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A morte do artista?

Uma perspectiva
marxista sobre arte gerada por IA
Joe Attard
03 de março de 2023

"Inteligência Artificial (do inglês AI) descobrindo a arte" / Gerado pelo autor usando DALL-E-2

O ano é 2018. No prestigioso leilão de belas artes da Christie na cidade de Nova York, um
retrato borrado de um cavalheiro de terno está pendurado ao lado de uma gravura de Andy
Warhol e uma escultura de bronze de Roy Lichtenstein. É intitulado: 'Edmond de Belamy, de La
Famille de Belamy'. Um licitante anônimo por telefone compra o retrato por US $432.500,
contra uma estimativa inicial de US $7.000 a US $10.000. Na parte inferior do quadro, em vez
de uma assinatura, há uma linha de código. Não foi produzido por mãos humanas, mas por
uma inteligência artificial (IA).

A IA em questão é propriedade do estúdio criativo ‘Obvious’, com sede em Paris, embora tenha
sido fortemente baseada em software de código aberto projetado pelo programador Robbie
Barrat, de 19 anos. Anunciada como "o futuro" pela Obvious e pela imprensa, essa venda
decisiva deu o tom para um debate sobre a arte gerada por IA que tem ocorrido desde então.

‘Edmond de Belamy, de La Famille de Belamy’ / Imagem: uso justo

Com as IAs generativas atingindo novos níveis de sofisticação, algumas pessoas declaram que
devem ser consideradas artistas por si mesmas. Isso inclui entusiastas de tecnologia (não por
coincidência, uma multidão semelhante a evangelistas de criptomoeda e NFTs, com os quais a
arte de IA agora está sendo combinada), juntamente com um número crescente de críticos de
arte e acadêmicos. E, como o exemplo acima demonstra, há compradores dispostos a pagar
pelas probabilidades da última moda digital. Além disso, várias grandes empresas já investiram
bilhões para capturar esse novo mercado em expansão.

Em contraste, muitos artistas reclamam que as máquinas estão roubando seu trabalho, sem
crédito ou pagamento, e temem se tornar obsoletos. Eles hesitam em competir com IAs em um
terreno que, até agora, era considerado território exclusivo dos seres humanos. Um tweet viral
de 2022 do artista Genel Jumalon, comentando sobre uma obra de arte gerada por IA
ganhando ouro em uma competição da Colorado State Fair, capturou esse clima:

“Em resumo — Alguém entrou em um concurso de arte com uma peça gerada por IA e
ganhou o primeiro prêmio. Sim, isso é uma merda.
Este ano, o famoso músico australiano Nick Cave reagiu com nojo a letras produzidas pelo
chatbot ChatGPT em seu estilo:

“Basta dizer que não sinto… entusiasmo em relação a esta tecnologia”, escreveu ele. “Como
nos move em direção a um futuro utópico, ou talvez, à nossa destruição total. Quem pode dizer
qual? A julgar por essa música 'no estilo de Nick Cave', porém, não parece bom ... O
apocalipse está a caminho. Essa música é uma merda.”

Apesar desta crítica dura, é inegável que o rápido avanço das IAs generativas é bastante
impressionante (ou alarmante, dependendo do seu ponto de vista). Mas os marxistas devem
adotar uma abordagem sóbria do que são, em última análise, meras ferramentas. Entendemos
que todos os novos valores são produto do trabalho físico ou mental, realizado por seres
humanos conscientes.

Essas IAs simplesmente produzem imagens com base na arte feita pelo homem com a qual as
alimentamos. Você obtém os melhores resultados deles dando-lhes um prompt (prompt é a
palavra usada para um comando via campo de busca - nota do tradutor ) anexado com: “… no estilo
de (por exemplo) Van Gogh”. Eles são imitadores, não inovadores. E sem os humanos criando
arte, eles não teriam nada para copiar. Além disso, a arte não é simplesmente um aglomerado
de imagens, sons, etc., mas também o produto de experiências vividas e relações sociais, nas
quais as máquinas não podem participar.
"Marx no estilo de Van Gogh" / Gerado pelo autor usando DALL-E-2

Dito isto, a hostilidade em relação a essas tecnologias reflete o fato de que as máquinas, que
deveriam libertar a humanidade do trabalho árduo, sob o capitalismo, em vez disso, esmagam
os trabalhadores e a pequena burguesia. Nas mãos de patrões exploradores, eles forçam as
pessoas a perder empregos e submetem a experiência e a engenhosidade humana ao ritmo
monótono da produção capitalista. Pode parecer que eles nos dominam, e não o contrário.
Como Karl Marx escreve em um brilhante fragmento dos Grundrisse:

“Não como com o instrumento, que o trabalhador anima e transforma em seu órgão
com sua habilidade e força, e cujo manejo depende, portanto, de seu virtuosismo. Pelo
contrário, é a máquina que possui habilidade e força no lugar do trabalhador, é ela própria o
virtuose, com alma própria nas leis mecânicas que agem através dela... A atividade do
trabalhador, reduzida a uma mera abstração da atividade, é determinada e regulada por todos
os lados pelo movimento da maquinaria, e não o contrário”.

Artistas artificiais?

Experimentos com arte gerada por computador remontam a décadas, mas uma série de
avanços avançaram no campo na última década. Em 2014 surgiram as Generative Adversarial
Networks (GANs), que envolvem um par de redes neurais competindo entre si para produzir
imagens que melhor se encaixem na solicitação.

Esta é a tecnologia que produziu ‘Edmond de Belamy’. Plataformas mais recentes, como
Stable Diffusion e DALL-E 2, são alimentadas por modelos de difusão: redes neurais treinadas
para fazer engenharia reversa de novas imagens a partir do ruído gaussiano, com base em um
enorme banco de dados de imagens existentes extraídas da Internet.

Um sistema chamado CLIP combina essas IAs com prompts de linguagem natural. Isso
significa que um usuário pode digitar uma palavra ou frase (por exemplo, ‘pato de banho de
borracha amarelo’) e a IA tentará criar uma imagem precisa de um pato de banho que não seja
uma cópia direta de qualquer imagem existente. Isso as torna amplamente utilizáveis sem
nenhum conhecimento de programação. Quanto mais elas são usadas, melhor elas se tornam.

E essas são apenas as IAs treinadas para gerar imagens (que serão o foco do presente artigo).
A última iteração do ChatGPT pode produzir imitações bastante convincentes de escrita
natural, até mesmo imitando o estilo de autores ou publicações específicas. Em outras
palavras, essas tecnologias estão se tornando mais poderosas e versáteis a cada dia, na
medida em que alguns proponentes acreditam ter cruzado o rubicão para a criatividade
genuína.

Por exemplo, Ahmed Elgammal argumenta na revista American Scientist que a Artificial
Intelligence Creative Adversarial Network (AICAN), desenvolvida por seu laboratório na
Universidade de Rutgers, deveria ser "considerada como um artista quase autônomo”. Tendo
sido treinado em “80.000 imagens que representam o cânone da arte ocidental nos últimos
cinco séculos” (que Elgammal compara a “fazer um curso de pesquisa de história da arte”), o
algoritmo evita deliberadamente tentar replicar qualquer estilo existente, com resultados mais
abstratos do que as imagens 'realistas' para as quais os GANs são normalmente usados.

Elgammal argumenta que as pessoas “genuinamente gostam do trabalho de AICAN”, que não
pode ser distinguido do trabalho de artistas humanos, e uma peça chegou a ser vendida por US
$16.000 em um leilão. Esse tipo de grande venda talvez explique por que Elgammal está
ansioso para promover sua invenção como um “artista autônomo”.
Embora não haja explicação para o gosto, as ostentações de Elgammal não significam muito.
Como a AICAN produz imagens muito abstratas, é fácil imaginar o público acreditando que seu
trabalho é feito pelo homem. Em 1964, os críticos elogiaram as pinturas expressionistas
abstratas de Pierre Brassau, que acabou por ser um chimpanzé chamado Peter. Além disso, as
pessoas dispostas a pagar caro por uma novidade não é prova de mérito artístico, como atesta
a recente mania de hedionda "arte" NFT.

No entanto, Elgammal e Marian Mazzon, em um artigo de 2019 para a revista Arts, afirmam
que embora “o aprendizado de máquina e a IA não possam replicar a experiência vivida de um
ser humano” e, portanto, “não sejam capazes de criar arte da mesma forma que os artistas
humanos fazem … um processo de criação diferente não desqualifica o resultado do processo
como uma obra de arte viável” (grifo nosso).

Da mesma forma, um artigo de 2021 de Mingyong Cheng argumenta que, embora a arte
gerada por IA “não tenha a intenção emocional encontrada em humanos… Seu critério de
criatividade é fazer algo “imprevisível”, baseado em uma “combinação de conceitos variados e
existentes que nunca foram reunidos por outra pessoa”.

Tudo o que esses acadêmicos fizeram foi mover as balizas para definir a criatividade. Pode-se
anexar um pincel a um braço de robô, programá-lo para se mover de acordo com um caminho
de ferramenta aleatório e deixá-lo decorar uma tela. O resultado certamente seria imprevisível,
mas ninguém o descreveria como “criativo”.

As máquinas não combinam ideias de seus conjuntos de treinamento da mesma forma que os
humanos se baseiam nas influências de outros artistas, ou em sua experiência do mundo, para
fazer novas obras de arte. Elgammal e Mazzon realmente admitem isso em seu artigo,
afirmando: “[a razão] pela qual a máquina faz arte é intrinsecamente diferente [dos seres
humanos]; sua motivação é ser incumbido do problema de fazer arte, e sua intenção é cumprir
essa tarefa” (grifo nosso).

Em outras palavras, as IAs não estão conscientemente combinando conceitos de novas


maneiras de acordo com seus próprios desejos. Eles estão otimizando algoritmicamente uma
tarefa, seguindo uma solicitação de um operador humano, a fim de imitar o processo criativo.
Eles são “mímicos brilhantes, mas sem cérebro”, como disse Melanie Mitchell, especialista em
IA do Santa Fe Institute.

O surgimento do senso estético

Na realidade, “experiência vivida” e “intenção emocional” não são secundárias, como Cheng,
Elgammal e Mazzon sugerem, mas características fundamentais da criatividade. Eles são
características definidoras da condição humana, e um produto de nossa sociedade.
O surgimento da arte foi um marco importante no desenvolvimento de nossa consciência e
ajuda a nos diferenciar dos outros animais. Como explica Alan Woods, “um dos primeiros
indícios sérios do surgimento de nossa espécie, homo sapiens sapiens, é a existência da arte,
ou seja, uma expressão concreta do sentido estético”.

A postura ereta e a adaptação de nossas mãos para o uso de ferramentas – para o trabalho –
deu à humanidade acesso a nutrição adicional, o que facilitou o desenvolvimento de nossos
cérebros. Esses dois fatores, a mão e o cérebro, foram fundamentais para o desenvolvimento
do germe da arte, que surgiu da atividade produtiva, muito antes da sociedade de classes. Uma
série de estudos sugere que algumas das ferramentas de pedra mais antigas criadas por
humanos anatomicamente modernos são "exageradas" para a forma (particularmente a
simetria) além do estritamente funcional.

Isso ainda não é arte, mas o início primordial da arte, que posteriormente evoluiu ao longo do
tempo. Outros hominídeos como o homo erectus e o homo neanderthalensis também podem
ter expressado um senso estético, mas apenas o homo sapiens desenvolveu isso em arte
completa. O exemplo mais antigo possível é o chamado 'Venus of Berekhat Ram', que foi
proposto como uma escultura grosseira de uma mulher, que data de cerca de 250.000 anos
atrás. A partir desse começo humilde, toda arte e cultura eventualmente surgiram. Para citar
Engels de ‘O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem’:

“Somente pelo trabalho, pela adaptação a operações sempre novas, pela herança de
músculos, ligamentos e, por períodos de tempo mais longos, ossos que sofreram um
desenvolvimento especial e o emprego sempre renovado dessa sutileza herdada em novas,
cada vez mais operações complicadas, deram à mão humana o alto grau de perfeição
necessário para criar as imagens de um Rafael, as estátuas de um Thorwaldsen, a música de
um Paganini.”

Em outras palavras, o senso estético inicial foi produto do desenvolvimento do corpo e da


mente humana por meio do trabalho, lançando as bases para o surgimento da arte. A finalidade
da tecnologia, quando utilizada para fins artísticos – do pincel à imprensa – é ampliar as
capacidades do ser humano, que é a fonte original e única da criatividade artística. As
máquinas não são criativas em si mesmas. Uma câmera digital pode produzir uma imagem
muito detalhada instantaneamente, mas todos reconhecem o fotógrafo por trás dela como o
verdadeiro artista.

Ao contrário das máquinas, os humanos são levados espontaneamente a produzir arte. Uma
criança de dois anos, sem formação artística, deixada em uma casa sem supervisão por uma
hora começará a rabiscar nas paredes. Essa inspiração inata pode então ser cultivada por meio
da educação e do domínio da técnica na idade adulta. Mas você poderia dar à IA mais
avançada acesso a bilhões de imagens para inspiração, então deixá-la intacta por 1.000 anos,
e ela nunca produziria nada além de um rabisco de boneco: muito menos inventaria o
impressionismo ou comporia uma sinfonia.
Mas por que a arte se desenvolveu? Qual é seu propósito? Alan Woods argumenta que, no
fundo, é basicamente uma forma peculiar de comunicação. Leon Trotsky chama a arte de “uma
forma de conhecer o mundo não como um sistema de leis [como acontece com a ciência], mas
como um agrupamento de imagens e, ao mesmo tempo, como um meio de inspirar certos
sentimentos e humores”. Esta é outra qualidade única da arte que está além da compreensão
das máquinas. As IAs podem criar imagens, mas as experiências emocionais compartilhadas,
“sentimentos e humores” comunicados através da arte são de outra ordem.

Por exemplo, o "período azul" de Pablo Picasso - no qual sua paleta de cores e temas se
tornaram notavelmente escuros e sombrios - foi inspirado em parte pelo suicídio de seu amigo
Carles Casagemas em 1901. Uma IA percebe a arte de Picasso apenas como uma variedade
de formas , cores e valores definidos. Ele pode imitar a aparência dessas obras, mas não
consegue captar as emoções que as inspiraram. Você poderia pedir a uma IA para fazer uma
imagem ‘triste’, mas mesmo que ela produzisse imagens em cores escuras de pessoas
chorando, ela não entenderia o conteúdo da tristeza, porque nunca foi triste, nem feliz; nem
experimentou qualquer outro sentimento.

Além disso, a arte é um fenômeno social. Cada geração participa do desenvolvimento de


técnicas e ideias, ensinando uma nova geração e elevando todas as formas de cultura a novos
patamares. E, claro, a arte se desenvolve em conjunto com a luta de classes. Sem a
emergência da burguesia nos séculos XVI-XVII, voltando-se para as grandes obras artísticas e
científicas da antiguidade para protestar contra a influência sufocante do feudalismo e da
Igreja, não teria havido Renascimento. As frases triunfantes e discordantes da Eroica de
Beethoven foram forjadas após a Revolução Francesa. Os filmes de Ken Loach são um
produto direto da exploração capitalista na Grã-Bretanha do pós-guerra. As máquinas não
podem participar da sociedade ou da luta de classes e não entendem a história ou o contexto
por trás das imagens que produzem. Tudo isso os impede de serem verdadeiramente criativos.
Os limites da IA

Na verdade, é bastante simples ilustrar as limitações das IAs generativas em comparação com
os artistas humanos. Um estudo de 2022 na Cornell University descobriu que o DALL-E 2
falhou consistentemente em ilustrar relações espaciais simples entre objetos (por exemplo, 'X
em Y') ou relações abstratas entre objetos e um homem (por exemplo, 'X ajudando Y'). Na
verdade, os participantes do estudo sentiram que a saída da IA correspondia às suas
solicitações apenas 22% das vezes. Por exemplo, ele poderia gerar de forma confiável uma
imagem de “uma colher em um copo”, mas o prompt “um copo em uma colher” apenas levava a
mais imagens de colheres em copos. Isso ocorre porque o conjunto de treinamento de imagens
continha muitas colheres em xícaras, mas nenhuma xícara em colheres. A IA interpretou esses
termos em um nível superficial, sem entender os componentes individuais ou suas relações
entre eles.

Realizamos alguns experimentos próprios com DALL-E 2 para este artigo, cujos resultados se
alinham com o estudo de Cornell. Por exemplo, o prompt: “um cavalo com uma flecha
apontando para uma das pernas”, resultou em imagens de cavalos com flechas próximas, ao
lado e ao redor, mas não apontando para as pernas. A IA entendia ‘cavalo’ e ‘flecha’, mas não
conseguia extrapolar as pernas da imagem do cavalo, nem colocar a flecha em relação a elas.

‘Um cavalo com uma flecha apontando para uma de suas pernas’ / Gerado pelo autor usando DALL-E-2

Mesmo o ser humano mais talentoso provavelmente poderia fazer um trabalho razoável de
nosso pedido, porque somos capazes de pensar de forma abstrata e dialética, vendo as partes
em relação ao todo. Mas, como concluem os pesquisadores de Cornell:

“Mesmo com a ambigüidade ocasional, a lacuna quantitativa atual entre o que o DALL-E
2 produz e o que as pessoas aceitam como uma representação razoável de relações muito
simples é suficiente para sugerir uma lacuna qualitativa entre o que o DALL-E 2 aprendeu e o
que até mesmo os bebês parecem já saber.”
E este é um ponto chave. Uma criança conhece essas relações simples porque as experimenta
no mundo, por meio de seus sentidos, que faltam a uma máquina. Um bebê aprende o que é
duro e macio, o que é quente e frio, interagindo com os objetos – pegando-os, sentindo-os e
fazendo generalizações com base nessa experiência. Para esta tarefa, o ser humano menos
desenvolvido e menos experiente é mais hábil do que a IA mais avançada.

Além disso, colocamos a criatividade do DALL-E 2 à prova, pedindo-lhe para gerar uma
imagem de “um animal que não existe e ninguém jamais viu antes”. Pode-se imaginar uma
criança pequena usando essa sugestão como uma oportunidade para desenhar algo realmente
fantástico: com tentáculos, 12 olhos, penas e um bico de pato. A IA nos deu uma foto de um
hipopótamo, uma capivara e um macaco. É organicamente incapaz de gerar ideias originais.
“Um animal que não existe e ninguém jamais viu antes” / Gerado pelo autor usando DALL-E-2

As IAs também enfrentam outros obstáculos, que ilustram a grande complexidade das
operações de que a mente humana é capaz. Por um lado, eles não conseguem lidar com
prompts mais longos do que um tweet. Além disso, embora a IA agora seja muito boa em
produzir imagens estáticas, textos escritos (embora passagens curtas) e vídeos curtos, ela luta
com formas de arte que se desenrolam por longos períodos de tempo, como a música. As
tentativas de programas como o OpenAI Jukebox de imitar o estilo de artistas populares, como
os Beatles, por exemplo, exigem muitos ajustes de um ser humano para serem remotamente
aceitáveis. Suas “composições originais” se desfazem em uma bagunça inaudível e incoerente
depois de apenas alguns segundos. Por enquanto, pelo menos, Sir Paul McCartney pode ficar
tranquilo.
Parte do problema é que a subjetividade é imensamente complicada e, embora a IA possa
melhorar com base no desenvolvimento tecnológico, é mais do que apenas uma questão de
poder computacional. Os seres humanos são muito hábeis em dizer quando uma peça musical,
ou uma imagem, está “desligada”. Mas isso é muito difícil de quantificar da maneira que uma
máquina pode imaginar.

Isso também explica a qualidade de pesadelo de muitas imagens geradas por IA, nas quais as
pessoas têm 12 dedos em cada mão e outras deformidades corporais. Essas distorções são
um subproduto da IA que mistura milhares de imagens que na verdade não compreende.
Esses recursos estão errados, mas a IA não tem como saber intuitivamente o que é certo.

Substituir artistas humanos?

Embora as IAs generativas não sejam realmente criativas e ainda tenham um longo caminho a
percorrer, mesmo copiando a arte feita pelo homem, existem algumas aplicações para as quais
elas já são "boas o suficiente". Várias empresas de tecnologia usam IAs para produzir cópias
básicas da Web, e plataformas de processamento de imagem como o Photoshop utilizam AI
para correção de imagem. Uma empresa russa de design comercial usou um sistema de IA
(sob o pseudônimo de Nikolay Ironov) que foi treinado em imagens vetoriais desenhadas à mão
para desenvolver designs "originais".

É revelador que as IAs são mais aplicáveis a algumas das tarefas menos "criativas" na
indústria de mídia. Eles também se mostraram populares para propósitos obscenos, como
atestado pela próspera subcultura de "entusiastas" da pornografia de IA e o uso crescente de
IA para criar "falsificações profundas" (do inglês as "Deep Fakes"), nas quais o rosto de uma
pessoa pode ser sobreposto em conteúdo pornográfico (ou qualquer outra coisa além disso).

Além desses aplicativos decadentes, a IA agora é competente o suficiente para gerar imagens
e textos que os artistas começam a considerá-los não como “colaboradores artísticos” – como
Cheng espera – mas como uma competição indesejada. O escritor da Atlantic, Charlie Warzel,
se viu no centro de uma tempestade no Twitter no ano passado, depois de publicar uma edição
do boletim informativo da revista com uma foto do teórico da conspiração Alex Jones, gerada
pelo AI Midjourney. Muitos ilustradores comerciais ficaram furiosos porque um show de
prestígio foi entregue a uma rede neural. O cartunista Matt Bors comentou:

“Não é como se houvesse uma tonelada de ilustrações acontecendo online... Acesse


um site e a maior parte do conteúdo da imagem está hospedada em outro lugar. Os artigos
estão cheios de tweets incorporados ou postagens do Instagram ou fotografias de estoque. O
fundo do poço é que já saem ilustrações há algum tempo, mas a arte da IA parece algo que vai
desvalorizar a arte a longo prazo.”
Outros artistas se opuseram às tendências plagiadoras da IA generativa. Uma pesquisa no
Google pelo artista polonês Greg Rutkowski produzirá milhares de imagens que ele nunca
criou, porque seu estilo é muito popular entre os entusiastas da arte da IA. E a lei não oferece
proteção para artistas que trabalham. Em 2022, o US Copyright Office afirmou que não pode
impor direitos autorais sobre arte gerada por IA, porque as obras de arte são "frutos do trabalho
intelectual ... fundamentado nos poderes criativos da mente [humana]". Nesse ponto, nós
realmente concordamos! No entanto, sob o capitalismo, onde os estilos originais dos artistas
fazem parte de seu valor de mercado, isso é um problema para os criativos individuais e
benéfico para os patrões e especuladores ricos.

A Design and Artists Copyright Society (DACS), que cobra pagamentos em nome dos artistas
pelo uso de suas imagens, afirma: "Não há garantias para os artistas [...] serem capazes de
identificar trabalhos em bancos de dados que estão sendo usados para treinamento e optar por
remover". Como resultado, Jon Juárez, um artista que trabalhou em estúdios de jogos de
prestígio como Square Enix e Microsoft, teme que as IAs possam servir como “máquinas de
lavar de propriedade intelectual”. Ele afirma: “Se uma grande empresa vê uma imagem ou uma
ideia que pode ser útil para ela, basta inseri-la no sistema e obter resultados miméticos em
segundos, não precisará pagar ao artista por essa imagem”.

Artistas conceituais do setor de filmes, TV e videogames reclamaram que a IA logo os forçará a


sair do mercado ou, na melhor das hipóteses, os transformará em meros “supervisores” de
máquinas. Bruce (nome fictício), um artista que trabalhou em jogos indie premiados, diz no
Kotaku:

“O objetivo final de um empregador em potencial não é facilitar meu trabalho, é me


substituir ou reduzir todos os anos gastos aprimorando meu ofício em um piloto de aprendizado
de máquina chato, onde sou treinado para dirigir vagamente um software equivalente em
centenas de direções diferentes até que, por acaso, cuspa um ativo que poderíamos usar de
maneira viável em um jogo… Eu poderia facilmente imaginar um cenário em que, usando IA,
um único artista ou diretor de arte poderia substituir 5 a 10 artistas iniciantes.”

O potencial da IA para substituir artistas humanos por máquinas (que não recebem um salário
por seu trabalho) não é perdido pelos capitalistas do setor de tecnologia. Não é por acaso que
as tecnologias de IA generativas mais poderosas pertencem a Google (Imagen), Meta (Make-
A-Scene) e Elon Musk (DALL-E 2). Esses gordos não se importam nem um pouco se a arte
feita pela IA é boa, apenas se ela pode ser usada para cortar custos e aumentar seus lucros.
Isso resume a atitude filisteu dos capitalistas, que não têm interesse em arte e cultura, a menos
que possam ser exploradas de alguma forma. Eles não valorizam o tempo, o cuidado e o
orgulho que os artistas investem no desenvolvimento de seu ofício. Pelo contrário, isso apenas
os torna mais caros para contratar.

Os artistas que trabalham já enfrentam um mercado onde seu trabalho é subestimado ou mal
pago - se é que são pagos! Espera-se que os artistas comerciais trabalhem de graça com tanta
frequência que a frase “pago em exposição” se tornou uma piada corrente na indústria. Nesse
contexto, não surpreende que a IA, que pode produzir grandes quantidades de trabalho sem
exigir salário, seja tratada com desconfiança.

Sob o capitalismo, a função das máquinas é colocar mais poder produtivo nas mãos de menos
trabalhadores, barateando as mercadorias para minar a concorrência e aumentar os lucros.
Uma consequência disso é que o desemprego aumenta e a mão de obra qualificada é cada vez
mais substituída por mão de obra não qualificada. Artistas e escritores temem um futuro no
qual, se conseguirem algum trabalho, eles simplesmente “ajustam” a produção das máquinas,
por uma taxa mais baixa do que seus atuais comandos especializados de conjuntos de
habilidades. No passado, a marcha do desenvolvimento capitalista substituiu os artesãos que
fabricavam mercadorias manualmente por frotas de trabalhadores operando máquinas
industriais nas fábricas. Hoje, a IA e a automação estão prejudicando profissões de classe
média também. Um artigo de janeiro de 2023 no Atlantic, intitulado "Como o ChatGPT vai
desbancar o trabalho de colarinho branco", afirma:

“Nos próximos cinco anos, é provável que a IA comece a reduzir o emprego de


trabalhadores com formação universitária. À medida que a tecnologia continua avançando, ela
será capaz de realizar tarefas que antes se pensava exigir um alto nível de educação e
habilidade. Isso pode levar a um deslocamento de trabalhadores em certas indústrias, já que as
empresas buscam cortar custos automatizando processos.”

A marcha implacável do capital obriga todas as camadas trabalhadoras da sociedade a se


tornarem meros apêndices de máquinas, ou enfrentar a sucata. Como explica Marx:

“A parte da classe trabalhadora assim tornada supérflua pela maquinaria, isto é,


convertida em uma parte da população não mais diretamente necessária para a
autovalorização do capital, ou desaparece no contexto desigual entre a velha produção
artesanal e manufatureira e a nova produção de máquinas, ou então inunda todos os ramos
mais facilmente acessíveis da indústria, inunda o mercado de trabalho e faz com que os preços
da força de trabalho caiam abaixo de seu valor... [a máquina] produz miséria crônica entre os
trabalhadores que competem com ela."
A raiva sobre IAs hoje contém ecos do movimento Ludista no século 19 / Imagem: Domínio
Público

A raiva sobre as IAs de hoje contém ecos do movimento ludista no século 19. Isso viu os
trabalhadores, que haviam sido jogados no inferno da produção industrial inicial e alienados
dos produtos de seu trabalho, voltando sua raiva para as máquinas que incorporavam sua
miséria crônica. Na verdade, o sistema capitalista foi o responsável por transformar as grandes
realizações da indústria em grilhões do corpo e do espírito humano. Hoje, as novas tecnologias
estão sujeitando seções da intelligentsia a pressões semelhantes e provocando animosidade
semelhante entre o homem e a máquina.

A IA poderia ser uma força para o bem?

Sob uma sociedade socialista planejada democraticamente, máquinas, automação e IA


libertariam a humanidade de tarefas enfadonhas e perigosas. O tipo de “relação mutuamente
benéfica” de que alguns falam hoje só poderia realmente existir em uma sociedade onde essas
tecnologias não são de propriedade privada de corporações capitalistas; aquele em que o
desemprego e as preocupações com os direitos autorais são jogados na lata de lixo da história,
junto com o próprio regime de propriedade privada, o que significa que os artistas seriam livres
para criar e compartilhar seu trabalho como quiserem.

Existem muitos benefícios potenciais para IAs generativas. Essas ferramentas têm a
capacidade de economizar muito tempo: servindo como uma caixa de ressonância digital, para
iterar ideias rapidamente. Eles também poderiam lidar com tarefas básicas de design, como
criar a impressão de tecido nos assentos do transporte público, por exemplo; ou gerando
cópias monótonas e puramente funcionais, como mensagens de informação pública e panfletos
instrutivos. Isso liberaria mentes e mãos humanas para formas mais elevadas de criatividade.

Além disso, eles poderiam aprimorar as artes existentes. Eles já são usados para tarefas como
restauração de filmes, programação e certos processos de edição de fotos. A IA pode ser
usada para aumentar a profundidade, a precisão e a complexidade de todas as artes visuais:
renderizando textura, sombra e luz do sol em detalhes minuciosos em um instante, liberando os
seres humanos para composição e inovação.

Toda nova tecnologia criativa (desde instrumentos polifônicos até fotografia) carrega o
potencial de ampliar as habilidades da humanidade, elevar nossa visão e abrir novas
oportunidades artísticas. No entanto, o capitalismo hoje está em um impasse e arrastou a
cultura para uma rotina. Explorar plenamente os benefícios da IA exigiria planejamento
racional, em vez de produção de lucro anárquica, sob a qual resulta no deslocamento de mão-
de-obra, padrões de vida mais baixos para trabalhadores e classes médias e homogeneização
da cultura. Não é por acaso que a ansiedade em relação à IA está aumentando em um
momento em que o aprofundamento da crise do capitalismo está empobrecendo não apenas a
classe trabalhadora, mas também cada vez mais a classe média.

A IA não transcendeu a humanidade e (apesar das reservas de Nick Cave) não precisa nos
condenar. Mas sob o capitalismo, isso pode piorar nossas vidas e cultura. Libertar a cultura da
mão morta do capital é uma tarefa revolucionária, que só pode ser realizada pela classe
trabalhadora. Em última análise, uma vez abolida a sociedade de classes, a arte deixará de ser
um brinquedo dos ricos ou uma mercadoria a ser explorada com fins lucrativos. Ela pertencerá
a toda a humanidade que fará pleno uso de nossos avanços tecnológicos para alcançar alturas
ainda desconhecidas.

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