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SOBRE
RODAS
Nélio Lima
SONHOS
SOBRE
RODAS
Edição ABRATI
FICHA CATALOGRÁFICA
Fotos
1ª capa: Acervo Transporte e Turismo Ltda. — TTL
2ª capa: Acervo Reunidas S. A. Transportes Coletivos
3ª capa: Acervo Expresso Princesa dos Campos
CDD 385
________________________________________________
Apresentação ......................................................................................... 7
Nota explicativa .................................................................................... 9
A representação do setor ..................................................................... 13
Introdução .......................................................................................... 17
Auto Viação Catarinense Ltda. ........................................................... 19
Empresa Auto Viação Progresso S. A. ................................................. 33
Empresa Unida Mansur & Filhos Ltda. .............................................. 37
Viação Garcia Ltda. ............................................................................ 45
Empresa de Ônibus Pássaro Marron Ltda. .......................................... 53
Expresso Princesa dos Campos S. A. ................................................... 69
Viação Araguarina Ltda. ..................................................................... 75
Viação Ouro e Prata S. A. ................................................................... 83
Expresso Brasileiro Viação Ltda. ......................................................... 89
Empresa de Transportes Gontijo Ltda. .............................................. 105
Viação Salutaris e Turismo S. A. . ...................................................... 111
Viação Águia Branca S. A. ................................................................ 119
Auto Viação 1001 Ltda. ..................................................................... 135
Empresa Santo Anjo da Guarda Ltda. ............................................... 145
Planalto Transportes Ltda. ................................................................ 151
Expresso de Luxo Silva — Dimas José da Silva ................................. 161
Empresa de Transportes Andorinha S. A. .......................................... 169
Viação Cometa S. A. ......................................................................... 175
Companhia São Geraldo de Viação .................................................. 191
União Transporte Interestadual de Luxo S. A. — UTIL .................... 197
Reunidas S. A. — Transportes Coletivos ........................................... 203
Real Alagoas de Viação Ltda. ............................................................ 215
Viação Cidade do Aço Ltda. ............................................................. 221
Viação Progresso e Turismo S. A. ...................................................... 231
Viação Santa Cruz S. A. .................................................................... 237
Real Expresso Ltda. ........................................................................... 243
Empresa Sulamericana de Transportes em Ônibus ........................... 251
Viação Itapemirim S. A. .................................................................... 259
Grupo Guanabara — Jacob Barata ................................................... 271
Transporte e Turismo Ltda. — TTL .................................................. 279
Viação Minuano ................................................................................ 287
Empresa de Ônibus Nossa Senhora da Penha S. A. ........................... 293
Viação Sampaio Ltda. ....................................................................... 307
Unesul de Transportes Ltda. ............................................................. 313
Pluma Conforto e Turismo ............................................................... 323
Bibliografia/Fontes de consulta ......................................................... 333
Entrevistados .................................................................................... 335
Documentação/Fontes pesquisadas ................................................... 338
APRESENTAÇÃO
7
Com este novo trabalho propomo-nos ainda outro objetivo: estimu-
lar os empresários e as empresas do setor a dar justa visibilidade aos que,
com seus próprios recursos, sem depender de subsídios governamentais ou
recursos públicos, levaram a cabo a portentosa tarefa de implantar uma
das mais extensas e eficientes redes de transporte rodoviário de passageiros
do mundo.
Graças àqueles homens e aos seus continuadores, nosso País tem
muito do que se orgulhar, pois conta com um sistema de transporte único,
de alta qualidade, reconhecido até no exterior — haja vista o número de
executivos estrangeiros que aqui vêm para conhecer nossas empresas — e
que se destaca por seu elevado nível de segurança, conforto, sustentabili-
dade e confiabilidade, além do alto grau de satisfação dos seus usuários,
refletido em pesquisas periódicas.
Renan Chieppe
Presidente da ABRATI
8
NOTA EXPLICATIVA
9
Para escrever este segundo volume, procurei reproduzir e ordenar
com a maior fidelidade possível tudo aquilo que os empresários pioneiros
disseram a Rúbio Gômara e ficou registrado nas gravações. Obviamente, está
prejudicada a intenção que ele próprio declarou ao apresentar o primeiro
volume, de inserir, vez em quando, fragmentos autobiográficos decorren-
tes das situações em que figurou no elenco dos fatos históricos narrados.
Rúbio teve ainda o cuidado de não impor a última palavra quando in-
cluiu informações ou afirmações não expressamente avalizadas pelas pessoas
entrevistadas. Naquele mesmo artigo para a Revista Rodonal, referindo-se
à história do ônibus no Brasil, ressalvou que estaria apresentando alguns
aspectos dessa história, mas “todos abertos a questionamentos”.
A ressalva é ainda mais válida para este trabalho, pois, mesmo quando
teve de definir qual teria sido a mais antiga empresa de transporte rodoviá-
rio do País, Rúbio Gômara fez questão de deixar claro que se tratava da
primeira a registrar-se formalmente. Tinha consciência do risco de afir-
mar qual teria sido a primeira de todas, já que, no Brasil, a partir de certo
momento da década de 1920, surgiram inúmeras empresas dedicadas ao
transporte urbano de passageiros, sabendo-se que no princípio não havia
distinção clara entre operações urbanas e eventuais operações rodoviárias.
Em seu meticuloso esforço de pesquisa, Rúbio Gômara não localizou
nenhum documento válido que pudesse comprovar uma anterioridade
sobre os registros legais de constituição, em 13 de abril de 1928, da em-
presa Darius & Hann Ltda., futura Auto Viação Catarinense, na cidade
de Blumenau, Santa Catarina.
Cabe ainda esclarecer que faltou tempo ao pesquisador para ouvir
todos os empresários que pretendia, os quais havia relacionado no plano de
trabalho elaborado em conjunto com a Rodonal. Ficou, porém, a certeza
de que os que foram entrevistados representam plenamente o conjunto
dos homens que construíram, desde o seu nascedouro, o sistema brasileiro
de transporte rodoviário de passageiros.
Por encargo da ABRATI e com o apoio da família Gômara, coube-me
tentar recuperar a maior parte do material deixado, proceder ao levanta-
mento de todas as gravações, aprofundar as pesquisas e, em sintonia com
os executivos e a área de Comunicação da entidade, buscar o que ainda
faltava de material iconográfico para escrever e editar este volume.
10
Ao apresentar cada história, parti do princípio de que Rúbio se pro-
punha registrar precipuamente trajetórias pioneiras. Não por outro motivo,
sempre que possível ele ouviu diretamente as fontes primárias, ou seja, os
fundadores. Sendo assim, em Sonhos sobre rodas cada história é interrom-
pida no ponto em que o pesquisador encerrou seu trabalho de entrevistas.
As poucas informações que acrescentei constituem apenas breves esboços
de atualização dos registros referentes às empresas.
Falhas, lacunas e eventuais impropriedades, assim como a inevitável
diferença de estilo, deverão ser-me atribuídas e por elas antecipadamente
peço desculpas.
Nélio Lima
11
A REPRESENTAÇÃO DO SETOR
13
nas instâncias legislativa e judiciária. Nasceu assim a Associação Nacional
de Intercâmbio das Empresas de Transportes Rodoviários Interestaduais
e Internacionais de Passageiros, sob a sigla Rodonal. Os estatutos tinham
sido esboçados; o presidente (Oscar Conte, da Pluma) e o vice-presidente
(Cláudio Regina, da Única) haviam sido escolhidos por aclamação. Assim
como eles, os outros dois diretores, Fernando Campinha Garcia Cid, da
Viação Garcia, e José Augusto Pinheiro, da Real Expresso.
A sede da nova entidade foi localizada no Rio de Janeiro, onde estava
o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem — DNER —, órgão do
poder concedente. Algum tempo depois, a Rodonal passou a denominar-se
Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário Interestadual
e Internacional de Passageiros.
Oscar Conte esteve à frente da Associação por quatro anos. Montou
sua estrutura inicial e, aos poucos, agregou a ela a maioria das empresas
do setor. Quando concluiu o mandato, em 1979, cerca de 85% das em-
presas estavam associadas à Rodonal, crescentemente reconhecida como
qualificada interlocutora perante o governo.
Em poucos anos, ela já representava um setor que operava cerca de
10.000 ônibus, proporcionava mais de 50.000 empregos diretos e mais de
300 mil indiretos. Suas associadas transportavam pelo menos 90% dos 86
milhões de passageiros que utilizavam o transporte rodoviário interestadual
e internacional no Brasil. O percentual de participação do setor continuou
aumentando e chegou a 95%, o que lhe deu total representatividade para
cumprir o seu papel de encaminhar e discutir as questões de interesse das
transportadoras.
O segundo presidente, Fernando Campinha Garcia Cid, da Viação
Garcia, foi presidente de 1980 a 1983, sendo sucedido por Bernardino Rios
Pim, da Viação Itapemirim, que assumiu em 1984 e permaneceu até 1987.
Em 1988, um grupo de empresários representativos do setor, agrupados
na Rodonal, que operavam os segmentos interestadual e intermunicipal,
decidiu criar também a Associação Nacional das Empresas Rodoviárias
de Transporte Intermunicipal e Interestadual — NTR —, com sede em
Brasília, uma vez que a entidade mater estava mais focada no DNER, no
Rio de Janeiro, onde orientava sua atuação na defesa do sistema interna-
cional e interestadual.
14
A NTR, liderada por Aylmer Chieppe, da Viação Águia Branca,
somando-se à Rodonal, desenvolveu intenso trabalho institucional na ca-
pital federal, atravessando períodos turbulentos dos governos Sarney e
Itamar Franco e logrando grandes avanços para a classe, entre eles um
novo Regulamento do Transporte Rodoviário que mantivesse o equilíbrio
do sistema como um todo e, ainda, o equacionamento de graves problemas
de defasagem tarifária que assolaram o setor.
Na Rodonal, Heloísio Lopes, da Companhia São Geraldo de Viação,
assumiu a presidência em 1988 e transferiu a sede da entidade do Rio de
Janeiro para Brasília. Em 1991, Heloísio passou o cargo a José Augusto
Pinheiro, que seria presidente até 1995.
Tendo a Rodonal se transferido para Brasília e uma vez resolvidos os
problemas que preocupavam o setor, as lideranças empresariais, capitaneadas
por Aylmer Chieppe, pela NTR, e por José Augusto Pinheiro, pela Rodonal,
entenderam que era chegada a hora de buscar os pontos de convergência
entre as duas entidades, eliminar possíveis divergências e partir para uma
entidade fortalecida que agrupasse todas as empresas do setor rodoviário
de passageiros: intermunicipais, interestaduais e internacionais.
Assim, em janeiro de 1995, no decurso de memorável reunião no au-
ditório da CNT, em Brasília, presentes empresários de todo o País, inclusive
os pioneiros e expoentes, chegou-se à decisão de extinguir a Rodonal e a
NTR, criando-se, sob uma mesma bandeira de ideais, a Associação Brasi-
leira das Empresas de Transporte Rodoviário Intermunicipal, Interestadual
e Internacional de Passageiros — ABRATI. O empresário Walter Lemes
Soares, da Empresa de Transportes Andorinha, foi o primeiro presidente da
ABRATI; assumiu em 1995 e permaneceu até 1999. Foi substituído nesse
ano por Oscar Conte, que já havia sido o primeiro presidente da Rodonal.
Mais tarde, a entidade passou a denominar-se Associação Brasileira das
Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros, sendo mantida a sigla
ABRATI, assim como as finalidades e os objetivos.
Em 2002, a presidência da ABRATI passou a ser exercida por Sérgio
Augusto de Almeida Braga, da Companhia São Geraldo de Viação, que
passou o cargo a Renan Chieppe, da Viação Águia Branca, em setembro
de 2008.
15
Fotos: Acervos Rodonal e ABRATI
Heloísio Lopes José Augusto Pinheiro Aylmer Chieppe Walter Lemes Soares
São Geraldo Real Expresso Águia Branca Andorinha
1988 — 1991 1992 — 1995 1988 — 1995 1995 — 1999
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Não menos extraordinária é a história do jovem brasileiro que integrou,
como voluntário, o contingente da FEB enviado à Itália, e que, logo ao
voltar, fundou o que viria a ser um dos nossos maiores grupos empresariais
da área de transporte rodoviário de passageiros.
Evidentemente, se às vezes a guerra e suas consequências aparecem
relacionadas à história do sistema brasileiro de transporte rodoviário de
passageiros, isso se deve ao fato de que a maioria dos empreendimentos
surgiu nas décadas de 1930, 1940 e 1950.
E aqui, cabe destacar que muitas das empresas criadas, então, o
foram por iniciativa de imigrantes. Em geral italianos, portugueses, espa-
nhóis, alemães, que exerceram papel fundamental na implantação e no
desenvolvimento da atividade.
O mais acertado, pois, é dizer que tais empreendimentos teriam
surgido naquele momento com ou sem a guerra, pois o Brasil de então
carecia desesperadamente de estradas e de interligação das suas várias
regiões. Necessidade que as ferrovias e a navegação de cabotagem não
conseguiam prover a contento.
Dessa forma, não é destituído de fundamento afirmar que cada um
dos empreendedores pioneiros do transporte rodoviário de passageiros
enfrentou e venceu a sua própria e prolongada guerra: contra as estradas
ruins ou inexistentes, contra a carência de equipamento adequado, contra
a ausência de regras claras para o exercício da atividade, enfim, contra
todas as precariedades próprias de um país que, 60, 70 ou 80 anos atrás,
ainda tentava encontrar um modelo de desenvolvimento.
São as histórias desses pioneiros, de seus sonhos e de suas guerras
particulares que estão sendo contadas a partir da próxima página.
18
AUTO VIAÇÃO CATARINENSE LTDA.
THEODOR DARIUS
1928
19
anterior, 1923, havia registrado índices altíssimos de inflação. Milhares de
comerciantes, camponeses e pequenos industriais tinham ido à ruína. As
condições de sobrevivência dos assalariados haviam sido duramente afetadas.
E a emigração, que já era expressiva, aumentara de volume, especialmente
na direção de países da América do Sul. Alemães se deslocavam de forma
contínua para o Brasil, o Chile, o Uruguai e a Argentina.
Muito cedo Theodor Darius percebeu que, também por aqui, iria
enfrentar dificuldades. O Brasil, embora se mostrasse terra acolhedora,
atravessava prolongado período de turbulência política. No momento de
sua chegada, prevalecia o estado de sítio — que perdurou nos anos seguin-
tes —, como consequência das contínuas agitações nos meios políticos e
militares, descontentes com os rumos do governo central. Em 1922, ofi-
ciais intermediários do Exército haviam se rebelado no Rio de Janeiro, no
episódio conhecido como “Os 18 do Forte” de Copacabana. Agora mesmo,
em 1924, haviam eclodido revoltas em São Paulo, no Rio Grande do Sul,
no Amazonas e no Pará.
Tropas militares voltariam a se rebelar em 1925, mesmo sob o estado
de sítio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, unindo-se para formar a
Coluna Prestes, igualmente de inspiração tenentista, que, até 1927, iria se
deslocar por milhares de quilômetros Brasil adentro, travando e vencendo
combates com forças federais, estaduais e até com jagunços e cangaceiros.
Desmobilizou-se depois e se internou na Bolívia.
Enquanto isso, o imigrante Theodor Darius atirava-se ao trabalho em
Blumenau e tratava de adaptar-se ao país que escolhera. Somente quase
uma década depois, em 1933, ele se sentiria em condições de detalhar como
haviam transcorrido os seus primeiros tempos de imigrante. A carta dizia:
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concentrar-me. Não sei o que Paula já escreveu, mas contarei desde o início.
Assim ficarão sabendo de tudo e a mim fará bem recordar, já que o pior
passou e estou progredindo.
Nove anos se passaram desde a nossa chegada ao Brasil, cheios de
planos e fantasias, com programas estabelecidos e espírito empreendedor.
Com a realidade aqui encontrada, tudo desvaneceu. Imaginem, eu, comer-
ciante; como poderia negociar se nem ao menos conhecia a língua e a
legislação da terra para escrever uma carta comercial? Como iria tratar
com um freguês, sem conhecer o câmbio e o idioma? Aspectos que considero
muito importantes, pois em qualquer firma saberia muito menos do que o
mais simples dos empregados.
Se não fosse casado e minha mulher não estivesse esperando o primeiro
filho, teria sido fácil conseguir um emprego que me desse casa e comida,
e teria tempo para conhecer a realidade da terra e a língua do povo. Mas,
diante da situação, tive que procurar um emprego que atendesse às neces-
sidades básicas da família o mais rápido possível. Por esse motivo tantos
outros emigrantes fracassaram. Mas deixemos esses assuntos para um dia
comentá-los pessoalmente.
Devo alegrar-me em dizer-lhes que achei uma solução para essas pri-
meiras dificuldades. Devo isto, primeiramente, à correta educação que recebi
de vocês, da escola, nos moldes da disciplina prussiana, mas humana, que
vivíamos em casa. Por tudo isso, agradeço-lhes profundamente, pois, devido
ao alto grau de escolaridade, consigo conversar em todos os níveis e não te-
nho quaisquer presunções, adaptando-me em qualquer ambiente. Com esse
preparo recebido foi fácil o contato com todas as camadas sociais e consigo
comunicar-me com todos.
Enfim, ao assunto. No Rio de Janeiro, como vocês devem saber, ficamos
somente duas semanas. A vida lá era muito dispendiosa e, assim sendo, vie-
mos a Blumenau. Mas também aqui não foi possível encontrar um ordenado
compatível com meu grau de instrução.
Deixei, então, cair por terra toda e qualquer vaidade, pensando: “Tra-
balhar não desonra”. Comprei um automóvel, aprendi a dirigir e me coloquei
ao lado de outros carros de aluguel, esperando por fregueses... Digo-lhes,
uma vida realmente amarga não poder aproveitar meus conhecimentos, mas,
assim, conseguia tirar o pão de cada dia e o meu capital estava empatado
21
de maneira a poder reavê-lo a qualquer hora. Com esse serviço tive a opor-
tunidade de aprender a língua do país, fato que me dava grande vantagem
sobre muitos emigrantes que chegaram na mesma época e não tiveram essas
facilidades, o que os condenou a serem simples empregados. Outra vantagem
foi-me dada pelo automóvel. Com ele podia locomover-me a muitos lugares,
conhecendo a terra, seu povo e seus costumes. Durante mais ou menos dois
anos, levei esta vida, quando dei o primeiro passo. A um húngaro chamado
João Hahn, juntei meu capital com o dele e compramos um ônibus. Com
este, iniciamos uma linha regular de viagens à capital do Estado, Florianó-
polis. A distância percorrida é de 160 quilômetros. Isto foi uma verdadeira
revolução no transporte conhecido aqui. O preço de uma passagem de au-
tomóvel era duzentos mil-réis e de ônibus cobramos trinta mil-réis. Todos se
compadeciam de mim e de nosso pequeno capital. Mas mostramos a eles
que uma vontade férrea consegue vencer. Sim, também aqui os amigos me
chamam de “teimoso”. Sem me querer envaidecer, acho que os amigos usam
esse apelido como elogio e os inimigos com um certo receio. O povo aqui
se admirava de transportarmos pacotes e encomendas sem extraviá-las ou
roubá-las. No início fazíamos o trajeto duas vezes por semana, passando
logo a seguir para três vezes semanais. O banco daqui nos deu crédito, sem
maiores exigências, para comprarmos um segundo ônibus. Logo surgiu a
concorrência, provocada pela inveja. Começou então uma luta renhida. Mas
como nos mantivemos corretos e pontuais nos nossos compromissos, vencemos
após alguns anos. Estendemos nosso trajeto. Passados cinco anos, somos os
únicos a percorrer as principais rodovias através de nosso Estado. Traba-
lhamos com dezessete funcionários, possuímos onze carros que perfazem um
capital de mais ou menos duzentos mil marcos. Como aqui ainda não existe
concessão para esse tipo de transporte, só a nossa garra, sem trégua, garante
o nosso êxito. Isso não é fácil. O nosso horário de serviço: de manhã, às 7
horas, estou na firma, onde fico até às 12 ou 13 horas e muitas vezes até as
14. Faço uma pausa de dez minutos. Entenderam? Dez minutos! Nesse breve
intervalo vou de carro até em casa, almoço, beijo mulher e filhos e volto ao
escritório. Continuo a trabalhar até as 18 horas. Uma hora de mesa cativa
(Stammtisch-Hotel Seifert), onde tomo um chope e em seguida janto em
casa. Se tudo der certo, passo meia hora em casa e volto ao serviço até às 22
horas ou mais, dependendo da chegada do último carro.
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AQUI, THEODOR DARIUS INTERROMPEU a escrita, quem sabe devido
ao horário avançado. Retomou-a três dias depois, novamente em seu escritó-
rio na empresa. Teve o cuidado de datar também a segunda e última parte:
Dia 27 de agosto
Somente hoje tenho um tempo para prosseguir. É domingo à tarde e Paula
fez um lanche em casa (aniversário). Como não sou amigo dessas reuniões,
estou aqui no escritório para terminar esta carta. Um domingo por mês, passo
a tarde no clube local dos atiradores (Schuetzenverein — hoje Tabajara) ou
assisto a um jogo de futebol. Mas muitos dos domingos exigem serviços na firma.
O que é trabalhar, aprendi aqui no Brasil. O trabalho intenso e responsável
que conhecemos na Alemanha ou nos Estados Unidos aqui não existe. É isso
que dificulta muito a organização de uma firma. Com pessoal não qualificado
é difícil trabalhar. Agora, depois de anos, temos uma equipe razoável, e nessa
equipe um funcionário que nos acompanha desde o início. Compromisso com
o dever e a responsabilidade é difícil encontrar, o que dificulta a organização
das respectivas firmas. Com os elementos que temos agora, é possível pensar em
expandir as linhas e ampliar a nossa frota. Desde a fundação da empresa nós,
os chefes, não tivemos um dia de férias, pois, com o nosso afastamento, tudo
poderia desandar em pouco tempo. Só com uma férrea energia conseguimos
que tudo funcionasse satisfatoriamente. Talvez vocês consigam compreender
melhor o que quero dizer, informando-lhes a nacionalidade de nossos funcio-
nários: três alemães, seis teuto-brasileiros, um luso-brasileiro, dois italianos,
três húngaros e dois afro-brasileiros. Nem todos falam o vernáculo, e outros,
nem o alemão. Imaginem como é difícil a comunicação entre eles, e de um
sistema patronal entre chefe e empregado, nem se fala.
E a nossa vida particular? Bem, levamos uma vida bastante simples.
Casa alugada, mobiliário simples, porque o dinheiro que entra é aplicado
na firma. Nestes primeiros anos, todo o capital foi absorvido pela empresa.
Nós, sócios, temos uma retirada mensal e um extra para tratamento de saúde.
Talvez dentro de um ano eu possa comprar um terreno para, futuramente,
construir uma casa.
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Gostaríamos muito de voltar à pátria, mas, nas atuais condições rei-
nantes na Alemanha, nem penso nisso. Receio que para nós uma volta
seria de difícil adaptação. Aqui se vive em quase total liberdade pessoal,
os impostos são razoáveis, diferenças sociais não aparecem, a não ser nas
firmas. Nas horas vagas reunimo-nos com cidadãos de todos os níveis. É no
esporte, no teatro, no clube de ginástica etc.; não se pergunta pelo status,
todos são benquistos e têm os mesmos direitos.
As mudanças na Alemanha, o tanto que me alegram, também me
preocupam. A censura da imprensa, tanto da notícia bem como da (...), me
leva a pensar que se cria novamente uma obediência cega do povo, como o
era na época do Kaiser Wilhelm. Isto, ao meu ver e ao dos meus conterrâneos
aqui, é o maior perigo da política de Hitler.
Mas deixemos de política. Conosco, no momento, em matéria de saúde
está tudo bem. Malária, ninguém da família pegou. Mas Paula teve menos
sorte e já foi operada duas vezes este ano. Agora se recupera bem. As crianças
são fortes, sadias e bem inteligentes. Heinz é muito esquentado, e se alguém
o ofende, não perde tempo, avança sem olhar tamanho. Ele não teme castigo,
pois sabe que o pai, que era assim também, o defenderá. Heinz entra na
escola após o Natal. Ele já conta até duzentos, tanto em alemão como em
português. Em matéria de automóveis, não há quem possa com ele. Reconhece
a marca dos carros pelo barulho do motor, seja Ford, Chevrolet ou Dodge.
Aqui termino e peço que me respondam em breve. Sinceras recomen-
dações nossas a todos de casa e aos amigos.
Theo
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Na segunda parte da carta, Theodor Darius refere-se ao “clube local”
dos atiradores, que no início se chamara Schuetzenverein e depois mudara
o nome para Tabajara. Não é segredo que o dispositivo nazista, alcançando
âmbito mundial, tinha forte infiltração nas colônias alemãs do Brasil e in-
centivava a criação desses clubes. Há quem sustente que podia ser a etapa
anterior a uma tentativa de cooptar cidadãos alemães para organizações
paramilitares de apoio à Alemanha. Quanto à mudança do nome do clube,
o governo brasileiro imporia mais tarde essa forma de “nacionalização”,
que valeu também para associações, agremiações e outras entidades.
Porém, são os últimos parágrafos da carta que revelam o pensamento
de Theodor Darius sobre a Alemanha após a chegada de Hitler ao poder.
É quando ele afirma que gostaria de voltar à mãe-pátria, mas não nas
condições então predominantes. Como em contraponto, destaca a “quase
total liberdade pessoal” e qualifica de “razoáveis” os impostos cobrados no
Brasil. Também anota que as diferenças sociais “não aparecem”.
Por fim, de modo talvez temerário, critica a censura à imprensa im-
posta pelo regime nazista e — premonitoriamente — teme a possibilidade
de que se crie de novo uma situação de obediência cega, “como o era na
época do Kaiser Wilhelm” — risco que ele atribui à política adotada por
Hitler, e ainda fecha a carta com a revelação de que muitos de seus com-
patriotas, em Blumenau, também pensavam como ele.
Acima de tudo, no entanto, o que mais transparece é a vontade
férrea do missivista, desde sua chegada. O “primeiro passo”, como ele
definiu, havia sido formalizado no dia 13 de abril de 1928, com o registro
da Empreza Auto-Viação Hahn & Darius. Ele estava com 31 anos e seu
sócio tinha 32. De acordo com anúncio publicado em 14 de abril de 1928
no jornal A Cidade, semanário de Blumenau, a empresa atendia também
às cidades de Itajaí, Tijucas e Florianópolis. O ônibus utilizado era um
Rugby de 6 cilindros.
Em 15 de fevereiro de 1933, foi formalizada uma nova denomina-
ção, Empreza Auto-Viação Catharinense. Theodoro Darius tinha 36 anos;
João Hahn, 37. Haviam sido admitidos mais dois sócios, Adolfo Hass, de
26 anos, e Ricardo Jensen, de 32 anos. Naquela altura, os ônibus da com-
panhia já chegavam também às cidades de Laguna, Tubarão e Curitiba.
A frota era de 11 carros e a Catharinense mantinha 17 funcionários. Sua
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transformação em sociedade anônima ocorreu em 1937, com Hahn, Da-
rius e Hass detendo a maioria das ações, porém admitindo o ingresso de
mais cinco sócios com número diminuto de ações. Ainda na década de
1940, ela estenderia as operações ao litoral e, pela praia, já que não havia
estradas, chegaria a Porto Alegre.
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sobre ele um pequeno ônibus, com entradas laterais para cada fileira de
bancos. Sanefas de lona protegiam contra a chuva, mas não contra a po-
eira. A bagagem ia na parte de trás do veículo. Faziam duas viagens por
semana, com saída de Blumenau às três horas da madrugada e chegada a
Florianópolis às 5 da tarde, se tudo corresse normalmente.
Minha mãe me contou que muitas vezes, quando chovia, eles tinham
de improvisar pontilhões em determinados trechos da estrada para poderem
passar com o veículo. Depois de cada transposição, o pontilhão era desman-
chado e a jardineira prosseguia viagem. As vigas de madeira iam amarradas
no teto, para serem usadas sempre que preciso.
Contam uns que em 1924 ele veio por livre e espontânea vontade.
Contam outros que veio um tanto foragido. Na época, como consequência
da Primeira Guerra, a região onde ele vivia ainda estava sob ocupação
francesa. Houve um atrito entre um oficial francês e uma cunhada de meu
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pai. Ele teve que enfrentar fisicamente esse oficial e parece que chegou a
feri-lo. Houve represália pelos da ocupação e ele teve que fugir para o Brasil.
Inclusive, existe uma versão não oficial, não posso confirmar se é rea-
lidade ou não, mas conta-se que os problemas começaram quando o Brasil
declarou guerra à Alemanha, em 1942. Como era de colonização alemã, a
região de Blumenau tornou-se alvo da atenção dos órgãos de segurança do
governo Getúlio Vargas. Conta-se que houve uma certa pressão para que os
cidadãos alemães se desfizessem de seus bens. Como a empresa já era grande
e meu pai estava diretamente envolvido na sua administração, contam que
houve pressão para que ele saísse. Aí, praticamente, ele foi obrigado a sair.
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com uma moça da cidade e se dedicou a várias ocupações: padeiro, mascate,
dono de loteamento, motorista de táxi. Além da música, sua grande paixão
eram os automóveis, como Lourival Friedler contou a Rúbio Gômara:
Meu pai me transmitiu aquele seu amor pelo automóvel, tanto que hoje
ele e eu temos uma coleção de carros antigos. Uma homenagem à memória
do passado, que acho importante preservar. Não é só o carro; cada carro
daqueles tem uma história; houve fatos, pessoas ligadas a ele. Em 1948 ou
1949, por aí, meu pai tinha um Perfect na praça; temos esse carrinho até
hoje. E com 5 anos de idade, eu já ligava o carro de meu pai de manhã,
para esquentar, enquanto ele fazia a barba.
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pertencia a Martim Piccoli e Percy Schwind, da Empresa Nossa Senhora
da Penha, de Curitiba. Os restantes 16% pertenciam a dois outros sócios.
A velha Catarinense ganharia grande impulso após mudar de mãos.
Em apenas cinco anos, a idade média da frota de 52 ônibus foi reduzida para
dois anos e meio. Com a incorporação de outras cinco companhias, entre
elas a Brusquense, e a aquisição de novas linhas, a companhia dobrou de
tamanho e levou seus serviços a todo o estado de Santa Catarina. A frota
ultrapassou as 100 unidades. A empresa foi modernizada e racionalizada,
ficou mais enxuta, ágil e rentável.
Em 1978, foi criada a Catarinense Cargas e iniciado o processo de
diversificação, com a fundação da Distribuidora Catarinense de Veículos
— Dicave. Por fim, o grupo passou a atuar no ramo da construção civil.
Em 1983, a empresa estendeu suas operações à região serrana, ligando o
planalto central de Santa Catarina ao litoral em Itajaí e Camboriú. Em
junho de 1994, quando Rúbio Gômara entrevistou Lourival Friedler, o
grupo continuava em franca expansão, e o empresário brincou:
Friedler ainda contou que, em 1968, ele e seu pai já haviam feito
uma tentativa de comprar a Catarinense, mas o negócio esbarrou no preço.
Ao ser consumada em 1970, a transação teve certo simbolismo, especial-
mente para a população catarinense. A empresa voltava ao controle de
um grupo de Blumenau.
Mas a história não se encerrava ali.
Anos antes, Lourival tivera entre seus colegas, em um curso de
Contabilidade, um jovem chamado Raul Darius. Tão logo concretizou a
aquisição da Catarinense, Lourival levou-o para trabalhar na empresa. Um
Darius voltava ao negócio criado por seu pai 42 anos antes.
Em 1985, o controle da Auto Viação Catarinense passou para o
Grupo JCA, do empresário Jelson da Costa Antunes, e a sede da empresa
foi transferida para Florianópolis.
30
Fotos: Acervo Raul Darius
Theodor Darius e o primeiro veículo.
O elegante motorista não hesitava em enfrentar
a poeira, a chuva, a lama e a água dos rios.
Com frota maior e ônibus mais confortáveis, as linhas foram sendo estendidas a mais cidades.
No pátio da sede da
empresa, em Florianópolis,
perfeitamente reconstituída,
a primeira jardineira da
Catarinense.
33
as condições de conforto e segurança para os passageiros. Recém-instaladas
no Brasil, montadoras de caminhões e de chassis de ônibus costumavam
procurá-lo no Recife para sondar a sua opinião sobre determinadas solu-
ções tecnológicas que pretendiam adotar, ou para observar modificações
e adaptações que ele costumava fazer nos ônibus de sua empresa. Dessa
forma, a Auto Viação Progresso acabou dando contribuições importantes
para o crescimento e desenvolvimento do setor de transporte rodoviário
de passageiros.
A empresa continuou crescendo. Nas décadas de 1940 e 1950, o nome
Tude já estava fortemente associado ao transporte urbano de passageiros na
capital pernambucana, mas o empresário decidiu que a vocação maior seria
a estrada. Vendeu as linhas municipais e passou a operar exclusivamente
nos segmentos intermunicipal e interestadual.
João Tude lançou o primeiro serviço leito do Nordeste, na linha
Recife–Rio de Janeiro. Também projetou o primeiro chassi para ônibus
construído em Pernambuco, batizado justamente de chassi João Tude.
Muitos anos depois, a Auto Viação Progresso também seria a primeira a
operar ônibus Double Decker na região.
Embora tenha mantido por vários anos linhas para o Rio de Janeiro
e São Paulo, mais tarde a Progresso preferiu concentrar-se exclusivamente
na Região Nordeste, estendendo sua atuação aos estados do Rio Grande do
Norte, Ceará, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Maranhão, Piauí e Bahia, sempre
instalando pontos de apoio a intervalos de 400 quilômetros. As rotas para
o Rio de Janeiro e São Paulo foram transferidas a terceiros.
A companhia já entrou na terceira geração da família Tude, tendo
Bruno Tude como diretor superintendente. Francisco Tude, pai de Bruno,
é um dos diretores. O Grupo Tude controla empresas de transporte rodoviá-
rio de passageiros e mantém concessionárias de automóveis, caminhões e
ônibus. Também opera um moderno Terminal Central de Cargas, no Recife.
34
Fotos: Acervos Rodonal e ABRATI
Raridade histórica: o
primeiro ônibus da
América do Sul com
motor embutido na
carroceria. Foi construído
por João Tude de Melo
em 1940.
Ônibus Busscar com chassi Scania. Em cada época, os veículos mais avançados
rodaram nas dezenas de linhas da empresa.
A carroceria Tude,
produzida no Recife, outra
ousadia do criador da Auto
Viação Progresso.
EMPRESA UNIDA MANSUR & FILHOS LTDA.
JOÃO MIGUEL MANSUR
1934
37
das três carrocerias que João Miguel Mansur acabara de encomendar, e
que se destinavam a operar na região de Juiz de Fora:
38
C 30, adquirido da viúva de José Novelino; depois, veio um Ford 1937.
A compra do primeiro ônibus foi sugerida pelo pai, Miguel José Mansur.
Mas até chegar a esse momento que definiria seu futuro, João Man-
sur, menino ainda, fez de tudo no ramo do pequeno comércio ambulante.
Aos 10 anos de idade já havia se iniciado em mecânica de automóveis e
estava aprendendo a dirigir caminhão. Também exercitava a habilidade
de comprar e vender, negociando pães, ovos, galinhas e até novilhas. Em
1934, tendo acumulado algum dinheiro com essas atividades, engraçou-
-se com a ideia de comprar um ônibus. Era um veículo aberto, igual aos
bondes da época, com estribo, bancos corridos e entrada individual para
cada banco — um Chevrolet quatro cilindros, comprado em Juiz de Fora.
Com ele, iniciou a primeira linha intermunicipal, ligando Chácara a Juiz
de Fora. O negócio rendeu e o jovem empresário decidiu comprar um
segundo veículo, já aí um Chevrolet Ramona.
Seria um período de aprendizado e de sobressaltos, mas o adolescente
João Miguel revelaria, entre outras qualidades, a flexibilidade e rapidez
de raciocínio dos bons negociantes. Certa vez apareceu um concorrente
disposto a entrar no negócio e com a intenção de comprar um ônibus mais
novo. Mansur procurou-o e conseguiu vender-lhe o seu próprio veículo.
Com o dinheiro, foi ele quem comprou um ônibus mais novo. O concor-
rente anunciou que ia fazer a mesma linha que Mansur. Este então propôs
um acordo: ambos operariam a mesma linha, mas em dias alternados. Por
alguma razão que deixava o concorrente intrigado, naquela linha o ônibus
de Mansur andava sempre cheio. O dele, não.
João decidiu fazer também a linha Carandaí–Barbacena, onde a
estrada era boa, havia passageiros e, aparentemente, perspectiva de lucro.
Porém, o trajeto também era servido por trem, com tarifa 50% menor. O
ônibus de João Miguel andava praticamente vazio e ele acabou perdendo
um Ford 1929 na penhora. Tinha apenas 17 anos de idade.
Com o ônibus restante, tentou operar a linha Friburgo–Além Paraí-
ba. Na primeira e única viagem, o ônibus quebrou no meio do caminho.
Mandou rebocar o veículo para Juiz de Fora, mas faltou dinheiro para o
conserto e o jovem foi obrigado a dormir dentro do ônibus durante um
mês até arranjar recursos para os reparos. Escolheu então novo roteiro
(Rio Novo–Juiz de Fora), mesmo sabendo que novamente teria o trem
39
como principal concorrente. Só que havia aprendido a lição. Colocou
seu ônibus na Praça da Estação, caminho por onde passavam os passagei-
ros, e marcou a saída para 15 minutos antes da partida do trem. Também
fixou um preço 30 centavos menor que o valor do bilhete por via férrea.
Para completar, ele mesmo distribuiu os panfletos de propaganda na rua
principal, nas barbearias, bares, sapatarias. Já no primeiro dia, o ônibus
saiu lotado. Era o ano de 1936.
Três anos mais tarde, em 1939, ele prolongou a linha de Rio Novo
até São João Nepomuceno. Estava ganhando dinheiro e comprou mais um
ônibus, pago à vista. Passados mais três anos a frota já tinha cinco ônibus;
foi quando o negócio desandou outra vez. Ele precisou vender algumas
linhas, mas como não lhe faltava crédito, conseguiu sanear rapidamente a
má situação financeira do negócio. As dívidas foram eliminadas em um ano.
Um dos seus melhores negócios na época foi a aquisição da linha Juiz
de Fora–Barbacena, posteriormente prolongada até São João Del Rei. Era
operada com um Chevrolet Tigre 1938, ainda com carroceria de madeira,
cinco bancos transversais e porta individual para cada banco.
O ano de 1939 seria também o do início da Segunda Guerra Mun-
dial e trouxe dificuldades, principalmente a partir de 1942, quando veio o
racionamento de combustível. Felizmente, obteve as cotas de combustível
de que necessitava para continuar rodando e, mais tarde, para dar início
à expansão da empresa. O crescimento foi lentamente consolidado no
pós-guerra, com a compra de mais ônibus e de linhas de concorrentes. A
linha Juiz de Fora–Santos Dumont foi incorporada em 1949, permitindo
a criação e o registro oficial da Empresa Unida Mansur & Filhos Ltda., na
qual eram seus sócios o pai, Miguel José Mansur, e o irmão mais jovem,
José Miguel Mansur Filho.
40
ocasiões em que o próprio João Mansur colaborou diretamente na melhoria
de trechos. Foi o caso, por exemplo, da linha Juiz de Fora–Valença (RJ).
Ao solicitar a autorização do DNER para operá-la, a Empresa Unida foi
informada de que a autorização seria concedida, mas que a estrada não
oferecia condições de uso. A resposta de João Miguel: “Não tem problema,
eu abro a estrada”. E abriu mesmo, como fez também quando adquiriu a
linha Viçosa–Muriaé, onde a estrada era tão estreita que só podia ser ope-
rada por micro-ônibus. A Empresa Unida fez o alargamento, em parceria
com o DER-MG, removendo toneladas e toneladas de pedras.
Encarando de frente todos os desafios, João Miguel Mansur seguiu
construindo a empresa destinada a integrar dezenas de cidades da Zona
da Mata mineira a Belo Horizonte e ao Rio de Janeiro. Passaram a ser
atendidas cidades como Ubá, Cataguases, Leopoldina, Visconde do Rio
Branco, Viçosa, Ponte Nova, Ipatinga, Santos Dumont, Barbacena e São
João Del Rei.
Em 1980, ele e seu irmão José optaram por uma cisão da socieda-
de, com o intuito de abrir espaço para o ingresso dos filhos já adultos. A
Empresa Unida foi mantida sob administração familiar.
João Miguel Mansur continuou guardando papéis. Já mais entrado
em anos, ali por 1979 e 1980, não se acanhou em procurar amigos e conhe-
cidos para que dessem testemunhos escritos sobre seus primeiros tempos.
Pessoas simples que nunca quiseram deixar a região, gente que, 50 anos
antes, havia acompanhado de perto sua luta para construir uma empresa
forte. Com tais depoimentos, ele quis deixar para seus descendentes alguns
exemplos das coisas que considerava mais importantes para se receber na
vida: o crédito e a confiança das pessoas.
Além do citado Nestor Vasconcellos, outros recordaram os primeiros
anos da saga de João Miguel Mansur. Um deles foi Oscar Casali, de Goianá,
localidade incluída na linha com que João Miguel ligava Juiz de Fora a
Rio Novo. Casali referiu-se à visita do candidato a empresário ao seu esta-
belecimento comercial, em certa manhã de 1936. Chegou no Chevrolet
Ramona, desceu, puxou conversa e comunicou que estava iniciando a linha
naquele dia. A partir dali, prometeu, passaria todas as manhãs por volta
das nove e meia. A promessa foi cumprida com pontualidade. Para muitos,
ao longo da estrada, a passagem do velho ônibus servia como referência
41
de horário. Oscar Casali também acentuou que o motorista era pessoa
alegre e sempre pronta para servir a qualquer pessoa. Às vezes chegava a
deslocar-se para além do ponto final do ônibus para entregar em domicílio
alguma carta ou encomenda que lhe haviam confiado.
José Geraldo Ladeira, velho amigo de Rio Novo, foi outro que co-
mentou sobre o Chevrolet Ramona e recordou a admiração das pessoas
pelo fato de João Miguel trabalhar sozinho, dirigindo e ao mesmo tempo
fazendo as vezes de cobrador. Ladeira chegou a ser sócio de João Miguel
na compra de uma perua International para 12 passageiros, destinada a
fazer a linha Rio Grande–Juiz de Fora, via Rochedo e Goianá. O negócio
não deu certo porque o movimento de passageiros era pequeno. Tantos
anos depois, Ladeira ainda lamentava a perda da possibilidade de manter
sociedade com um empreendedor competente como João Miguel.
Por sua vez, Octacílio da Silva Ramalho, que nas décadas de 1930 e
1940 era guarda-livros, responsável pela escrita contábil da firma de Nes-
tor Vasconcellos, recordou um detalhe: os pneus do Chevrolet Ramona
eram enchidos com bomba manual e o carro não tinha amortecedores.
O proprietário se encarregava da limpeza, da lavagem e lubrificação do
veículo. De vez em quando até aplicava uma mão de tinta nas partes mais
descascadas da carroceria, usando uma daquelas bombas manuais de “flit”
usadas com inseticidas. Octacílio também contou que, depois de aposen-
tado, costumava ficar à janela de sua casa apreciando o movimento na rua
e se impressionando com a quantidade de ônibus da Empresa Unida que
todo dia passavam por ali.
A implementação de processos voltados à qualidade total começou a
ser feita na Empresa Unida em 1994. Mais tarde, foi introduzido o sistema
japonês 5S. A empresa conquistou vários prêmios na área da qualidade.
42
Fotos: Acervo Empresa Unida
O carro já era bem usado e, por precaução, ao dirigi-lo João Mansur levava sempre um litro de óleo.
Amigos, parentes... e
até passageiros: o jovem
João Mansur gostava de
dividir com todo mundo
o seu orgulho de pequeno
empreendedor.
O dono ao volante de
um chassi recém-
adquirido, ainda à espera
de encarroçamento.
Fotos: Acervo Empresa Unida
Estender a linha Juiz de Fora–Barbacena até São João Del Rey foi um marco
importante na trajetória da Empresa Unida Mansur & Filhos.
45
Londrina e a Companhia de Terras Norte do Paraná praticamente
não se diferenciavam uma da outra. A localidade crescia de forma muito
rápida, mas não oferecia praticamente nenhuma estrutura para receber os
forasteiros. A primeira clareira para marcar o nascimento da futura cidade
tinha sido aberta em agosto de 1929, em um lugar que passara a ser chama-
do de Patrimônio Três Bocas, devido às três minas de água que havia por
ali. Os materiais usados nas primeiras construções foram transportados em
lombo de burro. Em 1930, começariam a chegar os colonos, inicialmente
japoneses, transportados em carros da Companhia de Terras.
Nos primeiros tempos, algumas das instalações da empresa chega-
vam a abrigar as dezenas de famílias que vinham em busca do seu lote
de terra. Não esquentavam lugar, porém: tão logo conseguiam fechar ne-
gócio e assumiam o compromisso de começar a pagar em dois anos os 30
e poucos hectares da sua gleba, apressavam-se a ir tomar posse dela — o
que significava abater a floresta a machado, construir a pequena casa de
madeira e limpar o chão para receber as primeiras sementes ou mudas.
A Companhia tinha dois problemas. O primeiro era que, quando
derrubavam a mata e deixavam tudo preparado para o plantio, os colonos
dificilmente preservavam a vocação original do projeto, cultivar algodão.
Com a excelente situação do café no mercado internacional, optavam
por essa alternativa de plantio, ignorando solenemente a diretriz traçada
nos gabinetes ingleses responsáveis pelo empreendimento. A cafeicultura
predominava no território paulista tal como já havia ocorrido no território
mineiro, e agora ia invadir o norte paranaense. Sob esse aspecto, não havia
muito o que fazer.
O segundo problema é que os colonos não paravam de chegar. De-
sembarcavam em Jataizinho, utilizavam a balsa para atravessar o Tibagi e
então precisavam de transporte até Londrina. Tornavam a precisar depois
para ir tomar posse dos seus lotes.
Corria o ano de 1932 e a solução encontrada para o segundo proble-
ma foi encarregar Mathias Heim do transporte dos colonos, usando duas
jardineiras de propriedade da companhia.
Quanto a Celso Garcia Cid, seu pequeno caminhão Ford 1933 era
muito demandado para o transporte de cargas em toda aquela área. O
imigrante recolhia as mercadorias em Jataizinho, atravessava o rio na balsa
46
e penosamente vencia 45 quilômetros de picadas até o povoado de Londri-
na. Rodava todos os dias da manhã à noite. Com isso, tornou-se bastante
conhecido no lugar.
Mathias Heim não teve dificuldade em encontrar o sócio de que pre-
cisava quando a Companhia de Terras lhe propôs assumir, por concessão,
a montagem de uma empresa de ônibus independente para transportar
os colonos. Celso Garcia Cid aceitou na hora o convite e entrou no novo
negócio com seu Ford 1933. Confiado à oficina da família Ziober, foi
transformado em jardineira, posta para rodar assim que ficou pronta e logo
apelidada de Catita pelos colonos. Foi o primeiro veículo da Companhia
Rodoviária Heim & Garcia, fundada no dia 15 de janeiro de 1934. Celso
dirigia e Mathias cuidava da manutenção, o que não era fácil, conside-
rando a falta de peças, as subidas íngremes, os atoleiros, buracos e tocos
de árvores dos caminhos.
Seriedade e responsabilidade foram os dois comprometimentos prin-
cipais dos dois sócios naquele início de história. O contrato da Heim &
Garcia com a Companhia de Terras era rigoroso e, bem ao estilo dos ingleses,
estabelecia multas por atraso e previa a imediata rescisão do contrato em
caso de interrupção do serviço. Os colonos pagavam a passagem com vales
fornecidos pela companhia, que depois eram trocados por dinheiro pelos
dois sócios. O contrato sempre foi cumprido à risca por Mathias e Celso.
Embora a linha inicial fosse Londrina–Jataizinho, eles tinham li-
berdade para cobrir outras rotas à medida que iam sendo abertas novas
picadas entre os lotes. E os colonos exigiam cada vez mais deles. Em 1936
já eram três Catitas rodando sem parar durante o dia e parando à noite
para a reparação dos estragos provocados pelas condições hostis.
O terceiro personagem apareceu quando o alemão decidiu retirar-
-se do negócio e Celso precisou buscar novo sócio. Pôs anúncio em um
jornal de São Paulo e, em resposta, apresentou-se um seu patrício, dono
de 110 contos de réis e aparentemente disposto a investi-los no negócio.
Celso não sabia, mas depois de ler o anúncio José Garcia Villar passara
a acompanhar a distância o vaivem da frota da empresa. Tomara infor-
mações, fizera cálculos e só então decidira negociar. Em 1938, surgiu a
Empreza Rodoviária Garcia & Garcia, cuja frota foi logo reforçada com
mais alguns veículos.
47
As compras de novos carros não se interromperam nem mesmo diante
das dificuldades trazidas pela Segunda Guerra Mundial. Em 1940, a Garcia
& Garcia já contava com 18 ônibus. O maior problema surgiu quando o
governo decretou o racionamento de combustível. Todos os ônibus eram
movidos a gasolina, e a cota concedida à Garcia & Garcia mal dava para
abastecer metade da frota. Celso decidiu usar o sistema de gasogênio.
Comprou em São Paulo um equipamento, instalou-o em um ônibus GMC
e fez os testes. Uma vez aprovado, o sistema foi copiado pelos mecânicos
da empresa, que produziram outros 12 exatamente iguais. Instalados nos
ônibus GMC, possibilitaram que os veículos rodassem durante todo o
tempo do racionamento.
Em 1950, as estradas do norte do Paraná, com pouquíssimas exceções,
ainda não estavam asfaltadas. Mas já eram de terra batida, mais largas e
com razoáveis condições de tráfego quando não chovia. A frota da Garcia
& Garcia chegava a 50 ônibus, e agora todos tinham o motor embutido na
carroceria. Novas cidades continuavam surgindo, muitas delas em lugares
por onde já passavam linhas da empresa.
Cinco anos depois, em 1955, um grande drama se abateu sobre
quase todo o norte do Paraná: geadas muito fortes arrasaram a cultura ca-
feeira e levaram à ruína os agricultores da região. Milhões de pés de café
tiveram de ser erradicados e substituídos por outras culturas. Até que fosse
completado o redirecionamento do seu perfil produtivo, aquela parte do
Estado enfrentaria dificuldades, que, naturalmente, afetaram também a
Garcia. Mas sem interromper de todo o seu desenvolvimento: ela estava
bem-estruturada, consolidada, e teve condições de suportar o impacto da
crise. Seu maior compromisso seguiu sendo o de garantir que os passageiros
efetivamente chegassem ao destino, com chuva ou com sol, e sempre com
pontualidade. Não se permitia falhar.
Durante todos aqueles anos, a empresa aprendera a expandir seus
negócios no mesmo ritmo da colonização e do desenvolvimento da região.
Habituara-se a chegar na frente. Sabia que para continuar no mesmo cami-
nho deveria inovar permanentemente, modernizar sempre o equipamento,
renovar pelo menos a décima parte da frota a cada ano, ajustar continu-
amente a rede de filiais e agências, criar novos serviços — enfim, operar
com a capacidade e agilidade exigidas em cada época ou circunstância.
48
Naquele mesmo ano, ela assumiu a denominação Viação Garcia
Ltda. Celso Garcia Cid e José Garcia Villar eram incansáveis, estavam
sempre orientando, administrando, ensinando, mostrando como se devia
fazer para cativar os usuários. O treinamento de pessoal, a segurança, a
manutenção deveriam merecer mais atenção ainda. Era importante que
as comunidades se sentissem tão próximas da empresa como nos primeiros
tempos. A companhia devia seguir tratando cada passageiro como se fosse
um daqueles pioneiros ansiosos e sonhadores dos primeiros tempos. Tam-
bém visionários, os dois apostavam sua garra e enorme força de vontade
no empreendimento, afrontando lama, poeira, falta de infraestrutura e
de recursos técnicos, arriscadas travessias de balsa, enormes extensões de
mata fechada. Nada disso foi capaz de fazê-los esmorecer.
Em 1961, Londrina passou a ter sua ligação com a capital do Estado,
Curitiba, totalmente asfaltada. Viajar de ônibus começava a deixar de ser
uma aventura e as pessoas iam descobrindo o prazer de deslocar-se com
conforto — mas descobrindo aos poucos, já que muitas outras estradas
ainda continuavam precárias, enquanto mais e mais cidades brotavam
no meio do sertão. Ônibus novos e mais resistentes eram acrescentados à
frota e até estações rodoviárias a empresa construía. Na verdade, fez até
estradas nessa época, ainda como nos primeiros tempos.
José Garcia Villar morreria em 1962. Dez anos mais tarde, também
se iria Celso Garcia Cid. De maneira firme e harmoniosa, haviam levado
a Viação Garcia à condição de grande empresa. Do mesmo modo, as ge-
rações seguintes de seus descendentes seguiriam tocando a companhia.
49
Em 2003, a editora Geração Editorial, de São Paulo, lançou o livro
Terra Vermelha, romance épico que retrata o processo de colonização do
norte do Paraná e a formação da cidade de Londrina. Na trama, o escritor
londrinense Domingos Pellegrini refere-se com frequência a uma fictícia
Viação Gracia. Mas mesmo que no livro ela se ocultasse sob a denomina-
ção de, digamos, Viação Transiberiana, seria imediatamente reconhecida.
Estão ali, descritos com maestria, alguns dos muitos lances de pioneirismo,
força de vontade, garra, coragem, criatividade e dedicação ao trabalho que
marcaram o surgimento e a consolidação da Viação Garcia. Além, é claro,
daqueles sitiantes que, quando não dispunham dos vales da Companhia
de Terras dos primeiros tempos, às vezes pagavam com frangos o preço
da passagem.
Os ônibus da Garcia cruzam todos os caminhos não mais apenas do
Paraná, mas de São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais,
Mato Grosso do Sul. Aqueles 15 ou 20 pioneiros que todo dia desembar-
cavam na nascente Londrina transformaram-se em milhões de passageiros
transportados todos os anos.
50
Fotos: Acervo Viação Garcia
Celso Garcia Cid (em primeiro plano) na oficina da família Ziober, onde foram fabricadas as carrocerias
das primeiras jardineiras da Companhia Rodoviária Heim & Garcia.
Motorista, cobrador
e mecânico em
frente à garagem
da Garcia, em
Londrina. Sem eles,
a cidade talvez
nem tivesse saído
das pranchetas
dos ingleses.
Na primeira estação rodoviária de Londrina, construída pelos dois sócios da Heim & Garcia,
Celso Garcia Cid (o primeiro à esquerda) aguarda a chegada de mais passageiros antes de partir.
Na década de 1940, parte dos carros da frota foi adaptada para funcionar
com equipamento de gasogênio.
Fotos: Acervo Viação Garcia
53
concentravam os principais importadores atacadistas da cidade. Em socie-
dade com um irmão, entrou no ramo de importação de vinhos e de outros
produtos estrangeiros. A razão social do estabelecimento era “A. Teixeira”.
Quando mais alguns irmãos se juntaram a ele, o nome foi mudado para
“A. Teixeira & Irmãos”.
A importadora prosperou e propiciou a Affonso José, tempos depois,
a oportunidade de ajudar João da Assunção. Mas não deu certo, e eis o
comerciante envolvido em situação complicada que, de todo modo, lhe
competia resolver. Não perdeu tempo com lamentações e pediu a ajuda de
seu cunhado Germano de Carvalho. Germano tomaria conta da empresa
de ônibus e Affonso José tentaria dividir seu tempo entre os dois negócios.
No dia 16 de novembro de 1935, foi legalmente constituída a Empresa
Pássaro Marron, com a formalização dos registros na Junta Comercial de
São Paulo.
De Pássaro Azul para Pássaro Marron, a mudança de nome foi feita
por uma questão prática. No tempo em que a empresa ainda estava sob a
administração do irmão, Affonso José sempre via os ônibus voltarem das
viagens completamente cobertos de pó ou sujos de barro, pois não havia
um metro sequer de asfalto em todos os percursos. O pássaro azul da pin-
tura simplesmente desaparecia. Forçado a ingressar no ramo, Affonso José
começou por corrigir aquela aparente impropriedade. Seria Marron, com
N no final, por influência do francês, idioma estrangeiro dominante na
época. E se já costumava observar detalhes como esse antes de se tornar o
proprietário, com muito mais razão Affonso José passou a prestar atenção
no desempenho da empresa nas mãos de Germano. O que viu, com o
passar do tempo, agradou-o por um lado e deixou-o preocupado por outro.
O negócio ia bem, mas tomava-lhe cada vez mais tempo. O transporte de
passageiros era uma atividade absorvente e podia ser rentável; mas pedia
muita dedicação. Agora, quem estava precisando de ajuda era o cunhado
Germano.
Foi uma decisão difícil afastar-se do estabelecimento da Rua Paula
Souza, mas não havia outro jeito. Entregou aos irmãos a responsabilidade
pela importadora. Por outro lado, dispondo de tempo integral, Affonso
José pôde implantar diretrizes mais permanentes no negócio de ônibus.
Focado exclusivamente no transporte de passageiros, decidiu que, a partir
54
daquele momento, todo o capital que viesse a ser acumulado seria reinves-
tido sistematicamente na aquisição de novos ônibus e em infraestrutura de
operação. Embora complexas, as tarefas administrativas seriam facilitadas
pela equipe deixada pelo irmão e burilada por Germano. Muitas daquelas
pessoas chegariam a completar 40 anos “de casa” na Pássaro Marron.
Ouvido em 1992 por Rúbio Gômara, o engenheiro José Luiz Teixeira,
filho de Affonso José, que em 1955, aos 25 anos, se tornara Superintendente
da empresa, tinha boas lembranças da época:
Éramos oito filhos e nada faltava em casa, mas levávamos vida modes-
ta, com todos os gastos domésticos muito bem controlados por minha mãe,
dona Alexandrina. Assim ela ajudava meu pai a manter o objetivo de investir
o dinheiro na sociedade, ou seja, na frota, na construção de garagens etc.
55
Meu pai foi um pioneiro nessa linha. A viagem era feita em doze horas,
ou mais, e era uma guerra; os motoristas faziam muita questão de chegar
ao Rio dentro do horário, era uma paixão deles, mesmo com ônibus cujos
motores ainda eram de pouca potência, todos importados. As carrocerias
eram de madeira, pesadíssimas e de uma diversidade imensa. Mesmo assim,
com estradas difíceis e veículos excessivamente pesados, eles se empenhavam
em ser pontuais — recordou José Luiz Teixeira.
56
vários anos, sem que, antes do advento do asfalto, tivessem sido objeto de
eventuais outros interessados. O mandado de segurança garantiu à Pássaro,
inclusive, a linha São Paulo–Rio de Janeiro, embora mais tarde o mercado
acabasse sendo dividido com outras empresas.
Uma das preocupações da companhia, enquanto empenhada no
processo de expansão, era manter garagens em todas as cidades a que
atendia ao longo do eixo São Paulo–Rio de Janeiro. Essa era também uma
maneira de mostrar a cara à população, fixar a marca Pássaro Marron e
fazer com que as pessoas sentissem que a empresa era “local”, embora
com sede em São Paulo.
Em 1955, quando José Luiz Teixeira assumiu a Superintendência,
Affonso José Teixeira já havia começado a se afastar do dia a dia da em-
presa. Mesmo assim, comparecia com frequência ao escritório da garagem
central, em São Paulo. Prestava muita atenção às estatísticas, isto é, aos
números da relação entre o faturamento e a lotação dos ônibus. Seus filhos
adotavam a estratégia de manter um índice de aproveitamento mais baixo
para os carros, um modo de garantir que nunca o passageiro deixasse de
embarcar por falta de lugar ou de horário. Eles entendiam que, para o
passageiro, o índice baixo significaria a certeza de ter lugar.
57
primeiros equipamentos de informática, passou a utilizar a ferramenta,
inclusive com criação de um sistema de revisão controlada por computa-
dor. O número de garagens e de oficinas também foi ampliado. Em São
Paulo, a nova garagem, construída na Vila Maria, ocupava área de quase
40 mil metros quadrados. Só a parte coberta tinha 8 mil metros quadrados
e incluía soluções técnicas inéditas, como sistema de drenagem de óleo
lubrificante em valetas próprias, serviço de oxigênio e acetileno canalizado
para pronta aplicação, e outras.
Outra preocupação, levada à empresa por José Luiz Teixeira, dizia
respeito à padronização da frota. Até então, as compras de novos carros
não obedeciam a um planejamento rigoroso. Havia nada menos que nove
diferentes marcas de veículos e carrocerias. Atentando para as vantagens
de mudar essa política, a Pássaro Marron deu início a um processo de
padronização.
58
anos. A certa altura, até pela falta de retorno financeiro, ficou bem claro
que a Pássaro Marron estava alimentando a outra empresa. Carros, pneus,
combustível, praticamente tudo o que a Eva adquiria era bancado pela
Pássaro Marron, por causa da baixa rentabilidade da Eva.
Aos poucos, o problema ganhou contornos de novela policial, con-
forme revelou José Luiz Teixeira:
Para que não perdêssemos as duas empresas, meu pai tomou a decisão
de dispor da Eva do jeito que fosse possível. Devolveram-se ao DNER todas
as permissões, já que não foi possível negociar nenhuma linha. E assim se
encerrou o capítulo Eva, de triste memória para nós. Posteriormente, o DNER
dividiu as linhas e entregou a quem entendeu que devia. Mas é importante
reconhecer que houve também muita ajuda, na época, de gente muito boa,
como a de seu Geraldo Osório, da Cidade do Aço, excelente amigo nosso. Ele
nos deu muita força naquela hora. Insistiu para que meu pai continuasse,
para que não perdesse as linhas. Mas não foi possível e a Marron decidiu
voltar para o lado paulista.
59
competência e seriedade, transformando a empresa em referência no setor.
Muitas de suas inovações e procedimentos acabaram sendo adotados por
outras transportadoras de passageiros. Por exemplo, a política de seleção e
treinamento de pessoal. Tanto os que estavam dentro da companhia como
aqueles que buscavam trabalhar nela encaravam o assunto com extrema
seriedade. As provas — teóricas e práticas — eram rigorosas. No caso dos
candidatos a motorista aprovados, havia um período de treinamento, além
de muita doutrinação, antes que o profissional fosse considerado em con-
dições de dirigir na estrada. A fiscalização do trabalho dele também era
rigorosa. Um dos empregados mais antigos, Armando Gaia, chegava a fazer
fiscalização aérea. Como era piloto, pegava um teco-teco e ia fiscalizar os
ônibus do ar, voando ao longo das linhas.
60
Naquela época, o governo dava licenças de importação vinculadas à
colocação de determinados produtos brasileiros no exterior. Eram produtos
considerados gravosos. O governo exigia a importação conjugada à exportação.
Ouvido em 1992, José Luiz Teixeira declarou não ter tido envolvi-
mento no assunto, pois, na época, ainda era estudante universitário:
61
O que sei é que, infelizmente, esses ônibus chegaram, mas não houve
condições de se concluir o financiamento. Foi preciso repassar uma parte
para o Manoel Diegues, do Expresso Brasileiro; foram 20 ônibus Brill, se
não me engano; e outra parte para o seu Tito Mascioli, da Cometa, que ficou
com os 30 ônibus GM. Esses ônibus deram um avanço imenso ao transporte
coletivo no Brasil, postos em serviço por esses dois excelentes amigos de meu
pai e meus, que, como ele, foram desbravadores do transporte no Brasil. Fo-
ram pioneiros, homens de força de vontade, homens excepcionais. A gente
até chora ao falar deles.
62
rodoviários. E quem fazia ônibus rodoviários no Brasil? Ninguém. Não havia
firmas especializadas, teve-se que buscar esses ônibus nos Estados Unidos,
onde havia fábricas como a da General Motors e outras. Mas isso lhe custou
a entrada em uma fase financeira difícil, pois, além da novidade, havia o
investimento alto que precisava ser feito.
63
Além de causar o abalo que precipitou a Pássaro Marron numa fase
difícil, o episódio dos rodoviários GM e Brill deixaria sequelas, pondo a
descoberto divergências profundas entre alguns integrantes de sua cúpula.
O diretor Mário João Nigro deixou a empresa assim que foi inteirado da
decisão de vender os 30 ônibus GM à Viação Cometa.
Em carta dirigida a Rúbio Gômara, também em 1995, Nigro historiou
os acontecimentos que o levaram a tomar a drástica decisão:
64
Mas havia outras causas. A empresa tinha crescido rápida e des-
controladamente; as tarifas eram baixíssimas e a inflação atingia índices
mensais impossíveis de ser acompanhados. Affonso C. Teixeira passou a
se desdobrar, ao lado do irmão Luiz Affonso, para conseguir um reajuste
tarifário e para desfazer o nó representado pelo desastroso desempenho da
Eva. Conforme já registramos, medidas amargas foram tomadas:
65
Graças a essa “restauração”, a empresa se firmou e manteve aquelas
linhas que sempre havia tido ao longo da Via Dutra. Assim, pôde assistir ao
desenvolvimento industrial do Vale do Paraíba, principalmente das cidades
de São José dos Campos, Taubaté, Guaratinguetá e Cruzeiro. Todas tiveram
grande desenvolvimento com as indústrias que foram se instalando à margem
da Via Dutra. Ainda hoje, é possível ver como o Vale se modificou. Deixou
de ser o Vale do café, do gado e do leite para se tornar o Vale industrial.
66
Fotos: Acervo ABRATI
69
Com ele, duas vezes por semana, Pedro transportava passageiros e
malas postais dos correios entre sua cidade e Ponta Grossa. Uma tarefa
difícil, principalmente por causa das estradas: não existia nem cascalho,
quanto mais pavimentação. Sua habilidade de mecânico se revelaria de
enorme utilidade para vencer aqueles caminhos esburacados por entre os
quais o veículo ia sacolejando de um ponto a outro. O caminhão só resistia
porque contava com manutenção permanente.
Mas uma coisa foi fácil perceber já de início: havia mercado. Graças
a isso, foi se firmando na atividade. Os passos seguintes — a compra das
duas jardineiras Ford e a formalização da Empresa Mezzomo — haviam
sido motivados pelo contínuo aumento do volume de passageiros.
A Empresa Mezzomo estendeu seu raio de atuação. Em 1940, incor-
porou a Pássaro Azul, dos irmãos Iurki e Chiderski, criando a Mezzomo &
Cia. e assumindo a linha Ponta Grossa–Curitiba. Quando os irmãos Iurki
e Chiderski se retiraram da sociedade, a sede da empresa foi transferida
para Ponta Grossa. Estava-se na Segunda Guerra Mundial e o cenário,
mais uma vez, era de recessão e incertezas. Mas as linhas da Mezzomo
& Cia. já ligavam Ponta Grossa, Guarapuava, Laranjeiras do Sul e Foz
do Iguaçu à capital paranaense. Foi a primeira operadora paranaense a
obter seu número de registro no Departamento de Estradas e Rodagens
o
do Paraná (Reg. DSTC/PR n 1).
Naquele início de década, uma viagem de ônibus entre Curitiba e
Foz do Iguaçu durava seis dias. Pois bem: uma vez por mês, um ônibus da
Mezzomo & Cia. cumpria o trajeto e era recebido com festa ao chegar.
Afinal de contas, cobrir aqueles 700 quilômetros de chão representava
sempre uma proeza. Em seguida, retomava o trajeto no sentido inverso, e
sempre com a mesma determinação.
A guerra terminou em 1945. Com a nova Constituição (1946) foi
criado o Território do Iguaçu. A linha da Princesa dos Campos passaria a
ser interestadual, mas o governador nomeado do Território, Ovídio Garcez,
fez exigências consideradas inaceitáveis pela empresa. E assim ela desistiu
da linha de Foz.
Em 1956, para operar exclusivamente a linha entre Ponta Grossa
e Guarapuava, foi criada a Expresso Princesa do Oeste. Em 1957, surgiu
a Expresso Princesa dos Campos, do mesmo grupo, para operar as linhas
70
Curitiba–Ponta Grossa e Curitiba–Guarapuava. E logo uma terceira em-
presa — a Expresso Princesa Norparaná — seria constituída para responder
pela linha Ponta Grossa–Itaiacoca.
As três transportadoras operaram dessa forma até outubro de 1962,
quando o controle acionário passou para o grupo formado pelas famílias
Gulin, Alberti, Baron e Manfron. As três empresas já tinham uma frota
de 45 veículos, mas, de todas as suas linhas, a única a ser feita sobre piso
pavimentado era a Ponta Grossa–Curitiba.
Os novos controladores fizeram várias aquisições. Entre 1963 e 1964,
as linhas foram estendidas até Monte Alegre (Telêmaco Borba), Castro,
Piraí do Sul, Tibagi e Reserva. Ainda em 1964, foi incorporado o Expresso
Tibagi.
Uma das aquisições mais importantes no período foi a da Empresa
Rio Paraná, que permitiu ao grupo atingir novamente o oeste e o sudo-
este paranaenses e chegar outra vez a Foz do Iguaçu, com a operação de
diversas linhas entre Guarapuava, Laranjeiras do Sul, Cascavel, Toledo,
Marechal Rondon, Guairá, Palotina, Terra Roxa do Oeste, Porto Britânia
e Pato Branco. Mais tarde seriam obtidas várias concessões de linhas di-
retas, todas muito importantes para o desenvolvimento dos negócios. São
exemplos disso as linhas Curitiba–Guaíra, Curitiba–Toledo, Curitiba–Pato
Branco, Ponta Grossa–Foz do Iguaçu e Curitiba–Assis Chateaubriand. Vie-
ram depois a Curitiba–Segredo e a Guarapuava–Pato Branco. Uma outra
aquisição, ainda em 1965, incorporou a empresa São Cristóvão e marcou
o início das operações de linhas interestaduais, como Curitiba–Registro
e Curitiba–Iguape.
Em 1966, foi agregada a linha entre Palmeira e São Mateus do Sul.
Um ano depois, veio a compra da Empresa Nossa Senhora das Brotas, com
linhas entre Ponta Grossa e Piraí do Sul, Ponta Grossa–Monte Alegre e
Piraí do Sul–Sapopema.
O próprio crescimento das empresas e a multiplicação de suas li-
nhas tornaram aconselhável a fusão da Expresso Princesa do Oeste com
a Expresso Princesa dos Campos, em 1969, unificando-se assim todas as
atividades de transporte de passageiros e de encomendas. Quanto à Ex-
presso Princesa Norparaná, teve a sua denominação social mudada para
Princetur Passagens e Turismo, passando a se dedicar às suas agências de
71
vendas de passagens e ao turismo em geral. Ainda nesse ano, a Expresso
Princesa dos Campos incorporou a Expresso Ivaí.
Dois anos depois, comprou a Expresso Arrisul e chegou a União
da Vitória. Em 1975, a empresa obteve em concorrência pública a linha
interestadual Francisco Beltrão (PR)–São Paulo (SP), que depois se tor-
nou Barracão (PR)–São Paulo (SP). Em 1990, passou a fazer a linha São
Miguel do Oeste (PR)–São Paulo (SP).
Alternando aquisições e a obtenção de concessões, a empresa es-
tendeu outras linhas à capital do estado de São Paulo, ingressando ainda,
em 1988, na operação de linhas suburbanas no Vale do Ribeira, também
em território paulista.
A Expresso Princesa dos Campos tornou-se exemplo de empresa
familiar que deu certo. Desde sua fundação, como se viu, atuou sob os
mais diversos cenários políticos e econômicos. Desenvolveu uma política
de trabalho voltada à valorização do ser humano e teve inúmeras atitudes
de ousadia e pioneirismo, que lhe valeram importantes conquistas e uma
posição de destaque no ranking das maiores empresas do setor.
72
Às vezes, os ônibus
precisavam andar tão bem na
água como na terra.
Ônibus importado
entre 1947 e 1948,
provavelmente um
GM Parlor Coach com
motor de dois tempos
e quatro cilindros.
Tinha capacidade
para 29 passageiros.
75
plano de governo. A transferência estava prevista na Constituição de julho
de 1946, e a ideia já constara na Constituição de 1891. Depois, havia figu-
rado, perfeitamente inócua, na Carta Magna de 1934, sendo excluída na
de 1937. Por isso mesmo, muita gente não levou a sério quando, em abril,
Juscelino voou até a cidade de Anápolis (impedido de descer em Goiânia,
devido ao mau tempo) e ali assinou o ato que previa a criação da empresa
Novacap, à qual foi atribuído um único encargo: construir Brasília.
Em outubro, goianos e mineiros acompanharam atentos e incrédulos
as notícias sobre a visita que Juscelino, acompanhado de Israel Pinheiro,
escolhido para presidir a Novacap, e do arquiteto Oscar Niemeyer, fez ao
Planalto Central para conhecer a área demarcada. O avião desceu em pista
de dois quilômetros aberta no cerrado e, ali mesmo, no meio do mato e
da solidão ensolarada, JK prometeu: a nova cidade seria erguida a tempo
de testemunhar a passagem da faixa presidencial a seu sucessor, em 1960,
portanto dali a menos de quatro anos.
Imediatamente após a visita de inspeção, Israel Pinheiro e Oscar Nie-
meyer tinham dado início às obras. Sua primeira providência foi levantar a
“residência oficial do presidente”, a casa de madeira que ele usaria quando
viesse do Rio de Janeiro visitar as obras de construção da nova capital. O
futuro Catetinho ficou pronto em dez dias. Ao mesmo tempo, a Novacap
tratou de implantar, a uns dez ou quinze quilômetros de distância da área
reservada ao Plano Piloto, a chamada Cidade Livre, destinada a abrigar
os peões que, em busca de trabalho, já começavam a acorrer em grande
número de todos os pontos do País. O curioso é que nem mesmo o projeto
da futura da cidade havia sido escolhido ainda.
As coisas estavam exatamente nesse pé naquele dia em que Odilon
Santos chegou ao aeroporto Santa Genoveva para encontrar-se com Sancho.
Recentemente, o primo passara a trabalhar com o engenheiro agrônomo
Bernardo Sayão (até pouco antes vice-governador do estado de Goiás) e o
doutor Israel Pinheiro, presidente da Novacap. Sayão, diretor da Novacap,
respondia pela implantação das estradas, da estrutura de comunicação e das
obras. Pinheiro tinha a seu cargo tudo quanto se relacionasse aos aspectos
de urbanismo, arquitetura e compras. Eram ambos homens de confiança
do presidente e dizia-se que, no universo do grande empreendimento em
perspectiva, a palavra de cada um deles era a palavra do próprio JK.
76
No aeroporto, Sancho estava justamente à espera dos dois. Quando
chegaram, Odilon acabou sendo apresentado pelo primo. Anos depois,
recordaria a conversa. “Doutor Sayão, este aqui é o meu primo Odilon,
ele é dono de uma empresa de ônibus”. Foi como se Sancho houvesse
pronunciado palavras mágicas: o engenheiro olhou bem para ele e, com
um gesto, chamou Israel Pinheiro. Mal o presidente da Novacap se apro-
ximou, Sayão, certo de que haviam acabado de encontrar solução para
mais um problema, disparou: “Israel, este rapaz aqui tem uma empresa
de ônibus, contrata ele para levar os ônibus para Brasília”. Seguiu-se um
breve diálogo entre o mineiro Israel e o carioca Sayão. Em seguida, tendo
respondido a duas ou três perguntas sumárias, o atordoado Odilon ouviu
dos doutores o convite quase inacreditável: botar uma linha de ônibus entre
Goiânia e Brasília. Quando? Agora! Talvez estivessem brincando, talvez
não soubessem direito o que estavam falando. Brasília nem existia ainda,
as obras mal haviam começado. Tratou de sondar o terreno: “Ainda é cedo,
doutor. Por enquanto, não dá”. Eles insistiram: “Não é cedo, não. Tem que
ser agora, não vamos poder esperar”. Odilon, ainda desconfiado: “Mas não
tem passageiro!” A resposta de Sayão veio rápida, teimosa, reveladora: “Seu
Odilon, nós vamos levar muita gente para lá. Nós vamos fazer Brasília!”
Sempre mostrando pressa, Pinheiro e Sayão sugeriram a Odilon
que desse um pulo à área de Brasília, fosse ver com seus próprios olhos.
Ele teve de admitir que sequer conhecia o caminho, nunca tinha andado
por aquelas bandas, mas Sayão tinha jeito para tudo. Pegou lápis e papel
e rabiscou um mapa sumário com os principais pontos de referência, que
ia indicando: “Vai por aqui até Anápolis, depois pega esse caminho para
Luziânia. Lá, não tem quem não lhe ensine como chegar”. Odilon pro-
meteu ir no domingo seguinte.
Levou com ele seu irmão Tubal e outras duas pessoas, uma chamada
Maltez, jornalista, e outra de nome Adolfo de Souza Filho, identificado
como diretor de Trânsito. Foi uma viagem de quase dois dias, feita numa
jardineira de seis lugares. Saíram de Goiânia no sábado, seguindo por
caminhos acidentados e atingindo Luziânia no fim da tarde. Dormiram,
tomaram informações e, logo cedo, partiram novamente. Mais algumas
horas até chegar ao acampamento levantado junto a uma bica — a Cidade
Livre. Odilon não havia marcado encontro com Sayão e Pinheiro, mas não
77
precisou esperar muito por eles, dali a pouco os chefes chegavam de jipe.
Décadas mais tarde, Odilon ainda recordava perfeitamente esse encontro:
Eu queria conversar, mas o Dr. Israel Pinheiro disse que ali não, que
fôssemos para o Catetinho, onde era a casa do presidente. Expliquei a ele
que não sabia o caminho; pediu que o acompanhasse. Quando chegamos
ao Catetinho, me convidou para o almoço. Eram 13 horas de domingo. No
almoço eles já foram perguntando quando é que eu ia colocar os ônibus
para correr.
78
Em Caldas, a parada era no hotel da Marieta. Havia lá boa comida. Le-
gumes, verduras, frutas e até o pãozinho francês vinham pela jardineira.
Por isso, o horário das 14 horas era sagrado; era quando encostava a jar-
dineira trazendo gente e pão gostoso. Quanto a Caldas Novas, ainda nem
sonhava em tornar-se o balneário conhecido internacionalmente. Porém,
os passageiros do Expresso Pontal sabiam que a parada em frente ao Hotel
Avenida era o melhor momento da viagem. Comida gostosa, cuja fama
corria a região, estava à espera deles.
Por tudo isso, a pequena empresa de Odilon começou a crescer. A
frota aumentou para duas, depois para três jardineiras. A qualidade dos
veículos foi aos poucos melhorando e chegou o dia em que não eram mais
usadas jardineiras, e sim ônibus, muito mais confortáveis.
Dona Zezica era o braço direito de Odilon e continuou a ajudá-lo
mesmo depois da chegada do asfalto, pronta a ligação de Araguari com
Goiânia, para onde, naquele ano de 1956, passaram a correr os ônibus
da empresa, já como Viação Araguarina. Dois irmãos de Odilon, Tubal e
Valtinho, também ajudavam e os negócios iam tomando vulto. O único
filho, Odilon Walter, chegou à adolescência e também assumiu funções
na empresa. Foi incluído como sócio em 1953.
79
Brasília requeria mais agências, por isso Valtinho se transferiu para
lá. Quando a cidade se tornou oficialmente a capital do País, a já famosa
avenida W3 Sul ganhou escritório da Araguarina. Na mesma época, 1960,
Odilon, Dona Zezica e Tubal se mudaram para Goiânia. No ano seguinte
a companhia saiu vencedora da concorrência pública para fazer a linha
entre Brasília e Belo Horizonte, passando, assim, a interligar as três grandes
capitais brasileiras projetadas e construídas sob planejamento — Goiânia,
Belo Horizonte e Brasília.
Cinco anos depois, Odilon Santos criou a Rápido Araguaia, para
fazer transporte coletivo urbano em Goiânia. A seguir, voltou suas vistas
para as oportunidades de operação de novas linhas no estado de Goiás.
Em 1969, iniciou serviços intermunicipais regulares entre a capital e o
norte do estado de Goiás (depois estado do Tocantins), com linhas que
percorriam extensões superiores a 1.300 quilômetros e chegavam a locais
bem próximos do Pará e do Maranhão.
A partir de 1971, a atuação foi ampliada para os estados do Pará e
Maranhão, sendo iniciados os primeiros serviços regulares sobre a rodovia
Transamazônica, com a ligação entre Araguaína (Goiás) e Marabá (Pará).
No ano seguinte Brasília foi ligada a Teresina e a Parnaíba, no estado do
Piauí. Quase ao mesmo tempo, a Araguarina expandiu suas rotas no Pará e
no Maranhão, chegando à capital, São Luís, e também a Altamira, Itaituba
e Santarém, cidades paraenses até então inatingidas por via rodoviária.
Veio a seguir a criação da Transbrasiliana Transportes e Turismo,
para atuar nos estados do Pará, Maranhão, Piauí, Goiás, Minas Gerais,
São Paulo e Rio de Janeiro, além do Distrito Federal. A ligação regular
entre Belém e o Rio de Janeiro data de 1975 e figura entre as mais longas
do mundo, com 3.250 quilômetros.
Todos esses feitos constituíram marcas indeléveis na trajetória da
pequena empresa Araguarina, que se transformou no Grupo Odilon Santos.
O fundador morreu em 28 de novembro de 1996, em Goiânia.
80
Fotos: Acervo Rodonal
Nos primeiros tempos, a Araguarina Ao fundo, à direita, a jardineira trazia passageiros para um
também utilizou furgões. acampamento armado nas imediações da futura Capital.
Acervo ABRATI
Odilon Santos
o
FOI UM DIA PARA NÃO SE ESQUECER JAMAIS. Naquele 1 de se-
tembro de 1939, na pequena cidade de Crisciumal, no interior do Rio
Grande do Sul, os irmãos gaúchos Willy Eugênio Fleck e Raimundo Fleck
inauguraram seu novo negócio: uma empresa de transporte de passageiros
e cargas chamada justamente Empresa Crisciumal. Enquanto isso, a mi-
lhares de quilômetros dali, na Europa dos ascendentes de Willy, tropas da
Wehrmacht da Alemanha de Adolf Hitler invadiram a Polônia. Começara
a Segunda Guerra Mundial.
Em Crisciumal, os três veículos que formavam a frota da nova em-
presa passaram a rodar. O principal deles era um caminhão de passageiros
ano 1939, da marca Ford. Isto mesmo: um caminhão de passageiros — as-
sim denominado porque tinha, ao mesmo tempo, lugares para viajantes e
também, na parte traseira, bom espaço para o transporte de cargas. Além
desse exemplar híbrido, estranho mas até certo ponto comum na região,
havia dois outros caminhões Ford ano 1937 só para transporte de cargas.
Distantes até mesmo dos ecos do conflito mundial, os três veículos da
Empresa Crisciumal transitavam constantemente entre as cidades de Ijuí,
Três Passos e Santa Rosa. Sua primeira rota a funcionar com regularidade
foi entre Crisciumal e Ijuí, por sinal a segunda linha do Alto Uruguai a
ser registrada junto ao Departamento Autônomo das Estradas de Rodagem
do Rio Grande do Sul — DAER. A primeira linha registrada (por outra
empresa) ligava Ijuí e Cruz Alta e utilizava uma jardineira e três cami-
nhões, usados principalmente no transporte de fumo, produzido em larga
escala na região de Cruz Alta. Quando a linha da Crisciumal começou a
83
funcionar, no início de 1940, ainda nem existia transporte regulamentado.
No mesmo ano, a empresa comprou o primeiro ônibus fechado de toda
a região centro do Estado, de colonização recente e com uma economia
que começava a deslanchar.
Como ocorria em outras partes, o grande problema para a execução
dos serviços eram as estradas. Com tempo seco, até que eram bem tran-
sitáveis, mas quando chovia, a terra vermelha transformava-se em barro e
lama quase invencíveis. Muitas vezes, os veículos lotados partiam de Cris-
siumal às 4 horas da manhã e, por volta das nove, lá vinham os motoristas
de volta... para tomar café! Chegavam a pé, enquanto os caminhões ou
ônibus estavam atolados, depois de terem percorrido apenas dois ou três
quilômetros. No esforço para desencalhar os veículos, as cargas tinham de
ser aliviadas; os passageiros desciam e ainda ajudavam a empurrar.
Embora com algum atraso, os efeitos da Segunda Guerra Mundial
acabariam chegando àquelas paragens. Entre as coisas que começaram a
faltar estava a gasolina. Em condições normais, o combustível, acondicio-
nado em tambores, era trazido de Porto Alegre, pois na época ainda não
havia postos de abastecimento. De uma hora para outra, porém, os tambores
já não chegavam e foi preciso apelar para a solução adotada na capital e
nas cidades de maior porte. Numa oficina de Porto Alegre, um caminhão
Ford 1942 da Empresa Crissiumal foi adaptado para queimar carvão. O
propelente assim obtido — o chamado gasogênio — permitiu garantir
um precário mas indispensável transporte de cargas e pessoas na região.
Tantos anos depois, é difícil avaliar a importância dos serviços que
eram prestados por essas nascentes empresas de transporte. Os motoristas,
que quase sempre eram os donos do veículos, não se ocupavam apenas
de guiar. Completada a viagem até a cidade mais desenvolvida, onde o
comércio era mais bem sortido, transformavam-se em grandes comprado-
res. Levando nos bolsos listas preparadas pelos comerciantes das pequenas
localidades servidas pela empresa, iam de loja em loja, sempre festejados
pelos vendedores. Comandavam pedidos, reuniam mercadorias, carregavam
sacos, fardos, pacotes de fumo, farinha, farinha de milho, farinha de trigo,
feijão, arroz, além de enxadas, foices, facões, correntes, selas de montaria,
arreios, cortes de tecidos. Pelo caminho de volta, iam descarregando aquilo
tudo, entregando aos comerciantes que tinham encomendado cada compra.
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Em setembro de 1993, o empresário Hugo Eugênio Fleck, filho de
Willy Fleck, falou a Rúbio Gômara da sua convicção de que, nesse pro-
cesso, surgiu o termo “encomenda”, usado até hoje para designar objetos
e produtos transportados pelas empresas de ônibus.
Por volta de 1944 ou 1945, as próprias empresas de ônibus utilizavam
o sistema, preparando as listas de “encomendas” que deveriam ser trazidas
pelos motoristas. Hugo Eugênio Fleck lembrou-se de que na região de Três
Passos, onde havia morado ao tempo em que era uma cidade nova, recém-
-formada, os moradores se abasteciam em Ijuí. As listas de “encomendas”
de remédios e mercadorias eram confiadas aos motoristas e, na volta da
viagem, os comerciantes ficavam esperando por eles no ponto de parada.
Com o tempo, a Crisciumal passou a atender mais cidades e teve seu
nome mudado para Empresa Pioneira. As ligações foram sendo estendidas
a toda a região noroeste do Rio Grande do Sul. Em 1952, num grande
passo, começou a fazer a primeira linha de Ijuí para Porto Alegre, ainda
em estrada de terra.
Às vezes, uma viagem demorava dois ou três dias. Na verdade, nem
frequências diárias havia, o ônibus saía e chegava quando possível, a depen-
der das condições do tempo e da estrada. Mesmo assim, seis anos depois,
em 1958, a modernidade bateu à porta da Pioneira com os assim chama-
dos “ônibus de frente”, no dizer local, nos quais o motor estava colocado
ao lado do motorista. Até então, os coletivos, feitos a partir de caminhões
Ford F-8 e Chevrolet, tinham o motor projetado, ou seja, fora do salão de
passageiros, e por isso, durante muitos anos, foram conhecidos como “pes-
coções”. Quanto aos novos carros, logo foram apelidados de “gostosões”.
Também se dizia “pullman”, porque na lateral das carrocerias, produzidas
pela Elisiário, aparecia escrita essa palavra. Bem mais confortáveis, esses
ônibus representaram também o começo do fim das linhas do tipo “pinga-
-pinga”, abreviando em algumas horas a longa viagem até Porto Alegre.
À medida que a empresa foi expandindo seu raio de atuação no setor
de passageiros, Willy Fleck entendeu que devia enveredar também por
outras atividades. Criou então algumas novas empresas, com ramificações
nos ramos de indústria, comércio e agricultura. Percebeu ainda que, para
expandir-se de modo mais consistente no transporte de passageiros, deveria
aproveitar eventuais oportunidades de compra de outras empresas. Foi assim
85
que, em 1962, adquiriu a empresa Rainha da Fronteira. A Rainha cobria
toda a fronteira na zona de Bagé e Livramento, mas estava abandonando
alguns serviços devido à precariedade da operação. Acabou não conseguindo
se manter e o controle foi assumido por Willy Fleck. Com isso, a Empresa
Pioneira passou a atuar também na região da fronteira com o Uruguai.
Um novo passo estendeu-se pelos anos de 1970 a 1973, quando a
empresa passou a fazer suas primeiras linhas para a Argentina. Essa nova
vocação se fortaleceu nos anos seguintes e, entre 1977 e 1978, ela também
passou a fazer algumas ligações com o Uruguai. Na prática, foi o início das
linhas internacionais na região sul do Rio Grande do Sul, que depois se
revelaram de baixa demanda, sendo o maior movimento apenas no verão.
E assim a Pioneira tornou a concentrar-se no transporte regional, basica-
mente no estado do Rio Grande do Sul, exatamente quando começava
o que muitos empresários relembrariam como sendo a época de ouro da
atividade, que durou aproximadamente de 1975 a 1988.
A empresa registrou nesse período excepcional crescimento e de-
senvolvimento, firmando-se entre as principais organizações do transporte
rodoviário de passageiros do Rio Grande do Sul. Dotado de forte carisma
e capacidade de liderança, Willy Fleck não se limitava a comandar sua
vitoriosa companhia; desenvolvia um trabalho incansável de aglutinação
do setor. Durante muitos anos, de 1964 a 1980, Willy Fleck foi presidente
da Federação das Empresas de Transportes Rodoviários do estado do Rio
Grande do Sul. Seu filho Hugo Fleck contou que ele tinha uma relação
muito boa com os políticos, dada sua facilidade em estreitar contatos.
Através da classe, à qual dedicou muitas horas de sua vida, ele fez
uma coisa que muito me orgulha: amizades. Geralmente, quem trabalha
ocupando cargos em entidades acaba com muitos inimigos. Mas ele foi uma
pessoa que cativou muito.
86
principalmente no ramo da pecuária e da agropecuária (soja e boi), com
a implantação de empreendimentos no Rio Grande do Sul e em Mato
Grosso. Uma empresa de armazenagem e outra de fertilizantes foram
agregadas ao grupo.
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criam a necessidade e vão. Portanto, quando surge uma dessas linhas que até
há pouco não existiam, alguém falhou ao ignorar o mercado e não colocar o
serviço adequado. A necessidade das pessoas deve correr junto com o Regu-
lamento. Não podemos ter um Regulamento que diga: “Se em determinado
lugar não existe nenhuma empresa, as pessoas não podem ir para lá”. Isso
não existe — finalizou Willy Eugênio Fleck.
Acervo Rúbio Gômara
88
EXPRESSO BRASILEIRO VIAÇÃO LTDA.
MANOEL DIEGUES
1941
89
cial forte e de intenso movimento. Além disso, era pelo porto de Santos
que chegavam, em boa parte, as mercadorias importadas, cujo volume
aumentava de mês para mês.
Por causa da estrada, estreita, tortuosa e íngreme, as jornadas eram
extremamente penosas para o Expresso Brasileiro. Mesmo assim, de quatro
em quatro horas, pequenos ônibus Chevrolet ostentando a sigla EBVL
cruzavam nos dois sentidos a Serra do Mar. E Diegues enchia o peito para
acentuar: “De quatro em quatro horas!” Intervalo que, dois anos depois de
aberta a linha, ele já havia reduzido para 30 minutos.
Manoel Diegues tinha enorme orgulho da empresa que estava er-
guendo e do trabalho que vinha realizando. Dizia sempre que o EBVL
“desempenhava uma tarefa meritória no processo de implantação do trans-
porte rodoviário e em favor dos transportes coletivos do País, ocupando a
posição de precursora em importante ramo dos serviços públicos”. Diga-se
de passagem, precursora quando se tratava de operar em estradas asfalta-
das. Fugia das estradas não pavimentadas, tão comuns na época, e a ele é
atribuída a frase: “Quem gosta de terra é pé de couve”. Do mesmo modo,
sempre se referia ao asfalto como “civilizador”.
Diegues sustentava, ainda, com perdoável exagero, que o Expres-
so Brasileiro operava com um padrão que lhe permitiria tranquilamente
competir com o que de melhor existia naquele tempo nos Estados Unidos.
Tamanha autoconfiança tinha suas vantagens. Quando o interventor
do governo federal em São Paulo, Fernando Costa, decidiu organizar os
serviços de ônibus urbanos da cidade de Santos, onde a população não dis-
punha de transporte público adequado, o Expresso Brasileiro foi chamado
e só teve o trabalho de entrar com o pedido de concessão. Obteve-a, mas
logo em seguida foi obrigado a engolir a negativa de um escalão mais alto
— irrecorrível, segundo se dizia —, capaz de fazer desistir um competidor
menos arrojado. Havia falta de gasolina e óleo diesel.
O racionamento fora implantado pelo governo federal em 1942, por
causa das dificuldades da guerra. O sistema era de cotas e as prefeituras
municipais estavam encarregadas de emitir cupons de racionamento. Sem
eles, nenhum revendedor de combustível poderia fornecer o produto.
No dia 18 de maio de 1943, na vigência do racionamento, um oti-
mista Manoel Diegues, depois de ter montado a frota de ônibus urbanos
90
que iria operar na cidade, dirigiu ao “Excelentíssimo Senhor Delegado da
Comissão de Racionamento em Santos”, autoridade responsável pela atri-
buição de cotas de combustível a órgãos públicos e a empresas operadoras
de transporte, um ofício caprichosamente datilografado. Dizia:
91
deixava-se impulsionar pelo anseio de paz que envolvia as pessoas, muito
motivadas pela vitória aliada sobre o nazifascismo. Além disso, aproximava-
-se a data da inauguração da nova estrada entre Santos e São Paulo — a
Via Anchieta —, obra estadual projetada e construída de acordo com a
mais avançada técnica rodoviária então disponível no País, e que, por isso
mesmo, demandava um novo padrão de veículos de transporte. Diegues
sabia exatamente o que queria pôr para rodar naquela estrada, algo que
podia ser sintetizado na palavra “Coach”. Ela identificava os mais moder-
nos ônibus rodoviários norte-americanos da época e o empresário queria
vê-los subindo e descendo a Serra do Mar a intervalos de cinco minutos.
Ainda antes de adquiri-los, já pensava no treinamento que seria preciso
proporcionar aos seus motoristas. Pensava mais: na nova cultura operacional
e técnica que teria de introduzir no próprio EBVL.
O que dizer do vultoso aporte financeiro que a compra exigiria?
Embalado pelas perspectivas do mercado, o empresário preferia fixar-se
no que esse novo passo deveria significar para o transporte rodoviário no
País. Talvez tenha sido isso que mais o motivou a levar adiante o empre-
endimento.
A pista ascendente da Via Anchieta, com 74 quilômetros de extensão,
foi inaugurada em 1947. Seis anos depois, concluída a fantástica rodovia,
com suas ousadas obras de arte, arrojadas correções de nível e traçado
muito mais seguro, os “Coach” do Expresso Brasileiro, importados dos
Estados Unidos e recebidos com entusiasmo pelos usuários, estavam de tal
modo integrados àquele mundo futurista, que passaram a ser, eles próprios,
atração turística para muitos viajantes. Em pouco tempo os novos ônibus
já alcançavam marcas superiores a 300 mil passageiros transportados por
mês, realizando nesse período mais de 3 mil viagens.
Enquanto os números iam sendo suplantados, Manoel Diegues vis-
lumbrava voos ainda mais ousados. As obras de construção de outra moder-
níssima rodovia, a Via Anhanguera, avançavam com celeridade no rumo
da outra grande cidade do interior paulista — Campinas. A primeira pista
ficou pronta em 1948 e sua inauguração encontrou o Expresso Brasileiro
pronto para reeditar, em nova linha de mais ou menos 100 quilômetros de
extensão, o mesmo padrão de serviços oferecido na linha São Paulo–Santos,
e prestado com o mesmo modelo de ônibus.
92
Em 1953 foi inaugurada a segunda pista e, também aí, não foi difícil
para o Expresso Brasileiro atingir, em tempo relativamente curto, a marca
dos 200 mil passageiros transportados mensalmente, enquanto Manoel
Diegues cuidava de preparar os próximos passos: primeiro, a abertura da
linha São Paulo–Jundiaí; depois, o início da linha São Paulo–Ribeirão
Preto. Vieram mais tarde São Paulo–Lindoia, São Paulo–Poços de Caldas
e São Paulo–Sorocaba, rotas que permitiram à empresa atender também
a todas as localidades intermediárias.
Já o governo federal preparava-se para inaugurar o trecho inicial da
maior obra rodoviária da primeira metade do Século XX no Brasil, a Via
Dutra, nova ligação entre Rio de Janeiro e São Paulo. Fazendo-se conhe-
cer como a maior organização rodoviária da América do Sul, o Expresso
Brasileiro foi chamado a participar da prestação do serviço de transporte de
passageiros entre as duas capitais, no que poderia ser considerado o maior
salto de sua existência. Não só pela operação de uma linha de longa distân-
cia, mas porque, em boa medida, suas outras rotas passariam a funcionar
como alimentadoras da São Paulo–Rio. Acrescente-se o componente de
desafio que a operação representava, conforme a avaliação dos principais
técnicos rodoviários da época, e ter-se-á uma ideia do entusiasmo com que
Manoel Diegues se atirou ao trabalho naqueles dias. Jamais desanimou
em face de dificuldades. E mais uma vez seu esforço foi recompensado,
com a superação de todos os obstáculos e com a fama do Expresso Brasi-
leiro chegando cada vez mais longe: a melhor entre as melhores e mais
conhecidas empresas de transporte do País, com mais de quatro milhões
de passageiros transportados por mês. Todos queriam viajar pelo Expresso
Brasileiro. Todos procuravam entender como a empresa dos ônibus verde e
amarelos conseguira crescer tão rapidamente, e qual a razão do seu sucesso.
A revista de bordo do EBVL — a Viajando... —, novidade e pionei-
rismo que só Manoel Diegues poderia bancar, transpirava aquele sucesso.
Com 24 páginas, era impressa pelo sistema de rotogravura na melhor
gráfica da capital paulista de então, a Lanzara. Tirava 20.000 exempla-
res e tinha circulação bimestral. O número 2, por exemplo, dava grande
o
destaque à inauguração, no dia 1 de agosto de 1951, da “melhor e mais
completa agência rodoviária do Continente”, naturalmente montada pelo
o
Expresso Brasileiro. Localizava-se no n 885 da Av. Ipiranga, quase esquina
93
com a Av. São João, na cidade de São Paulo. Contava com charutaria,
bombonière, salões de barbeiro e cabeleireiro, livraria, banca de revistas e
jornais, guichê para venda de passagens, agência de turismo com serviço
de reserva de passagens aéreas, ferroviárias e marítimas, loja de lembranças
e artigos de praia e montanha, bar e restaurante, além de amplo “recanto
de estar”. No subsolo, uma sala de televisão — novidade recém-chegada
ao Brasil — e uma de cinema, com projeções contínuas e gratuitas. Os
ônibus permaneciam estacionados junto ao meio-fio da pista esquerda da
Av. Ipiranga, onde ocorriam as operações de embarque e desembarque.
Note-se, sem nenhum transtorno para o trânsito, já que naquele tempo
praticamente não havia congestionamentos na cidade.
Como empresa de prestígio, o Expresso Brasileiro também patrocinava
espetáculos artísticos e colocava seus modernos GM Coach à disposição
para transportar artistas de cinema e de rádio (este último, o veículo de
comunicação mais popular e de maior penetração da época). Em maio de
1951, por exemplo, num projeto desenvolvido em parceria com uma das
emissoras líderes de audiência em São Paulo — a PRA-6, Rádio Gazeta
—, foram patrocinados pela empresa shows com a atriz argentina Carmen
Del Moral, a cantora italiana Silvana Fioresi, o cantor espanhol Angelillo
e as cantoras brasileiras Wilma Bentivegna e Juanita Cavalcanti. Com um
pouco de sorte, passageiros puderam viajar ao lado dessas celebridades
que, sempre transportadas pelo Expresso Brasileiro, apresentaram-se nas
três principais cidades servidas por suas linhas, São Paulo, Santos e Cam-
pinas. A renda dos espetáculos foi destinada a instituições assistenciais e
de benemerência, como orfanatos e sanatórios. A tuberculose ainda era
um grave problema de saúde pública.
94
Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. A presença do EBVL
era reclamada.
Talvez os últimos anos houvessem sido vertiginosos demais para o
criador da empresa. Excessivamente envolvido com suas múltiplas ope-
rações, é possível que ele não se desse conta de que ultimamente seus
pedidos de importação de novos ônibus não vinham sendo atendidos. As
negativas eram sistematicamente atribuídas a dificuldades cambiais, que
aliás realmente existiam, mas, ao lado disso, o ex-ditador Getúlio Vargas,
tendo voltado ao poder pelo voto direto, decidira dar ênfase a uma política
de substituição das importações, como caminho para o desenvolvimento da
indústria brasileira. As compras externas iam sendo fortemente restringidas.
Em 1953, Getúlio criaria a Carteira de Comércio Exterior do Banco do
Brasil — Cacex —, com a missão de analisar caso a caso os pedidos de
importação.
No caso da operação da linha Rio de Janeiro–Belo Horizonte, e
mesmo na manutenção dos serviços de alto nível da Rio–São Paulo, onde
a frota do Expresso Brasileiro envelhecia a olhos vistos, a importação de
ônibus GM Coach aparecia como única alternativa. Só eles eram realmente
adequados aos serviços rodoviários de longo percurso, pela resistência dos
veículos e pela segurança e rapidez que proporcionavam. Além do mais,
Manoel Diegues não abria mão de oferecer o maior conforto possível aos
passageiros.
O Expresso Brasileiro até admitia a ideia de se adaptar progressiva-
mente ao uso de ônibus “nacionais”, ou seja, com encarroçamento feito no
Brasil sobre chassis de caminhões importados. Mas, na sua concepção, tais
veículos serviriam somente para cobrir as linhas urbanas e intermunicipais
da empresa — e não, definitivamente não, segundo Manoel Diegues, a
Rio–São Paulo. Menos ainda, a futura Rio–Belo Horizonte.
Os meses se passaram, a Rio–Belo Horizonte foi inaugurada e já se
falava na futura rodovia São Paulo–Belo Horizonte, porém os pedidos de
Licença de Importação do EBVL continuaram encalhados na burocracia
oficial. Diegues tentou várias alternativas: importação com ágio cambial
especial (já que os veículos se destinavam a prestar serviços públicos com
tarifas controladas); importação financiada pelos próprios fabricantes norte-
-americanos; importação com financiamento por investidores particulares
95
externos. Embora nunca houvesse qualquer negativa formal, nenhuma das
alternativas foi aceita.
Em determinado momento, o dono do Expresso Brasileiro pareceu
encontrar a solução. O Instituto Riograndense do Arroz — IRGA — estava
exportando uma grande partida do produto. Em certos casos, o governo até
podia conceder licenças de importação, quando vinculadas à colocação
de produtos brasileiros no exterior. Ou seja, as compras externas deviam
ser pagas com as mesmas divisas adquiridas com as exportações. Mas ulti-
mamente, esse tipo de operação havia sido sustado. Assim mesmo Manoel
Diegues entrou com novo pedido de Licença de Importação.
Advogado dedicado aos assuntos do transporte rodoviário de passa-
geiros, Rúbio de Barros Gômara marca presença neste ponto da história.
A pedido do dono da Pássaro Marron, sua cliente, Rúbio procurou Mano-
el Diegues para oferecer-lhe uma possível solução para seus problemas.
Naquele instante, explicou Rúbio, a Pássaro Marron estava concluindo
a importação de um lote de 50 ônibus norte-americanos, sendo 30 GM
(que no Brasil viriam a ser conhecidos como Morubixaba) e 20 ACF Brill.
Com dificuldades de caixa, a empresa não tinha como pagar os ônibus e
estava disposta a vendê-los. Manoel Diegues avaliou a proposta e cometeu
o erro de descartar o negócio; confiava em que seria autorizado a fazer
sua própria importação, exatamente naquele sistema casado que incluía
o arroz exportado pelo IRGA.
Diante disso, o presidente da Pássaro Marron, Affonso José Teixeira,
procurou Tito Mascioli, dono da Viação Cometa — maior concorrente do
Expresso Brasileiro —, com quem negociou os 30 ônibus GM. Quando
eles foram postos para rodar na Via Dutra, Manoel Diegues, que conti-
nuava utilizando na rota ônibus cada vez mais desgastados, entrou em
desespero. Para piorar, os tempos andavam agitados. A política incendiava
os ânimos, deixava os empresários desconfiados em relação à estabilidade
institucional do País.
96
ficiando do envelhecimento da frota do EBVL. Tratou, pois, de procurar a
Pássaro Marron, mesmo sabendo que os 30 GM não estavam mais disponí-
veis, e comprou os 20 ACF-Brill, que passaram a ser utilizados em linhas
mais curtas da companhia. Ainda naquela altura seguia acreditando que,
mais cedo ou mais tarde, receberia licença para importar os “Coach” que
pretendia usar na linha São Paulo–Rio.
Então, em agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas cometeu
suicídio, agravando ainda mais a crise institucional e política. No lugar
dele, assumiu o vice Café Filho, que ficou no poder até novembro de 1955,
quando alegou um problema cardíaco e deu o lugar a Carlos Luz, presi-
dente da Câmara dos Deputados. Este logo foi substituído pelo presidente
do Senado, Nereu Ramos, no quadro de um golpe militar “preventivo”
desfechado pelo ministro da Guerra, general Lott. Ramos foi mantido como
Presidente da República até a posse do novo presidente eleito, Juscelino
Kubitschek de Oliveira, em 31 de janeiro de 1956. Essa sucessão de acon-
tecimentos contribuiu para retardar ainda mais o processo de importação
dos ônibus do Expresso Brasileiro. É verdade que, logo depois, a posse de
Juscelino fez reacenderem-se as esperanças em relação à paz política. No
mesmo passo, renovou-se a confiança do empresário Manoel Diegues em
uma solução para seus problemas.
Diegues estava, provavelmente, fazendo uma análise equivocada dos
propósitos do novo governante, pois Juscelino assumiu e anunciou seu Plano
de Metas que priorizava cinco setores, entre eles o de transportes. Ainda
em 1956, criou vários Grupos Executivos encarregados de supervisionar os
investimentos privados nos diversos setores que pretendia estimular, entre
eles a indústria automobilística, cuja implantação seria supervisionada pelo
Grupo Executivo da Indústria Automobilística — GEIA. Tudo apontava,
portanto, para um esforço dirigido à produção de veículos automotores no
País, o que significava uma guinada de 180 graus na política de importação
de veículos.
Prestigiadíssimo por Juscelino, o GEIA se dedicaria à tarefa de atrair,
com empréstimos, benefícios fiscais e outros mecanismos, empresas au-
tomobilísticas estrangeiras que desejassem se instalar no Brasil. Para mos-
trar aos investidores o grande potencial do mercado brasileiro, o governo
determinou-se a implantar várias novas rodovias.
97
Se é que fez a leitura correta de todos esses sinais, Manoel Diegues
não deu mostras de ter mudado sua opinião sobre a necessidade de ree-
quipar suas linhas unicamente com ônibus “Coach” importados. Muito
bem-relacionado com o PSD, partido de Juscelino Kubitschek, o empresário
tinha entre seus amigos pessoais o deputado pessedista Antonio Feliciano,
considerado o político mais influente da Baixada Santista. Além do que, na
condição de dono “da maior organização rodoviária da América Latina”,
transitava com desenvoltura nos bastidores da política paulista. Acreditava,
portanto, ter motivos para confiar em que seu pleito seria atendido.
Esperou dez meses, contados da posse de JK, antes de resolver-se a
apelar diretamente ao presidente da República. Escudado, como sempre, na
dimensão do Expresso Brasileiro e no papel que a empresa desempenhava
no cenário do transporte rodoviário de passageiros do País, entendeu que
devia levar ao supremo mandatário informações que, conforme suspeitava,
lhe estariam sendo sonegadas. Em ofício que enviou ao presidente da Re-
o
pública, datado de 1 de outubro de 1956, começou dizendo que se sentia
compelido a recorrer ao supremo magistrado da Nação para que, “com
sua percuciente visão, ampare a maior organização rodoviária do conti-
nente sul-americano, posta hoje em situação difícil, face ao injustificado
rigor com que vem sendo tratada pelos órgãos encarregados do controle
de importação de unidades automotivas e que a persistir comprometerá
toda uma obra de pioneirismo com acentuados malefícios para o grande
público beneficiado”.
Nas cinco laudas seguintes, historiou com detalhes a trajetória de
sua empresa e o problema que, conforme alegou, lhe estava ameaçando
a sobrevivência. Problema que, acentuou, respondia pelo nome de Car-
teira de Comércio Exterior do Banco do Brasil — Cacex. Destacou ainda
o papel que, naquela ocasião, o poder concedente estava atribuindo ao
EBVL na operação dos serviços de transporte rodoviário de passageiros
entre Rio de Janeiro e São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, São
Paulo e Belo Horizonte. Por fim, para não deixar dúvidas sobre o potencial
econômico do Expresso Brasileiro, traçou um perfil completo da com-
panhia, relacionando minuciosamente sua frota por lotes de marcas, o
capital, o patrimônio imobiliário etc. Ao se compulsar o alentado ofício,
fica-se sabendo que, na época, para operar os seus serviços intermunici-
98
pais e interestaduais, o Expresso Brasileiro contava com frota total de 163
ônibus, todos importados. Eram 54 Volvo do modelo B-638, 20 ACF-Brill
e 89 GM Coach, estes últimos dos modelos PDA 2903, PDA 3703, PDA
4101, PDA 4102 e PDA 4103.
Segundo uma versão não confirmada, o ofício teria sido entregue
pessoalmente por Manoel Diegues ao presidente Juscelino, em audiência
no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, na presença de parlamentares
do PSD. Mas não produziu o resultado esperado. No livro Jogo duro, de
2007, no qual biografa o dirigente esportivo João Havelange, o jornalista e
escritor Ernesto Rodrigues sustenta que naquela audiência, para satisfazer os
políticos pessedistas, Juscelino formalmente determinou ao então ministro
da Fazenda, José Maria Alckmin, que autorizasse a importação dos ônibus.
Só que, tão logo seus satisfeitos correligionários se retiraram do Catete, o
presidente meteu o documento numa gaveta, presenteando-o depois ao
advogado da Viação Cometa, que não era outro senão Havelange, com
quem mantinha laços de amizade desde os tempos em que eram estudantes.
Também é possível que Juscelino, naquela hora, simplesmente não
tivesse cabeça para questões alheias à construção da nova capital e à im-
plantação da indústria automobilística. O fato é que o assunto continuou
se arrastando interminavelmente, até que um dia Manoel Diegues, no
limite da exasperação, resolveu usar o telégrafo. Como quem dá a última
cartada, já agora ameaçando interromper operações e empregando termos
duros que denotavam impaciência e bem poderiam ser recebidos como
impertinentes por Juscelino, dirigiu-se novamente ao presidente:
99
renovação da frota e peças vitais, tomou a grave deliberação, ditada pelas
circunstâncias, de suprimir a totalidade de ditas linhas de ônibus. E isso
o fará com fundo pesar, desencanto e mágoa, pois, como empresa pioneira
dos modernos meios de transportes rodoviários, vem ela lutando há mais de
três lustros em prol da causa que abraçou, conquistando a posição de uma
das maiores organizações rodoviárias sul-americanas. Em verdade, tem a
empresa responsabilidade pelo transporte de 500.000 pessoas mensalmente,
cobrindo seus veículos (...) quilômetros de estradas por mês. Tudo quanto
fez o foi sem qualquer ajuda governamental e com recursos particulares
próprios. Não goza de subvenção nem de isenção tributária, pagando à
União, Estado e município os mais pesados tributos. Manda a lealdade
que se diga que a política mantida para o transporte rodoviário só poderia
conduzir à presente situação catastrófica, porque de um lado as tarifas, asso-
ladas pela compressão demagógica eleitoreira, não são reajustadas segundo
o real custo da operação dos serviços, impedindo que se criem fundos para
renovação dos equipamentos, de outro lado, se fossem reajustadas em base
real, tornar-se-iam proibitivas para a bolsa dos usuários, impossibilitados
de enfrentar preços altos, em razão da sobrecarga do custo de aquisição de
veículos, peças e sobressalentes afetados pelo ágio cambial e pelo crescente
aumento dos combustíveis e acessórios em geral e ainda a elevação contínua
da mão de obra, como decorrência da inflação. As perspectivas da política
cambial e as tarifas alfandegárias tornam ainda mais sombria a situação
futura das empresas rodoviárias, em face da desigualdade de tratamento em
comparação com outros ramos de transportes, como o aéreo, o ferroviário e
o marítimo. E se estes outros ramos de transportes, gozando de subvenção,
isenção tributária e de direitos alfandegários e importando pelo ágio oficial,
apresentam acentuados déficits, há que reconhecer o governo que só por
verdadeiro milagre, fruto da abnegação e sacrifício, lograram as empresas
rodoviárias manterem-se, milagre porém agora impossível de perdurar ante
o regime de asfixia a que vêm sendo submetidas com se lhe negar direito à
importação de material só possível ágio quinta categoria e sem esperança
de salvação, porquanto projeto regime tarifário cambial obediente à política
de proteção à indústria automobilística ainda não nasceu e nem produzirá
ônibus manterá essa onerosa e arrasadora desigualdade de tratamento. Para
acelerar funerais das empresas rodoviárias, os departamentos controladores
100
lhes negam reajustes de tarifas ou os concedem em subníveis iníquos. Só
resta lastimar que o governo de V. Exa., fundado no binômio Transporte
e Energia, tenha que assistir ao colapso dos transportes rodoviários, cujas
empresas que os operam têm, até aqui, sustentado os serviços comendo sua
própria carne, tanto vale dizer, cobrindo déficits com o consumo das frotas
de veículos, sem meios financeiros para renová-las.
Manoel Diegues
Gerente Diretor
101
cex em torno da importação dos ônibus norte-americanos fez com que o
Expresso Brasileiro, até pouco tempo antes apontado como modelo de
transportadora, começasse a perder fôlego. A partir daí, enquanto esteve
sob a administração do fundador, nunca mais conseguiu se recuperar do
baque sofrido. No início da década de 1960, depois de tanto procurar uma
saída para a companhia, Manoel Diegues se deu por vencido e abriu mão
do negócio. Nos anos seguintes, a empresa passaria pelas mãos de vários
empresários, todos atraídos pelo grande potencial representado pela sigla
EBVL. Mas todos, igualmente, batidos pelo sorvedouro de recursos em
que a transportadora se transformara.
Menos um. Em 1966, o empresário Antonio Romano, dono da Viação
Ipiranga, que operava no urbano em São Paulo, fechou um dos grandes
negócios de sua vida, a compra do Expresso Brasileiro. A transação provocou
o mesmo ceticismo que se tornara comum desde a capitulação de Manoel
Diegues. Na época, a transportadora continuava fazendo unicamente a
linha São Paulo–Rio, mas o nome se mantinha conhecido e bem reputado
em todo o País. Assumindo a nova operação, Romano e seus três filhos
começaram imediatamente a definir e colocar em prática estratégias para
revitalizar a empresa e recuperar a tradicional qualidade dos seus serviços.
Laurindo Romano, o filho mais velho, foi destacado para assumir a direção
da companhia.
O quadro começou a mudar. Lentamente, o Expresso Brasileiro con-
seguiu recuperar-se e retomar o espaço perdido no mercado, não obstante
as eventuais oscilações no volume de passageiros no eixo Rio–São Paulo e,
principalmente, a acirrada competição entre as empresas que operavam o
trecho. Em meados da década de 1980, Laurindo Romano decidiu não só
investir pesado na renovação da frota, como dar uma sacudida no conceito
de transporte de passageiros. Tinha consciência de que, naquela altura, a
marca Expresso Brasileiro estava de novo consolidada, mas reclamava a
implementação de ações de modernização e atualização para manter o bom
atendimento. Comprou então 60 dos mais modernos ônibus disponíveis no
mercado, com a mais avançada carroceria. Com poltronas mais elevadas
em relação ao piso do corredor, os veículos proporcionavam excelente vista
panorâmica aos passageiros. A preferência deles pelos novos veículos deu
novo impulso à empresa.
102
Fotos: Acervo ABRATI
Jardineira Ford do
Expresso Brasileiro
equipada com motor
Hércules diesel e
encarroçada pela Caio.
Começou a rodar em
1947 na linha São Paulo–
Jundiaí–Campinas.
Em frente ao prédio
principal da General
Motors, em São Caetano do
Sul, ônibus GM importado,
pronto para ser entregue ao
Expresso Brasileiro.
O interior da garagem
da empresa sugeria a
força do EBVL e os
cuidados com a frota,
na sua maior parte
importada.
Fotos: Acervo ABRATI
Revista de bordo do Expresso
o
Importado dos Estados Brasileiro. A capa da edição n 2
Unidos, o ônibus GM Coach (julho/agosto de 1951) mostrava
sempre foi considerado a recém-inaugurada agência
fundamental pelo Expresso rodoviária da empresa, na Av.
Brasileiro na disputa com Ipiranga, centro de São Paulo.
suas concorrentes.
105
então, o racionamento vinha sendo enfrentado com uma solução muito
mais cara, espetaculosa e sobretudo indesejável: o uso do chamado gás
pobre, ou gasogênio, obtido com a queima de madeira e mal-afamado pela
sujeira que atirava no ar e nos passageiros, pelo barulho quase ensurdece-
dor que o motor passava a produzir, e pela lentidão com que o veículo se
deslocava quando equipado com a geringonça.
O jovem empresário superou assim, até com certa tranquilidade, a
ameaça de ter que interromper o seu negócio. Que era, nada mais nada
menos, o embrião da Empresa Gontijo de Transportes, hoje uma das
maiores transportadoras de passageiros do Brasil.
Nos anos seguintes, Abílio Gontijo trabalhou sem descanso, consoli-
dando sua linha e firmando-se como empreendedor honesto e cumpridor
de seus compromissos. Em 1950, adquiriu as linhas Patos de Minas–Belo
Horizonte (feita por duas rotas — uma via São Gotardo e outra via Três
Marias) e Patos de Minas–Pirapora. Não é preciso dizer que as estradas
eram todas de terra. Mas agora, refletindo a expansão do negócio, ele
já dirigia uma jardineira Chevrolet com carroceria metálica, tipo “bico
comprido” (motor projetado para fora), conhecida como “guarda-louças”.
Tinha capacidade para 14 passageiros.
O negócio seguinte da já denominada Empresa Abílio Pinto Gontijo
foi a compra de 25% da Viação Planeta, responsável pelas linhas para o
chamado Vale do Aço: Belo Horizonte–Coronel Fabriciano e Belo Hori-
zonte–Ipatinga. Em outra transação, foi adquirida a empresa Santa Bárbara,
que fazia as linhas de Belo Horizonte para Araxá, Uberaba, Uberlândia e
Ituiutaba. Ainda nenhuma estrada era asfaltada.
A oportunidade de mudar a sede da empresa de Carmo do Paranaíba
para Belo Horizonte veio com a compra das linhas Belo Horizonte–Go-
vernador Valadares e Belo Horizonte–Teófilo Otoni. Um detalhe da rota
para Teófilo Otoni: a viagem podia ser alongada em quase 500 quilômetros
na época das chuvas, quando era necessário dar a volta por Três Rios ou
Caratinga. De qualquer maneira, a transferência da sede representou nova
arrancada na vida do jovem empreendedor.
Nada comparável, entretanto, ao que ocorreu a partir da posse de
Juscelino Kubitschek na Presidência da República, em 1956. As estradas
logo começaram a ser asfaltadas, foi iniciada a construção de Brasília e a
106
demanda por transporte rodoviário de passageiros explodiu. Como a Gontijo
não tinha linha para atingir Brasília, Abílio estabeleceu parceria com uma
empresa de Patos de Minas — cidade que era passagem estratégica para
quem demandasse a nova capital a partir do Rio de Janeiro — e a linha
das duas foi a primeira interestadual a ser aberta para lá.
Muitos anos depois, o diretor presidente da Empresa Gontijo de
Transportes ainda faria uma avaliação bastante favorável do governo Jus-
celino Kubitschek:
Nosso pensamento é que temos que melhorar todo dia para podermos
atender aos nossos clientes. O cliente é quem paga tudo. Mas fomos crescendo
com os pés no chão, como se diz, dentro do nosso lema de gastar de acordo
com o que ganhamos. Nunca alavancamos a empresa. Fomos crescendo de
107
acordo com as possibilidades. Sempre trabalhamos de acordo com a nossa
capacidade de honrar os compromissos.
Talvez por isso é que se diz que “Abílio nunca deixou ninguém na
estrada: nem passageiros, nem funcionários”.
Em 1975, a Gontijo iniciou a operação da linha Belo Horizonte–
Salvador e preparou-se para alcançar outras praças do nordeste do País.
Usando Governador Valadares como ponto de partida ou de passagem,
logo chegou ao Recife. Também as praças de Goiânia e Campo Grande
foram incorporadas às suas rotas.
Em relação ao Nordeste, o passo decisivo foi a compra da Viação
Bonfinense, que possibilitou à Gontijo o acesso definitivo a um de seus
mercados mais importantes. Foram incorporados 140 ônibus e as inúmeras
linhas da Bonfinense entre São Paulo e o Nordeste. O mesmo ritmo de
crescimento foi mantido nas décadas de 1980 e 1990.
A companhia também se notabilizou pelo seu tradicional programa
anual de renovação da frota. Outra de suas características é a fidelidade a
determinadas marcas e fornecedores. Um dos traços da personalidade de
Abílio Gontijo é o de sempre pagar à vista os seus fornecedores.
O veículo da Gontijo é padronizado. Em todo o País, ela opera
exclusivamente o serviço convencional, utilizando o mesmo modelo de
carro. O que não a impede de estar sempre entre as primeiras compradoras
dos novos lançamentos de chassis e carrocerias.
108
A primeira
jardineira utilizou
álcool como combustível
no período do racionamento. Fotos: Acervo Empresa Gontijo
111
ele, o comércio de carvão dos Noel passou a depender menos das difíceis
cotas de combustível. As visitas de Sá tornaram-se quase que semanais; ele
sempre vinha saber como o caminhão estava se comportando. Um dia, Sá
trouxe uma informação e um conselho. Disse que no Rio de Janeiro havia
uma empresa de ônibus à venda. “É negócio melhor do que esse que vocês
estão fazendo, vale a pena.”
Quem contou a história a Rúbio Gômara foi Francisco Sebastião
Noel, um dos irmãos Noel. E com detalhes:
112
Como Francisco Noel recordou, na ocasião em que foi adquirida, a
empresa fazia uma única linha, Três Rios–Petrópolis, com quatro horários
diários. “Levava-se mais de duas horas de viagem para cumprir o trajeto.
A estrada, muito antiga, era bem ruim, com um grande trecho de terra, e
os carros eram bem velhos.”
A experiência não durou muito. Quando ficou claro que a empresa
híbrida não era boa uma ideia, criaram outra, só para transportar passageiros.
Tiveram de dar-lhe um nome e registrá-la, para que operasse de acordo
com as novas exigências do poder público. Pouco inspirados, os irmãos
não conseguiam achar um nome que lhes agradasse. Um amigo lembrou
que, na época, existia uma água mineral bem conhecida, a Salutaris, cap-
tada numa mina perto da linha Três Rios–Petrópolis. Havia até um painel
luminoso instalado na encosta do Morro da Urca, no Rio de Janeiro, em
que fios de néon em forma de gotas luminosas piscavam alternadamente,
dando a impressão de que iam caindo e enchendo um copo. “Por que não
botam Viação Salutaris?”, sugeriu. A sugestão foi aceita.
Em pouco tempo os irmãos Noel iriam se revelar empresários hábeis
e compradores competentes. Reinvestindo todo o ganho na empresa, co-
meçaram por adquirir uma segunda linha, pertencente a um filho de João
Batista Pereira. Em 1948, viram a possibilidade de ligar Três Rios ao Rio
de Janeiro e entraram com o pedido no DNER, que passara a ser o órgão
responsável pelas permissões. Como segunda solicitação, acrescentaram a
linha Rio–Paraíba do Sul. Ambas foram concedidas. Havia alguma dificul-
dade em relação à idade dos carros, que eles foram resolvendo aos poucos.
No início, a frota tinha veículos de duas marcas: Magirus e Indiana. Este
último carro era equipado com motor Hércules. Tão logo tiveram dinheiro
suficiente, compraram um chassi de caminhão Ford, que foi equipado com
motor Hércules de quatro cilindros. Joaquim Sebastião Noel lembrou-se
de que esse motor “dava uma tremedeira danada quando em ponto morto”.
Foi nessa época, 1948, que, sem nenhuma razão aparente que moti-
vasse um possível descontentamento, o amigo e vendedor Valter da Cunha
Sá Pinheiro confessou a Francisco Sebastião que estava pensando em
deixar a sociedade. Na época, os sócios iam com certa frequência ao Rio
de Janeiro a fim de acompanhar a situação dos processos em tramitação
no DNER”. Francisco Sebastião Noel recordou:
113
Numa dessas descidas ao Rio, ele disse: “Sabe de uma coisa? Vou sair,
vou embora, vou cuidar de outra coisa”. Tentei fazer ele desistir, mas explicou:
“Vou vender minha parte para vocês. Minha família é muito complicada,
se eu morrer vocês vão ter um aborrecimento muito grande. Aguentem um
pouco que logo eu vendo minha parte para vocês”. Contei sobre essa conversa
ao meu irmão e ele comentou: “Se ele quiser, é melhor nós acertarmos logo
esse negócio”. E assim a gente pagou o que ele queria e ele saiu. Durante
cinco anos pagamos uma prestação de 20 mil cruzeiros por mês. De vez em
quando íamos lá na casa dele fazer uma visita. Ele ficava todo satisfeito, às
vezes chorava. Dizia que considerava a gente mais que aos próprios filhos,
que gostaria que nós fôssemos mesmo filhos dele. O Sá foi uma pessoa a
quem temos muito o que agradecer.
114
e também porque nem sempre havia passageiros suficientes para lotação
compensadora.
Em meados de 1960, a Salutaris voltou a investir em expansão.
Comprou da Empresa Águia de Ouro (1966) a linha Petrópolis–São Paulo.
Depois, comprou, da mesma empresa (1968), as linhas São Paulo–Ubá e
São Paulo–Ponte Nova. Já então, os irmãos Noel começavam a achar que,
dali em diante, para poder crescer com consistência, a Salutaris deveria
redimensionar-se e renovar sua gestão. Em 1969, tomaram a decisão de
buscar linhas de maior extensão e, paulatinamente, desfazer-se das linhas
mais curtas.
Em 1970, contrataram uma consultoria de São Paulo, que foi encar-
regada de desenvolver um trabalho de organização e método na empresa.
A operação e o funcionamento dos diversos departamentos passaram a ser
mais bem acompanhados. Também foi adotado um controle mais apurado
da manutenção preventiva, feita de acordo com a quilometragem rodada
por veículo. Foram aperfeiçoados os sistemas de requisição ao almoxari-
fado, devolução a estoque, boletim de entrada de notas fiscais, ordem de
serviço para cada serviço a ser executado. A contabilidade, que era feita
por empresa terceirizada, foi trazida para dentro da empresa. Um ano de
grandes mudanças na vida da Salutaris.
Simultaneamente às novas práticas de gestão, iniciou-se a constru-
ção do novo edifício-sede, fora do centro da cidade de Três Rios, com
instalações mais modernas e adequadas. Ao mesmo tempo, a Salutaris
deu sequência à política de operar linhas mais longas e de sair das linhas
curtas. Tudo isso junto, acontecendo ao mesmo tempo, contribuiu para
revigorar a companhia. No quinquênio seguinte ela deveria ganhar impulso
ainda maior. Primeiro, com a incorporação de mais uma empresa, desta
vez de Friburgo e toda a região adjacente, em 1972. Depois, com a venda
de algumas linhas curtas, em maio de 1975, para a Viação Progresso, de
Três Rios.
Um salto decisivo foi dado com a compra da empresa Vera Cruz,
da linha para Vitória da Conquista. A compra não incluiu os veículos,
pois a Salutaris preferiu iniciar a operação com 50 ônibus novos, além de
mudar radicalmente a prestação do serviço. Nada de passageiro comprar
passagem e ter que ficar esperando a chegada do ônibus seguinte, por falta
115
de carros ou devido a overbooking. Em pouco tempo a Salutaris começou a
ser referida como a empresa que prestava o melhor serviço da Rio–Bahia.
Depois de certo tempo, porém, os donos concluíram que precisariam
administrar com cautela o crescimento do negócio. Não que ela houvesse
crescido de maneira desordenada; mas mudara bastante em relação ao que
era na origem. Começou como empresa de porte pequeno e com linhas
curtas; agora, se não era uma empresa grande, suas linhas haviam se tornado
maiores, mais longas. Algumas tinham sido estendidas mais recentemente,
com base no Regulamento. Em todos os casos, eram operadas com um
padrão de serviços que deixava os proprietários orgulhosos.
Entrevistado por Rúbio Gômara, o diretor administrativo Sérgio
Peccini Noel, filho de Joaquim Sebastião Noel, disse que essa foi a forma
encontrada pela Salutaris para fazer frente à concorrência das empresas
de maior porte:
116
Fotos: Acervo Salutaris
Jardineira Ford 1950 da Salutaris: capacidade para 28 passageiros.
Francisco Sebastião
Noel, um dos
Jardineira Ford 1950, com motor Hércules diesel de 6 cilindros. A
fundadores da
carroceria era Grassi e tinha capacidade para 28 passageiros.
Salutaris.
Ônibus com chassi Volvo B-617, ano 1952, encarroçado pela Carbrasa.
Transportava até 36 passageiros.
VIAÇÃO ÁGUIA BRANCA S. A.
IRMÃOS CHIEPPE
1946
o
EM 1 DE JANEIRO DE 1889, quando desembarcou com a família no
porto de Vitória, na então Província do Espírito Santo, o agricultor italiano
Domenico Chieppe tinha apenas um sonho: “Fazer a América”, como se
dizia na época. Embora parecesse expressão vaga, “Fazer a América” tinha
o inequívoco significado de vencer na vida, quem sabe enriquecer ou, pelo
menos, deixar para trás um quadro de dificuldades. Era um objetivo a ser
perseguido em alguma parte do continente americano, fosse nos Estados
Unidos, no Brasil, na Argentina ou em qualquer outro país desta parte do
mundo.
Domenico Chieppe escolheu o Brasil.
Quatro meses antes, em setembro de 1888, Domenico, nascido em
Mazzantica, Comuna de Oppeano, na região do Vêneto, nordeste da Itália,
havia tomado a decisão provavelmente mais difícil de sua vida: emigrar com
a família. Aos 49 anos de idade, empurrado pela terrível crise econômica
que estrangulava o Reino da Itália, ele ia partir para um país estranho e
distante, dar um salto rumo ao desconhecido, com consequências abso-
lutamente imprevisíveis. Tratava-se de romper, de modo praticamente
definitivo, todos os laços que o ligavam à sua terra natal. Uma aventura
quase desesperada a que se lançava com a esposa Elisabetta e os filhos
Giuseppe, Rosa, Gaetano, Battista, Ângela e Maria.
O Brasil mal acabara de ultimar as decisões de governo relacionadas
ao seu arrastado processo de abolição da escravatura. Como grande pro-
dutor e exportador mundial de café, necessitava fazer o mais rapidamente
possível a passagem do estágio do uso da força de trabalho escrava para
119
o estágio da mão de obra assalariada, ou livre. O Espírito Santo foi uma
das províncias que assumiram a dianteira no enfrentamento da questão.
Desde 1874, ali aportavam com regularidade navios trazendo imigrantes
procedentes principalmente do norte da Itália. Os núcleos de colonização
eram formados a partir de terras cobertas de mata virgem que eram divi-
didas em pequenas propriedades chamadas “colônias”. Com 25 hectares
de área, em média, eram vendidas à vista ou a prazo aos recém-chegados.
O embarque dos Chieppe para o Brasil deu-se no início de dezembro
de 1888, e a viagem durou um mês. Ao desembarcar, tiveram de aguardar
que as autoridades definissem para qual núcleo seriam encaminhados.
Enquanto isso, alojados na Hospedaria dos Imigrantes de Pedra d’Água,
cumpriram um obrigatório período de quarentena.
A espera estendeu-se por três meses.
No dia 30 de março, finalmente, a família recebeu o lote número
42 da área denominada Santa Maria do Rio Doce, no Núcleo Colonial
Senador Antonio Prado, no norte da Província, bem no limite da frente
pioneira, à margem do Rio Doce. Dali para a frente não havia mais nada
a não ser a mata. Que, aliás, também cobria toda a superfície do lote que
pagariam em prestações.
Depois de penoso deslocamento para lá, iniciaram a construção da
casa e a derrubada da mata. Em seguida, deram início ao plantio das mudas
de café. Três ou quatro anos depois, quando o café finalmente floresceu
e começou a produzir, fizeram a primeira colheita, secaram os grãos em
terreiro de chão batido e ensacaram o resultado de tanta faina. Fechava-se
o primeiro ciclo da grande aventura.
Seis anos depois, em 1895, a modesta casa rural de Domenico e
Elisabetta Turrini Chieppe, em Santa Maria do Rio Doce, estava em festa.
Casava-se o filho mais velho, Giuseppe, então com 28 anos. A noiva era
a jovem Angela Benedetti, de 19 anos, filha de Andréa e Filomena Bene-
detti, imigrantes como eles e também desbravadores no mesmo núcleo.
A casa de Domenico e Elisabetta em Duas Vendinhas passou a ser
também a do casal Giuseppe e Ângela. Ali nasceu, em 9 de setembro de
1896, o filho de ambos, que recebeu o nome de Carlos Chieppe. Cresceu,
tornou-se um jovem comunicativo, alegre e trabalhador. Tinha 27 anos
quando, no dia 27 de julho de 1923, uniu-se à jovem Rosa Leonídia Dalla
120
Bernardina, de 20 anos, também muito comunicativa e sociável. Seus três
primeiros filhos foram Diva, Dina e Vallécio.
121
o pai de que deviam passar adiante a propriedade de Duas Vendinhas. Ne-
gociaram a propriedade e Carlos usou a parte que lhe cabia como entrada
na compra de um sítio na localidade de São Silvano, junto à Rodovia do
Café (ES-2), do outro lado do rio. Pretendia continuar se dedicando ao
cultivo de café, mas, paralelamente, trabalharia com o transporte, em
lombo de burro, de cereais e de café da região. Algum tempo depois Carlos
já havia conseguido quitar toda a dívida da compra do sítio e da primei-
ra tropa. Comprou uma segunda tropa e, ao mesmo tempo, pensou em
um modo simples de assegurar a preferência no transporte da produção
da região: abriu uma “venda”, pequeno armazém para fornecer produtos
básicos, onde os colonos podiam fazer suas compras durante o ano para
pagar depois da colheita.
O trabalho de tropeiro permitia a Carlos Chieppe percorrer constan-
temente a região, fazendo negócios e amigos. Dessa forma, foi testemunha e
participante do vigoroso processo de desenvolvimento em que os povoados,
vilas e pequenas cidades se multiplicavam em torno de Colatina. Também
acompanhou a expansão rumo ao norte do Estado, especialmente a partir
de 1938, quando as lavouras de café retomaram, com maior força ainda,
o seu lugar na paisagem.
Aproximando-se os anos 1940, Carlos fez contato com grandes com-
pradores, obteve deles a garantia da compra antecipada e foi em busca dos
vendedores. Nessa intermediação, ele se remunerava com o que cobrava
pelo frete. Em compensação, garantia a freguesia e fazia crescer a confiança
que os produtores tinham nele. Adquiriu então uma máquina de beneficiar
café, para agregar maior valor ao produto, aumentando a margem de lucro
na comercialização.
Enquanto isso, observava as transformações que iam se operando
ali mesmo, à sua frente, na Rodovia do Café. O número de caminhões
que passavam carregados de toras de madeira era cada vez maior, e aquilo
tinha um significado: era o transporte rodoviário se afirmando no quadro
de uma nova realidade. Picadas e caminhos estreitos se alargavam para
dar passagem aos veículos sobre rodas, inclusive as primeiras jardineiras.
Quem desembarcava do trem em Colatina já podia transportar-se nelas até
as vilas e povoados mais próximos. Porém, devido à escassez de combustível,
por causa da Segunda Guerra Mundial, as tropas de burros continuaram
122
desempenhando seu importante papel por mais alguns anos. No entanto,
Carlos Chieppe já amadurecera a decisão de, na primeira boa oportuni-
dade — depois que terminasse o conflito — trocar as tropas de burros por
um caminhão para manter-se competitivo no negócio de transporte de
café e cereais.
O propósito foi cumprido em 1946, quando Carlos associou-se a seu
cunhado Ângelo Dalla Bernardina na compra de um pequeno caminhão
Ford 1942, dando início a uma nova fase no negócio de transporte de café
e cereais. Pouco depois, no entanto, eles decidiram trocar o caminhão por
um ônibus. Também era ano 1942 e estava bastante novo.
Muitos anos depois, Vallécio, o filho mais velho, recordaria que,
tendo na época 17 anos, não conseguira entender a atitude do pai. As linhas
de ônibus da região já estavam todas servidas e por ali não havia mercado
suficiente para sustentar uma tentativa de competir com as transportadoras
estabelecidas. Sendo assim, o que eles iriam fazer com um ônibus?
Carlos Chieppe tinha a resposta e, mais uma vez, mostrava capaci-
dade de enxergar longe. A abertura da rodovia BR-116, ligando o Rio de
Janeiro à Bahia, estava praticamente concluída. No meio do caminho, a
cidade mineira de Governador Valadares transformava-se rapidamente em
importante polo comercial e esperava pelo ônibus da família Chieppe,
por Vallécio e por um motorista chamado Antônio Marola. Foram para
lá e deram início à primeira linha de ônibus da família — considerada a
origem do empreendimento que viria a se chamar Viação Águia Branca
—, ligando a cidade a Teófilo Otoni.
Como contou Vallécio, além do trabalho duro, as estradas não aju-
davam. Ele era o cobrador e responsável pela manutenção do veículo.
Concluído o dia de trabalho, encostavam o ônibus à beira de um rio e
o lavavam cuidadosamente. Eventuais problemas com o motor ou a car-
roceria eram solucionados ali mesmo. Depois de seis meses dessa rotina,
Carlos Chieppe e Angelo Dalla Bernardina, de tão satisfeitos, compraram
um segundo veículo. Continuaram rodando e a pequena firma se tornou
conhecida como Auto Viação 13.
Em 1948, a primeira experiência da família no transporte de pas-
sageiros teve de ser interrompida. Haviam pensado em tudo, menos na
providência burocrática de pedir o registro que lhes daria a primazia da
123
linha Valadares–Teófilo Otoni. Uma outra empresa aproveitou-se do co-
chilo e obteve a permissão junto ao Departamento Nacional de Estradas
de Rodagem. Depois entrou na linha com uma frota maior e preços mais
baixos, e eis Vallécio Chieppe e Marola voltando para Colatina com os
dois ônibus, já que não tinham como competir com a concorrente. Ainda
tentaram implementar um serviço de transporte de passageiros entre o
bairro de São Silvano e o centro de Colatina, mas, sem retorno financei-
ro compensador, desistiram. Os dois ônibus foram negociados e eles, de
novo, compraram um caminhão. Dirigido por Vallécio, o veículo passou
a transportar carga entre Colatina e Vitória.
Luiz Wagner, o décimo e último filho de Carlos e Rosa Leonídia,
nasceu em 1950. Além dele e dos pais, Diva, Dina, Vallécio, Amélia,
Wander, Cenira, Aylmer, Nilce e Nilton Carlos compunham a família.
Naquele mesmo ano, Carlos Chieppe voltou a investir no negócio de
transporte de passageiros, associando-se a seu irmão João Chieppe em um
velho ônibus Chevrolet que fazia a linha entre Vila Pancas e Colatina. João
Chieppe e Vallécio passaram a revezar-se como motorista e cobrador. Mais
tarde, eles construíram uma garagem rudimentar ao lado da residência da
família; guardavam ali o ônibus e as ferramentas utilizadas na manutenção.
Em breve, a empresa João Chieppe & Sobrinho iniciou uma nova linha,
entre Colatina e Alto Rio Novo. Wander já tinha 22 anos e tirara carteira
de motorista. Aylmer trabalhava como cobrador.
Em 1955, Carlos Chieppe e os filhos compraram a parte de João
Chieppe e criaram nova empresa, denominada Vallécio Chieppe & Ir-
mãos. Os 100 quilômetros que separavam Colatina de Alto Rio Novo eram
percorridos em cerca de quatro horas e meia. Vallécio, Wander, e mais
tarde Aylmer e seu amigo Cláudio Moura, revezavam-se na direção dos
ônibus e no trabalho de cobrador. Saíam de Colatina num dia e voltavam
no outro. Na bagagem levavam pá, picareta, enxada e as indispensáveis
correntes lameiras, de uso frequente, em especial nos trechos de serra.
Terminada a viagem do dia, motorista e cobrador arregaçavam as mangas,
pois o ônibus precisava estar impecável para a próxima jornada. Naquela
altura, já eram três carros. Não foram poucas as noites que passaram em
claro em oficinas, acompanhando e auxiliando o trabalho dos mecânicos,
para garantir a pontualidade da viagem do dia seguinte.
124
VALLÉCIO CASOU-SE aos 28 anos, em 1956. Tal como seu pai muitos
anos antes, achou que agora devia tentar construir um negócio próprio.
Fez um acordo com o pai e os irmãos para antecipação de seu direito de
herança e recebeu dois terrenos em São Silvano, além do valor correspon-
dente a um terço da empresa de transporte de passageiros.
Com a saída do irmão mais velho, a empresa passou a ser administrada
por Wander e Aylmer, que assumiram suas cotas de direito, constituindo a
firma Irmãos Chieppe Ltda. Quanto a Vallécio, menos de 30 dias depois
de ter saído viu surgir a oportunidade: um homem chamado Ceny Judice
Achiamé, comprador de café e proprietário da Empresa de Transportes
Águia Branca, criada em 1949, procurou-o e lhe ofereceu o negócio, cujo
nome fora inspirado naquele povoado fundado em 1928 por colonos po-
loneses e alemães.
Vallécio estudou a proposta e viu que lhe faltava capital para enfren-
tar sozinho a empreitada. Ceny Judice indicou-lhe João Godoy Sobrinho,
prático de farmácia estabelecido em Vila Verde, no município de Colatina,
também proprietário de um ônibus que circulava na região, como sendo
a pessoa à qual Vallécio podia se associar. Fechado o negócio no dia 7 de
janeiro de 1957, em 4 de fevereiro foi constituída a firma Chieppe & Go-
doy. Cada sócio ficou com 50% das cotas que perfaziam o total do capital.
A empresa cobria o trajeto Colatina–Mantena–Barra de São Francisco.
Alguns dos 12 ônibus, de tão estragados, não tinham condições de rodar,
mas Vallécio não levou muito tempo para fazer os primeiros resultados
aparecerem. Com a frota bem cuidada, a receita cresceu e em pouco menos
de um ano eram comprados dois ônibus zero quilômetro.
A nacionalização da produção de veículos e a ampliação do setor de
autopeças, seguidas do aperfeiçoamento constante da engenharia automotiva,
facilitariam, a médio prazo, a operação e manutenção dos veículos. Estradas
começavam a ser rasgadas, ampliadas e melhoradas. Intensificavam-se os
movimentos de migração interna.
A separação dos irmãos Chieppe durou pouco. Em 1958, Vallécio
viu a oportunidade de comprar uma outra pequena empresa, sediada em
125
Barra de São Francisco, mas queria poder contar com gente de confiança
para tocar a nova frente. Propôs que os irmãos Wander e Aylmer se associas-
sem a ele e a João Godoy e fossem para Barra de São Francisco gerenciar
o negócio. Eles aceitaram e, em 11 de julho de 1958, foi criada a Viação
Brasil Ltda. O capital era dividido igualitariamente entre os quatro sócios.
Aylmer seguiu imediatamente para Barra de São Francisco e assumiu
a empresa. Wander, casado há apenas um ano, também se mudou para
lá. O amigo Cláudio Moura os acompanhou pouco depois. Para Wander
e Aylmer, era o início de uma nova fase: deixavam de ser motoristas para
se dedicar a tarefas administrativas e de gerenciamento da nova empresa.
Vez ou outra, aos domingos, quando aumentava o movimento, assumiam
o volante. Em 1959, a Viação Brasil estendeu seu raio de atuação para
Mantena (MG) e Ecoporanga (ES).
Em apenas dois anos, a frota da Viação Brasil chegou a 18 ônibus,
enquanto na Águia Branca os negócios também iam sendo ampliados. No
fim de 1959, a empresa adquiriu os direitos de exploração da linha entre
Mantena e Governador Valadares, Minas Gerais. Vallécio voltava, 11 anos
depois, a atuar na cidade onde tudo havia começado.
Por várias vezes o sócio João Godoy Sobrinho havia falado do in-
teresse em vender sua parte na empresa. Em junho de 1960, Wander e
Aylmer, estimulados por Vallécio, compraram a parte dele. Em seguida,
também por sugestão de Vallécio, a Empresa de Transportes Águia Branca
e a Viação Brasil juntaram recursos e esforços. Vallécio ficou com 50% do
capital e o restante foi dividido em partes iguais entre Wander e Aylmer.
Começava a se estruturar o Grupo Águia Branca. Mas restava ainda uma
providência de ordem jurídica e, em 17 de fevereiro de 1961, a razão social
da firma Chieppe & Godoy foi alterada para Viação Águia Branca Ltda.
A Viação Brasil foi encerrada.
126
Valadares, onde se casaria e moraria por 12 anos. Wander estava em Barra
de São Francisco, Vallécio em Colatina.
Em Governador Valadares, Aylmer comprou um terreno para insta-
lação da garagem e da equipe de manutenção. Em Colatina, na Rua Ale-
o
xandre Calmon n 146, ficava a sede e a principal garagem da companhia,
que já contava com um pequeno almoxarifado. Cerca de 15 funcionários
se dedicavam à manutenção da frota. Empregados e patrões começavam
o dia às 7 horas da manhã e raramente terminavam suas tarefas antes da
meia-noite. Às vezes, na época das chuvas, os ônibus levavam mais de
oito horas para cobrir um percurso de 140 quilômetros. Quando chovia
dez, quinze dias seguidos, não era possível circular e os carros parados
eram prejuízo na certa. Assim que estiava, seis ou mais funcionários saíam
imediatamente para as estradas em uma caminhonete com pás, enxadas,
picaretas e um carrinho de mão. Iam tapar buracos, limpar barreiras, de-
sobstruir passagens. Às vezes, trabalhavam dois ou três dias seguidos para
conseguir liberar uma estrada.
O governo de Juscelino Kubitschek estava chegando ao fim. Também
iam saindo de cena os chamados “anos dourados” e a euforia que mobili-
zara o País até o início dos anos 1960. Dali para a frente se instalaria um
período difícil para o Brasil, para o estado do Espírito Santo e também para
a empresa. Simultaneamente às dificuldades econômicas, já nos primeiros
anos da década começaram a se intensificar as agitações políticas e po-
pulares que culminariam com a instituição do governo militar, em 1964.
Por outro lado, o asfaltamento da rodovia BR-116 garantiu à cidade
mineira de Governador Valadares o importante papel de entroncamento
rodoviário, favorecendo o tráfego entre o Sudeste e o Nordeste. Também
foram asfaltadas as estradas que ligavam Vitória ao Rio de Janeiro e Belo
Horizonte.
Em 1962, a Viação Águia Branca chegou a Belo Horizonte, após
associar-se à empresa Rápido Rio Doce, responsável pela operação, entre
outras, da linha Mantena–Belo Horizonte. A capital mineira estava em
franco processo de industrialização e urbanização, e aquela era a primeira
linha de grande percurso da companhia. Mais tarde, em 1965, a Rápido
Rio Doce abriria mão da operação e a Águia Branca assumiria integral-
mente a linha.
127
Em maio de 1970, foi adquirida em Minas Gerais a Empresa de
Transportes Mariano Pires Pontes, que operava com o nome fantasia de
Sayonara. Com isso, a Águia Branca ampliou seu raio de atuação para o
Vale do Aço, importante área da indústria siderúrgica mineira, também
situada no Vale do Rio Doce. Aylmer deixou a direção de Governador
Valadares e mudou-se com a família para Coronel Fabriciano, e depois
para Ipatinga, no Vale do Aço. A companhia passou a atuar também no
sistema urbano das cidades de Ipatinga e Timóteo, fazendo ainda as liga-
ções intermunicipais entre Ipatinga, Coronel Fabriciano e Timóteo. Foi
sua primeira experiência no setor de transporte urbano de passageiros.
Em 1982, Aylmer deixou Ipatinga para atender às novas exigências
impostas pelo crescimento do Grupo. Entre Governador Valadares e Coro-
nel Fabriciano, ele havia ficado por 24 anos em Minas Gerais. O saldo era
extremamente positivo: a empresa estava totalmente integrada às comuni-
dades a que servia e era reconhecida pela qualidade dos serviços prestados.
128
instalações de um posto de gasolina, onde eram abastecidos os ônibus. A
sede da empresa e um de seus pátios rodoviários continuaram em Colatina.
No princípio de 1971, foram comprados 27 novos ônibus, utilizados
nas linhas mais concorridas que saíam de Vitória em direção ao interior.
Também foi adquirido um terreno de 75.000 metros quadrados para cons-
trução da nova garagem e de outras instalações. Nilton Carlos, arquiteto, foi
chamado para coordenar esse trabalho. Também o irmão mais novo, Luiz
Wagner, assumiu novas responsabilidades, desenvolvendo diversos tipos de
serviços administrativos. Pouco depois, foi enviado a Colatina, onde pôde
aprofundar seus conhecimentos na área operacional e administrativa. Em
setembro de 1972, o Grupo Águia Branca adquiriu uma empresa urbana
em Vitória — a Viação Penedo — e Wagner passou a dirigi-la.
Em 1973, seria inaugurado o Parque Rodoviário de Cariacica, com
área para manobras, oficina de manutenção, lavadores, almoxarifado, bombas
de abastecimento, dormitórios para motoristas, refeitório para funcionários,
escritórios e algumas residências para os funcionários da garagem. Eram
12.000m² de área construída. O núcleo operacional foi equipado com
todos os recursos modernos disponíveis.
Também em 1973, a partir da aquisição de uma empresa regional,
a Expresso São Jorge, o Grupo Águia Branca chegou a Itabuna, Bahia. Na
época, o trecho nordestino da BR-101 já estava asfaltado. Cláudio Moura e
Adi Silva Gama, funcionário da Águia Branca em Colatina, transferiram-se
para Itabuna e ali instalaram a sede da nova frente. As primeiras linhas da
Expresso São Jorge cruzavam a região cacaueira e chegavam a Salvador.
Progressivamente, foram criadas novas linhas regionais ligando Itabuna,
Itamaraju e Porto Seguro a Vitória. Alguns meses depois de estabelecida
em Itabuna, a Águia Branca adquiriu a empresa Santa Efigênia, ampliando
seu raio de ação no sul da Bahia. A substituição do nome da Expresso São
Jorge pelo da Águia Branca foi feita lenta e gradualmente.
A principal concorrente da Águia Branca na Bahia era a Companhia
Viação Sulbaiano — Sulba. Constituída por capital misto, tinha como
maior acionista o estado da Bahia. Havia sido criada em 1932 e era parte
da tradição e da história regional. Na época, era uma das maiores empresas
de transporte da Bahia. Seus serviços, entretanto, não conseguiam manter
um padrão constante.
129
Já o padrão dos serviços prestados pela Águia Branca era elevado. A
Sulba começou a ver sua receita diminuir. Enquanto isso a Águia Branca
crescia: em 1978, comprou a empresa Nossa Senhora de Fátima; depois,
associou-se a duas empresas regionais — a Camurujipe e a Viazul — na
compra de uma parte das linhas da Sulba. A parceria deu origem à Rota
Transportes Rodoviários e viria a ser de grande importância para definir a
posição do Grupo na Bahia. Naquele ano, os ônibus da empresa já tocavam
os pontos estratégicos do Estado: o litoral sul, a zona cacaueira, Salvador
e o Recôncavo Baiano. Foram adquiridos 50 ônibus novos para reforçar
as linhas que levavam à capital baiana.
De 1979 a 1982, devido aos reflexos da segunda crise mundial do
petróleo, a Águia Branca reduziu o ritmo da expansão. O crescimento
foi retomado com a compra da Viação Amparo, da Viação Cristo Rei e
de parte da Viação Santana–São Paulo. O desenvolvimento dos negócios
tornou necessária a implantação de uma Diretoria Regional em Salvador.
Enquanto tudo isso acontecia, a frota da Sulba foi envelhecendo. Em
1989, a empresa mais uma vez se encontrava em situação extremamente
difícil. Teve início então um complicado processo de negociações que res-
sultou na venda das ações da tradicional empresa baiana ao Grupo Águia
Branca e a várias companhias locais. Com essa operação, foi concluída a
fase expansionista do grupo na Bahia. Hoje, a frota baiana representa 50%
da receita da unidade de passageiros do Grupo Águia Branca.
130
Um dos primeiros passos para a adequação aos novos tempos e para
atender à crescente importância de Vitória nos negócios da Águia Branca
foi a transferência, em 1974, dos funcionários responsáveis pelo setor admi-
nistrativo, da sede, em Colatina, para a capital. Em 1975, Wander também
se transferiu para Vitória, juntando-se a Vallécio e a Nilton Carlos, a fim
de coordenar a área operacional da empresa.
A partir daquele ano, a contratação de sucessivas consultorias pro-
fissionais iria contribuir para mudanças estruturais que se consolidariam
nos anos 1990. Em 1979, veio a nova crise econômica, decorrente do
aumento dos preços do petróleo, inaugurando mais um período recessivo
e de escalada do processo inflacionário, que se manifestou ainda mais
fortemente entre 1981 e 1984.
A transferência de Aylmer para Vitória ocorreu em 1982. Vinha re-
forçar a presença dos acionistas na sede de Cariacica. Mais algum tempo
e Cláudio Moura passava a Wagner a diretoria da Bahia e juntava-se aos
demais sócios em Vitória. Ao quarteto que constituíra e fizera crescer o
patrimônio inicial da empresa — Vallécio, Wander, Aylmer e Wagner —
acrescentara-se um novo sócio, em 1978: Nilton Carlos Chieppe. Além
dele, alguns representantes da nova geração Chieppe já estavam contri-
buindo com seu trabalho para o bom desempenho da empresa, e esse era
mais um dado a justificar a necessidade de um modelo organizacional que
garantisse o processo sucessório.
A partir de 1982, intensificaram-se as ações modernizadoras que
dariam suporte à profissionalização do Grupo Águia Branca, facilitada
pela centralização administrativa na matriz de Cariacica. Foram feitos
investimentos em obras e melhoria da infraestrutura de apoio administra-
tivo e operacional, ampliados e diversificados os negócios e prospectados
novos caminhos para a consolidação do patrimônio. Ao mesmo tempo, foi
iniciado o processo de mudanças na gestão da empresa.
Em 1986, começou a construção do novo prédio da administração,
em Cariacica (ES), concluída seis anos depois. O superdimensionamento
da área construída tornou-se um testemunho do otimismo do Grupo, uma
forma de aposta na retomada do ritmo de crescimento da economia nacional.
Um dos marcos mais importantes na vida da Águia Branca foi atin-
gido em 1987, com a criação da holding Águia Branca Participações Ltda.,
131
com o objetivo de racionalizar a administração dos negócios. Ela passou
a ser depositária das ações de todas as empresas, e cada sócio constituiu
uma pequena holding familiar com direito a representação no Conselho
da holding. Com essa iniciativa, estava resolvida a questão acionária, de
grande importância para garantir o processo de sucessão.
Entre 1988 e 1989, avançou-se um pouco mais em direção à pro-
fissionalização, sendo criado o organograma administrativo da holding.
Todo o corpo técnico responsável pela direção das empresas do Grupo
passou a se reportar diretamente a Aylmer. Foram criadas novas diretorias
e contratados executivos de carreira.
132
Ônibus comprado pelos Chieppe em 1946.
Fotos: Acervo Viação Águia Branca
No fim da década
de 1940, os
Chieppe utilizavam
este ônibus
Grassi montado
sobre o chassi de
um caminhão
International.
135
tirar o motor a diesel e instalar um motor a gasolina. Queria, conforme
explicou, ter “um carrinho limpo e arrumadinho”. Apesar de muito jovem,
já havia trabalhado, sucessivamente, como cobrador de ônibus, aprendiz
de eletricista e aprendiz de mecânico.
Jelson nasceu em 9 de novembro de 1927, em Pico de Itaboraí,
município de Itaboraí, Rio de Janeiro. Com apenas oito 8 anos de idade,
ajudava seu pai em um armazém de propriedade dele. Aos nove, o negócio
do pai era uma quitanda, e Jelson trabalhava lá. Aos 12, o menino ficou
órfão de mãe e foi morar com um dos irmãos, que tentava ganhar a vida
transportando passageiros. O pai casou-se novamente e ainda teve outros
quatro filhos, além dos 13 do primeiro casamento. Jelson continuou tra-
balhando, já agora como cobrador, em uma empresa do irmão chamada
Viação Popular, na cidade de Niterói. Acompanhou-o durante quase oito
anos, enquanto ele vendia e comprava outras pequenas empresas de ôni-
bus, até que decidiram se associar na aquisição daquele pequeno ônibus
da Cometa.
Depois que o veículo ficou do jeito que Jelson queria, foi “agrega-
do” à frota da Viação Niterói e começou a rodar. Metódico, econômico
e determinado, o rapaz reuniu em pouco menos de seis meses o dinheiro
necessário para quitar toda a dívida correspondente à carroceria e ao motor.
Tanta eficiência, no entanto, pareceu aborrecer o dono da Niterói: seus
ônibus viviam enguiçando, enquanto o carro agregado praticamente não
quebrava. As diferenças estavam no motorista e no mecânico, que por sinal
eram a mesma pessoa. Jelson dirigia, consertava e fazia a manutenção do
carro, que rodava quase sem parar. Diante, porém, do desagrado da empre-
sa parceira, os dois irmãos desfizeram o acordo e venderam o Chevrolet,
recebendo uma entrada e diversas promissórias.
Jelson não ficou muito tempo sem um veículo. Tendo se mudado para
Macaé, no interior do Estado, usou sua parte da entrada e das promissórias
para comprar outro ônibus, desta vez bastante usado, com capacidade
para 20 passageiros. Com ele, abriu a empresa Viação Líder, foi ao DER
e requereu permissão para operar uma linha entre Macaé e Quissamã, no
interior do estado do Rio de Janeiro. Obteve uma autorização precária
(por 60 dias) e, decorrido esse prazo, a permissão definitiva. Seguiu tra-
balhando, em média, doze horas por dia. Precisava pagar as prestações,
136
o que conseguiu em mais ou menos seis meses. Em seguida, comprou
um segundo veículo, desta vez em ferro-velho. Fez ele mesmo a reforma,
requereu e obteve a autorização para explorar a linha Macaé–Conceição
de Macabu e contratou um motorista.
O lance seguinte decorreu de um pedido do próprio órgão municipal
responsável pelo transporte de passageiros, que lhe confiou a operação de
sua terceira linha, Macaé–Tapera. Depois a linha foi estendida ao alto de
Tapera; era muito movimentada. O “ônibus de Tapera” virou assunto de
comentários em toda Macaé, em sua maioria elogiosos à ousadia e persis-
tência do jovem Jelson. Porém, a sua Viação Líder começou a incomodar
os motoristas de praça e de caminhões que transportavam passageiros na
cidade. Um dia, alguém deitou boa quantidade de sal e areia no tanque
de combustível do ônibus e o motor fundiu. E o episódio valeu a Jelson
um conselho precioso dado pelo seu irmão:
137
minha filha. E isso só aconteceu à 1 hora da madrugada do dia seguinte. Fui
ver a minha primeira filha já com vinte e poucas horas depois de nascida.
138
procurou a Mesbla e, quando lhe perguntaram como pretendia proceder
com as promissórias restantes, correspondentes a mais de 80% do valor de
um veículo que não existia mais, não teve dúvida e respondeu: pagaria nos
vencimentos todas as parcelas. Perguntou apenas se eles concordavam que
seu irmão avalizasse as promissórias como garantia de quitação da dívida.
Quando meu irmão deu o aval, tomei aquilo como ponto de honra
e paguei todos os títulos antes dos vencimentos. A única coisa que eu não
imaginava é que esta seria a maior alavanca do meu sucesso. Nunca mais
tive problemas de crédito para comprar nada. Se a Mesbla não tinha o veí-
culo que eu queria, ou na quantidade desejada, eu me dirigia a qualquer
outra firma, como a Chindler Adler, por exemplo. Aí eles telefonavam para
a Mesbla, informavam que eu estava querendo comprar dois, três, quatro,
cinco ônibus, e o gerente da Mesbla em Niterói, Domício Corrêa, respondia:
“Venda para o Jelson e receba com a gente.” Esse fato aconteceu na minha
vida, não estou contando por ouvir falar.
139
onde os vistosos ônibus da Viação Cometa e do Expresso Brasileiro des-
filavam sua supremacia. Como ainda não existia a ponte Rio–Niterói, a
Viação São Paulo–Niterói tinha de fazer o contorno de quase toda a Baía
de Guanabara para cobrir a linha.
Muita gente pensa que a 1001 foi um cogumelo que brotou do chão.
Não. Quando eu a comprei em 1968, ela já operava transporte no estado
do Rio há quase 30 anos. No nosso grupo, não era a maior, tinha 55 carros.
140
Mas na hora em que houve a fusão, ela deixou de ser uma empresa de 55
carros para ser uma empresa de 200, 300 carros.
141
Não me orgulho de ter feito todos os bons negócios que poderia, mas me
orgulho de ter feito os melhores negócios, no meu entendimento. Na minha
empresa foi a mesma coisa: tive um perde-ganha durante muitos anos, mas
o certo é que o sucesso aconteceu. Eu me considero um homem realizado,
vitorioso, graças a Deus, não guardo ressentimento de ninguém. Não sei se
vou morrer em breve ou vou durar muito. Despedidas, não costumo fazer
de nada. Mesmo porque o transporte coletivo é uma atividade de que vou
morrer gostando. Quero dizer a todos que recebam tudo o que eu disse neste
depoimento como a declaração de uma pessoa que teve cinquenta anos de
experiência, graças a Deus vitoriosa. Uma pessoa que, ao longo de sua tra-
jetória, conseguiu ter bons e maus amigos, mas nenhum inimigo. De forma
que qualquer outro, no meu lugar, após estes cinquenta anos, pode ter a
própria consciência do dever cumprido. Eu me considero um homem feliz.
142
Fotos: Acervo Auto Viação 1001
Na primeira metade da
década de 1960, com a
compra da Viação São
José (50 ônibus), Jelson
Antunes tornou-se grande
frotista do estado
do Rio de Janeiro.
Em 1968, Jelson da Costa
Antunes comprou a Viação
1001 e passou a operar a maior
frota de ônibus do estado do
Rio de Janeiro.
Fotos: Acervo Auto Viação 1001
145
Também se a maré estivesse subindo, era uma temeridade querer
passar. Duas transportadoras gaúchas, a Empresa Jaeger e a Empresa Glo-
bo, que faziam a ligação para Porto Alegre pela praia, sabiam bem como
aconteciam aqueles “naufrágios”. E não só elas. Foi numa dessas situações
que, por azar ou imprudência do motorista, um ônibus da Catarinense
afundou lentamente na areia para só reaparecer anos depois. E o dono da
Empresa Sulamericana de Transportes em Ônibus, Octaviano da Ros, em
depoimento a Rúbio Gômara, reproduzido neste livro, revelou ter perdido
um veículo nessas circunstâncias:
Atolou, foi coberto pelas ondas e afundou aos poucos. Deve estar lá
até hoje, não sei onde.
146
Também não havia estrada para Criciúma. Viajávamos via Gravataí,
Braços do Norte, Urussanga, Criciúma e Araranguá. Íamos pela praia, na
batida da onda. Contando, ninguém acredita. Como era possível manter
uma linha com 160 quilômetros de praia em vez de estrada?
147
Quando eles compraram, a Santo Anjo havia estagnado e tinha só duas
caminhonetes para 11 passageiros cada, além de dois ônibus já bem velhos.
Uma das primeiras preocupações dos novos donos foi aumentar a frota,
adquirindo ônibus em melhor estado, embora usados.Em seu escritório
de representação comercial, Zelindro e Arnor vendiam passagens aéreas
e rodoviárias de outras empresas, entre elas a Auto Viação Catarinense.
Arnor Damiani lembrou que logo tiveram oportunidade para fazer um
segundo bom negócio:
148
A Chevrolet Comercial
foi o carro preferido por
Herbert Falk (na foto,
ao lado do filho e de um
motorista) para enfrentar
as estradas ruins.
Fotos: Acervo Santo Anjo
A Chevrolet
Comercial era
chamada de
caminhonete.
Muitos passageiros
gostavam de ser
fotografados
junto aos carros...
151
produzindo telhas e tijolos. Em 1942, aos 28 anos, casou-se com a jovem
Norma Helga Teixeira, indo a seguir trabalhar num moinho de milho de
propriedade de seu sogro.
A montagem de um armazém foi quase consequência natural da
atividade no moinho, mas passou o negócio adiante três anos depois. Era o
tempo da guerra e José Moacyr acreditou que teria mais sucesso se abrisse
um novo armazém em Horizontina, ali perto. Só não levou a ideia adiante
porque alguém ou alguma coisa chamou sua atenção para aqueles veícu-
los barulhentos e sacolejantes conhecidos como jardineiras. Lembrou-se
dos seus 12 anos de idade, quando, ainda na roça, aprendera a dirigir
carros e caminhões e ajudara a manobrar veículos que embarcavam ou
desembarcavam da balsa que fazia a travessia do Rio Taquari. Então, José
Moacyr literalmente botou o carro adiante dos bois. Isto é: foi à cidade de
Palmeiras e requereu a abertura de uma linha dali para a localidade de
Tenente Portella. Só depois que o requerimento foi concedido — aliás, sem
grandes formalidades —, o requerente saiu em busca de uma jardineira
para comprar.
Parecia fácil, mas não era, e ele foi obrigado a desistir da linha.
Ainda em 1944, o aspirante a empresário de ônibus teve notícia de
que em Vila Joia, no distrito de Tupanciretã, estavam à venda uma jardinei-
ra e uma linha municipal. Foi até lá, fechou negócio e passou a ser dono
da Empresa Joia e de um veículo Ford 1940, com carroceria de madeira,
teto e sanefas de lona, bancos inteiriços, entradas laterais para cada fileira
de assentos e capacidade para 25 passageiros. Dirigir durante quase três
anos, entre Vila Joia e Tupanciretã, na região das Missões, esse veículo,
que apresentava frequentes problemas mecânicos, foi a iniciação que deu a
José Moacyr Teixeira a certeza sobre o que ele queria fazer. Com o mesmo
veículo, fazia também a linha entre Vila Joia e Santo Ângelo. Sua esposa
cuidava da administração e da organização do negócio.
A jardineira foi vendida em 1947, porque, já com outro negócio em
perspectiva, o pequeno empresário necessitava de um ônibus mais ade-
quado: havia requerido a linha de Santa Maria a Santo Ângelo.
No dia 16 de setembro de 1993, José Moacyr Teixeira foi entrevis-
tado por Rúbio de Barros Gômara e contou como foram os sucessos do
começo dessa linha:
152
A data-limite para a linha começar a ser operada era 3 de novembro,
a partir de Santa Maria. No dia 1 , fui a Santo Ângelo buscar o ônibus,
o
mas uma chuva muito forte me impediu de levá-lo para Santa Maria. No
dia 2, Dia de Finados, fui à igreja de Santo Ângelo e mandei rezar uma
missa. Dali mesmo saímos para Santa Maria, já levando passageiros. Quer
dizer, foi uma viagem meio clandestina, porque o início oficial da operação
só ocorreu no dia seguinte, em Santa Maria.
153
que as duas cidades contavam com a certeza da ligação direta por ferrovia
e as estradas eram praticamente intransitáveis. José Moacyr Teixeira, no
entanto, entendeu que havia espaço para a proeza.
A primeira viagem durou doze horas, e as seguintes não foram dife-
rentes, pois havia toda sorte de obstáculos a vencer, conforme o próprio
José Moacyr Teixeira recordou no depoimento a Rúbio Gômara:
Para fazer a linha, saíamos por dentro das colônias, usávamos as es-
tradas das colônias até chegar a Cerro Chato. Ali se transpunha por balsa
o Rio Jacuí para a margem esquerda e seguia-se até Cachoeira. Tomávamos
café e íamos para Rio Pardo, onde o Jacuí era atravessado de novo para a
margem direita. E essa não era a última travessia por balsa, pois quando
se chegava a Guaíba embarcávamos naquelas barcas grandes, que levavam
45 minutos para atingir a outra margem.
154
No verão, quando o tempo estava bom e quente, todo mundo gostava
da travessia pela barca, era uma beleza. Mas quando havia cerração, a
barca se perdia no Guaíba e ficávamos uma, duas horas ali, enquanto a
barca procurava identificar algum lugar para tomar o rumo. Isso aconteceu
muitas vezes.
155
pido. A seriedade empresarial do fundador e a solidez do negócio faziam
aumentar a confiança do DAER na Planalto e abriam caminho para que
seus pleitos fossem atendidos. Em 1960, ela obteve permissão para iniciar a
linha Alegrete–São Leopoldo–Porto Alegre. Foi sua primeira linha longa e
exigia duas travessias por balsa, uma em Ibicuí e outra em Manoel Viana.
No ano seguinte, começou a operar também a linha para São Borja.
Nessa altura, a empresa já começara a usar exclusivamente ônibus
da marca Mercedes-Benz, encarroçados ou monoblocos. Mesmo em seus
primeiros anos, a Planalto sempre preferiu usar poucas marcas de carros.
Nem sempre as pessoas acreditam quando os mais antigos afirmam
que muitas empresas pioneiras chegaram a construir pontes ou consertar
estradas para poder levar adiante sua tarefa de transportar gente. Pois foi
o que a Planalto fez em 1961 para poder operar a linha Porto Alegre–São
Gabriel. Originalmente, o percurso era coberto pela empresa Rainha da
Fronteira; e a estrada era muito ruim. Principalmente na chegada a São
Gabriel, havia três subidas sucessivas em que, se chovia, os ônibus passavam
horas tentando inutilmente vencer os atoleiros. Só puxados saíam do lugar.
156
também tivera a sua história. A Planalto costumava transportar encomen-
das da Menegucci para a sede da empresa em Porto Alegre, sem cobrar
um centavo. Em retribuição, quando um ônibus atolava, a empreiteira
mandava um caminhão para resolver o problema. Na época, nenhuma das
estradas utilizadas para cobrir aquelas linhas era pavimentada. O asfalto
só chegou em 1962, com a BR-290. Em 1965, a Planalto passou a fazer
linha para Uruguaiana.
A primeira sede própria foi comprada em 1965, reformada a seguir
e ocupada em 1966. Futuramente, os diversos setores seriam centralizados
em Santa Maria, a 292 quilômetros de Porto Alegre.
A compra da Rainha da Fronteira, em 1970, tinha um objetivo es-
tratégico: chegar à cidade de Rio Grande. Era uma aposta de José Moacyr
Teixeira no desenvolvimento do porto e uma previsão que se confirmaria
depois de alguns anos. Mas também nessa linha foi necessário suprir a
ausência do poder público.
A estrada? Vou dizer uma coisa, também tivemos que fazer muito
conserto. Ali perto de Santaninha de Boa Vista tinha um local que foi
afundando, a água brotava da estrada. Nós conhecíamos o prefeito de lá e
ajudamos a encher aquilo de pedra e a cavar valas nas laterais para escoar
a água — disse o empresário.
157
gelo. Em seguida foram compradas as empresas Santa Maria e Júlio de
Castilhos e, depois, em 1980, o Expresso Barim, que fazia Santa Maria–
Livramento, Santa Maria–Rosário, Santa Maria–São Gabriel, Santa Ma-
ria–Guaraí e Santa Maria–Montevidéu. Estabeleceram-se assim as linhas
internacionais Santa Maria–Montevidéu, Panambi–Montevidéu e Porto
Alegre–Montevidéu.
Depois, foi requerida a Uruguaiana–Paissandu; para realizar a viagem,
era preciso costear o Rio Uruguai. Posteriormente, seriam acrescentadas
às operações da Planalto algumas linhas internacionais de temporada de
verão, como Camboriú–Córdoba, Camboriú–Rosário e Camboriú–Santa
Fé. Seguiram-se outras aquisições e incorporações, entre elas as da Expresso
ABC, Expresso Albatroz e Expresso Princesa.
José Moacyr Teixeira e dona Norma Helga Teixeira tiveram dez
filhos. Em um ou outro momento, todos eles trabalharam na empresa.
Em 1993, ao ser entrevistado por Rúbio Gômara, fazia quatro anos
que José Moacyr Teixeira tinha transferido para seus filhos o comando da
empresa. Ao se afastar, estava com 75 anos de idade. Mas não saiu para se
aposentar. Além de manter as funções de conselheiro na Planalto, passou
a administrar a empresa agropecuária Cabanha JMT, em São Gabriel,
Rio Grande do Sul. Transformou-a em estabelecimento-modelo dedica-
do ao desenvolvimento da linhagem de gado Brangus. Seus filhos deram
sequência às atividades de transporte rodoviário de passageiros e ao plano
de diversificação iniciado nos anos 1980. Sob a administração da holding
JMT Administração e Participações Ltda., o Grupo JMT adquiriu estações
rodoviárias nas cidades de Alegrete, Uruguaiana, São Borja e Rio Grande;
fortaleceu o setor de cargas e encomendas com a Planalto Encomendas;
ampliou para três unidades a Veísa (rede de concessionárias Mercedes-
-Benz) e criou a NHT Linhas Aéreas, de aviação regional.
158
Fotos: Acervo Planalto
Os carros utilizados pela Planalto em suas primeiras linhas,
como este, de 1948, ...
161
totalmente de madeira. Vidro, só no improvisado para-brisa. Nas janelas,
apenas sanefas de lona.
Dois anos depois, em 1950, a General Motors lançou o seu chassi
para ônibus e decretou — pelo menos formalmente — o fim das jardineiras.
Ao fornecer o produto à rede de concessionárias, a montadora instruía seus
revendedores a não usarem o termo “jardineira” quando se referissem a ele.
Deveria ser chamado de “ônibus”, tal como se fazia nos Estados Unidos,
mesmo sabendo-se que logo iriam receber aquela pequena carroceria que
todo mundo teimava em continuar chamando de jardineira.
A relação com o tio vinha de longe. Estava com 15 anos quando
ingressou na empresa na condição de aprendiz, em 1939. Bastaram dois
anos para que o tio notasse suas qualidades de comerciante e lhe oferecesse
sociedade, que duraria até 1956, quando comprou uma revenda Chevro-
let só para ele, na cidade próxima de Patrocínio. Dimas mudou-se para
lá e tornou-se rapidamente um grande vendedor de veículos da GM. Na
relação dos seus clientes de ônibus estavam, por exemplo, Odilon Santos
(Araguarina), Abílio Gontijo, Derci Gonçalves (Pará de Minas), José Pe-
reira (futura Pássaro Verde) e muitos outros. Por três anos consecutivos,
sua concessionária foi a maior vendedora da marca em Minas Gerais. Em
um desses anos, foi também a maior do Brasil.
No testemunho de Dimas da Silva, o ônibus GM foi “um produto
de muito boa aceitação”, que abasteceu satisfatoriamente o mercado bra-
sileiro entre 1950 e 1961, quando, cedendo à concorrência dos veículos
a diesel da Mercedes-Benz, teve sua produção encerrada. A diferença era
tão grande que Dimas, mesmo sendo revendedor Chevrolet, mandou mon-
tar uma carroceria GM sobre um chassi de ônibus Mercedes-Benz para
experimentar. Segundo disse, obteve um resultado “espetacular” na parte
de consumo de combustível. “Adaptei para meu uso e não para vender”,
explicou. O veículo híbrido foi usado pela Expresso de Luxo Silva na linha
de Carmo do Paranaíba a Patos de Minas. Ainda estava lá quando Dimas
da Silva passou a empresa adiante, no ano seguinte.
Mas é preciso voltar no tempo para saber que, em 1958, já em Pa-
trocínio, Dimas da Silva fundou o Expresso União, empresa que continua
atuando nos dias de hoje, agora nas mãos do empresário Nenê Constantino.
Tanto ao criar o Expresso de Luxo Silva como ao fundar o Expresso União,
162
Dimas chamou alguns de seus irmãos para o ajudarem a tocar o negócio.
Com isso, começou a desenvolver o estilo de atuação empresarial que o
acompanharia por toda sua vida. Nos 50 anos seguintes, foi sempre um
grande comprador e vendedor de empresas de ônibus. Principalmente,
soube montar e implementar muitas empresas, sempre arrebanhando inú-
meros sócios — ou parceiros, na sua definição preferida. Entrevistado para
este livro, garantiu que, sozinho, não era dono de uma única empresa e
declarou sua preferência por incluir sistematicamente um ou mais sócios
na montagem de cada negócio, ou mesmo na compra de um já montado:
163
Prudente (SP), uma (Empresa Andorinha). Em Tatuí (SP), mais uma, urba-
na. Em Umuarama (PR), mais outra, também urbana, assim como em São
João del Rei (MG). Acrescentem-se à lista mais umas tantas empresas de
operação exclusivamente urbana. Como único fundador, ele abriu quatro
companhias: Expresso de Luxo Silva, Expresso União, Rápido Transilva e
Viação Presidente, para as quais logo cuidou de encontrar alguns parceiros.
Como é sabido no setor de transporte rodoviário, cada um dos seg-
mentos — urbano, intermunicipal, interestadual-internacional — deve ser
operado à sua própria maneira. Participar de tantas empresas com diferentes
formas de atuação nunca foi problema para Dimas José da Silva. Na sua
maneira de ver, a diversificação sempre foi uma necessidade, devido às
variações de rentabilidade de cada um dos segmentos. Como no Brasil
as tarifas são fixadas pelos poderes municipal, estadual e federal, as polí-
ticas tarifárias costumam mudar de governo para governo. Dimas sempre
considerou que atuar nos três níveis é uma forma de buscar o equilíbrio
dos negócios.
Em seu depoimento, também deu algumas indicações de como
conseguiu manter sempre uma boa relação com tantos e tão diferentes
parceiros:
É preciso ter uma certa tolerância, uma certa habilidade, uma cer-
ta diplomacia, senão você acaba dando trombadas a toda hora. Não vou
dizer que não tive trombadas. Tive alguns desentendimentos, mas sempre
achei que é preciso ter bom-senso para lidar com as pessoas e para resolver
os problemas. Não se pode deixar que um eventual atrito possa prejudicar
o negócio. Por que acabar com um negócio por conta de uma desavença?
164
se unir”. Procurou a concorrente e propôs que criassem em parceria uma
terceira empresa, que já nasceria com 150 ônibus da Andorinha e 250 da
outra, sendo a participação societária de 50% para cada uma. No caso, os
100 ônibus a mais exigidos da concorrente e a seguir divididos por dois
constituiriam a indenização pelas eventuais perdas da Andorinha. A pro-
posta foi aceita e a terceira empresa vai muito bem, obrigado.
Dialogar, combinar tudo previamente, é a forma de agir de Dimas
José da Silva. Com frequência, ele costuma lembrar aos seus interlocutores
que existem terceiros interessados. Uma de suas frases prediletas:
O que é bom, é bom para todos. O que é bom para um só não funciona.
No nosso negócio, as coisas têm que ser boas para nós, sócios, e boas também
para os nossos usuários, aqueles aos quais nós servimos.
Vou lhe contar o segredo desta negociação: ficará com esta empresa
quem me deixar dentro do negócio. Quem quiser me tirar não vai receber.
165
projetou no tempo e resultou no contínuo desenvolvimento da Andorinha,
ano após ano. Como disse Dimas José da Silva:
Todo negócio é bom, depende de quem toca e como toca. O meu lema
é tocar bem, o melhor possível. E obter resultados sem dar prejuízo aos outros
e preservando os seus direitos.
166
Fotos: acervo Dimas da Silva
Dimas da Silva (de terno escuro) em frente à sua revenda Chevrolet em Patrocínio.
A Patroauto despertou
a vocação de Dimas
José da Silva para o
transporte rodoviário
de passageiros.
O sucesso da linha
para Belo Horizonte
consolidou o interesse
do empresário (de
óculos escuros) pela
atividade. Ele nunca
mais se afastou dela.
Fotos: Acervo ABRATI
Ônibus da Viação Presidente, de Belo Horizonte, uma das muitas empresas que
Dimas da Silva fundou ou das quais se tornou acionista.
169
feito de Tupã. Cumpriu o primeiro mandato e os amigos o convenceram
a tentar um segundo. Não teve problemas para ser reeleito. Muitos anos
depois de haver dado por concluído seu trabalho, ainda havia na cidade
quem se lembrasse de suas virtudes como administrador. Naquela época,
elas lhe haviam permitido fazer da cidade um dos municípios de maior
desenvolvimento do interior de São Paulo. O fato, aliás, foi reconhecido
até pelo governo federal, que lhe conferiu um diploma, recebido das mãos
do próprio presidente da época, Juscelino Kubitschek.
Com Juscelino, José Lemes Soares dividia uma paixão: o rodovia-
rismo. Ou, caso se queira ir além, a finalidade última do rodoviarismo,
que seria o transporte. No caso de José Lemes, transporte de pessoas. Foi
em nome dessa paixão que, algum tempo depois de ter passado pelo mais
alto cargo da política municipal em Tupã, decidiu se transferir para uma
cidade maior, na mesma região, Presidente Prudente.
Ia de caso pensado. Há alguns anos vinha observando a forte voca-
ção de Prudente para crescer no rumo de transformar-se em um dos mais
importantes polos de desenvolvimento de todo o oeste paulista. Também
não deixou de notar que uma das carências da cidade era a falta de melhor
transporte de passageiros. Quem chegava a Presidente Prudente vinha de
trem, pela Estrada de Ferro Sorocabana. Quem viajava para fora, embar-
cava nele.
Enquanto isso, a economia do País potencializava o impulso iniciado
no fim da Segunda Guerra Mundial. O governo do estado de São Paulo
investia na construção de estradas, asfaltava outras e procurava melhorar
as condições de tráfego daquelas que permaneciam de terra. Nas regiões
mais próximas à capital, o ônibus impunha sua presença, dividindo com a
estrada de ferro a preferência dos passageiros e, cada vez mais, explorando
vantagens como rapidez, flexibilidade e comodidade. Enquanto as compo-
sições férreas, presas a traçados extremamente dependentes da topografia,
tinham de dar voltas e mais voltas para chegar ao seu destino, interrom-
pendo a viagem para recolher passageiros em cada pequena estação, os
ônibus faziam um percurso menos tortuoso, mais direto e ágil, chegando
na frente e desembarcando os usuários quase sempre no centro das cidades.
Nada disso passou despercebido a José Lemes Soares, que anteviu
claramente a mudança da matriz de transportes de passageiros do País.
170
Portanto, em 1948, ele chegava a Presidente Prudente para empreender o
grande salto de sua vida. Estava com 35 anos de idade. Procurou sócios e
encontrou-os nas pessoas de Sérgio Lopes da Silva, recém-chegado como
ele, e de Antônio Pissinin, na época detentor de duas linhas de ônibus
de pequeno curso. Uma ligava Prudente a Presidente Venceslau, a outra
a Porecatu, ambas localidades próximas. Fizeram um acordo e no dia 5
de junho de 1948 registraram uma nova empresa, denominada Empresa
Andorinha — de Silva, Pissinin e Cia. Ltda. Mais tarde, Pissinin deixaria
a empresa e em seu lugar seria admitido como sócio Walter Montanha.
Trataram de melhorar o serviço oferecido aos usuários das cidades
servidas por aquelas duas linhas. Algum tempo depois, renovaram o equipa-
mento. Os passageiros começaram a aumentar e a fixar o nome Andorinha.
Dinâmico, José Lemes Soares trabalhava na prospecção de oportunidades
de expansão. À medida que elas surgiam ou eram criadas pela empresa, iam
sendo aproveitadas para impulsionar seu crescimento. A empresa estava
sempre requerendo ao Departamento Estadual de Estradas de Rodagem
autorização para implementar novos serviços.
171
cesso de consolidação, sendo definidos três grupos de acionistas. Depois,
ainda na década de 1970, a Andorinha passou a figurar na relação das dez
maiores empresas do setor de transporte de passageiros do País, levando
suas linhas a vários estados e neles estabelecendo invejável infraestrutura
de agências e garagens, além de gerar um número crescente de novos em-
pregos. Cidades como Paranavaí, Maringá, Presidente Epitácio, São José
do Rio Preto, Bauru, Campinas, Ribeirão Preto, São Paulo, Juiz de Fora,
Rio de Janeiro, Corumbá e Campo Grande foram algumas a receber essas
garagens. No caso de Campo Grande, a Andorinha implantou ali uma de
suas maiores e mais completas instalações.
Em 1994, quando Rúbio de Barros Gômara concluiu os levantamentos
e entrevistas para a produção deste livro, a Andorinha estava presente em
São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Paraná e Rondônia. Era detentora da linha internacional mais longa
do País, ligando Puerto Suarez (Bolívia) ao Rio de Janeiro, com quase
2.000 quilômetros de extensão.
A empresa já estava sendo dirigida por Walter Lemes Soares, filho
de José Lemes Soares. A terceira geração da família começava a prestar
serviços, com a presença de Walter Lemes Soares Júnior, neto do fundador.
Anos mais tarde, Walter Lemes Soares se tornaria o primeiro presidente
da ABRATI.
172
Fotos: Acervo Andorinha
Uma das primeiras
jardineiras da
empresa foi
montada sobre um
Chevrolet Gigante.
Também na década de 1970: a expansão das linhas da Andorinha para o estado de Mato Grosso,
que ainda exigia travessias em grandes balsas como esta.
Nos anos 1960,
as operações
de turismo da
Andorinha eram
feitas no
ônibus Mercedes-
Benz O 320.
Fotos: Acervo Andorinha
Operando em regiões de forte calor na maior parte do ano, a empresa foi uma
das primeiras a instalar equipamentos de ar-condicionado nos ônibus.
175
Luís: promover um inédito cruzeiro aéreo entre Roma e Rio de Janeiro, o
qual, diga-se de passagem, atendia ao culto à máquina e, especialmente,
à indústria aeronáutica, duas das marcas da chamada Nova Itália de Mus-
solini. Travessias do Oceano Atlântico haviam sido concretizadas em voos
solitários. Agora, pela primeira vez na história, 14 hidroaviões produzidos
na Itália voariam em formação da Europa até tocarem a orla marítima do
Nordeste brasileiro. Benito Mussolini tinha pressa em consumar o novo
feito propagandístico.
Na noite de 17 de dezembro daquele ano, enquanto, no Brasil,
Vargas acabara de se instalar na chefia do governo, quatro esquadrilhas de
hidroaviões Savoia Marchetti S-55 A (o “A” era de Atlântico), bimotores
a hélice, do tipo bombardeiro marítimo, totalizando 14 aparelhos e 56
homens, levantaram voo da base naval de Orbetello, nas proximidades de
Roma. Voariam 10.500 quilômetros até o Rio de Janeiro, com escalas em
Cartagena, Kenitra, Villa Cisneros, Bolama, Natal e Salvador, alcançando
três continentes: Europa, África e América. Para a época, era uma distância
enorme, que as condições adversas da travessia transformavam em desafio.
Cada esquadrilha era identificada por uma cor: Negra, Branca, Ver-
melha e Verde. Os aviões haviam sido preparados para receber 5.420 litros
de gasolina cada um, e a velocidade prevista era de 170 a 210 quilômetros
por hora. Comandava a expedição o próprio ministro da Aeronáutica ita-
liano, general Italo Balbo, então com 35 anos.
No avião batizado de “Icalo”, pertencente à Esquadrilha Verde, in-
tegrava a tripulação o jovem radiotelegrafista Tito Mascioli, aviador R. T.
(Técnico Aeronáutico), de quem se ouvirá falar mais tarde. Sua função
era de importância vital para o desempenho da Esquadrilha Verde, cujos
aviões, além da comunicação entre si, ainda deviam estar em contato
com os aparelhos das demais formações e com a esquadra de oito navios
cruzadores distribuídos no Atlântico ao longo da rota estabelecida.
As quatro primeiras escalas foram cumpridas sem problemas. Porém,
a partida noturna de Bolama, já na costa africana, rumo a Natal, resultou
extremamente acidentada. Um dos aviões capotou, matando um mecâni-
co e ferindo três tripulantes. Os demais aparelhos seguiram viagem, mas,
cerca de dez minutos depois, outro caiu no mar e explodiu, matando seus
quatro tripulantes. Ao pousar na água para prestar socorro aos acidenta-
176
dos, um terceiro chocou-se com o navio de salvamento e afundou. Cinco
tripulantes e três aparelhos foram perdidos.
Os 11 restantes amerissaram em Natal no dia 6 de janeiro, depois
de fazer em dezoito horas a travessia desde Bolama.
A recepção calorosa na capital do Rio Grande do Norte, a extensa
programação e o enorme alvoroço causado pela presença da esquadrilha
italiana transformaram as perdas em detalhe pouco ou nunca mencionado
nas entrevistas. Logo foram relegadas à condição de “incidentes”. Dezenas
de jornalistas, muitos deles estrangeiros, que haviam se deslocado para Na-
tal a fim de cobrir a chegada da esquadrilha, juntaram-se aos profissionais
locais para enaltecer a qualidade e a beleza dos aviões e, ainda mais, a
dimensão do inédito feito aviatório. Quanto aos visitantes, o mínimo que
dizia se deles, na linguagem pomposa do jornalismo tupiniquim, é que se
tratava de “um pugilo de heroicos soldados do ar”.
Sucederam-se cinco dias de homenagens, discursos, coletivas de
imprensa e preparativos para retomada da viagem. O general Balbo ainda
passaria pela contrariedade de ter um de seus aviões abalroado na água
por um rebocador. Como os reparos se prolongariam por alguns dias, o
aparelho ficou retido em Natal. A 11 de janeiro, a esquadrilha levantou voo
rumo a Salvador, Bahia. De passagem, sobrevoou a capital da Paraíba e,
depois, o Recife, deixando cair, nas duas ocasiões, mensagens de saudação
a paraibanos e pernambucanos.
Perto do que aconteceu em Salvador, a agitação de Natal ficaria
parecendo uma convenção de religiosas. A imprensa do Rio de Janeiro
esqueceu a rivalidade e repercutiu, com entusiasmo, o sucesso da presença
dos italianos na capital baiana. O habitualmente sóbrio Correio da Manhã
não deixou por menos em sua principal manchete de primeira página:
AVE, ROMA!
É MAIS UMA VEZ O PRESTÍGIO INCONTROLÁVEL
DA ALMA LATINA QUE SE AFIRMA NO UNIVERSO
ATRAVÉS O VALOR SECULAR DO POVO ITALIANO.
177
de ouvir do momento da chegada à Bahia até a hora da partida, quatro
dias mais tarde.
O que ninguém podia esperar é que, já no dia imediato, segunda-
-feira, a proverbial hospitalidade dos baianos pudesse involuntariamente
abater um daqueles heróis e, o que é pior, o mais ilustre deles. Pois, con-
forme puderam atestar despachos telegráficos disparados da capital da Boa
Terra, o general Balbo, envolvido com sua missão de oferecer ao mundo
“um testemunho eloquentíssimo do valor civilizador da Itália moderna”
(conforme o citado Correio da Manhã), teria talvez se entusiasmado além
da conta quando confrontou um apetitoso vatapá. Capitulou.
O certo é que, no dia 14, perdida no meio de outras notícias, uma
pequena nota do Correio informava, em título de corpo reduzido e com
certo constrangimento:
178
escrito e impresso na própria cidade-palco do acontecimento. A manchete
de primeira página do jornal, com nove colunas de largura, informava:
179
detalhadas sobre o que eles iriam fazer nos dez dias em que permanece-
riam na cidade.
Os compromissos começaram no dia seguinte com a passagem em
revista da frota de hidroaviões, visitas a vários ministros de Estado e ao
Arcebispo da cidade, encontro com o chefe do governo, Getúlio Vargas,
no Palácio do Catete, e banquete à noite no Ministério das Relações Ex-
teriores. Nos dias imediatos, encontro com a colônia italiana, encontro
com ex-combatentes italianos, espetáculos de música e de poesia, ence-
nação de peças ligeiras no Theatro Lyrico e um Te Deum na Igreja de São
Francisco de Paula.
O radiotelegrafista Tito Mascioli e seus colegas de tripulação vi-
venciaram vários desses acontecimentos. Sobretudo, aproveitaram para
conhecer a cidade e algumas de suas praias.
Durante todo o tempo que os aviadores passaram no Brasil, especulou-
-se sobre a possibilidade de os 11 hidroaviões italianos estarem sendo nego-
ciados com o governo de algum país sul-americano, talvez o da Argentina
— e nesse caso, ainda faltaria uma etapa da viagem para ser cumprida.
Coube ao próprio general Balbo acabar com as especulações, ao decretar
que o cruzeiro estava encerrado.
Então a Marinha do Brasil apressou-se a fazer um anúncio surpre-
endente: na verdade, a Esquadrilha Balbo havia sido formada não apenas
para consumar a notável façanha aviatória, mas para trazer os aviões que o
governo brasileiro adquirira do governo italiano, em transação que estava
sendo paga com 50.000 sacas de café. Inicialmente seriam 14 aparelhos,
mas, como se viu, três haviam sido perdidos. Os 11 restantes foram in-
corporados no dia 4 de julho de 1931 à aviação da Marinha brasileira,
como parte do esforço para o seu desenvolvimento, de modo a atender às
necessidades operacionais de defesa aérea do litoral.
Ainda faltava, porém, visitar a cidade de São Paulo. Ali, sim, Italo
Balbo ficou sabendo de verdade o que era a colônia italiana que vivia no
Brasil. Ele e seus acompanhantes chegaram de trem e desembarcaram
na Estação Roosevelt, no bairro do Brás, reduto italiano desde o fim do
Século XIX. O mau tempo, segundo se alegou, havia impossibilitado o
deslocamento da esquadrilha. Os visitantes ilustres foram recebidos com
festas e homenagens que pareciam nunca acabar e puderam sentir-se como
180
se estivessem em seu próprio país. Distribuída por boa parte do estado de
São Paulo, principalmente na Capital, a colônia italiana proporcionou
dias memoráveis aos representantes da Itália fascista.
Foi, portanto, com alguma melancolia que, dias depois, muitos deles,
principalmente os mais jovens, entre eles Tito Mascioli (naquela altura
provavelmente já decidido a voltar ao Brasil), embarcaram, desta vez em
navio, de regresso ao seu país.
Naquele momento ninguém poderia imaginar que os hidroaviões
italianos pudessem um dia participar de operações de guerra.
E, pior, de brasileiros contra brasileiros.
Um ano e meio depois da partida dos aviadores italianos, o Brasil
estava vivendo de novo um movimento de revolta armada. No dia 9 de julho
de 1932, dois generais servindo no estado de São Paulo, Isidoro Dias Lopes
e Euclides Figueiredo, anunciaram, em manifesto, estar à testa de forças
revolucionárias “empenhadas na luta pela imediata reconstitucionalização
do País”. Tratava-se de movimento contra o governo central, que se torna-
ria conhecido como Revolução Constitucionalista. Os revoltosos exigiam
uma nova Constituição para o Brasil, já que a vigente até a deposição de
Washington Luís havia sido trucidada.
Três dias depois do início da revolta, em 12 de julho, uma esquadrilha
de três hidroaviões Savoia Marchetti fez uma incursão de reconhecimen-
to sobre o porto paulista de Santos. No dia 5 de setembro, quando ainda
o
havia combates (o movimento foi debelado por tropas federais em 1 de
outubro), seis hidroaviões SM sobrevoaram o forte Itaipus, também em
Santos, ainda em operação de reconhecimento, e aproveitaram para jogar
sobre a fortificação folhetins e jornais do Rio de Janeiro. Finalmente, na
segunda quinzena de setembro, um solitário SM bombardeou a usina
elétrica de Cubatão. Não conseguiu atingir o alvo.
181
como a tantos de seus compatriotas. Não teve grandes dificuldades em
adaptar-se: em São Paulo, cerca de um sexto da população era de italianos.
Aqui também já viviam alguns de seus amigos, entre eles Arthur Brandi, que
viria a tornar-se seu cunhado. Agrimensor de profissão, Brandi dedicava-se
ao ramo imobiliário, atividade bastante atraente na época, em função do
vertiginoso crescimento da capital paulista.
O brasilianista Warren Dean, citado por Ronaldo Costa Couto em
seu livro Matarazzo, vol. II, sugere que, na década de 1930, alguns pode-
rosos capitães de indústria e fazendeiros de café de São Paulo — como,
por exemplo, Jafet, Klabin, Cícero Prado, Pereira Inácio —, além de rein-
vestir em projetos industriais, também aplicaram seu dinheiro em novos
empreendimentos imobiliários, como forma de defender-se dos reflexos
ruinosos da crise mundial de 1929.
Brandi associara-se a amigos para lançar um loteamento nas ime-
diações do novo aeroporto da cidade, Congonhas, no bairro do Jabaquara,
zona sul da cidade de São Paulo. O potencial do empreendimento era
bom, mas os sócios perceberam que precisavam demonstrar na prática
sua viabilidade aos compradores potenciais. A distância de Congonhas em
relação ao centro da cidade era grande; havia falta de uma linha de ônibus
que aproximasse as duas pontas. Decidiram então criar uma empresa de
transporte de passageiros. Obtida a concessão na prefeitura paulistana, Tito
Mascioli foi encarregado de tocar o empreendimento. Deram à empresa
o nome de Auto Viação Jabaquara S. A. e não imaginavam que, nas mãos
competentes de Mascioli, ela se tornaria um negócio mais rentável que o
próprio loteamento, e de crescimento mais rápido. Em certo momento, ela
chegou a controlar 40% do setor de transporte urbano de passageiros por
ônibus da capital. O excepcional desempenho se devia, principalmente,
à qualidade dos serviços prestados.
Contudo, no dia 9 de março de 1947, a prefeitura criou a Companhia
Municipal de Transportes Coletivos — CMTC — e encampou todas as
empresas privadas que atuavam no setor, entre elas a Auto Viação Jabaquara.
Convidado, Tito Mascioli aceitou ocupar o cargo de diretor tesoureiro da
nova empresa pública, na esperança de conseguir encaminhar um processo
de indenização aos sócios da Auto Viação Jabaquara. Não teve sucesso e
pediu demissão.
182
A ESSA ALTURA, PORÉM, ele e seu amigo Arthur Brandi já estavam mais
do que convencidos da excelência do negócio de transporte de passageiros.
Ainda naquele ano, compraram a Empresa Auto Viação São Paulo–San-
tos Ltda. Em fevereiro do ano seguinte, simplificaram o nome para Auto
Viação São Paulo–Santos e transformaram-na em sociedade anônima. A
nova denominação seria efêmera, pois em 7 de maio (ainda de 1948), a
empresa passou a chamar-se Viação Cometa S. A. Um episódio aparente-
mente banal, ocorrido anos antes, seria determinante para a escolha das
cores da Viação Cometa. Durante uma viagem à Europa, Mascioli e sua
esposa tomavam chá em uma confeitaria quando ela elogiou a porcelana,
nas cores azul e bege. Ele prometeu que um dia seriam donos de uma
empresa de transporte de passageiros e que os ônibus seriam pintados
naquelas duas cores.
Já a denominação — Viação Cometa — foi quase um plágio. Nas
laterais dos ônibus da própria Empresa Auto Viação São Paulo–Santos
aparecia o desenho de um cometa, sugerindo rapidez. Por decisão de
Brandi e Mascioli, o símbolo virou o nome da empresa.
Quanto à transformação em sociedade anônima, ela foi necessária
para abrigar os muitos investidores. Edital publicado na imprensa pau-
listana em 1951 relacionava os nomes dos acionistas: Jean-Marie Faustin
Godefroid Havelange, Arthur Brandi, Tito Mascioli, Corrado Brandi, José
Viglietti, José Glauco Zanin, Nelson Ferreira, Lucila de Moraes Barros
Granja, Giocondo Gâmbaro, Lício da Rocha Miranda, Arrigo Zanin, Ítalo
Breda, Antonio Armando Magalhães, Adib Feres, Corrado Mascioli, Roberto
Brambila, Hermano Pires Fleury Júnior.
Para quem se deteve no nome que abre a lista, a resposta é: sim,
trata-se de João Havelange, que entrou para a história do País por conquis-
tar algumas credenciais muito importantes: a de dono da Cometa, a de
presidente da Confederação Brasileira de Desportos — CBD — (depois
Confederação Brasileira de Futebol — CBF) e, finalmente, a de presidente
da FIFA — International Federation of Football Association. E tão cheia de
peripécias quanto as presidências da CBD e da FIFA, foram as situações que
183
Havelange viveu como “dono” da Cometa. Mas antes de entrarmos nessa
questão, vale a pena observar, ainda em relação aos nomes dos sócios, o
fato notável de que, no corpo de acionistas de uma empresa genuinamente
brasileira, criada em 1948, nada menos que oito eram de nacionalidade
italiana: o próprio Tito Mascioli, Corrado Brandi, José Viglietti, Giocondo
Gâmbaro, Arrigo Zanin, Ítalo Breda, Corrado Mascioli e Arthur Brandi.
Este último já se havia naturalizado brasileiro.
Voltando a Jean-Marie Faustin Godefroid Havelange, na verdade
ele não era dono da Cometa, e sim advogado da empresa. Sob muitos
aspectos, porém, acabaria se tornando tão importante quanto os próprios
donos. É uma longa história.
Ex-campeão de polo aquático e de natação (aos 18 anos, em 1934,
participou daquela famosa Olimpíada em Berlim, na qual, para a indig-
nação de Hitler, o negro norte-americano Jessé Owens ganhou quatro
medalhas de ouro no atletismo), advogado militante nas décadas de 1940
e 1950, um dia Hevelange recebeu, por decisão de Tito Mascioli e Arthur
Brandi, referendada em assembleia-geral dos acionistas, a condição de
diretor-presidente vitalício da Viação Cometa. Posteriormente, elegeu-se
vice-presidente e presidente da Confederação Brasileira de Desportos —
CBD —, onde permaneceu por 16 anos. Dizem que só não ficou como
presidente vitalício da CBD porque decidiu disputar a presidência da
poderosa FIFA. Ganhou a eleição em 1974 e continuava no cargo no
momento em que Rúbio Gômara encerrou suas pesquisas para escrever
este livro, em 1994. Só saiu em 1998.
E por que motivo todo mundo se referia a ele como dono da Viação
Cometa? A resposta tem a ver com a Segunda Guerra Mundial. Em janeiro
de 1942, ainda sob a ditadura Vargas, o Brasil rompeu relações comerciais
com a Alemanha, a Itália e o Japão. No fim de agosto, anunciou a decisão
de enviar tropas brasileiras aos campos de batalha na Europa. Em 1943,
criou a Força Expedicionária Brasileira — FEB —, que embarcaria para
a Itália e se juntaria aos exércitos aliados no combate às forças do Eixo.
Mesmo antes de a situação evoluir para esse extremo, muitos imi-
grantes italianos, alemães e japoneses que viviam no Brasil vinham tendo
problemas com as autoridades, principalmente a partir da descoberta, no
País, de redes de espionagem que passavam à Alemanha e à Itália informa-
184
ções fundamentais para a localização e afundamento de navios brasileiros
por submarinos alemães. Com o rompimento e a declaração de guerra,
os imigrantes dessas nacionalidades passaram à condição de “inimigos
potenciais” e começaram a receber tratamento mais duro, frequentemente
discriminatório. Uma das medidas impostas pelo governo, na época, foi
fazer que empresas, clubes, associações e entidades trocassem os nomes
que fizessem qualquer alusão, direta ou indireta, à Alemanha, à Itália e ao
Japão. Foi assim, por exemplo, que, em São Paulo, a Sociedade Esportiva
Palestra Itália (ou Società Sportiva Palestra Itália) mudou para Associação
Desportiva Palmeiras e suprimiu uma das cores que até então faziam parte
de sua bandeira e dos seus uniformes — o vermelho. Em Belo Horizon-
te, outro clube de futebol com o mesmo nome — Sociedade Esportiva
Palestra Itália — passou a chamar-se Cruzeiro Esporte Clube e adotou as
cores azul e branco. O Clube Espéria (pelo qual Havelange participava
de competições de natação nos incríveis tempos em que ainda corria água
no rio Tietê, em São Paulo) passou a ser Clube Estrela e, anos mais tarde,
Associação Desportiva Floresta. Houve muitos outros casos. O mais grave,
porém, é que muitos empresários alemães, italianos e japoneses foram
pressionados a se desfazer de seus negócios — indústrias, casas comerciais,
importadoras — e, frequentemente, também de seu patrimônio pessoal.
E quando “conselhos” não bastavam, a desapropriação pura e simples era
sempre uma possibilidade.
Nessa época, Tito Mascioli e Arthur Brandi eram donos da Auto
Viação Jabaquara S. A., que controlava, como já se viu, 40% do transporte
coletivo da cidade de São Paulo. Fazia alguns anos que a empresa contava
com os serviços de dois irmãos e advogados, Júlio e João Havelange. Este
último estava mais perfeitamente enfronhado nos negócios da cliente e
gozava da total confiança de Tito e Arthur.
Em 1943, quando as pressões aumentaram, Tito Mascioli definiu, em
conjunto com o sócio e o advogado, uma manobra jurídica: passar o negócio
para o nome de João Havelange. Foi assim que ele se tornou empresário
de ônibus— pelo menos até o fim da guerra, quando, lealmente, devolveu
o negócio a seus verdadeiros donos. Esse favor eles jamais esqueceriam.
Procuraram compensá-lo mais tarde, destinando ao amigo certo número
de ações de sua empresa seguinte, a Cometa, e criando para ele o cargo
185
vitalício de diretor-presidente. Também lhe deram liberdade para fazer
gastos pessoais em nome da companhia. Adicionalmente, Tito Mascioli
deixou-o à vontade para declarar ou dar a entender, quando e onde achasse
conveniente, que era mesmo o dono da Viação Cometa. Havelange se
valeria dessa concessão sempre que precisasse resolver, como amigo ou
como advogado, qualquer questão sensível para a transportadora.
E questões sensíveis não faltariam, à medida que a Viação Cometa
fosse se impondo no mercado e trilhando o caminho da incorporação de
outras companhias e de suas linhas. Em 1949, por exemplo, adquiriu a
Expresso Bandeirantes Viação S. A. Em 1950, criou três novas linhas,
chegando a Jundiaí, Campinas e Sorocaba. No mesmo ano, comprou a
Rápido Serrano Viação, que continuou operando com esse nome em al-
gumas linhas. Em dezembro de 1951, passou a operar sua primeira linha
interestadual, correndo pela recém-inaugurada Via Dutra entre São Paulo
e Rio de Janeiro. A linha tornou-se a mais rentável da empresa e passou a
exigir não somente a ampliação como a modernização da frota, mediante a
importação de ônibus mais adequados ao percurso e à crescente demanda
dos passageiros. Assim, em 1954, a Cometa saiu na frente e pediu licença
para importar 30 unidades do ônibus GM Coach modelo PD-4104, pro-
duzido nos Estados Unidos. Foi atendida. Como características inéditas
no mercado brasileiro, o ônibus tinha motor de 211 cavalos, suspensão
a ar e carroceria de alumínio. Além disso, dispunha de ar-condicionado.
Assim que foram postos para rodar entre São Paulo e Rio de Janeiro, os
importados se tornaram um diferencial capaz de arrastar mais passageiros
para a Cometa, para o desconsolo das concorrentes.
186
Foi o que aconteceu em 1958, num episódio cujo desfecho acabaria
afetando de maneira decisiva a situação econômico-financeira das duas
concorrentes.
Durante mais de três anos, o Expresso Brasileiro sustentara com
competência a disputa de mercado com a Cometa, mas sua frota havia
envelhecido e requeria substituição. Manoel Diegues, mais conhecido como
Maneco, dono da transportadora, já estava cuidando disso. Fazendo valer
sua influência, conseguira importar um lote de 23 ônibus GMC, ainda mais
modernos que os da Cometa, os quais, como vimos, já vinham rodando
desde 1954. O negócio tinha sido feito tão em surdina que Havelange e
Tito Mascioli só ficaram sabendo dele quando o navio, trazendo os ônibus
dos Estados Unidos, já estava atracado no porto de Santos. Havelange saiu
a campo e descobriu que a importação estava sendo feita em operação
casada com exportação de arroz. Entrou então com um pedido de liminar
para impedir a liberação dos ônibus pela Alfândega. Maneco procurou
altos funcionários do governo e amigos políticos, conseguiu derrubar a
liminar. Os 23 ônibus foram liberados. Já estavam montados e preparados
para rodar quando nova liminar, pedida por Havelange, determinou que
os veículos e todas as caixas com peças e equipamentos fossem recolhidos
à Alfândega. Maneco moveu céus e terra, acionou políticos do PSD pau-
lista — partido de Juscelino Kubitschek — e o assunto foi ter à mesa do
presidente da República. Para não ficar mal com seu partido, Juscelino
chegou a assinar, ao que parece na presença de parlamentares pessedistas,
um documento endereçado ao ministro da Fazenda, despachando favora-
velmente à liberação dos ônibus.
O documento pode até ter chegado às mãos do ministro, mas os
ônibus continuaram retidos na Alfândega de Santos por longo tempo.
Uma parte da explicação estava no fato de que, quando ainda era
bem jovem, nos primeiros anos da década de 1920, Juscelino uma vez
havia passado suas férias na cidade do Rio de Janeiro, justamente na casa
do casal Faustin Joseph Godefroid Havelange e Juliette Ludivine Calmeau,
belgas, pai e mãe do menino João Havelange, que então tinha seis ou sete
anos de idade. Esse primeiro contato seria o ponto de partida, anos depois,
para se tornarem amigos. Decorridas mais de três décadas, ao decidir sobre
a disputa entre dois pesos-pesados do transporte rodoviário de passageiros,
187
Juscelino se viu obrigado a engendrar aquela encenação aparentemente
favorável a Manoel Diegues. Mas o fato é que, quando a burocracia oficial
finalmente liberou os ônibus, dois anos mais tarde, a vantagem da Viação
Cometa na briga pela preferência dos passageiros da linha São Paulo–Rio
de Janeiro já era enorme e irrecuperável; o Expresso Brasileiro, por sua
vez, havia acumulado um déficit de caixa do qual não conseguiu mais se
livrar. Anos mais tarde, Diegues desfez-se da empresa.
A Cometa, seguiu sua trajetória. Seus ônibus ainda eram importados,
e entre eles estavam algumas unidades adquiridas do próprio Expresso
Brasileiro. No mesmo ano, foram feitos os primeiros testes com um chassi
Scania B-71, igualmente importado, e que resultariam na opção por essa
marca em 1964. A Ciferal se tornaria a encarroçadora parceira, entre outros
motivos pela utilização de alumínio e duralumínio em seus produtos. A
Cometa utilizaria também o ônibus monobloco O 326, da Mercedes-Benz,
mas a opção passou a ser o produto Scania fabricado no Brasil. Naquele
momento, a maior parte da frota da Cometa já era constituída de ônibus
com carroceria de alumínio.
Tendo São Paulo como ponto de partida, a companhia era detentora
de boa parte das linhas interestaduais mais importantes, não só no estado
de São Paulo como no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Paraná.
A parceria com a Ciferal durou até 1982, quando a encarroçadora
faliu. Ao fechar as portas, ela tinha quase prontas 50 carrocerias a ser
montadas sobre chassis Scania recentemente adquiridos pela Cometa. A
empresa decidiu então produzir suas próprias carrocerias. Surgiu assim, em
março de 1983, a Companhia Manufatureira Auxiliar — CMA —, com os
primeiros ônibus da série Flecha Azul. A série chegaria ao número VIII.
Em 1996, morreu o fundador Tito Mascioli e a companhia ficou
sob o comando de seus dois filhos, Arthur e Felipe.
Em 2001, Arthur Mascioli deixou a empresa. Alguns meses depois,
o empresário Jelson da Costa Antunes, dono da Viação 1001, chegou a
um acordo com Felipe e Arthur para a compra de suas ações.
188
Carroceria Brasinca incorportada à frota Ônibus ODC 210 usado em várias linhas da
da Viação Cometa em 1952. empresa. Foi produzido pela GM no Brasil
a partir de 1950.
Depois de Santos, as
linhas para Campinas
e Jundiaí eram as
mais movimentadas
da Cometa até que
começasse a operação
na Via Dutra.
Em frente à fábrica da General Motors, em São Caetano do Sul, alinham-se os novos GM Coach
importados dos EUA para a Viação Cometa.
Fotos: Acervo Cometa
Tito Mascioli
No porto de Santos, desembarque de GM
Coachs importados.
Durante anos a
encarroçadora Ciferal
foi uma das grandes
parceiras da Cometa.
Como no caso
deste modelo Líder,
batizado como
Jumbo B pela
transportadora.
COMPANHIA SÃO GERALDO DE VIAÇÃO
BENITO PORCARO
1949
191
frota de 23 veículos. O nome Empresa de Viação São Geraldo foi adotado
em 1957. Quatro anos depois, quando a frota chegara a 41 veículos, os
proprietários entenderam de passar o negócio adiante.
Os novos donos assumiram com capital e disposição para investir
na ampliação da frota, na melhoria das linhas e em sua expansão. Come-
çaram a trabalhar imediatamente, orientando o processo de crescimento
também no sentido da incorporação de novas linhas, por compra direta
ou pela participação em concorrências públicas.
As primeiras empresas adquiridas atuavam na região de Teófilo Otoni,
Nanuque e no extremo sul da Bahia. Mais tarde, quando a São Geraldo
já estava implantada mais solidamente, foram compradas as empresas que
faziam a ligação das principais cidades baianas (Salvador, Feira de Santa-
na, Jequié, Vitória da Conquista, Ilhéus, Itabuna) ao Rio de Janeiro e São
Paulo. Assim a empresa ganhou dimensão nacional.
Em 1966, Pedro Cabral vendeu sua participação a Benito Porcaro e
saiu da sociedade. Em 1968, os sócios decidiram transformá-la em sociedade
anônima e o nome passou a ser Companhia São Geraldo de Viação S.A.
José de Paula Maciel era o diretor presidente; Benito Porcaro, o diretor
administrativo; Francisco Lopes Evangelista, o diretor comercial; Augusto
Braga Filho, o diretor financeiro, e Dario Grossi, o diretor de operações.
A expansão prosseguiu, desta vez rumo a outros estados como Goiás,
Espírito Santo, Piauí, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte,
Pernambuco e Ceará, além do Rio de Janeiro, São Paulo e no próprio
estado de Minas Gerais. Negociar a compra de empresas e promover a
extensão e implantação das linhas era, na prática, a especialidade do dire-
tor administrativo Benito Porcaro. Viajava constantemente, não raro por
vários dias. Percorria as diversas rotas, inspecionava os serviços e sempre
trazia novidades ao regressar.
Benito também estava sempre atento às concorrências públicas, me-
diante as quais foram conseguidas numerosas linhas ligando algumas das
principais cidades brasileiras: Goiânia–Rio de Janeiro, Belo Horizonte–Sal-
vador, Vitória–Governador Valadares, Salvador–Teresina, Salvador–Natal,
Aracaju–Natal, João Pessoa–Maceió.
O desenvolvimento da malha rodoviária federal e o arcabouço legal
que passou a disciplinar a atividade de transporte de passageiros a partir de
192
1971 viabilizaram novos investimentos, inclusive na aquisição de linhas
pertencentes a outras companhias. Entre o fim da década de 1960 e durante
quase toda a década de 1970, foram compradas Central Bahia, Expresso
Pernambucano, Vera Cruz, Rodoviária de Alagoas, Viação Alvorada, Nossa
Senhora Aparecida e Ipu Brasília.
Em 1978 a São Geraldo passou por novas mudanças. Permaneceram
como sócios Benito Porcaro, Francisco Evangelista, Jose Maciel e Augusto
Braga. A vocação de operadora de linhas de grande percurso foi fortalecida
com a venda das linhas municipais e estaduais de menor extensão. A frota
foi aumentada para mais de 300 ônibus, mais uma centena de veículos
auxiliares e caminhões.
Benito Porcaro, já como diretor superintendente geral, morreu em
um acidente aéreo no dia 19 de janeiro de 1979. Ao desaparecer, era um
nome nacionalmente conhecido do setor de transporte rodoviário de passa-
geiros. Seu trabalho transcendera a empresa que ajudara a erguer. Também
idealizara e participara da criação da Associação Nacional das Empresas
de Transportes Interestaduais e Internacionais de Passageiros — Rodonal
—, a primeira entidade a congregar o setor de transporte rodoviário de
passageiros.
Entre o fim de 1979 e o início de 1980, a Companhia São Geraldo
participou de processos licitatórios conduzidos pelo DNER e foi autorizada
a operar 13 novos serviços. Naquela altura, havia assegurado o segundo
lugar entre as mais de 200 empresas detentoras de linhas federais. O aten-
dimento alcançava quase todo o Nordeste, de Fortaleza a Belo Horizonte,
de Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Feira de Santana,
Ilhéus e Porto Seguro para Rio e São Paulo, além do litoral do Espírito
Santo para Belo Horizonte.
Havia necessidade de uma estrutura operacional de maior porte e
Caratinga foi trocada, em 1981, por um grande entroncamento rodoviário,
Belo Horizonte. Em uma área de 65.000 metros quadrados, foi construído
o Parque Rodoviário.
Uma cisão societária resultou na criação da Viação Riodoce Ltda., pela
família Grossi. Também foi incorporada a maior organização de transportes
interestaduais do Nordeste, a Empresa Nossa Senhora Aparecida Ltda.
Mais tarde, uma nova geração — a dos filhos dos fundadores — assumiu
193
os negócios. Foi instituído um Conselho de Administração, formado por 12
conselheiros, além de uma Diretoria Executiva. Alguns representantes da
terceira geração também passaram a trabalhar na companhia ou em empre-
sas coligadas ao grupo, que no decorrer dos anos construiu um complexo
empresarial com atuação nas áreas de transporte de passageiros, cargas e
turismo. Justificando a política de diversificação, o então presidente da
São Geraldo, Augusto Braga Filho explicava:
194
Usar carrocerias
mais confortáveis,
como as da Ciferal,
sempre foi uma das
preocupações da
São Geraldo.
Benito Porcaro
UNIÃO TRANSPORTE INTERESTADUAL DE LUXO S. A. — UTIL
JOSÉ XAVIER RIBEIRO — NELSON XAVIER RIBEIRO
1950
197
promover. Dois meses depois de assumir a empresa, compraram a Rio Lux,
responsável pelas ligações Rio de Janeiro–Juiz de Fora, e Juiz de Fora–Belo
Horizonte. Em seguida, absorveram a Viação Continental. Em maio de
1958, incorporaram a Viação Boa Vista.
Com o controle dessas duas últimas empresas, puderam estabelecer
uma série de ligações entre Belo Horizonte e Barbacena, além de servir a
várias cidades vizinhas. Mais tarde, José acabaria retomando sua atividade
de atacadista de gêneros alimentícios.
A aquisição de empresas e linhas sempre foi vista pelos irmãos Xavier
Ribeiro como um meio seguro e prático de estabelecer as rotas que consi-
deravam mais adequadas para o seu negócio. Assim, em 1961, a empresa
comprou a linha Rio de Janeiro–Belo Horizonte. Em seguida, implantou
novos percursos e passou a atender cidades e regiões dos estados do Pará,
Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.
Em 1967, eles entenderam que era hora de dar novo ritmo às ope-
rações da UTIL e contrataram uma consultoria externa, encarregada de
analisar e propor soluções que eventualmente estivessem escapando à
percepção dos controladores. Foi uma abertura importante para a compa-
nhia, contribuindo para arejar o ambiente e despertar uma nova onda de
criatividade, com visíveis reflexos no processo de crescimento.
À proporção que estendia sua área de atuação, a empresa foi implan-
tando algumas das mais modernas garagens do País. Deixou por último
a substituição da garagem da sede, que durante muito tempo funcionou
em área de 11.000 metros quadrados na Av. Francisco Valadares, em Juiz
de Fora. As novas instalações, inauguradas em 1983, foram erguidas em
terreno de 40.000 metros quadrados, no Distrito Industrial da cidade, junto
às rodovias BR-040 e BR-267.
Algum tempo depois, a UTIL tornou-se controladora de mais duas
empresas de transporte rodoviário de passageiros: a São Bernardo Ônibus
(de transporte urbano de passageiros em Belo Horizonte), com frota de 115
ônibus, e a Viação Vale do Sul (com atuação na região metropolitana da
capital mineira), com frota de 67 ônibus. Em 1980, Dílson Xavier Ribeiro
tornou-se o presidente da empresa, em substituição a Nelson Xavier, que
havia estado à frente dos negócios desde os primeiros anos e passou a fazer
parte do Conselho de Administração. Posteriormente, Dílson também se
198
aposentou e passou a integrar o Conselho de Administração, enquanto
Tarcísio Schettino Ribeiro assumia a presidência.
Sob a gestão de Schettino Ribeiro, a UTIL ingressou definitivamente
na era da qualidade total, com ênfase nos programas de seleção e treina-
mento de pessoal. Foram aumentados os cuidados em relação ao quadro
de motoristas, com utilização das mais modernas técnicas de preparação e
reciclagem desses profissionais, acopladas a avaliações médicas e psicológi-
cas, orientação alimentar e condicionamento físico. Instituiu-se um ciclo
anual de palestras sobre múltiplos assuntos de interesse dos colaboradores,
como, por exemplo, relações interpessoais, segurança do trabalho, álcool
e outras drogas nocivas etc.
Outra medida adotada pela companhia foi a intensificação das ro-
tineiras ações de fiscalização do trabalho dos motoristas e dos auxiliares
durante os percursos, sempre com o objetivo de manter uma política de
estrito respeito às normas de segurança e às legislações de trânsito e am-
biental. Também neste caso, a tecnologia passou a ser um importante
instrumento empregado pela UTIL para assegurar aos seus passageiros as
viagens mais confortáveis e seguras.
199
A diversificação, contudo, não representou um distanciamento da
UTIL em relação à atividade de transporte rodoviário de passageiros, como
o presidente Tarcísio Schettino Ribeiro fez questão de esclarecer na época:
200
Fotos: Acervo Rodonal
Jardineira da UTIL que fazia a linha Petrópolis–Rio de Janeiro, antes de a empresa ser adquirida pelos
irmãos Dilson e Nelson Xavier Ribeiro. A mecânica era International e a carroceria, Grassi.
Nas mãos dos irmãos Xavier, e partindo do Rio de Janeiro, a UTIL estendeu
suas linhas a outras cidades mineiras.
Na primeira metade
da década de 1980,
os ônibus de média
potência da UTIL
são substituídos por
uma frota de pesados,
portanto com maior
capacidade de transporte
de passageiros.
203
geração de energia destinada aos aparelhos de rádio dos colonos. Enfim,
pensava o tempo todo em maneiras de conseguir o seu próprio sustento.
Enquanto crescia, foi balconista de loja; depois, aprendeu a dirigir cami-
nhão e passou a trabalhar com frete, transportando porcos e galinhas da
colônia onde vivia com os pais para Porto Alegre e Caxias do Sul. Também
teve uma experiência rápida como motorista de praça. Tudo isso antes de
chegar aos 20 anos de idade. Além do mais, tinha bom gênio e era de fácil
convivência, como o próprio gerente já percebera.
Feita a pergunta, o funcionário do banco não precisou esperar muito
pela resposta. Que veio honesta e em poucas palavras:
204
gaúcho como ele. Nasceu a Empresa Reunidas Ltda., que passou a contar
com quatro veículos: os dois da Caramori e os dois da Vitória, que nessa
época fazia a linha Lages–Florianópolis. Com a criação da Reunidas, a
linha passou a chamar-se Caçador–Lages–Florianópolis. A viagem era feita
em dias alternados, indo-se num dia e voltando-se no outro.
Algum tempo depois, em 1952, Selvino conheceu Therezinha Coe-
lho de Souza e começaram a namorar. Também ela se empolgou com o
sonho de construir uma empresa e passou a ajudá-lo.
205
por baixo do veículo e se meteu ali para tentar o conserto. Aconteceu que
uma pedra tinha furado o tanque de gasolina e o combustível começou a
vazar. Aos poucos, um filete escorreu pela terra molhada. Um passageiro,
depois de acender o cigarro, despreocupadamente atirou o palito aceso no
chão; uma língua de fogo voou para baixo do ônibus e o mecânico só teve
tempo de se safar, puxar a lona e abafar a chama. Sempre que recordava
o incidente, Selvino ainda parecia assustado:
206
de excelente humor; gostava de brincar com as pessoas e dava abertura para
que elas lhe pagassem na mesma moeda. Havia em Caçador um fazendeiro
que de vez em quando também fazia das suas. Uma ocasião, o homem
colocou umas peias num terneiro de sobreano — pouco menos que um
novilho — que queria levar para Lages; só não sabia como. Aproveitou a
oportunidade para provocar o jovem empresário: “Vou viajar contigo, só
que tem um problema, tu me faz um favor?” Sempre prestativo, Selvino
respondeu: “O que você precisar.” E o fazendeiro, sério: “Preciso levar o
boizinho comigo.” O motorista nem pestanejou na resposta:
207
o segundo ônibus, era o Orlando Petrolli que estava fazendo a linha. Na
entrada de Curitiba ele já foi acompanhado pela polícia e o ônibus também
foi recolhido. Os ônibus ficaram presos lá por três meses: dois carros novos
expostos ao tempo. A situação só se resolveu quando o Selvino conseguiu
comprar da Penha a linha União da Vitória–Curitiba–Canoínhas–Rio Ne-
gro–Mafra. Só conseguimos entrar no Paraná comprando uma linha.
Uma vez, quando eu ainda tinha um ano e meio de idade, meu pai
tinha ficado tanto tempo fora que quando voltou eu não o conhecia mais.
Quis me pegar no colo e eu estranhei; não quis nem saber.
208
Além da dificuldade com as estradas, não havia comunicação. Nas
situações mais críticas, o único recurso era despachar um carro em busca
de Selvino, de cidade em cidade, até localizá-lo. Só muito mais tarde se
tornou possível utilizar o rádio para a comunicação entre as agências,
ainda assim apenas nos casos de Curitiba e Caçador. As condições de
transmissão e recepção eram extremamente precárias e, para operar com
radiocomunicação, era preciso obter uma permissão especial das autoridades.
As normas de utilização eram rígidas — por exemplo, só se permitia falar
sobre dados de operação, como horários de saída e de chegada. Assunto
pessoal não podia.
209
a madeira e a Reunidas dava a mão de obra para construir as pontes e pon-
tilhões. Mas como na época a Reunidas não tinha condição de pagar a mão
de obra, foram eles mesmos, meu pai, seu Zeno e vários outros, acampar e
construir os pontilhões, orientados por um carpinteiro que conhecia o negócio.
Tudo isso para poderem passar com o ônibus e abrir a linha até Porto União.
Sandoval Caramori recordou outra situação em que seu pai foi ca-
paz de absorver-se inteiramente na execução de uma tarefa, aliás penosa:
210
modestamente, ampliou seu raio de ação para numerosas outras cidades de
Santa Catarina, colocando-se, já naquela época, entre as maiores do estado.
Concretizando um antigo interesse em penetrar no Rio Grande do
Sul, em 1990 a companhia comprou a Empresa São Luiz, detentora de
ligações entre Caxias do Sul e Lages, Florianópolis e Dionísio Cerqueira —
ou seja, nas divisas com a Argentina, com o Paraná e com Santa Catarina.
Ampliações de linhas possibilitaram à Reunidas, com essa compra, ligar
Caxias do Sul também a Caçador e Francisco Beltrão.
Mais tarde, em 1971, quando o governo federal baixou o Regulamento
do transporte interestadual e internacional de passageiros, foi iniciada nova
série de aquisições. Datam daí as compras da Rio Negrinho, São Bento,
Expresso Lages, Expresso Mondai e algumas outras. Uma troca de linhas
com a Empresa Cattani viabilizou a chegada dos ônibus da Reunidas a
Foz do Iguaçu, com a possibilidade de diversas conexões. E a compra da
Brusquense abriu para a companhia o mercado da vasta região de Blu-
menau, Timbó, Andaial, Brusque e Joinville. Em direção ao Sudeste, a
ligação com São Paulo ganhou o reforço das linhas originadas em Tubarão,
Florianópolis, Camboriú, Erechim, Dionísio Cerqueira e Uruguaiana, que
se estenderam às cidades paulistas de São Carlos, Campinas e Sorocaba.
No rumo da Argentina, passaram a ser operadas na década de 1990
linhas internacionais para Posadas, Resistência, Corrientes e Córdoba.
A compra da Real Transporte e Turismo, de Passo Fundo (RS), foi
uma das maiores transações em toda a história da Reunidas. O nome da
empresa foi mantido, e preservadas suas linhas do Rio Grande do Sul para
São Paulo, além da operação em toda a fronteira gaúcha (Passo Fundo,
Erechim, Santa Rosa, Santo Ângelo).
Também foram abertas linhas de Santo Ângelo (RS) para Barreiras
(BA), com 3.200 quilômetros de extensão e 72 horas de viagem. Os dire-
tores da empresa falaram nessa linha com o orgulho herdado do pioneiro
Selvino Caramori. Finalmente, foi estabelecida ligação com Palmas, em
Tocantins, e com Vila Rica, em Mato Grosso. Ao todo, são atingidos dez
estados, mais o Distrito Federal.
Quando Rúbio Gômara entrevistou a família, em 1994, a empresa
fundada por Selvino Caramori havia se transformado no Grupo Reunidas,
com atuação em mais segmentos. A área de cargas, por exemplo, respon-
211
dia por um faturamento praticamente igual ao do segmento de passagei-
ros. A empresa Reunidas Indústria e Comércio, outra subsidiária, atuava
como concessionária Bosch e desenvolvia projetos para prestar serviços
de manutenção, retífica, recapagem de pneus e gráfica. Havia também
uma revenda Fiat e uma empresa de processamento de dados prestando
serviços para terceiros.
212
Fotos: Acervo Reunidas
A primeira geração de veículos da Reunidas, entre 1950 e 1952. Operava entre Caçador e Lages.
No pátio da primeira
garagem da empresa,
na década de 1960,
um lote de cinco
novos chassis prontos
para ser encaminhados
à encarroçadora.
Serviço rodoviário
Pullman, um dos
mais valorizados
pelos passageiros
nos anos 1960
pelo conforto
do chassi
Mercedes-Benz.
Fotos: Acervo Reunidas
Ônibus da frota de
carros-leito com
carroceria Marcopolo.
215
Brasileira, embora fosse arrimo de família. O País iniciava os preparativos
para a hipótese de ter de enviar um contingente de oficiais e soldados aos
campos de batalha da Itália.
A incorporação à FEB pareceu mais próxima ainda com o seu des-
locamento para Natal, no Rio Grande do Norte, onde os Estados Unidos
haviam instalado uma base militar. A seguir, houve mais uma transferência,
desta vez para o Recife. Durante todo o tempo, Arthur Bruno continuava
mandando a maior parte de seu soldo para a família, que permanecia no
Espírito Santo.
Ele ainda acreditava na possibilidade de embarcar para a Itália
quando o conflito mundial terminou. Enquanto isso, havia conquistado
o o
sucessivamente as promoções a 3 e a 2 sargento. Foi então transferido para
o
Campina Grande, Paraíba, e promovido a 1 sargento. Decidiu continuar
na tropa por mais algum tempo.
Acabou ficando seis anos. Somente em junho de 1951, ainda em
Campina Grande, Arthur Bruno pediria baixa do Exército. Já vinha ama-
durecendo o projeto de montar uma pequena empresa de transporte de
passageiros, e assim que deixou a Arma passou imediatamente à ação.
Começou com um único ônibus, construído sobre o chassi de um ca-
minhão Chevrolet 1946, e um só funcionário, que era ele próprio. Os
conhecimentos de mecânica automotiva adquiridos naqueles anos lhe
seriam agora de muita utilidade. Dirigia de dia e, à noite, fazia os consertos
necessários, além da limpeza do veículo. Assim nasceu a Borborema. Havia
em Campina Grande uma companhia chamada Rainha da Borborema.
Pediu e obteve a autorização dos proprietários para usar o mesmo nome
na cidade do Recife.
Não houve mágica, mas muito trabalho. Seu sucesso dependia fun-
damentalmente dele próprio e, principalmente, da sua certeza de que,
somente fazendo muita economia e reinvestindo no negócio tudo o que
pudesse, teria a chance de construir uma empresa. Por isso, entrou de corpo
e alma na atividade. Sua primeira linha urbana ligava a Casa Amarela,
no centro da cidade, ao bairro de Nova Descoberta. Peças e componentes
necessários para manter o veículo rodando eram comprados em ferro-velho,
e recondicionadas por ele. O velho ônibus tinha que vencer ruas cheias de
buracos e de lama, e ainda disputar espaço com as carroças e carros de boi.
216
Também era preciso dividir todo o dinheiro que entrava: uma parte
ia para as atividades de cultivo das terras deixadas pelo pai, no Espírito
Santo; a outra era empregada na expansão do negócio de ônibus. Nada
era desperdiçado. Comprava para ele somente o indispensável, aquilo
que não podia ser deixado para depois. Naqueles tempos difíceis, nunca
lhe faltou o apoio de sua mulher, Augusta, a quem conhecera no Rio
Grande do Norte, e dos filhos Pedro, Maurício e Zélia, ainda pequenos.
Com tanto esforço, em quatro anos, conseguiu montar uma frota de 30
ônibus GMC, que usuários irreverentes apelidaram de chocadeiras, por
serem muito quentes. Em 1959, conseguiu adquirir seus primeiros ônibus
Mercedes-Benz LP 312, muito mais confortáveis, com encarroçamento
Caio, Cermava e Grassi.
Mais tarde, Arthur Bruno Schwambach ingressou na operação de
linhas intermunicipais e interestaduais, não sem antes examinar todas as
possibilidades, adotar todos os cuidados e certificar-se exatamente do que
estava fazendo. Certa vez, por exemplo, estava interessado em adquirir
uma operadora alagoana chamada Empresa Santanense. Chamou um
funcionário de sua confiança e pediu-lhe que fizesse várias viagens em
ônibus da Santanense. Depois de uma semana e idas e vindas, o funcionário
elaborou um relatório com as informações de que Schwambach precisava
para tomar a decisão. A compra foi feita e a empresa passou a chamar-se
Real Alagoas. Opera transporte interestadual.
O modo peculiar como o empresário vê os negócios orientou o
crescimento e o desenvolvimento das empresas do Grupo Borborema. Ele
sempre achou que, por si só, o aumento da demanda por transporte não
devia bastar aos objetivos da Borborema. Por isso, trabalhou na racionaliza-
ção e na perfeita adequação dos serviços à realidade do mercado regional.
Foi esse o motivo pelo qual preferiu não estender demasiadamente suas
linhas, mesmo quando as oportunidades apareceram.
No decorrer dos anos, o empreendimento cresceu e a marca Borbo-
rema tornou-se cada vez mais conhecida pela qualidade e eficiência dos
seus serviços. Novas frentes de negócios foram abertas e outras empresas
vieram para o Grupo Borborema, entre elas a Borborema-Imperial, a Real
Alagoas de Viação (Maceió), a Rodoviária Borborema e a Real Transportes
Urbanos, além de concessionárias de automóveis e caminhões.
217
Quanto às terras que um dia seu pai, seus irmãos e ele haviam
trabalhado com tanto sacrifício no município de Baixo Guandu, Espírito
Santo, não só foram mantidas como acrescidas de novas áreas. Passaram
a formar as Fazendas Reunidas Porto Final. São mais de 2.200 hectares,
destinados ao desenvolvimento de atividades pecuárias.
A terceira geração da família Schwambach já participa ativamente
das tarefas de administração do Grupo Borborema em seus vários ramos
de atividade.
218
Fotos: Acervo Grupo Borborema
O ônibus O 321, elogiado pela suspensão macia e o motor silencioso, também integrou a
frota da empresa nos anos 1950 e 1960.
Fotos: Acervo Grupo Borborema
O O 321 em outra
empresa do mesmo
grupo, criada por
Arthur Schwambach
para operar entre
Recife e Rio
de Janeiro.
Carro integral
(carroceria e
plataforma) da
Mercedes-Benz, da
empresa Real Alagoas,
operando na linha
Maceió–Recife.
Arthur Bruno
Schwambach
VIAÇÃO CIDADE DO AÇO LTDA.
GERALDO OZÓRIO RODRIGUES
1951
221
a implantação da siderúrgica. Como parte do acordo, os Estados Unidos
receberam a pleiteada autorização para instalar uma base no estado do Rio
Grande do Norte. Era o começo da história da Companhia Siderúrgica
Nacional.
A CSN foi criada no dia 9 de abril de 1941. Com base em estudos
de clima, solo, transporte e localização dos mercados consumidores, a
Comissão do Plano Siderúrgico escolheu a localidade de Volta Redonda,
no interior do estado do Rio de Janeiro, para sua instalação. O minério
a ser processado viria de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, e Santa
Catarina forneceria o carvão betuminoso, transportado por via marítima
e ferroviária. O primeiro estágio da usina entraria em operação em 1946,
já depois do fim da guerra.
(Aqui, cabe destacar que os resultados daquelas negociações se pro-
jetariam sobre o futuro do País, permitindo alcançar um novo estágio de
desenvolvimento e ajudando a criar as condições, por exemplo, para a
implantação da indústria automobilística. Esta, por sua vez, possibilitaria a
opção pelo rodoviarismo, com a construção de estradas e a implementação
de um sólido sistema de transporte rodoviário de cargas e de passageiros.)
As obras para concretização do projeto da CSN geraram significativo
volume de novos empregos em Volta Redonda, onde, no entanto, ainda
não fora implantado um setor de moradias. Os trabalhadores tinham de
ficar alojados em Barra Mansa, havendo, portanto, necessidade de trans-
porte entre as duas cidades. No início, para o deslocamento do pessoal,
eram utilizados os mesmos caminhões que, em outros horários, faziam o
transporte das cargas. A empresa responsável pela prestação dos dois ser-
viços pertencia a José Ferreira de Matos. Foi ele, portanto, o pioneiro do
transporte na região. Mandou fabricar carrocerias de madeira, um tanto
precárias, e iniciou o serviço de transporte por ônibus. Nos anos seguintes,
o movimento cresceu no mesmo passo da expansão da cidade de Volta
Redonda, que recebia gente de todo o Brasil, vinda para trabalhar na side-
rúrgica. A empresa de Ferreira de Matos já operava com 20 ônibus — ainda
assim insuficientes. Os trabalhadores do turno da noite, principalmente,
tinham dificuldades de transporte.
Por essa época, em Barra Mansa, os irmãos Ozório Rodrigues atuavam
na extração de madeira, produção de dormentes ferroviários e fabricação de
222
carvão vegetal. Os dormentes eram destinados à Estrada de Ferro Central
do Brasil e à Light, que explorava o serviço de bondes da então capital
brasileira. O mais velho dos irmãos — Geraldo — teve a ideia de lançar
uma segunda linha de ônibus entre Volta Redonda e Barra Mansa, cuja
operação, obviamente, dependia de concessão das autoridades. O pedido
foi feito, mas negado, para não ferir os direitos adquiridos por José Ferreira
de Matos.
No entanto, junto com a negativa, as autoridades sugeriram a aber-
tura de uma linha de lotação. Geraldo Ozório Rodrigues associou-se aos
fazendeiros Iraci Cambraia e Francisco Balte, seus amigos e, em 1951, a
linha de lotação entre Barra Mansa e Volta Redonda começou a funcionar.
Como o tráfego iria até a siderúrgica, mesmo tendo sido registrada em Barra
Mansa, decidiram que a empresa teria o nome de Viação Cidade do Aço.
Ao contrário do que era comum naquele tempo, a Cidade do Aço não
utilizou automóveis no serviço de lotação, mas jardineiras, com capacidade
para 12 a 16 passageiros. A ideia deu certo; nos horários de maior procura, os
carros das duas empresas operavam sempre lotados. A diferença se percebia
nos horários de menor movimento, quando os carros do serviço de lotação
chegavam a deslocar 60 passageiros, enquanto os ônibus da linha de José
Ferreira de Matos, mesmo com tarifa 50% menor, trafegavam quase vazios.
223
Quando meu pai morreu, fui trabalhar com um tio. Estive com ele
por muitos anos. Infelizmente, os negócios não foram muito bem naqueles
idos de 1930, 1932, com revoluções em Minas, ameaças do integralismo,
aqueles movimentos todos da época. As organizações viviam em dificulda-
des, até mesmo o Estado. Eu me lembro de que meu tio, que tinha uma
serraria, uma vez forneceu madeira para o estado de Minas, que não teve
como pagar. Foi assim que eu e meus irmãos resolvemos tentar a sorte no
trabalho com carvão vegetal. Na época, o mercado do Rio de Janeiro era
grande consumidor do produto.
224
lotação que ligava Barra Mansa a Volta Redonda. Como as dificuldades
da Pássaro Marron persistiam e ela decidiu vender algumas de suas linhas,
Geraldo Ozório Rodrigues entrou em negociações com a companhia e
comprou Rio de Janeiro–Barra Mansa, Rio de Janeiro–Resende, Rio de
Janeiro–São José dos Campos, Rio de Janeiro–Itajubá, Rio de Janeiro–Ca-
xambu e Rio de Janeiro–Angra dos Reis. Vários dos ônibus que operavam
essas linhas estavam em más condições; enquanto providenciava a substitui-
ção, a Cidade do Aço utilizou micros. No curto prazo, ainda foi favorecida
por uma decisão do DNER. O Departamento criou duas tarifas diferentes,
uma para os ônibus e outra, um pouco mais alta, para os micro-ônibus,
em virtude da melhor qualidade no transporte que ofereciam. Mais tarde,
devido ao grande volume de tráfego de micro-ônibus na Via Dutra, e ao
fato de esses veículos trafegarem com lotação tão limitada, cobrando mais
caro e congestionando uma via importante para a malha rodoviária, o
Departamento novamente unificou o preço das passagens. Mais uma vez,
Geraldo Ozório escolheria o caminho correto:
225
Também motivo de satisfação para Geraldo Ozório Rodrigues eram
as referências, sempre elogiosas, que os órgãos do poder concedente, e
mesmo empresas concorrentes, faziam a respeito da Cidade do Aço:
226
Administrada de maneira eficiente, no decorrer dos anos a companhia
pôde crescer com segurança, levando suas linhas a várias cidades dos estados
de Minas Gerais e São Paulo, sempre tendo como referência geográfica a
capital, Rio de Janeiro. Quando, por exemplo, a empresa Evanil perdeu sua
concessão, a Cidade do Aço foi chamada a operar suas linhas e chegou a
Caxambu. Por muitos anos, também fez Rio–Itajubá. Mais tarde, requereu
e obteve a linha Cruzeiro–São Lourenço, expandindo-se ainda para Três
Corações e chegando a São José dos Campos e Juiz de Fora.
Porém, segundo Geraldo Ozório Rodrigues, no caso do convite para
continuar fazendo a linha Rio de Janeiro–São Paulo, a empresa amargou
uma decepção. Por ser o percurso excessivamente longo para ser coberto
com carros fabricados no Brasil, a Cidade do Aço entrou com um pedido
de Licença de Importação de 100 ônibus GM, idênticos aos da Viação
Cometa, mas o pedido foi negado. As autoridades justificaram que estava
sendo iniciada no Brasil a fabricação dos ônibus Mercedes-Benz. Diante
disso, a Cidade do Aço preferiu não participar da linha. O Expresso Bra-
sileiro e a Cometa permaneceram. Posteriormente, como está registrado
em outro capítulo deste livro, o Expresso Brasileiro enfrentou o mesmo
problema quando tentou importar ônibus de fabricação norte-americana.
EM 1993, QUANDO FOI entrevistado por Rúbio, fazia 21 anos que Ge-
raldo Ozório Rodrigues não era mais o controlador da Cidade do Aço. Em
1972, havia passado o controle acionário aos irmãos Ariel Curvello, Abel-
mar Curvello e Aldemir Curvelo. Mas até mesmo a decisão de se desfazer
do negócio parece ter sido inspirada na sabedoria adquirida em muitos
anos de trabalho, dedicação e conhecimento do ser humano. Vender a
empresa, segundo ele, foi uma forma de liberar seus filhos para buscarem
outros caminhos e se preservarem de frustrações que poderiam advir de
uma atividade que vinha mudando muito rapidamente, com boa margem
de imprevisibilidade:
227
ônibus da empresa. Meu carro seguia do Rio para Barra Mansa, enquanto
eu usufruía o conforto e a tranquilidade de seguir de ônibus, três, quatro
vezes por semana, aproveitando para ver de perto todo o funcionamento do
serviço. Com luta, seriedade e organização, construí uma empresa que, eu
sabia, estava deixando para os meus filhos. Por isso, nunca consegui entender
que, eventualmente, pessoas inescrupulosas se acercassem para tentar extrair
vantagens indevidas. Assim, acabei desistindo da ideia de deixar para os
meus filhos esse tipo de negócio. Eu já estava com minha vida realizada e
vendi a empresa para não ter de nos sujeitar.
228
Fotos: Acervo Cidade do Aço
Foto tomada quando os ônibus da Cidade do Aço começaram a operar sua
primeira linha, de Barra Mansa ao então distrito de Volta Redonda.
231
O primeiro ônibus Mercedes-Benz, movido a óleo diesel, foi adquirido no
mesmo ano, justamente para servir a linha Vassouras–Barra do Piraí. A
sede das duas empresas foi transferida para Barra do Piraí.
Com mais cinco anos, adquiriram uma linha da empresa Rivera,
que fazia a linha Barra do Piraí–Três Rios. No ano seguinte, 1964, com-
praram a empresa Manchester, com 12 ônibus, e a Viação Popular, com
dez, passando a interligar Barra Mansa e Juiz de Fora. Nesse mesmo ano, o
irmão mais velho, Francisco Soares da Costa filho, deixou a empresa. Em
1968, José Carlos morreu em um acidente. Em 1972, também Aladyr saiu.
Arlindo, Hélio e Sebastião, que continuaram na direção da companhia,
sentiram que teriam de se desdobrar para suprir a ausência de Aladyr, bom
mecânico e responsável por toda a manutenção, um dos pontos fortes da
Progresso. Hélio Soares assumiu as funções, como contou a Rúbio Gômara:
Acho que isso nos ajudou a chegar ao ponto a que chegamos. Não
sei se nos dias atuais a gente teria condições de repetir o que foi feito. As
coisas estão muito mais difíceis, já não há muita gente com paciência para
aprender. Esta é uma questão que nos preocupa e sempre tratamos dela
com nossos filhos: é preciso cuidar muito bem dessa parte dos serviços, ter
uma boa manutenção, porque se a empresa chega a um determinado ponto
e depois cai, para levantar de novo é difícil. Nós temos um bom número
de empregados já com bastante tempo na empresa, e eu sempre digo que a
gente tem que zelar por eles.
232
Fiel a essa orientação, desde a década de 1970 a Viação Progresso
adotou a política de premiar motoristas e outros colaboradores com mais
de dez anos de casa.
Seu Chiquinho viveria até 1973. Após sua morte, os filhos seguiram
no ramo e, sempre que possível, fizeram novas aquisições de linhas e em-
presas. Uma delas, bastante importante, ocorreu em 1975, envolvendo a
Viação Salutaris, com a transferência de 32 ônibus, uma garagem em Três
Rios, uma em Paraíba do Sul e 13 linhas intermunicipais que operavam
em Três Rios, Paraíba do Sul e Petrópolis. Com isso, a sede da empresa
foi de novo transferida, desta vez para Três Rios.
Não foi a última compra. Uma década mais tarde, em 1984, foram
incorporadas cinco novas linhas até então operadas pela Viação Pedro
Antônio, entre elas Barra Mansa–Carangola, Barra Mansa–Muriaé e Vas-
souras–Paracambi. O negócio incluiu ainda 22 ônibus, uma garagem em
Barra Mansa e outra em Carangola. Hélio Soares contou a Rúbio Gômara
que a Progresso enfrentou momentaneamente alguma dificuldade ao assu-
mir a linha Barra Mansa–Carangola. Passageiros não habituados à cultura
da empresa, de respeito aos limites de velocidade, andaram meio arredios:
233
sócios-conselheiros. Em 1989, foi adquirida da Viação Pedro Antônio a
linha São João Nepomuceno–Rio de Janeiro.
Entrevistado por Rúbio Gômara em 1993, Hélio afirmou:
234
Acervo Viação Progresso
237
O início foi cheio de dificuldades e sonhos. Sonhos estes conquistados
e realizados por Eugênio Mazon, que, sem nenhum medo de errar, com to-
das as dificuldades possíveis, sem dinheiro nem escolaridade, sem estradas
na época, sem veículos nas condições que temos hoje, já tinha o sonho de
transportar pessoas.
238
Ao mesmo tempo que melhorava e ampliava a frota, a companhia
analisava as alternativas de crescimento ensejadas pelo mercado de trans-
porte rodoviário de passageiros. Para ampliar os horários de atendimento
em viagens para São Paulo, foram adquiridas as empresas Viação Bizzac-
chi e Rápido Pinhal. Mais tarde, no início dos anos 1980, a Santa Cruz
assumiu o controle da Expresso Cristália, da cidade de Itapira e operadora
de serviços intermunicipais no estado de São Paulo. Da aquisição resultou
um grupo empresarial mais sólido. O volume de passageiros transportados
cresceu, os serviços de ambas as empresas foram aprimorados e criaram-
-se mais empregos e benefícios. Algum tempo depois, também passaram
a contar com os serviços da Viação Santa Cruz as cidades de Poços de
Caldas e Andradas, em Minas Gerais, assim como a cidade paulista de
Espírito Santo do Pinhal.
Como consequência da intensificação das atividades na capital, surgiu
a necessidade de se implantar lá uma garagem. Depoimento de Eugênio
Mazon Jr. sobre esse período dá uma ideia de como era o empresário
Eugênio Mazon, seu pai:
239
para indústrias e outras empresas. Também foi adquirido integralmente o
controle societário da Viação Nasser, dedicada a serviços intermunicipais
e interestaduais. Dessa forma, o Grupo Santa Cruz passou a ser integrado
por três companhias e estendeu seu atendimento às cidades de Mococa
e São José do Rio Pardo, em São Paulo, e Guaxupé, Minas Gerais. As
transportadoras de passageiros atuam nos segmentos urbano, suburbano,
intermunicipal, interestadual, turismo e fretamento contínuo ou eventual.
A companhia se destaca por seu moderno sistema de gestão, orientado por
resultados e baseado em iniciativas e processos.
240
Fotos: Acervo Santa Cruz
A primeira jardineira, usada por Eugênio Mazon para transportar estudantes entre as
cidades de Mogi Mirim, Conchal e Araras.
A localidade de Tujuguaba
também passou a
contar com o transporte
via Conchal oferecido
por Mazon.
O primeiro ônibus,
um Ford F 600. A recém-
batizada Viação Santa
Cruz iria se dedicar
também a fretamento
e turismo.
Na década de 1980,
novo e expressivo
avanço na qualidade
dos serviços: faziam
parte da frota
os ônibus Marcopolo
Viaggio da Geração IV.
REAL EXPRESSO LTDA.
JOSÉ AUGUSTO PINHEIRO
1953
243
Dono de quatro caminhões, José Augusto nem pestanejou para aceitar
o encargo, já sabendo que sua pequena frota era absolutamente insuficiente
para dar conta da tarefa. Assegurado o contrato, tratou logo de providenciar
o reforço de mais alguns caminhões. Homem de raciocínio prático — e
rápido —, mostrou à STER que ganhariam tempo se ele se encarregasse
pessoalmente das compras, já que era piloto de avião e a empresa dispunha
de um. Começou comprando materiais no Rio de Janeiro, imediatamente
transportados por seus caminhões para Paracatu, e indo mais tarde a Belo
Horizonte, São Paulo e Uberlândia para comprar combustível. O certo
é que o cronograma da obra foi mantido sem atrasos, sendo o trecho de
Paracatu entregue no prazo contratado.
A vida de caminhoneiro e dono de empresa transportadora continuou
até o início de 1960, quando José Augusto decidiu mudar de ramo. No fim
de dezembro de 1959, casara-se e viajara em lua de mel, incluindo Brasília
no roteiro. Além de ter gostado da cidade, percebeu que o fluxo de cargas
transportadas para a nova Capital ia diminuindo, mas não o de gente.
Quando voltou a Paracatu, já havia pensado em uma série de atividades ou
áreas de negócios nas quais poderia tentar a sorte, entre elas o transporte
rodoviário de passageiros. Coincidência ou não, apareceu-lhe a chance de
ingressar como sócio na Vieira Cia. Ltda., dona da Empresa São Cristóvão,
que fazia a linha de ônibus Patos de Minas–Brasília. Anos depois ele ainda
recordaria que a frota da empresa era muito velha e dava muitos proble-
mas. Ele os conhecia bem, pois trabalhava arduamente, inclusive dirigindo
ônibus nas rotas Patos de Minas–Brasília, Patos de Minas–Uberlândia e em
outras. Além disso, era bom administrador e competente mecânico. Sabia o
que dava para consertar e o que era preciso trocar. Aos poucos, os ônibus a
gasolina foram substituídos por outros, novos, movidos a diesel. Recomposta
a frota, apareceram os primeiros resultados. Então José Augusto Pinheiro
sentiu que poderia crescer mais depressa se comprasse outra empresa já
em funcionamento. Tentou uma negociação com a Nacional Expresso, de
Uberaba, mas não teve sucesso. A abordagem seguinte foi à Real Autopeças,
dona de 41 ônibus. A empresa havia sido criada em outubro de 1953 na
cidade onde ainda tinha sua sede, Uberlândia. Operava no Triângulo Mi-
neiro e também vendia peças, acessórios e veículos. Seu fundador, Anísio
Curi, começara com duas peruas Chevrolet. Quando sentiu que a revenda
244
de autopeças prosperava mais rapidamente, decidiu passar adiante a parte
de passageiros. Nos dez anos seguintes, a empresa trocaria de mãos duas
ou três vezes, até que foi comprada por José Augusto Pinheiro e mais três
sócios. Em 1973, eles mudaram o nome para Real Expresso.
245
Com ela, voltou à boleia do caminhão e despediu-se definitivamente
da infância, passando a transportar materiais entre Patos de Minas e Paraca-
tu, em um dos dois caminhões que o irmão tinha em sociedade com mais
três sócios. Quando o irmão transferiu-se para Patos de Minas e passou a
enfrentar dificuldades financeiras, pediu-lhe que trabalhasse sem ganhar
por algum tempo, até a situação melhorar. Concordou, é claro. “Por isso é
que, quando alguém me pergunta se realmente comecei do nada, eu digo
que comecei um pouquinho antes do nada” — é a divertida explicação
de José Augusto.
Aos 17 anos, sempre com o irmão Elmo, que acumulava as funções
de seu tutor, pois perdera o pai muito cedo, aceitou o desafio de um
sobrinho do governador de Minas, Benedito Valadares, para transportar
dormentes entre João Pinheiro e Catiara. Foi nessa ocasião que surgiu o
Expresso Pinheiro. Seriam cinco anos de trabalho duro, ao fim dos quais
conseguiria comprar seu primeiro caminhão, um FNM 1956, e mudar de
rota: passou a transportar charque de Minas para o Nordeste, enfrentando
mais de 2.000 quilômetros de estradas de terra, poeira e lamaçais. De lá,
trazia coco, tecidos das famosas Casas Pernambucanas, cachaça — e até
passageiros, os “paus de arara”.
246
do transporte rodoviário de passageiros, e onde o empresário procurava
manter-se sempre informado sobre o setor.
Seu estilo de administrar era simples: melhorar constantemente a
qualidade e a variedade dos serviços, estar sempre atento às oportunidades
de adquirir mais empresas e, quando possível, participar de licitações para
tentar conquistar novas linhas. Assim a Real Expresso cresceu.
Em novembro de 1974, com a saída de um dos sócios, a companhia
foi dividida em duas, permanecendo uma com o nome Real Expresso e
sendo a outra denominada Nacional Expresso. Em função da partilha das
cotas, José Augusto Pinheiro ficou com 84% da Real Expresso (mais tarde
comprou os outros 16%). Sempre mantendo a filosofia da sobriedade ad-
ministrativa e do crescimento seguro, característica mais marcante de sua
atuação como empresário do setor de transporte rodoviário de passageiros.
As operações da empresa se ampliaram na região Centro-Oeste e se
estenderam para o Norte e o Nordeste, atingindo Goiás, Bahia, Rio Grande
do Norte, Paraíba, Acre e Rondônia. A sede foi transferida para Brasília.
Sob o comando firme e tranquilo de José Augusto, o Grupo buscou
a diversificação, começando pela montagem de uma rede de revenda
de veículos, cujas unidades foram espalhadas por vários estados. Outras
empresas — mais de uma dezena, quase todas dedicadas ao transporte de
passageiros, de cargas e atividades afins — foram sendo criadas e novas
atividades foram assumidas pelo que já era um grupo empresarial. No
mesmo ritmo do crescimento dos negócios, aumentou a quantidade de
colaboradores.
Apesar dos outros negócios, a Real Expresso continuou sendo a menina
dos olhos do fundador, do mesmo modo como se manteve como detentora
da maioria das linhas que operava nos primeiros tempos. Escondendo-se
por trás da modéstia de mineiro do interior, sempre teve a mesma resposta
ao ser perguntado sobre se o menino apaixonado por veículos algum dia
sonhou dirigir um grande grupo empresarial como o Grupo Real Expresso:
Meu horizonte era pequeno. Primeiramente, meu desejo era ser moto-
rista assalariado. Depois, ter um caminhão usado, em sociedade com meus
irmãos. Mais tarde, o horizonte se ampliou um pouco e eu queria ter um
caminhão novo. A seguir, dois ou três caminhões...
247
JOSÉ AUGUSTO PINHEIRO destacou-se também como líder classista. Foi
um dos fundadores da antiga Rodonal e seu presidente por dois mandatos
consecutivos. Participou depois da fundação da ABRATI — Associação
Brasileira das Empresas de Transporte de Passageiros — de cuja Diretoria
fez parte por longos anos. Contribuiu de maneira decisiva para viabilizar
importantes conquistas do setor de transporte rodoviário de passageiros,
graças não só à sua grande capacidade de trabalho, mas ao seu invejável
trânsito nos campos empresarial e político.
Nunca demonstrou interesse em parar. Ao contrário, continuou firme
na condução dos negócios, com a convicção de pertencer a uma geração
diferenciada de empresários. Sua explicação:
248
Fotos: Acervo Real Expresso
Em seu início, a Real Expresso tinha sede em Uberlândia, Minas Gerais, e não
era o principal negócio do seu primeiro proprietário.
Júlio Fernandes
Acervo Scania
251
Respondi que tinha interesse em explorar o serviço e eles me deram a
concessão. Na época, governava o Paraguai o presidente Alfredo Stroessner.
Com a concessão, eu me dirigi às autoridades brasileiras e solicitei que fosse
feito um acordo bilateral de transporte rodoviário de passageiros. Naquela
época não havia nenhum acordo desse tipo entre o Brasil e o Paraguai. Aliás,
continuou não havendo por muito tempo, apesar do meu pedido. No DNER
ninguém sabia nada a esse respeito, e o Itamaraty também desconhecia.
Precisei lutar muito até que saísse a concessão. Aí comecei a fazer a linha,
em 1963. Quanto ao acordo, só foi formalizado em 1966, mas envolven-
do Brasil, Argentina e Uruguai, e denominado Convênio sobre Transporte
Internacional Terrestre. Curiosamente, o Paraguai não assinou e só viria a
aderir em 1977, quando saiu o segundo convênio, ao qual aderiram também
o Chile, o Peru e a Bolívia.
252
ônibus com assentos de encosto alto. O Paraguai ainda utilizava jardineiras
com carroceria de madeira.
253
abrir uma linha entre Curitiba e Foz do Iguaçu. Posteriormente, em 1959,
adquiriu do Expresso Oeste do Paraná, de Cascavel, uma segunda linha
que passava por Foz e se prolongava até Escalada. As dificuldades eram
ainda maiores por haver trechos inteiros em obras no oeste paranaense. O
Batalhão de Engenharia do Exército estava fazendo a terraplenagem e a
preparação do piso para receber pavimentação asfáltica e, quando chovia,
virava tudo um lamaçal. A passagem se tornava impossível quando algum
caminhão atolava: os que vinham atrás iam parando e atolando também.
O ônibus da Sulamericana era a salvação deles, pois Octaviano Da Ros
ficara amigo dos engenheiros militares responsáveis pela obra e havia feito
um acordo com eles: custeava as despesas de dois tratores, cada um colo-
cado em uma ponta do trecho mais crítico. Os tratoristas sabiam a hora
aproximada em que o ônibus ia aparecer e ficavam a postos. Para o ônibus
passar, os tratores desencalhavam os caminhões. No fim, todo mundo se
beneficiava do acordo. Geralmente, a operação de resgate precisava ser
repetida à frente mais duas ou três vezes até que conseguissem superar as
áreas de atoleiro.
Essas dificuldades só deixaram de existir no fim da década de 1960,
com a inauguração da rodovia BR-277, no trecho entre Curitiba e Foz do
Iguaçu. O novo trecho possibilitou à Sulamericana estabelecer a ligação
entre São Paulo e Assunção, Paraguai, passando por Curitiba e Foz do
Iguaçu, num percurso de 1.500 quilômetros. Para operar na nova rodovia, a
Sulamericana utilizava ônibus semileito, de 40 lugares, com chassis Scania
Vabis encarroçados pela Nicola, e carros-leito de 17 lugares com carroceria
Nielson. Os veículos tinham ar-condicionado, som estéreo, serviço de bar
e toalete a bordo.
Todo esse conforto não podia sequer ser imaginado em 1959, quando
os atolamentos eram tão comuns. Certa vez, em Guarapuava, a 280 quilô-
metros de Curitiba, não havia trator para liberar um ônibus da Sulamericana
enterrado na lama. Uma passageira a bordo entrou em trabalho de parto e
o motorista se transformou em parteiro improvisado. Dentro do possível,
tudo correu bem. Era um atoleiro enorme e havia muita gente retida na
estrada, não só no ônibus da Sulamericana. Avisado, Da Ros alugou um
avião teco-teco, comprou alimentos que pudessem ser jogados do alto e
fez alguns voos rasantes sobre a estrada. Ninguém passou fome.
254
Gestos assim, de solidariedade espontânea e desinteressada, marca-
ram a vida de Octaviano Da Ros, conhecido como empresário criativo,
solidário e ético. Não era ingênuo, sabia zelar pelos interesses do seu
empreendimento, mas isso não o impedia de buscar aproximação com os
concorrentes e de enxergar os problemas também do ponto de vista dos
outros. Da Ros revelou alguns exemplos práticos desse tipo de atitude:
255
EM 1993, QUANDO Octaviano da Ros foi entrevistado por Rúbio de Barros
Gômara, a Sulamericana havia deixado de fazer transporte internacional.
Dedicava-se exclusivamente ao segmento intermunicipal e operava um
número reduzido de linhas. Na fase mais atuante da empresa, haviam
sido admitidos dois sócios. Depois, um deles morreu e o outro se desligou.
Na cisão, coube a Octaviano da Ros o mercado do sudoeste do Paraná.
Dentro da nova realidade, ele preferiu dar ênfase à atuação na área de
turismo. A companhia ficou mais enxuta, inclusive porque o mercado de
Foz do Iguaçu, que era um dos mais rentáveis da companhia, tornou-se
excessivamente competitivo pela entrada de grande quantidade de novos
concorrentes. Sem falar nos clandestinos, é claro. Ao despedirem-se, Da
Ros confessou a Rúbio:
Eu faria tudo de novo. Aquela foi uma vida que até hoje me dá muita
saudade. Me orgulho de dizer que fui um dos pioneiros.
256
Acervo Rúbio Gômara
Em 1961, foi iniciada a linha Paranaguá–Assunção, com ônibus Mercedes-Benz-Eliziário.
Ainda em 1961, foi aberta a linha O primeiro ônibus-leito a fazer uma rota
Curitiba–Assunção, também com entre capital e interior, em 1968, era um
Mercedes-Benz-Eliziário. Scania-Nielson Diplomata.
Octaviano da Ros
259
fumante, podia obter algum dinheiro vendendo aos colegas que fumavam
suas rações diárias de cigarros, fornecidas pelo Exército. A seguir, concluiu
que também podia comprar e revender as rações de cigarros dos colegas
que não fumavam. Os soldados que fumavam sabiam sempre com quem
arranjar uma ração extra.
Quando voltou a Cachoeiro de Itapemirim, essas economias foram
o ponto de partida para os primeiros negócios feitos por Camilo Cola no
ramo de compra e venda de caminhões. Curioso é que o ex-pracinha tenha
se iniciado no comércio de veículos exatamente com a mesma fórmula
bem-sucedida que havia praticado na Itália com os cigarros.
Em seu regresso ao Brasil, os pracinhas foram recebidos como heróis.
No clima de euforia e patriotismo que tomou conta do País, tanto pelo
retorno das tropas como pelo fim da guerra, alguém se lembrou de que,
além dos aplausos e discursos de exaltação aos seus feitos, os expedicionários
bem que mereciam ser recompensados materialmente. O ditador Getúlio
Vargas foi sensível ao argumento e decidiu premiar cada expedicionário
com o direito de importar um caminhão sem pagar os impostos aduaneiros
(somente uma década depois o Brasil estaria fabricando os seus próprios
caminhões). Imediatamente Camilo percebeu que isso lhe dava a chance
de movimentar suas economias e providenciou a importação do veículo
que lhe cabia. Quando o recebeu, livre e desembaraçado, em 1946, passou
a usá-lo no transporte de cargas na região de Venda Nova dos Imigrantes
e de Cachoeiro de Itapemirim — também uma forma de exibir o veículo
zero quilômetro. Bom negociante, não demorou a passá-lo adiante, ao
preço do mercado, sendo o lucro a diferença correspondente à isenção
dos impostos aduaneiros. Com o dinheiro na mão, procurou outros ex-
-pracinhas e exortou-os a aproveitar o benefício do decreto presidencial.
Prontificava-se a fazer o encaminhamento da papelada de importação, em
troca do direito de comercializar o veículo. A diferença entre o preço de
mercado e o preço de custo do caminhão livre de impostos era dividida
entre os sócios. “Em 1946 e 1947, fiz várias viagens a Porto Alegre para
vender caminhão”, recordou Camilo Cola.
O negócio não foi uma inspiração ditada pelo acaso. Camilo Cola
tinha certa familiaridade com o ramo. Nascido em Venda Nova dos Imi-
grantes, aos 15 anos viera tentar encontrar trabalho em Cachoeiro de
260
Itapemrim, distante 75 quilômetros. Acabou achando colocação em uma
agência da Ford, a Vivacqua & Vieira.
Em seu depoimento a Rúbio Gômara, Camilo Cola atribuiu exclu-
sivamente ao acaso o fato de haver se tornado empresário do transporte
rodoviário de passageiros:
261
A maior empresa da época aqui na região era a do Arcelino Ramos,
que, com muito sacrifício, fazia Cachoeiro de Itapemirim à capital do Estado.
Passava em duas balsas, uma no rio Beneveti, que deve estar em Anchieta.
Na Baía de Guarapari tinha outra balsa. Na época, Cachoeiro–Vitória era
feita com seis, sete horas de viagem. Hoje se faz em duas horas. A Empresa
Ramos também foi absorvida pela Itapemirim.
262
EM 1965, A FROTA já chegava a 70 ônibus quando se realizou a concor-
rência da linha Vitória–Belo Horizonte. A Itapemirim participou e saiu
vencedora. Outro passo importante no processo de expansão foi a compra
da Expresso Salvador, em 1968, que possibilitou a operação da linha Rio
de Janeiro–Salvador e a chegada à região sul da Bahia. O negócio projetou
definitivamente a Itapemirim no cenário nacional do transporte rodoviário
de passageiros. Quando veio a oportunidade de comprar a linha Rio de
Janeiro–Brasília — até ali explorada em caráter provisório pelo empresário
Francisco de Oliveira Rocha —, ela estava em condições de dar outro passo
de grande repercussão nos seus negócios. Um detalhe é que, depois de
formalizada a compra, o DNER colocou a linha em licitação, justamente
baseado no fato de que a exploração ainda era feita em caráter precário.
Foi preciso ir à Justiça para os direitos da Itapemirim serem reconhecidos.
Helsio Pinheiro Cordeiro, diretor da companhia, relembrou a chegada da
empresa à capital federal:
263
Data desse período a ideia de Camilo Cola de implantar pontos de
apoio ao longo das linhas de maior porte. Inicialmente, eles foram adotados
nas linhas para Salvador e Brasília. Distribuídos a distâncias estratégicas,
para que nenhum ônibus com problemas mecânicos ficasse sem socorro
por mais de um tempo determinado, os pontos de apoio ofereciam quase
todos os serviços de que os passageiros e veículos dispõem nos dias de hoje.
Em 1971, quando o DNER introduziu o primeiro Regulamento para os
serviços interestaduais e internacionais, lá estava, prevista em detalhes, a
obrigatoriedade dos pontos de apoio, exatamente como idealizados pela
Viação Itapemirim.
Ficava cada vez mais evidente que era a hora de investir mais nas
linhas interestaduais e passar adiante as regionais operadas no norte do
Espírito Santo. Foram negociadas com a Viação Águia Branca. Ao mesmo
tempo, a companhia adquiriu da pernambucana Auto Viação Progresso
suas duas linhas para o sul do País, Recife–Rio de Janeiro e Recife–São
Paulo. Quase simultaneamente, comprou a empresa Planalto (Campina
Grande–São Paulo via Rio de Janeiro), a Nordestina, a Nossa Senhora de
Fátima (João Pessoa–Rio de Janeiro, Guarabira–Rio de Janeiro e Guarabi-
ra–São Paulo) e a Nacional de Luxo (Campina Grande–Rio de Janeiro),
todas empresas nordestinas. Em seguida, foram compradas Caririense,
Princesa do Agreste, Expresso Teresina e Expresso Fortaleza. E depois,
ainda, a linha Aracaju–São Paulo.
Finalmente, obteve em concorrência pública a linha Rio de Janeiro–
São Luís, numa disputa acirrada com a Empresa de Ônibus Nossa Senhora
da Penha, que já vinha operando ali provisoriamente, por convite do DNER.
264
Consumadas todas essas aquisições, somadas às vitórias em licitações,
a Itapemirim tornou-se responsável pela ligação do Rio de Janeiro e de São
Paulo a todo o Nordeste. Na direção do Sul, também foi conquistada em
concorrência pública a linha Rio de Janeiro–Porto Alegre.
Em termos de aquisições, a maior de todas as feitas pela Itapemi-
rim foi a compra da sua grande concorrente na licitação da linha Rio de
Janeiro–São Luís: a Penha, de Curitiba. Era então, sem nenhuma dúvida
ou contestação, uma das mais conceituadas transportadoras de passageiros
do País. Os entendimentos se prolongaram por cerca de seis meses. Como
a Penha tinha muitos acionistas, houve necessidade de várias negociações.
Além disso, para que o órgão autorizasse a transação, foi preciso repassar
a outras empresas algumas linhas como a Vitória da Conquista–Salvador,
ou até setores inteiros como os de Mafra e Itararé. A ousada compradora
teve de levantar pelo menos dois financiamentos, um no Banco Nacional,
de 10 bilhões de cruzeiros (a moeda da época), e outro numa operação
triangular com a Shell, deixando inclusive a impressão de que aquela dis-
tribuidora também estava participando da aquisição. Isso foi desmentido
por Camilo Cola no depoimento:
265
CONCLUÍDA A MONTAGEM da gigantesca malha que cobria o Nordeste,
boa parte do Sudeste e do Sul do País, a Itapemirim, como seria de prever,
passou a defrontar-se com alguns problemas operacionais e de logística. Uns,
aparentemente, de mais fácil solução, como o da inexistência de terminais
rodoviários adequados em boa parte das cidades servidas pelas linhas da
empresa. Os técnicos da Itapemirim começaram a pensar num meio-termo,
um projeto de posto rodoviário de implantação econômica que atendesse
às principais necessidades da operação das linhas. Os ônibus chegariam,
receberiam uma lavagem rápida antes de encostar, abasteceriam, teriam os
pneus calibrados etc. Daí, evoluiu-se para a criação da Arco, Apoio Rodo-
viário Coletivo — uma empresa que cuidaria da implantação dos postos,
os quais poderiam ser utilizados por outras empresas que se associassem
ao projeto. Vários postos rodoviários desse modelo foram implantados.
Outros problemas eram bem mais complexos, como, por exemplo, o das
comunicações.
Tornava-se absolutamente impossível administrar a enorme quanti-
dade de linhas e alternativas de rotas sem dispor de uma eficiente rede de
comunicação. O sistema telefônico era péssimo, as ligações interurbanas
exigiam horas de paciência para ser completadas. A saída foi instalar um
enorme e complexo serviço de rádiocomunicação, que passou a interligar
Cachoeiro de Itapemirim, Vitória, Rio de Janeiro, Campos, São Paulo, Belo
Horizonte, Governador Valadares, Brasília, Paracatu, Vitória da Conquista,
Jequié, Feira de Santana, Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, Campina
Grande, Caruaru, João Pessoa, Fortaleza, Teresina, Maracassumé, Petro-
lina e Belém do Pará. Como se vê, tudo tendia a ser grande na operação.
Evidentemente, o rádio não tinha a eficiência dos equipamentos de
hoje. Em comparação com a telefonia, porém, era a única solução. Com
ele, era possível falar melhor, pelo menos em determinados horários — das
3 horas da madrugada às 9 da manhã, por exemplo. De qualquer maneira,
as estações permaneciam 24 horas no ar.
Outro problema sério era a situação das estradas. Para se garantir
na operação de determinadas linhas, a empresa simplesmente tinha de
266
utilizar turmas próprias de conservação. Sem elas, dificilmente alguns
trechos dariam passagem aos ônibus. Em determinados lugares — na re-
gião de Caravelas, Bahia, por exemplo —, as estradas eram as mesmas que
tinham sido abertas por madeireiros, em sistema de arrastão. Haviam sido
utilizadas inicialmente para a retirada de madeira e depois praticamente
abandonadas. Só mais tarde as empresas de ônibus vieram atrás, enquanto
o poder público continuou ausente.
Vem dessa época outra inovação da Itapemirim que depois se universa-
lizou no sistema interestadual e internacional: a criação de pontos de apoio
para a troca de motoristas. Até então, quando se tratava de viagens longas
que exigiam revezamento de motoristas, era usual que estes embarcassem
todos juntos no ponto de partida. Obviamente, mesmo quando não esta-
vam ao volante, não conseguiam descansar direito. Com o novo esquema,
contando com instalações e dormitórios adequados, os profissionais tinham
melhores condições para o necessário repouso. Outra vantagem é que eles
podiam ser contratados em cada região e não precisavam deslocar-se além
de certa distância: em cada turno de serviço, voltavam para suas cidades
e suas famílias já no dia seguinte.
Embora o serviço leito não tenha sido criação da Itapemirim, ela deu
sua contribuição para aperfeiçoá-lo. Quando introduziu o serviço nas linhas
do sul da Bahia para o Nordeste, por exemplo, os motoristas — selecionados
entre os mais cuidadosos e habilidosos na condução — passaram a receber
treinamento específico. Ao dirigir, deviam evitar paradas bruscas, arranques
repentinos ou trancos na passagem de marchas. Enfim, deviam zelar para
que o sono dos passageiros não fosse prejudicado. Normalmente, os ônibus
leito chegavam mais silenciosamente aos pontos de parada, estacionavam
em áreas mais afastadas e depois partiam como tinham chegado.
Nos dias de hoje, quando a maioria das empresas utiliza sistemas
informatizados de controle da manutenção corretiva e preventiva, fica
difícil acreditar que, antes, os carros de uma frota não contavam com o
controle individualizado de suas condições mecânicas. A Itapemirim foi
pioneira na adoção de um sistema de fichas individuais para seus ônibus,
parecidas com as antigas fichas de controle de aeronaves. Para isso, criou
uma pasta de controle de manutenção, que era pendurada ao lado do mo-
torista, e que ainda hoje pode ser encontrada em cada veículo. Continha
267
um histórico da vida física do veículo — indicando inclusive o momento
programado para a substituição de determinadas peças ou componentes —,
além de alvarás, licenças e outros documentos. Ajudava a ganhar tempo e
eficiência sempre que se tornava necessário localizar um defeito mecânico
ou atender a uma abordagem da fiscalização.
Ao lado de algumas outras empresas de ponta, a Itapemirim foi das
primeiras a tirar proveito das vantagens da padronização da frota. A partir
da década de 1950, passou a concentrar suas aquisições de equipamentos e
insumos em uma pequena e seletiva quantidade de fornecedores. Foi ainda
mais longe na década de 1970, quando concluiu que — pelas dimensões
de sua frota e por suas necessidades específicas de carros mais confortáveis
(como os de três eixos) ou de maior lotação — já dispunha de escala para
produzir suas próprias carrocerias.
A fábrica foi montada em Cachoeiro de Itapemirim e produzia cerca
de 200 carrocerias por ano, para exclusiva utilização nas linhas da Itapemi-
rim. Com total autonomia, a encarroçadora da Itapemirim pôde lançar nesse
período algumas das mais importantes famílias de veículos de transporte
rodoviário de passageiros que já rodaram nas estradas brasileiras, entre elas
os vários modelos da série Tribus. Mas Camilo Cola já olhava à frente:
268
Fotos: Acervo Itapemirim
A importação e venda de caminhões (como o Ford 1946 da foto), facilitada pelo
governo aos ex-pracinhas da FEB, foi o ponto de partida de Camilo Cola.
O Starbus foi o
ônibus utilizado na
operação do
primeiro serviço
executivo do País.
Acervo Rúbio Gômara
271
Sua atividade, porém, foi afetada quando a Prefeitura do Rio de
Janeiro decidiu cassar as permissões concedidas em caráter precário aos
serviços de lotação. Como não dispunha de capital para montar um ne-
gócio só seu, teve de agregar seu único veículo à frota de uma empresa de
ônibus do bairro de Rocha Miranda. Esse também era um arranjo comum
na época, e lhe deu tempo e tranquilidade para reunir os recursos com
que, mais adiante, iria adquirir outros dois ônibus, igualmente agregados
à mesma empresa. O pendor de Jacob Barata para os negócios começou a
se revelar com clareza a partir daí. Sua capacidade de trabalho, também.
Permanecia ao volante durante todo o dia e em parte da noite. Exigia o
mesmo dos dois motoristas que dirigiam seus outros dois ônibus.
Jacob Barata nasceu em Belém, Pará, em 13 de agosto de 1932.
Seu pai era judeu e a mãe, católica. O casal foi sempre muito rígido na
educação e formação do filho. Na capital paraense, quando adolescente,
além de outros pequenos serviços, trabalhou em uma loja de discos. Mas
sempre pensou em viajar para o Rio de Janeiro, onde achava que iria en-
contrar melhores oportunidades. Fez a viagem tão logo juntou o dinheiro da
passagem. Estava com 18 anos. Como sabia dirigir e percebera a carência
de transporte coletivo nos bairros mais afastados da cidade, interessou-se
imediatamente pela solução representada pelos lotações.
Em 1955, decidiu desfazer-se de um dos seus três ônibus para juntar-
-se a dois sócios na criação de uma empresa chamada Viação Elisabete.
Cada sócio entrava com dois ônibus. A sociedade durou dois anos, após o
que, em 1957, Jacob Barata se sentiu forte o suficiente para montar uma
empresa só sua. Levava o nome de sua filha: Viação Rosane.
Nos 20 anos seguintes, empurrado por um verdadeiro deleite em ven-
der e comprar, Jacob Barata iria crescer muito no segmento de transporte
urbano de passageiros. Abraçaria também o setor de revenda de veículos
— sempre comprando e vendendo muitas empresas, e frequentemente tro-
cando uma pela outra, numa espécie de ciranda em que conseguia fazer as
frotas aumentarem continuamente. Tornou-se um dos grandes empresários
de ônibus da cidade do Rio de Janeiro. Repercutiu intensamente uma de
suas maiores aquisições, a da Viação Parapuanã, com mais de 100 carros
e linhas que ligavam, principalmente, a Ilha do Governador ao centro da
cidade. Avultaram, nesse período, algumas características marcantes de sua
272
personalidade como empresário: o gosto pelo risco calculado, a enorme
capacidade de trabalho, a habilidade para mobilizar e motivar pessoas.
Eurico Galhardi, um de seus colaboradores mais próximos, lembra
que Jacob Barata sempre soube pinçar no mercado os melhores profis-
sionais, dando a eles, posteriormente, a cada nova empresa que criava, a
oportunidade de se tornar seus sócios.
Naqueles tempos ele nem horários tinha. Saía cedo de casa, avan-
çava pela noite e não raro pela madrugada, acompanhava a rendição de
motoristas, conferia a féria, analisava as escalas. Com toda essa dedicação,
as compras e trocas sucessivas resultavam sempre em uma situação melhor
para cada novo estágio dos negócios.
Sua esposa e seus filhos se lembram de um domingo de 1965 em
que colocou todos no carro e, como de costume, saiu para dar uma volta.
Havia se desfeito há pouco da Viação Parapuanã e anunciara à família:
a partir dali, atuaria somente na revenda de automóveis, atividade que
podia ser exercida em horário mais restrito e previsível, e na qual, entre
outras vantagens, ficavam garantidos os fins de semana com a família.
Dona Glória estava satisfeita tanto pela redução da carga de trabalho
como pelos horários mais regulares para o marido. Naquele domingo,
porém, durante o passeio, Jacob Barata levou o carro até a garagem de
uma empresa chamada Viação Glória. Uma vez lá, convidou a mulher e
os filhos para conhecerem as instalações. Daí a pouco, timidamente, mas
feliz, anunciou que havia acabado de comprar aquela empresa. Quem
relata é a filha Rosane, integrante da diretoria da holding que controla as
empresas da família:
Estava se arriscando mais uma vez, porém esse era o seu estilo.
Sempre que Dona Glória ficava aborrecida por ele ter feito uma dívida,
justificava: “Se eu não arriscar, se não fizer dívidas, não vou crescer.”
273
Nas ocasiões em que o marido anunciava novas transações, Dona
Glória comentava com os filhos:
Toda vez que está tudo sob controle seu pai precisa arranjar uma
dívida. Ele não sabe ficar quieto.
A filha Rosane se lembra de que o pai gostava daquilo, era algo que
o estimulava. Nada o deixava mais satisfeito do que pegar uma empresa
desestruturada, corrigir o que estava errado, dar ênfase ao que estava certo
e, ao aparecerem os bons resultados, passar o negócio adiante. Terminada
a tarefa, quase imediatamente começava a procurar um novo desafio. Era
o caminho que escolhera para crescer.
A compra da empresa Citran foi sua primeira experiência no setor
rodoviário. Não deu muito certo, conforme relata Eurico Galhardi:
274
Além das empresas rodoviárias, o grupo Jacob Barata é dono de con-
cessionárias Mercedes-Benz que figuram entre as maiores revendedoras
de chassis de ônibus da marca. Dona Glória testemunha que o fundador
também gosta muito desse ramo, a ponto de envolver-se pessoalmente
em operações de venda: “Se ele vende dois ônibus, chega em casa feliz”.
Além disso, controla grande número de empresas de transporte ur-
bano de passageiros, inclusive algumas em Portugal. Também explora
hotelaria fora do Brasil. Suas empresas de ônibus operam nos estados do
Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Ceará, Pará, Paraíba, Piauí e no
Distrito Federal.
Já há muitos anos Jacob Barata tornou-se um empresário extrema-
mente bem-sucedido. Se quisesse, a qualquer momento poderia parar de
trabalhar. Mas tem gosto pelo que faz e simplesmente não está preocupado
em ganhar ou não ganhar mais dinheiro. Diariamente, continua marcando
presença no escritório central das empresas, onde é chamado de “Cabeça
Branca” pelos mais íntimos — alusão à sua experiência, sabedoria e, é
claro, aos cabelos totalmente embranquecidos. É conhecido como bom
conselheiro e gosta de receber os funcionários que o procuram, e de orientá-
-los nos momentos mais críticos. Não faz distinção entre os colaboradores
mais humildes e os mais altos executivos ou sócios.
O contato com os filhos é diário e reuniões mais demoradas são feitas
às sextas-feiras. Prefere estar com a família nos fins de semana e não fala de
negócios em casa. Não mantém vida social externa. Excetuados os filhos
Jacob, Rosane e David e os netos e bisnetos, é bem reduzido o círculo dos
que privam de sua casa. Mas fez grandes amizades ao longo da vida, ami-
gos de 40, 50, 60 anos. A eles, como também aos filhos, costuma ensinar:
275
Ele não é uma pessoa ambiciosa, no sentido de querer tudo só para
si. Cresceu, mas teve a preocupação e o cuidado de trazer muita gente para
crescer com ele. Para mim, esse é o grande mérito de Jacob como empresário.
276
Fotos: Acervo Grupo Jacob Barata
Anos 1950: o jovem empresário Jacob Barata (ao centro, de camisa branca) participa da
inauguração da sua linha urbana número 81, a primeira a ligar Padre Miguel ao centro
da cidade do Rio de Janeiro.
Divulgação
279
era feita em caminhão por Manfred e, em face da enorme dificuldade de
se conseguir peças de reposição, era imprescindível que o jovem soubesse
mecânica. Ele aprendeu na prática, e muito bem.
Algum tempo depois de a família desembarcar no Brasil e fixar-se
novamente em Santa Catarina, Manfred Stobäus comprou um ônibus em
sociedade com um tio, em 1950, passando a transportar passageiros. Estava
com 21 anos. Sua linha ligava a cidadezinha brasileira de Santa Rosa a
Porto Mauá, no Uruguai. Foi a primeira linha internacional de ônibus do
Brasil. Os conhecimentos de mecânica adquiridos por Manfred lhe seriam
de grande utilidade para garantir regularidade às viagens, já que na maior
parte do tempo o ônibus rodava no meio do mato, em estrada de terra:
dois sulcos entre a vegetação no trecho Tuparandi–Cinquentenário, cidade
dentro da colônia italiana, antes de chegar a Porto Mauá. A manutenção e
os reparos tinham de ser feitos à noite, em Porto Mauá ou em Santa Rosa.
Entrevistado por Rúbio Gômara em setembro de 1993, Manfred
Stobäus revelou que o Uruguai estivera presente em sua vida desde quan-
do ainda era muito jovem. Não era de se admirar, portanto, a escolha da
primeira linha. Logo em seguida, porém, em 1951, ele se juntou a um
sócio para criar a Expresso Azul, que tinha dois ônibus e atendia a linha
Taquari–Porto Alegre. Ao deixar essa empresa, em 1954, o jovem levava
70 mil cruzeiros e um ônibus.
No ano seguinte — considerado o ano de fundação da TTL — passou
a fazer excursões de Porto Alegre para Montevidéu, num ônibus modelo
“gostosão”. Acabaria casando-se com uma uruguaia. A essa altura já era
mais conhecido como Mani.
Em 1957, Mani registrou a Transporte e Turismo Ltda., já então
conhecida pela sigla TTL. Naquele tempo, siglas, abreviaturas e mesmo
nomes curtos de empresas não eram usuais no Brasil, embora fossem co-
muns no Uruguai. “Copiei a moda de lá”, explicou.
Desde muito cedo a TTL tornou-se modelo de organização, de modo
que não foi difícil obter do Departamento Nacional de Estradas de Roda-
gem, em 1958, a autorização para operar a linha Porto Alegre–Montevidéu.
Recebeu o despacho número 1. Ou seja, foi a primeira linha internacio-
nal legalmente registrada junto ao DNER. Porém, sempre que falava no
assunto, Mani era cauteloso:
280
É a linha mais antiga registrada, mas tenho conhecimento de que o
seu Benoni, ex-sócio da Pluma, iniciou um serviço da Sulamericana, talvez
um pouco antes que o meu. Só não era um serviço legalizado pelas autorida-
des. Tenho conhecimento, mas não tenho certeza: a linha ligava Paranaguá
a Assunção, Paraguai. Às vezes, o ônibus levava três ou quatro dias para
chegar lá. Como em tantos outros lugares, não havia asfalto no Paraná, as
estradas eram todas de terra, aquela terra vermelha do Paraná.
281
por onde seus veículos trafegavam na maior parte do tempo das viagens
entre Porto Alegre e Montevidéu. Entre os transportadores, esses caminhos
eram conhecidos como Estrada do Inferno.
O primeiro ônibus utilizado pela Transporte Turismo Ltda. na linha
para Montevidéu foi um F-7. Algum tempo depois, Mani passou a usar um
F-600, com carroceria construída pela Eliziário. Mas a verdadeira novidade
tinha sido mandada vir dos Estados Unidos pelo jovem empreendedor: um
banheiro. Era uma espécie de armário de aço inoxidável, em peça única.
Incluía pia e vaso sanitário, e viera pela Varig, como encomenda.
Naquele tempo era fácil trazer. Usava-se nos Estados Unidos em lan-
chas, motor-home e talvez até em ônibus — explicou Mani.
282
No início, as viagens eram interrompidas em Bagé para o pernoite.
Mais tarde, com a liberação de uma estrada no Pântano Grande, o per-
noite acontecia em Melo, já dentro do Uruguai, fazendo-se a travessia da
fronteira em Aceguá. Somando-se as horas, totalizavam 26. Procurando
diminuí-las e tornar as viagens mais confortáveis, Mani tentou várias alter-
nativas de caminho. Em 1964, depois de passar por Bagé e pela fronteira
em Aceguá, pulou para Jaguarão e Rio Branco, do lado uruguaio. Com
mesma preocupação do conforto, e à base de muita ousadia, inaugurou
no mesmo ano também o serviço de ônibus-leito.
Fez o trajeto por Jaguarão e Rio Branco durante aproximadamente
um ano. Em 1965, começou a usar a verdadeira estrada prevista na auto-
rização, que passava por Chuí.
Era uma estrada não de terra, mas de barro, muito barro. Tanto que
para cobrir os 200 quilômetros da Quinta até o Chuí, na fronteira, levávamos
de seis a oito horas, às vezes uma noite inteira. Sempre pelo trilho de barro.
Foram anos e anos de trabalho e sofrimento.
283
entendimentos com Mani para aquisição do controle da própria TTL. O
fundador concordou em negociar mais 35% das cotas e reteve apenas 15%.
Como parte do acordo, permaneceu à frente da empresa.
Em certa ocasião, Mani foi convidado para visitar a matriz sueca
da Scania Vabis, na Suécia, além de outras indústrias automotivas. Seus
anfitriões não esconderam o interesse por sua experiência com ônibus e
transporte de passageiros.
Avanços importantes se registraram na década de 1970, com a abertura
da linha direta entre São Paulo e Montevidéu (1976). No ano seguinte,
a TTL passou a operar a ligação entre Porto Alegre, Foz de Iguaçu e As-
sunção. Posteriormente, foram instaladas filiais da empresa em São Paulo,
Santa Catarina e Montevidéu.
Manfred e Otto Stobäus sempre foram perfeccionistas e haviam feito
da TLL uma referência em transporte internacional por ônibus. Nunca
se interessaram em crescer muito. Como a TTL só fazia linhas interna-
cionais, achavam prudente manter a empresa no tamanho adequado ao
mercado da zona de fronteira, muito sujeito às variações das estações do
ano, agravadas pelas frequentes valorizações e desvalorizações das moedas
dos países da região. Em compensação, os dois sempre se empenharam
em introduzir nos seus serviços, bem como nos ônibus e na administração
do negócio, todas as inovações e avanços possíveis. Um exemplo é o fato
de que os ônibus da TTL entre Montevidéu e Porto Alegre, ou São Paulo,
sempre contaram com o trabalho de comissárias de bordo — as azafatas,
como são chamadas no Uruguai.
Sabiamente, a Unesul fez questão da presença de Mani e de seu
irmão Otto Stobäus à frente da empresa, até como forma de assegurar-se
de que a tradição de qualidade seria mantida e sempre melhorada.
Manfred Stobäus trabalhou na TTL quase até sua morte, aos 74 anos,
em setembro de 2004. Seu irmão Otto Stobäus, que o acompanhava desde
a fundação, em 1955, continuou na direção da empresa. A TTL continuou
fazendo parte do Grupo Unesul e manteve fielmente a tradicional política
de qualidade dos serviços implantada pelo criador.
284
A primeira
jardineira, em
1950, foi montada
sobre um Ford
1938. A carroceria
era de madeira
e comportava 28
passageiros.
O jovem Manfred
(à esquerda) era o
dono e o motorista.
Sua vida sempre esteve
ligada ao Uruguai.
Acabaria casando-se com
uma uruguaia.
Fotos: Acervo Manfred Stobäus
Na linha para o Uruguai, Manfred Stobäus também introduziu os carros leito. Este tinha
chassi Scania e carroceria Nicola.
VIAÇÃO MINUANO
JÚLIO ZAMBERLAN
1959
Nosso maior problema depois das estradas, e para surpresa nossa, foi a
insuficiente tarifa concedida pelo DNER. De acordo com os nossos cálculos,
287
era insuficiente para podermos continuar e ampliar a empresa. Uma tarifa
muito menor do que a gente esperava.
288
QUANDO FORAM LANÇADOS no mercado brasileiro os primeiros chassis
pesados, ainda parcialmente importados, a Minuano decidiu experimentá-
-los. Adquiriu dois, apesar das dúvidas sobre a manutenção. Tudo correu
normalmente e eles partiram para a nova realidade: a partir dali, encarro-
çamento, escolha da encarroçadora e obtenção da aprovação do DNER
para os novos carros eram tarefas de responsabilidade do compradores.
Os dois ônibus receberam os números 17 e 18 na frota. De acordo
com o testemunho de Júlio Zamberlan, com os novos veículos, muito
mais adequados à operação de longa distância, a Minuano efetivamente
iniciou uma nova fase, de maior produtividade, eficiência e pontualidade.
Enquanto isso, uma empreiteira levou o asfalto de Rio Negro a Curitiba.
A companhia decidiu comprar mais dez unidades do novo chassi.
A ideia de lançar um carro leito surgiu em 1953. Ainda não existiam
poltronas-leito, precisavam ser criadas. Uma noite, Júlio Zamberlan e Seu
Bianchi ficaram até mais tarde na garagem da empresa, na Cristóvão Co-
lombo, tentando construir um modelo em madeira compensada. Fizeram
várias tentativas, que geralmente esbarravam no problema da inclinação
das pernas. Terminaram encontrando a solução, imediatamente levada à
encarroçadora Eliziário, que aperfeiçoou o modelo e construiu poltronas
suficientes para equipar um carro. Estava surgindo o carro leito — ainda
meio rudimentar, mas já em condições de ser oferecido como novo serviço.
Outra intervenção nos ônibus foi feita com o aumento da capacidade
dos tanques de combustível. A Minuano já tinha garagem em São Paulo
e, com um tanque de maior capacidade, tornou-se possível fazer toda a
viagem de Porto Alegre à capital paulista sem reabastecimento.
Depois, atacaram o problema da comunicação. Estações de rádio
foram instaladas nas praças mais importantes, como Porto Alegre, San-
ta Maria, Pelotas, Vacaria e Curitiba. A seguir, 11 equipamentos foram
instalados em ônibus, para funcionar como estações móveis. A garagem
construída em Vacaria, ao lado de um restaurante famoso, foi equipada
com carro-socorro.
A companhia também teve passagens mais dramáticas. Certa oca-
sião houve uma grande queda de barreiras nas imediações de Caxias do
Sul, interrompendo a passagem de veículos. A Minuano imediatamente
mandou para lá uma turma de trabalhadores com a missão de construir
289
uma estrada precária, margeando o asfalto, para que o tráfego pudesse ser
restabelecido. De outra feita, a ponte sobre o Rio Pelotas desabou. Para
esse caso não havia solução privada e foi preciso esperar 25 dias até que
fosse restabelecida a passagem. A empresa sofreu forte perda de receita e
o dinheiro das passagens já vendidas foi devolvido aos compradores.
Durante 13 anos, de 1958 a 1971, a Minuano foi uma empresa es-
tritamente familiar, tocada por apenas dois sócios. A forma de gestão era
peculiar e um tanto precária, já que tudo, obrigatoriamente, tinha de passar
pelas mãos de ambos. A carga de trabalho sobre eles era enorme e isso
provavelmente afetou a saúde de “Seu” Bianchi. Ele sofreu uma ameaça
de derrame cerebral e viajou à Alemanha para tratamento.
Praticamente na mesma época, a Minuano pediu ao DNER au-
torização para lançar uma nova linha para Curitiba, a ser operada pela
BR-101, ou seja, pelo litoral. Todos os testes, aferições e cronometragens
foram realizados. Também foi feita uma viagem experimental no percurso
o
alternativo, transportando alguns funcionários do 10 Distrito Rodoviário,
com a finalidade de demonstrar a viabilidade da nova rota. Pontos de parada
foram acertados e uma frota de dez ônibus novos estava em condições de
iniciar a linha imediatamente.
A Diretoria de Transportes de Passageiros negou o pedido.
Os dois fatos — a doença de Humberto Bianchi e a negativa do
DNER — atingiram profundamente a Minuano. A empresa estava bem,
financeiramente e no aspecto operacional. Tinha ótimo conceito no setor e,
apesar do sacrifício pessoal imposto aos dois sócios, continuava oferecendo
um serviço de alta qualidade. Porém, diante das dificuldades, os dois sócios
se deixaram abater. Em 1972, decidiram aceitar a proposta de compra feita
pelos irmãos Piccoli, da Empresa de Ônibus Nossa Senhora da Penha.
A aquisição pela Penha resultou na incorporação das linhas da Viação
Minuano nos primeiros anos da década de 1970, e a empresa foi extinta.
Em 1974, o gaúcho João Theobaldo Krás Borges decidiu fundar uma
transportadora de cargas com o nome Expresso Minuano. Como marca,
adotou exatamente o mesmo cavalinho que antes identificara os ônibus
da Viação Minuano.
290
Fotos: Acervo Júlio Zamberlan
Ainda com pintura da Empresa Bianchi, mas já usando a marca Minuano, um ônibus
da linha Porto Alegre–São Paulo é fotografado em frente ao estádio do Pacaembu, que
então era uma das referências da capital paulista.
Júlio Zamberlan
EMPRESA DE ÔNIBUS NOSSA SENHORA DA PENHA S. A.
WILSON JOSÉ PICCOLI
1960
293
Dois anos depois, pôde estabelecer a primeira linha de ônibus entre
as duas cidades, criando a Expresso Curitiba–Lages, mais tarde também
responsável pelas linhas Porto União–Curitiba e Mafra–Curitiba. Sua li-
nha talvez mais importante seria conseguida depois de três anos, quando
obteve a concessão da Curitiba–Porto Alegre. Em 1956, criou a Expresso
do Sul e, em seguida, a Expresso Piccoli.
O avanço prosseguiu em 1959, quando, em sociedade com seus ir-
mãos Martim, Saul e Ipenor, e os cunhados Eracildes Pio Almeida, Nery
Romualdo Thomé e Ivo Almeida, Wilson Piccoli adquiriu a Centauro S.
A., que operava a linha Rio de Janeiro–Porto Alegre.
Qualquer outro empresário se daria por satisfeito ao conseguir con-
cretizar tantos negócios e criar tantas alternativas em tão pouco tempo.
Mas não Wilson Piccoli. Um ano depois, ao lado de Saul, Martim, Ipenor,
Eracildes, Ivo, Nery e um novo sócio, Percy Schwind, ele desembarcaria
no negócio bem mais vultoso da compra da Empresa de Ônibus Nossa
Senhora da Penha — disposto, mais do que nunca, a construir um império.
A transportadora que deu origem à Empresa Nossa Senhora da Penha
chamava-se Empresas Reunidas São Paulo–Paraná, e fazia a linha São Pau-
lo–Curitiba. Também era detentora das linhas (inativas) Porto Alegre–Rio
de Janeiro — tida como a mais extensa da época —, Ponta Grossa–São
Paulo, Itararé–São Paulo e Apiaí–Ribeira–Capão Bonito–São Paulo. A sede
da empresa ficava na capital paulista. Ela havia surgido em 1948, mas a
péssima situação das estradas ao longo da rota forçou a interrupção dos
serviços e empurrou a empresa para a insolvência.
Em setembro de 1955, a Expresso Record Ltda., também de São
Paulo, interessou-se pela aquisição dos ônibus e da linha. Logo seria, do
mesmo modo, vitimada pelos caminhos absolutamente intransitáveis que
tornavam muito alto o custo de operação da rota.
Em 1957, o empresário Albertino de Castro Prestes, que mantinha
na cidade de São Paulo a firma individual Empresa de Ônibus Nossa
Senhora da Penha, assumiu o negócio. Conseguiu dar relativo equilíbrio
à operação, mas morreu em 1959, em acidente de avião. A viúva, Ana
Amélia de Galletti de Castro Prestes, tentou manter os serviços, mas em
pouco tempo percebeu que não teria condições de gerenciar tudo sozinha.
Aceitou então a proposta de compra feita por Wilson Piccoli e seus sócios
294
da Expresso Curitiba–Lages, ficando apenas com uma pequena partici-
pação na nova companhia. O nome foi conservado. Em 1961, a Empresa
Nossa Senhora da Penha passou a ser uma sociedade anônima e a sede foi
transferida para Curitiba.
Quando começara com a Rouxinol, em 1945, Piccoli tinha apenas
21 anos. Quando adquiriu a Nossa Senhora da Penha, mal chegara aos
36. Haviam sido 15 anos absolutamente intensos, profícuos, durante os
quais ele jamais perdeu uma única oportunidade para exercitar seu incrível
talento para os negócios e a assombrosa capacidade de impulsionar rapi-
damente cada novo empreendimento a que se lançava. Agora, não queria
parar. Não tinha como parar.
E, de fato, após a formalização da compra, feita em 13 de dezembro
de 1960, Wilson Piccoli precipitou a Penha em uma era de desenvolvi-
mento que ela jamais conhecera. Nominalmente, no momento da aqui-
sição, eram 19 ônibus, mas só oito estavam em condições de utilização.
A situação econômica e financeira também era péssima. Além da frota
envelhecida, havia só duas garagens, uma em Curitiba e outra em Lages,
Santa Catarina. Quanto às linhas, embora se dissesse que eram duas, na
realidade se limitavam à ligação entre Curitiba e São Paulo, via Estrada
da Ribeira, passando por Ribeira e Apiaí, no estado de São Paulo. A linha
número dois, Porto Alegre–Rio de Janeiro, jamais havia sido explorada.
Nas mãos de Wilson Piccoli e da Expresso Curitiba–Lages, de ime-
diato a Penha recebeu, por incorporação, outras duas empresas, de menor
porte. A compra de seis ônibus novos em substituição aos antigos FNM
ainda em operação permitiu implementar a linha Porto Alegre–Rio de Ja-
neiro, embora à custa de enormes dificuldades, principalmente por causa
das estradas precárias.
295
de bastidores, quiseram tirar proveito da situação. Ocorreu que a compra
da empresa havia sido feita num momento de transição de comando no
plano federal, em dezembro de 1960, quando chegava ao fim o governo
Juscelino Kubitschek. Seu mandato encerrou-se em 31 de janeiro de 1961,
quando assumiu Jânio Quadros. A inauguração da BR-2 estava marcada
para outubro (1961), mas em agosto Jânio renunciou, desencadeando um
processo de forte turbulência política.
Naquela altura, fazia dez meses que os novos controladores da Penha
vinham executando o serviço entre Curitiba e São Paulo, via Estrada da
Ribeira, tal como os antigos concessionários. A linha era direta, com tarifa
única, e não tinha seccionamentos. Obviamente, a empresa mantinha-se
atenta ao cronograma de construção da BR-2 e preparava-se para sua inau-
guração em breve. Providenciara o pedido de autorização para trafegar pela
nova rota, inclusive requerendo mais quatro horários além daqueles três.
Para completar, investira mais de 68 milhões de cruzeiros na aquisição de
novos ônibus com chassi Scania Vabis e carroceria Eliziário, alguns dos
quais dotados de sanitário, poltronas reclináveis pulmann e luz individual
de leitura.
Assim que a nova rodovia foi aberta ao tráfego, em outubro de 1961,
a Penha transferiu para lá sua linha para São Paulo. Na primeira viagem,
os 400 quilômetros entre as duas capitais, agora passando por Registro,
foram cobertos em sete horas e meia de viagem. Um assombro, já que, até
então, passando-se por Ribeira, Apiaí e Capão Bonito, sempre em estrada
de terra, a viagem durava mais ou menos quatorze horas e meia.
Em 1993, o sócio Eracildes Pio Almeida comentou com Rúbio Gô-
mara que, quando a linha era pela Ribeira, só a Penha fazia. Quando veio
o asfalto, recebeu autorização para fazer mais quatro horários, chegando
a sete. Só que também foram contempladas duas fortes concorrentes, a
Boscatur (depois Pluma) e a Cometa, que receberam cinco horários cada.
A Penha não foi consultada sobre sua capacidade de atender sozinha à
demanda da linha pelo asfalto.
296
Ficamos vários meses trafegando na Régis Bittencourt sem concorrência,
como acontecia quando fazíamos a linha na estrada antiga. Mas depois
da renúncia de Jânio, voltou ao Ministério da Fazenda a antiga equipe
que tinha deixado o governo, e foi cassado o mandado de segurança que
tínhamos conseguido. A Penha apelou, o mandado foi bater no Supremo,
em Brasília, e lá perdemos por 7 votos a 2. No dia seguinte os concorrentes
voltaram a trafegar na Régis Bittencourt — recordou Eracildes Almeida.
297
Paulo, por onde passava a maior parte das linhas vindas do Sul, nosso trei-
namento chegou ao ponto de orientarmos o profissional até sobre a marcha
que deveria usar em cada trecho da serra.
298
instalando garagens e oficinas próprias e construindo, em Curitiba, a sede
central de operações, com área coberta de 16.000 metros quadrados. Como
na época as comunicações por telefone eram difíceis e não confiáveis, Wil-
son Piccoli instalou um eficiente serviço de rádio, com 14 estações VHF
e dez estações SSB, além de nove canais de telex. A qualquer momento,
podia alcançar instantaneamente as unidades do Rio de Janeiro, São Paulo,
Curitiba, Joinville, Florianópolis e Porto Alegre.
Entre 1963 e 1964, foi incorporado o Rápido Sul Brasileiro, que
explorava linhas em Santa Catarina (Florianópolis, Itajaí, Joinville, Blu-
menau). Também em 1964, marcando o reinício da sua expansão vertical,
a Penha passou a operar as linhas Porto Alegre–Blumenau, Porto Alegre–
Rio de Janeiro e Curitiba–Brusque. No mesmo ano, comprou a Empresa
Centauro e a tradicional Empresa Auto Viação Catarinense, de Blumenau,
a segunda maior do Estado, e a Wogel Sanger, de São Francisco do Sul e
Enseada, que fazia as linhas Joinville e São Francisco do Sul.
Em 1965, foi iniciada a linha Pelotas–Rio de Janeiro. A essa altura,
a Penha já tinha ônibus-leito em várias de suas outras linhas. Em seguida,
fez funcionar as linhas Florianópolis–Rio e Florianópolis–São Paulo, além
de Rio do Sul–Curitiba — esta em 1966. Em 1968, deu importante passo
ao assumir o controle acionário da Viação Real Bahia de Ônibus, que man-
tinha várias linhas domésticas em território baiano, como Salvador–Feira
de Santana, Salvador–Jequié e Salvador–Vitória da Conquista. Também
era sua a linha Salvador–Rio de Janeiro.
O último grande passo foi dado em abril de 1972, quando a Penha
assumiu o controle acionário da gaúcha Viação Minuano S. A., cuja prin-
cipal linha era a Porto Alegre–São Paulo. No setor de transporte rodoviário
de passageiros, era voz corrente que essa era a melhor linha do Brasil, a
mais rentável. Wilson Piccoli confirmou:
299
toda a América Latina no segmento de transporte rodoviário de passageiros.
A extensão das linhas foi ampliada para 25.000 quilômetros. A aquisição
ainda teve outro grande significado para Wilson Piccoli: estava de volta ao
seu estado natal, de onde saíra 23 anos antes. A Penha era agora detentora
de 51 linhas, desde Pelotas até Salvador. O percurso diário se elevara para
120.000 quilômetros e seus ônibus passavam a ligar nada menos que oito
estados. Para tanto, mantinha oficinas próprias em Porto Alegre, Lages,
Joinville, Blumenau, Florianópolis, Curitiba, Ponta Grossa, Registro, Itararé,
São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Tubarão e Vacaria. Suas instalações
ocupavam 76.000 metros quadrados de área construída, e estava equipada
para executar qualquer serviço, inclusive reformas completas de ônibus.
300
Certa noite, o engenheiro Marcello Rangel Pestana, diretor-geral do
DNER, estava na rodoviária do Rio acompanhando algumas operações e
observou um carro da Penha embarcando os passageiros com destino a
Porto Alegre. Deu um ultimato: ou a Centauro providenciava mais carros,
ou o DNER suspendia a requisição para a linha Rio–São Paulo.
Rúbio Gômara teve participação nesse episódio. Era advogado da
Penha (da qual foi sócio e diretor em determinado período) e transmitiu
a Saul Piccoli o ultimato do engenheiro Marcello. Piccoli pediu a Rúbio
que explicasse as passageiras dificuldades da Centauro e confirmasse o in-
teresse em continuar operando na Rio–São Paulo, mas não por requisição.
Queria a garantia da linha para poder investir na compra de mais carros.
Marcello Rangel Pestana não concordou. Suspendeu a requisição
e chamou a Cidade do Aço, que também impôs uma condição: precisava
de uma licença de importação para trazer ônibus norte-americanos, iguais
aos da Viação Cometa, para poder concorrer de igual para igual com as
outras duas. Novamente o diretor da Divisão de Passageiros disse não e
transmitiu o convite à Única, que aceitou a requisição, operou com ônibus
nacionais e, posteriormente, obteve a garantia da linha.
Quarenta anos depois, Wilson Piccoli preferiu não comentar o epi-
sódio. Explicou apenas que as questões relacionadas ao poder concedente
eram conduzidas por seu irmão, Saul. Uma das maiores operadoras bra-
sileiras havia deixado passar a oportunidade de explorar — ainda que em
conjunto com outras duas — uma das melhores linhas interestaduais do
Brasil. Paulo Roberto Piccoli justificou, sem esconder certo arrependimento:
301
Foi no caso da Rio de Janeiro–São Luís. Como a linha estava sem
uma empresa titular, houve requisição do DNER para a Penha fazer, em
caráter precaríssimo. Assinamos um termo em que reconhecíamos isso. Na
época já havia a decisão do governo de implantar novas linhas interestaduais
por meio de seleção pública, ou concorrência pública. A Penha executaria
o serviço até que se elaborasse o edital e se realizasse a concorrência para
escolha da empresa titular. A Penha fez a linha, creio, por mais de um ano
e sabíamos que aquele termo assinado por nós gerava direitos — recordou
Ivo Almeida em 1993.
302
EM DEZEMBRO DE 1973, muita gente no setor se perguntou se fa-
tos como a divisão por três da linha Curitiba–São Paulo, a oportunidade
perdida de operar na Via Dutra e a concorrência mal-resolvida da Rio de
Janeiro–São Luís contribuíram para quebrar um pouco do ímpeto e do
dinamismo do empresário Wilson Piccoli. Não há indícios de que o próprio
Piccoli tenha dado resposta cabal a essa interrogação.
O fato é que, exatamente 13 anos depois de haver comprado a pe-
quena Empresa de Ônibus Nossa Senhora da Penha, e de ter dado a ela
o melhor de suas energias, Wilson Piccoli aceitou a oferta do empresário
Camilo Cola e vendeu a ele a grande Empresa de Ônibus Nossa Senhora
da Penha. Na história do transporte rodoviário interestadual de passageiros
do País, poucas transações terão sido tão surpreendentes quanto essa. De
repente, era como se o empresário Wilson Piccoli houvesse se desencantado
por completo com a atividade que havia exercido durante toda sua vida.
Vinte anos depois, perguntado por Rúbio Gômara, ele não disse que
sim, nem que não. Preferiu não revelar qual teria sido a razão fundamental
que levara o grupo a se desfazer da empresa. Pareceu interessado em mudar
de assunto e fez apenas um breve comentário:
Houve uns sócios que queriam sair do ramo. Queriam vender a parte
deles — ou eu ia vender a minha parte. No fim, nós, reunidos, resolvemos
vender tudo junto. Cada um foi ter a sua atividade particular.
303
Devido ao crescimento contínuo, a empresa jamais chegou a ter uma
reserva de caixa. Com o descontentamento de alguns, e não havendo dinheiro,
já que tudo era reinvestido na empresa, na construção de novas garagens, na
aquisição de novos ônibus, ocorreu um desgaste, já que se tornava necessário
ceder braços da empresa a sócios que estavam saindo. A primeira perda sig-
nificativa, importante, foi justamente a da Auto Viação Catarinense para
os sócios Martim Piccoli e Percy Schwind, isso aproximadamente em 1969.
Dois anos depois, desligou-se o sócio Saul Piccoli, que por sua vez saiu com
os 50% que a Penha detinha na Pluma. Vê-se então que a venda do grupo
foi, na verdade, o fim de um processo de desmembramento iniciado quatro,
cinco anos antes. Ainda houve um crescimento de fato, que foi a compra da
Viação Minuano, com uma única linha ligando Porto Alegre a São Paulo,
mas uma linha com cem ônibus.
304
Fotos: Acervo Rúbio Gômara
Wilson Piccoli (no centro) era especialmente habilidoso para formar equipes e não
hesitava em trabalhar com muitos sócios. Mas sempre como majoritário.
Acervo Scania
Nosso motorista esperou para ver o que acontecia; quando percebeu que
não poderia mesmo passar, achou prudente dar uma longa volta, passando
por Três Rios e depois por Petrópolis para tomar o caminho do Rio. Perdeu
com isso várias horas. Havia saído de Aparecida às 7 horas da manhã e só
no dia seguinte, também às 7 horas, conseguiu completar a viagem. Além
da tensão, os passageiros tiveram de ficar várias horas sem comer — narrou
a Rúbio Gômara um dos sócios da empresa, Isaac Sampaio.
307
Para o pessoal da Sampaio — como contaram Isaac Sampaio e seu
sócio Orlando Martini, em depoimento para este livro, gravado no dia 14
de setembro de 1994 —, foram muitas horas de apreensão pela falta de
notícias do ônibus da linha de Aparecida. Só sabiam que o veículo partira
desta última cidade às 7 horas da manhã e que, no momento em que as
quedas de barreiras começaram, deveria estar passando pela região da
serra. O trecho da estrada atingido ficou fechado por vários meses e só foi
reaberto no ano seguinte.
Mesmo sem ter vítimas a lamentar, a Sampaio jamais esqueceria
esse acontecimento, que era rememorado por Isaac Newton Sampaio e
Orlando Martini sempre que falavam dos tempos difíceis em que a em-
presa iniciou suas atividades. Isaac e Orlando haviam fundado a empresa
apenas três anos antes, em 25 de abril de 1963. O acidente na serra foi o
que de mais terrível aconteceu naquele período, mas a chuva, para eles,
fatalmente era sinônimo de dificuldades. Na linha Volta Redonda–Angra
dos Reis, por exemplo, a estrada era uma armadilha, principalmente quando
chovia. Os ônibus inevitavelmente atolavam na descida da serra e tinham
de ser resgatados por trator. Nem por isso os dois sócios pensaram alguma
vez em desistir.
308
TANTO ISAAC NEWTON Sampaio como Orlando Martini procediam
da zona rural de Barra Mansa, onde o pai de Isaac tinha uma fazenda.
Ainda bem jovem, Isaac resolveu viver em Barra Mansa, onde abriu um
bar, no tempo da guerra. Mais ou menos nessa época, inspirado pelo
grande movimento de gente que chegava de todas as partes do País com a
intenção de trabalhar nas obras de implantação da Companhia Siderúrgica
Nacional, Isaac começou a pensar na possibilidade de fazer transporte de
passageiros. Pouco depois, juntamente com o amigo Orlando, comprou
uma empresa chamada Viação Falcão, que fazia o trecho que ligava Minas
Gerais a Barra Mansa. Operavam com um único ônibus, um dos primeiros
do tipo monobloco, modelo O 321 Mercedes-Benz. Veio a oportunidade
de iniciarem uma linha de lotação e eles trabalharam nisso durante cinco
anos. Transportavam passageiros entre Barra Mansa e Volta Redonda. Pos-
teriormente, de 1957 a 1962, operaram o mesmo serviço com a Viação Sul
Fluminense e a Viação Volta Redonda, empresas do pioneiro do transporte
rodoviário na região, José de Matos.
Compraram então as duas linhas da Cidade do Aço. Agora, os ôni-
bus eram da marca Volvo, com carroceria Carbrasa. Haviam pertencido
inicialmente à Empresa Pássaro Marron, tendo sido mais tarde repassados
ao empresário Geraldo Ozório Rodrigues, que por sua vez os incluíra na
transação que deu origem à Sampaio. Mais tarde, Isaac e Orlando voltaram
a utilizar versões modernas dos monoblocos Mercedes-Benz.
De modo geral, a atividade evoluiu bem e, aos poucos, eles puderam
aumentar a frota. Mas houve também alguns insucessos, caso por exem-
plo da linha que abriram para Itajubá, Minas Gerais. Parecia promissora,
mas logo se mostrou pouco produtiva pela escassez de passageiros, pois,
como as obras da siderúrgica já iam adiantadas, o fluxo de pessoas para
Barra Mansa e Volta Redonda começara a diminuir. Mas a Viação Cometa
tinha interesse na linha e ela foi negociada. A linha para Angra dos Reis,
ainda feita em estrada de péssima qualidade, foi repassada à Empresa
Viação Angrense, a Eval. Em compensação, a Sampaio estabeleceu uma
linha para São José dos Campos, que posteriormente seria prolongada até
309
Jacareí. Começou com dois horários, que foram aumentando até chegar
a nove por dia.
A linha Barra Mansa–Aparecida do Norte também ajudaria a marcar
a história da Sampaio. Até então, seus passageiros de Barra Mansa que
demandavam Aparecida eram transportados até a Churrascaria Santo An-
tônio, à margem da Via Dutra, e em seguida embarcados em um segundo
ônibus, procedente do Rio, para Aparecida. Quando o movimento aumen-
tou muito, a Sampaio criou uma segunda empresa, chamada Viação São
Luiz, para fazer a linha direta Barra Mansa–Aparecida. Numa segunda fase,
a São Luiz foi incorporada à Sampaio. E numa terceira, foi novamente
desmembrada, passando a chamar-se Viação San Martin. A denominação
resultou da fusão dos nomes dos dois sócios, Sampaio e Martini.
Embora a sede continuasse em Barra Mansa, a Viação Sampaio pas-
saria a ligar a cidade do Rio de Janeiro a todo o lado paulista do Vale do
Paraíba. Seriam implantadas garagens em Aparecida do Norte, São José dos
Campos e Rio de Janeiro, além de um ponto de apoio em Resende (RJ).
A San Martin foi vendida ao grupo Viação Agulhas Negras–Trans-
portes Tupi, mas o dia consagrado a Nossa Senhora Aparecida — 12 de
outubro — jamais deixaria de fazer parte do calendário festivo anual da
Sampaio. Inclusive por ser o dia de maior movimento da empresa no ano.
Nossa Senhora Aparecida sempre foi considerada a “madrinha” do negócio.
Isaac Newton Pereira Sampaio morreu em dezembro de 2004. Foi
sucedido na direção da companhia por suas filhas Marina, Vera Lúcia e
Solange. O sócio Orlando Martini continuou firme nas funções de diretor
operacional.
310
Fotos: Acervo Viação Sampaio
Orlando Martini, um
dos dois fundadores da
Sampaio, tendo ao lado
Letícia Sampaio Kitagawa,
da terceira geração.
UNESUL DE TRANSPORTES LTDA.
AVELINO ANDREIS — DANILO ZAFFARI
1964
313
Erechim Danilo Zaffari, decidiram fundir três empresas sob uma nova
razão social. A história foi contada a Rúbio Gômara em setembro de 1993
por Avelino Andreis e João Lourenço Zaffari, os homens que nas décadas
seguintes à fusão viveram o dia a dia da nova empresa. Também partici-
pou da conversa Belmiro Zaffari, primo-irmão de Danilo Antônio Zaffari,
morto em 1971.
Melhor é que se conte tudo desde o começo.
Em 1937, João Lourenço Zaffari tinha apenas 10 anos de idade
quando seu pai comprou a primeira jardineira e, em sociedade com o irmão
Pedro, passou a transportar cargas e passageiros entre a localidade de São
Valentim e a cidade de Erechim, no Rio Grande do Sul. O itinerário era
de 60 quilômetros. João e Pedro eram italianos. Pedro cuidava da parte
comercial da empresa e João ia para a estrada. E pelo menos parte dessa
estrada ele conhecia muito bem, já que durante vários anos andara por
ali com uma carroça puxada a burro. Como carroceiro, ganhava a vida
transportando coisas de um lugar para outro.
Leão da Serra foi o primeiro nome da empresa e da linha. O único
ônibus da Leão não demorou a ir mais longe, abrindo outra linha, desta
vez entre Erechim e Porto Alegre. No jargão do transporte de passageiros
daquele tempo, João “furou” — isto é, entrou numa área geográfica onde
já atuavam outras empresas. Entre essas duas cidades, quando o tempo
era bom, a viagem, feita toda em estrada de terra, demorava de dois a três
dias. Com chuva, era preciso parar e, às vezes, esperar até por uma semana
em algum hotel do percurso, já que a estrada virtualmente sumia. Nos
primeiros tempos, João Lourenço, ainda menino, era o cobrador.
Passado mais algum tempo, a Leão da Serra “furou” de novo, desta
vez na direção de Chapecó, Santa Catarina. Agora, pai e filho punham a
jardineira na balsa, atravessavam para o outro lado do rio e enfrentavam
outro longo pedaço de estrada hostil. “Cansamos de fazer essa viagem”,
lembrou João Lourenço. A jardineira, construída em cima de um cami-
nhãozinho Ford 1938, a gasolina, era valente:
Naquele tempo era tudo gasolina. Pneu simples, não existia pneu
duplo. Depois, meu pai ainda enfrentou o gasogênio. Levantava-se às 4
horas da manhã para fazer o fogo. Eu e minha mãe ajudávamos a limpar
314
os filtros, esquentar tudo, meter o carvão. Gasolina, não se conseguia. Para
conseguir cinco litros, eu tinha de viajar até a prefeitura. Cinco litros! O
resto tinha de ser na base do gasogênio. Sempre me lembro daqueles tempos
quando digo que subimos a escada devagarinho — recordou João Lourenço.
315
é, mas comprei para fazer um acerto com você. Quero uma fusão. O meu
negócio de fato não é passageiro, é carga.” Aí nós começamos a desenvolver
um estudo, um projeto de fusão, e nisso tivemos a colaboração do pai do
Belmiro, Vitório Zaffari.
De início, não foi tão fácil quanto eles pensavam. E foi onde entrou
a figura de um conselheiro experiente:
316
ônibus equipados com correntes nos pneus. Trechos que mais tarde seriam
feitos em três ou quatro horas, naquele início do negócio chegavam a le-
var dias inteiros. Isso quando os veículos não quebravam e os passageiros
tinham de esperar pelo conserto, o que podia levar dias.
A fusão bem feita foi uma das razões para o sucesso da Unesul. Mas
houve outras, também muito importantes, como por exemplo a política
de reinvestir todos os ganhos na própria atividade-fim.
A Unesul, nesse seu longo curso de tempo, como bem disse o Belmiro,
além de não ter distribuído dividendos, não desvirtuou nenhuma aplicação,
toda ela foi dedicada à empresa ou a empresas afins. Nós não temos nenhum
investimento fora da nossa principal atividade, que é o transporte rodoviário
de passageiros, quer direto, quer indireto. Nossa atividade nesses longos anos
foi sempre voltada ao aprimoramento, ao melhoramento e ao crescimento
proporcional à capacidade da própria empresa.
317
os 50% de participação que a empresa tinha na TTL. E assim ficamos sócios
dela. Acontece que a TTL é uma empresa-modelo. Não é a maior, mas é a
melhor. Nasceu e viveu sob o carisma do perfeccionista Manfred Stobäus,
muito conhecido no setor como Mani. Aliás, uma coisa muito importante na
TTL, que é uma empresa de 32 ônibus, aproximadamente, é que ela nunca
se preocupou em crescer, mas sempre se preocupou em manter e melhorar a
qualidade. Acabou sendo a única empresa com serviço de bordo desde Mon-
tevidéu até São Paulo. E com comissária — a “azafata”, como se chama no
Uruguai. Portanto, tínhamos muito orgulho em ser sócios dela. Mais tarde,
adquirimos outros 35% da TTL e chegamos à participação de 85%. Não é
porque pertence à Unesul, mas não temos o menor receio de dizer que é a
melhor empresa do Brasil.
318
Consumada esta última transferência, a Unesul logo percebeu que,
pelas características mercadológicas ao longo do itinerário da linha Porto
Alegre–Assunção, tinha condições de proporcionar à TTL o necessário
apoio de infraestrutura no trecho Passo Fundo–Erechim e no trecho Me-
dianeira–Cascavel. Desse modo, a TTL continuou tocando a linha. Mas
depois, tendo em vista a característica do equipamento e a conveniência
da administração ao longo do itinerário de 1.383 quilômetros, na sua maior
parte de estradas de terra, a TTL achou melhor que a Unesul se encarre-
gasse da operação. Em 1979, já entrando em 1980, foi feita a transferência.
Manfred Stobäus continuou administrando a TTL mesmo depois
que a Unesul assumiu o controle total da empresa. Os controladores nun-
ca se cansaram de admirar sua criatividade e obsessão pela qualidade. A
certa altura, por exemplo, decidiu que os motoristas da TTL deveriam
saber espanhol para se comunicar melhor com os passageiros uruguaios.
E assim, o Centro Cultural Brasil-Espanha, em Porto Alegre, ganhou uma
turma de novos e aplicados alunos. Belmiro Zaffari comentou o assunto
com Rúbio Gômara:
319
Além da participação na TTL, a empresa também mantinha uma
companhia de táxi aéreo (chegou a dispor de uma frota de 12 aparelhos
Navajo). Havia ainda a Unesul Turismo, que se tornou a maior empresa
de turismo do Rio Grande do Sul. Data dessa época a construção das ga-
ragens de Erechim, Passo Fundo, Joaçaba, Cascavel, Torres, Santa Rosa,
Carazinho, Chapecó e Caxias do Sul. Foram implantadas várias linhas
intermunicipais no Paraná e em Santa Catarina.
Belmiro Zaffari tornou-se um observador privilegiado da evolução
da Unesul no tempo. Quando afirma ser um empresário que faz parte
“quase da terceira geração do transporte coletivo” é porque, na verdade,
teve uma carreira bem extensa antes de fixar-se no setor. Nascido em de-
zembro de 1938, em Erechim, formou-se em Engenharia Mecânica em
1964, exatamente o ano em que a Unesul brotou da fusão. Entrou para
o serviço público e trabalhou por quatro anos na Secretaria de Assuntos
Econômicos do governo federal. Mais tarde, trabalhou por dois anos como
engenheiro mecânico na Sudepe, Superintendência do Desenvolvimento
da Pesca. Voltou a Erechim e ficou lá até 1971, dedicando-se à venda de
tratores, além de caminhões Mercedes-Benz.
Em 1971, com a morte de Danilo Antônio Zaffari, seu primo-irmão
(que era um dos diretores da Unesul Transportes por indicação da Unetral
S. A.), Belmiro foi escolhido para substituí-lo. E foi assim que ingressou
para valer no setor de transporte rodoviário de passageiros.
A sede da Unesul está instalada em Porto Alegre. Para obter maior
agilidade nas decisões locais, foram estrutuadas duas agências regionais,
uma em Erechim e outra em Passo Fundo. Existem ainda 18 bases ope-
racionais estrategicamente situadas em cidades-chaves ao longo das rotas
atendidas pela companhia.
320
Fotos: Acervo Unesul
Ônibus da Unetral montado sobre chassi Scania. A carroceria era Eliziário.
19 de setembro de 1993:
diretores da Unesul
recebem Rúbio de Barros
Gômara em Porto Alegre.
Da esquerda para a
direita, João Lourenço
Zaffari, Belmiro Zaffari,
Rúbio e Avelino
Ângelo Andreis.
PLUMA CONFORTO E TURISMO
OSCAR CONTE
1965
323
Como eu era muito dinâmico, o Galioto achou que eu poderia vir
para Curitiba, dada a garra que eu vinha demonstrando. Eu carregava
comigo uma grande vontade de abandonar a pobreza e a miséria. A ideia
de superar a pobreza e as dificuldades sempre me perseguia. Nos tempos
em que eu ainda morava em Caxias do Sul, antes de servir o Exército, eu
tinha realmente passado muita fome e frio. Mas carregava comigo a ideia
de vencer, eu não tinha outra alternativa.
324
À medida que os carros novos iam entrando em operação, voltavam
os passageiros. Mas reequilibrar a situação financeira da empresa demorou
um pouco mais.
Os novos donos também não gostavam do nome Boscatur, que parecia
estranho para uma empresa de ônibus. Em fevereiro de 1966, acatando
sugestão do gerente Agostinho Kuster, Oscar Conte instituiu um concurso
de sugestões entre os funcionários. O autor da melhor sugestão receberia
um prêmio. O próprio Agostinho Kuster apresentou a sua: que a empresa
passasse a chamar-se Pluma, transmitindo a noção de conforto, leveza.
A ideia agradou à Administração, que acrescentou as palavras Conforto
e Turismo. Nasceu assim a Pluma Conforto e Turismo, que se tornaria
uma das grandes transportadoras de passageiros do País e levaria seu nome
também aos vizinhos Argentina, Paraguai e Uruguai.
Os anos seguintes seriam de aprendizado e acumulação de experiência
para os novos controladores, mas aprender e saber acumular experiência
eram traços vigorosos da personalidade de Oscar Conte, que impôs-se
naturalmente como o homem responsável, em grande parte, pelo rápido
desenvolvimento da companhia. Com o passar dos anos, ela teve um cres-
cimento espantoso e, segundo Oscar Conte, não foi preciso investir a não
ser os recursos gerados pela própria atividade.
Foi tudo gerado pelo próprio trabalho, pela nossa garra. As lutas fo-
ram aquelas já conhecidas de todo o sistema de transporte de passageiros, e
nelas eu me joguei com tudo. Além de enfrentar dificuldades internas com
divergências entre sócios, ainda tinha de comandar e enfrentar as brigas
com concorrentes, porque buscava para nossa empresa a defesa do mercado.
325
Grande do Sul. Separou-se para tentar ganhar a vida na cidade. Ele resumiu
para Rúbio Gômara essa parte de sua história:
Mas foi por pouco tempo. Duas semanas depois, decidiu sair de casa
para não ter de trabalhar na lavoura. Numa madrugada, cerca de 5 horas
da manhã, sem avisar ninguém, pegou uma sacola com alguma roupa,
pulou uma janela e foi embora. Andou uns 12 quilômetros, depois pegou
carona com um motorista de caminhão, que o levou até a rodoviária de
Bento Gonçalves.
326
problema, que era conseguir o dinheiro da passagem. Fiquei por ali, olhava
um colono, olhava outro, sem jeito de falar e acabei achando que quem podia
me ajudar era mesmo aquele primeiro, que já havia pago os pastéis. Voltei
a ele e pedi dinheiro para a passagem, ele continuou desconfiando de mim.
Chamou a mulher e disse: “Vai ali com ele e compra a passagem. Mas não
dê dinheiro.” Ela comprou e foi assim que consegui chegar a Caxias do Sul.
327
Era uma aventura que durava de 36 a 40 horas de cada vez. A estrada
era de terra pedregulhada em sua maior parte e os para-brisas estouravam
com frequência. Como proteção, era instalada uma grossa tela de arame
na frente do veículo, tal como era feito nos jipões militares. Além disso,
em alguns trechos havia a necessidade de transposição por balsa. Com
todas essas dificuldades e sem muito fôlego financeiro, a Expresso Porto
Alegre–Brasília não demorou a aproximar-se do momento da falência.
Apesar disso, quando foi sondado pela Pluma sobre a possibilidade de
vender a linha, Adelchi Rota recusou-se até mesmo a discutir a hipótese.
A companhia argentina que fazia a mesma linha em reciprocidade
chamava-se Expresso General Urquiza e também estava praticamente falida,
provavelmente devido às dificuldades da operação. Conte, sem condição
de negociar com Adelchi Rota, resolveu subverter as regras do jogo. Foi à
Argentina, comprou sem muita dificuldade a Expresso General Urquiza e
imediatamente pôs carros novos para rodar na linha, em agressiva concor-
rência com a Expresso Porto Alegre–Brasília. O empresário Adelchi Rota
desesperou-se. Desta vez foi ele quem procurou Conte para negociar. O
ex-contador da Galioto montou então toda uma estratégia para evitar qual-
quer possibilidade de perder a Expresso Porto Alegre–Brasília para outro
concorrente. Uma tarde, ali pelas 16 horas, juntamente com o advogado
Darcy Norte Rebelo, fechou-se com Rota em um escritório e, sem jantar,
sem lanche e sem descanso, submeteu-o a um bombardeio de argumentos
para que fosse baixando a pedida inicial, que havia sido considerada muito
alta. Rota capitulou depois da longa negociação, que se estendeu até as
seis da manhã do dia seguinte, quando o contrato foi finalmente assinado
e o vendedor se retirou exausto. Havia cedido a empresa para ser paga em
12 anos sem juros. Segundo Conte, quando tudo parecia sacramentado, às
9 horas o vendedor voltou, desesperado, ao escritório da Pluma, dizendo-
-se arrependido da transação. O prazo para pagamento foi mais uma vez
negociado e baixou para sete anos.
Assim, a Expresso Porto Alegre–Brasília foi incorporada à Pluma,
que imediatamente passou a movimentar-se junto ao poder concedente
para estender a linha até a cidade do Rio de Janeiro. Este era o seu verda-
deiro objetivo, pois era no Rio que estavam as praias preferidas dos turistas
argentinos na época.
328
O problema é que uma segunda empresa brasileira — a Penha, de
Curitiba — também estava interessada na rota. Outro obstáculo era um
desequilíbrio nas condições de reciprocidade: para autorizar a extensão, o
governo brasileiro teria de permitir o ingresso de uma companhia argen-
tina em 2.000 quilômetros do território brasileiro (da fronteira até o Rio
de Janeiro), enquanto a operadora brasileira só entraria 700 quilômetros
no território argentino (da fronteira a Buenos Aires). Foram necessárias
longas negociações entre os dois países e persistentes gestões da Pluma na
Divisão de Transportes de Passageiros e Cargas, do DNER, até que, em
1973, o prolongamento fosse finalmente autorizado. Nem por isso Os-
car Conte deixou de registrar, em seu depoimento a Rúbio Gômara, que
durante todo esse tempo a ideia do prolongamento da linha esbarrou na
oposição do diretor Salvador Schmidt, do setor de passageiros do DNER.
Ele teria afirmado que para a linha ser autorizada teriam de passar por
cima do cadáver dele.
329
exigia a justa compensação pelo uso de sua infraestrutura, na condição de
país transitado. Houve muita dificuldade, a gente conseguiu ir vencendo
uma a uma até que se implantou a linha Rio–Santiago do Chile.
330
Acervo Scania
No fim da década de 1960, a Pluma equipou sua frota com carrocerias Nielson montadas sobre chassis
Scania B 110, mais adequados à operação em longas distâncias.
Fotos: Acervo Rodonal
1001, Auto Viação. 50 anos de 1001 e uma breve história dos transportes.
Memória Viva Cultura, 1998
SILVA, Hélio. 1954, um tiro no coração. L & PM Pocket. Porto Alegre, 2007
333
BARROS GÔMARA, Antônio Rúbio. O transporte interestadual e interna-
cional de passageiros: um acrescentamento histórico. Edição ABRATI, 1999
334
ENTREVISTADOS
Agostinho Kuster
Informações sobre a Pluma e a Penha
03/05/1994
335
Francisco Sebastião Noel, Joaquim Sebastião Noel, Sérgio Noel
Viação Salutaris e Turismo S/A
14/01/1993
336
Júlio Zamberlan
Viação Minuano
15/09/1993
Odilon Santos
Viação Araguarina
Breve depoimento de próprio punho do empresário
Oscar Conte
Pluma Conforto e Turismo S/A
01/04/1993 e 04/05/1994
Otaviano Da Ros
Empresa Sulamericana de Transportes em Ônibus Ltda.
01/04/1993
Wilson Piccoli, Paulo Roberto Piccoli, Eracildes Pio Almeida, Ivo Almeida
Empresa de Ônibus Nossa Senhora da Penha
31/03/1993
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DOCUMENTAÇÃO/FONTES PESQUISADAS
Real Alagoas
Acervos Rodonal e ABRATI e publicação “Perfis pernambucanos 15”.
Viação Andorinha
Acervos Rodonal e ABRATI
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Viação Cometa
Jornal Correio da Manhã, edições de 14, 15 e 16 de janeiro de 1931—
Biblioteca Nacional — Rio de Janeiro; acervo ABRATI.
Viação Garcia
Acervos Rodonal e ABRATI; publicação “Aqui tem história”, da empresa.
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ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM ELECTRA PELA PLÁ COMUNICAÇÃO LTDA. (BRASÍLIA) E IMPRESSO EM OFSET
PELA ATHALAIA GRÁFICA E EDITORA SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT 80 GRAMAS DA SUZANO PARA A ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE TRANSPORTE TERRESTRE DE PASSAGEIROS — ABRATI — EM MAIO DE 2012.