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Ciência

Descubra as mentiras que o seu cérebro conta para você


Você não toma as próprias decisões ‐ e boa parte do que vê não é real. É apenas uma ilusão criada
pelo seu cérebro, que passa pelo menos 4 horas por dia enganando você. Conheça os truques que ele
aplica ‐ e saiba o que realmente acontece dentro da mente.
junho
2012 por Alexandre de Santi; Colaboradores: Bianca Carneiro e Cristine Kist
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Você fica cego 4 horas por dia. Já foi enganado por um rótulo nesta semana. Tem preconceitos sobre
todos os assuntos (por mais que ache que não). Toma decisões irracionais, que vão contra os seus
interesses. Você não está no controle da própria mente. Mas não se preocupe: você é normal. Não é
maluco e possui um cérebro perfeito, como o de qualquer outra pessoa. Só que ele inventa coisas para
iludir você. Não é por mal. É só uma maneira de economizar energia.

O cérebro humano é o objeto mais complexo do Universo. Tem 100 bilhões de neurônios, que podem
formar 100 trilhões de conexões. Se fosse possível criar um computador com o mesmo número de
circuitos do cérebro, ele consumiria uma quantidade absurda de eletricidade: 60 milhões de watts por
hora, segundo uma estimativa de cientistas da Universidade Stanford. É o equivalente a quatro usinas
de Itaipu trabalhando simultaneamente. Mas o cérebro humano gasta pouquíssima energia ‐ 20 watts,
menos que uma lâmpada. E mesmo assim consegue fazer coisas extremamente sofisticadas, de que
nenhum computador é capaz.

Só que isso tem um preço. O seu cérebro não consegue analisar as situações de forma completamente
racional, avaliando todas as variáveis envolvidas em cada caso. Para fazer isso, ele precisaria de ainda
mais circuitos ‐ e muito mais energia. Mas, ao longo da evolução, a natureza encontrou uma solução: o
cérebro pode mentir para seu dono. Sim, mentir. Descartar informações, manipular raciocínios e até
inventar coisas que não existem. Dessa forma, é possível simplificar a realidade ‐ e reduzir
drasticamente o nível de processamento exigido dos neurônios. "São efeitos colaterais do
funcionamento normal do cérebro", diz Suzana Herculano‐Houzel, neurocientista da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Tudo começa pela visão. Você não percebe, mas o cérebro edita o que você vê. Das 16 horas por dia
que uma pessoa passa acordada, em média, 4 horas são preenchidas por imagens "artificiais" ‐ que não
foram captadas pelos olhos, e sim criadas pelo cérebro.

O olho humano só capta imagens com clareza em uma pequena parte, a fóvea, que tem 1 milímetro de
diâmetro e fica no centro da retina. Então, para compor a linda imagem que você está vendo agora, os
seus olhos estão constantemente em movimento. Eles focam determinado ponto e depois pulam para
o ponto seguinte. Cada um desses saltos tem duração de 0,2 segundo. Quer comprovar isso na prática?
Na próxima vez em que você estiver conversando com uma pessoa, preste atenção nos olhos dela.
Você irá perceber que eles se movimentam o tempo todo para escanear vários pontos do seu rosto.

O problema é que a cada pulo desses, enquanto os olhos estão se movendo para a próxima posição, o
cérebro deixa de receber informação visual por 0,1 segundo. Durante esse tempo, você está cego. E,
como nossos olhos fazem pelo menos 150 mil pulos todos os dias, o resultado são 4 horas diárias de
cegueira involuntária. Você não percebe isso porque o cérebro preenche esses momentos com imagens
artificiais, que dão a sensação de movimento contínuo. Mas que, na prática, você não viu.

Tem mais: o que você enxerga não é o que está acontecendo ‐ e sim o que vai acontecer no futuro. É
sério. Isso acontece porque a informação captada pelos olhos não é processada imediatamente. Ela
tem de passar pelo nervo óptico e só depois chega ao cérebro. O processo leva frações de segundo, e
você não pode esperar ‐ um atraso na visão pode fazer com que você seja atropelado ao atravessar a
rua, por exemplo. Então, o que faz o cérebro? Inventa. Analisa os movimentos de todas as coisas e
fabrica uma imagem que não é real, contendo a posição em que cada coisa deverá estar 0,2 segundo no
futuro. Você não vê o que está acontecendo agora, e sim uma estimativa do que irá acontecer daqui a
0,2 segundo.

As mentiras invadem a razão


Com R$ 1,10, você pode comprar um café e uma bala. O café custa R$ 1 a mais do que a bala. Quanto
custa a bala? Responda rápido. Dez centavos, certo? Errado. Você acaba de ser enganado pelo próprio
cérebro. Mas não está sozinho ‐ mais da metade dos estudantes de universidades prestigiadas como
Harvard, MIT e Princeton responderam a essa mesma pergunta e também erraram (entre alunos de
instituições menos badaladas, o índice de erro é ainda maior, cerca de 80%). Essa charada é um dos
exemplos citados no livro Thinking, Fast and Slow (Pensando, Rápido e Devagar, ainda sem versão em
português), do psicólogo israelense Daniel Kahneman, que ganhou o Prêmio Nobel de Economia por
suas pesquisas sobre o comportamento humano.

Para Kahneman, o cérebro tem dois tipos de pensamento. O primeiro é rápido e intuitivo e confia na
experiência, na memória e nos sentimentos para tomar decisões. O segundo é lento e analítico ‐ e
serve como uma espécie de guardião do primeiro.

Se estamos decidindo sobre o que comer, podemos ficar em dúvida entre um sanduíche e um prato de
feijão. Mas por que essas duas opções, justo elas, surgiram como as alternativas válidas para o
momento? Por que você não considerou um bacalhau com batatas? Por que não um sorvete de processamento lógico, surgiu
abacaxi? Porque o seu pensamento intuitivo já estava inclinado para optar pelo sanduba ou relativamente tarde na evolução da
pelo feijão e restringiu previamente as escolhas antes mesmo que você se desse conta de que espécie humana ‐ já as emoções e
estava chegando a hora de almoçar. Do contrário, passaríamos horas avaliando todas as os instintos estavam com nossos
possíveis opções de refeição ‐ e morreríamos de fome. Se o pensamento intuitivo não existisse, ancestrais há muito mais tempo.
seria extremamente difícil escolher uma roupa ou responder a perguntas banais, do tipo "como Por isso elas são tão fortes e nos
você está?" ou "gostou do filme?". De certa forma, o pensamento intuitivo é o que nos influenciam tanto. "A filosofia
diferencia dos robôs. E é ele que permite ao cérebro processar informações na velocidade considera o ser humano um animal
necessária. "Ele é mais influente. É o autor secreto de muitas decisões e julgamentos que você racional. Mas o que sabemos é que
faz", explica Kahneman no livro. Foi o pensamento intuitivo que apontou os dez centavos como apenas em certas circunstâncias e à
resposta para o enigma do café. Só que ele mentiu para você. A resposta certa é R$ 0,05. Se a custa de muito esforço conseguimos
bala custasse R$ 0,10, o café custaria R$ 1,10 ‐ e o total daria R$ 1,20. ser racionais", afirma Vitor Haase,
médico e professor de psicologia da
Esse duelo entre os dois tipos de pensamento, o rápido‐intuitivo e o lento‐analítico, também Universidade Federal de Minas
tem uma explicação evolutiva. O córtex pré‐frontal, região do cérebro responsável pelo Gerais (UFMG).
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O pensamento intuitivo está sempre presente, até nas situações em que a racionalidade é
supremamente importante. Um estudo de pesquisadores das universidades de Ben Gurion, em
Israel, e Columbia, nos EUA, analisou o comportamento de juízes que deveriam decidir sobre a
liberdade condicional de presos (um processo rápido, que leva 6 minutos). Em média, somente
35% dos condenados ganhavam a condicional. Mas os cientistas perceberam que os juízes eram
muito mais benevolentes depois de comer. Quando eles tinham acabado de fazer uma
refeição, a taxa de aprovação subia para 65%. Com o passar do tempo, a fome vinha chegando,
e a concessão de liberdade condicional ia caindo. Minutos antes do próximo lanche, o índice de
aprovação era quase zero.

Decidir sobre liberdade condicional e julgar a própria felicidade são tarefas complexas. Para
avaliar todas as variáveis envolvidas, muitas delas subjetivas, o cérebro tenderia a ficar
sobrecarregado. Por isso, ele usa atalhos. "Os nossos problemas são resolvidos no piloto
automático, através de soluções que a cultura já embutiu no nosso cérebro", diz Haase.

Estudos têm revelado outra distorção: toda pessoa sempre tende ao otimismo, mesmo quando
não há motivos para isso. A pesquisadora Tali Sharot, da University College London, gravou a
atividade cerebral de voluntários enquanto eles imaginavam situações banais ‐ como tirar uma
carteira de identidade. Ela também pediu que os voluntários pensassem em coisas do passado.
Os testes mostraram que as mesmas estruturas cerebrais são ativadas para recordar o passado
e imaginar o futuro. Só que, ao imaginar o futuro, os voluntários criavam cenários magníficos ‐
era o cérebro tentando colorir os eventos sem graça. "Cerca de 80% das pessoas têm tendência
ao otimismo, algumas mais do que outras", diz ela. Para Tali, autora do livro Optimism Bias (O
Viés do Otimismo, ainda sem versão em português), o otimismo é sempre mais comum que o
pessimismo ‐ seja qual for a faixa etária ou o grupo socioeconômico da pessoa. Assim, nunca
acreditamos que algo vá dar errado ‐ mesmo quando o mais racional seria pensar que sim. "As
taxas de divórcio, por exemplo, chegam a 40%, 50%.
Mas as pessoas que estão para casar sempre estimam suas chances de separação em o%",
exemplifica Tali. Segundo ela, a inclinação natural ao otimismo também é um dos fatores que
levaram à crise econômica global de 2008. "As pessoas achavam que o mercado continuaria
subindo cada vez mais e ignoraram as evidências contrárias", afirma.

Ele está no controle


As manipulações criadas pelo cérebro afetam até a capacidade mais essencial do ser humano:
tomar as próprias decisões. Quando você decide alguma coisa, na verdade o cérebro já decidiu
‐ com uma antecedência que pode chegar a 10 segundos. Uma experiência feita no Centro
Bernstein de Neurociência Computacional, em Berlim, comprovou que as nossas escolhas são
resolvidas pelo
cérebro antes mesmo de chegarem à consciência. Voluntários foram colocados em frente a uma
tela na qual era exibida uma sequência aleatória de letras. O voluntário tinha que escolher uma
das letras e apertar um botão sempre que ela aparecesse. Os cientistas monitoraram o cérebro
dos participantes durante o experimento. E chegaram a uma descoberta impressionante: 10
segundos antes de os voluntários escolherem uma letra, sinais elétricos correspondentes a essa
decisão já apareciam nos córtices frontopolar e medial, as regiões do cérebro ligadas à tomada
de decisões. Cinco segundos antes de o voluntário apertar o botão, o cérebro ativava os
córtices motores, que controlam os movimentos do corpo. Isso significa que, 10 segundos antes
de você fazer conscientemente uma escolha, o seu cérebro já tomou a decisão para você ‐ e
até já começou a mexer a sua mão.

"O indivíduo não é livre para escolher", afirma Renato Zamora Flores, professor de genética do
comportamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O cérebro restringe
previamente as suas possíveis opções e, pior ainda, escolhe uma delas antes mesmo que você se
dê conta. É possível lutar contra isso. Lembra‐se daquele outro tipo de pensamento, o lento‐
analítico? Basta colocá‐lo em ação. E isso você consegue tendo calma, refletindo sobre as coisas
e duvidando das suas escolhas e opiniões. Os truques do cérebro são poderosos, mas não
invencíveis. Agora que você sabe como funcionam, está muito mais preparado para lidar com
eles ‐ e se tornar realmente livre para tomar as próprias decisões.

[1987 ‐ 2013] Editora Abril S.A. Todos os direitos reservados.

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