registrado mas, outros
intangíveis e demais ativos não financeiros deverão ser objeto de teste para
verificar a necessidade de redução ao seus valores recuperáveis.
Consequentemente, uma perda por desvalorização deve ser reconhecida para
uma unidade geradora de caixa se, e somente se, o valor recuperável da
unidade for menor do que o seu valor contábil. A perda por desvalorização
deve ser alocada para reduzir o valor contábil dos ativos da unidade
considerando uma determinada ordem. De acordo com as normas contábeis, a
alocação dessa perda deve primeiramente, reduzir o valor contábil de
qualquer goodwill eventualmente existente.

Assim, o goodwill dado que não é um ativo identificado e que podemos


considerar como algo quase que etéreo é a linha de frente ou a infantaria dos
ativos não financeiros. Portanto, é a primeira fileira a cair quando as coisas não
ocorrem tão bem quanto o esperado. E de acordo com as normas contábeis, a
perda reconhecida por desvalorização do goodwill não deve ser revertida em
período subsequente independentemente de novos cenários econômicos.

Na realidade, podemos dizer que a própria definição ofertada pelo


pronunciamento técnico CPC 15 (R1) / IFRS 3 para o goodwill apurado em uma
combinação de negócios já é suficientemente imprecisa ou melhor, de difícil
assimilação na prática do dia a dia das empresas e do mercado de capitais. Pois,
o goodwill acaba sendo um resíduo da parcela do preço pago pelo controle de
uma companhia ou negócio cuja percepção de valor, ao longo do tempo, acaba
por ficar cada vez menos visível para os usuários das demonstrações
financeiras. As práticas contábeis anteriores a implementação do IFRS no Brasil
previam a amortização do ágio, calculado de forma diversa, o que de certa
forma, era um endereçamento objetivo para a realização contábil do
ativo. Porém, com plena uniformização com as práticas internacionais em 2010,
o goodwill deixou de ser amortizado e a metodologia do teste mínimo anual de
recuperação passa a ser o norte. No entanto, a realidade é que de fato os testes
de impairment carregam muitas premissas subjetivas tais como: taxa de
crescimento de receitas, rentabilidade, taxa de desconto e outras
particularidades.

Essa subjetividade também acarreta um esforço maior dos auditores


independentes. Em 31 de dezembro de 2019, 46 (quarenta e seis) empresas
não financeiras incluídas no IBOVESPA apresentaram algum saldo de goodwill
em suas demonstrações contábeis. Dessas, o goodwill foi considerado como
PAA (principal assunto de auditoria) em 25 (vinte e cinco) relatórios emitidos
pelos respectivos auditores independentes, seja pela sua mensuração ou em
função do teste de recuperabilidade efetuado. O que mostra que o assunto é
para lá de espinhoso e por que não dizer, muito controverso.

O IASB publicou um Discussion Paper quanto a possíveis melhorias a serem


divulgadas pelas companhias relativos a aquisição de negócios bem como a
eventuais modificações na contabilização do goodwill. Uma das questões em
estudo e discussão é quanto a reintrodução da amortização do
goodwill. Alguns membros do IASB que advogam o retorno da amortização
apontam as seguintes fundamentações: (i) a impossibilidade de se estabelecer
um teste de impairment que na prática possa reconhecer de maneira
tempestiva as perdas com imparidade; (ii) os saldos contábeis de goodwill
apurados e apresentados pelas empresas vem aumentando e a amortização do
ativo seria necessário para a manutenção da integridade e reputação dos
relatórios financeiros; e (iii) o goodwill é uma ativo que é consumido com vida
útil finita e a sua amortização é a única maneira de refletir esse consumo. No
entanto, até o momento, a conclusão embora não unanime do IASB aponta
para a manutenção da metodologia de teste anual de impairment sem
considerar a amortização. De qualquer forma, o Discussion Paper deverá colher
sugestões públicas até 15 de setembro de 2020. Evidentemente este Discussion
Paper foi elaborado antes desta crise de saúde e econômica mundial a qual,
deve acarretar no reconhecimentos de severas perdas com imparidade do
goodwill.

O fato é que o teste de imparidade para o goodwill é um requerimento de


acordo com as práticas contábeis vigentes em 2020 e considerando que ele não
é amortizado, o valor deste ativo intangível vem se acumulando de maneira
crescente nos balanços das empresas brasileiras há pelo menos dez anos. Isso
porque diversas aquisições que geraram goodwill foram efetuadas pelas
companhias brasileiras desde 2010 quando da implementação das
IFRS. Adicionalmente, quando da implementação do IFRS em 2010 no Brasil, os
saldos líquidos de ágio já existentes naquela época foram, de uma forma geral,
mantidos nos balanços sem amortização e desde então, engrossam esse grande
estoque de goodwill dos balanços das empresas.

Neste momento, diante da enorme crise econômica, os resultados das empresas


que deverão ser prejudicados pela da redução de receitas e pelo aumento da
inadimplência também devem sofrer muito com o impairment dos ativos não
financeiros em especial, o goodwill. Para aumentar a pressão sobre as empresas,
o reconhecimento de perdas com impairment afeta o EBTIDA “oficial” das
companhias embora excluído do EBTIDA “ajustado”. Dependendo das cláusulas
de covenants constantes dos contratos de financiamentos, eventuais resultados
negativos podem gerar penalizações ou multas financeiras.

O potencial do eventual estrago é significativo. E com essa crise cuja


volatilidade dos balanços possa se agravar com a imparidade dos saldos de
goodwill, talvez, os formuladores das práticas contábeis no IASB possam
reconsiderar sua posição preliminar contra a amortização do goodwill deixando
de lado um pouco do purismo acadêmico e levando em consideração as
necessidades do mercado. Uma ótima oportunidade de tirar o bode da sala.
A conferir.

(*) Do total das setenta empresas do índice IBOVESPA, este levantamento


considerou sessenta e oito não incluindo, portanto, as informações contábeis da
CVC e da EQUATORIAL cuja divulgação para 2019 não foi efetuada até a
presente.

José Luiz de Souza Gurgel

17 de abril de 2020

Você também pode gostar