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Universidade Federal de Alagoas

Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes


Arte e Tecnologia
(Jornalismo)

Pedro Henrique de Souza Firmino

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: INTENÇÃO E CRIATIVIDADE OU REFLEXO


DAS VONTADES HUMANAS

Maceió, agosto de 2021.


Uma exposição no Japão, quatro categorias separam artes com
diferentes propostas. A primeira classificação é humana com ambições
humanas; a segunda, humana com ambições sintéticas; a terceira, sintética
com ambições humanas; a última, sintética com ambições sintéticas. Assim
começa o texto de Sergio José Venâncio Júnior sobre inteligência artificial e
arte. E esse exemplo é crucial para a compreensão da problemática porque
aborda uma questão: a intenção.
O ímpeto é uma característica que move os seres vivos. E a
humanidade em especial depende de uma vontade que vá além da
sobrevivência para criar arte. Isso se dá porque esta geralmente não é uma
necessidade para a vida. Este é o maior obstáculo para uma inteligência
artificial fazer arte. Porque ela precisaria ser capaz de ter desejos próprios e,
não somente isso, possuir vivência. Além disso, conseguir se expressar
esteticamente só pelo prazer estético. Para compreender essa questão da “arte
pela arte”, o autor elucida:
Isto significa que, para realmente fazer arte, a inteligência artificial
precisaria ter autonomia suficiente para estabelecer seus próprios
critérios estéticos, sem qualquer interferência de um humano, e fazê-
lo sem que isto esteja subjugado a outros propósitos. A máquina
deveria fazer “arte pela arte” e tal questão está em aberto, pois
abstrair para a forma de algoritmos os processos de formação de
elementos tão subjetivos, como um julgamento estético, não é tarefa
simples. (VENÂNCIO, 2019, p. 185).

Partindo desse tópico, mas ainda abordando a questão da intenção,


Venâncio cita dois exemplos de máquinas. Um deles, chamado de Aaron,
nunca foi criado com o propósito de ser criativo. Enquanto isso, o outro, criado
pelo artista Simon Bolton, era uma tentativa de seu inventor para convencer de
que aquilo era uma obra do artista original. O que há de comum entre ambos
os programas? Nenhum dos dois exemplos têm vontade própria. Ambos,
embora capazes de criatividade em seus termos particulares, eram
instrumentos de seus programadores e seus ímpetos.

Em outras palavras, estes robôs foram ensinados a agir de um modo


específico com algumas liberdades por seus idealizadores. O aprendizado de
máquina é a forma ideal de construí-los. No entanto, há supostamente uma
forma melhor. Esta consistiria num survival of the fittest (sobrevivência do mais
adaptado) computacional onde as características positivas seriam
selecionadas. Porém, se os seres humanos as determinassem, os bots ainda
seriam subjugados a eles. E assim se aborda uma das proposições mais
interessantes do texto. Em resumo, a sugestão de um ecossistema onde
múltiplas inteligências artificiais interajam simultaneamente para alcançar tal
objetivo.

Sendo sucinto, essa adaptação e “sobrevivência” se daria por meio de


automação. O autor cita o exemplo da cibernética de primeira e segunda
ordem. A de primeira consiste num sistema que se autorregula (chamado de
reativo) com um objetivo fixo e se mantém estável por causa dessa
simplicidade. Por sua vez, a de segunda consiste em um sistema bifásico.
Nele, outro autômato se comunica com o primeiro e o fornece novos objetivos
de acordo com os seus próprios. É a partir dessa relação que a máquina
aprende e se adapta. Isso acontece da seguinte maneira:

Dubberly chama de “aprendizado” esta relação de observar o


ambiente e ajustar os objetivos de primeira ordem conforme um
objetivo superior, de segunda ordem. Os sistemas de segunda
ordem buscam manter seu objetivo superior enquanto testam
diferentes objetivos para seus sistemas de primeira ordem. O
aprendizado ocorre a partir destes testes, quando o sistema
pode inferir quais objetivos de primeira ordem são mais ou
menos favo-ráveis ao alcance do objetivo superior, e assim
guardar memória destas decisões para o futuro. (VENÂNCIO,
2019, p. 188).

Entretanto, mesmo um autômato autorreferente da cibernética de


segunda ordem não consegue cumprir as exigências para expressão genuína
artística. Isso se dá porque mesmo ela ainda precisa de uma meta inicial que
não mude. Portanto, volta-se à questão de quem estabelece o objetivo e qual a
natureza deste. Seria um problema elevar certos padrões estéticos (portanto
subjetivos) à condição objetiva de “meta” cumprida (objetiva). Muito além, seria
necessário alcançar isso de forma genuína e livre. Enquanto isso, o sistema
prévio só seria capaz de se autorregular visando melhorias.

A criatividade como pré-requisito para uma inteligência artificial pode se


manifestar nesse ecossistema de diferentes formas. Venâncio sugere a
“emergência” como uma provável candidata. Resumidamente, ela consiste na
originalidade plena, algo verdadeiramente novo que surge. Este conceito, por
sua vez, daria vazão a outro chamado “autonomia epistemológica”.
Basicamente, seria possível inventar seus próprios meios, seus próprios
“sensores” como ele chama as tecnologias que expandem os sentidos. De
acordo com o autor, esses conceitos seriam úteis para compreender a
criatividade na medida em que:

Mais do que isso: para aumentar sua autonomia, a entidade


pode exercer emergência epistêmica, desenvolvendo novos
sensores, novas formas de percepção e análise, e assim
expandir as dimensões de seu espaço de possibilidades.
Cariani então sugere que “conceitos de emergência têm
alguma utilidade como heurísticas para a criatividade”14 e que
processos emergentes podem ser utilizados para amplificar a
criatividade humana. (VENÂNCIO, 2019, p. 190).

O próximo passo determina a necessidade de juntar pedaços


denominados “primitivos” (que não teriam uma origem derivada de outros já
presentes no sistema). Assim, a relação entre essas partes formaria uma
“emergência combinatória”. Ou até uma “emergência criativa” caso gerasse
uma nova parcela primitiva. Quando desenvolvida a partir da combinação, a
seleção positiva de certas características passa por duas fases distintas, uma
sobre liberdade estética e outra sobre análise. No entanto, ainda seria
altamente subjugada por humanos.

Utiliza-se três categorias da semiótica para compreender essa


problemática. A primeira, sintaxe, que é como as primitivas citadas interagem
entre si; a segunda, semântica, que envolve contexto e ambiente; a terceira,
pragmática, por fim, determina o objetivo e como cada parte pode ser um fim
também. Em outras palavras, são três formas de compreender a inventividade
da cibernética, com a relação entre si, com o mundo/espaço e com o
motivo/razão.

Um insight em como seria a possibilidade de expressão estética de uma


máquina sugere algumas circunstâncias. Uma delas é como reagiriam os seres
humanos a essa forma de arte. E se não haveria necessidade de rever toda a
perspectiva estética vigente. Isso porque se define criatividade como uma
característica essencialmente humana. Portanto, um programa artista
certamente desafiaria os padrões. O artigo de Joo-Wha Hong e Nathaniel Ming
Curran completa:
Nesse sentido, Bostrom e Yudkowsky sugerem que quando
máquinas se tornam melhores que humanos em algo, as
capacidades necessárias para sucesso nesse âmbito não são
vistas mais como uma representação da verdadeira
“inteligência”. Se a “criatividade” é vista como uma capacidade
inerente humana, então como podemos ser forçados a rever
nossa compreensão de arte quando IA produzir artes mais
esteticamente agradáveis ou quando passarem no “Teste de
Turing” artístico? (HONG; CURRAN, 2019, p. 583, tradução
nossa).

Então, nesse viés de que a expressão da máquina possa ser


incompreensível, ou até não ter valor estético, Venâncio exemplifica com o
projeto Extentio. Nele, há tentativas de balancear a criação livre do programa
com os objetivos. O bot tem o propósito final de ser capaz de reproduzir a face
humana por observação. Uma câmera grava o processo de pintura de um
artista enquanto ele assimila as técnicas. Entre as diversas habilidades da
inteligência artificial, há algumas mais simples e outras mais complexas. Por
exemplo, escolher uma paleta de cores ou “parar uma caneta caso não
encontre pixels cromaticamente próximos”.
Observando os desenhos, fica claro como essas características
funcionam na prática. Algumas linhas realmente seguem para fora do molde da
face, mas logo param quando o algoritmo percebe o distanciamento. O
desenho fica com um toque estranho (dir-se-ia até uncanny) em certos
momentos porque os traços ficam roboticamente precisos. Enquanto isso,
outras partes têm um preenchimento aleatório. O resultado fica fascinante, com
desenhos que conseguem captar de modo excepcional as feições do rosto
mesmo se perdendo na pigmentação. É quase como se fosse um pintor gênio
para representação, mas cego para cores.
Sobre o uncanny valley, a que essas pinturas remetem, vale falar um
pouco mais. Ele consiste na proximidade máxima à figura humana, mas ainda
sem alcançá-la exatamente. Essa visão causaria repulsa e estranhamento por
parte de quem a observa. O termo foi inventado por Masahiro Mori em 1970,
então professor de robótica no Instituto de Tecnologia de Tóquio. A definição
do termo pode ser exemplificada nas palavras de Mori:
Alguém pode dizer que a mão prostética alcançou um nível de
semelhança à forma humana, talvez ao nível de dentaduras.
Entretanto, quando percebemos que a mão, a qual à primeira
vista parecia real, é na realidade artificial, nós temos uma
sensação estranha. Por exemplo, nós poderíamos nos assustar
durante um aperto de mão com seu toque desossado junto com
sua textura e frieza. Quando isso acontece, nós perdemos
nosso senso de afinidade, e a mão se torna uncanny. (MORI,
2012, p. 3, tradução nossa).

No entanto, o intuito de Extentio não era necessariamente dar ao robô a


capacidade de representar livremente a realidade. A liberdade criativa era só
uma das características. O propósito em si era mostrar como uma máquina
pode auxiliar o artista nas suas criações. Como ela pode mexer em diferentes
processos e aspectos da obra sem excluir a necessidade do criador. Seus
quatro objetivos (observar, desenhar, avaliar e evoluir) têm essa função. A ideia
é trazer novas noções dos limites da inteligência artificial para o processo
criativo e suas possíveis aplicações no mundo real.
Estas quatro vertentes de desenvolvimento refletem a absorção
dos estudos sobre criatividade em inteligências artificiais.
Embora não se busque a máquina autônoma e criativa, os
parâmetros de sintaxe, semântica e pragmática propostos por
Cariani direcionam os desenvolvimentos propostos e balizam
análises sobre como a inteligência artificial pode interferir no
processo criativo. (VENÂNCIO, 2019, p. 197).

O texto elenca diversas formas como programas têm a capacidade de


auxiliarem o processo criativo e se envolverem nele. No entanto, pelo menos
até agora e provavelmente num futuro próximo, não há a possibilidade de se
criar uma inteligência artificial capaz de ser genuinamente criativa. O nível de
complexidade necessário para uma empreitada assim é incomensurável. Não
só seria preciso que a máquina tivesse vontade própria, ela também deveria
querer se expressar por meio desse desejo.

Então, presume-se também que ela teria uma motivação para isso. Um
pintor muitas vezes pinta para colocar para fora seus sentimentos com relação
à vida. Como a máquina adquiriria vivência e até que ponto seria possível
apreciar essa arte? Assim, volta-se à exposição do começo do texto. Quatro
categorias, sendo uma delas de máquinas com estética de máquina. Para
ilustrar essa realidade ainda não alcançada (que pode ou não ser possível),
foram utilizadas pinturas de chimpanzés. Obras genuínas de artistas
incompreensíveis a seres humanos.
Referências:

VENÂNCIO JÚNIOR, Sérgio José. Arte e inteligências artificiais:


implicações para a criatividade, ARS, São Paulo, ano 17, n. 35, 2019. p. 183-
201.

MORI, Masahiro. The Uncanny Valley: The Original Essay by Masahiro


Mori. NY, USA. IEEE Robotics & Automation Magazine. Vol. 19, No. 2, junho
2012. p. 98-100. Disponível em https://ieeexplore.ieee.org/stamp/stamp.jsp?
tp=&arnumber=6213238. Acesso em: 29 ago. 2021.

HONG; CURRAN, Jho-Wha, Nathaniel Ming. Artificial Intelligence, Artists,


and Art: Attitudes Toward Artwork Produced By Humans vs. Artificial
Intelligence. ACM Trans. Multimedia Comput. Commun. Appl., Vol. 15, No. 2s,
Artigo 58. Julho 2019. p. 1-16.

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