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Psiquiatria forense
Sérgio Paulo Rigonatti
Daniel Martins de Barros

Introdução, 700 Documentos médico-legais, 702


Medicina, direito e medicina legal, 700 A perícia psiquiátrica e o seu laudo, 703
Psiquiatria e direito, 700 Conclusão, 704
O psiquiatra no tribunal, 701 Referências, 704

INTRODUÇÃO te e o conhecimento médico por si só não basta. Nesse momento,


surge, por necessidade de ambas as partes, a medicina legal.
Considerada por Flamínio Fávero, expoente da medicina le-
A psiquiatria forense é uma subespecialidade tanto da psi-
gal clássica, como o uso do conhecimento médico no auxílio da
quiatria como da medicina legal, sendo ainda hoje cercada de mis-
aplicação e elaboração das leis, em nosso meio não é comum que
tério por ser em larga medida desconhecida tanto dos psiquiatras,
legisladores consultem médicos versados em ciências jurídicas quan-
que não conhecem leis, como dos juristas, que ignoram a psiquia-
do da elaboração das leis, ainda que essa medida pudesse evitar
tria, e por ser ainda muito pouco estudada com rigor e metodologia
desvios e posteriores dificuldades na sua execução, reduzindo po-
científica.
tencialmente brechas legais.
No entanto, todos os psiquiatras devem ter noção deste cam-
Pensando a medicina legal dessa maneira, ou seja, como me-
po, uma vez que qualquer profissional desta área pode ser nomea-
dicina normativa, toma-se o caminho da medicina que vai em so-
do por um juiz para atuar em um processo, contratado como assis-
corro do direito, no qual o médico legista é aquele que, por ser
tente ou ser chamado como testemunha no tribunal. Nessa hora, o
médico e entender de leis, é capaz de esclarecer as dúvidas tangen-
conhecimento dos trâmites envolvidos é importante não só para a
tes à saúde que se apresentam em causa jurídica. Também cresce
melhor atuação do médico no interesse da justiça como também
ao redor do mundo a visão inversa, do médico legista como aquele
para aliviar sua ansiedade.
que, por conhecer as leis e suas relações com a saúde, está apto
Normalmente, quando se pensa em perícia, imagina-se um
para tratar de pacientes que, por uma razão ou outra, tenham ques-
criminoso cruel que alega ser louco para não ir para a cadeia, es-
tões judiciais. A medicina legal é vista, portanto, como área verda-
quecendo-se que, como área de intersecção entre saúde mental e
deiramente interdisciplinar, onde o conhecimento médico auxilia a
justiça, o espectro de atuação é muito mais amplo, passando pelas
justiça e o conhecimento jurídico auxilia a terapêutica. Essa pers-
áreas de família, cível, trabalhista, administrativa e qualquer outra
pectiva da medicina legal também como medicina curativa, em de-
que envolva questões jurídicas. Aliando-se esse preconceito às par-
trimento da visão restrita de tomá-la como apenas normativa, ain-
ticularidades do processo pericial, no qual a relação médico-pa-
da não ganhou fôlego em nosso meio.
ciente é substituída pela relação perito-periciando, na qual o médi-
co age mais no interesse da justiça do que no do indivíduo que
examina, cria-se um clima de temor e mistério a cerca dessa área de
atuação do psiquiatra. Como em tudo, no entanto, a familiaridade PSIQUIATRIA E DIREITO
dirime o medo, e quando os preconceitos dão lugar ao conheci-
mento, passamos a entender melhor e transitar com mais facilida- Seguindo o raciocínio recém-exposto, chegaremos ao papel
de por essa importante especialidade da psiquiatria. das especialidades médicas no conjunto da medicina legal.
De fato, com o avanço do conhecimento nas diversas especia-
lidades fica cada vez mais difícil que exista uma medicina ampla e
ao mesmo tempo profunda o suficiente para dar conta de todas as
MEDICINA, DIREITO E MEDICINA LEGAL questões médicas que envolvem o direito. Assim, as especialidades
passam a ter um papel maior nessa interface, sendo hoje comum
Muitas são as possíveis definições para medicina legal, mas que os operadores do direito consultem médicos especialistas quan-
em todas elas está embutido o conceito de ser essa a área de interface do necessitam de respostas específicas.
entre os domínios do direito e da medicina. Áreas distintas, e em A psiquiatria, no entanto, já no início da medicina legal teve
sua maior parte estanques, esbarram-se, contudo, em região de papel de relevo. Isso porque desde tempos remotos, quando dos
sobreposição, na qual apenas o conhecimento das leis é insuficien- primeiros esboços do surgimento das leis, como na Lei das Doze
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Tábuas ou do Senado Romano em 460 a.C., a sociedade entende (o que o impede, por suspeição, de ser perito – segundo o código
que os indivíduos que não têm consciência do que estão fazendo, de ética médico, parágrafo 121), quer como perito ou como assis-
aqueles que, por algum motivo têm sua capacidade racional afeta- tente técnico em causas criminais e em causas cíveis.
da, não podem ser punidos da mesma forma que os que são consi- Tanto no processo cível como no criminal o médico pode ser
derados plenamente conscientes dos seus atos e suas conseqüências. contratado pelas partes como assistente técnico, atuando como pro-
Assim, quando a psiquiatria surge como o conhecimento médico fissional autônomo, em regime particular, ou, se médico legista ou
responsável por determinar quem é mentalmente são e quem não funcionário público, pode ser nomeado pelo juiz como perito.
é, automaticamente assume essa função também perante o direito, O processo criminal inicia-se após a produção das provas, o
a partir de quando passa a não apenas dividir as pessoas entre sãs e que é bastante compreensível, já que um processo de homicídio,
insanas, mas, por conseguinte, entre imputáveis e inimputáveis, por exemplo, só começa após a confirmação de uma morte. O peri-
capazes ou incapazes, responsáveis ou irresponsáveis. Historica- to atua nessa fase, confirmando, por exemplo, se há morte, se há
mente, portanto, logo a psiquiatria se destacou da medicina legal e lesão corporal, etc., podendo também ser chamado no transcorrer
caminhou por conta própria, recebendo inclusive o nome distinto do processo, no caso de novas provas. Para os psiquiatras, a no-
de psiquiatria forense. meação é mais comum se há suspeita quanto à sanidade do réu,
O século XIX e início do século XX foi um período particular- quando o juiz determina o incidente de insanidade mental, ou seja,
mente importante no desenvolvimento da psiquiatria forense. Era sobre o processo que estava correndo incide um outro, que suspen-
uma época em que os manicômios se multiplicavam no esforço por de o transcurso do primeiro até que seja determinada ou não a
manter a sociedade protegida dos loucos, em que o poder da psi- sanidade.
quiatria em dizer se determinado indivíduo era ou não insano co- Já o processo civil prescinde de provas para seu início, bas-
meçava a ser conhecido – e temido – pelos cidadãos. A loucura era tando que duas partes entrem em litígio e que haja dúvidas no
então vista como uma doença em grande parte moral, e, ainda pior, âmbito da saúde mental para que perito e assistentes técnicos se-
hereditária. Isso tornava degradante para uma família admitir um jam solicitados.
louco em sua linhagem, por implicitamente contaminar todos os
membros com um defeito moral perante a sociedade. Sendo assim,
os manicômios cresciam muito a custa de familiares que eram lá Causas criminais
escondidos. Até então os doentes mentais internados eram alocados
nos mesmos espaços que aqueles que lá eram levados após comete- Nas causas criminais, o que mais se busca determinar é se o réu
rem crimes. Dado o crescimento desse grupo, entre os anos de 1920 deve ser considerado imputável, semi-imputável ou inimputável, con-
e 1930 foram inaugurados ao menos quatro manicômios judiciários forme o artigo 126 do código penal. Diz o artigo:
no Brasil – em Minas Gerais, Salvador, Rio de Janeiro e em São
Paulo. (O Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo recebeu os Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou
mais de cem criminosos até então internados no Juqueri.) Foi a desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tem-
época de ouro da psiquiatria forense, quando ela ditava, muitas po da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o
vezes à revelia de qualquer forma de diálogo, quem era criminoso e caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
quem era louco. entendimento.
Redução de pena
Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços,
se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por
Atenção desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era in-
teiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de de-
Todos os médicos psiquiatras devem ter noção deste campo, uma terminar-se de acordo com esse entendimento.
vez que qualquer destes profissionais pode ser nomeado por um juiz
para atuar em um processo, contratado como assistente ou ser Dessa maneira, o psiquiatra é instado a responder se o réu em
chamado como testemunha no tribunal.
questão era capaz de entender a ilicitude da ação ou omissão e ca-
paz de se autodeterminar conforme esse entendimento. Imputável
Ironizado por Machado de Assis no exaustivamente citado O é considerado todo aquele que tem tais capacidades preservadas, e
Alienista, e também por Jorge Luis Borges num dos contos do livro assim sendo, pode ter culpa a ele imputada. Nesse caso, será apenado
Ouro dos Tigres, esse poderio do psiquiatra em geral e do psiquiatra normalmente. Caso seja inimputável, quer dizer, a ele não puder ser
forense em particular hoje já arrefeceu. Os laudos não são sobera- imputada culpa por se enquadrar no artigo, será então determinada
nos e os posicionamentos quanto à doença ou à saúde mental de a chamada medida de segurança, sendo encaminhado para os hospi-
réus em processos criminais ou das partes em processos cíveis não tais de custódia e tratamento psiquiátrico, os antigos manicômios
são impostos sem questionamentos. Essa perda de poder, contudo, judiciários. A controversa figura da semi-imputabilidade surge quan-
foi importante para a psiquiatria forense, que pôde então questio- do o médico entender que o réu, apesar de ter a noção ou o enten-
nar a si mesma, desenvolvendo-se a partir da autocrítica. dimento sobre ato delituoso, não tem vontade para dominá-lo e,
portanto, coloca-o em prática. A disfunção, assim, não é do entendi-
mento, mas da capacidade volitiva, que, prejudicada, impede a auto-
determinação do sujeito. A semi-imputabilidade existe em poucos
O PSIQUIATRA NO TRIBUNAL países do mundo, aplicando-se, no caso da legislação brasileira, aos
portadores de transtornos da personalidade e, por vezes, aos usuários
Qualquer médico está sujeito a ser convocado para atuar em de substâncias. Nesse caso, pode o juiz decidir por encurtamento da
um processo, quer como testemunha, caso trate-se de paciente seu pena ou encaminhamento para tratamento em regime extra-hospi-
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talar. Ao médico perito, cabe lembrar que seu papel não é de juiz, Normalmente, quando o caso implica nessas questões mais comple-
sendo sua função única a de traduzir em linguagem acessível e de xas, o advogado ou o juiz elaboram quesitos a serem respondidos
forma isenta aquilo que enxergar por meio do seu treinamento mé- pelo perito.
dico.

DOCUMENTOS MÉDICO-LEGAIS
Causas cíveis
Em que pese ser o laudo médico o principal foco de atenção
deste capítulo, é conveniente apresentar os principais documentos
Nas causas cíveis, habitualmente, há duas partes em litígio
médicos que são de interesse para a justiça, excluindo apenas o
por determinado motivo; se no transcorrer do processo houver al-
atestado de óbito, por fugir ao interesse em questão.
gum questionamento sobre a sanidade mental de uma das partes e
A rigor, tudo o que o médico escreve é considerado documento
que possa interferir na decisão final, o psiquiatra é nomeado pelo
e pode ser utilizado como prova documental em caso de processos:
juiz ou contratado pelas partes. As questões são variadas, versando
prontuários, receituários, encaminhamentos, são todos registros que
sobre casamento, pátrio poder, separação e guarda de filhos, he-
trazem informações potencialmente relevantes para a justiça. No en-
rança e testamento, entre outras. Uma das causas mais comuns, em
tanto, existem certos documentos que já possuem interesse legal no
que não há propriamente litígio, é a interdição ou curatela.
momento em que são produzidos pelo médico, merecendo então cui-
O novo código civil diz:
dado especial quando de sua confecção. Costuma-se dividi-los em
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atestado e declaração, parecer e relatório, sendo este último a deno-
atos da vida civil: minação genérica para laudo.
I. os menores de dezesseis anos; O atestado médico é a afirmação por escrito de fato atinente à
II. os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tive- prática médica, feito por profissional habilitado no exercício da pro-
rem o necessário discernimento para a prática desses atos; fissão, e que traz implicações para o paciente que o está requisitan-
III. os que, mesmo por causa transitória, não puderem expri- do. Vale reforçar que o atestado, apesar de ser um documento parti-
mir sua vontade. cular, sem ligação direta com a justiça, tem desdobramentos legais,
Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira uma vez que ele é requerido pelo paciente para atestar saúde ou
de os exercer: doença e as suas conseqüências, ou seja, pode ou não trabalhar em
I. os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; função de estar saudável ou doente, pode ou não fazer exercícios
II. os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por físicos, pode ou não freqüentar determinados lugares. Isto é, é um
deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; documento com fé pública, pois o que nele consta interessa à socie-
III. os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; dade. O atestado deve ser escrito sempre com letra legível, constan-
IV. os pródigos. do os fins para os quais está sendo produzido, quem o está pedindo,
Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por le- qual o fato médico atestado e qual a sua conseqüência. Evita-se
gislação especial. escrever o nome da doença, preferindo-se sempre colocá-la segun-
do seu código na Classificação internacional de doenças. Digamos
Tutela é o encargo jurídico de velar por, representar na vida que José da Silva é tratado por epilepsia, com as crises controladas,
civil e administrar bens de menor interditado, enquanto curatela e precisa de atestado para a academia. Esse atestado pode ser escri-
implica a função exercida por pessoa encarregada de administrar to da seguinte forma:
bens. Em direito civil diz-se “sob curatela” em relação à pessoa que
não tem condições de administrar os próprios bens, sendo o curador Atesto, para fins de prática desportiva e a pedido do mesmo, que
aquele incumbido de cuidar dos bens desses indivíduos. o paciente José da Silva é portador do diagnóstico G40 (CID-
Entende-se, portanto, que existem pessoas consideradas, de- 10), não estando impedido de praticar atividade física em razão
vido a transtornos mentais, incapazes para os atos da vida civil, dessa doença.
necessitando ser interditadas total ou parcialmente e submetidas à Sem mais,
curatela de um responsável. A interdição parcial justifica-se na me- Dr. ..., CRM...
dida que a vida civil é diversa e variada, sendo comuns casos em
que não há incapacidade total, podendo o periciando em questão, Normalmente é feito em receituário, no qual devem constar nome,
por exemplo, fazer compras menores e ter talão de cheques, mas registro de classe e endereço profissional, sempre ser carimbado.
não vender e comprar bens imóveis nem viajar desacompanhado. Tal padrão é similar ao seguido na declaração, mas esta é a
simples afirmação de um fato, não trazendo em si as suas conseqüên-
cias; não tem, pois, fé pública. É comum que pacientes que rece-
bem benefícios sociais em razão de doença peçam ao médico parti-
cular uma carta para quando forem passar em perícia. Nesse caso,
Atenção não é o seu médico quem determina se ele está ou não no direito
do benefício, limitando-se, portanto, a declarar os fatos, não ates-
O psiquiatra, quando perito ou assistente técnico, não atua em tando as suas implicações. Supondo que Maria dos Santos seja pa-
função de ajudar um ou outro, de favorecer este ou aquele, nem ciente tratada por depressão, tendo recebido auxílio-doença, solici-
tampouco de determinar se uma pessoa é culpada ou inocente. ta carta para a perícia. Esta pode seguir o exemplo:
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Declaro, a pedido da mesma, que Maria dos Santos é paciente 2. Quesitos. Se houver quesitos, podem ser transcritos
regularmente acompanhada por F32 (CID-10), segue em trata- em seguida, para já deixar claro o que o laudo procura-
mento ambulatorial desde março de 2000, ainda sem previsão rá responder.
de alta. 3. Histórico. Corresponde, na prática clínica, a queixa,
Sem mais, história da moléstia atual, antecedentes pessoais e fami-
Dr.... CRM... liares, hábitos e adicções, etc. No caso da perícia, deve
conter ainda as informações relevantes do processo. É
Note que a declaração não traz as implicações do fato afirma- bom que contenha separadamente as fontes consulta-
do, pois o fim desse documento é apenas informar a quem de direi- das, deixando claro quando os dados foram obtidos em
to sobre fato do conhecimento do médico assistente. entrevista com o periciando, com familiares e outros, e
Já o parecer, por sua vez, é a resposta escrita à pergunta feita quando foram obtidos nos autos do processo (que sem-
normalmente por advogado versando sobre questões médico-legais pre são de consulta útil para o pleno entendimento do
já respondidas, mas que tenham dúvidas. O parecerista costuma caso), prontuários ou outras fontes. Exames complemen-
ser autoridade reconhecida na área ou grupo ou junta de notório tares devem ser anotados à parte nesse tópico do laudo.
saber, e sua função é apenas a de esclarecer o que lhe foi pergunta- O médico, neste ponto, não tem compromisso com a
do. Não se trata de fazer perícia e elaborar laudo, mas sim de res- verdade das informações, já que não foram por ele for-
ponder a uma ou mais perguntas que sejam relevantes para o caso. necidas, devendo, por isso, deixar claro que são obtidas
É também um documento particular, não havendo compromisso de terceiros, mas de relevância clínica.
legal de quem o fornece, a não ser o compromisso ético, obviamen- 4. Descrição. Trata-se, em última análise, do exame psí-
te. Não tem formato padrão, mas segue de perto o modelo do lau- quico. Deve ser feito pormenorizadamente, pois esse é
do, que veremos a seguir, sendo interessante que contenha o pre- o coração do laudo, como se diz nos tratados antigos,
âmbulo, a exposição dos motivos do parecer, (i.e., qual a pergun- dele dependendo todo o resto do relatório. Classica-
ta), a discussão e a conclusão, em que a primeira corresponde à mente, seu modo de construção é denominado visum
resposta (onde deverá constar as repostas aos quesitos formula- et repertum, isto é, ver e repetir, devendo o perito se
dos) e a última à explicação da resposta. esforçar para, nesse momento, descrever o mais objeti-
vamente possível aquilo que encontra em seu exame. A
forma pode seguir rigorosamente a do exame psíquico.
A PERÍCIA PSIQUIÁTRICA E O SEU LAUDO 5. Discussão. Muitas vezes dispensável em outros casos
médico-legais, em psiquiatria é da discussão que de-
pende o entendimento da conclusão e da resposta aos
O relatório médico é a descrição minuciosa da perícia. É o que
quesitos. Nela, a história clínica e as informações obti-
conhecemos por laudo médico, e cuja estrutura é analisada toman-
das são analisadas à luz do exame psíquico e as hipóte-
do por base o laudo médico-legal em psiquiatria.
ses diagnósticas são levantadas. Uma breve explicação
A perícia psiquiátrica segue os passos da entrevista psiquiá-
sobre o transtorno provável, sobre o caminho que leva
trica usual, com a diferença que o objetivo nesse caso não é che-
ao seu diagnóstico e sobre o prognóstico e as implica-
gar ao diagnóstico para instituir terapia, mas para responder a
ções que normalmente traz facilitam o entendimento
questões formuladas por autoridade judicial. O prognóstico, da
global do laudo.
mesma maneira, não é estabelecido para informação do paciente,
6. Conclusão. Sintética, deve ser direta, expor o diag-
mas para esclarecimento da mesma autoridade em questão. Des-
nóstico e resumidamente retomar suas conseqüências,
de já, fica claro que as regras de sigilo são diferentes no caso de
aqui apenas as mais prováveis para o caso em questão.
perícias, nas quais, como já mencionado, não é estabelecida a re-
Se mais de uma conclusão é possível, devem ser expli-
lação médico-paciente, mas uma relação mais tensa, perito-
citadas e ponderadas. É aqui, neste tópico, que o perito
periciando.
exerce sua função principal, a de traduzir em lingua-
Os passos da perícia ficam claros quando examinamos as par-
gem leiga os fatos médicos importantes para o caso.
tes do laudo:
7. Resposta aos quesitos. Podem ser repetidas as per-
guntas, para facilitar a consulta ao documento, e as
1. Preâmbulo. Nele deve constar quem é o médico, com repostas, na medida do possível, devem ser fornecidas
nome, títulos e endereço profissional; por quem ele foi de forma binária, com sim ou não, com breves explica-
designado, qual autoridade o nomeou ou consultou; ções, se necessário. Se for um quesito de resposta im-
para qual finalidade, se perícia cível, criminal, traba- possível (p. ex., “O réu irá ter recaída?”), deve-se expli-
lhista, administrativa; para periciar quem, identifican- car a inadequação da pergunta.
do o periciando; quando e onde, colocando local e data
da realização do exame:

Eu, Dr...., CRM..., médico psiquiatra, atendendo à Rua...,


Atenção
nomeado pelo meritíssimo senhor juiz da Vara... do
Fórum de..., para realizar perícia criminal em..., RG..., Ao psiquiatra forense é requerido que ajude a justiça, para que a
realizei o exame pericial aos... dias do mês..., do ano..., tradução e a explicação de fatos médicos em termos leigos
em meu consultório, e forneço, a seguir, meu laudo. possibilite a maior correção nas decisões tomadas.
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Seguindo os passos da elaboração do laudo, temos o panora- fuja das tentativas de utilização do conhecimento para conduzir o
ma de como é feita uma perícia em psiquiatria forense. Vale ressal- caso para um ou outro lado, para que o psiquiatra atue sem medo e
tar que o laudo deve ser claro, sempre procurando termos leigos com sucesso em qualquer questão forense.
para explicar conceitos médicos, quando houver possibilidade do
não-entendimento por parte dos operadores do direito.
REFERÊNCIAS
CONCLUSÃO GARCIA, J. A. Psicopatologia Forense. 3. ed. Belo Horizonte: Forense, 1979.
HART, S. D.; HARE, R. D. Psychopathy and antisocial personality disorder. Current
Muitas vezes, em psiquiatria forense, o mais importante é o Opinion in Psychiatry, v. 9, p. 129-132, 1996.
que menos fica claro, não só para os médicos, como para os advo- KAPLAN, H. I.; SADOCK, B. J. Compêndio de Psiquiatria Dinâmica. Porto Alegre:
gados e para a sociedade em geral – isto é, entender que o psiquia- Artes Médicas, 1984.
tra, quando perito ou assistente técnico, não atua em função de LEYRIE, J. Manuel de Psychiatrie e de Criminologie Clinique. Paris: Vrin, 1977.
ajudar um ou outro, de favorecer este ou aquele, tampouco de de- MARANHÃO, O. R. Curso Básico de Medicina Legal. São Paulo: Revista dos Tribu-
terminar se a pessoa é culpada ou inocente. A defesa cabe aos nais, 1978.
advogados; a acusação, à promotoria; o julgamento, apenas ao juiz. MIRA, Y.; LOPES, E. Manual de Psicologia Jurídica. São Paulo: Mestre Jou, 1967.
Ao psiquiatra forense é requerido que ajude, sim, mas à justiça, RESTAK, R.M. Forensic Neuropsychiatry. Current Opinion in Psychiatry, v. 10, p.
para que a tradução e a explicação de fatos médicos em termos 63-68, 1997.
leigos possibilite a maior correção nas decisões tomadas, exercen- ROSNER, R. Principles and Practice of Forensic Psychiatry. London: Arnold, 2003
do assim o já citado visum et repertum, ou seja, ver e repetir, escla- SCHNEIDER, K. Las Personalidades Psicopaticas. Madrid: Morata, 1980.
recendo o que foi visto de forma inteligível para a justiça.
STONE, M. H. Criminality and Psychopatology. Journal of Practical Psychiatry
Ao entender esse fato simples, muito da ansiedade e do te- and Behavioral Health, v. 3, p. 146-155, 1997.
mor que cercam o comparecimento do médico perante os tribunais
TIIHONEN, J., HAKOLA, P. Psychiatric disorders and homicide recidivism. Am. J.
é aplacado. Além disso, uma vez que se conheça a estrutura do Psychiatry, v. 151, n. 3, p. 436-438, 1994.
laudo, que dirige a realização das perícias, basta que se evite a uti-
VEIGA DE CARVALHO, H.; SEGRE, M. Compêndio de Medicina Legal. São Paulo:
lização do impenetrável jargão médico na sua elaboração, e que se Saraiva, 1978.

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