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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

O PROFESSOR POLIVALENTE DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL DA

REDE MUNICIPAL DE NATAL/RN: TRABALHO, VIVÊNCIA E MEDIAÇÕES

Letícia Raboud Mascarenhas de Andrade

Natal

2017
Letícia Raboud Mascarenhas de Andrade

O PROFESSOR POLIVALENTE DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL DA

REDE MUNICIPAL DE NATAL/RN: TRABALHO, VIVÊNCIA E MEDIAÇÕES

Dissertação elaborada sob orientação do

Prof. Dr. Jorge Tarcísio da Rocha Falcão e

apresentada ao programa de Pós-Graduação

em Psicologia da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, como requisito parcial

à obtenção do título de Mestre em

Psicologia.

Natal

2017
iii

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN


Sistema de Bibliotecas – SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras
e Artes - CCHLA

Andrade, Letícia Raboud Mascarenhas de.


O professor polivalente dos anos iniciais do ensino fundamental da rede municipal de Natal/RN: trabalho,
vivência e mediações / Letícia Raboud Mascarenhas de Andrade. - 2017.
201f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas Letras
e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2017.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Tarcísio da Rocha Falcão.

1. Trabalho docente. 2. Ensino fundamental. 3. Clínica da atividade. 4. Mediações. 5. Vivência. I. Falcão,


Jorge Tarcísio da Rocha. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9:373.3


iv
v

Epígrafe

“Por um lado, o herói da Pedagogia. Por outro, a

vítima, mal paga e sempre criticada. Falta o professor

normal, que trabalha para ganhar um salário e sustentar sua

família, que vive situações esgotantes e, também, prazeres

dos quais pouco fala, que se sente objeto de críticas, mas,

afinal de contas, orgulha-se do trabalho feito, que ensina

com rotinas provadas, mas, às vezes, abre parênteses

construtivistas.”

Bernard Charlot
vi

Dedicatória

Aos professores que através de suas lutas,

sofrimentos e realizações me ensinaram um pouco mais

sobre o que é ser professor no Brasil: os desafios, o

adoecimento, mas também o encanto encontrado nos

aprendizados cotidianos e a necessidade de construir

coletivos para cuidar da profissão e transformar as

condições de trabalho.
vii

Agradecimentos

Aos meus pais que me acompanham desde os primeiros passos e ao longo de toda a

caminhada ajudaram a construir um pensamento crítico, afetuoso e comprometido com um

mundo mais justo. Aos meus irmãos que estiveram sempre presentes nos bons e maus momentos

e com quem aprendi e aprendo pela convivência e afeto. Ao meu companheiro e amigo, Jaerton,

também professor, responsável por alguns dos insights que tive durante a construção do trabalho,

com quem dividi conversas, preocupações e que foi, em muitos momentos, um amparo. Aos

meus avós, com quem compartilho interesses e conversas sobre o tema da educação, histórico na

família. Aos tios e primos sempre presentes que tornaram a caminhada mais alegre.

Aos amigos extra Universidade que tornaram a jornada mais leve e alegre com encontros

felizes. Às minhas companheiras e amigas de curso, com quem compartilho e compartilhei

angústias, expectativas e conversas sobre a psicologia e seu papel na sociedade.

Aos meus “irmãos de orientação”, Joeder e Pedro, pelo companheirismo e mensagens de

suporte nos momentos de aperreio. Ao Núcleo Trabalho Desenvolvimento e Saúde pelos

encontros e debates enriquecedores ao longo do caminho, especialmente a Flávio pela

disponibilidade em ajudar, questionamentos, observações e dicas pertinentes para o

amadurecimento e reflexão sobre a pesquisa. Também a Miliana pela paciência, disponibilidade e

generosidade de ajudar pelo compartilhamento de sua experiência.

Ao Grupo de Pesquisa Marxismo e Educação, fundamental em minha trajetória enquanto

profissional e pesquisadora, de onde trago ensinamentos valiosos que me ajudaram a enxergar o

mundo de forma mais ampla e ver possibilidades de fazer dele um lugar melhor e mais justo.
viii

Especialmente a Oswaldo Yamamoto, Pablo, Felipe, Joyce, Andressa e Sarah que me acolheram

e apresentaram o grupo lá em 2011.

Ao professor Herculano pela disciplina “O método na abordagem histórico-cultural” que

trouxe reflexões essenciais para a construção dos fundamentos deste trabalho.

Aos leitores deste trabalho, de antemão, professora Daniela Anjos e professor Pablo

Seixas, pela disponibilidade e contribuições que, sem dúvidas, trarão à discussão.

Às professoras participantes da pesquisa que, ao longo do processo, demonstraram

disponibilidade e cederam um pouco de seu corrido tempo.

À Capes pela bolsa que permitiu o andamento da pesquisa em condições mais favoráveis.

À equipe da Escola Francesa de Natal, que permitiu que eu me aproximasse da profissão

docente e me ensinou através da valorização, cuidado e responsabilidade com que tratam a tarefa

educativa.

E, por fim, ao meu orientador, Jorge Falcão, pelas valiosíssimas oportunidades de

emancipação dos horizontes e enriquecimento. Pela abertura e confiança com que permitiu a

construção deste trabalho.

Muito obrigada!
ix

Sumário

Lista de Siglas xii

Resumo xiii

Abstract xv

1. Introdução 17

2. Capítulo 1 – Educação 26

2.2. Educação e humanização 26

2.3. Educação e sociedade 27

2.4. Educação no Brasil 32

2.4.1. Aspectos históricos: democratização da educação – universalização e qualidade 32

2.4.2. Políticas e implicações no trabalho docente 41

2.4.3. Ensino fundamental: anos iniciais 49

2.5. Contexto local 53

3. Capítulo 2 – Trabalho docente 57

3.1. Trabalho pedagógico e alienação 57

3.2. Trabalho docente, características e contradições 60

3.3. Trabalho docente e saúde 66

4. Capítulo 3 – Clínica da atividade e vivência 70

4.1. Clínica da atividade 70

4.2. Vivência 77

5. Método 80

5.1. 1ª Etapa 80

5.1.1. Amostra 80
x

5.1.2. Instrumentos 82

5.1.3. Procedimentos 84

5.1.4. Análise 85

5.2. 2ª Etapa 85

5.2.1 Participantes 85

5.2.2. Instrumento 86

5.2.3. Procedimentos 89

5.2.4. Análise 91

6. Resultados e discussão 92

6.1. Etapa I (quantitativa) 92

6.1.1. Questionário sócio-profissional 92

a) Aspectos sociodemográficos 92

b) Aspectos de formação 93

c) Aspectos ocupacionais 94

d) Aspectos pedagógicos e participativos 97

e) Cruzamentos e relações de dependência 100

6.1.2. Job content questionnaire ( JCQ) 105

a) Latitude de decisão 107

b) Demanda psicológica 109

c) Suporte social 111

d) Perfis psicossociais 112

e) Cruzamentos e relações de dependência 114

f) Perfis oriundos da análise descritiva multidimensional tipo Cluster 122


xi

6.2. Etapa II (clínico-qualitativa) 126

6.2.1. Instrução ao sósia – S 126

a) Momento I – S 127

b) Momento II – S 135

6.2.2. Instrução ao sósia – M 146

a) Momento I – M 146

b) Momento II – M 159

6.2.3 Vivências e mediações 174

7. Conclusão 179

8. Referências 182

Anexo A 188

Anexo B 192

Apêndice A 193
xii

Lista de Siglas

IaS – Instrução ao Sósia

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CNE – Conselho Nacional de Educação

CONAE – Conferência Nacional de Educação

FUNDEB – O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização

dos Profissionais da Educação

FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização

do Magistério

JCQ – Job Content Questionnaire

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

NEE – Necessidades Educacionais Especiais

Parfor – Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica

PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa

PPP – Projeto Político Pedagógico

Profa – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores

TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido


xiii

O PROFESSOR POLIVALENTE DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL DA

REDE MUNICIPAL DE NATAL/RN: TRABALHO, VIVÊNCIA E MEDIAÇÕES

Resumo

A democratização da educação apresenta interesses contraditórios, envolvendo mecanismos de

reprodução das desigualdades e forças voltadas à transformação social. Neste cenário, a

precarização do trabalho docente pode produzir adoecimento e situações de alienação que

repercutem nas vivências do trabalho. A presente pesquisa enfoca o trabalho do professor

“polivalente” dos anos iniciais do ensino fundamental da rede municipal de Natal (RN-Brasil) e

compreende a perspectiva da clínica da atividade. Este trabalho visa à exploração e análise de

elementos e percepções constitutivas do trabalho docente e seu contexto de inserção, bem como a

articulação com as vivências, sua expressão e constituição. A pesquisa compreendeu uma etapa

descritiva e inferencial quantitativa, envolvendo o uso de questionário sócio profissional e

instrumento de avaliação das dimensões psicossociais do trabalho; e outra etapa clínico-

qualitativa, baseada na técnica de Instrução ao Sósia, que permite o diálogo do trabalhador com

sua prática laboral. Foi identificado um elevado percentual de professores que se sentem

solitários no trabalho (30,2% da amostra) e associação desta variável à situação de risco

psicossocial. Da etapa clínico-qualitativa participaram duas professoras de 1º ano da rede

municipal. Observaram-se diferentes modos de relação com a atividade: uma vivência

estabelecida na lógica da produção e controle da turma, revelando impedimentos da ação e

sentimentos de solidão; e outra centrada na mobilização intelectual do aluno, expressando

dinamismo e satisfação laboral, além de acesso a recursos de enriquecimento da ação. Aponta-se

para a necessidade de criar e fortalecer coletivos de trabalho nas escolas visando ao


xiv

desenvolvimento e construção de referenciais para a ação, além da mobilização política por

melhores condições de trabalho.

Palavras-chave: trabalho docente; ensino fundamental; clínica da atividade; mediações;

vivência.
xv

THE ELEMENTARY SCHOOL TEACHER OF NATAL/RN: WORK, EXPERIENCE AND

MEDIATIONS

Abstract

The democratization of education possesses contradictory interests that involve both, mechanisms

that reproduce inequalities and forces geared towards social transformation. In this context, the

precariousness of the teaching work can produce situations of alienation which influence the

work experiences. The present research focuses on the work of "polyvalent" elementary school

teachers of Natal (RN-Brasil) municipal schools. It comprehends the clinic of activity

perspective, an approach that explores the activity subjective dimension, enabling the expansion

of consciousness and power over activity, revealing mediations and experiences. The objective of

this study is to explore and analyse the teaching work constitutive elements and perceptions, its

insertion context, as well as the articulation with the expression and constitution of experiences.

The research covered: a descriptive and inferential quantitative stage, using a socio-professional

questionnaire and a psychosocial work dimensions evaluating instrument; and a clinical

qualitative stage, which made use of the Instruction to the Double (clinic of activity), promoting

the dialogue with professional practice. Within this research, it has been identified a high

percentile of teachers who experience loneliness at work (30.2% of the sample), as well as the

connection between this perception and feelings of dissatisfaction regarding available time,

pedagogical planning meetings and little familiarity with School's Political Pedagogical Project.

Two 1st grade municipal school teachers participated of the research clinical qualitative stage.

Different features in regard to the relation with the teaching work activity were observed: an

experience established in the logic of production and class control, revealing obstacles to action
xvi

and feelings of solitude; and another focused on student intellectual mobilization, expressing

dynamism and job satisfaction, as well as access to resources of activity enrichment. The study

concludes that it is necessary to create and reinforce working collective dimension at schools

aiming at the development and construction of activity references, besides political mobilization

in view of better working conditions.

Key words: teaching work; elementary school; clinic of activity; mediations; experience.
17

1. Introdução

A democratização da educação no Brasil é um desafio estabelecido a partir de

perspectivas antagônicas, as lutas da sociedade pelo direito à educação versus a resposta a

interesses voltados para o mercado no sentido do funcionamento à sua semelhança e reprodução

da força de trabalho para o capital (Frigotto & Ciavatta, 2003; Lopes & Caprio, 2008). Com

vistas a responder ao desafio da democratização, surge a preocupação com a universalização do

ensino e qualidade (ainda que este último termo carregue ambiguidades no sentido da contradição

já exposta), (Dourado & Oliveira, 2009; Oliveira, 2007), consolidada pela promulgação da

constituição de 1988, que reconhece oficialmente a educação enquanto direito de todos e dever

do Estado e promulgação, em 1996, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),

Lei 9.394/96, que define e regulariza a organização do sistema educativo brasileiro. A escola,

enquanto reflexo da sociedade, incorpora em si suas lutas e contradições. Para além da função de

reprodução e legitimação dos mecanismos da desigualdade, ela possibilita o fornecimento de

instrumentos intelectuais e de tomada de consciência fundamentais na luta para sua superação

(Asbahr, 2005).

Neste contexto contraditório estão envolvidas condições de precarização da profissão

docente pelo desinvestimento a nível financeiro e gerencial do Estado, que não garante salários e

condições satisfatórias de trabalho aos profissionais da educação nas diferentes redes (Oliveira,

2004). Está igualmente implicado o aumento das atribuições da escola e intensificação do

trabalho dos professores, que devem lidar com realidades sociais complexas e uma lógica de

exclusão na escola, tendo em vista o maior investimento na permanência dos alunos, ajuste

idade-série e negligencia nas condições desta permanência (Paparelli, 2009). Por fim, a lógica de
18

produtividade pautada em avaliações externas e seu viés de responsabilização individualizante é

passível de dirigir esforços de instituições e professores no sentido do desempenho, visando a

conhecimentos mínimos, em detrimento do domínio dos conteúdos e desenvolvimento dos

potenciais dos alunos, favorecendo igualmente a precarização e culpabilização docente pelo

fracasso escolar.

Ressalta-se ainda o isolamento profissional do docente pela tendência de focar o trabalho

no atendimento aos alunos, mantendo-se à parte de grupos e engajamento social, em decorrência,

muitas vezes, de falta de tempo (Carlotto, 2002; Zanardi, 2009), isto apesar dos ideais veiculados

de participação e gestão democrática, trazidos pela LDB por meio dos conselhos escolares e

construção coletiva do Projeto Político Pedagógico da escola (PPP), instrumento que reflete a

proposta educacional da instituição. Também entram em pauta os desafios ligados às

características da atividade docente, como a necessidade de levar trabalho para casa, as elevadas

exigências de investimento na relação interpessoal e o fato de a atividade pedagógica implicar e

depender da relação estabelecida com o(s) aluno(s), parte ativa do processo.

Charlot (2008) aponta que, para além de um simples reflexo das contradições sociais, as

contradições do trabalho docente se arraigam nas tensões inerentes ao ato de ensino-

aprendizagem. O autor indica o paradoxo do professor herói versus vítima, herói da pedagogia e

vítima mal paga e sempre criticada, colocando que a situação de estar preso entre discursos

contraditórios gera vitimização, indignação e desmobilização profissional. Outra

tensão/contradição comum diz respeito às práticas tradicionais versus as construtivistas, sendo a

pedagogia tradicional caracterizada por posturas de rigor e autoridade, baseando-se na explicação

dos conteúdos e regras da atividade para aplicação pelos alunos, enquanto o construtivismo foca
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na atividade do aluno e sua mobilização intelectual na busca por respostas, sendo igualmente

necessária a perspectiva de compartilhamento do conhecimento sistematizado produzido pelo

homem, saber científico, como coloca Vigotski (2014). Deste modo, “(...) a questão fundamental

não é saber se a professora é “tradicional” ou “construtivista”, mas como ela resolve duas tensões

inerentes ao ato de ensino e ao de educar.” (Charlot, 2008, p. 25), uma vez que “Ensinar é ao

mesmo tempo, mobilizar a atividade dos alunos para que construam saberes e transmitir-lhes um

patrimônio de saberes sistematizados legado pelas gerações anteriores de seres humanos.” (p. 25),

devendo ser o docente professor de conteúdos e de questionamentos.

Sobre a constituição da consciência como produto subjetivo da atividade dos homens com

outros homens e com objetos, Leontiev (2004) traz o conceito de significação relacionado a um

sistema de significações existente, elaborado historicamente, do qual o sujeito se apropria

atribuindo-lhe um sentido pessoal. A significação social do trabalho docente está relacionada ao

“ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é

produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 2000, p.17), sendo a

escola uma instituição privilegiada em relação às possibilidades de humanização do homem, pois

permite uma organização consciente dos processos de formação dos indivíduos (Moretti, Asbahr

& Rigon, 2011). Leontiev (2004) compreende o processo de alienação quando, na atividade

laboral, o sentido pessoal da ação se distancia do seu significado social. No trabalho docente, este

distanciamento pode traduzir-se pela execução de operações automatizadas, sem sentido para os

alunos, repetição de conteúdos e reprodução do livro didático (Asbahr, 2005). O processo de

alienação deve ser compreendido com base nas condições objetivas e subjetivas do trabalho

docente enquanto unidade dialética.


20

A alienação no trabalho sob o capitalismo, baseado na exploração de uma parte da

população (proletariado) por outra (burguesia), ocorre pela sua compartimentalização, já não

sendo necessário saber para fazer. Planejamento e execução, trabalho manual e intelectual

tornam-se momentos separados, o trabalhador é destituído de seu saber (Asbahr, 2005). Nesse

quadro, o trabalho pedagógico apresenta particularidades, como ser não produtivo, em se tratando

da educação pública, pois não visa ao lucro. É também um trabalho não material, pois seu

produto não é palpável, trata-se de um serviço. No trabalho pedagógico, o produto

(aprendizagem) e o ato de produção (ensino) não podem ser separados. Paro (1993) coloca o

aluno como objeto de trabalho, pois sobre ele incide o ofício do educador que o transforma para

além da aula, sendo igualmente sujeito ativo de seu processo de aprendizagem e co-produtor do

mesmo. A impossibilidade de separação completa entre produto e produção no trabalho docente

faz com que o Capital não exerça controle direto sobre o mesmo, fazendo-o de forma política e

ideológica (Asbahr, 2005).

A perspectiva da clínica da atividade, cujo principal expoente é o psicólogo francês Yves

Clot, permite uma leitura subjetiva da atividade e seus atravessamentos, podendo revelar

mecanismos de alienação ou potencialização da ação. Trata-se de uma clínica do trabalho que

bebe da ergonomia e psicopatologia francesas e fundamenta-se na abordagem histórico-cultural

de Vigotski, visando ao desenvolvimento da atividade e pela atividade através da ampliação da

potência de ação de sujeitos e coletivos (Clot, 2008). O sofrimento na clínica da atividade é

concebido enquanto atividade contrariada, desenvolvimento impedido (Clot, 2001). Se os

trabalhadores não dispõem de recursos para fazer frente aos impasses do real, ou meios para

desenvolver estes recursos, encontram-se em situação de impedimento (Silva & Ramminger,

2014). A saúde é compreendida na perspectiva de Canguilhem (2009), não como ausência de


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doença, mas como capacidade normativa, de estabelecimento de normas de vida diante das

dificuldades, gerando desenvolvimento. Nessa ótica são problemáticas as situações de entrave e

enrijecimento.

A clínica da atividade procura intervir junto aos trabalhadores tendo em vista a ampliação

da consciência e reflexão sobre a atividade, abordando-a sob outra ótica, de modo que a

experiência vivida possa ser ou vir a ser meio de viver outras experiências (Clot, 2001, 2008), o

autor menciona Vigotski na compreensão de que uma ação passada pelo crivo do pensamento

transforma-se em outra, por sua vez, refletida. Clot (2013) coloca ainda a perspectiva do

“trabalho bem feito” na saúde, indicado por uma tradição profissional viva (coletiva), enquanto

norte do “bem estar”. O coletivo é percebido como recurso para o desenvolvimento dos

indivíduos, produzindo embates sobre os quais se investe e se trabalha, “A saúde se degrada no

ambiente de trabalho sempre que um coletivo profissional torna-se uma coleção de indivíduos

expostos ao isolamento.” Clot (2002, p.4).

Da ergonomia francesa, Clot reconhece e aprofunda a compreensão de atividade enquanto

fruto da tensão entre tarefa (prescrito) e atividade realizada, incorporando a dimensão da

subjetividade através do conceito de “real da atividade” (Clot, 1999). O real da atividade envolve

os conflitos do real e inclui, além do que é feito, aquilo não se faz, que não se pode fazer, que se

busca fazer sem conseguir, que se faz sem querer fazer, etc. (Clot, Faita, Fernandez & Scheler,

2000), sendo “a fadiga, o desgaste violento, o estresse” compreendidos “tanto por aquilo que os

trabalhadores não podem fazer, quanto por aquilo que eles fazem.” (Clot, 2001, p. 5).

Clot (2013) compreende uma arquitetura da atividade de trabalho composta por quatro

instâncias que interagem de forma dinâmica: “impessoal”, relativa ao prescrito que orienta o
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ofício, também passível de transformação; “pessoal”, referente à atividade sobre/por si

mobilizada e sua expressão singular; “interpessoal”, dirigida ao outro; e “transpessoal”, referente

à história coletiva de um grupo profissional, com suas potencialidades e contradições. Esta última

refere-se ao conceito de “gênero profissional” da atividade, que diz de uma memória coletiva

dinâmica de saberes e gestos pertencentes a um coletivo de trabalho, marcando o pertencimento a

um grupo e orientando a ação (Clot, 2008). A reformulação do gênero em situação, seu ajuste

para torna-lo instrumento da ação, recebe o nome de “estilo pessoal” da atividade, envolvendo

uma margem de autonomia, liberdade e criação compreendendo o suporte do gênero profissional

(Clot et al., 2000). Há degradação da saúde quando a história do gênero profissional encontra-se

suspensa e “Cada um individualmente se encontra então confrontado às más surpresas de uma

organização do trabalho que deixa “sem voz” face ao real.” (Clot, 2002, p.4).

A clínica da atividade compreende a centralidade do trabalho no desenvolvimento e

constituição da subjetividade humana preenchendo uma função psicológica que “põe o sujeito à

prova de suas obrigações práticas e vitais com relação aos outros e com relação ao mundo” (Clot,

1999, p. 219, tradução nossa), constituindo um dos gêneros de referenciamento mais

fundamentais da vida psicossocial, que liga cogeneticamente sujeito/coletivo e sociedade, ainda

que essa conexão possa se estabelecer de forma alienada.

Acrescentando à perspectiva da clínica da atividade, apresenta-se o conceito vigotskiano

de “vivência”, do russo perezhevanie, compreendido como unidade dialética da consciência

humana, estabelecido na dinâmica da relação entre o ambiente social e o lugar ocupado pelo

indivíduo, como um prisma que refrata a experiência (Veresov, 2014). O autor coloca a

compreensão de Vigotski das relações sociais enquanto fonte das funções mentais superiores pela
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experiência de drama, colisão dramática pessoal e emocionalmente vivenciada

interpsicologicamente e intrapsicologicamente com potencial para produzir desenvolvimento.

Veresov (2014) compreende a vivência enquanto fenômeno, implicando o prisma e o modo como

os indivíduos vivem situações, e também como conceito, referente à vivência dramática que

envolve transformação e desenvolvimento. A clínica da atividade aprofunda-se na subjetividade

da atividade e transformação pelo confronto com a mesma e com um coletivo de trabalho, sendo

capaz de produzir vivência dramática, mobilizadora de transformações, além de permitir entrever

o prisma e seus atravessamentos, configurando ferramenta de pesquisa e intervenção.

O enfoque da pesquisa é o trabalho de professores do ensino fundamental I (1º ao 5º ano)

da rede municipal de Natal/RN em razão dos desafios e especificidades desta etapa e seu papel

fundamental no processo de democratização da educação e continuidade da escolarização, razão

pela qual serão trazidas algumas condições e características do ensino neste nível. Do 1º ao 5º

ano os professores são “polivalentes”, responsáveis por uma turma, lecionando diferentes

disciplinas (português, matemática, ciências, história e geografia). Com a lei federal 11.247,

promulgada em 2006, que instituiu a ampliação do ensino fundamental para a entrada de crianças

a partir dos seis anos de idade até 2010, realidade consolidada nos dias atuais, crianças de seis

anos passaram a frequentar o 1º ano, política importante tendo em vista a ampliação da oferta

educacional, possibilidade de socialização e inserção na cultura escolar mais cedo e

favorecimento de melhores condições de alfabetização para as crianças (Mainardes & Stremel,

2012).

Diante do esboçado, visa-se a analisar o trabalho docente dos anos iniciais do ensino

fundamental da rede municipal de Natal/RN sob diferentes perspectivas, reconhecendo suas


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complementaridades. Uma perspectiva abrangente, abarcando elementos constitutivos do

trabalho do professor (aspectos sócio profissionais, percepções sobre o trabalho, dimensões

psicossociais do mesmo e risco psicossocial, buscando relações e perfis), através de métodos

quantitativos, e outra subjetiva e aprofundada, implicando a vivência da atividade docente, sua

expressão, mediações e modos de constituição, por meio de método clínico-qualitativo (clínica da

atividade), constituindo pesquisa de caráter descritivo-exploratório e clínico. Trata-se de

encontrar pistas de resposta para as perguntas: Que elementos, dimensões, percepções compõem

a atividade laboral e vivência do professor polivalente dos primeiros anos do ensino fundamental

da rede municipal de Natal/RN? De que forma essas instâncias articulam as mediações

necessariamente implicadas (históricas, políticas, sociais, etc.)? E como dialogam entre si

produzindo as vivências da atividade, abrangendo a dimensão do real da atividade, o fazer

profissional, estratégias, concepções, sofrimento, desenvolvimento, adoecimento e contradições?

A inspiração para a presente pesquisa originou-se de um estágio, em 2012, no campo da

Psicologia Escolar, em uma escola da rede municipal de Natal que abarcava os anos iniciais do

ensino fundamental (1º ao 5º ano) e intervenção compreendendo a perspectiva da clínica da

atividade e utilização de algumas de suas técnicas junto a professoras da instituição. A

constatação dos inúmeros problemas envolvendo as condições de trabalho (falta de merenda,

salários atrasados, negociação para entrada em greve, acúmulo de lixo no terreno ao lado da

escola, faltas, etc.), relatos de impedimentos da atividade e discursos de culpabilização da família

e do sistema pelas condições difíceis de trabalho, envolvendo sentimentos de indignação,

impotência e conformação, levaram ao desejo de compreensão do cenário mais amplo,

constituinte dos modos de fazer do gênero profissional e como estas mediações articulavam-se na
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prática, na vivência da atividade docente e suas particularidades, e ainda se a clínica da atividade

poderia contribuir na constituição de meios para o enfrentamento dos desafios do real.

O presente trabalho abarca capítulos teóricos que envolvem articulação em três blocos. O

primeiro relaciona-se ao tema da educação, envolvendo sua relação com o processo de

humanização e com a sociedade, panorama histórico e contexto brasileiro, enfocando os anos

iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º) e implicações no trabalho docente, além do contexto

local. O segundo bloco refere-se ao trabalho docente, sua caracterização e conceito de alienação,

contradições implicadas na profissão e sua relação com a saúde. O terceiro bloco é destinado aos

operadores teóricos que regem o trabalho, a clínica da atividade e o conceito vigotskiano de

vivência (perezhevanie), conceitos envolvidos e conexões para a constituição enquanto

ferramenta de análise e leitura dos fenômenos explorados. O capítulo dedicado aos resultados e

discussões envolve uma primeira seção destinada à primeira etapa da pesquisa (quantitativa) e

uma segunda seção para a segunda etapa (clínico-qualitativa). Relações entre as duas etapas são

tecidas ao longo das discussões e na conclusão do trabalho.


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2. Capítulo 1 – Educação

2.2. Educação e humanização

Definir educação implica em falar sobre o processo de humanização do homem, ou como

o homem torna-se humano. Nesse sentido, será considerada a perspectiva histórico-cultural de

Vigotski, Luria e Leontiev, que tem no materialismo histórico-dialético de Marx uma de suas

bases de fundamentação, debruçando-se no estudo da consciência humana em sua origem

histórica, social e cultural.

Leontiev (2004) ressalta a centralidade do trabalho na constituição da consciência

humana, envolvendo a relação do homem, em coletivo, com a natureza num processo de

transformação mútua. O trabalho é compreendido enquanto atividade intencional e mediatizante

sobre a natureza. Dois componentes da atividade mediatizante constituem a atividade de trabalho,

o instrumento, guia das ações sobre o objeto da atividade, voltado para o exterior (domínio da

natureza), e o signo, meio de ação psicológico sobre o comportamento (próprio e dos outros),

voltado para o interior na medida em que favorece o controle do homem sobre si (Vigotski,

2014). A atividade mediatizante envolve o domínio de elementos externos, do desenvolvimento

cultural e do pensamento (linguagem verbal, escrita, calculo, desenho, etc.) operando uma

transformação das funções psicológicas superiores (atenção voluntária, memória lógica, formação

de conceitos, etc.), de modo que são instaurados novos estágios de desenvolvimento superpostos

ao nível biológico que o transformam e alavancam (Vigotski, 2014).

O homem, então, cria necessidades que visam garantir não apenas sua existência

biológica, mas principalmente sua existência cultural (Moretti et al., 2011), tendo em vista a
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construção histórica e social de sua humanidade. De acordo com Leontiev (2004), “(...) cada

indivíduo aprende a ser homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver

em sociedade. É-lhe preciso ainda adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento

histórico da sociedade humana.” (p.285). Para tornar-se humano e apropriar-se da cultura, é

necessária a intermediação de outros homens, o estabelecimento de um processo comunicativo

compreendido, pela sua função, como processo de educação, (Leontiev, 2004). De acordo com

Saviani (2000), “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada

indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos

homens” (p.17). Na educação, para além do compartilhamento dos conhecimentos historicamente

acumulados, está a perspectiva de desenvolvimento do psiquismo humano (capacidade reflexiva,

de análise, etc.). Nesse sentido, a escola enquanto local do compartilhamento formal e planejado

do saber sistematizado e elaborado, do conhecimento científico, filosófico e artístico (Saviani,

2000), é uma instituição privilegiada em relação às possibilidades de humanização do homem,

pois permite uma organização consciente dos processos de formação dos indivíduos (Moretti et

al., 2011).

No entanto, o processo de humanização não ocorre para todos nas mesmas condições. Em

relação à espécie humana observam-se diferenças nas condições de vida, riqueza da atividade

material e mental, e nível de desenvolvimento das formas e aptidões intelectuais. O homem

torna-se humano de modos diferentes e desiguais, considerando os contextos, produção da vida

material, relações sociais e processo educativo que mediam seu acesso ao conhecimento

historicamente acumulado e às possibilidades de desenvolvimento. A concentração da riqueza

nas mãos de uma classe dominante, no contexto da sociedade capitalista, vem acompanhada de

uma concentração da cultura intelectual, o que propicia a produção de uma estratificação da


28

cultura, já que a maior parte dos meios de produção e difusão cultural estão a serviço desta classe

(Leontiev, 2004). A consequência disto é a produção de desigualdades, uma vez que a

constituição do psiquismo humano envolve compreender que “A consciência do homem é a

forma histórica concreta do seu psiquismo. Ela adquire particularidades diversas segundo as

condições sociais da vida dos homens e transforma-se na sequência do desenvolvimento das suas

relações econômicas.”, (Leontiev, 2004, p.94), demonstrando a relação entre o desenvolvimento

da consciência humana e os meios de reprodução da vida material, as condições de vida do

indivíduo.

2.3. Educação e sociedade

A educação sistematizada escolar representa um lócus privilegiado de contribuição no

processo de humanização do homem e compartilhamento da cultura historicamente acumulada.

No entanto esse processo não ocorre nas mesmas condições para todos. A educação enquanto

inserida em e constituinte de um contexto social deve ser considerada nas relações estabelecidas

com o mesmo a fim de compreender de forma mais ampla seu alcance e funcionamento. Serão

apresentadas três diferentes perspectivas de relação entre educação e sociedade conforme

organizadas por Saviani (2008), a perspectiva não-crítica, a crítico-reprodutivista e a perspectiva

crítica, esta última numa tentativa de avanço em relação às anteriores.

Em uma perspectiva não-crítica, em que Saviani reconhece a pedagogia tradicional, a

pedagogia nova e a pedagogia tecnicista, a educação aparenta possuir uma grande margem de

autonomia em relação à sociedade, sendo capaz de defini-la e evitar a segregação, atuando no

sentido da construção de uma sociedade igualitária. A marginalidade, nesse ponto de vista, é

considerada acidental, sendo a educação um instrumento de correção das distorções existentes e


29

superação da marginalidade, constituindo “uma força homogeneizadora que tem por função

reforçar os laços sociais, promover a coesão e garantir a integração de todos os indivíduos no

corpo social.” (Saviani, 2008, p.4). No entanto, ao invés de construir uma sociedade mais

igualitária, ao desconsiderar a relação entre sociedade e educação, tal perspectiva mascara suas

desigualdades e contradições e as acentua.

A pedagogia tradicional compreende um modelo de educação em que o aluno é passivo

numa lógica de disciplina e assimilação de conteúdos, este modelo desconsidera os diferentes

backgrounds dos alunos, seus contextos e o engajamento cognitivo que precisam para se

desenvolver. Na pedagogia nova as emoções são privilegiadas aos conteúdos, o foco passa a ser a

relação com o aluno e seus interesses, fazendo com que o compartilhamento de conhecimento

caia para segundo plano, privando os alunos que mais precisam dos instrumentos e recursos para

favorecer seu desenvolvimento. Por sua vez, a pedagogia tecnicista preocupa-se com os

princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, tornando professor e alunos meros

executores, deixando de lado o papel humanizador da escola. Estas abordagens falham na

superação do fracasso escolar e acentuam-no. A não consideração das relações entre escola e

sociedade e suas contradições implicam no não questionamento sobre o porquê e para quem serve

a educação em dada conjuntura.

A perspectiva crítico-reprodutivista, termo cunhado por Saviani, reconhece a educação

como instrumento de discriminação social e fator de marginalização. Compreende a sociedade

em sua lógica capitalista, dividida em classes de interesses antagônicos, opondo a burguesia,

detentora dos meios de produção e concentradora da riqueza e cultura produzidas pela

humanidade, e proletariado, classe cuja subsistência depende da venda da força de trabalho. A


30

marginalidade é compreendida como fenômeno inerente à estrutura da sociedade, uma vez que o

grupo ou classe dominante estratifica os resultados da produção social em função de seus

interesses e manutenção de privilégios, produzindo a exclusão. A educação, nessa ótica, é

dependente da estrutura social, cumprindo a função de reforçar e legitimar a exclusão, “sua forma

específica de reproduzir a marginalidade social é a produção da marginalidade cultural e,

especificamente, escolar.” (Saviani, 2008, p.5).

Nessa perspectiva ressaltam-se as teorias de Bourdieu, sociólogo francês, e sua concepção

do sistema de ensino como violência simbólica, e Althusser, filósofo francês, em sua

compreensão da escola como Aparelho Ideológico de Estado. A violência simbólica é

compreendida pela dominação de uma classe ou grupo sobre outro, estabelecendo uma relação de

superioridade cultural e marcando uma desigualdade que o sistema educativo reforça ao invés de

superar, através da valorização de determinados tipos de conhecimento em detrimento de outros,

por exemplo. De acordo com Althusser, a necessidade de reprodução das condições de produção

implica na utilização de Aparelhos Repressivos de Estado, que funcionam predominantemente

pela repressão, e Aparelhos Ideológicos de Estado, cuja força motriz principal é a ideologia. Os

Aparelhos Ideológicos de Estado legitimam e reproduzem ideologicamente as relações e modo de

funcionamento da sociedade, sendo a escola e o sistema escolar um destes aparelhos a serviço da

classe dominante. No entanto Althusser não rejeita a visão da escola como importante lócus da

luta de classes em seu viés ideológico (Cassin, 2003), da mesma forma Catani, Catani e Pereira

(2001) trazem que as análises de Bourdieu não se contrapõem às possibilidades de luta, mas

atém-se, em um primeiro momento, à explicitação dos modos de funcionamento da escola e sua

lógica reprodutiva, conhecimento capaz de engendrar, inclusive, novas possibilidades de

resistência e ampliar a consciência sobre elas.


31

Enquanto a perspectiva não-crítica busca compreender a educação a partir dela mesma,

como autônoma, sem considerar as influências do contexto social, a perspectiva crítico-

reprodutivista faz sua leitura remetendo-se aos condicionantes objetivos da sociedade, ou seja, a

estrutura socioeconômica, determinante na manifestação do fenômeno educativo, compreendendo

a função da educação na reprodução da sociedade e de suas desigualdades, razão pela qual dá-se

o nome “crítico-reprodutivista” (Saviani, 2008). Nas palavras do autor, “Enquanto as teorias não-

críticas pretendem ingenuamente resolver o problema da marginalidade por meio da escola sem

jamais conseguir êxito, as teorias crítico-reprodutivistas explicam a razão do suposto fracasso”,

indo da percepção de um poder ilusório a uma compreensão de impotência.

Coloca-se a necessidade de pensar uma perspectiva que articule a escola aos interesses

dos dominados sem desconsiderar a estrutura social, compreendendo a instituição escolar na

perspectiva da luta de classes, assumindo um posicionamento e um compromisso no percurso

coletivo da transformação social. Nesse sentido Saviani idealizou a chamada pedagogia

“histórico-crítica” ou “crítico-social dos conteúdos”, que dedica um papel central à difusão dos

conteúdos escolares sem considera-los fora do contexto dos alunos, permitindo uma abordagem

crítica dos mesmos (Libâneo, 1989). Nessa perspectiva, o papel do professor enquanto mediador

do saber historicamente acumulado é essencial, da mesma forma que o aluno é reconhecido como

ativo na construção do seu conhecimento, os interesses são aproveitados para produzir outros no

sentido do desenvolvimento dos potenciais humanos. O projeto é o de construção de uma

sociedade mais justa onde todos tenham acesso ao saber em uma perspectiva crítica,

instrumentalizando e contribuindo na luta por uma transformação social.


32

2.4. Educação no Brasil

2.4.1. Aspectos históricos: democratização da educação – universalização e qualidade.

A educação no Brasil passou a ser reconhecida como direito de todos e dever do estado a

partir da Constituição de 1988, no período da redemocratização do Estado brasileiro. Antes disto

a escola pública não tinha capacidade de atender toda a população, restringindo suas vagas às

classes mais abastadas por meio de provas de seleção para o ingresso. No entanto, foi durante o

regime militar que iniciaram os movimentos de expansão da educação para as classes antes

excluídas. Esta seção abarcará os aspectos históricos da educação no Brasil, o desenvolvimento

das políticas educacionais e o desafio da democratização através da universalização e qualidade.

O foco da exposição será a educação básica, mais particularmente o ensino fundamental, alvo

historicamente central de políticas e investimentos em educação e tronco do sistema educativo

responsável pela aquisição e fixação dos conhecimentos de base que serão gradativamente

desenvolvidos.

É no regime militar, em função das demandas de modernização do mercado face à

expansão industrial, impulsionada pelo “milagre econômico”, que a educação das massas torna-se

um objetivo no sentido da produção de mão de obra com algum grau de qualificação. Nesse

período houve a junção dos quatro anos do ensino primário com os quatro do ginásio, criando um

único ciclo de oito anos que passou a ser obrigatório (Ferreira Jr. & Bittar, 2006). Essa

determinação gerou uma expansão quantitativa do ensino fundamental, demandando o aumento

no número de professores nesta etapa de ensino. As políticas do período combinaram o

crescimento quantitativo à formação acelerada de professores para suprir a nova necessidade,


33

além de medidas que acarretaram em arrocho salarial, tendo em vista a ampliação a um menor

custo para o Estado (Ferreira Jr. & Bittar, 2006).

Essas transformações mudaram o perfil do professor primário, antes caracterizado por ser

uma categoria profissional pequena, composta por mulheres da classe média e da elite. As

medidas tomadas para a ampliação, sobretudo, do ensino fundamental deram origem a “um

processo tanto ascendente quanto descendente, pois os que tinham origem nos “de cima” se

proletarizaram enquanto os de origem popular ascenderam a uma profissão da classe média.”

(Ferreira Jr. & Bittar, 2006, p.1159). A proletarização da profissão ocorreu no sentido não apenas

do empobrecimento econômico, mas da depauperação do capital cultural da antiga categoria, pelo

processo de aligeiramento da formação no período e perda do status social: “teve início a

construção da nova identidade social do professorado do ensino básico, ou seja, a de um

profissional da educação submetido às mesmas contradições socioeconômicas que determinavam

a existência material dos trabalhadores.” (Ferreira Jr. & Bittar, 2006, p.1167).

A redemocratização brasileira consolidou-se com a promulgação da constituição de 1988,

a qual, em seu artigo 205, reconhece oficialmente a educação enquanto direito de todos e dever

do Estado, dando continuidade à ampliação do processo de escolarização das massas através de

políticas de caráter neoliberal. A partir da Constituição de 1988, em 1996 é promulgada a LDB,

lei 9.394/96, que define e regulariza a organização da educação brasileira. Está em pauta o

processo de democratização da educação através do desafio de sua universalização e qualidade,

processo este permeado por interesses antagônicos, sendo as reformas e ações políticas

empreendidas comprometidas com o funcionamento do sistema capitalista contemporâneo,

globalizado e flexível (Arelaro, 2005; Frigotto & Ciavatta, 2003). Nesse sentido, ressaltam-se os
34

interesses que caracterizam a lógica neoliberal, na qual a educação volta-se para o mercado,

funcionando à sua semelhança, e torna-se produto (Lopes & Caprio, 2008). Estão também em

jogo as negociações e os interesses da sociedade civil na luta pela educação enquanto direito

(Frigotto & Ciavatta, 2003). A perspectiva assumida é a da constituição da educação na

sociedade de classes, com suas contradições e lutas, “Toda lei expressa uma política e encaminha

uma forma de gestão, sendo, sua versão final, resultante do embate das forças políticas que

participam desse processo” (Gracindo, 1988, como citado em Lopes & Caprio, 2008, p.10).

Norteando as políticas empreendidas encontra-se o Plano Nacional de Educação, também

elaborado no âmbito de estados e municípios, que determina diretrizes, metas e estratégias para a

política educacional compreendendo prazos decenais. Seus blocos de metas envolvem a

universalização e qualidade da educação básica, redução das desigualdades, valorização da

diversidade e a valorização dos profissionais da educação, referindo-se também ao ensino

superior.

O Banco Mundial, representante do capital internacional, bem como outros organismos

internacionais, influenciaram e orientaram as reformas e políticas educacionais no Brasil na

década de 1990. Propostas do Banco Mundial que fazem eco às medidas assumidas no Brasil,

são: a descentralização da educação a nível financeiro e gerencial na direção de estados e

municípios, a educação escolar reduzida a objetivos de aprendizagem observáveis por meio de

formulação de padrões de rendimento passíveis de compor critérios de avaliação em escala, a

autonomia administrativa versus a centralização das avaliações enquanto mecanismo de controle,

etc. (Libâneo, 2012; Lopes & Caprio, 2008). Caracteriza a estratégia neoliberal na educação,

ainda, o enxugamento do investimento na mesma, o funcionamento por uma lógica de

produtividade e eficiência, e a ampliação da participação do setor privado. Em uma lógica


35

neoliberal a educação é percebida restrita “ao papel de reproduzir a força de trabalho para o

capital, formar ideologicamente conforme interesses do mesmo e servir como segmento do

mercado a ser explorado comercialmente pelo setor privado” (Lopes & Caprio, 2008, p.14).

De acordo com a LDB o ensino fundamental passou a ser responsabilidade compartilhada

de estados e municípios, sendo prioridade para os segundos. Enquanto materialização do

processo de descentralização, a criação do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e

de Valorização do Magistério (FUNDEF), implantado pela Emenda Constitucional no14 de 1996,

foi um marco, estabelecendo a contribuição dos entes federados no financiamento de seus

sistemas educativos. O FUNDEF abarcava unicamente o ensino fundamental e não previa a

contribuição da União, compreendendo apenas as receitas dos Estados e Municípios. Com a

implantação da Lei 11.494 de junho de 2007 foi implementado o Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação

(FUNDEB), que passou a substituir o FUNDEF. O FUNDEB representou um avanço no sentido

da ampliação da previsão de recursos para a educação, contribuição de repasses de

complementação da União e abrangência, incluindo educação infantil e ensino médio, além do

ensino fundamental.

A municipalização da educação e autonomia gerencial de Estados e Municípios em

relação aos sistemas sob sua responsabilidade favoreceu a difusão do acesso à educação, mas

também contribuiu para as desigualdades municipais, estaduais e regionais em função das

desigualdades socioeconômicas entre as unidades federativas. A dificuldade de articulação entre

as três instâncias (municípios, estados e união) também não favoreceu a aplicação da lei, dos
36

direitos sociais e trabalhistas, nos sistemas educacionais, contribuindo para um cenário de

precarização.

No tocante à lógica de eficiência e produtividade, a partir dos anos 1990 foram

implantadas, no ensino fundamental, medidas de regularização de fluxo em diversas cidades e

estados brasileiros tendo em vista o cenário de evasão e repetência herdado da última década do

regime militar (Oliveira, 2007; Paparelli, 2009). Com a ampliação do acesso à educação a

preocupação passou a ser a “produção do fracasso escolar” através da denominada “pedagogia da

repetência” (Patto, 1987). Dentre as medidas de regularização de fluxo está a “progressão

continuada”, que diz respeito a uma compreensão de aprendizagem em ciclos, sobretudo no

ensino fundamental, comprometida com modos de avaliação flexíveis e lida com problemas e

lacunas no sentido de sua superação ao longo do ciclo, podendo envolver reforço e

direcionamento do olhar e da ação pedagógica. Ocorre de a “progressão continuada”, por falta de

preparo das equipes e articulação das políticas, resumir-se à mera promoção automática, sem o

acompanhamento necessário às situações desafiantes. Há também os programas de “aceleração”

que envolvem modos de funcionamento diferenciados (criação de turmas, medidas de formação

continuada de professores, etc.) visando a que os alunos atrasados alcancem seu grupo-nível de

pertencimento.

A difusão das medidas de “regularização de fluxo” contribuiu para a diminuição da

retenção e evasão de alunos, favorecendo a progressão na escolaridade, conclusão do ensino

fundamental e movimento de expansão do ensino médio (Oliveira, 2007; Paparelli, 2009). No

entanto é questionada a eficácia das medidas em detrimento da qualidade do ensino. Estabelece-

se uma dinâmica de exclusão-inclusão, em que a exclusão da escola é reduzida e amplia-se a


37

exclusão na escola (Oliveira, 2007; Paparelli, 2009). Oliveira (2007) observa que “(...) o lócus da

exclusão não é mais o mesmo. Isso tem profundas consequências para o sistema como um todo e

para a natureza das contradições em seu interior.” (p.680).

No contexto da democratização, a avaliação entra na perspectiva da articulação com as

políticas e acompanhamento das mesmas, estabelece critérios de qualidade compreendidos em

uma lógica de controle e eficiência/produtividade. Busca-se a articulação do resultado das

avaliações a políticas de responsabilização, implicando em consequências simbólicas ou

materiais aos agentes escolares (Bonamino & Sousa, 2012). Em 2005 é implantada a Prova Brasil

e em 2007 o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) pelo Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Índice que reúne em apenas um

indicador dois conceitos considerados importantes para a qualidade da educação: o fluxo escolar

e as médias de desempenho nas avaliações, tornando-se o principal indicador usado pelo Governo

Federal para traçar metas a serem alcançadas pelas escolas e redes de ensino. Passa a ser comum

a realização de rankings e devolução dos resultados às escolas e redes no intuito de contribuir no

planejamento de ações visando o desenvolvimento das unidades e sistemas (Bonamino & Souza,

2012). Em alguns Estados e Municípios os resultados são utilizados também como referenciais

para implantar medidas punitivas ou de bonificação de escolas e professores (Bonamino &

Souza, 2012).

As críticas à política de avaliação apresentada envolvem seu viés de responsabilização e

caráter individualizante, passível de mobilizar e dirigir esforços de instituições e professores no

sentido do desempenho em detrimento do domínio dos conteúdos escolares pelos alunos. A

avaliação também é criticada como instrumento de desenvolvimento, “fortemente marcada por


38

testes estandardizados em detrimento de um sistema ou subsistema que articule variáveis com a

perspectiva de desenvolvimento institucional.” (Dourado, 2013b, p.769).

Em referência ao desafio da qualidade da educação conforme acima mencionado,

Dourado e Oliveira (2009) ressaltam a perspectiva polissêmica do termo, que varia de acordo

com a concepção de mundo e de educação. Está em pauta a consideração da educação enquanto

mercadoria ou direito social. A partir da compreensão da educação como elemento constitutivo e

constituinte das relações humanas, suas lutas e contradições, e a escola como espaço institucional

de produção e disseminação sistemática do saber historicamente acumulado, Dourado e Oliveira

(2009) colocam o desafio da qualidade diante do cenário brasileiro de desigualdades regionais,

estaduais, municipais e locais, abarcando diversas redes e normas nem sempre articuladas. A

busca pela qualidade precisa levar em consideração uma:

Descentralização qualificada, onde a coordenação federativa não se traduz em


centralização por parte da União, mas é resultante de esforços de cooperação e
colaboração entre os entes federados, que, desse modo, não prescindem de
diretrizes e padrões de qualidade nacional ao participarem de sua proposição e
materialização. (Dourado, 2013b, p.780).

A educação pública básica voltada ao acesso das massas antes excluídas e a orientação

neoliberal das políticas na década de 1990 intensificaram o movimento paralelo de privatização

da educação, tendo como consequência que os filhos das classes média e alta fossem

matriculados em escolas privadas de certa referência, enquanto as escolas públicas tornaram-se o

destino dos filhos das classes desfavorecidas. Nesse sentido e também considerando a exclusão e

segregação que ocorre dentro das próprias escolas, compreende-se a crítica de Libâneo (2012),

segundo a qual as influências de caráter neoliberal de organismos internacionais na educação


39

(sobretudo o Banco Mundial) propõem uma inversão em que “o direito ao conhecimento e à

aprendizagem é substituído pelas aprendizagens mínimas para a sobrevivência.” (p.23). Há um

dualismo em que:

(...) Num extremo, estaria a escola assentada no conhecimento, na aprendizagem e


nas tecnologias, voltada aos filhos dos ricos, e, em outro, a escola do acolhimento
social, da integração social, voltada aos pobres e dedicada, primordialmente, a
missões sociais de assistência e apoio às crianças.
(Libâneo, 2012, p.16)

No tocante às reformas e políticas voltadas para a educação, este autor critica o:

(...) Caráter economicista e pragmático, estando ausentes análises do ponto de


vista pedagógico-didático, ou seja, análises sobre como essas políticas induzem
objetivos para a escola e concepções de ensino e aprendizagem, com repercussões
nas práticas de gestão pedagógica e curricular e nas formas de trabalho dos
professores na sala de aula. (p.23).

Deixa-se de “investir nas ações pedagógicas no interior da escola para um enfrentamento

pedagógico-didático dos mecanismos de seletividade e exclusão.” (Libâneo, 2012, p.23).

Apesar de ter de responder a problemas sociais, por fazerem parte do seu contexto, a

função da escola não deve ser primordialmente percebida como assistencialista. É necessária uma

base comum de conhecimentos, uma vez que não há justiça social ou cidadania sem

conhecimento (Libâneo, 2012). Em relação ao tratamento das heterogeneidades em sala de aula,

que podem produzir e acentuar desigualdades, e da própria função da escola pública,

compreende-se a colocação de Charlot (2005), segundo a qual:


40

A mundialização-solidariedade implica uma escola que faça funcionar, ao mesmo


tempo, os dois princípios, o da diferença cultural e o da identidade dos sujeitos
enquanto seres humanos, ou seja, os princípios do direito à diferença e do direito à
semelhança. (...) A diferença só é um direito se for afirmada com base na
similitude, na universalidade do ser humano. (p.136).

A perspectiva de criação de um currículo comum para a educação básica, uma Base

Nacional Comum Curricular (BNCC), cuja versão final foi entregue pelo MEC ao CNE em abril

de 2017, tem potencial para contribuir no processo de democratização da educação pelo

estabelecimento de orientações e referências, a serem construídas e debatidas pelos coletivos de

profissionais competentes, não se contrapondo necessariamente à possibilidade de

enriquecimento e diversificação curricular, tendo em vista o estabelecimento de diretrizes

nacionais para a formação de professores visando garantir unidade na diversidade (Dourado,

2013a). No entanto, assume-se a presença de interesses de mercado na proposta e questiona-se a

perspectiva de ligação do currículo a avaliações no sentido de garantia de saberes mínimos e

ampliação do controle e padronização de conteúdos e do trabalho docente (Freitas, 2014).

Também é considerada a necessidade de melhoria das condições de trabalho e salário dos

professores para uma reforma viável e emancipadora, do contrário a responsabilidade do processo

é individualizada, focando-se em docentes e alunos (Alferes & Mainardes, 2014; Dourado,

2013a). O estabelecimento de um currículo comum é perpassado por interesses de controle

orientados pelas avaliações, no entanto a ausência de um currículo comum deixa igualmente os

critérios das avaliações nortearem as escolas e contribui para um cenário de orientação

fragmentado e contraditório (Alferes & Mainardes, 2014; Freitas, 2014).


41

2.4.2. Políticas e implicações no trabalho docente.

A presente sessão visa articular a discussão das políticas educacionais e seu impacto no

trabalho docente, levando em consideração a influência do papel contraditório da escola no

trabalho do professor.

A reforma educacional de cunho neoliberal favoreceu o fenômeno de precarização da

profissão docente, caracterizado pelo desinvestimento a nível financeiro e gerencial por parte do

Estado, no aumento das atribuições da escola e consequentemente dos professores, na

intensificação do trabalho, incorporação de uma lógica da produtividade, flexibilização nos

processos educacionais (estruturas curriculares, avaliações), etc. (Fernandes & Orso, 2010;

Oliveira, 2004; Paparelli, 2009). Os parágrafos seguintes explorarão diferentes mecanismos e

manifestações de precarização do trabalho docente.

A universalização e ampliação do acesso à educação e o insuficiente investimento por

parte do Estado contribuíram para um quadro de salas de aula com elevado número de alunos por

professor, produzindo uma intensificação do trabalho. Nesse contexto, as políticas de

regularização de fluxo, já citadas, que visam ajustar o aluno pela idade a uma série, favorecendo

o percurso da escolaridade, ampliaram uma dinâmica de exclusão na escola, ao invés de exclusão

da escola. Apesar de representar, de certa forma, um avanço, esse processo teve impacto na

relação do professor com os alunos, envolvendo o risco potencial de aumento da indisciplina e

violência, e contribuindo para a precarização do trabalho docente (Paparelli, 2009). Sobre isto

Bourdieu e Champagne (1998) evocam:

Manter na escola aqueles que dela teriam sido ‘excluídos’ antigamente sem criar
condições para uma ação educativa eficaz na direção dos alunos que mais
42

dependem da escola para adquirir aquilo que ela exige, é fazer surgir dificuldades
de toda ordem próprias para deteriorar as condições de trabalho dos professores
sem melhorar realmente a situação dos alunos. (p.525).

A “progressão continuada”, uma medida de regularização de fluxo que envolve o trabalho

numa lógica de ciclos de aprendizagem, sobretudo nos anos iniciais do ensino fundamental, nos

três primeiros anos, em que não deve haver reprovação, implica na convivência dos professores

com possíveis contradições, como o mero afrouxamento da responsabilidade educativa ou, ao

contrário, a percepção da oportunidade de inclusão efetiva nos conhecimentos. Está em pauta a

flexibilização das avaliações e estruturas curriculares, podendo significar desinvestimento ou

acompanhamento sério dos alunos no sentido da contribuição para a superação de lacunas e

promoção do desenvolvimento.

O aumento citado nas atribuições da escola e dos professores relaciona-se à intensificação

do trabalho mencionada e às responsabilidades postas à escola conforme trazidas por Libâneo

(2012), no sentido do acolhimento social. As demandas oriundas da ampliação do acesso de

alunos com modos de socialização familiar diferentes dos padrões de referência da escola e

conflitos gerados pela lógica exclusão-inclusão implicam no aumento e complexificação das

atribuições do professor, que deve dar conta de diversas variáveis para desenvolver seu trabalho

de educador. Oliveira (2004) menciona que muitas vezes o professor deve assumir funções de

agente público, assistente social, enfermeiro, psicólogo, entre outros, tirando o foco do “ensinar”

e gerando um sentimento de perda da identidade profissional.

Verifica-se também a responsabilização do professor pelo fracasso da educação e

insucesso dos alunos pela lógica avaliativa focada nos resultados dos discentes e estabelecimento

de rankings (Gomes, Colares, Colares & Brasileiro, 2012; Silva, 2013). Com o foco na
43

responsabilização docente por dificuldades e contradições que extrapolam a escola, a ação do

professor no sentido de atender aos critérios para um bom resultado nas avaliações pode tornar-se

alvo de contradições. Estas se situam no esforço por atender o exigido pela norma e no foco sobre

a mediação do conhecimento e produção de desenvolvimento humano, podendo acarretar no uso

de medidas de mascaramento de problemas e insucessos, como o afrouxamento das exigências e

progressão automática de alunos, ou o “treino” para a avaliação, ao invés da busca pela mediação

e consolidação de conteúdos.

Enquanto fator de precarização do trabalho do professor da educação básica há ainda a

falta de tempo decorrente da necessidade de dobrar a jornada de trabalho em função do salário

insatisfatório, o que pode acarretar em prejuízo no contato com os pares e tempo disponível para

planejamento e estudo.

Apesar das dificuldades, observam-se avanços nas políticas envolvendo o trabalho do

professor da educação básica nas últimas décadas, embora persistam contradições e situações de

precarização. Doravante serão apresentadas e brevemente discutidas algumas políticas de impacto

na atuação do professor, como as políticas de valorização docente relativas à remuneração,

jornada de trabalho, formação inicial e continuada e às políticas de participação democrática na

escola.

A implantação do FUNDEF e sua posterior substituição pelo FUNDEB, sobretudo este

último, foi importante no percurso de conquistas trabalhistas para os professores da educação

básica através de políticas de valorização docente. A partir do FUNDEB é prevista a criação do

Piso Salarial Profissional Nacional para a categoria, regulamentado em 2008 pela Lei 1.738,

compreendendo atualização salarial anual. Com o FUNDEB ampliou-se também a verba


44

destinada para a capacitação de professores e foi mantida a exigência legal de criação de Planos

de Carreira e Remuneração do Magistério por estados e municípios com a incorporação do valor

do piso. No entanto, a valorização se deu mais no plano individual do que coletivo, envolvendo a

compreensão de mérito, empenho, iniciativa e responsabilidade individuais como requisitos para

a progressão da carreira, por exemplo, e no investimento em capacitação/formação pessoal, em

detrimento de medidas de enfrentamento coletivo de problemas e fortalecimento de grupos de

trabalho (Ramos, 2009).

Em relação à jornada de trabalho, a implantação do piso salarial dos professores implicou

ainda na dedicação de 2/3 da carga horária para atividades com os alunos, deixando implícita a

destinação de 1/3 do horário para atividades extraclasse, como o planejamento e participação em

reuniões, etc. Fator que constituiu igualmente um avanço, embora não haja garantia de sua

efetivação em todos os sistemas de ensino do país, assim como outras medidas de valorização

docente, tendo em vista que o governo de estados e municípios podem protelar sua adoção

(Maués & Camargo, 2012).

A resolução CNE/CEB n. 2/2009 homologada pelo Ministério da Educação, que fixa as

diretrizes nacionais para os planos de remuneração e carreira dos profissionais do magistério da

educação básica pública, não tem caráter de lei, mas constitui uma perspectiva norteadora,

abarcando importantes aspectos que envolvem o trabalho docente. Alguns deles são: a

participação dos profissionais da educação no PPP da escola, o incentivo à dedicação a uma

unidade escolar, a preferência pela jornada de 40 horas semanais compreendendo a ampliação das

horas dedicadas ao planejamento e outras atividades, a necessidade de formação continuada dos

profissionais, pela constituição de espaço de trabalho pedagógico coletivo como momento de


45

formação, a garantia, na rede, da oferta de programas de formação continuada, a instituição de

mecanismos de concessão de licenças para formação continuada, etc. (Gatti, 2012).

Em relação ao número de alunos em sala de aula, elemento importante a se considerar

tendo em vista o trabalho cotidiano do professor, o documento final da Conferência Nacional de

Educação (CONAE, 2014), em seu eixo VI, sobre Valorização dos profissionais da educação:

formação, remuneração e condições de trabalho, na meta 2.20, estabelece “a limitação de

estudantes por turma, assim distribuídos: 0-2 até oito crianças; 3-5 até 15 estudantes; fundamental

séries/anos iniciais até 20 estudantes; fundamental séries/anos finais até 25 estudantes; médio e

superior até 30 estudantes” (p. 98). Estes números não costumam se confirmar na prática, tendo

em vista que a demanda da educação pública costuma ultrapassar os professores disponíveis nos

sistemas de ensino. Atualmente está em tramitação na câmara o PL 4628/2016, que estabelece a

modificação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - Lei 9.394/96) para fixar

o numero máximo de alunos por professor nas turmas da educação básica ao modo do proposto

pela Conae em 2014.

Em relação à formação inicial de professores da educação básica, historicamente

precarizada por formações aligeiradas e admissão de pessoas sem formação adequada para a

atividade tendo em vista a ampliação do ensino e necessidade de profissionais (Ferreira Jr. &

Bittar, 2006), até recentemente foi exigida formação em nível superior em área pertinente para o

ingresso. No entanto, a modalidade em nível médio continuou sendo aceita, considerando a

presença de professores com essa formação nas redes, conforme menciona o parágrafo I do artigo

61 da LDB, que diz considerar profissionais da educação básica professores habilitados em nível

médio ou superior. Recentemente com a aprovação da lei 13.415/2017 que altera a LDB,
46

estabelece-se, no parágrafo IV do artigo 61 da mesma, que profissionais com “notório saber”

estão habilitados a atuar nos sistemas de ensino, implicando em afrouxamento da exigência de

formação em nível superior na área, o que representa um passo para trás na luta pela valorização

do conhecimento docente. Para garantir que os professores da educação pública básica tenham a

formação exigida pela LDB, foi elaborado o Plano Nacional de Formação de Professores da

Educação Básica, Parfor, pelo decreto 6.755 de janeiro de 2009, da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em colaboração com Estados,

Municípios e Instituições de Ensino Superior, que oferece cursos de formação em primeira ou

segunda licenciatura, ou formação pedagógica, aos docentes em exercício cuja formação não se

adequa às exigências da legislação. No entanto, a formação em nível superior, mesmo que

desejável, não é garantia de qualidade vide a diversidade de instituições e modalidades de ensino

existentes, públicas ou privadas, com cursos presenciais ou à distância, implicando em qualidades

distintas (Carissimi & Trojan, 2011). O mesmo pode-se dizer das pós-graduações, sobretudo as

de lato sensu.

A formação continuada é elemento fundamental no contexto da valorização docente

visando ao seu desenvolvimento profissional e o aprimoramento da qualidade da educação

(Davis, Nunes, Almeida & Silva, 2011). Há o discurso da atualização e da necessidade de

renovação face aos desafios do acolhimento cada vez maior de crianças e adolescentes nos

sistemas de ensino (Gatti, 2008). A autora ressalta os interesses em jogo no campo da formação

continuada, de preparação para uma “nova” economia, enfocando a produtividade, e de formação

para e promoção do desenvolvimento humano. Há uma ideia recorrente na literatura

especializada de que a formação continuada de professores seria necessária e teria como principal

função suprir as lacunas da formação inicial, enquanto outros modelos falam em sua necessidade
47

pelo dinamismo do campo educacional, cobrando o aprimoramento constante da base conceitual

e habilidades pedagógicas dos professores (Davis et al., 2011; Gatti, 2008).

Duas perspectivas de formação continuada se destacam: as individualistas, centradas no

professor, e as colaborativas, defendendo uma cultura de trocas e amparos mútuos entre os

docentes de modo a superar os entraves encontrados no trabalho (Davis et al., 2011). De acordo

com os autores, a perspectiva individualista centra-se na percepção da necessidade de maior

qualificação docente e conhecimento do seu papel e importância, auxílio e embasamento face às

lacunas de formação e atenção às necessidades especificas dos diferentes ciclos de vida

profissional. A perspectiva colaborativa se centra no desenvolvimento das equipes pedagógicas

(direção, coordenação, corpo docente), devendo ocorrer no interior das escolas, à luz dos desafios

enfrentados. O coordenador pode ser compreendido como principal responsável pelas ações de

formação continuada nas escolas, havendo também busca por “fortalecer e legitimar a escola

como lócus de formação contínua e permanente, de modo a criar nela uma comunidade

colaborativa de aprendizagem.” (Davis et al., 2011, p. 831). Os autores trazem que poucos são os

programas e políticas que têm realmente conseguido desenvolver práticas de formação

colaborativa e salientam a importância de considerar o professor enquanto especialista e ator no

processo de formação, além de defender a criação de espaços de formação colaborativa entre as

escolas da rede e o estabelecimento de parcerias com as universidades.

Programas de formação continuada oferecidos pelos sistemas de ensino, como o Programa

de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa), Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade

Certa (PNAIC), Pró-letramento, dentre outros, enquadram-se em uma perspectiva mais

individualista de formação continuada e que visa o suporte e aprofundamento teórico e conceitual


48

para a atuação docente, embora possam proporcionar momentos de trocas entre os pares,

questionamento sobre desafios do cotidiano e protagonismo dos professores, num viés

colaborativo. Os momentos periódicos de planejamento pedagógico tem potencial para

constituírem espaços de formação continuada colaborativa. A hora atividade, momento dedicado

ao planejamento e atividades extraclasse, pode viabilizar o avanço da prática pedagógica num

sentido transformador através da aproximação entre teoria e prática em discussões coletivas face

aos desafios do dia-a-dia de modo crítico e reflexivo (Haddad & Silva, 2012). No entanto os

autores questionam a utilização da hora-atividade como espaço de formação continuada,

ressaltando casos de esvaziamento teórico das discussões, sem um embasamento norteador da

ação. Como limites ao aproveitamento do momento, Haddad e Silva (2012) citam a assunção

pelo coordenador de responsabilidades que extrapolam sua ação, como a lida com os problemas

de indisciplina dos alunos, e as faltas dos professores (assumindo, por vezes, sua posição em sala

de aula). A hora atividade destina-se igualmente à realização de atividades práticas inerentes à

função do professor, o que pede planejamento e organização para a utilização periódica do

momento no sentido da formação continuada.

A perspectiva da formação continuada colaborativa que busca envolver a escola e seus

atores tem relação com o desafio da gestão democrática na escola, fruto das lutas do período da

redemocratização. Os dispositivos que caracterizam a gestão democrática são: a constituição dos

conselhos escolares, a elaboração e operacionalização do PPP da escola, o provimento do cargo

de diretores por meio de eleição, etc. (Sousa & Silva, 2013). A LDB, em seu artigo 14, define os

princípios da gestão democrática enquanto participação dos profissionais da educação na

elaboração do PPP da escola e participação da comunidade escolar, envolvendo a equipe escolar

e os familiares dos alunos, nos conselhos escolares.


49

O Conselho Escolar deve se configurar como um espaço de diálogo, debate e participação

nas deliberações de forma democrática, explicitando conflitos e caminhando no sentido de sua

superação. No entanto, tem demonstrado mais sua faceta burocrática que sua inspiração

democrática, tomado como medida isolada e descolado de uma política mais ampla e séria de

democratização da escola (Paro, 1993). A intensificação laboral também é um fator que dificulta

e traz prejuízos à participação docente nos espaços de democratização da gestão escolar,

reservando aos professores uma posição de “dadores de aula”, “uma vez que suas condições de

trabalho não facultam sua participação na globalidade do trabalho educativo” (Sousa & Silva,

2013, p.21), decorrendo no aumento de práticas individualizadas e esmorecendo o trabalho

coletivo na escola. Em relação ao PPP, diversos autores defendem-no como importante

instrumento de organização da escola, servindo na ampliação da formação docente em serviço e

com potencial para “produzir transformações na consciência dos educadores num sentido oposto

ao da alienação” (Asbahr, 2005, p.68), permitindo também a consolidação de um projeto

coletivo.

2.4.3. Ensino fundamental: anos iniciais.

A presente seção abarcará as especificidades do ensino fundamental, particularmente os

anos iniciais, envolvendo políticas, organização e especificidades do trabalho do professor nesta

etapa. O ensino fundamental divide-se em anos iniciais (1º ao 5º) e anos finais (6º ao 9º), é

antecedido pela educação infantil e precedido pelo ensino médio. A lei federal 11.274,

promulgada em 2006, ampliou o ensino fundamental no Brasil de oito para nove anos, através da

inclusão das crianças de seis anos de idade, que passaram a frequentar o 1º ano de ensino.
50

A ampliação da escolaridade às crianças de seis anos tem sido apontada como um modo

que se propõe a repensar a cultura pedagógica da alfabetização no ensino fundamental e reverter

resultados negativos evidenciados nas avaliações, bem como a significativa repetência nos

primeiros anos de ensino (Mainardes & Stremel, 2012; Santos & Vieira, 2006; Silva & Cafiero,

2011). A instituição do ensino fundamental de nove anos foi uma política importante, tendo em

vista a ampliação da oferta educacional, a possibilidade de socialização e inserção na cultura

escolar mais cedo e o favorecimento de melhores condições de alfabetização para as crianças

(Mainardes & Stremel, 2012; Santos & Vieira, 2006). Com a ampliação da escolaridade entra em

pauta a discussão acerca da utilização de um sistema de ciclos, sobretudo nos três primeiros anos

de ensino, envolvendo a compreensão da aprendizagem como processo contínuo, dispensando

interrupções desnecessárias e visando a construção de um sistema educacional inclusivo e

democrático (Mainardes & Stremel, 2012). As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação

Básica, normas que orientam o planejamento curricular das escolas, discutidas e fixadas pelo

CNE, compreendem os três primeiros anos do ensino fundamental compondo um ciclo centrado

no processo de alfabetização. No entanto, limitando a reflexão e tomada de medidas que a adoção

efetiva de uma política de ciclos implicaria, pode haver opção à manutenção do sistema seriado

fazendo uso de um regime de progressão continuada, em que a repetência não é colocada, “sem

prejuízo da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo

sistema de ensino”, como relata o 2º parágrafo do artigo 32 da LDB.

Para os anos iniciais (1º ao 3º) existe a proposta de um currículo comum, embora não

oficializada, pelo documento “Direitos de Aprendizagem no Ciclo de Alfabetização”, divulgado

pelo Ministério da Educação em dezembro de 2012, relacionado, dentre outros, ao PNAIC. A

meta colocada pelo documento é a alfabetização até os oito anos. O documento é considerado
51

relevante tendo em vista a premissa da importância de alfabetizar todas as crianças até os oito

anos enquanto elemento que propiciará avanço na escolarização, enfocando a centralidade da

criança no processo de ensino (Alferes & Mainardes, 2014). Apesar disto os autores reconhecem

que a proposta necessita ser discutida, analisada por especialistas e debatida com professores e

gestores.

Nas escolas públicas, o termo polivalente para o professor dos anos iniciais deve-se ao

fato deste assumir uma turma e ser responsável por lecionar diferentes áreas do conhecimento:

língua portuguesa, matemática, ciências, história e geografia (Lima, 2012). Nesse contexto há o

desafio de trabalhar com diferentes áreas do conhecimento e o reconhecimento da ênfase voltada

para o ensino da leitura, da escrita e das quatro operações matemáticas (Lima, 2012; Cruz &

Neto, 2012). Coloca-se, por vezes, a negligência com componentes curriculares pouco dominados

pelo professor e a possível identificação, na realidade brasileira, do professor dos anos iniciais

como um professor alfabetizador (Cruz & Neto, 2012).

Em relação às particularidades positivas de ser professor dos anos iniciais do ensino

fundamental, os trabalhos de Lima (2012) e Cruz e Neto (2012) ressaltam a possibilidade de

exercer um trabalho de melhor qualidade com as crianças em virtude da extensão do tempo

passado com uma única turma, facilitando conhecer o aluno e compreender suas dificuldades e

histórias de vida, retomar conteúdos não compreendidos e contribuir para sua formação integral,

tendo em vista a possibilidade de fazer conexões e compreender de forma global as disciplinas

trabalhadas, fazendo uso da interdisciplinaridade. Quanto aos desafios da atuação nesta etapa de

ensino, os autores mencionam a complexidade e a não garantia do exercício da polivalência

assegurar a ligação entre as disciplinas, bem como o fato de não precisar ser polivalente para
52

fazer tais conexões. Foram ressaltados também os limites do referente único na turma, podendo

dificultar a aprendizagem em casos de falta de empatia na relação professor – aluno (Cruz &

Neto, 2012). Estes autores trouxeram igualmente a dificuldade de se trabalhar com alunos em

diferentes níveis de aprendizagem (heterogeneidade), principalmente no tocante à apropriação da

leitura e da escrita, ressaltando a queixa por parte de professores do ciclo final dos anos iniciais

do ensino fundamental, bem como dos anos finais, em relação a receberem alunos ainda não

alfabetizados.

Como aponta Alves-Mazzotti (2008), estudos demonstram que o elemento “dedicação”

compõe o núcleo central das representações sociais das professoras das séries iniciais acerca da

própria profissão. A autora traz que a construção de sentido ligado ao termo associa-se à idade

das crianças e tempo de permanência com as mesmas somados à carência e ao desamparo a elas

atribuído. O sentido de dedicação liga-se à maternidade, ao cuidar e proteger. Vinculada a esta

discussão está a perspectiva da escola do acolhimento social, por vezes sobreposta à perspectiva

de escola do conhecimento, como trazido por Libâneo (2012).

Levando em consideração a trajetória histórica da profissão docente no Brasil, Rabelo e

Martins (2010) referem-se ao fenômeno da feminização da carreira tendo em vista a progressiva

ocupação dos espaços de ensino pelas mulheres ao longo do século XX, graças às oportunidades

históricas aí perpetradas para este público, de obtenção de uma formação e exercício profissional

que não “escapava” tanto do perfil das responsabilidades maternas e do lar. Também, com a

necessidade de ampliação da educação, as mulheres, por ganharem menos do que os homens,

foram mais recrutadas e se mantiveram em maior número no magistério em comparação a estes,

que possuíam uma gama maior de oportunidades fora da docência. O conceito difundido de
53

“dom” e de “vocação” feminina para o magistério, conectado à função materna, justificava a

restrição das mulheres a esta posição, aos baixos salários recebidos e às más condições de

trabalho (Rabelo & Martins, 2010), paralelo que pode ser estabelecido com o conceito de

“dedicação” discutido no parágrafo anterior.

2.5. Contexto local

As escolas municipais de Natal espalham-se pelas zonas norte, sul, leste e oeste, sendo as

instituições responsáveis pelo ensino fundamental I mais numerosas nas zonas norte e oeste,

atendendo, em sua grande maioria, zonas periféricas e populações menos favorecidas, como

costuma ocorrer com a educação pública básica no Brasil. Natal possui IDEB abaixo da média

nacional (de 5,3) em relação aos municípios brasileiros, correspondendo a 4,7.

O município de Natal paga seus professores de acordo com o piso nacional para a

categoria por 20 horas semanais de trabalho, ao contrário de outras localidades que acertam o

mesmo valor para uma jornada de 40 horas, o que configura uma situação um pouco melhor,

ainda que os salários continuem sendo insuficientes para uma sobrevida digna com certa margem,

especialmente considerando-se a necessidade de sustento de uma família, por exemplo, e

desgastes envolvidos na necessidade de dobrar a jornada de trabalho em outra instituição. Das 27

capitais brasileiras, Natal está em 23ª posição quanto ao nível salarial ofertado aos professores da

educação pública básica de acordo com ranking feito pela revista Exame publicado em 18 de

junho de 2015 com base em dados do IBGE.

Em relação ao Plano de cargos e salários, o mesmo foi instituído pela Lei Complementar

058/2004, apresentando dois níveis (I e II) e 15 classes (A - P). O nível I corresponde aos

professores com formação em curso superior de licenciatura plena com habilitação específica
54

para o magistério da educação básica, e o nível II corresponde ao mesmo acima citado somado a

diploma de pós-graduação na área da educação (especialização, mestrado ou doutorado). Existem

ainda os níveis especiais, em extinção, para os professores cuja formação (nível médio,

licenciatura curta) não atende aos atuais critérios de ingresso na rede. As classes dizem respeito

ao tempo na profissão, desempenho e qualificação profissional. Embora seja feita uma avaliação

anual dos professores, a promoção só pode ser concedida após quatro anos na classe A (classe de

ingresso) e a cada dois anos nas demais classes. Macedo e Neto (2009) trazem críticas de uma

representante do Sinte/RN (Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Rio Grande do

Norte) à forma e implementação da avaliação do desempenho docente, trazendo seu caráter

individualizante, que não se propõe a fazer um diagnóstico da rede e resume-se a promover ou

não promover profissionais. Os autores trazem ainda que as avaliações não levam em

consideração as condições de trabalho dos professores.

Em relação à hora atividade, está previsto um dia de planejamento por semana (quatro

horas), que equivale a 20% da jornada de 20 horas semanais, o que se contrapõe à lei do Piso que

prevê dedicação de 1/3 da carga horária para atividades extraclasse. Macedo e Neto (2009)

colocam, em pesquisa feita com docentes do município de Natal, que 77,9% dizem levar

atividades do trabalho para casa, revelando a insuficiência do tempo de planejamento, sobretudo

considerando as duplas ou triplas jornadas e a exigência do planejamento no tocante à atividade

docente.

Sobre a educação inclusiva, legalmente a mesma passou a ser oficializada no Brasil pela

LDB. Menezes, Bartelmebs, Ramos e Lahn. (2016) colocam as falhas e desafios da inclusão no

sistema educacional brasileiro, não garantida apenas pela inserção do aluno na escola, trazendo os
55

receios e inseguranças que perpassam os professores na lida com o tema, além de provável

sobrecarga. A Resolução 05/2009, que fixa as normas relativas à educação das pessoas com

necessidades educacionais especiais (NEE) no sistema municipal de ensino, estabelece um

número mínimo de alunos (25) por turma para os anos iniciais (1º ao 5º) compreendendo o limite

de três alunos com NEE por turma, além da disponibilização, a cada vinte alunos por turno com a

demanda, de um professor auxiliar para apoio pedagógico e educacional. Em etapa anterior à

coleta, a pesquisadora entrou em contato com o setor responsável pela educação especial da

Secretaria de Educação do Município de Natal e foi trazido que os auxiliares são prioritariamente

demandados para casos de alunos com autonomia reduzida, priorizando demandas ligadas a

deslocamento, autocuidado e higiene, de fato básicas, ao invés de demandas propriamente

pedagógicas. Também foi trazido que os auxiliares tratam-se muitas vezes de estagiários de

cursos de licenciatura, o que diz das possibilidades de tratamento da demanda, não possuindo

necessariamente um maior preparo para a lida com as questões da educação inclusiva.

O município de Natal conta também com os programas de regularização de fluxo,

diminuição da distorção idade-série, Acelera e Se liga, promovidos pelo Instituto Ayrton Senna.

O programa Acelera destina-se a crianças alfabetizadas matriculadas no ensino fundamental I

com no mínimo dois anos de distorção idade-série, enquanto o Se liga volta-se para alunos do

ensino fundamental I não alfabetizados. Os programas apresentam um modo próprio de

funcionamento, com no máximo 25 alunos por turma, sem alunos com NEE, materiais e ritmo

específicos e pré-definidos, o que impacta diretamente o trabalho docente, favorecendo uma

visão do professor enquanto simples técnico e reprodutor de tarefas e conteúdos. Oliveira e

Coutinho (2014) colocam a falta de comunicação destes programas com a equipe gestora da

escola, enfatizando seu caráter pontual, além do funcionamento em condições específicas que não
56

levam em consideração o contexto da escola pública e uma perspectiva séria de transformação e

emancipação. Este quadro ilustra o avanço da iniciativa e do modelo de gestão privada no

território público e curricular da escola, alinhando-se a perspectivas neoliberais focados na lógica

do desempenho (Thiesen & Durli, 2016). Durante a coleta observou-se o caso de uma escola em

que o programa sobrecarregava outras turmas que ficavam com mais alunos especiais do que o

limite estabelecido pela legislação municipal (três alunos com NEE), além de possuírem mais de

25 alunos no total.

A respeito dos vínculos docentes de caráter temporário, Macedo e Neto (2009) enfatizam

esta forma precarizada de trabalho também presente no município de Natal, embora em menor

proporção do que em outros municípios, envolvendo menor gasto por parte do governo pelo não

pagamento de FGTS, férias e não acesso à progressão de cargos e salários, além de ratar-se de

condição instável, não havendo garantias de permanência no cargo ou instituição.

Em 30 de março de 2016 o Portal no ar divulgou notícia a partir de dados da Secretaria

Municipal de Educação de Natal de 580 professores afastados de suas funções, 400 por questões

médicas, sendo os principais motivos: estresse, depressão ou outras questões de ordem

psiquiátrica. Considerando-se o número de docentes na educação municipal de acordo com dados

do IBGE (2015), que contabilizou 2026 professores na rede, o percentil de afastamentos é de

19,74% por questões médicas. Número inferior, apesar de relevante, ao encontrado pela pesquisa

da Faculdade e Educação da UFMG, de 2010, que investigou o afastamento de docentes de sete

estados (Pará, Rio Grande do Norte, Goiás, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná e Santa

Catarina), chegando a uma média de 28% de afastamentos de sala de aula nos últimos 24 meses

estudados por meio de licença médica (Franco & Moraes, 2012).


57

3. Capítulo 2 – Trabalho docente

3.1. Trabalho pedagógico e alienação

Conforme discutido na seção “Educação e Humanização”, a compreensão do conceito de

trabalho fundamenta-se na perspectiva marxiana de trabalho enquanto atividade humanizadora,

de produção da humanidade através das relações coletivas de trabalho ao transformar a natureza

através da linguagem, dos instrumentos e das relações (Asbahr, 2005), perspectiva abarcada pela

abordagem histórico-cultural de Vigotski, que enfoca aspectos psicológicos deste processo de

necessário saber para fazer No contexto do capitalismo, as relações de produção baseiam-se na

exploração de uma parte da população por outra. Uma parcela reduzida detentora dos meios de

produção e outra que necessita vender sua força de trabalho para sobreviver. O trabalho é

compartimentalizado e já não é necessário saber para fazer. Planejamento e execução, trabalho

manual e trabalho intelectual tornam-se momentos separados, o trabalhador é desqualificado e

destituído de seu saber (Asbahr, 2005). Nesse quadro, o trabalho pedagógico apresenta

particularidades. No caso da educação pública, trata-se de trabalho não produtivo, pois como não

visa o lucro, não produz mais-valia para um empregador. É também um trabalho não material,

pois seu produto não é palpável, trata-se de um serviço. No trabalho pedagógico, o produto e o

ato de produção não podem ser separados. Sobre isto, Paro (1993) aprofunda a discussão

colocando que a aula do professor é o seu trabalho, ao passo que o produto não se restringe ao ato

de aprender, pois o conhecimento permanece e se transforma, transcendendo o mero consumo.

De acordo com o autor, o aluno é objeto de trabalho, pois sobre ele incide o trabalho do educador

que o transforma para além do momento da aula, mas é também sujeito ativo de seu processo de

aprendizagem e co-produtor do mesmo.


58

Devido às suas características de trabalho não produtivo e de impossibilidade de

separação total entre processo produtivo e produto, o Capital não exerce controle direto no

trabalho pedagógico, mas o faz de forma política e ideológica (Asbahr, 2005). Ao enfocar o

processo de constituição da consciência enquanto produto subjetivo da atividade dos homens com

outros homens e com objetos, Leontiev (2004) compreende o processo de significação como

“reflexo da realidade independentemente da relação individual ou pessoal do homem a esta.”

(p.102), pois este encontra “um sistema de significações pronto, elaborado historicamente, (...).”

(p.102) do qual se apropria. O modo de apropriação da significação, o que ela representa ao

sujeito na constituição de sua personalidade configura o sentido pessoal atribuído que se constrói

na vida pela atividade (Leontiev, 2004). O autor coloca que em etapas anteriores da evolução

humana significação social e sentido pessoal encontravam-se unidos, o homem vivia em

comunhão com sua sociedade, indivíduo e grupo pouco se distinguiam. No entanto, sob o

capitalismo, caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção e separação do

trabalho manual e intelectual, sentidos e significados deixam de ser coincidentes e tornam-se

contraditórios.

Para o trabalhador, embora o significado social de seu trabalho seja produzir


determinados produtos, o sentido de trabalhar é outro, é obter um salário porque só
assim pode sobreviver. O sentido da ação do trabalhador distancia-se do motivo
social da atividade laboral. (Asbahr, 2005).

Este processo é compreendido por Leontiev como processo de alienação, que se enraiza e

manifesta no contexto da atividade. Haddad e Silva (2012) colocam que a separação entre

trabalho material e intelectual, no contexto da escola, tem produzido uma divisão entre teoria e

prática pedagógica, levando à alienação do trabalho do professor.


59

A significação social da atividade pedagógica, como desenvolvido na seção sobre

“Educação e Humanização”, pode ser compreendida, em sua elaboração social e histórica, como

a apropriação do conhecimento planejado e sistematizado pelos alunos no intuito de produzir

desenvolvimento psíquico, além da formação da postura crítica do aluno, possibilitando que este

tenha acesso ao processo de produção do conhecimento. Vasconcellos (1999) é citado por Asbahr

(2005) ao falar sobre a alienação docente enquanto caracterizada pela falta de compreensão e

domínio nos vários aspectos da tarefa educativa. O autor aponta a dimensão sociológica, ou

histórico processual, referente à falta de clareza sobre a realidade em que se vive (como as coisas

chegaram ao ponto em que estão); a dimensão política e filosófica, relativa à falta de clareza

quanto à finalidade do que se faz (educação para quê, que tipo de homem e de sociedade se

deseja formar); e, por fim, a dimensão pedagógica, que corresponde à falta de clareza em relação

à ação mais específica em sala de aula. Estas dimensões envolvem a relação de sujeitos e

coletivos com a atividade, sua expressão subjetiva, possibilidades e impedimentos visualizados.

A atividade pedagógica alienada torna-se uma operação automatizada de repetição de

conteúdos, reprodução do livro didático ou espera pela passagem do tempo enquanto os alunos

também realizam atividades sem sentido (Asbahr, 2005). A autora cita Basso (1994) na

compreensão de que os professores, ao sentirem a cisão entre significado e sentido de seu

trabalho, expressam frustração e desânimo, avaliando suas condições como limitadoras,

explicitando que esse fenômeno não é simplesmente subjetivo, mas produzido em condições

objetivas concretas que repercutem diretamente na consciência docente. A alienação da atividade

pedagógica “só pode ser compreendida se analisarmos as condições objetivas e subjetivas do

trabalho docente como unidade dialética.” (Asbahr, 2005, p.62). Por outro lado, Haddad e Silva
60

(2012) colocam o trabalho em seu potencial de humanização, enquanto promotor de emancipação

do homem e processo de autocriação em que trabalho material e intelectual estejam associados.

3.2. Trabalho docente, características e contradições

O trabalho docente forma-se no decorrer da existência, num processo de construção de si

na relação com os outros (Lima, 2012). Tardif (2013) coloca pontos considerados importantes da

pesquisa internacional em relação ao conhecimento dos professores, como: a compreensão de que

estes estão enraizados no trabalho e na experiência, construídos no contexto de interações com os

alunos, ancorados na experiência de vida no trabalho, envolvendo a reinterpretação de

conhecimentos externos em função das necessidades específicas do trabalho.

Sobre a necessidade de integração teoria-prática, conhecimentos acadêmico-científicos e

prático-profissionais, evoca-se a relação dialética entre aprendizagem e desenvolvimento

explicada por Pastré (2012). De acordo com o autor, a aprendizagem refere-se a um

saber/objeto/disciplina e o desenvolvimento volta-se para um sujeito, sua capacidade de análise,

síntese e problematização. Enquanto a aprendizagem pode restringir-se a um objeto de saber, não

é, tampouco, possível promover o desenvolvimento sem que haja referência a um

saber/disciplina. A dialética da relação entre aprendizagem e desenvolvimento relaciona-se à

produção de desenvolvimento a partir de saberes, transcendendo os objetos de aprendizado, indo

além dos mesmos. Pastré (2012) refere-se à compreensão de uma constelação de saberes

interligados em referência a uma situação dada, perspectiva que enfatiza a promoção de

desenvolvimento colocando saberes em situação, o que ocorre no ambiente profissional, por

exemplo. De acordo com Nogueira (2012), o trabalho se constitui na tensão entre formação e

atuação profissional. Lima (2012) entende que ensinar é fazer escolhas constantemente em
61

interação com os alunos e cita Tardif (2002) na compreensão de que essas escolhas dependem da

experiência dos professores, conhecimentos, crenças, compromisso, representações sobre os

alunos, além dos próprios alunos, envolvendo os saberes em situação.

Analisando os discursos de documentos oficiais relativos à educação, Nogueira (2012)

traz que as condições de trabalho são muitas vezes tratadas de forma marginal e constata a lógica

de qualidade da educação centrada na regulação do trabalho docente por meio de avaliações.

Elementos que, de acordo com a autora, produzem afastamento e desconhecimento da situação de

trabalho do professor, suas circunstâncias, ajustes, prescrições, instrumentos, etc. Nogueira

(2012) compreende que “os diversos discursos produzidos acerca do trabalho do professor são

constitutivos da própria atividade de trabalho e fazem parte do processo de ajustamento e de

“apropriação psicológica” do trabalho pelo trabalhador.” (p.1250). Em relação a isso as posições

que vinculam qualidade da educação à formação e qualificação sem indicar a necessidade de

melhorias nas condições de trabalho, possuindo uma visão do trabalho separada das condições

sócio-históricas, tem efeito no modo de interpretação e lida com as dificuldades e

impossibilidades dos professores, por meio da autorresponsabilização e/ou culpabilização da

criança e da família pelo fracasso escolar (Nogueira, 2012).

No tocante às funções docentes, Lima (2012) faz uma síntese com base nos trabalhos de

Libâneo, Oliveira e Toschi (2003) e Tardif e Lessard (2005), estabelecendo três dimensões

principais: a relação com o ensinar, que envolve a interação com o aluno, o planejamento do

ensino e a gestão da sala; O desenvolvimento pessoal e profissional, referindo-se a atividades que

envolvam reflexão, discussão, atualização e questionamentos sobre o próprio desenvolvimento e

atuação; E, por fim, a gestão educacional, relacionada à participação na organização da gestão da


62

escola, na construção do PPP, conselhos de classe, associações de pais e mestres, reunião de pais,

etc.

Em relação às tensões, escolhas e desafios do ato de ensinar, Lima (2012) traz a tomada

de decisão dos professores entre avançar a turma ou ocupar-se dos alunos com dificuldades,

afastar os que perturbam ou integra-los, trabalhar no coletivo visando atingir o individual, avaliar

sem excluir, gerir as heterogeneidades da turma e sua diversidade garantindo o aprendizado, além

do reconhecimento da necessidade e importância de predispor o aluno a aprender tendo em vista

seu papel ativo, essencial para a aprendizagem, etc. No tocante a essas questões que envolvem a

prática docente, Charlot (2008) aponta que, para além de um simples reflexo das contradições

sociais, as contradições do trabalho docente se arraigam nas tensões inerentes ao ato de ensino-

aprendizagem. De acordo com o autor, o modo como se gerem essas tensões dependem da

prática, da organização da escola, do funcionamento da instituição escolar, do que a sociedade

espera e lhe pede.

Os próximos parágrafos tratarão de algumas tensões e contradições envolvidas no

trabalho do professor no atual contexto brasileiro tendo por base o trabalho de Charlot (2008),

são elas: o professor como herói ou vítima, a culpa do professor ou a culpa do aluno no fracasso

escolar, o professor tradicional ou construtivista, universalista ou respeitador das diferenças, a

necessidade de ser autoritário ou amar os alunos e, por fim, a escola vinculada à comunidade ou a

escola como lugar específico.

Lima (2012) cita Nóvoa (1998) na constatação de um paradoxo vivido pelo professor de,

por um lado, ser avaliado, acusado de ser um profissional medíocre e tratado com desconfiança e,

por outro, ser alvo de discursos que o colocam como elemento essencial para a melhoria da
63

qualidade do ensino e progresso social e cultural. Trata-se do paradoxo do professor herói versus

vítima, herói da pedagogia e vítima mal paga e sempre criticada. Charlot (2008) aponta que essa

situação de estar preso entre discursos contraditórios gera vitimização, indignação e

desmobilização profissional, e se refere à necessidade dos professores muitas vezes fazerem

apelo a “estratégias de sobrevivência”, podendo colocar em segundo plano os objetivos de

formação dos alunos, sendo as tentativas de reforma ou inovação pedagógica vistas como

elementos desestabilizadores dessas estratégias, gerando resultados pouco expressivos. Falta a

perspectiva do:

Professor normal, que trabalha para ganhar um salário e sustentar sua família, que
vive situações esgotantes e, também prazeres dos quais pouco fala, que se sente
objeto de críticas, mas, afinal de contas, orgulha-se do trabalho feito, que ensina
com rotinas provadas, mas, às vezes, abre parênteses construtivistas. (p.22).

Em relação à tensão sobre em quem recai a culpa pelo fracasso escolar: professor ou

aluno, ambos são interpelados em uma lógica que nem sempre considera o contexto e lutam para

manter a própria dignidade. Cabe colocar novamente que o aprendizado requer mobilização

intelectual do aluno, no entanto a escola é vivida muitas vezes na lógica da nota e da

concorrência, onde o professor é visto como único ativo no processo, cabendo ao aluno uma

postura passiva de escutar e se comportar (Charlot, 2008), o que dificulta uma compreensão mais

ampla da problemática e penaliza, de um lado, o professor e, do outro, o aluno.

Outra tensão/contradição comum diz respeito às práticas tradicionais versus as

construtivistas nas escolas. Charlot (2008) explica que a pedagogia tradicional caracteriza-se por

uma postura de rigor e autoridade, tendo como prática fundamental, primeiro a explicação dos

conteúdos e regras da atividade para que o aluno possa aplicá-los. Já o construtivismo põe a
64

atividade do aluno em primeiro lugar, mobilizando-o intelectualmente na busca por respostas. No

entanto, é igualmente necessário compartilhar com os alunos do conhecimento sistematizado

produzido pelo homem, do saber científico, como coloca Vigotski (2014). Deste modo, “(...) a

questão fundamental não é saber se a professora é “tradicional” ou “construtivista”, mas como ela

resolve duas tensões inerentes ao ato de ensino e ao de educar.” (Charlot, 2008, p.25), uma vez

que “Ensinar é ao mesmo tempo, mobilizar a atividade dos alunos para que construam saberes e

transmitir-lhes um patrimônio de saberes sistematizados legado pelas gerações anteriores de seres

humanos.” (p.25). O autor coloca que o importante é compreender que as aprendizagens nascem

do questionamento e levam a sistemas constituídos, implicando que o docente seja professor de

conteúdos, mas igualmente professor de questionamentos. Atualmente é bem visto que os

professores se digam construtivistas, ainda que atuem basicamente de forma tradicional por

trabalharem em escolas organizadas para tais práticas, regidas por uma lógica de atribuição de

notas e avaliação externa que produzem alunos que buscam decorar conteúdos, colar, “sobreviver

numa escola que os coloca em situações que contradizem os objetivos de espírito crítico e

autonomia proclamados por ela.” (Charlot, 2008, p.26).

Outra tensão é a do professor universalista e respeitador das diferenças, o que entra no

tema da gestão do coletivo e do individual, levando em consideração o fato de que a escola

produz uma hierarquia escolar que legitima e prenuncia uma hierarquia social (Charlot, 2008).

Existe simultaneamente o discurso da escola democrática, universal, de que todos devem ser bem

sucedidos, e o imaginário de que existem alunos com capacidades diferentes e a necessidade de

diferenciá-los pelas notas.


65

Restaurar a autoridade e amar os alunos é mais uma tensão abordada. Nesse ponto Charlot

(2008) coloca que não há educação sem exigências, normas, autoridade, e também não há

educação sem, nas palavras do autor, simpatia antropológica dos adultos pelos jovens, que seria a

simpatia espontânea que leva a afagar bebês e animais “fofinhos”, constituindo o

balanço/ambivalência entre autoridade e mimo, característica inerente à relação dos adultos com

os jovens. A autoridade historicamente no Brasil esteve associada à opressão e arbitrariedade,

sendo a cidadania outra via de restauração da autoridade. Esta possui duas compreensões: uma

acrítica que atua no sentido do adestramento, bom comportamento, sobretudo das classes

desfavorecidas, e outra ligada à concepção da existência de direitos e deveres, capaz de olhar para

as desigualdades e questiona-las (Charlot, 2008).

Por fim, Charlot (2008) coloca a tensão da escola vinculada à comunidade e da escola

como lugar específico, esclarecendo que: “o universalismo e a especificidade da escola são

legítimos à medida que contribuem para esclarecer o mundo particular da criança singular e

ampliá-lo” (p.31). Este autor enfatiza os desafios da conciliação entre as duas ambições na

sociedade contemporânea, em que a professora compartilha cada vez menos do espaço de vida de

seus alunos. Conciliação difícil, pois:

(...) Se espera cada vez menos da professora que ela leve os alunos ao encontro do
universal e que ela lhes proporcione as chaves de compreensão da sua vida, e cada
vez mais que ela possibilite aos nossos filhos serem aprovados no vestibular
(p.31).

Ou sair-se bem em avaliações externas e enquadrar-se em sistemas que engessam e

padronizam o conhecimento.
66

3.3. Trabalho docente e saúde

As discussões que procuram relacionar trabalho e saúde/doença têm uma longa história na

área das ciências sociais como no campo da saúde e suas especialidades (Souza & Leite, 2011).

As análises de Marx em O Capital contribuíram na compreensão das condições de trabalho e suas

implicações para a qualidade de vida e saúde dos trabalhadores, desvelando a lógica da

exploração do trabalho assalariado com suas extensas jornadas, insalubridade, alienação do

trabalhador em relação ao produto e processo de trabalho, baixos salários pela existência de um

exército industrial de reserva, etc.

Na virada do século XIX para o XX, com a nova organização do trabalho inaugurada pelo

taylorismo e fordismo, que aprofundou a alienação do trabalho pela divisão mais pronunciada

entre trabalho manual e intelectual, controle rígido da gerência sobre o processo de trabalho,

intensificação laboral, dentre outros, houve aumento das discussões sobre o tema da saúde no

trabalho, embora as produções se voltassem em sua maioria para o interesse das empresas,

concentradas nas áreas de medicina do trabalho, administração de empresas e engenharia de

produção (Souza & Leite, 2011). Foi a partir dos anos de 1960, quando o próprio movimento

operário passou a criticar mais incisivamente as condições de trabalho, que a discussão ganhou

outros campos: sociologia, economia, antropologia, história, psicologia, etc., sendo marcada pela

multidisciplinaridade (Souza & Leite, 2011). Na década de 1970 ocorreram mudanças no mundo

do trabalho relacionadas a um novo modo de acumulação do capital denominado de flexível

(Harvey, 2003, como citado em Souza & Leite, 2011), caracterizado por outro nível de

internacionalização do capital, diminuição do Estado, regulação pelo mercado, novas exigências

de conhecimento e qualificação, etc.


67

As experiências do pós-segunda guerra bem como as lutas dos trabalhadores e transição a

outro modo de organização do trabalho inspiraram novas formas de conceber a relação entre

saúde e trabalho, das quais se destacam a ergonomia da atividade e a psicopatologia do trabalho,

ambas marcadas pela interdisciplinaridade (Silva & Ramminger, 2014; Souza & Leite, 2011). A

ergonomia surgiu a partir do desafio, após a segunda guerra, de reunir profissionais de diferentes

disciplinas com o objetivo de adaptar o trabalho ao homem, e não o contrário (Silva &

Ramminger, 2014). A tradição francesa da ergonomia privilegiou a análise da atividade ao invés

de centrar-se no componente humano, como fez a tradição inglesa, estabelecendo diferenças entre

trabalho prescrito e trabalho real: o primeiro relativo a condições e exigências de execução, e o

segundo referente ao modo de apropriação das tarefas, levando em conta as diversas

possibilidades e imprevistos diante da ação (Silva & Ramminger, 2014). A ergonomia interessa-

se pela atividade enquanto interação dinâmica entre o sujeito e sua tarefa, levando em conta o

prescrito bem como as variabilidades a serem geridas pelo trabalhador.

Por sua vez, a psicopatologia do trabalho apontou para a relação entre determinadas

ocupações e o adoecimento psíquico, compreendendo a organização do trabalho capitalista

enquanto nociva à saúde mental dos trabalhadores (Silva & Ramminger, 2014). Souza & Leite

(2011) colocam que a perspectiva inaugurou um novo paradigma teórico de referência, cujos

princípios são: A consideração da organização do processo de trabalho e sofrimento imposto aos

trabalhadores; As situações de saúde e doença percebidas como um continuum saúde/doença ao

invés de opostos; Por outro lado, cabe mencionar a percepção de uma dimensão dinâmica do

sofrimento, capaz de ensejar processos criativos de transformação, compreendendo o trabalhador

e seus coletivos enquanto participantes de seu processo saúde/doença e não apenas receptores
68

passivos. A ergonomia e a psicopatologia do trabalho constituíram a base para a clínica do

trabalho francesa (Silva & Ramminger, 2014).

As contribuições de Esteve (1999) aludem ao trabalho docente e às mudanças no mundo

do trabalho, explorando a dinâmica das possibilidades e constrangimentos profissionais que

afetam o trabalho dos professores, cunhando o termo “mal-estar docente”, cuja maior

contribuição é o destaque às condições sociais do trabalho, colocando o professor na organização

e em seu entorno social ao invés de isolado na sala de aula (Souza & Leite, 2011). O mal-estar

docente é definido por Esteve como desencadeado pela desvalorização concomitante às

constantes exigências profissionais, violência, indisciplina, etc., que podem gerar uma crise de

identidade em relação à escolha da profissão e questionamento sobre o seu sentido.

Sobre a relação saúde e trabalho docente, existem diversas pesquisas que abordam o tema

na perspectiva do estresse emocional e da síndrome de “burnout” (Souza & Leite, 2011).

Particularmente em relação a esta última o professor é uma das categorias mais estudadas e

suscetíveis, considerando que a síndrome costuma ocorrer em profissões que envolvem relações

interpessoais intensas, maior investimento no cuidado e dedicação ao trabalho, além de

discrepâncias entre expectativas e realidade (Souza & Leite, 2011; Cruz & Lemos, 2005;

Carlotto, 2002). O burnout designa sofrimento por exaustão física e emocional pela exposição

contínua a situações estressantes no contexto de trabalho, sendo sua definição mais aceita a

proposta por Maslach e colaboradores, fundada na perspectiva social-psicológica,

compreendendo três dimensões: a exaustão emocional/redução de energia, a despersonalização,

que envolve o distanciamento e a frieza do trabalhador em relação a usuários de seus serviços e

colegas, e realização profissional reduzida, relativa à auto avaliação negativa (Souza & Leite,
69

2011; Batista, Carlotto, Coutinho & Augusto, 2010; Carlotto, 2002). O burnout é um fenômeno

complexo e multidimensional que resulta da interação entre aspectos individuais e o ambiente de

trabalho, este considerado para além da sala de aula e da instituição, levando em conta fatores

macrossociais (Carlotto, 2002).

A perspectiva de compreensão da relação entre saúde e trabalho adotada na presente

pesquisa fundamenta-se no referencial teórico da clínica da atividade, uma abordagem de clínica

do trabalho de origem francesa que será mais bem explicitada e aprofundada no capítulo seguinte,

alinhando-se com uma visão dinâmica da atividade e do processo saúde/doença, levando em

consideração a centralidade do trabalho para o desenvolvimento da subjetividade, seus

atravessamentos históricos e sociais, além da posição ativa e potencialmente transformadora do

trabalhador e dos seus coletivos sobre a própria atividade.


70

4. Capítulo 3 – Clínica da atividade e vivência

4.1. Clínica da atividade

A clínica da atividade diz respeito a uma abordagem clínica do trabalho cujo principal

representante é o psicólogo francês Yves Clot. Trata-se de uma abordagem teórico-metodológica

que se enraíza na ergonomia e psicopatologia francesas, dos estudos do italiano Ivar Oddone, da

perspectiva histórico-cultural de Vigotski e dos trabalhos em filosofia da linguagem do Círculo

Bakhtin, este último na elaboração de alguns conceitos, notadamente o conceito de gênero

profissional, explorado mais adiante, oriundo do conceito bakhtiniano de gênero textual.

Da ergonomia francesa, Clot reconhece (e aprofunda) a compreensão de atividade enquanto

fruto da tensão entre tarefa (prescrito) e atividade efetivamente realizada face às variabilidades

pessoais e ambientais com que o trabalhador se depara na prática (Clot, 2006). Em relação à

psicopatologia francesa, cabe sobretudo mencionar os trabalhos de Le Guillant (cf Antunes Lima,

2006); Clot identifica-se com a abordagem clínica que busca a restituição da capacidade

diminuída, além da percepção dos trabalhadores como agentes do processo saúde/doença (Clot,

2006). Nesse sentido cabe igualmente mencionar as contribuições de Georges Canguilhem em

relação ao conceito de saúde, que serão exploradas mais adiante. Sobre os estudos de Oddone,

Clot ressalta a importância atribuída pelo autor à participação dos próprios trabalhadores na

psicologia do trabalho.

A perspectiva teórica mais ampla que enquadra a proposição da Clínica da Atividade, tal qual

formulada por Clot, é a perspectiva de abordagem dos processos psicológicos superiores em

termos histórico-culturais estabelecida por Vigotski (Vigotski, 2014), que permite relacionar
71

conceitos enfocando o desenvolvimento da subjetividade pela atividade e sua relação com os

coletivos humanos, a cultura e o conflito (Clot, 2006). Doravante serão explorados os operadores

teóricos centrais da clínica da atividade para melhor compreensão da abordagem e relação com a

perspectiva histórico-cultural.

A centralidade do trabalho é considerada levando em conta o desenvolvimento e constituição

da subjetividade humana, preenchendo uma função psicológica que “põe o sujeito à prova de suas

obrigações práticas e vitais com relação aos outros e com relação ao mundo” (Clot, 1999, p.219,

tradução nossa). Trata-se de uma atividade que requer “(...) a capacidade de realizar coisas úteis,

de estabelecer e manter engajamentos, de prever com outros e para outros algo que não tem

diretamente vínculo consigo” (p.71, tradução nossa), constituindo um dos gêneros de

referenciamento mais fundamentais da vida psicossocial, que liga cogeneticamente

sujeito/coletivo e sociedade, ainda que essa conexão possa se estabelecer de forma alienada,

como visto em seção anterior. A função psicológica do trabalho entende-se por um engajamento

histórico, social, coletivo, pessoal, cognitivo e afetivo através da atividade, que tece, nessa

relação, a subjetividade e o desenvolvimento de sujeitos e coletivos.

Avançando em relação à compreensão da atividade prescrita e realizada face às variações da

situação, Clot incorpora a dimensão da subjetividade na atividade através do conceito de real da

atividade, abarcando, para além do que deve ser feito e do que se faz efetivamente, as vivências

internas do sujeito (Clot, 1999). O real da atividade envolve os conflitos do real e inclui, além do

que é feito, aquilo não se faz, que não se pode fazer, que se busca fazer sem conseguir (os

fracassos), que se desejaria ter feito, que se deixa para depois e ainda que se faz para não fazer o

que deveria ser feito, que precisa ser refeito ou que se faz sem querer fazer (Clot et al., 2000;
72

2001; 2008). O autor refere-se a Vigotski na compreensão de que “O homem está a cada minuto

pleno de possibilidades não realizadas” (Clot, 1999, p.119 tradução nossa). As atividades

impedidas, suspensas, antecipadas ou inibidas formam com as realizadas uma unidade

desarmônica (Clot et al., 2000). Esta compreensão da atividade, que envolve seus bastidores

(subjetividade, vivência, conflitos, potencialidades e limites), transborda a dimensão do realizado

e amplia o sentido do real, sendo “a fadiga, o desgaste violento, o estresse” compreendidos “tanto

por aquilo que os trabalhadores não podem fazer, quanto por aquilo que eles fazem.” (Clot, 2001,

p. 5).

Relacionado ao trazido acima, o sofrimento na clínica da atividade é concebido enquanto

atividade contrariada, desenvolvimento impedido (Clot, 2001). Se os trabalhadores não dispõem

de recursos para fazer frente aos impasses do real, ou meios para desenvolver estes recursos,

encontram-se em situação de impedimento da atividade (Silva & Ramminger, 2014). A saúde é

compreendida na perspectiva de Canguilhem (2009), não como ausência de doença, mas como

capacidade normativa, de estabelecimento de normas de vida diante das dificuldades, gerando

desenvolvimento. Nessa perspectiva são problemáticas as situações de entrave e enrijecimento.

Clot (1999; 2013) refere-se à compreensão de uma arquitetura da atividade de trabalho, o

ofício, que tem base social e pode adquirir uma função psíquica interna, composta por quatro

instâncias que interagem de forma dinâmica: impessoal, pessoal, interpessoal e transpessoal. O

ofício seria o resultado do confronto entre essas quatro instâncias que o constituem. A dimensão

pessoal refere-se à atividade sobre/por si mobilizada e sua expressão singular, a interpessoal diz

respeito ao fato de que toda atividade profissional é dirigida a outro (além de si mesmo), e se não

o fosse perderia o sentido (Clot, 1999; 2013). A dimensão impessoal refere-se ao prescrito para a
73

atividade, às tarefas instituídas. Apesar de mais descontextualizada, trata-se do que sustenta o

ofício para além de suas situações particulares, orientando-o e sendo também passível de

transformação e enriquecimento pelo trabalho dos profissionais e desenvolvimento em diferentes

situações (Clot, 1999; 2013). Por fim, há a dimensão transpessoal referente à história coletiva de

um grupo profissional “que passou por muitas situações e dispôs de sujeitos de diferentes

gerações a responderem por ela, de uma situação a outra, de uma época a outra.” (Clot, 2013,

p.06). Essa história “(...) que forma o perímetro das ações encorajadas ou inibidas em um dado

meio profissional, conserva integralmente os equívocos, as grandezas e as misérias do ofício.”

(p.07).

As quatro dimensões apresentadas são interdependentes, dinâmicas e se retroalimentam,

tornando vivo o ofício em meio aos desequilíbrios e discordâncias criativas ou destrutivas entre

elas, o que permite formar rupturas e também novas ligações (Clot, 2013). Este autor observa que

o ofício se apaga/adoece quando o movimento entre as dimensões se extingue, quando uma

instância aprisiona as outras e deixa de se tornar meio para o desenvolvimento destas e, portanto,

do ofício.

A dimensão transpessoal citada refere-se ao conceito da clínica da atividade denominado

gênero profissional, este diz de uma memória coletiva de saberes e gestos pertencentes a um

coletivo de trabalho que marca o pertencimento a um grupo e orienta a ação (Clot et al., 2000;

2008). O gênero permite ao trabalhador o recurso a uma construção compartilhada para fazer uso

diante das situações que definem sua atividade. Trata-se de um corpo que medeia a relação entre

os sujeitos e entre eles e o objeto de trabalho, vinculando entre si os que participam de uma

situação (Clot, 1999). O gênero é uma entidade dinâmica e nunca completamente acabada capaz
74

de se desenvolver através das variações nas suas formas de utilização face às diferentes situações

vivenciadas por sujeitos e coletivos de trabalho.

Compreendido como reformulação do gênero em situação, e ainda como trabalho de

ajustamento do mesmo para torna-lo instrumento da ação, encontra-se o conceito de estilo

pessoal da atividade (Clot et al., 2000; 1999). O estilo transcende as leis genéricas, a memória

impessoal, mantendo o benefício de beber de sua fonte e mudar a regra quando necessário. Trata-

se também de uma emancipação em relação à própria história pessoal e experiência do gênero no

sentido do desenvolvimento da relação com o mesmo, movimento voltado para a eficácia do

trabalho (Clot et al., 2000).

A emancipação presente na estilização abre as portas ao desenvolvimento, pessoal e do

gênero, o que está intimamente ligado à saúde. Nesse sentido, Clot (2008) coloca sua percepção

de saúde ligada à compreensão de Canguilhem (2009), em que sentir-se saudável é sentir-se mais

do que normal (no sentido assimilado a uma norma), indo além da simples adaptação ao meio. A

saúde compreende a doença como etapa a sobrepor, não anular, passível de produzir

transformação, desenvolvimento de novas formas de existir. A normalidade defensiva ao invés de

ampliar o leque de ação, de instituir novas normas possíveis de vida diante de um desafio,

restringe as opções em nome da conservação de uma situação, da fuga do sofrimento (Clot,

2008). O autor traz a perspectiva de Vigotski na busca para compreender, para além da doença,

como se comporta o doente, como este desenvolve sua doença. Com base nessas reflexões, Clot

(2008) coloca que existem dois destinos para as atividades desafiantes: a defesa ou a resposta de

sobrecompensação, a primeira representando uma via de proteção e restrição pela própria


75

fragilidade, enquanto a segunda envolve a mobilização de forças levando ao desenvolvimento de

um “poder de agir” diante das situações.

Para Clot (2008, p.98, tradução nossa), sobre os desafios do trabalho “(...) a resposta possível

supõe sempre a elaboração do perigo vivido no seio do coletivo que pode, então, lhe dar um

sentido dentro de uma história.”. Esse posicionamento revela a importância dos coletivos de

trabalho na saúde dos sujeitos envolvidos. A emancipação representada nos estilos pessoais de

cada trabalhador, bem como seus entraves, tem potencial para alimentar o coletivo e revitalizar o

gênero, entretendo a sua saúde, desenvolvendo-o, fugindo à rigidez. Essa reelaboração constante

do gênero pelos coletivos face às situações reais tem potencial inclusive de redefinir prescrições

(Clot, 1999). O autor refere-se ainda, envolvendo a compreensão de saúde, à perspectiva do

trabalho bem feito indicado por uma tradição profissional viva enquanto norte do “bem estar”,

revelando a importância de reconhecer-se naquilo que se faz e da construção coletiva e individual

no sentido do trabalho bem feito, Clot (2013).

O coletivo é percebido como recurso para o desenvolvimento das subjetividades individuais,

desenvolvendo o pensamento por meio de confrontações e controvérsias sobre as quais se investe

e se trabalha coletiva e individualmente (Clot, 1999; 2013). Trata-se de uma perspectiva

Vigotskiana a compreensão do coletivo igualmente dentro dos indivíduos, discussões e embates

convertendo-se em diálogo interior e tecendo pensamento e atividade (Clot, 2013). De acordo

com Clot (2002, p.4), “A saúde se degrada no ambiente de trabalho sempre que um coletivo

profissional torna-se uma coleção de indivíduos expostos ao isolamento.”, quando a história do

gênero profissional encontra-se suspensa, quando “Cada um individualmente se encontra então

confrontado às más surpresas de uma organização do trabalho que deixa “sem voz” face ao real.”.
76

A clínica da atividade visa intervir, então, junto aos trabalhadores no sentido da busca pela

revitalização dos estilos pessoais e do gênero profissional por sujeitos e coletivos, estimulando o

olhar e a reflexão sobre a própria atividade, o confronto com a mesma e com a atividade dos

pares favorecendo o diálogo, as controvérsias e potencialmente ampliando o poder de agir. Trata-

se de uma clínica que busca o desenvolvimento e a restauração da saúde por meio da ampliação

da potência de ação, do cuidado coletivo com o gênero profissional no sentido do trabalho bem

feito. Procura-se transformar para compreender, o que implica em abordar a atividade com outra

ótica, de modo que a experiência vivida possa ser ou vir a ser meio de viver outras experiências

(Clot, 2001; 2008). Clot (2008) menciona Vigotski na compreensão de que uma ação passada

pelo crivo do pensamento transforma-se em outra, por sua vez, refletida. Para compreender a

atividade, suas relações com o real e o realizado, é preciso colocá-la em movimento, provocar o

desenvolvimento de modo a compreender sua arquitetura escondida, suas leis psicológicas, como

se organiza a transformação (Clot, 2001; 1999).

Enquanto unidade de análise da atividade de trabalho, Clot (1999) apresenta três dimensões já

exploradas indiretamente neste capítulo. Trata-se de compreender a atividade enquanto dirigida

em situação real. A atividade dirige-se a três polos da ação: o outro, referindo-se à dimensão

interpessoal já mencionada; O objeto, que corresponde à tarefa, aquilo que deve ser feito,

relacionado ao prescrito para a situação; E si próprio, o que faz referência à dimensão pessoal,

levando em consideração a ação sobre e por si na realização da atividade. Intermediando essas

direções encontra-se a dimensão transpessoal, o gênero profissional, fonte histórica e coletiva que

o sujeito utiliza para elaborar e reelaborar sua ação face ao real. Trabalhar corresponde a, de

acordo com as circunstâncias, medir as tensões entre os polos da atividade e apoiar-se em cada
77

um para se emancipar dos outros dois de modo a permanecer sujeito da situação, criativo de

alguma forma (Clot, 1999).

4.2. Vivência

Esta seção visa aprofundar o conceito de vivência, ou perezhevanie (em russo, com grafia

ocidental), da teoria histórico-cultural de Vigotski e fazer articulações com a clínica da atividade.

Perezhevanie é uma palavra russa de difícil tradução, principalmente considerando as

diferentes nuances que adquire no contexto da teoria histórico-cultural. Para a língua espanhola e

para o português a palavra que melhor traduz o seu significado, inclusive em relação a outros

idiomas, é “vivência” (Veresov, 2014). Através de uma análise das definições dadas à

perezhevanie por estudiosos de Vigotski, Veresov (2014) enumerou diferentes ideias centrais que

caracterizam o fenômeno, dentre as quais se destacam: experiência emocional, interpretação,

percepção, atravessamento de um evento, atribuição de sentido, apropriação, interiorização,

compreensão e cognição.

De acordo com Veresov (2014), perezhevanie pode ser compreendida como um prisma

que refrata a experiência. A metáfora do prisma, que refrata, opõe-se à metáfora do reflexo, esta

última compreendida dentro de uma lógica de estímulo-resposta, a qual foi criticada por Vigotski

(2014). A perezhevanie se estabelece na relação com o ambiente social/cultural e no lugar

ocupado pelo indivíduo neste ambiente dinâmico, criando uma unidade indivisível em que estão

representadas características pessoais e situacionais, formando uma lente que refrata a

experiência em diferentes ângulos (Veresov, 2014). O autor traz ainda que a perezhevanie é

compreendida enquanto unidade sistêmica da vida consciente, unidade de base da consciência


78

humana, compreendendo uma reunião complexa de diferentes processos psicológicos, cognitivos

e afetivos.

Em resposta à questão “Como o social torna-se individual?” Vigotski faz menção à “lei

genética geral do desenvolvimento cultural”, segundo a qual cada função do desenvolvimento

cultural existe primeiro enquanto relação social, e não simplesmente nas relações sociais, como

erroneamente costuma-se compreender (Veresov, 2004; 2010; 2014). Essas relações sociais

tornam-se funções mentais através de uma experiência de “drama”, representada em russo pela

palavra categoria, que assume o significado de colisão dramática, pessoal e emocionalmente

vivenciada. Essa colisão dramática vivida interpsicologicamente enquanto relação social é

também vivida intrapsicologicamente e carrega em si potencial para a produção de

desenvolvimento. Nesse contexto, a perezhevanie representa igualmente a forma de viver o

evento dramático. Não há desenvolvimento sem drama, e não há desenvolvimento sem

perezhevanie.

Veresov compreende a existência de duas definições de perezhevanie: enquanto fenômeno

e enquanto conceito. A perezhevanie como fenômeno implica o prisma e os modos como os

indivíduos vivenciam situações, sem necessariamente implicar em desenvolvimento. A

perezhevanie enquanto conceito refere-se à perezhevanie dramática, envolvendo transformação e

desenvolvimento.

No contexto da clínica da atividade, que tem como referencial teórico a perspectiva

histórico-cultural de Vigotski, fica clara a relação da abordagem clínica com o conceito de

vivência. O novo olhar sobre a atividade, a confrontação com a mesma e com os pares no
79

coletivo, a busca por transformar para compreender dizem do caráter desenvolvimental da

clínica, de fazer emergir o drama e produzir vivência, desenvolvimento, poder de agir.

Ainda que não seja possível garantir que a aplicação da clínica da atividade com sujeitos

e/ou grupos provoque drama e altere o curso do desenvolvimento, a abordagem é passível de pôr

em movimento, provocar deslocamentos e dar indícios da perezhevanie enquanto fenômeno. É

possível entrever o prisma, o modo como se vivencia determinada experiência e o que isso diz de

sua construção, da articulação com o contexto histórico e social, as condições de trabalho e as

particularidades dos sujeitos envolvidos, os lugares por eles assumidos em situação.


80

5. Método

Conforme já apresentado nas considerações de abertura do presente trabalho, esta

pesquisa tem caráter descritivo-exploratório e clínico. Foram utilizados métodos mistos de caráter

quantitativo e clínico-qualitativo devido ao interesse em estudar o trabalho docente dos anos

iniciais da rede municipal de Natal em sua abrangência e particularidade, analisando-o com

diferentes focos, reconhecendo a quantificação enquanto amplificador cultural no auxílio a

súmulas de informação (Da Rocha Falcão & Régnier, 2000) e a abordagem clínico-qualitativa

enquanto via de aprofundamento na vivência do sujeito. As estratégias metodológicas

mencionadas constituem duas etapas de investigação sequenciais.

Em relação aos princípios éticos, a pesquisa foi aprovada por comitê de ética acreditado

no âmbito da UFRN.

5.1. 1ª Etapa

5.1.1. Amostra.

Para o estabelecimento de efetivo considerado tecnicamente adequado para aplicação dos

instrumentos de coleta de dados utilizados, foi efetuado cálculo amostral a partir de população de

professores do ensino fundamental da rede municipal de Natal/RN segundo dados do IBGE

(2012), totalizando 1883 docentes. Considerou-se erro amostral de 5%, nível de confiança de

95% e percentual máximo de 10%. Foi utilizado aplicativo de cálculo amostral desenvolvido por

Glauber Santos (2016) e o número encontrado foi de 129, sendo estabelecido para a pesquisa o

mínimo de 150 professores-respondentes.


81

Embora o foco previamente estabelecido para a presente pesquisa tenha sido os docentes

ditos “polivalentes” do 1º ao 5º ano, o cálculo baseou-se no numero de professores para o ensino

fundamental como um todo (1º ao 9º ano) devido à falta de especificidade dos dados encontrados,

uma vez que as informações disponíveis referiam-se aos professores do ensino fundamental em

geral. Deste modo, o n (efetivo amostral) calculado e definido para a pesquisa respeita e mesmo

ultrapassa o mínimo necessário para a construção de uma amostra representativa da população.

Para a aplicação dos questionários foram constituídos três grupos, tendo em vista dados

referentes ao IDEB de 2013 das escolas municipais de Natal/RN. Assim, foram estabelecidos três

grupos de participantes tendo em vista a pontuação das escolas de pertencimento desses

professores. No decorrer da pesquisa os dados do IDEB foram atualizados para o ano de 2015,

implicando em novo cálculo de frequência e redefinição dos grupos, sendo o primeiro

correspondente à faixa de pontuação mais baixa (G1: 3,4 – 4,3), o segundo à faixa intermediária

(G2: 4,4 – 4,8) e o terceiro à faixa de pontuação mais alta (G3: 4,9 – 6,5). Esse cálculo foi

realizado com base na distribuição dos valores em uma curva normal, cada grupo representando

porcentagens próximas entre si das instituições avaliadas (entre 30% e 40%). O estabelecimento

desses três grupos deveu-se ao interesse em verificar eventuais diferenças na atividade

profissional dos docentes em função do enquadramento das escolas conforme estabelecido pela

sistemática descrita acima.

Houve sorteio das escolas, dentro de cada grupo de pontuação do IDEB, com o auxílio de

ferramenta informatizada de sorteio, para recrutamento dos professores participantes da pesquisa.

Apesar das críticas tecidas ao sistema de avaliação da educação pública e das escolas, o

IDEB foi considerado na coleta por representar o critério de referência atual para avaliar a
82

“qualidade” das escolas e educação. Sua inclusão na pesquisa não se isenta de uma perspectiva

crítica a este instrumento e permite, inclusive, explorar fragilidades do mesmo.

5.1.2. Instrumentos.

Foi utilizado questionário sócio profissional (apêndice A), desenvolvido pela

pesquisadora, com algumas questões respondíveis através de escalas de quatro pontos tipo Likert.

Foram contemplados aspectos sócio demográficos, ocupacionais, de formação, pedagógicos e

participativos (estes últimos referentes à participação docente em conselho escolar e sindicato).

Os aspectos sócio demográficos referem-se às informações de gênero, idade, estado civil e

número de filhos. A variável socioeconômica não foi explorada devido à complexidade de

realização deste cálculo que deve considerar o número de dependentes e as demais fontes de

renda da família. Os aspectos ocupacionais incluem o tempo na profissão e o tempo na instituição

de ensino atual, o nível e a classe em que o profissional se situa em relação ao plano de carreira

(o que indica sua faixa salarial para o cargo ocupado), o ano da turma em que leciona, seu

vínculo, o turno de trabalho, a quantidade de alunos na turma, se possui alunos com NEE,

auxiliar de turma e questões relacionadas à presença de outro vínculo ou atividade de trabalho.

Os aspectos de formação abarcam questões sobre a formação inicial, pós-graduação, participação

em programas de formação continuada, instituições de formação, além de questões de avaliação

da satisfação (em escala Likert) em relação aos processos formativos vividos. Por fim, os

aspectos pedagógicos e participativos envolvem questões de avaliação pessoal (em escala Likert)

relativas à familiaridade com o projeto político pedagógico das escolas, percepção do tempo

disponível para planejamento, contribuição das reuniões de planejamento semanais para a

atuação, presença de discussão teórica nas reuniões, participação no conselho escolar,


83

participação no sindicato e satisfação em relação ao trabalho. A questão abaixo ilustra o modelo

utilizado nas perguntas de caráter avaliativo:

Considerando 1 “Insatisfeito” e 4 “Muito satisfeito”, como você se situa em relação à sua satisfação no

trabalho? Circule o número correspondente à sua escolha.

1-------2-------3-------4

Essas questões referem-se a aspectos da profissão que dizem das políticas e elementos

contextuais e pessoais de inserção do professor que impactam em sua atuação, além de apontarem

percepções dos profissionais sobre elementos que constituem o seu trabalho.

Foi também utilizado o instrumento Job Content Questionnaire (JCQ), anexo A, em

versão resumida aplicado no levantamento Sumer 2003 – França (DARES-DRESS, 2008) para

avaliação da percepção das dimensões psicossociais e risco psicossocial da atividade com

algumas adaptações de termos utilizados para adequação ao público alvo, bem como o acréscimo

de duas questões.

Neste instrumento foram avaliadas três dimensões do ambiente psicossocial de trabalho: a

“demanda psicológica” da atividade, que implica em que medida a atividade exige em termos de

quantidade, rapidez, complexidade e perturbações; A “latitude de decisão”, que se refere ao

controle sobre a própria atividade, recurso às competências e desenvolvimento; E o “suporte

social” recebido por parte de colegas e superiores.

Um trabalho com alta demanda psicológica (escore acima da mediana para a dimensão) e

baixa latitude de decisão (escore abaixo da mediana para a dimensão) configura um quadro de

risco psicossocial, a presença de suporte social sendo considerada como atenuante e sua
84

falta/escassez (escore abaixo da mediana para a dimensão) como agravante para o referido

contexto. Por sua vez, uma situação de baixa demanda psicológica e alta latitude de decisão

constitui um perfil de baixo risco psicossocial. Uma situação de alta demanda psicológica e alta

latitude de decisão refere-se a um perfil de trabalho ativo, enquanto um quadro em que a

demanda psicológica e a latitude de decisão são igualmente baixas implica em um perfil de

trabalho passivo.

O JCQ na versão resumida possui 26 questões e dispõe de uma formula (anexo B) para

calcular os escores das dimensões do ambiente psicossocial a fim de identificar os perfis

possíveis (risco psicossocial, baixo risco, trabalho ativo e trabalho passivo).

Foram acrescentadas duas questões nos moldes das empregadas no questionário: uma

afirmação e quatro possibilidades de resposta (concordo fortemente, concordo, discordo e

discordo fortemente). No entanto estas questões não entraram no cálculo das dimensões referidas,

servindo apenas para complementar o quadro de percepções dos professores sobre o seu trabalho.

5.1.3. Procedimentos.

Houve visita às escolas sorteadas e para todas as instituições visitadas procurou-se

inicialmente a direção ou coordenação pedagógica a fim de explicar sobre a pesquisa e solicitar

permissão e apoio para que, durante o intervalo, a pesquisadora divulgasse a atividade aos

professores e distribuísse os questionários acompanhados de duas vias do termo de

consentimento livre e esclarecido (TCLE). Uma via para o professor e outra para a pesquisadora.

Foram agendados dias de busca dos questionários com os professores que se

disponibilizaram a participar. No ato da entrega dos instrumentos a pesquisadora anotava o


85

número de telefone dos profissionais que concordassem em fornecê-lo a fim de lembra-los com

certa antecedência, via mensagem, de seu retorno à escola no intuito de garantir mais respostas.

Os questionários recebidos, bem como o TCLE foram numerados e marcados com as

iniciais das escolas participantes para identificação posterior dos seus grupos de pertencimento.

Esta situação favoreceu, embora mantendo a condição de anonimato, a identificação de

professores pela assinatura ou rubrica na via do TCLE entregue à pesquisadora junto aos

questionários. Essa possibilidade de identificação permitiu que dúvidas ou equívocos, percebidos

à posteriori, relacionados às respostas fornecidas nos questionários pudessem ser sanados com os

professores, além de viabilizar, na segunda etapa da pesquisa, que um recrutamento consciente de

profissionais fosse efetuado em função de seu perfil.

5.1.4. Análise.

Os dados gerados foram tabulados e analisados por meio de ferramenta de análise

estatística. Realizaram-se análises descritivas de frequência das respostas, cruzamento de

variáveis e teste estatístico Qui-quadrado para verificação da relação de dependência entre estas,

aglutinação de variáveis descritivas em clusters (grupos oriundos de análise descritiva

multidimensional) na elaboração de perfis, identificação das dimensões psicossociais da atividade

e perfis psicossociais dos trabalhadores.

5.2. 2ª Etapa

5.2.1. Participantes.

A partir dos perfis gerados pela análise dos resultados da primeira etapa da pesquisa

foram selecionadas duas professoras de primeiro ano, atuantes em escolas diferentes e


86

representando perfis divergentes. Uma em situação de risco psicossocial, de acordo com o JCQ, e

outra com perfil de baixo risco.

A escolha foi feita em função da oportunidade de aprofundamento em duas vivências

diferentes de uma posição profissional semelhante (docentes do 1º ano), revelando semelhanças e

diferenças da vivência da atividade e atravessamentos da mesma.

Como explicitado na primeira etapa, a possibilidade de identificação dos professores

(preservando seu direito ao anonimato) viabilizou uma escolha consciente dos mesmos para a

segunda etapa da pesquisa, com base em seu perfil.

As professoras inicialmente escolhidas foram contatadas para explicação da segunda etapa

da pesquisa e questionamento no sentido de averiguar o interesse e a disponibilidade das mesmas

em participar das atividades propostas. A resposta foi positiva por parte de ambas as

profissionais. Uma delas havia expressado disponibilidade em momento anterior, quando do

primeiro contato para a entrega dos questionários, razão que reforçou os motivos de sua escolha.

5.2.2. Instrumento.

Foi utilizada a entrevista de Instrução ao Sósia (IaS), de caráter clínico qualitativo, que

compõe o ferramental metodológico da Clínica da Atividade.

Conforme explicado no capítulo 3, sobre os operadores teóricos, a Clínica da Atividade é

uma abordagem clínica que visa a transformação e o desenvolvimento no sentido da ampliação

do poder de agir de sujeitos e coletivos. No quadro da presente pesquisa, como igualmente


87

trazido no capítulo referido, considera-se que a perspectiva seja também pertinente para

aprofundar-se na vivência da atividade, elementos pessoais e contextuais implicados na mesma.

A instrução ao sósia inclui momentos prévios de familiarização ao contexto da atividade

foco a fim de permitir melhor compreensão do ambiente de atuação. A técnica consiste

basicamente na proposta aos trabalhadores da seguinte situação fictícia: “Suponha que eu serei

seu sósia e que amanhã vou substituí-lo em seu local de trabalho. Quais instruções você deveria

me transmitir para que ninguém percebesse a substituição?”. O sósia (pesquisador) tem a função

de fazer perguntas ao instrutor (profissional), interessar-se pelos detalhes da atividade, explorar

as possibilidades, buscar o “como” ao invés do “por que”, favorecendo o acesso ao real da

atividade, aspectos explícitos e implícitos, até que pareça haver um esgotamento da situação. É

necessário que, antes da instrução, uma sequência de trabalho tenha sido delimitada, tratando

preferencialmente de um aspecto significativo da atividade, considerado central ou desafiante. A

situação pode ser escolhida pelo trabalhador ou junto ao coletivo de trabalho.

Uma vez que o trabalhador assume a posição de instrutor de sua própria atividade é

importante que ao referir-se a ela e ao sósia no momento da instrução, ele utilize a segunda

pessoa, “tu” ou “você”, ao invés da primeira, “eu”, por exemplo: “Então você irá descer as

escadas”, em vez de “Então eu irei descer as escadas”. Trata-se de projetar a atividade no futuro,

no sósia, em posição dialógica com um “eu” social, conforme relata Clot (1999) ao usar as

palavras de Vigotski sobre promover “um contato social consigo mesmo”. O exercício permite

que o trabalhador acesse sua atividade indiretamente, por meio do sósia, aproximando-se de

modo novo da mesma e permitindo diferentes leituras e tomadas de consciência, bem como

revelando caminhos de pensamento e ação confrontados às situações laborais. Ao final da


88

instrução, é importante que se questione sobre o que o exercício suscitou ao trabalhador a fim de

promover um espaço de elaboração sobre o momento.

São usualmente propostos encontros de instrução, que devem ser gravados, seguido de

quê aconselha-se ao profissional que leve as gravações para casa, ouça-as e transcreva-as. Essa

prática permite ao trabalhador ouvir-se e realizar uma segunda elaboração reflexiva acerca da

própria atividade que deve ser compartilhada com o grupo de análise em um segundo encontro.

Nesse momento busca-se questionar e aprofundar o conhecimento sobre a atividade e seus

porquês.

Originalmente, como proposto por Clot, a IaS deve ser realizada com um coletivo de

trabalho (pares que compartilham do ambiente laboral em funções semelhantes) a fim de

aproveitá-lo como instrumento de reflexão e transformação através dos potenciais confrontos

entre as diferentes estilizações, questionamentos e formas de perceber a atividade. O coletivo

contribui ainda na produção conjunta de significados e ampliação do repertório de possibilidades

de ação, fazendo emergir o gênero profissional e revitalizando-o. Em razão de dificuldades

operacionais (distância entre as escolas, disponibilidade de tempo e horários compatíveis entre as

professoras), na presente pesquisa optou-se por realizar a IaS individualmente com cada

professora, o que certamente limita o alcance da clínica no sentido da revitalização do gênero

profissional, mas ainda permite o confronto do trabalhador com sua própria atividade, o contato

social consigo e a possível revitalização do estilo e do gênero no indivíduo. A abordagem permite

também, como já citado, analisar a vivência da atividade e seus atravessamentos, dizendo do

sujeito e de seu contexto.


89

5.2.3. Procedimentos.

As professoras selecionadas concordaram em participar da pesquisa após contato e

explicação da segunda etapa da mesma, que incluiria técnica de entrevista visando ao

desenvolvimento, reflexão sobre a ação e aprofundamento na atividade.

Um dia de observação em sala de aula para familiarização com o contexto de atuação foi

agendado com as participantes, no entanto apenas uma observação foi possível devido a uma

greve dos porteiros que afetou a instituição onde lecionava uma professora no dia combinado. O

horário vago na escola com a profissional findou sendo utilizado para a realização do primeiro

momento da entrevista de IaS. Esta opção foi feita devido à possibilidade de surgimento de

outros imprevistos futuros e do prazo limitado para a finalização da coleta, o que poderia colocar

em risco o andamento da pesquisa.

A pesquisadora responsabilizou-se pela escuta e transcrição do primeiro momento da

entrevista de IaS, que foi gravada, uma vez que a situação não era propícia para deixar os

exercícios nas mãos das participantes devido à rotina cheia das mesmas e ao fato de que a

atividade não partiu de uma demanda. Apesar disto, o material escrito foi enviado às professoras

com cerca de uma semana de antecedência em relação ao encontro seguinte a fim de que as

profissionais pudessem refletir e olhar novamente para a própria atividade de acordo com sua

disponibilidade.

Tendo em vista, para além do caráter clínico da IaS, seu papel enquanto instrumento na

análise da vivência do trabalho do professor e do que esta revela em termos de atravessamentos


90

pessoais e contextuais, a segunda parte da entrevista, que pode ser compreendida como etapa de

confrontação com a atividade pelo trabalhador, foi igualmente gravada para transcrição e análise.

Esta segunda etapa da IaS, que também corresponde ao seu encerramento na presente

pesquisa, compreende a confrontação com os registros escritos da atividade, o que implicou em

uma seleção anterior de trechos considerados representativos do primeiro encontro de instrução

levando em consideração as ênfases, repetições e diversidade dos temas abordados. Nesta fase, as

professoras participantes foram convidadas a trazer suas impressões e reflexões sobre o encontro

anterior e registro escrito enviado (apenas uma professora pôde ler). Em seguida foram

distribuídas duas cópias com os trechos selecionados, uma para a professora e outra para a

pesquisadora. As duas professoras preferiram que a pesquisadora lesse enquanto elas próprias

acompanhavam o texto e interviam ao longo da leitura com comentários, complementações e

percepções.

Algumas perguntas foram feitas pela pesquisadora ao longo do processo, sobretudo para

esclarecer conceitos ou situações que não haviam sido bem compreendidos ou explicitados.

Sentiu-se a necessidade de pensar previamente em algumas questões para serem feitas no

encontro com uma das professoras participantes cujo discurso permaneceu bastante fixo nos

entraves da atividade. Essa estratégia teve a intenção de gerar movimento, explorar diferentes

focos e, potencialmente, provocar novas reflexões.

Ao final, as professoras foram convidadas a falar sobre o que pensaram da entrevista

utilizada: impressões, aprendizados, críticas, etc.


91

5.2.4. Análise.

A etapa clínico-qualitativa da pesquisa gerou quatro registros escritos produzidos a partir

da transcrição dos dois encontros da entrevista de IaS com as profissionais. Dois registros da

etapa propriamente de instrução sobre a atividade de trabalho, um para cada professora

participante, e mais dois registros referentes à etapa de confrontação com o próprio relato, um

correspondendo a cada profissional.

O material escrito foi analisado de acordo com o proposto na clínica da atividade, pela

identificação das instâncias de referência da atividade: o prescrito (dimensão impessoal), a

atividade dirigida a si e por si (dimensão pessoal), a atividade dirigida ao outro (dimensão

interpessoal) e o gênero profissional (dimensão transpessoal). Foram observadas as relações entre

as instâncias, conflitos e contradições, inovação ou enrijecimento das possibilidades de ação,

revelando o campo do real da atividade. Buscou-se tecer relações com aspectos contextuais e

características do trabalho docente, além de estabelecer paralelos entre as vivências no sentido de

compreendê-las melhor, semelhanças, diferenças e atravessamentos.


92

6. Resultados e discussão

6.1. Etapa I (quantitativa)

Da primeira etapa da pesquisa participaram 172 professores dos anos iniciais do ensino

fundamental oriundos de 24 escolas diferentes da rede municipal de Natal: nove escolas

pertencentes ao grupo de IDEB mais baixo (3,4 – 4,3), totalizando 62 professores, sete referente

ao grupo intermediário (4,4 – 4,8), com 52 professores, e oito representando o grupo com

pontuação mais alta (4,9 – 6,5), com 58 professores.

6.1.1. Questionário sócio-profissional.

Serão apresentados e discutidos inicialmente os dados descritivos de caracterização da

amostra com a frequência das variáveis referentes ao questionário sócio-profissional aplicado.

a) Aspectos sociodemográficos.

Verificou-se que 91,3% da amostra é composta por mulheres e 8,7% por homens, o que

confirma a característica de reduto de mercado feminino da profissão, especialmente em se

tratando dos primeiros anos do ensino fundamental, em que os alunos são mais novos.

Em relação à idade lecionam profissionais de 23 a 68 anos, 61,6% correspondendo a

professores com 40 anos ou mais. Na faixa de 23-42 anos encontram-se 46,5% dos professores,

enquanto 53,5% estão na faixa dos 43-68 anos. Estão casados ou em união estável 59,3% dos

trabalhadores, 37,2% são solteiros ou divorciados e 3,5% viúvos. Possuem filhos 71%, enquanto

29% não possuem.


93

b) Aspectos de formação.

Da amostra 80,8% cursaram pedagogia, 10,5% fizeram modalidades de formação breves

para atuação nos anos iniciais do ensino fundamental (magistério de nível médio, curso normal

superior ou licenciatura curta) e 8,7% possuem outras formações (ciências sociais, história,

biologia, etc.) provavelmente associadas ao magistério, o que revela a coexistência de formações

diferentes, 19,2% das quais não preenchem os atuais requisitos para atuação na área, embora se

trate de uma condição em extinção. Dentre os pesquisados, 75,4% formaram-se em universidade

pública, 20,4% em universidade ou faculdade particular e 5,2% em Instituto Superior de

Educação, 97,7% formaram-se na modalidade presencial. Sobre a satisfação com a formação

88,4% dizem-se satisfeitos, enquanto 11,6% consideraram-se pouco satisfeitos. Possuem pós-

graduação 86% dos participantes, enquanto 14% não possuem. Tratam-se predominantemente de

especializações (75,5%), das quais 51% foram realizadas em instituições públicas e 49% em

privadas, 78,3% na modalidade presencial e 21,7% na modalidade à distância. Possui pós-

graduação stricto senso ou em ambas as modalidades 10,5% da amostra. No tocante aos

programas de formação continuada oferecidos pela rede pública, 15% dos participantes relataram

nunca terem participado dos mesmos, enquanto 85% mencionaram participação em ao menos um

programa, dos quais 11,88% na modalidade à distância ou mista.

Os dados apresentados revelam um perfil geral de formação relativamente homogêneo,

embora haja diversidades, sendo a ampla maioria dos profissionais formada em pedagogia por

universidades públicas na modalidade presencial. O perfil aponta igualmente para profissionais

com pós-graduação, sobretudo especializações realizadas em instituições públicas e privadas,

revelando diversidade desta modalidade de formação, bem como apropriação da demanda pelo
94

mercado. O alto número de pós-graduações é reflexo das políticas de incentivo à formação

continuada de professores (FUNDEB – progressão de carreira), embora sua diversidade possa

implicar igualmente em níveis de qualidade heterogêneos. As modalidades à distância e mista

foram pouco expressivas, exceto para as especializações (20,3%), revelando mais uma vez seu

caráter diverso. A satisfação expressa com os diferentes tipos de formação mencionados mostrou-

se elevada, acima de 85%.

c) Aspectos ocupacionais.

Da população pesquisada 47% estão na profissão há até 15 anos, enquanto 53% lecionam

há 16-42 anos. Atuando no mesmo local de trabalho 48,8% lecionam há até cinco anos (21,5% há

menos de um ano), enquanto 51,2% trabalham há entre 6-32 anos. A porcentagem de

profissionais lecionando há menos de um ano no atual local de trabalho indica, provavelmente,

inserção recente no município ou condição de professor temporário.

Em relação ao nível da turma, 55,2% dos participantes lecionam nos anos iniciais do

ensino fundamental (1º ao 3º ano), enquanto 38,4% atuam no 4º e 5º ano. Participando de

programas de regularização de fluxo (Acelera e Se Liga) promovidos pelo Instituto Ayrton

Senna, entidade sem fins lucrativos de prestação de serviços educacionais, encontram-se 6,4%

dos professores pesquisados. No tocante a turno, 54% trabalham no turno matutino, 35,5% no

vespertino, e 10,5% em ambos os turnos na mesma escola. Possuem vínculo efetivo 92,4% da

amostra, para 7,6% de professores temporários.

A respeito da quantidade de alunos na turma 52,3% dos professores pesquisados possuem

entre 15-25 alunos na sala de aula, enquanto 47,7% possuem entre 26-37 alunos. Apenas 8%

possuem até 20 alunos em sala de aula, que seria o número máximo de alunos estipulado para os
95

anos iniciais do ensino fundamental pelo documento final do Conae de 2014 e estabelecido pelo

PL 4628/2016.

Sobre o nível e classe da progressão de carreira, 40% dos profissionais encontram-se no

Nível I, que corresponde ao nível dos professores que não possuem pós-graduação ou em que a

mesma ainda não foi contabilizada pelo sistema. Encontram-se no Nível II 46% dos professores,

o restante equivalendo aos professores temporários, que não entram no cálculo da progressão de

carreira, aos que não informaram seu nível de pertencimento e àqueles que estão em um Nível

especial por não contemplar o perfil de formação inicial exigido. Chama atenção o fato que 86%

dos participantes possuem pós-graduação e 40% encontram-se no Nível I. Este resultado pode

ocorrer devido ao número de novos ingressantes com pós-graduação que precisam esperar para

terem seus títulos atualizados no sistema ou em razão de profissionais ainda estarem cursando a

pós-graduação e terem marcado a opção no questionário, ou de terem concluído há pouco tempo,

o que pode revela um fenômeno recente. Durante a coleta diversos professores queixaram-se dos

atrasos em relação à promoção, que deve ser revista a cada dois anos. Muitos profissionais

também tiveram dúvidas sobre a própria situação, precisando checar informações.

Ainda em relação à progressão de carreira, observou-se que os professores concentram-se

nos Níveis IA e IIA, com 39,5% do total da amostra, relativos aos níveis iniciais para a carreira,

passíveis de promoção após quatro anos. Há igualmente concentração nas quatro classes do Nível

II após a classe A (B, C, D e E), juntas representando 23,3% do total da amostra, os demais

profissionais encontram-se espalhados entre os diversos níveis e classes. A concentração de

profissionais nos Níveis IA e IIA tem relação com uma elevada taxa de professores ingressantes

no município nos últimos quatro anos.


96

Em relação aos alunos com NEE, 54% dos professores têm alunos com o perfil na turma,

revelando a necessidade e demanda da inclusão na escola, enquanto 42% não possuem e para 4%,

de acordo com os professores, os alunos não apresentam laudo. Em relação aos laudos, durante a

coleta não ficou claro se os alunos mencionados pelos professores como possuindo NEE

apresentavam-no, o que pode tornar maior a porcentagem de alunos sem laudo que constam como

apresentando NEE de acordo com os docentes. Coloca-se a necessidade de avaliação dos alunos

para a investigação de suas demandas. Sobre a presença de professor auxiliar na turma, 33,7%

dos profissionais possuem auxiliar em sala e 66,3% não possuem. O número de auxiliares é mais

baixo do que o de alunos identificados com NEE, o que provavelmente significa que, diversas

vezes, o professor deve dar conta, sozinho, de situações potencialmente desafiantes. Apesar de a

legislação municipal estabelecer o limite de 25 alunos em classes que possuam alunos com NEE,

revela-se que 50,5% dos professores que dizem possuir alunos com este perfil na turma possuem

mais de 25 alunos. Isso pode ocorrer devido a não existência de laudo para estes alunos. Aponta-

se para a necessidade da avaliação e acompanhamento por equipe competente dos alunos com

suspeita de NEE, inclusive para desfazer suposições diagnósticas formuladas capazes de afetar

negativamente a relação ensino-aprendizagem.

A respeito da existência de vínculo ou atividade de trabalho adicional no contraturno,

72,7% trabalham, enquanto 27,3% não trabalham. Exercem cargo de professor no contraturno

55,2% dos profissionais, 10,5% são coordenadores pedagógicos e 7% apresentam outra atividade

de trabalho. Dos cargos assumidos ligados à educação e à escola, 93,5% estão na rede pública

municipal ou estadual e 6,5% na rede privada, delineando um perfil de servidor público da

educação. A dupla jornada de trabalho para assegurar uma melhor sobrevida material pode

realizar-se em municípios ou zonas diferentes da cidade, implicando em maior investimento de


97

tempo e deslocamentos, e isso possivelmente combinado a uma rotina de afazeres domésticos. A

melhor sobrevida material permitida por uma dupla jornada de trabalho nem sempre vem

acompanhada por uma melhor qualidade de vida e de carreira, especialmente levando em

consideração que a profissão docente necessita de tempo adicional para estudo e planejamento, o

que nem sempre está incluso no horário de trabalho e ultrapassa-o.

d) Aspectos pedagógicos e participativos.

Sobre a familiaridade expressa pelos professores em relação ao PPP da escola, 52,3%

dizem possuir familiaridade, enquanto alegam ser pouco familiares ao mesmo 47,7%. No tocante

à satisfação em relação às reuniões semanais de planejamento em termos de contribuição para

reflexão e atuação 66,3% dos profissionais declaram-se satisfeitos e 33,7% se dizem pouco

satisfeitos, 62,2% estão satisfeitos com o tempo disponível para planejamento, enquanto 37,8%

se dizem insatisfeitos. A respeito da presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento

semanais 59,3% dos professores consideram-na presente e 40,7% acreditam que a mesma é

pouco presente.

Chama atenção as porcentagens expressivas de professores insatisfeitos com o tempo para

planejamento, as reuniões pedagógicas e que consideram a discussão teórica pouco presente nas

mesmas, representando mais de 1/3 dos profissionais pesquisados. Aspectos relevantes, pois se

tratam de instrumentos favorecedores do enriquecimento e desenvolvimento da atividade.

Durante a coleta, algumas professoras mencionaram que apesar de sentirem-se insatisfeitas com

as reuniões, compreendem que as coordenadoras responsáveis pelo momento possuem, elas

próprias, diversas atribuições, nem sempre conseguindo dar conta do favorecimento de momentos

produtivos, corroborando com o trazido por Haddad e Silva (2012) sobre a assunção pelo
98

coordenador de atividades que extrapolam sua alçada (indisciplina de alunos, substituição de

professores faltosos, etc.). A pouca familiaridade expressa com o PPP da escola por quase metade

da amostra também se destaca, uma vez que, como já mencionado, é prevista sua construção

coletiva pelas políticas que envolvem a gestão democrática, além de ser um instrumento

potencialmente valioso para a formação continuada e consolidação de um projeto coletivo.

Também chamou atenção, durante a coleta, a fala de algumas professoras evocando a

responsabilidade individual pela busca e familiarização com o PPP para a efetuação do trabalho,

o que pode apontar para o enfraquecimento da perspectiva deste instrumento no trabalho coletivo,

embora ele também possa envolver uma abordagem individual.

São ou foram membro do conselho escolar 42,4% dos profissionais pesquisados contra

57,6% que nunca foram membro. Dos professores que são ou foram membro, 58% se dizem

satisfeitos com as reuniões em termos de pertinência das discussões e tratamento dos problemas,

enquanto 42% dizem-se insatisfeitos. Em relação à participação no sindicato (assembleias,

deliberação, informações) 57,6% dos professores consideram-se pouco ativos, enquanto 42,4%

consideram-se ativos.

Durante a etapa de coleta alguns profissionais manifestaram desconfiança em relação ao

sindicato por acreditarem existir ambições políticas por trás das ações tomadas, ficando os

direitos da categoria em segundo plano. Outros profissionais relataram terem se sentido rejeitados

por apresentarem opiniões divergentes da maioria, particularmente em relação às greves,

chamando atenção ao direito dos alunos de terem aulas. Havia ainda profissionais recém-

chegados no município que declararam não possuir maior ligação com o sindicato,

possivelmente, dentre outros motivos, devido ao ingresso recente. Destaca-se a elevada


99

porcentagem (42%) de professores insatisfeitos com as reuniões do conselho escolar, o que pode

apontar para seu caráter burocrático, mais do que participativo e democrático. Durante a coleta

observou-se que dificilmente professores não membro do conselho escolar participam das

reuniões do mesmo, o que restringe a um pequeno grupo as discussões e deliberações implicadas

no processo.

Concordam que existem momentos de discussão e reflexão com o coletivo 76,7% da

amostra e discordam 23,3% da mesma. Sobre a satisfação no trabalho, 78% dos professores

dizem-se satisfeitos, enquanto 22% consideram-se insatisfeitos. Em relação ao sentimento de

solidão no trabalho 69,8% dos profissionais relatam não se sentirem solitários, enquanto 30,2%

dizem sentirem-se solitários.

Embora um elevado número de profissionais compreenda a existência de momentos

destinados à discussão e reflexão com o coletivo no ambiente de trabalho, podendo indicar

avanços no sentido da gestão democrática e participação, não é possível saber que momentos são

referidos e a qualidade dos mesmos. No caso das reuniões pedagógicas, por exemplo, mais de 1/3

dos profissionais encontram-se insatisfeitos. Em relação à solidão, pouco mais de 1/3 dos

profissionais relatou sentir-se só ao realizar seu trabalho, parcela expressiva que necessita de

atenção, uma vez que, de acordo com Clot (2002, p.4), “A saúde se degrada no ambiente de

trabalho sempre que um coletivo profissional torna-se uma coleção de indivíduos expostos ao

isolamento.”. A soma dos profissionais insatisfeitos com aqueles que se sentem solitários ao

realizar o seu trabalho, subtraindo a parcela na interseção das percepções, chega ao elevado

percentil de 40,7% da amostra. Chama também a atenção o elevado número de professores que se

diz satisfeito no trabalho, apesar das insatisfações e sentimentos de solidão expressos, o que pode
100

apontar para a satisfação com a atividade docente a despeito do reconhecimento das difíceis

condições envolvidas no trabalho que também afetam esta atividade.

e) Cruzamentos e relações de dependência.

As variáveis foram cruzadas na busca por relações de dependência com o auxílio de

ferramenta de análise estatística. Serão apresentados nesta seção os resultados em que se

observou relação de dependência expressa no valor de p<0,05 indicando probabilidade inferior a

0,05 de o fenômeno dever-se ao acaso. Também serão evidenciadas algumas situações em que

havia expectativa de encontrar relação de dependência, mas esta não ocorreu.

De modo geral, salvo algumas exceções que serão apresentadas, não foi encontrada

relação de dependência entre as variáveis avaliativas (satisfação no trabalho/com a formação/com

a formação continuada/com a pós-graduação/com as reuniões do conselho escolar/com as

reuniões de planejamento/com o tempo de planejamento, solidão no trabalho, familiaridade com

o PPP, nível de participação no sindicato, percepção da existência de momentos de reflexão

coletiva e percepção da presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento) e as

variáveis sócio-demográficas e de perfil profissional e ocupacional (gênero, estado civil, filhos,

idade, formação, formação continuada, pós-graduação, IDEB da instituição de pertencimento,

vínculo, turno, número de alunos na turma, participação em conselho escolar, presença de alunos

com NEE, professor auxiliar, tempo na profissão e no local de trabalho, nível da turma em que

leciona e trabalho no contraturno).

Dentre as exceções mencionadas está a relação de dependência encontrada entre a

familiaridade com o PPP e o IDEB das instituições de pertencimento dos professores (p<0,018).

Os profissionais pertencentes às instituições de IDEB acima da média tendem a ter mais


101

familiaridade com o PPP da escola se comparados aos profissionais pertencentes a escolas de

IDEB mediano e abaixo da média. Essa relação pode estar ligada, entre outros fatores, ao fato de

as instituições de IDEB mais elevado da amostra apresentarem um maior número de professores

há mais tempo no local de trabalho (6-32 anos), embora essa constatação não implique em

relação estatisticamente significativa.

Apesar de não haver relação estatisticamente significativa, observou-se que profissionais

pertencentes a instituições de IDEB mais elevado reconhecem mais a existência de momentos

para discussão e reflexão coletiva no ambiente de trabalho, bem como identificam maior presença

de discussão teórica nas reuniões de planejamento. Os resultados podem refletir a existência de

um maior cuidado por parte dessas instituições no tocante ao cumprimento de prescrições de

caráter pedagógico (familiarização com o PPP, discussão teórica e presença de momentos para

discussão e reflexão), embora não seja o IDEB em si o responsável por estas ações. Os

profissionais das instituições de IDEB mediano, na amostra, são os que apresentam um padrão de

respostas de avaliação negativo mais forte em relação às dimensões citadas. Enquanto os

profissionais das escolas com IDEB mais baixo apresentam um padrão de respostas avaliativas

que tendem ao positivo, embora de forma menos expressiva do que nas instituições de elevado

IDEB. Essa constatação revela que, na amostra, o aumento no nível do IDEB não implica

necessariamente em avaliações positivas do contexto por parte dos professores.

Encontrou-se igualmente relação de dependência entre a familiaridade com o PPP e o

tempo no local de trabalho (p<0,000). Os professores com mais tempo no local de trabalho (6 a

32 anos) tendem a estar mais familiarizados com o PPP das instituições em relação a aqueles com

menos tempo no local de trabalho (até cinco anos).


102

Outra relação de dependência que se destacou foi em relação ao vínculo profissional e a

satisfação com as reuniões de planejamento (p<0,039), e o vínculo profissional e a satisfação em

relação ao tempo para planejamento (p<0,02). Em ambos os casos os professores temporários

manifestaram maior satisfação em relação ao tempo para planejamento e em relação às reuniões

de planejamento do que os profissionais efetivos. Embora não de forma estatisticamente

significativa, percebeu-se que os professores temporários, apesar de participarem a um modo

mais precarizado de trabalho apresentaram, de modo geral, um padrão de respostas de avaliação

positivo em relação aos professores efetivos. É possível que este padrão deva-se à situação de

vulnerabilidade profissional, revelando cautela nas respostas dadas.

Doravante serão trazidas relações de dependência esperadas que não foram constatadas na

pesquisa, levando em conta que o que não aparece também diz do contexto.

Em relação à variável IDEB da instituição de pertencimento, a mesma não apresentou

relação de dependência estatisticamente significativa com as variáveis: satisfação no trabalho,

satisfação em relação à reunião de planejamento pedagógico e solidão no trabalho. Apesar de o

IDEB ser um índice que visa a atestar a qualidade das escolas, o mesmo não se relacionou com a

expressão de uma maior satisfação ou menor sentimento de solidão no trabalho por parte dos

profissionais na presente pesquisa. Um sistema avaliativo capaz de favorecer o desenvolvimento

institucional possivelmente traria resultados diferentes.

Não se constatou relação estatisticamente significativa entre o nível da turma em que

lecionam os professores (anos iniciais e finais do ensino fundamental I e turmas de aceleração

regidas pelas normas do Instituto Ayrton Senna) e a satisfação e solidão no trabalho, embora os

professores de 4o e 5o ano que se sentem solitários tenham sido mais numerosos. Não se
103

observou relação de dependência entre o tempo na profissão e no local de atuação e a satisfação e

sentimento de solidão no trabalho. Também não foi encontrada relação de dependência entre a

quantidade de alunos em sala de aula, a presença de alunos com NEE, a presença de professor

auxiliar na turma e a satisfação e solidão no trabalho. As variáveis ligadas à formação e pós-

graduação não revelaram igualmente relação significativa com a variável satisfação e sentimento

de solidão no trabalho. Do mesmo modo não foi encontrada relação de dependência entre a

existência de trabalho no contraturno de ensino (dupla jornada) e a satisfação com o tempo para

planejamento, a reunião de planejamento, a satisfação e a solidão no trabalho. A ausência de

relações de dependência entre as variáveis citadas possivelmente revela a complexidade de

conexões envolvidas na compreensão da satisfação laboral e sentimento de solidão no trabalho,

não sendo possível estabelecer relações entre as variáveis mencionadas de forma isolada. A

análise estatística, por si, é insuficiente para captar as nuances e mediações implicadas nas

percepções trazidas.

Serão agora apresentadas relações de dependência que se destacaram na pesquisa. Trata-

se de relações entre variáveis avaliativas.

Foi observada relação de dependência entre a satisfação no trabalho e a satisfação com as

reuniões de planejamento pedagógico (p<0,005), e entre a satisfação no trabalho e a familiaridade

com o PPP (p<0,03). Professores pouco satisfeitos com as reuniões de planejamento têm mais

chances de se sentirem pouco satisfeitos no trabalho que professores satisfeitos com as reuniões

de planejamento. Profissionais com pouca familiaridade com o PPP da escola têm mais chances

de estarem pouco satisfeitos no trabalho do que profissionais que possuem familiaridade com o

PPP de suas instituições. É possível que os resultados representem apenas o atravessamento de


104

impressões positivas ou negativas. No entanto, a não satisfação com as reuniões pedagógicas e

falta de familiaridade com o PPP da instituição de pertencimento podem constituir um quadro

que envolve o sentimento de insatisfação no trabalho, uma vez que o PPP e as reuniões de

planejamento são instrumentos de potencial produção de referenciais para a ação, sendo seus

entraves potencialmente limitadores.

Observou-se relação de dependência entre a satisfação com as reuniões de planejamento

pedagógico e a percepção da presença de discussão teórica nas mesmas (p<0,000). Profissionais

que consideram pouca a presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento têm mais

chances de serem profissionais insatisfeitos com as mesmas do que aqueles que consideram a

discussão teórica presente. Este resultado pode indicar o simples atravessamento de impressões

negativas a respeito das reuniões de planejamento, no entanto a discussão teórica, quando

acoplada à prática, pode ser fonte de novas compreensões e desenvolvimento de formas de ação,

sendo sua ausência potencialmente limitadora.

A variável solidão no trabalho apresentou relação de dependência com diversas variáveis

avaliativas tais: satisfação com o tempo de planejamento (p<0,012), satisfação com as reuniões

de planejamento (p<0,000), percepção da presença de discussão teórica nas reuniões de

planejamento (p<0,001), percepção da existência de momentos de discussão e reflexão no

ambiente de trabalho (p<0,000), familiaridade com o PPP (p<0,017) e satisfação no trabalho

(p<0,001). Os profissionais que se sentem solitários no trabalho possuem mais chances de

considerarem pouca a presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento, de estarem

insatisfeitos com o tempo de planejamento e com a reunião de planejamento do que aqueles que

não se sentem solitários. Os professores que se sentem solitários no trabalho têm mais
105

possibilidades de considerarem a ausência de momentos de discussão e reflexão no ambiente

laboral e de possuírem pouca familiaridade com o PPP do que aqueles que não se sentem

solitários. Por fim, os profissionais que se sentem solitários têm mais chances de estarem pouco

satisfeitos com o trabalho do que aqueles que não se sentem sozinhos ao trabalhar.

Os resultados podem implicar em padrões de resposta dados tendo em vista o

atravessamento de avaliações positivas ou negativas a respeito do trabalho e ambiente laboral. No

entanto, um cenário envolvendo a percepção de pouco tempo para planejamento, insatisfação

com as reuniões de planejamento, percepção de pouca presença de discussão teórica nas reuniões,

percepção da ausência de momentos de reflexão e discussão, pouca familiaridade com o PPP e

insatisfação com o trabalho pode implicar em sentimento de solidão laboral, uma vez que as

variáveis mencionadas têm relação com condições e ferramentas com potencial para a produção

de referenciais coletivos para a ação e situações de troca, sendo seus entraves ou percepção

negativa passíveis de relacionar-se a sentimentos de solidão e falta de suporte.

6.1.2. Questionário JCQ – Dimensões psicossociais do ambiente laboral.

Antes de expor e comentar os resultados referentes às dimensões do instrumento JCQ,

será feita uma breve explicação da natureza e implicações da utilização deste tipo de

questionário.

Sobre a perspectiva dos fatores psicossociais no trabalho, há consenso, por alguns autores,

de sua compreensão como elementos que dizem do ambiente laboral em relação às percepções e

experiências singulares dos indivíduos, unindo aspectos da interação entre o trabalho, ambiente e

condições laborais, e características pessoais do trabalhador, expectativas, percepção de mundo,

experiências, etc. (Reis, Fernandes & Gomes, 2010). As autoras colocam que a abordagem desses
106

fatores se diferencia, situando-os por vezes em um contexto histórico e social mais amplo ou

atendo-se aos seus efeitos e origens. Embora possam ser complementares, a primeira opção

aparenta estar mais comprometida com uma perspectiva crítica de transformação enquanto a

segunda parece mais interessada em questões de gestão.

O modelo demanda-controle (JCQ) proposto por Karasek (1979) é um dos mais

conhecidos relacionados a fatores psicossociais, estabelecendo dimensões ligadas à latitude

decisão sobre a própria atividade (incluindo elementos como controle sobre a mesma, recurso às

competências e desenvolvimento), demanda psicológica (envolvendo quantidade, rapidez,

complexidade e perturbações da atividade) e percepção de suporte social por parte de colegas e

superiores. Críticas a este modelo vêm do fato de que ele não é capaz de identificar estressores

específicos do ambiente de trabalho e apenas delineia interações entre grupos de estressores, além

de não focar especificamente na interação entre indivíduo e ambiente, nem avaliar características

e percepções individuais (Reis, Fernandes & Gomes, 2010).

Em um levantamento da utilização do modelo demanda-controle nas produções científicas

na área da saúde do trabalhador, na América Latina, no período de 1979 (criação do modelo) a

2010, Greco, Magnago, Prochnow, Beck e Tavares (2011), colocam que nos estudos com

docentes foi evidenciada associação entre fatores psicossociais e distúrbios psíquicos menores,

qualidade de vida e exaustão no trabalho.

Clot (2010) possui ressalvas em relação ao uso de questionários, os quais não se

aprofundam na dinâmica das questões envolvidas no trabalho e tendem a responder a uma lógica

higienista de saúde, que visa diminuir os riscos e adaptar situações ao invés de aprofundar-se nas

mesmas buscando transformar e compreender. No entanto, de acordo com o próprio Clot (2010),
107

o JCQ avança, ainda que limitado, aproximando-se de uma lógica dinâmica de saúde que leva em

consideração a percepção de autonomia do trabalhador e sendo capaz de apontar interações que

podem configurar situações de risco psicossocial.

Doravante serão apresentados e comentados os resultados do instrumento demanda-

controle (JCQ) correspondentes às dimensões analisadas: latitude de decisão, demanda

psicológica e suporte social.

a) Latitude de decisão.

A latitude de decisão corresponde ao desenvolvimento de competências no ambiente

laboral, reconhecimento e recurso às competências e margem de manobra e decisão.

Dos profissionais pesquisados, 98,3% concordam que o trabalho possibilita aprender

coisas novas, 99,4% acreditam que o mesmo requer criatividade e 95,3% estão de acordo com a

afirmação de que é possível desenvolver competências profissionais no trabalho. As três

afirmações estão relacionadas ao desenvolvimento de competências profissionais. No entanto,

para além das oportunidades de aprender, desenvolver competências e ser criativo implicadas na

docência, revela-se também uma forte demanda, característica da profissão, de lidar com o novo,

o imprevisto, e aprender na interação com os alunos.

Sobre considerar o trabalho repetitivo, 22,7% dos professores concordam com a

afirmação, enquanto 77,3% discordam. Em relação à exigência de um alto nível de qualificação

para trabalhar, 95,3% da amostra está de acordo com a afirmação. Sobre ser encarregado de fazer

muitas tarefas diferentes, 65% concordam, enquanto 35% discordam.


108

As afirmações citadas referem-se ao reconhecimento e recurso a competências. A respeito

de o trabalho ser repetitivo, o elevado percentil de discordância da afirmação tem provável

relação com a percepção da docência como atividade exposta a imprevistos e que não depende

apenas do professor para concretizar-se, exigindo flexibilidade e criatividade. No entanto a

repetição também diz de uma característica da profissão docente, como algumas professoras

colocaram durante a coleta, que envolve a realização de atividades e exercícios para a

consolidação dos saberes.

Os profissionais, em sua maioria, convergiram na percepção da necessidade de um alto

nível de qualificação para trabalhar, sendo os poucos que discordaram, muitas vezes (conforme

percebido em etapa de coleta), profissionais mais velhos, sem pós-graduação e formados em

modalidades breves de ensino.

Ainda que ser professor implique em estudo, planejamento, reunião de pais e gestão de

elementos diversos (disciplina, heterogeneidade da turma, tempo de execução das atividades,

etc.), mais de 1/3 dos profissionais discordou sobre ser encarregado de fazer muitas tarefas

diferentes. Uma impressão, enquanto pesquisadora, durante a coleta, foi de que alguns

professores percebem essas atribuições como fazendo parte do “ser professor” e não enquanto

tarefas diferentes a gerenciar, embora a maior parte dos profissionais reconheça ser responsável

por múltiplas tarefas, revelando igualmente a complexidade da profissão.

Em relação ao trabalho permitir muitas tomadas de decisão por conta própria, 65,7% dos

profissionais concorda com a afirmação, enquanto 34,3% discordam. Sobre a pouca liberdade

para decidir como fazer o trabalho, 16,3% concordam e 83,7% discordam da afirmação. A

respeito da possibilidade das próprias ideias serem consideradas na elaboração das políticas no
109

trabalho, 85,5% concordam com a afirmação, enquanto 14,5% discordam. As afirmações citadas

referem-se à margem de manobra e decisão no trabalho.

A maior parte dos profissionais sente que tem autonomia para tomar decisões por conta

própria, no entanto discordar da afirmação não necessariamente representa compreender uma

restrição, conforme trouxe uma professora que discordou justificando sua escolha trazendo que as

decisões eram tomadas em equipe, focando no coletivo. Mais de 1/3 da amostra discorda que

pode tomar muitas decisões por conta própria, o que pode apontar igualmente para a dimensão

dos prescritos da atividade: as normas da escola, o programa de ensino, as demandas do sistema,

etc. A maior parte dos professores compreende que possui liberdade para decidir como fazer o

seu trabalho e que suas ideias podem ser consideradas nas políticas da escola.

b) Demanda psicológica.

Serão trazidos doravante resultados relacionados à demanda psicológica da atividade, que

implica no grau de exigência envolvido no trabalho em relação à rapidez e quantidade de

trabalho, complexidade das tarefas e caráter fragmentado/interrompido das atividades.

Sobre a exigência de rapidez no trabalho, 50,6% dos profissionais pesquisados concordam

com a afirmação, enquanto 49,4% discordam. A respeito da necessidade de realização de um

volume excessivo de trabalho, há concordância de 43% e discordância de 57%. Em relação ao

tempo de realização das tarefas ser suficiente para concluí-las, 51,2% concordam com a

afirmação e 48,8% discordam. Trata-se aqui dos aspectos ligados à rapidez e quantidade de

trabalho. Os resultados mostram uma divisão na opinião dos professores em relação à rapidez

demandada, tempo disponível para conclusão das atividades e volume de trabalho.


110

A respeito de o trabalho ser desenvolvido de modo frenético, 40% dos profissionais

concordam com a afirmação e 60% discordam. Sobre estar livre de demandas conflitantes feitas

por outros 19,2% concordam e 80,8% discordam. A respeito da necessidade de longos períodos

de intensa concentração nas tarefas no trabalho, 79,7% estão de acordo, enquanto 20,3% não

estão de acordo. As afirmações do parágrafo referem-se à complexidade das tarefas.

Destaca-se a elevada porcentagem de profissionais que negam estar livres de demandas

conflitantes feitas por outros. Essa posição pode ser compreendida levando em consideração o

contexto e características da profissão, que, como já visto, situa-se no ponto de encontro de

expectativas, discursos e contradições: a lógica do domínio versus a lógica do desempenho, a

cidadania versus o adestramento, o desejo dos pais, as regras da escola, as demandas do sistema e

do programa, as exigências pessoais, as expetativas dos alunos, etc. Em relação à necessidade de

longos períodos de concentração intensa nas tarefas, o alto percentil apresentado provavelmente

refere-se à dimensão de planejamento e estudo característicos da profissão docente. A respeito de

o trabalho ser desenvolvido de modo frenético, observa-se uma divisão de opiniões.

Sobre a ocorrência de interrupções das tarefas implicando no adiamento da continuidade

das mesmas, 62,8% dos profissionais concordam com a afirmação, enquanto 37,2% não

concordam. A respeito de o trabalho ser muito perturbado, 39% dos professores concordam e

61% discordam. Em relação a ter de esperar pelo trabalho de outras pessoas, tornando mais lento

o ritmo do próprio trabalho, 67,4% concordam com a afirmação e 32,6% discordam. As

afirmações referem-se ao caráter fragmentado/interrompido das tarefas.

Percentis expressivos de profissionais consideram seu trabalho sujeito a interrupções e

perturbações. Um número elevado de professores concordou que tem de esperar pelo trabalho de
111

outras pessoas para realizar o seu, tornando mais lento o ritmo do próprio trabalho. Essa

afirmação pode estar relacionada, dentre outras coisas, à expectativa de maior contribuição dos

pais/familiares na educação dos filhos no sentido da disciplina e do acompanhamento das

atividades, o que constitui uma das principais queixas docentes. É também possível que a

afirmação se dirija às instâncias públicas de gestão, revelando insatisfação em relação às

condições de trabalho. Observa-se certa divisão nas opiniões em relação às afirmações.

c) Suporte social.

Os resultados seguintes dizem respeito ao suporte social no trabalho por parte dos

superiores hierárquicos e colegas de trabalho.

Dos profissionais, 78,5% concordam que seus superiores hierárquicos preocupam-se com

o seu bem-estar, enquanto 21,5% discordam. Concordam que seus superiores hierárquicos

prestam atenção no que dizem 87,8% dos professores, enquanto 12,2% discordam. Sentem-se

apoiados/ajudados no trabalho pelos superiores hierárquicos 81,4% dos profissionais, enquanto

18,6% não se sentem apoiados. Sobre os superiores hierárquicos serem bem sucedidos em

promover o trabalho de equipe, 76,2% dos pesquisados concordam com a afirmação e 23,8%

discordam.

Dos professores estudados, 96% consideram seus colegas competentes na realização das

atividades. A respeito do interesse dos colegas em relação ao que acontece consigo, 75,6%

concordam com a afirmação, enquanto 24,4% discordam. No tocante aos colegas de trabalho

serem amigáveis, 96,5% dos professores concordam com a afirmação. Sobre os colegas de

trabalho serem colaborativos na realização das atividades há concordância de 96%.


112

De modo geral, constata-se que o suporte envolvendo os superiores hierárquicos e,

principalmente, os colegas de trabalho é bem avaliado, podendo apontar para relações amigáveis

e de amparo mútuo entre a equipe, embora não seja possível dizer da existência de coletivos de

trabalho a exemplo dos mencionados pela clínica da atividade, fonte de suporte, conflito e

criação, bem como da existência de projetos coletivos.

As afirmações relacionadas à demanda psicológica do trabalho foram as que produziram

percentis de opinião mais divididos entre os profissionais.

d) Perfis psicossociais.

Após apresentar os resultados referentes às dimensões do questionário demanda-controle

(JCQ), serão exibidos os percentis relativos aos perfis psicossociais de pertencimento

encontrados na amostra.

Dos professores pesquisados 30,8% correspondem a um perfil de baixo risco psicossocial,

apresentando demanda psicológica baixa e alta latitude de decisão; 27,3% são trabalhadores

ativos, possuindo elevada demanda psicológica e latitude de decisão; 22,7% são trabalhadores

passivos, apresentando baixa demanda psicológica e latitude de decisão; E, por fim, 19,2%

respondem a um perfil de risco psicossocial, com alta demanda psicológica e baixa latitude de

decisão. A figura 1, abaixo, ilustra esta distribuição.


113

Figura 1

Distribuição perfis psicossociais

Perfil Ativo
Perfil de Baixo Risco
Perfil Passivo
Perfil de Risco

Na relação com outras profissões, conforme quadro comparativo elaborado no contexto

francês (ilustrado na figura 2), as medianas encontradas para as dimensões psicossociais latitude

de decisão e demanda psicológica situam a profissão docente dos anos inicias do ensino

fundamental da rede municipal de Natal enquanto profissão ativa (quadrante em cima à

esquerda), de elevada demanda psicológica e latitude de decisão.


114

Figura 2
Localização da amostra (em vermelho) na reprodução do gráfico de saída a partir de
dados produzidos pelo JCQ com respondentes de categorias profissionais da França (DARES-
DRESS (2008), pp. 02).

Esse resultado pode apontar tanto para possibilidades de realização profissional, através

dos potenciais desafios (representados pela elevada demanda psicológica) e mobilização de

recursos e estratégias (fazendo referência à alta latitude de decisão), quanto para desgastes em

função da necessidade de alto investimento na atividade. Quando o quadro é pensado no contexto

da escola pública brasileira, com seus baixos salários, duplas/triplas jornadas de trabalho,

contradições e dificuldades, o risco de desgaste aumenta.

e) Cruzamentos e relações de dependência.

As questões do JCQ foram cruzadas com variáveis oriundas do questionário sócio-

profissional. Doravante serão apresentadas as relações de dependência estabelecidas que mais


115

acrescentaram ao contexto da pesquisa. Serão inicialmente mostradas as relações entre as

questões do JCQ e as variáveis ligadas ao perfil dos trabalhadores.

Foi identificada relação de dependência (p<0,034) entre a quantidade de alunos na turma

e a percepção dos professores sobre serem encarregados de diversas atividades diferentes.

Também se identificou relação de dependência (p<0,012) entre a quantidade de alunos na turma e

a percepção dos professores da necessidade de esperar pelo trabalho de outras pessoas para

poderem desenvolver o seu próprio trabalho. Os professores com mais alunos na turma (26-37

alunos) possuem mais chances de perceberem-se como encarregados de diversas atividades

diferentes e de perceberem a necessidade de esperar pelo trabalho de outras pessoas para

poderem desenvolver o seu próprio do que os profissionais com menos alunos na turma (15-25

alunos). Estes resultados apontam no sentido da percepção da complexificação do trabalho

docente quando o número de alunos na turma é maior.

Observou-se relação de dependência entre a idade dos profissionais e: a percepção da

necessidade de trabalhar rapidamente (p<0,004), a percepção da necessidade de esperar pelo

trabalho de outras pessoas para poder realizar o próprio trabalho (p<0,022), a percepção de

interrupção frequente do trabalho acarretando em adiamento das atividades (p<0,032) e, por fim,

a percepção da necessidade de realizar o trabalho de modo frenético (p<0,031). Os profissionais

mais novos (23-42 anos) têm mais chances de perceberem a necessidade de trabalhar

rapidamente, de modo frenético, de precisarem esperar pelo trabalho do outro para conseguirem

realizar o próprio trabalho, além de perceberem mais facilmente a própria atividade como

frequentemente interrompida, acarretando em adiamento, do que profissionais mais velhos (43-68

anos).
116

É possível que estes resultados tenham relação com a experiência profissional, embora a

idade não seja sempre uma garantia de maior ou menor experiência e embora as variáveis "tempo

na profissão" e "tempo no local de trabalho", que expressam melhor a experiência, não tenham

constituído relação de dependência com as variáveis mencionadas. É também possível que os

profissionais mais velhos já tenham sido, de certa forma, selecionados pelo contexto de atuação,

continuando a atuar aqueles que ao longo da carreira não desistiram da profissão no caminho,

nem foram readaptados, ou seja, permanecendo aqueles com uma melhor adaptação e percepção

de seu trabalho em comparação à faixa etária mais nova. É também possível que os professores

mais novos estejam lidando com expectativas mais altas em relação ao trabalho e dificuldades

para lidar com as adversidades.

A variável suporte social foi criada através de cálculo efetuado com as questões relativas

ao suporte social de colegas de trabalho e superiores hierárquicos conforme trazido no anexo B.

Os resultados da mediana para cima foram considerados como elevado suporte social e os

resultados abaixo da mediana foram considerados como baixo suporte social.

Observou-se relação de dependência entre o suporte social e o IDEB de pertencimento das

instituições (p<0,019), bem como entre o suporte social e a idade dos profissionais (p<0,022). Os

professores das instituições de maior IDEB têm mais chances de reconhecerem um suporte social

elevado, sendo os professores das instituições de IDEB mediano aqueles com mais chances de

reconhecer um suporte social baixo. Quanto à idade, os professores mais velhos (43-68) têm mais

possibilidades de reconhecer um suporte social alto em relação aos professores mais novos (23-

42). A percepção tendente ao positivo de profissionais mais velhos a respeito do ambiente de

trabalho foi discutida em parágrafo anterior. O reconhecimento de suporte social elevado nas
117

instituições de IDEB mais alto não permite estabelecer que possuir um maior IDEB implique em

um suporte social elevado, uma vez que nas instituições de IDEB mais baixo os professores

reconhecem um suporte social mais alto do que nas instituições de IDEB mediano. No entanto, é

possível que instituições mais bem organizadas e que oferecem maior suporte aos seus

profissionais tenham seus resultados refletidos no IDEB, ainda que este índice, por si, não tenha

necessariamente papel no melhor funcionamento das escolas, sendo passível, como discutido nos

capítulos teóricos, de gerar ambientes de competição e foco no desempenho em detrimento do

domínio dos conteúdos, além de individualizar a responsabilidade pela educação na figura do

professor.

Foi observada dependência em relação ao vínculo e: a percepção a respeito da

necessidade de trabalhar rapidamente (p<0,000), de tempo disponível suficiente para conclusão

das tarefas (p<0,002), de ser responsável por um volume excessivo de trabalho (p<0,007) e o

suporte social (p<0,018). Os professores temporários têm mais chances de não considerarem a

necessidade de trabalhar rapidamente, de perceberem o tempo disponível como suficiente para a

conclusão das tarefas, de não se considerarem responsáveis por um volume excessivo de trabalho

e, por fim, de reconhecerem um suporte social elevado em comparação aos professores efetivos.

Estes dados mostram, como já mencionado, que apesar dos professores temporários participarem

a uma forma mais precarizada de trabalho, estes possuem uma avaliação positiva do mesmo, o

que pode revelar cautela nas respostas em função da situação de maior vulnerabilidade.

Doravante serão apresentados os resultados das relações de dependência entre as questões

do JCQ e variáveis de caráter avaliativo do questionário sócio-profissional.


118

Observou-se relação de dependência entre a satisfação no trabalho e: a percepção de

trabalho repetitivo (p<0,018), da necessidade de ter de esperar pelo trabalho de outros para

conseguir realizar o próprio trabalho (p<0,012), de trabalho perturbado (p<0,001), de ser

responsável por um volume excessivo de trabalho (p<0,001) e de ser encarregado de realizar

muitas tarefas diferentes (p<0,043). Os professores que se dizem insatisfeitos no trabalho têm

mais chances de considerarem o trabalho repetitivo, de reconhecerem a necessidade de ter de

esperar pelo trabalho de outros para poder realizar o próprio trabalho, de considerarem o trabalho

perturbado, de reconhecerem-se responsáveis por um volume excessivo de trabalho e de

considerarem-se encarregados de realizar muitas tarefas diferentes, em relação a professores

satisfeitos com o trabalho. Constata-se que se sentem mais insatisfeitos no trabalho profissionais

que reconhecem uma demanda psicológica maior, que lidam com impasses e contrariedades com

dificuldade.

Foi constatada relação de dependência entre o sentimento de solidão no trabalho e: a

percepção de trabalho repetitivo (p<0,014), de trabalho perturbado (p<0,000), de tempo

disponível suficiente para a conclusão das tarefas (p<0,004), de ser responsável por um volume

excessivo de trabalho (p<0,000), da necessidade de trabalhar rapidamente (p<0,000) e, por fim, a

percepção de pouca liberdade para decidir como fazer o trabalho (p<0,041). Os professores que

se sentem solitários no trabalho têm mais chances de considerar o trabalho repetitivo, percebê-lo

como perturbado, considerarem o tempo insuficiente para a conclusão das tarefas, reconhecerem-

se como responsáveis por um volume excessivo de trabalho, reconhecerem a necessidade de

trabalharem rapidamente e reconhecerem pouca liberdade para decidir como fazer o seu trabalho

do que os professores que não se sentem solitários. Estes resultados mostram que os profissionais
119

que se sentem solitários no ambiente laboral reconhecem uma maior demanda psicológica da

atividade, lidando com dificuldades sem se sentirem amparados.

Observou-se relação de dependência entre o suporte social e: a satisfação com o tempo de

planejamento (p<0,022), a satisfação com as reuniões de planejamento (p<0,000), a percepção da

presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento (p<0,000), a percepção da existência

de momentos de discussão e reflexão coletiva no ambiente laboral (p<0,000) e o sentimento de

solidão no trabalho (p<0,000). Professores que percebem um elevado suporte social têm mais

chances de estarem satisfeitos com as reuniões de planejamento e com o tempo de planejamento,

de perceberem a presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento, de reconhecerem a

existência de momentos de discussão e reflexão coletiva no ambiente laboral e de não sentirem-se

solitários no trabalho do que os professores que percebem um suporte social baixo. As variáveis

implicadas envolvem ferramentas coletivas capazes de revitalizar a ação e dar suporte à mesma.

Também foram cruzados com variáveis do questionário sócio-profissional os perfis

psicossociais identificados (ativo, passivo, baixo risco psicossocial, em risco psicossocial). As

relações de dependência encontradas serão apresentadas nos parágrafos seguintes.

Foi observada relação de dependência entre o perfil psicossocial e a idade (p<0,028) dos

profissionais da amostra. Professores mais velhos (43-68 anos) têm mais chances de pertencerem

ao perfil passivo e de baixo risco psicossocial. Professores de perfil ativo estão mais presentes na

primeira faixa de idade (23-42 anos), enquanto o perfil de risco psicossocial está bem repartido

entre as faixas de idade. Como já observado e discutido anteriormente, professores mais velhos

tendem a perceber uma situação laboral mais positiva do que os seus pares mais novos. O
120

pertencimento aos perfis passivo e de baixo risco psicossocial envolve a percepção de uma menor

demanda psicológica de trabalho.

Observou-se relação de dependência entre o vínculo e o perfil psicossocial (p<0,000). Os

professores temporários encontram-se majoritariamente no perfil de trabalho passivo e, em

segundo lugar, no perfil de baixo risco psicossocial. A posição mais precarizada de trabalho

expressa pelo vínculo de professor temporário pode manifestar-se através de uma percepção

reduzida do poder e possibilidade de desenvolvimento no trabalho e uma demanda psicológica

mais baixa. Esta última pode dever-se a uma avaliação mais cautelosa das demandas psicológicas

do trabalho, como já mencionado, ou a uma visão potencialmente mais conformada dos desafios

do trabalho docente.

Foi encontrada relação de dependência entre o IDEB das instituições de pertencimento e o

perfil psicossocial (p<0,04). Há um maior número de professores de perfil passivo nas

instituições de IDEB mais baixo, um maior número de professores de perfil de baixo risco

psicossocial nas instituições de IDEB mais elevado e mais professores de perfil ativo nas

instituições de IDEB mediano. O perfil de risco psicossocial encontra-se mais bem distribuído, no

entanto, está menos presente nas instituições de baixo IDEB.

Uma das possíveis razões para o maior número de professores de perfil passivo estar nas

instituições de IDEB mais baixo é a constatação de que existem mais professores temporários

nessas instituições, os mesmos identificando-se, em sua maioria, ao perfil de trabalhadores

passivos. Embora não seja possível afirmar e nem estender a todos os casos, o trabalho passivo

pode ser a expressão de um modo de trabalho defensivo, permitindo a sobrevivência do indivíduo


121

e evitando maiores desgastes, o que pode estar representado pela latitude de decisão e demanda

psicológica reduzidas.

É possível que o fato de um maior número de professores com baixo risco psicossocial

estar presente nas instituições de elevado IDEB justifique-se, como já mencionado, pela

possibilidade de instituições mais bem organizadas e que oferecem maior suporte aos seus

profissionais, refletindo-se em perfis laborais de baixo risco, terem seus resultados repercutidos

no IDEB. No entanto, como trazido anteriormente, não se pode dizer que a lógica de

funcionamento das avaliações implicadas no IDEB seja responsável pelos quadros expressos,

embora possa refleti-los. É também importante relembrar que não houve, por exemplo, relação de

dependência entre a satisfação no trabalho e o IDEB, nem entre o sentimento de solidão no

trabalho e o IDEB das instituições de pertencimento.

Encontrou-se relação de dependência entre o perfil psicossocial e: a satisfação com a

reunião de planejamento (p<0,041), a satisfação com o tempo de planejamento (p<0,004) e a

percepção da presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento (p<0,013). Os perfis

passivo e de baixo risco psicossocial apresentam maior satisfação com as reuniões de

planejamento, com o tempo de planejamento e percepção de maior presença de discussão teórica

nas reuniões (sobretudo o perfil passivo) em relação aos professores de perfil ativo e em risco

psicossocial, sendo maior a diferença na comparação a este último. Os elementos mencionados

dizem respeito a instrumentos passíveis de favorecer o enriquecimento da prática e dar suporte à

ação, o que pode justificar sua percepção positiva maior nos perfis que reconhecem uma demanda

psicológica mais baixa, apontando para um enfrentamento mais eficaz das adversidades ou

devendo-se ainda à possível cautela nas respostas ou conformação diante das dificuldades.
122

Observou-se relação de dependência entre o perfil psicossocial e: o suporte social

(p<0,033), a satisfação com o trabalho (p<0,000) e o sentimento de solidão no trabalho

(p<0,000). Professores de perfil passivo e de baixo risco psicossocial reconhecem um suporte

social mais elevado, bem como uma maior satisfação no trabalho e um menor sentimento de

solidão no ambiente laboral do que os de perfil ativo e em risco psicossocial. Os professores em

risco psicossocial apresentam percentis mais altos de insatisfeitos com o trabalho, de

profissionais que se sentem solitários e que reconhecem um suporte social baixo. Na linha do

explicitado no parágrafo anterior, os perfis que reconhecem uma maior demanda psicológica

tendem a perceber um suporte social mais baixo, a possuírem menor satisfação no trabalho e a

sentirem-se mais solitários, o que pode apontar para as dificuldades na lida com as adversidades

do meio e ausência ou baixo suporte para dar resposta às situações.

f) Perfis oriundos da análise descritiva multidimensional tipo Cluster.

Foi realizada análise de agrupamentos (clusters) de variáveis descritivas na elaboração de

perfis com o auxílio de ferramenta de análise estatística. Foram selecionadas 30 variáveis para

análise e aglutinação em clusters.

Escolheram-se variáveis de perfil que englobassem a amostra como um todo, dentre as

quais: IDEB das instituições de pertencimento, idade, tempo na profissão, tempo no local de

trabalho, formação, pós-graduação, vínculo, nível da turma em que leciona, presença de alunos

com NEE, presença de professor auxiliar na turma e trabalho no contraturno. Também foram

selecionadas variáveis avaliativas que abarcassem diferentes dimensões do trabalho de forma

abrangente, tais que: satisfação no trabalho, sentimento de solidão no trabalho, suporte social,

satisfação com as reuniões de planejamento, satisfação com o tempo de planejamento, presença


123

de discussão teórica nas reuniões de planejamento, consideração da existência de momentos de

discussão e reflexão coletivas no ambiente laboral, familiaridade com o PPP da instituição, além

dos perfis psicossociais.

Foram identificados dois grupos (clusters), cuja qualidade situou-se entre ruim e aceitável.

Situação compreensível, tendo em vista a quantidade de variáveis implicadas na análise e a

complexidade de suas interações. O perfil I abarcou 40,7% da amostra, enquanto o perfil II

compreendeu 59,3% da amostra. As 10 primeiras variáveis por ordem de importância para a

aglutinação e criação dos clusters foram as seguintes: solidão no trabalho, perfil psicossocial,

suporte social, idade, consideração da existência de momentos de discussão e reflexão coletivas

no ambiente laboral, tempo na profissão, presença de discussão teórica nas reuniões de

planejamento, familiaridade com o PPP, satisfação com as reuniões de planejamento e satisfação

com o tempo de planejamento. Cruzamentos foram realizados com os perfis encontrados e as

variáveis visando a descobrir as especificidades de cada grupo. O quadro a seguir revela os perfis

e suas características mais expressivas.


124

Quadro 1
Perfis de cluster obtidos
Perfil I Perfil II
Perfis psicossociais predominantes: Trabalho Perfis psicossociais predominantes: Trabalho
Ativo + Risco Psicossocial Passivo + Baixo Risco Psicossocial
Mais profissionais sentem-se solitários no Menos profissionais sentem-se solitários no
trabalho trabalho
Suporte social baixo Suporte social elevado
Profissionais mais novos (23-42 anos) Profissionais mais velhos (43-68 anos)
Profissionais há menos tempo na profissão Profissionais há mais tempo na profissão
(até 15 anos) (acima de 15 anos)
Menor reconhecimento da existência de Maior reconhecimento da existência de
momentos para discussão e reflexão coletiva no momentos para discussão e reflexão coletiva no
ambiente de trabalho ambiente de trabalho
Menor reconhecimento da presença de Maior reconhecimento da presença de
discussão teórica nas reuniões de planejamento discussão teórica nas reuniões de planejamento
Menor satisfação com as reuniões e tempo de Maior satisfação com as reuniões e tempo de
planejamento planejamento
Menor familiaridade com o PPP da instituição Maior familiaridade com o PPP da instituição

O perfil I abarca profissionais que se sentem mais solitários em relação ao trabalho. Os

trabalhadores ativos e em risco psicossocial estão mais próximos deste perfil do que os passivos e

em baixo risco psicossocial. Como já comentando, a percepção de alta demanda psicológica do

trabalho implica em um maior desgaste potencial, envolvendo o sentimento de solidão e baixo

suporte, possivelmente devido à percepção de lida, muitas vezes frustrada, com situações

desafiantes. Potenciais ferramentas de suporte para a atividade, a familiaridade com o PPP e

aspectos envolvendo as reuniões de planejamento pedagógico, parecem deixar a desejar


125

conforme a percepção do grupo. Profissionais mais jovens e com menos tempo na profissão

constituem o perfil I. É possível que entre os profissionais mais velhos e há mais tempo na

profissão tenha se operado uma seleção daqueles mais positivos em relação ao trabalho, como já

trazido. É também possível que a menor experiência dos mais jovens e há menos tempo na

profissão envolva maior desgaste, maiores expectativas e dificuldades para lidar com os desafios

impostos.

O perfil II abrange os profissionais que se dizem menos solitários no trabalho. Os perfis

psicossociais predominantes no cluster, trabalho passivo e baixo risco psicossocial, têm em

comum a percepção de baixa demanda psicológica no trabalho, que se combina à percepção de

um maior suporte social. As reuniões de planejamento pedagógico, instrumento potencial de

reflexão e discussão coletiva sobre a ação, são avaliadas positivamente. Há também maior

familiaridade com o PPP, recurso importante para a reflexão, formação continuada e elaboração

de projeto comum. Estes instrumentos e recursos podem contribuir na percepção de maior

suporte e menor sentimento de solidão no trabalho devido ao seu potencial na produção de

discussões e reflexões passíveis de gerar recursos para a ação. Professores mais velhos e com

mais tempo na profissão compõem este perfil, o que pode dizer do benefício do acúmulo de

experiências adquirido com a prática profissional e/ou da seleção de um grupo mais positivo em

relação ao trabalho pelo tempo. Há relação entre a percepção de maior suporte social e uma visão

positiva da atividade de trabalho, embora não seja possível dizer qual gera qual. Ambas estão

incluídas dentro de um cenário complexo e dizem do mesmo, ainda que não sejam reveladas

todas as suas mediações.


126

As relações estabelecidas na etapa quantitativa da pesquisa tratam muitas vezes de

percepções dos profissionais que dão pistas de interações possíveis entre elementos ou de sua

participação em um cenário mais amplo atravessado por nuances e conexões complexas.

Profissionais vindos de uma mesma instituição podem fazer juízos diferentes de sua vivência

laboral, no entanto, ambas dizem do contexto e da perspectiva em questão.

6.2. Etapa II (clínico-qualitativa)

O recrutamento de docentes com base nos resultados e perfis gerados na etapa

quantitativa da pesquisa justifica-se como indicação para acessar diferentes vivências do trabalho,

envolvendo pontos de vista diversos sobre a profissão e dando pistas de elementos pessoais e

contextuais relacionados a essas percepções.

Foram selecionadas duas professoras do 1º ano do ensino fundamental que concordaram

em participar da segunda etapa da pesquisa, cada uma pertencendo a um perfil diferente de

cluster e situando-se em quadrantes opostos de perfil psicossocial. Uma professora, que será

chamada de S, em situação de risco psicossocial e pertencente ao perfil I do cluster, e outra

profissional, nomeada como M, com perfil de baixo risco psicossocial e pertencente ao perfil II

do cluster. Serão apresentados e discutidos os registros das entrevistas realizadas com cada

professora individualmente, seguido de um paralelo entre as experiências.

6.2.1. Instrução ao sósia – S.

A profissional S está situada no perfil de risco psicossocial e pertence ao perfil I do

cluster, sente-se só e reconhece um baixo suporte social em seu trabalho. S tem 43 anos, leciona

há nove anos, trabalha em uma escola de IDEB mediano, sua turma possui cerca de 25 alunos,
127

não apresenta alunos com NEE, nem professor auxiliar, trabalha no contraturno em outra

instituição distante geograficamente da primeira e de onde habita.

a) Momento I – S

Inicialmente pediu-se à professora que pensasse sobre uma situação de trabalho desafiante

ou considerada central para a atividade a fim de sondar as possibilidades a serem exploradas

durante a IaS. Essa etapa foi fundamental para conhecer os pontos de vista das profissionais, além

de permitir visualizar algumas dimensões da atividade.

S trouxe a percepção de problemas envolvendo a educação brasileira. Referiu-se a uma

carência de valores na família, falta de acompanhamento na educação dos filhos, insatisfação

com o poder público que joga a responsabilidade para os professores e não cuida de sua saúde

quando adoecem. A docente mencionou sua experiência inicial de trabalho no município em uma

turma de 5º ano com 38 alunos em situações de aprendizagem heterogêneas. Sobre esta situação

S relata:

S: É dilacerante a dor de você ver que você tá ali dentro pra... Pra dar uma
educação pra eles. Né? E você tem que fazer isso gritando. Minha voz, hoje, é
prejudicada, por exemplo, eu gosto muito da música, eu gosto muito de violão, eu
gosto muito de ensaiar meu violãozinho. Hoje eu canto malmente Cássia Eller,
mas eu já cantei Paula Toller, uma música mais aguda.

O trecho fala dos problemas de saúde e sofrimento vividos por S relacionados ao trabalho

enfatizando essa primeira experiência. Além da fenda nas cordas vocais, a docente refere-se a

dores nas articulações e dores de cabeça, trazendo a sensação de adoecimento ligada ao trabalho:
128

S: Eu praticava karatê, futebol de salão, musculação... Não tinha uma dor em uma
unha. Hoje eu estou com todo tipo de coisa, é tendinite, dores nas articulações, eh,
a questão de dores de cabeça constantes. O barulho, também, que é muito alto,
ensurdecedor, dentro das escolas. Então eu comecei a, a me cuidar agora,
recentemente. Depois de 10 anos vendo os prejuízos que me foram causados.
Então hoje eu não tenho mais saúde boa (...).

Atualmente S leciona no 1º ano do ensino fundamental, nível em que trabalha há cerca de

quatro anos, e que, segundo relata, trouxe melhoras na comparação com a experiência no 5º ano,

uma vez que nas turmas de 1º ano o limite de alunos estabelecido é de 25 por turma, embora os

resultados da etapa quantitativa tenham mostrado que isso nem sempre acontece.

A situação abordada por S e escolhida para ser explorada durante a IaS foi relacionada ao

projeto Papai Noel dos Correios nas escolas, em que as crianças devem elaborar uma carta para o

Papai Noel e fazer um pedido. As cartas são expostas nas unidades administrativas dos Correios

para serem escolhidas e respondidas com a possibilidade de entrega de um presente de natal às

crianças. O objetivo da campanha, além de promover a solidariedade, é incentivar a escrita e

trabalhar os conhecimentos em relação ao gênero carta (modo da escrita, endereço).

A professora trouxe o esforço e a necessidade de despertar o interesse dos alunos para a

realização da atividade, enfocando para as crianças a possibilidade de ganharem um presente com

a elaboração da carta (recompensa), embora tenha relatado que os alunos encontravam-se

desmotivados, pois, de acordo com a docente, não acreditavam em Papai Noel e também não

acreditavam que poderiam receber os presentes pedidos. S revela a existência de conflitos

envolvendo as instâncias pessoal e interpessoal da atividade, a necessidade percebida de motivar

os alunos e a percepção de que os mesmos encontravam-se desinteressados. O gênero se expressa


129

pelas estratégias mobilizadas pela professora, no caso, dentre outras coisas, no uso da

recompensa como incentivo para a realização da atividade (prescrito).

Os trechos abaixo trazem a lida de S com a percepção de desmotivação dos alunos no

momento de introdução da atividade que precede a escrita do modelo da carta ao Papai Noel no

quadro:

S: Depois de motivadas, quando você perceber que tem a atenção delas, você vai
escrever. Enquanto você não perceber a... Que elas estão interessadas naquilo ali,
não vai adiantar você ir pro quadro escrever. Então... Tenta, tenta, às vezes você
vai achar que estão, mas elas estão só te enganando, é só pra você não brigar mais
com elas pra elas pararem e tudo o mais. Mas você faz de conta que tá
acreditando nelas também.

(...)

S: Você faz de conta que acredita, porque senão você não faz. E você tem que
fazer de qualquer jeito. Do contrário não virão de casa com aquilo pronto não.
Ainda que você copie, corre o risco de você se decepcionar porque eles não vão
trazer aquela cópia pra passar a limpo a carta.

Esses trechos revelam o real da atividade, a subjetividade por trás da ação, aquilo que se

faz, mesmo sem se acreditar. Essa condição representa um entrave da atividade passível de

produzir sofrimento. Fazer de conta passa a ser uma condição para “conseguir” fazer a atividade,

uma atividade esvaziada de sentido. Trata-se de um conflito entre as diferentes instâncias, o

prescrito, instância impessoal, revela-se na frase “E você tem que fazer de qualquer jeito.”, que

entra em choque com a resistência percebida dos alunos (dimensão interpessoal) e a necessidade

de mobilizar uma estratégia, por exemplo, o faz de conta (dimensão pessoal).


130

Uma percepção recorrente trazida por S é o seu sentimento de interpelação contínua para

manter a turma sob controle, como se observa nas falas seguintes:

S: Se você não for preparada, eles vão virar a sala de cabeça pra baixo. E vão subir
em cima de você na mesa. E vão estar plantando bananeira enquanto você atende a
um aqui, eles vão estar brigando lá do outro lado. Porque são muitos. E você tem
que estar preparada pra tudo isso. Pra observar todas as situações enquanto você é
apenas uma na sala de aula... E eles 25.

(...)

S: Eles vão te experimentar o tempo inteiro. As crianças nos estudam.

(...)

S: Então você vai ter que estar bem atenta mesmo. É uma responsabilidade muito
grande. E quanto maior é o número de crianças, maior é a responsabilidade e
maior a chance de você falhar.

Evidencia-se a necessidade de gestão da turma pela professora, o que compõe o gênero

profissional e envolve as instâncias pessoal e interpessoal. No primeiro trecho, por “estar

preparada”, embora não esteja explicitado no segmento, S refere-se à necessidade de, em

momento introdutório, envolver as crianças em uma história, pesquisar e trazer informações

sobre o Papai Noel, colocando a possibilidade de trabalhar conteúdos e utilizando o momento

como modo de manter a turma sob controle. O receio em falhar, como expresso no último trecho,

parece estar relacionado ao receio de perder o controle da situação, o que pode engendrar

estratégias defensivas. A preocupação excessiva em manter o controle implica em uma condição

e estratégia que ao mesmo tempo em que permite a atividade, pode limita-la. S também faz

referência às condições de trabalho, à quantidade elevada de alunos na turma para uma única

professora, que torna a atividade mais complexa.


131

Alguns trechos de S sobre a necessidade de ter controle sobre a turma serão apresentados,

seguidos por uma pequena discussão.

S: E tenha cuidado pra não levar muito tempo na atividade. Porque a criança, ela
não consegue ficar parada muito tempo. Daí você perceber que tá no momento que
precisa, por exemplo, levar pra tomar uma água. Levanta com eles, vai, toma uma
água pra eles saírem um pouco da sala. E aí eles voltam. Aí você volta, acalma
novamente, e retoma a atividade. Tudo isso é necessário.

Percebe-se que o processo de levar a turma para beber água, voltar, acalmar e retomar a

atividade tem o objetivo de manter o controle, evitar a dispersão em sala. As dimensões pessoal e

interpessoal estão mais fortemente envolvidas na situação. Trata-se de uma atividade investida

para evitar um maior desgaste (dispersão dos alunos), podendo também proporcionar uma

atenção renovada das crianças. A estratégia/estilização pode ser eficiente no sentido de poupar

energia e mesmo recentrar a turma, no entanto também pode envolver entrave para o

desenvolvimento da atividade. Entrave no sentido de evitar, pela mobilização de estratégias para

manter o controle, um possível questionamento sobre a própria atuação, os motivos envolvidos

nas dificuldades encontradas, o sentido da atividade e visualização de novas possibilidades.

S: Vamos organizar. Você tem que liderar, você tem que mostrar que você é a
pessoa que está à frente da turma porque eles não têm condições de se gerenciar,
então você tem que estar à frente da turma. Se você não demonstrar liderança e
domínio, você jamais educará essas crianças. Nem pra fazer uma, a, um... As
vogais. Porque a questão da aprendizagem começa pelo estímulo, mas também,
acima de tudo, pela disciplina. Você precisa estar aberto pra receber o que o
outro vai te dar e você só se abre se você for convencido.

Observa-se a ênfase colocada na gestão da turma, na disciplina, o que constitui o gênero

profissional docente, podendo envolver tanto o aprendizado das regras para viver em grupo e o
132

autocontrole, como a criação de um ambiente organizado e propício para a aprendizagem. No

entanto, o uso da palavra “domínio” e a percepção da necessidade de convencer os alunos

remetem ao debate sobre a compreensão de autoridade colocada por Charlot (2008). A

autoridade, tendo em vista o estabelecimento de regras e exigências, é fundamental no trabalho

docente e um de seus caminhos é a cidadania, a compreensão de direitos e deveres. Outro

caminho estabelecido, sobretudo para as classes menos favorecidas, é o da domesticação e do

adestramento. O uso de palavras como domínio e convencimento tende a uma percepção passiva

do outro, mais próxima da ideia de adestramento.

S: E eles não podem retornar aleatoriamente não, porque senão eles vão correr no
espaço, vão se machucar. Você não vai ter domínio sobre toda turma, então... A
fila, ela vai prevenir acidente e vai te conceder um domínio sobre a situação. Esse
domínio do professor precisa existir, do contrário a atividade morre.

O trecho acima se refere ao uso da fila como ferramenta para manter o controle da turma,

evitar dispersões e acidentes. Mais uma vez evidencia-se a ênfase atribuída por S ao controle,

condição que envolve tanto a dimensão transpessoal, o gênero profissional, pois a gestão da

turma constitui a prática docente, como as instâncias pessoal e interpessoal. O controle é

percebido como vital para a realização da atividade, no entanto, dependendo da dimensão que

ocupe, também pode aprisiona-la e travar sua fluidez.

S se refere a impedimentos de sua atividade nos trechos seguintes.

S: Aí você vai retomar e você vai conseguir concluir a sua atividade, mas alguns
não vão copiar... Você vai perceber que eles estão muito atrás.

(...)
133

S: Mas você consegue fazer a atividade com mais tempo, então se eles não
concluírem você retoma no dia seguinte, e retoma no dia seguinte. E o trabalho
do professor é essa constante retomada até que... Que você consiga vencer eles
pelo cansaço. E aí você consegue fazer a produção.

Os trechos acima trazem a dimensão do prescrito (impessoal), que seria “fazer a

atividade/produzir”; Do interpessoal, quando os alunos não copiam, ficam para trás ou esquecem

a cópia em casa (conforme trazido por S durante a entrevista); E do pessoal, que envolve essa

retomada constante que caracteriza a atividade do professor para S (repetição). O real da

atividade revela-se no que precisa ser retomado diversas vezes.

A impressão que a instrução passa, sobretudo no último trecho, é que trabalhar é uma

batalha que precisa ser vencida. Os alunos são vencidos pelo cansaço para produzirem. Nota-se

um aprisionamento das outras instâncias pela dimensão impessoal, o prescrito, o que importa é

fazer a atividade, trazer a cópia de casa, produzir. Trata-se de uma lógica de desempenho. Ao

invés de servir de orientação, o prescrito assume para S um papel de tirano que esvazia o sentido

de sua atividade. Ser vencido para produzir implica em uma visão passiva dos alunos que,

contudo, precisam ser sujeitos ativos do seu processo de aprendizagem.

A história de S traz um começo de profissão difícil, momento importante para a formação da

prática profissional, em uma turma de 5º ano, trabalhando sozinha com um número excessivo de

alunos em condições heterogêneas de aprendizagem e aparentemente sem suporte, situação que

lhe deixou literalmente sem voz face ao real. As más condições de trabalho e a desassistência ou

insuficiente assistência, especialmente em um momento crítico como o de início de carreira,

envolvendo as contradições e desigualdades sociais que atravessam a escola pública podem gerar

impedimentos para a atividade docente e seu desenvolvimento, produzindo, na vivência de


134

frustrações e busca por respostas, discursos de culpabilização da família, como ocorre com S. A

docente queixa-se diversas vezes da falta de acompanhamento da família nas atividades escolares

e fala em carência de valores, embora reconheça as dificuldades da família (os pais às vezes não

sabem ler e vivem em condições difíceis).

As dificuldades e desafios ligados ao contexto social, à apropriação de uma cultura da escola

pela família, existem e exigem um trabalho amplo que envolve além de um maior investimento

na educação, melhora nas condições de trabalho e salários dos professores, políticas de

assistência, redistribuição de renda, acesso à cultura, formação, oportunidades de emprego, etc.

Isto implica no reconhecimento de que os desafios envolvendo as famílias dos alunos não se

resumem a uma questão de valores, mas envolvem respostas a um processo de exclusão social

histórico que também precisa ser levado em consideração na busca por alternativas de inclusão na

escola. No entanto o enfrentamento desses desafios complexos, que constituem o trabalho

docente na escola pública, não deve resumir-se ao trabalho do professor em sala de aula, embora

o abranja, mas necessita da formação de coletivos de trabalho fortes, da criação de vínculos com

a comunidade e luta por melhores condições de trabalho, ou pode deixar sem voz face ao real,

prejudicando professores e alunos.

Considerando o significado social do trabalho pedagógico enquanto produtor de humanização

e desenvolvimento psíquico, espaço de reflexão, sistematização e compartilhamento dos saberes

construídos historicamente pela humanidade, e o sentido pessoal atribuído ao trabalho por S

enquanto voltado para o controle e a produção, envolvendo estratégias de sobrevivência (batalha

a ser vencida) em um ambiente hostil, pode-se falar em ruptura entre significado e sentido do

trabalho. As dificuldades vivenciadas ensejam estratégias de sobrevivência que ao mesmo tempo


135

em que permitem a atividade, limitam-na. O foco no controle e disciplina da turma, bem como na

produção, são expressos pela docente como uma batalha e tomam mais lugar nas instruções do

que as preocupações ligadas à mobilização intelectual das crianças.

Para compreender as potências, impedimentos, percepções e sofrimento no trabalho é preciso

levar em consideração as condições objetivas concretas que repercutem na consciência docente,

pois o trabalho é uma via de engajamento histórico, social, pessoal, subjetivo, político, cognitivo

e afetivo na sociedade, e suas condições podem ser alienantes, adoecedoras ou favorecedoras e

promotoras de consciência e desenvolvimento.

b) Momento II – S.

A segunda entrevista promoveu a confrontação de S com a própria atividade a partir de

trechos representativos selecionados da IaS. Percebeu-se certo desconforto da docente em relação

às marcas da oralidade nas transcrições e preocupação em explicar-se e corrigir algumas frases.

Houve muita validação, por S, das instruções lidas e dificuldade para aprofundar-se nos

comentários e dialogar com a própria atividade. Certamente a participação de um coletivo teria

mais potencial em promover confrontos e gerar mobilização a respeito da atividade.

Quando questionada sobre o que a experiência anterior, de IaS, lhe suscitou, S falou de sua

disponibilidade e desejo de ajudar e também trouxe que se sentiu ditadora com a sósia, como se a

sósia tivesse de fazer exatamente o que lhe estava sendo dito. É possível que esse entendimento

seja um reflexo de como S percebe, lida e sente sua própria atividade, algo aprisionador. S

colocou que não teve tempo de ler a transcrição da entrevista de IaS para comentar suas

impressões a respeito. Doravante serão apresentados trechos e comentários da segunda entrevista

realizada com S em relação ao diálogo com sua prática e vivência.


136

Sobre a necessidade de repetição da atividade diversas vezes, S relatou sentir-se cansada,

reconhecendo não ter trabalhado a responsabilidade o suficiente com as crianças ao longo do ano,

o que revela aquilo que deveria ter sido feito, mas não foi (de acordo com S). No entanto, para

além da falta de responsabilidade das crianças, o que aparece no discurso é a falta de interesse

dos alunos, que pode apontar para uma falta de sentido percebida por eles. O trecho também

evidencia a importância dada à produção das crianças (prescrito).

S: Eu achei muito cansativo, porque eu tinha que fazer e sentir que a, a


responsabilidade foi uma... Foi uma coisa assim que faltou ser mais trabalhada
durante o ano, então eu percebo, eu percebi uma falha minha nesse sentido. Né?
De ter trabalhado mais a responsabilidade com eles. Pra que no momento em que
precisássemos de uma atividade como essa, eles tivessem condições de me dar. E
produzir.

A respeito da prática profissional, no trecho seguinte, a docente fala do trabalho com a

escrita das crianças (gênero profissional e prescrito) e a apresentação, para o aluno, de sua

evolução ao longo do ano.

Pesquisadora: Eles passam a limpo?

S: Passam, passam. Aí é bom porque é outra oportunidade de você estar


trabalhando a escrita. Muito chegam lá escrevendo fora das pautas ou com letras
que você não consegue compreender, né. E aí você vai trabalhando isso durante o
ano todo e eu mostro sempre isso pra eles. Eu abro o caderninho, quando tá perto
de acabar, eu abro o caderninho, “Olha só, como era sua letra no primeiro dia de
aula! Olha só como foi ficando e olha como ela tá agora!”. Então, naquele
momento eu percebo que em, em muitas ocasiões eu consigo um despertar ali da
criança, um dizendo, “Ahaaa!”, aquela coisa que ele percebeu assim, “É verdade.
Eu estou escrevendo bem, eu estou, eu estou com a letra mais bonita.”. Então
137

ele tem aquele up na motivação, ele se sente agraciado com o elogio, eu digo
assim, “Sua letra tá muito bonita.”.

O cuidado de S com a escrita das crianças, que compõe o gênero profissional e também o

prescrito para a atividade, foca em sua forma (escrever nas pautas e de modo legível), o que

compõe a aprendizagem da escrita. A apresentação aos alunos de sua evolução em termos de

caligrafia pode ser um modo interessante de ampliar a consciência sobre o próprio

desenvolvimento. No entanto, o trecho não evidencia o processo de alfabetização por trás da

escrita. O conceito de “escrever bem” parece estar ligado a possuir uma letra bonita.

Foram identificadas por S dimensões que norteiam sua atividade de trabalho, revelando o

potencial da confrontação na ampliação da consciência sobre a própria atividade, embora também

tenha sido observada pela pesquisadora a necessidade de fazer questionamentos para

potencializar a reflexão sobre a vivência, papel que a presença de um coletivo de trabalho

favoreceria. Seguem trechos que revelam a elaboração de S acerca dos pontos centrais de sua

atividade.

S: Lá atrás, aqui na nossa gravação, eu falei sobre algumas coisas que, que são,
digamos assim, meu carro chefe. A questão da prática dos valores, aí tá, tá
vendo aqui a motivação, né, esse despertar do desejo de aprender e o cuidado
com a integridade física do aluno. Você pode, você pode perceber que ao longo
da nossa entrevista eu tô falando a mesma coisa. A palavra de respei... Eh, de
ordem é respeito, a questão da prática do valor, dos valores, a questão da
motivação na aprendizagem pra que ele sinta desejo de aprender.

(...)
138

S: Então é a questão da motivação, disciplina, a prática dos valores, o cuidado


com a integridade física, é assim que eu poderia estar resumindo o, digamos
assim, o cerne da minha prática profissional, seriam exatamente esses focos.

Como destacado, o cerne da atividade para S são: a motivação, a disciplina, a prática de

valores e o cuidado com a integridade física dos alunos. Trata-se de elementos que constituem a

prática educativa (gênero profissional) e que estão ligados mais fortemente à gestão da turma. Em

uma análise clínica da atividade que leva em consideração sua dimensão real e subjetiva, aquilo

que não é enfatizado ou não aparece na fala de S pesa tanto quanto aquilo que sobressai. Nesse

sentido, levando em consideração os prescritos para a docência nos primeiros anos do ensino

fundamental, que bebem do gênero profissional, existe ênfase no processo de alfabetização. No

entanto são feitas apenas menções indiretas a este processo ao longo das entrevistas. A prática de

S parece estar mais dirigida à gestão da turma, o que diz da necessidade de controle/produção

sentida diante dos desafios e dificuldades encontrados (impedimentos), limitando sua prática.

Em alguns momentos sentiu-se a necessidade de fazer perguntas para compreender melhor

alguns conceitos trazidos, como no diálogo abaixo a respeito do “desejo de aprender” recorrente

na fala de S a despeito das queixas sobre a desmotivação das crianças.

Pesquisadora: E como é que se daria esse desejo de aprender?

S: A motivação. Quando você motiva, você... Você lidera essa motivação...


Porque a criança ela vai pra escola, ela quer brincar, Então, eh, mas... Co... É
como se você tivesse mostrando pra ela que aprender é uma grande brincadeira
e pode ser divertido. E aí você vai motivando e... Vai buscando esse, esse desejo,
onde ele está, e quando você encontra o que motiva você usa. O que pode ser
um... Eh, jogos pedagógicos, uma simples brincadeira da forca que você faz com
eles, eles ficam motivados, excitados, em ebulição, e aí depois você tem que,
139

Pssss, acalmar um pouquinho, você novamente precisa do silêncio pra você dar
sua aula.

A motivação e o despertar do desejo de aprender são elementos fundamentais para o

processo de ensino-aprendizagem e envolvem tanto a dimensão transpessoal (gênero

profissional), quanto pessoal e interpessoal, demandando a participação ativa da criança. O termo

“liderar” a motivação parece referir-se a algo extrínseco, que vai do professor para o aluno. Já,

buscar desejos para usá-los tem potencial no reconhecimento da subjetividade do aluno e no seu

envolvimento. O uso de jogos e a perspectiva de aprender brincando parecem ser usados com o

intuito de motivar, produzir momentos de prazer (excitação, ebulição), alternando com as aulas

para as quais se precisa de calma e silêncio. No entanto, sem desmerecer as iniciativas lúdicas, as

aulas poderiam igualmente constituir em si alternativas motivadoras e prazerosas.

Nos trechos seguintes, S traz algumas exigências da docência e queixa-se das dificuldades

de sua profissão.

S: A questão da disciplina é indispensável pra o aprendizado e... Tendo como


argumento a quantidade, né, de alunos que a gente tem dentro da sala de aula.
Isso é argumento suficiente pra te dizer que precisa de disciplina.

(...)

S: Então a gente tenta se desdobrar nessa, nessas aulas que a gente dá, só que a
grande dificuldade, eh, se concentra justamente, em muitas ocasiões, no número
de alunos em sala de aula, que esse é o problema princip... Seguido do, do,
seguido da falta, digamos assim, da, da, da presença da família no processo de
aprendizagem escolar, né. (...) tá me fazendo mal ser professora nessas
condições.
140

A disciplina é reconhecida por S como indispensável para o aprendizado, além de sua

maior demanda devido à grande quantidade de alunos na turma. A docente traz o elevado número

de alunos na sala e a ausência da família no suporte ao processo de aprendizagem dos alunos

como os principais problemas com que tem de lidar, expressando sofrimento em ser professora

nessas condições. Constatam-se nesses, e em outros trechos apresentados, as condições objetivas

em que se constitui a atividade de S: um cenário social complexo com demandas complexas, o

desafio de gerir uma turma numerosa, dupla jornada de trabalho, deslocamentos, frustrações entre

expectativa e realidade, falta de suporte na lida com estes elementos que a deixam sem voz face

ao real, além da complexidade da tarefa educativa.

Em condições de trabalho adversas e em meio a demandas contraditórias, o prescrito e o

gênero profissional podem estabelecer-se na lógica da produção/desempenho e do controle,

permitindo a realização da atividade na medida em que impedem o seu desenvolvimento e

acentuando as desigualdades sociais uma vez que não há maior favorecimento ao

desenvolvimento, mobilização intelectual e emancipação dos alunos.

Ao fim da entrevista a pesquisadora apresentou a S a percepção de que apesar das

tentativas e importância reconhecida de motivar os alunos (trazidas de forma recorrente na fala da

professora), a tarefa parecia difícil tendo em vista as queixas, também recorrentes, sobre a falta

de interesse dos alunos, o que levou S a acrescentar.

S: Essa busca... Porque cada criança tem a sua peculiaridade. E você vai buscar
essa peculiaridade, esse ser peculiar, o que é que motiva, do que é que ele gosta?
Um gosta de futebol, o outro de artes marciais, o outro de desenhar. Um gosta de
jogar bola, o outro de brincar de boneca. Então você tem que partir desse
pressuposto pra você iniciar a busca pela sua estratégia em cima do que motiva
141

ele. Muito bem, vamos adiante, nem sempre isso é muito fácil porque são
muitos, devido a, novamente, a quantidade de alunos na sala de aula. E acaba não
dando tempo de você fazer essa busca, então você começa com uma busca meio
que genérica. Vai ter aquele grupo da bola e o grupo da boneca, então vamo,
vamo partir por aí. Porque não tem condições de você se aprofundar como
deveria em cada um na situação.

O trecho revela a consideração da subjetividade da criança e do que ela gosta para seu

envolvimento e motivação (dimensão interpessoal), mas esbarra na dificuldade da quantidade de

alunos na turma (condição objetiva), partindo para uma abordagem genérica de seus interesses

(dimensão pessoal e interpessoal), revelando o trabalho impedido no real da atividade. A

perspectiva de usar os interesses das crianças pode ser uma boa alternativa para criar novos

interesses e estimular o aprendizado, no entanto a referência específica à bola e à boneca implica

em uma percepção sexista, construída na cultura, dos interesses infantis.

A pesquisadora mencionou a tentativa de produção da motivação pela possibilidade de

receber um presente do Papai Noel (conforme trazido por S), o que levou a professora a fazer

uma reflexão sobre o consumismo veiculado pela mídia.

S: (...) então você sempre quer mais. Então nessa busca desse mais, você, você,
você pode observar que grande parte das pessoas são interesseiras. E elas só se
movem mediante uma recompensa. No caso, o que eu tenho pra oferecer é o
prazer pela aprendizagem. E muitas coisas eu, eu, digamos assim, eu tenho uma
prática intermediária onde eu levo um pirulito, onde existe uma, um presente do
Papai Noel pra que ele conclua aquela atividade. Nós somos obrigados a
mesclar e compreender que a situação posta é que a criança está sendo instruída e
educada por essa mídia golpista que bobotiza, que nos transforma em
consumidores, em robôs.
142

Mais uma vez o real da atividade e as frustrações implicadas são expostos. A recompensa

é utilizada como produtora de motivação na falta do despertar do prazer de aprender. No trecho,

o uso da recompensa é feito com o intuito que os alunos concluam a atividade, o que se insere na

lógica da produção/desempenho. Concluir a atividade nem sempre implica em mobilização

intelectual e aprendizado.

S: E você tem que levar tudo isso em consideração pra aquele ser que chega lá
na tua sala, que tá pulando, que tá batendo, que tá furando o outro com um lápis,
que tá jogando pedrinha a cabeça do outro, que tá subindo pelos combongóis, que
tá plantando bananeira em plena aula. Que esse, que esse ser ele veio de casa, ele
levou um soco de um padrasto bêbado ou o pai e a mãe se separaram e ele passou
uns dias sem vir à escola porque não tinha o que comer na casa dele. E a mãe teve
que levar ele pra um outro lugar, de um parente, uma avó, por exemplo, pra que
ele pudesse comer. Então tudo isso machuca você como professor, como
educador. E cadê aquele aluno que tá aqui pronto pra aprender sem
problemas? Você não vai encontrar na rede par... Na rede pública de ensino.

O relato revela a complexidade do contexto social, que pode afetar professores e deixa-los

sem voz face ao real. A diferença entre expectativas e a realidade é evidenciada na percepção de

que não existem alunos ideais prontos para aprender (dimensão interpessoal). Alunos aptos para

aprender envolvem uma co-construção continua. Este processo não é simples, sobretudo em

condições adversas de trabalho, e exige o suporte de coletivos fortes, além de melhores condições

de trabalho. Ao revelar-se sem voz face ao real, S mostra sua solidão.

No começo da escolarização o desafio é tornar-se aluno, compreender um universo de

regras e inserir-se em uma lógica de aprendizagem, e isso para todas as classes sociais. Muitos

alunos do primeiro ano da escola pública não passaram por escolarização anterior ou não tem em
143

casa realidades que se aproximem do universo escolar, de modo que o desafio de inserção é

maior. No entanto, o aluno de escola pública está apto, como qualquer outro, a aprender e se

desenvolver, ainda que suas condições sejam mais complexas.

Doravante será exposta uma parte do diálogo da pesquisadora com S. Questionou-se sobre

o que fazer, que possibilidades usar no sentido da promoção da motivação dos alunos em relação

ao desejo de aprender, visto que este foi um tema considerado central por S e que, no entanto,

revelou-se frustrado durante as instruções.

Pesquisadora: Aí minha questão tem a ver com isso, mesmo que não seja
possível responder, mas pra pensar. Eh, que outras formas, levando em
consideração essa atividade da carta pro Papai Noel, que outras possibilidades
você poderia ver, digamos em condições, talvez, de mais tempo, mas que
possibilidades você acha que poderiam ser postas em prática pra, eh, contribuir
nessa, nessa...

S: Produção?

Pesquisadora: Motivação dos alunos no prazer de aprender.

S: Ah.

Pesquisadora: O que é que você acredita?

S: Eh, durante a produção do Papai Noel, você pegar algumas palavras-chave e


você trabalhar os presentes que eles vão pedir: patins, skate, bicicleta. (...) E aí a
gente vai fazendo assim. Vai trabalhando o nome, “Olha, nós vamos trabalhar o
nome de alguns presentes, vocês vão ter que aprender pra você poder botar na sua
carta.”. Eu poderia ter tido a oportunidade de ter trabalhado isso, por exemplo, né?
A questão da, da... Moradia, eh, “Aonde eu moro?”, “Quantas pessoas
moram?”, então se você trabalhasse esse texto antes, depois só era você pegas as
situações e montar. (...) Que num trabalho como esse, a gente precisa tra... Ter um
144

início, eh, digamos assim, pelo menos um mês antes, pra você ter oportunidade de
durante esse mês, você chegar ao final passando por todas as dificuldades que
puderem aparecer e o camarada estar lá, a criança estar lá com a sua carta
traduzida e passada a limpo. Né? Então uma estratégia seria o trabalho com as,
com as palavras, que envolvem os presentes, eh... O nome dos familiares que,
eh, com quem eles convivem, que eles poderiam estar colocando isso pra
enriquecer um pouco mais o texto, coisas assim.

S completa a frase “que possibilidades você acha que poderiam ser postas em prática pra

contribuir nessa...” com a palavra “produção”, ressaltando o foco neste aspecto do prescrito da

atividade. Pode ser que o fato de a atividade de carta para o Papai Noel ter um tempo limite e

implicar na possibilidade das crianças ganharem um presente tenha pressionado S no sentido da

produção ter tido um maior foco do que os aprendizados que poderiam ser suscitados por ela

(contribuição na aquisição da leitura e da escrita).

O direcionamento do pensamento sobre a atividade no sentido da busca da motivação da

criança para o prazer de aprender engendrou novas ideias, tais o trabalho com palavras escolhidas

pelas crianças relativas a brinquedos que gostariam de ganhar, a inclusão dos nomes dos

familiares, do lugar onde se mora e do número de pessoas com quem se vive. Trata-se de

estratégias que exploram a aprendizagem e dão sentido à carta da criança, trazendo-a para a sua

realidade e envolvendo sua participação e elaboração. Foi também trazida a demanda de mais

tempo para a atividade, a necessidade de começar mais cedo o trabalho para dedicar-se a

elementos da carta e para que a mesma esteja “traduzida e passada a limpo”, evidenciando

novamente a importância atribuída à produção (prescrito), que também compõe o gênero

profissional.

Ao ser questionada sobre o que as entrevistas suscitaram, S colocou:


145

S: Eh, a questão da reflexão, por exemplo, que é que eu poderia ter feito nessa
atividade. Aí me surgiu essa ideia de ter trabalhado mais o nome dos presentes,
eh, talvez eu já tivesse perguntado assim, “Eh, vocês têm sonhos?”, trabalhar a
questão dos sonhos, né? O, o que, eh... Seria uma coisa muito particular de cada
um e então a gente colocaria nomes pra esses objetos de desejo, né, que eles
gostariam. E talvez assim a gente trabalhar a questão do, do consumo mais.
Então me fez refletir sobre isso. E me levou a crer que, poxa, mediante os
presentes que foram pedidos, assim, claro que a gente orientou pra que fossem
produtos mais básicos, no entanto, os pedidos originais deles foram... Coisas,
assim, bem caras. Alguns, eh, de forma inocente, eles não sabem, eh, quanto custa.
Né, por exemplo, um notebook, tablet, um celular, eles não sabem, só sabem que
queriam aquilo. Por quê? Porque tá na televisão, pulando, “No celular, com jogos
e lá vai.”, você fica louca.

A fala de S trouxe novas perspectivas e possibilidades de abordagem da atividade, por

exemplo, explorar os desejos das crianças para trabalhar palavras, uma forma de envolver mais

ativamente os alunos na construção das cartas. As mesmas foram realizadas originalmente através

de um modelo escrito no quadro com lacunas a serem preenchidas. O consumismo também foi

abordado como tema de reflexão da professora, assim como o esforço para tornar os pedidos das

crianças mais acessíveis para ampliar as chances de ganharem presentes, condição que também

orientou a atividade e está relacionada ao foco na produção da carta (possibilidade de ganhar o

presente).

As novas possibilidades e reflexões engendradas retratam o potencial da clínica da

atividade no sentido da ampliação do olhar e consciência sobre a atividade e suas implicações,

ampliação do poder de agir e mobilização da vivência por meio da reflexão sobre a prática.
146

6.2.2. Instrução ao sósia – M.

M está situada no perfil de baixo risco psicossocial e pertence ao perfil II do cluster, não

se sente só e reconhece um alto suporte social em seu trabalho. M tem 51 anos, leciona há 21

anos, trabalha em uma escola de IDEB mediano, sua turma possui cerca de 22 alunos dos quais

um apresenta deficiência física não-incapacitante, não possui professor auxiliar, trabalha nos dois

turnos na mesma instituição e mora perto do trabalho.

Durante as entrevistas com M houve o desafio de fazer algumas interrupções na fala da

profissional, devido ao seu ânimo em falar continuamente sobre a própria atividade, a fim de

aprofundar-se nos detalhes da atividade, tendo em vista que a docente estava instigada no

compartilhamento de sua prática profissional.

a) Momento I – M.

Ao ser questionada sobre os temas centrais ou desafiantes de seu trabalho, M menciona a

alfabetização e o letramento como os focos de sua atuação e o que gosta de fazer, o que condiz

com o esperado para o primeiro ano do ensino fundamental, revelando a dimensão do prescrito e

gênero profissional da atividade. Como desafios, M traz a indisciplina, colocando que ter um

aluno perfeito não é possível, embora considere contornar a questão razoavelmente bem, o que

aponta no sentido da percepção de um poder de agir.

M coloca a satisfação de ter conseguido alfabetizar muitos alunos, do trabalho com a

leitura e do gosto das crianças em ler, falando da curiosidade própria da idade e percepção de

avidez pelo conhecimento por parte dos alunos. M também coloca que a família ajuda muito e

manifesta satisfação com o seu trabalho. Apesar dos percalços da profissão e do salário baixo, M
147

diz que se sente bem na profissão. Essa avaliação no começo da entrevista revela a satisfação de

M no sentido da percepção de um trabalho bem feito, ainda que reconheça as dificuldades de sua

profissão.

M traz que considera todos os dias de seu trabalho desafiantes, embora o momento mais

desafiante, escolhido como foco da entrevista de IaS pela professora, seja o momento após o

intervalo, devido à agitação dos alunos e à necessidade de pararem de brincar e correr para

retomar as atividades e se concentrar. Sobre isso M coloca:

M: O que eu acho desafiante é você trazê-los à calma. Entendeu? Porque a


criança nessa idade, ela gosta do movimento, né? Eles são naturalmente ativos,
assim, na parte de movimento também que... Trabalhar com a mente é atividade
também, mas eles não... Eles preferem a atividade física. O brincar, o correr, né?
Às vezes eu canto com eles, assim, fazendo gestos. Isso vai também acalmando.
Entende? Pra que eles possam retornar àquela tranquilidade de fazer uma
atividade de escrita, de leitura. Ou quando é, segundo horário, matemática,
precisa que a gente faça a leitura da atividade, né? Preste atenção no que o
professor tá explicando pra entender.

O desafio de M é trazer as crianças à calma e, para isso, faz uso de instrumentos que

permitem aos alunos uma regulação (dimensão interpessoal), como cantar, o uso de gestos

(gênero profissional). À volta à tranquilidade é percebida como um meio para a compreensão,

para a realização das atividades de escrita ou leitura (prescrito e gênero profissional), criando um

ambiente propício para o processo de ensino-aprendizagem.

Doravante serão trazidos e comentados alguns trechos das instruções de M a respeito de

sua atividade enfocando o momento após o intervalo com as crianças.


148

Pesquisadora: Eles fazem uma fila? Como é?

M: Pra voltar pra sala, não, eles ficam aguardando. Alguns ficam aguardando na
porta da sala e uma grande parte vai lá na sala dos professores pra vir
acompanhado comigo. Entendeu? A gente não exigiu que eles fizessem uma fila
porque é um momento que tá, ainda tá todo mundo correndo na escola. Então não
dá pra fazer uma fila com eles, esperar. A não ser que eles ficassem lá no
refeitório, mas eles não ficam. Eles ficam no parquinho, correndo, brincando.
Então se eu fosse fazer uma fila, eu iria perder mais... Se você fosse fazer uma fila,
você iria perder mais tempo pra recolhê-los. Eles não iriam, eles iriam se
esconder de você porque essa prática inicial, no ano, no início do ano, já foi feita
e não deu certo.

Em relação à técnica de IaS, percebeu-se como o questionamento do sósia a respeito das

possibilidades de atuação, como fazer uma fila, revelou elementos implícitos da atividade, o real

da atividade. No caso, a utilização da fila para voltar à sala após o intervalo havia sido feita no

início do ano, mas não promoveu bons resultados, o que levou a uma organização diferente. A

nova organização diante do impedimento revela uma exploração das possibilidades de ação. A

utilização por M do termo “a gente” ao referir-se à decisão de não exigir que fosse feita uma fila

aponta para uma decisão do coletivo de trabalho da instituição.

A respeito da técnica de relaxamento empregada na volta das crianças do intervalo, M

coloca:

M: Essa técnica de relaxamento você pede pra que eles sentem e vamos, a gente
vai fazer silêncio e vamos contando, eh... Eu faço os gestos com os dedos. Você
deve fazer assim, um, aí dá uma respirada, dois, a segunda respirada, três... Isso
pausadamente pra que eles possam respirar naquele ritmo mais calmo, né? E
pra ir voltando à calma.
149

(...)

M: “Vamos fazer um relaxamento, pessoal. Vamos fazer um relaxamento pra


gente voltar mais à calma, vocês correram muito, vocês estão cansados, vocês
estão ofegantes. Então tá na hora da gente parar um pouquinho, respirar, pra que
vocês possam melhorar a respiração e melhorar também a concentração pra gente
aprender melhor.”. Você diz essas palavras mais ao menos, né, porque o objetivo
é esse. Certo? É que eles possam voltar à calma e assim, se concentrar melhor,
né?

M apresenta instrumentos de regulação para auxiliar os alunos a relaxarem, como a

respiração e a contagem, que orientam a atenção e a consciência da criança para o próprio corpo.

Trata-se de recursos que compõem a atividade (gênero profissional) e dão suporte à prática.

Chama atenção a instrução verbal de M às crianças (dimensão pessoal e interpessoal). A docente

reforça o porquê do relaxamento a fim de que seus alunos compreendam o que estão fazendo e os

motivos, envolvendo-os e ampliando a sua consciência no processo. A concentração para a

melhor aprendizagem é levada em consideração. Aprender parece ser o que norteia a atividade,

revelando a dimensão do prescrito e também do gênero profissional orientando a ação.

A resistência do sósia à atividade do instrutor, sua insistência nos detalhes, revela

dimensões ocultas da prática profissional que possivelmente não apareceriam em uma entrevista

comum.

Pesquisadora: Certo. E aí, no caso quando eu chego na porta da sala eles já


sentam automaticamente ou eles ficam correndo...?

M: (...) Eh, a gente tem dois alunos que demoram um pouquinho mais a entrar
na sala. Geralmente, eh, diariamente esses dois alunos ficam brincando, correndo.
Como eu não posso deixar os outros sós, então assim, eu faço o quê? O ajudante
150

do dia, eu digo “Vá lá, por favor.” Você, no caso, você vai fazer isso. Certo? Você
vai dizer a ele que vá chamar os dois coleguinhas que ainda estão lá fora. Então
ele vai, o ajudante do dia, sai, depois do relaxamento e vai chamar esses amigos
que estão lá fora. Vão, aí chama, aí volta. Geralmente ele volta com um, o outro
fica ainda correndo, né? Mas depois o outro volta.

M revela um entrave da atividade de caráter interpessoal (alunos demoram a voltar à sala),

no entanto este não é tratado como impedimento, estratégias são desenvolvidas para dar conta da

situação: o ajudante do dia vai chamar os alunos atrasados. A função de ajudante do dia revela-se

uma ferramenta do gênero profissional que dá suporte a ação.

Em relação a queixas de agressões e brigas entre alunos após o intervalo, M coloca.

M: (...) Inclusive a gente tem uma prática na escola, com as outras


professoras. Quando um aluno da minha turma, eh, empurra, faz alguma coisa
com um de outra turma, a professora vem até a minha sala e me fala quem é essa
aluna, foi empurrada por fulano, por um coleguinha dessa sala e aí a gente chama
o menino, ele pede desculpas. E eu anoto no meu... Você deve anotar no
caderno e pensar com ele que é que... Eh... Esperar que ele peça desculpas e diga
“Que é que você vai fazer pra melhorar?”. Se não melhorar então a gente vai ter
que ter uma sanção pra isso. Né... E aí, geralmente, é ficar sem o intervalo no
outro dia.

(...)

M: Eh, esse combinado, esse combinado já existe. A gente já combinou em


planejamentos, né? De não deixar passar também todo dia essa, eh... O que
parece corriqueiro. Tá entendendo? Pra que não fique uma coisa, eh, uma coisa
assim de... Você deixar passar um gesto que pode lá na frente virar uma
violência. (...) No início do ano a gente fez os combinados com eles e uma das
coisas que eles aprenderam é que não pode, em hipótese alguma, bater nos
151

colegas, né. Então eles desrespeitam, eh, conversa-se com eles. Se essa conversa
não surtir efeito aí tem uma, uma sanção mais forte que é deixar sem intervalo.
Então você deve sempre, eu prezo por isso e você deve continuar prezando
porque, pra eles não se acostumarem com a questão da violência ser uma coisa
normal, né? Mesmo que não seja uma violência muito forte, mas violência pra
mim começa do pequeno, né? E vai se acostumando, senão...

Evidencia-se o coletivo de trabalho quando M refere-se ao combinado entre as

professoras feito durante o planejamento para lidar com situações de brigas e agressões entre

alunos. O coletivo mobiliza o gênero profissional, cria novas estilizações e formas de responder à

realidade. Ele sustenta a ação e evita que os profissionais se isolem e fiquem sem voz face ao

real. Há valorização do diálogo na a resolução dos conflitos, mas também a utilização de sanções

quando é necessário colocar limites (gênero profissional).

Sobre a disciplina em sala de aula, M coloca:

M: (...) Então assim, agora, pedir pra ficar sentado eles sabem. Que tem o
momento de correr, de brincar e o momento de ficar sentado. Então, fez o
relaxamento, tomou água, foi ao banheiro. Deixe... Eles, eles sentam, agora vez
por outra um se levanta, pede uma borracha, pede um lápis, ou então prefere
ficar em pé fazendo a tarefa, pintando a tarefa, fazendo a atividade em pé. Desde
que ele não atrapalhe o que tá atrás dele, eu não vejo problema. Você também
não, não precisa se preocupar também com aquela sala rígida assim, todo
mundo bem quietinho, caladinho, não é isso. É uma atenção ativa, né? Aquela
atenção em que ele, ele, o corpo dele tá respondendo, né, mas ao mesmo tempo a
mente dele também tá prestando atenção ali na...

(...)

M: Eu falo sempre pra eles assim, “Olhe, gente, a gente tem que deixar, eh, na
hora que a professora tiver falando, ouvir. Aí quando eu termino de falar, você
152

quer perguntar, você quer falar alguma coisa, você levanta a mãozinha ou você
mesmo fala. Agora não pode todo mundo falar de uma vez só porque fica uma
bagunça, a gente não entende nada.” Eles já tão até muito habituados a isso,
assim, eu, eu considero que a turma tá muito boa nesse sentido, apesar de que o
ano tá terminando, as energias deles tão lá nas alturas, né. Às vezes a gente
precisa, eh... Usar de outras estratégias pra que eles não façam uma bagunça na
sala. Que essa bagunça que eu falo é de gritaria, é de atrapalhar o que a pessoa
tá falando, entendeu? Nesses momentos aí de, em que eles tão falando bem alto,
muita gente de uma vez só, aí você deve intervir, “Gente, por favor...”.

M possui uma percepção de disciplina que coloca a preocupação com a atenção do aluno

na atividade (gênero profissional) acima da exigência de ficar sentado e calado. O foco é posto na

atividade mobilizada pela criança (prescrito). O incômodo ocorre quando os alunos atrapalham os

colegas ou a professora e isso prejudica a compreensão, o que demanda intervenção.

Ao longo da instrução, saindo do foco da volta das crianças do intervalo, M trouxe que

estava trabalhando o livro “O Pequeno Príncipe” com a turma e criou estratégias para manter a

atenção dos alunos na leitura, dentre as quais o sorteio, pelos alunos, de uma pergunta sobre a

história. Questão que eles devem ler para depois responder. Sobre esta atividade, a docente

comenta:

M: Todos não sabem ler com fluência. Que, ele pega a frase aqui, a pergunta tá
aqui. Então ele lê palavrinha por palavrinha, devagar. Às vezes ele não entende
uma palavra e vem perguntar. Ou... Então eu faço a prática, “Peça a ajuda do seu
coleguinha. Escolha um pra lhe ajudar.” Né? Essa prática não é diária. Entendeu?
Eu tenho experimentado outras questões. Você, você pode usar essa daí que foi
uma das que mais deu certo, porque eles prestaram bastante atenção, né. Ficou
desafiante pra eles. Mais do que simplesmente ler e pronto. Né? Outro momento,
a gente leu e desenhou. “Olha pessoal!” O livro tem poucas imagens, mais texto,
153

né? Então eu leio o texto, “Olha a imagem aqui que o autor desenhou, que o
ilustrador fez. Do acendedor de lâmpadas.” Ele vai, olha, “Professora, como é que
pode esse homem ficar equilibrado num planeta tão pequeno?” Eles dizem assim,
“Como é que ele não cai desse planeta?” Ele acha interessante, né? Então, “É
mesmo, né gente? Não é interessante? Será que a gente não consegue desenhar?
Ele em cima desse planeta pequeno acendendo uma lâmpada.” Então assim, eu
faço essas questões bem práticas deles, do contexto deles. Trazendo pra o... Pra
a realidade deles, porque senão fica uma coisa muito desinteressante pra ele.

Destaca-se o foco na mobilização do aluno (prescrito). Há preocupação que as crianças

prestem atenção, que a atividade seja desafiante, que elas se interessem (dimensão interpessoal),

o que envolve a concepção de aluno ativo e sujeito de seu processo de aprendizagem (gênero

profissional). Há também preocupação em tornar a história acessível aos alunos (dimensão

interpessoal). As diferentes experiências e formas de chamar a atenção das crianças à leitura

apontam para diferentes possibilidades de ação e estilizações da atividade, revelando dinamismo.

Sobre a função do ajudante do dia, mencionada por M, a docente faz a seguinte

colocação:

M: (...) Pode ir na Direção pra fazer um favor à professora. Uma criança não
trouxe lápis, perdeu o lápis, eu não tenho no momento, eu peço pra, escrevo um
bilhetinho, o ajudante vai lá na direção e, e leva o bilhete, traz o que eu peço,
entendeu? Essas coisas assim, simples, mas que eles valorizam muito. E eu
também, porque eu acho que, no dia-a-dia, essas pequenas coisas ajudam a
gente a ter um relacionamento melhor na sala, né? Como na família. Em casa
você tem que criar os hábitos, na escola também, né. Então eu a... O que, o
conselho que eu lhe dou é esse. Valorize esse pequenos momentos, essas pequenas
coisas, né? Que vai ajudar muito, né. Até a questão do respeito do aluno por
você.
154

M coloca a função do ajudante do dia, prática difundida no gênero profissional, como

meio para criar um ambiente de qualidade em sala de aula, dar responsabilidades aos alunos,

gerando respeito. A docente fala em “criar hábitos” na escola (gênero profissional), o que está

relacionado à inclusão das crianças em uma cultura da escola, no caso de M, ligada à

responsabilidade e participação dos alunos na dinâmica de sala de aula, importante na perspectiva

da democratização da educação.

Durante a entrevista M trouxe uma condição relevante passível de produzir entraves na

realização de seu trabalho.

M: O ano passado só eram dois primeiros anos. Esse ano foram três. Então duas
turmas receberam livro e a minha turma não recebeu porque, como houve greve,
então, a minha turma ficou de greve. Eu fiquei de greve, né? Então não, não
trabalhei com eles. E aí, quando chegaram os livros só vieram pra duas turmas.
Minha turma ficou sem livro e até agora não chegou. Então foi outro desafio
grande. Porque, por exemplo, as meninas tem livro de História, Geografia,
Ciências... Né? Português e Matemática. Cinc... É, são três livros. Né, então, o
conteúdo delas já tá tudo praticamente pronto, planejado.

(...)

M: Eu tenho usado não só um (livro) como parâmetro. Eu uso mais de um. O que
foi anotado na escola não tem pra minha turma, nem eu tenho acesso porque
vieram poucos do professor. Então eu, eh, aqui mesmo na escola eu peguei uma
quantidade de livros e eu faço essa pesquisa. Eh, toda semana eu pesquiso que
atividades a gente vai trabalhar dentro daquele conteúdo. Entendeu?

Durante o ano de 2016, M e sua turma não tiveram acesso a livros didáticos. Por razões

ligadas ao funcionamento do sistema de distribuição dos materiais não foi encaminhado à escola

um numero suficiente de livros para o primeiro ano. Evidencia-se o lugar de prescrito do livro
155

didático, quando M traz que com ele tudo já está “praticamente pronto, planejado”. O livro

didático deve ser considerado na orientação da prática profissional docente, podendo alimentá-la,

mas também aprisioná-la, caso sua mera reprodução entrave o desenvolvimento da atividade,

desengajando o professor do processo de ensino-aprendizagem.

M refere-se às estratégias para lidar com a situação de ausência do livro, não sem custos,

utilizando outros materiais e fazendo pesquisas a respeito do que irá trabalhar dentro dos

conteúdos com os alunos. O trecho também evidencia o envolvimento de M na greve dos

professores, dimensão política de sua atuação.

Nos trechos anteriores e nos seguintes observa-se um formato de relato de M sobre a

própria atividade empregando a primeira pessoa, ao invés de instruções utilizando a segunda

pessoa, como deveria implicar a IaS. Houve descuido por parte da pesquisadora, nestes

momentos, em trazer a prática para o sósia.

Questionada sobre o que norteia a atuação, M coloca:

M: Meu norte é pelo PNAIC, que é o Pacto Nacional de Alfabetização na Idade


Certa. Então ele tem os direitos de aprendizagem. Então eu tenho que seguir
aquele programa anual, né? Então, nesse exato momento a gente está
trabalhando com medidas.

(...)

M: O aluno tem direito a aprender o que em matemática? Tais habilidades, tais


direitos. Então você vai, dentro daquele direito... Ele tem direito de aprender a
medir, né? Noções de medidas. Não é, ele... Ele ainda com seis anos não vai usar
a linguagem matemática. Mas ele pode fazer, ter noções, né? De medidas. Então,
então você vai ter que procurar atividades adequadas, porque nem todo livro é
156

adequado pra... Pra aquele planejamento, pra aquele seu conteúdo que você
pensou, né? De preferência aquele que tenha uma interatividade maior, em que
ele possa usar o que ele sabe pra aprender o que ele não sabe. É um princípio
do... Do PNAIC, né? É... Considerar o conhecimento que ele tem, mas adquirir
o conhecimento científico, né? Fazer esse paralelo e alcançar o conhecimento
científico.

M coloca a orientação de sua prática profissional pelos direitos de aprendizagem

estabelecidos no quadro do PNAIC. Este recurso atua como prescrito para a atividade de M e

parece mobilizar saberes do gênero profissional em sua prática. O foco é colocado no papel ativo

do aluno, na busca por atividades mais interativas (dimensão interpessoal), por exemplo. Destaca-

se a contribuição atribuída ao PNAIC por M na apropriação da perspectiva sobre partir do que o

aluno sabe para alcançar o que ele não sabe voltando-se à apropriação do conhecimento

científico, o que envolve saberes teóricos (conceito de zona de desenvolvimento proximal 1 e

reconhecimento da função da escola no desenvolvimento dos saberes científicos e sistematizados,

conforme tratado por Vigotski) aplicados à prática que compõem o gênero profissional e ampliam

a compreensão do processo de ensino-aprendizagem , bem como as possibilidades de atuação.

M coloca a leitura e escrita como atividades trabalhadas de forma transversal, presentes

na abordagem dos diversos conteúdos. A docente relata que ocorre de deixar os alunos lerem

entre uma atividade e outra, quando alguns alunos se prolongam em uma atividade. Sobre o

prazer dos alunos em ler, M traz:

1
Conceito da teoria de Vigotski relativo à ideia de uma área de desenvolvimento cognitivo potencial enquanto
distância entre o nível atual de desenvolvimento da criança, pela sua capacidade em resolver problemas
individualmente, e o nível de desenvolvimento potencial, tendo em vista a orientação de um adulto ou par mais
avançado (Fino, 2001).
157

M: Porque os livros eles não são comuns de ter em qualquer lugar. Eles têm pouco
acesso a livros na casa deles. Então eu vejo que o livro, desde que, a gente
começou a trabalhar e fez assim, muito, eh... Eles gostarem. Esse é um trabalho
desde o início do ano. Que eles vão gostando de ler, vão gostando dos livros. É
uma coisa prazerosa pra eles.

M refere-se aos livros como incomuns para os alunos, e fala do trabalho desde o início do

ano no sentido de produzir prazer em sua leitura e manuseio, a dimensão interpessoal aparece no

sentido de despertar o interesse e o prazer nos alunos.

Em suas considerações finais a respeito da prática profissional, M coloca.

M: No geral a turma tá aprendendo muito bem. Eu estou muito satisfeita com a


aprendizagem da turma, né? O que acontece antes é fundamental também, né?
Que eles já sabem o que vão fazer depois do intervalo. Então eles já sabem, né?
Que tudo tem a sua rotina. Tem uma rotina. Essa rotina a gente procura seguir,
né? Pra que não fique aquela coisa improvisada. Mas a gente também não é
fechado quando acontece algum imprevisto. Você precisa ter noção que
também você é flexível, o seu planejamento, né. Sensibilidade, pra que caiba nesse
seu planejamento, que você pensou tudo direitinho, que caiba também a questão
que ele fez, a pergunta, né? Entendeu?

Destaca-se a satisfação de M com o seu trabalho, com o aprendizado dos alunos. Essa

satisfação aponta para a percepção de um trabalho bem feito, de reconhecimento e realização

através da atividade.

M menciona a existência de rotinas em sala de aula, que organizam a prática e compõem

os modos de fazer docente (gênero profissional). A docente também fala de abertura para o

imprevisto e flexibilidade, características do trabalho docente, que lida com diversas variáveis. A
158

abertura e flexibilidade expressas dizem da dinâmica em que está inserida a atividade de M,

revelando fluidez, o que se associa à saúde e ao poder de agir.

A docente ainda traz:

M: Nosso planejamento ele é feito com base nesses direitos. Certo? Então esse
ano, eh... Ficou um pouquinho mais complicado que a gente não teve livro
didático pra ajudar, por outro lado os livros didáticos eles ainda... Alguns ainda
não estão nessa orientação do PNAIC. Tá entendendo? Então, pra mim facilitou
um la... Uma questão de, de colocar em prática essa, esses direitos de
aprendizagem. Mas por outro dificultou porque eu tenho que pesquisar muito,
né. Atividades fora do contexto dos livros didáticos, então. Dificultou nesse
aspecto, mas por outro eu acho que num, num... Facilitou até a questão da
alfabetização, porque você não fica preso a um livro. Aquele, “Ah, eu tenho
que terminar esse programa do livro todinho aqui.” Né? Às vezes atrapalha
muito o professor essa questão.

M coloca o planejamento realizado com base nos direitos de aprendizagem do PNAIC

(prescrito) e as dificuldades de não possuir livro didático, que implicam em um investimento

pessoal maior. No entanto a docente refere-se ao fato de que nem todos os livros seguem as

orientações do PNAIC e que a ausência do livro, ao mesmo tempo em que dificultou seu

trabalho, facilitou sua elaboração e a concretização dos objetivos de alfabetização dos alunos.

O que foi, a princípio, uma dificuldade para M, converteu-se em algo que, embora não

sem custos, ampliou sua autonomia e permitiu seu desenvolvimento e o desenvolvimento de sua

atividade, transcendendo-a no sentido da ampliação de sua potência de ação. Evidencia-se

novamente o lugar de prescrição atribuído ao livro didático e as possibilidades de aprisionamento

da atividade, produzindo impedimentos no trabalho docente.


159

b) Momento II – M.

M foi confrontada a trechos considerados mais representativos de sua instrução. Houve

certo incômodo, como com S, em relação às marcas da oralidade nas transcrições. Ao ser

questionada sobre o que a entrevista anterior (IaS) provocou, M colocou que no dia seguinte à

instrução lembrou-se do trazido e foi confirmando suas ações, considerando como boa sua

maneira de trabalhar. Sobre sua reação à leitura da transcrição M mostrou preocupação com o

foco dado, em alguns momentos, às ferramentas de condução da turma (por exemplo, o

relaxamento), sentindo falta da ênfase nos aspectos pedagógicos do seu trabalho, embora a

referência aos mesmos tenha perpassado toda a instrução, como se observa na seção anterior.

Doravante serão trazidos e discutidos comentários de M em relação ao confronto com trechos de

sua instrução.

A respeito dos dois alunos que não voltam imediatamente após o intervalo, M traz que os

desafios para trazê-los à sala de aula são maiores do que os apresentados na entrevista, o que

exige a mobilização de diferentes estratégias que afetam o seu tempo e atividade. Por exemplo,

quando o ajudante do dia é uma menina, acontece dos meninos que estão fora de sala não

ouvirem seus chamados para retornar. M também precisa, algumas vezes, sair de sala para pedir a

um adulto que chame os meninos de volta. A docente traz modificações em sua atuação feitas

com base na leitura da transcrição.

M: Essa semana eu estou fazendo assim, anoto o nome de quem tá demorando


muito a voltar, pra que eles não repitam mais esses comportamentos de ficar
demorando, eu digo assim, “Então quem demorar a chegar, o nome vai ficar aqui
no quadro e a gente, e amanhã perde o direito de ir pra o recreio. Lancha e vai
160

ficar comigo lá na sala dos professores.”. Então eles ficaram mais cuidadosos de
não demorar mais assim.

Pesquisadora: De não demorar.

M: É. Então já foi uma modificação que eu fiz a partir também dessa


observação que eu vi na entrevista, né? Que não era só isso que eu fazia (risos)
por... Pra que isso não se repetisse tantas vezes. Né?

A IaS revela seu potencial em ampliar a consciência sobre a própria atividade, podendo

identificar problemas e mesmo promover pequenas modificações no fazer docente no sentido de

uma melhor eficácia e ampliação do poder de agir. No relato, M mostra ter tomado uma atitude

mais firme com os alunos que demoram a vir para a sala.

M ainda coloca implicações em relação ao intervalo dos alunos.

M: (...) Isso se dá devido aos dois intervalos serem diferentes (um para as
crianças menores e outro para as crianças maiores). Como... Depois, depois do
primeiro intervalo eles têm que voltar pra as turmas dos maiores irem, o que é que
eles fazem? Se aproveitam que os maiores vão pra aquele momento de intervalo e
ficam no intervalo dos maiores, tá entendendo? Então é aquela ânsia de brincar
muito, que a própria escola não favorece. É, o intervalo de escola é muito
pequeno pra brincadeira nessa idade, eu acho que eles deveriam ter um
pouquinho mais de tempo pra brincadeiras. Mas como o espaço físico não
proporciona, né, essa, esse momento realmente prazeroso de, de brincadeiras, a
escola não tem como fazer, eh, 400 alunos numa escola desse tamanho, né? Um
intervalo só, ela achou esse, essa divisão. Primeiro momento de 20 minutos,
primeiro a terceiro (ano), e segundo momento de, eh, de 20 minutos também, dos
quartos e quintos anos. Pra que não haja muito choque, correria, eh, etc.

A docente traz o que ocorre por trás dos alunos que demoram a voltar do intervalo. A

existência de dois intervalos e a vontade de prolongar o momento de algumas crianças,


161

participando ao intervalo dos alunos mais velhos, o espaço físico limitado para comportar todas

as crianças simultaneamente e a necessidade, segundo a professora, de mais tempo para

brincadeiras tendo em vista a idade dos seus alunos (seis anos) considerando o tempo de intervalo

de 20 minutos. As colocações evocam limitações e escolhas da instituição que tem impacto na

atividade docente.

A respeito da prática de M com as outras professoras, de sempre conversar com os alunos

que brigaram ou agrediram colegas, no sentido de pedir desculpar e pensar o que fazer para

melhorar, podendo, às vezes, incluir sanções, M complementa:

M: Desde o início do ano a gente faz assim, de... Uma professora, eh, a gente não
deixar passar em branco, mesmo que seja um... De dizer um palavrão com o
outro, né, mesmo que seja essa prática, assim, que não seja violência física, mas a
gente conversa, na sala, e sempre leva pra, pra confrontar, pra poder eles pedirem
desculpas um ao outro. Porque a gente observa que mesmo eles pequenininhos,
com seis anos, eles já têm essa... Sei lá, tipo assim, uma grande violência
reprimida, né, de chamar palavrão, de gritar com o colega, de não querer pedir
desculpas, não admitir que está errado. Então esse tipo de coisas que, muitas
vezes, em casa eles não, eles não tem esse costume de fazer. Na escola a gente
tenta fazer com que o, a desculpa, o pedido de desculpas seja um ato
importante. Entendeu? Valorizado, importante. Mesmo que seja só dizer,
‘Desculpe”, e amanhã fazer de novo. Muitas vezes eles, “Professora, ele pede
desculpas, mas amanhã faz de novo.”, aí eu digo, “E amanhã ele vai pedir
desculpas novamente.” Porque a gente tem que aprender pela palavra, não é...
Eh, todo dia a gente vai aprendendo as coisas, então se ele vai aprender, ele
precisa aprender a valorizar e a saber que “desculpa” significa que eu não vou
mais fazer aquilo. Um dia ele vai aprender.
162

O coletivo destaca-se na fala de M através do uso da locução pronominal “a gente”, o que

parece apontar para um projeto comum, ao menos em relação à prática citada, que envolve

cidadania e valores. M coloca a percepção de que existe uma violência reprimida nas crianças e

que ocorre de a família não trabalhar com o pedido de desculpas e admissão do erro, por

exemplo. Tendo em vista esse desafio identificado, M traz a importância que isto seja trabalhado

na escola, ritualizando os momentos de pedido de desculpas e reconhecimento de um erro,

valorizando o momento, tornando-o importante. A docente fala no aprendizado pela palavra e

aposta que o aluno aprenderá. A atuação mencionada sustenta a prática docente, lhe dá recursos e

sentido a despeito das dificuldades, e traz uma estilização do coletivo com raízes no gênero

profissional aplicada ao contexto da escola.

Em relação à percepção de indisciplina concebida por M, a docente coloca:

M: (...) Atenção na atividade, mesmo que ele esteja de pé, mas o importante é se
ele está realmente entendendo o que tem que fazer, se ele tá aprendendo o
conteúdo. Não é só porque ele tá sentado, rígido, significa que ali eu tô
satisfeita, porque eu quero ver se ele aprendeu. Não é isso. Eh, não importa se
ele tá sentado ou em pé. Se não está atrapalhando o outro coleguinha, não tá
ficando na frente, mas se ele tá entendendo direitinho e prefere ficar em pé porque
não aguenta mais ficar sentado, então eu não tenho problema quanto a isso.
Entendeu?

A prioridade é dada à compreensão e aprendizagem do aluno (prescrito, dimensão

interpessoal). A docente traz que sentar-se rígido na cadeira não significa que o aluno esteja

aprendendo, de modo que uma relativa agitação, como ficar em pé, que não atrapalhe os colegas,

é aceita se houver compreensão e mobilização intelectual por parte do aluno envolvido.


163

Em relação às estratégias para fixar a atenção das crianças na leitura e trabalhar o livro “O

Pequeno Príncipe”, M traz:

M: A gente tava lendo o livro do Pequeno Príncipe em capítulos. Então como o


livro ele é muito... É longo pra crianças de seis anos, eu, eu adotei a estratégia
de ler por capítulos. E fiz essa estratégia da caixinha com perguntas pra passar
depois da leitura, né? Não foi, não é constantemente que eu faço assim. Às vezes é
um livro que é bem acessível pra eles, eu digitalizo o livro, coloco a projeção, a,
a... No Power Point. Aí fica bem interessante porque todos veem. Entendeu?
Acompanham ali a imagem, a leitura. Fica mais, eh, interativo pra eles, né?
Quando esse livro é só leitura, eu lendo capítulo e eles... Às vezes eles ficam
inquietos, porque só ouvir às vezes dá aquela inquietação. Então eu achei a
estratégia de colocar a caixinha com perguntas sobre aquele capítulo que eu li.

(...)

M: Foi um desafio bem grande pra... Pra mim, né? Porque o livro do Pequeno
Príncipe, ele é, ele é cheio de conceitos, né, de, eh, sentimentos que muitas vezes
não é, eh... Eles não têm essa vivência de, de dialogar com alguém. Geralmente
eles são mandados fazer, etc. Né? Então, como tinha muitos sentimentos e coisas
que, eh, tanto pra crianças podia ser considerado difícil pra eles entenderem, eu
sempre fazia essa história do desenho, chamava a atenção. (...) Então eu chamei a
atenção pra esses pequenos detalhes do livro. Como eu lia por capítulos ficou
mais simples deles compreenderem e relacionar, “Quantos vulcões tinham no
planeta B612 do pequeno príncipe?”.

O trecho coloca os desafios da atividade de leitura relacionados à dimensão interpessoal,

como o fato de o livro “O Pequeno Príncipe” ser longo para crianças de seis anos, da inquietação

suscitada em apenas ouvir a história, da complexidade dos conceitos abordados e falta do hábito

de dialogar das crianças. Em função disto, do confronto com o real, M traz a estilização de sua

atividade, que certamente bebe da cultura do gênero profissional e engendra um poder de agir.
164

Ela lê o livro por capítulos e encontra formas de desenvolver a atenção e a memória das crianças

através de perguntas feitas sobre a história ou de desenhos, ou, no caso de um livro mais simples,

da sua projeção para que as crianças tenham um suporte visual. As atividades envolvem seu

engajamento pessoal norteado pelo prescrito, que também está imbuído do gênero profissional, e

que é a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos, especialmente voltados para a alfabetização

das crianças.

M: Quando chegou no dia da Mostra de Conhecimentos, todos os meus alunos


sabiam. Quantos planetas, eh, quantas vezes ele viu o pôr do sol. Então como eu
fui lendo, fazendo essa leitura de capítulo, e procurei tornar essa leitura mais
próxima da realidade deles, né, comparando com hoje, com o que ele vivencia
hoje. Eu acho que isso deixou eles compreenderem bastante a essência do livro,
né, que é falar sobre a amizade verdadeira, né, de cativar. Eles entenderam
bastante o que era cativar, que é uma palavra complexa, né, pra uma criança de
seis anos entender. Então, eh, do jeito que eu coloquei aqui, né, trazendo isso pra
realidade deles. Sem, sem deixar... De dizer assim, né, “Ah, porque eles têm seis
anos eles não vão ser capazes de compreender”. Eles são capazes de
compreender sim, mas também eu não posso deixar, eh, passar em brancas
nuvens determinados detalhes que eu acho que chama a atenção da criança..
Entendeu?

O trecho evidencia a percepção de trabalho bem feito de M, que se reflete no fato de seus

alunos terem compreendido bem a história do Pequeno Príncipe, o significado de cativar, que é

uma palavra complexa. Apesar dos desafios, M acredita que os alunos sejam capazes de

compreender e traz mediações para tornar a tarefa possível, apoiando-se, por exemplo, em

observações mais palpáveis que chamam a atenção das crianças na história.

Em relação à prática do ajudante do dia, M complementa:


165

M: Eh, eu queria acrescentar que, que o ajudante do dia é uma estratégia... Não
é nova. Eu acho que todos os professores gostam de fazer essa, essa, essa
estratégia porque assim, dá a oportunidade de todos serem ajudantes. Eles vão de
acordo com a lista de, a ordem do alfabeto, e assim, eles se sentem valorizados,
importantes, e além do que, eh... Tira de você, só, aquela história de você ser o
único detentor de tudo, né? O professor. Você divide a responsabilidade com
eles. E isso valoriza muito, e eles gostam disso aí. (...) Faltou eu complementar
isso aí, né, de, de valorizar esses pequenos gestos. Que eu chamo de pequenos,
mas que são hábitos importantes. Muitas vezes eles não têm o hábito de ajudar
a mãe em casa. Entende? Então assim, essa parte de ajudar a professora, que
eles podem levar como experiência pra vida deles. Ou trazer de casa a
experiência que eles têm em casa pra a escola, né. Algumas meninas têm a
prática de ajudar a mãe e elas já dizem. Mas raramente os meninos têm. Então as...
Do mesmo jeito que eu faço com as meninas, de ajudar, eles tamb... Os meninos
também fazem isso. Né?

M coloca o gênero profissional por trás da prática do ajudante do dia como algo

compartilhado que compõe as possibilidades do fazer profissional. Trata-se de uma estratégia de

valorização e responsabilização das crianças. M fala em divisão da responsabilidade e

deslocamento da visão do professor como único responsável. A docente também traz a

importância de criar hábitos na escola e mesmo de aproveitar hábitos que existem em casa para a

cooperação. Trata-se de uma experiência que produz autonomia e enriquece o repertório das

crianças em relação às normas de convivência, o que compõe igualmente aspectos do prescrito e

do gênero profissional da profissão docente relacionados à formação da cidadania. Ainda sobre a

prática do ajudante do dia, M coloca:

M: (...) Se eu pular o nome de alguém, eles dizem, “Não, professora. Você


esqueceu meu nome. Era... Hoje era eu que ia pra... Porque foi fulaninho”, então
eles já faziam a comparação no próprio, na própria relação dos nomes. Sabia
166

quem é que ia ser no dia seguinte, “Ah, vai ser fulano, dia seguinte. Se fulano não
veio, aí o seguinte da lista”, então assim, se eu não fizesse... Esquecesse algum dia
de adotar a prática do ajudante, eles mesmos me cobram. Me cobram de todo
jeito, né, “Ah, professora, hoje você não disse quem é o ajudante.”, eu digo,
“Vamos ver, quem foi ontem?”, “Foi fulano”, então a gente compara lá na
relação do qua... Do que tá na parede, a relação dos nomes, e eles dizem, “Ah,
hoje é fulano!”. Como eles já estão conseguindo ler o nome próprio deles, que é
o primeiro a... Acho que a primeira leitura, o primeiro texto que eles aprendem,
né, a ler, é o nome. Então eles fazem essa leitura e sabem já o nome dos colegas
também, que eu achei isso muito positivo também. Porque foi uma estratégia
que inicialmente não era pedagógica, mas que depois passou a ser, porque ele
vai fazer leitura, né, procurar o nome dele, procurar quem é que vai ser amanhã,
procurar quem foi ontem. Né, tem vários conteúdos envolvidos aí nesse, nessa
simples atividade do ajudante do dia.

M traz o desenvolvimento da prática do ajudante do dia na sua atividade através da

relação com os alunos (dimensão interpessoal), adquirindo também uma função pedagógica não

imaginada antes, de suporte e motivação para o desenvolvimento da leitura. A atividade de M

aparece em sua potência transformadora, de descobertas e possibilidades.

Em relação às atividades realizadas em sala de aula, M coloca:

M: (...) Eu trabalho não só com atividade escrita, mas a gente fez também
medição do aluno. O tamanho do aluno, o peso do aluno, né? O tamanho das
coisas da sala de aula a gente usou medição com fita métrica, com régua. Então
não foi só a atividade escrita em si. Teve a atividade prática, né? E, por exemplo,
colocar quantos litros, quantos copinhos descartáveis eu preciso pra encher, pra
despejar esse litro de água? Então a gente fez experimentos na sala que ajudou a
construir esse conceito, né, de, de medição. Porque no primeiro ano, com os
direitos de aprendizagem, eles têm que ter noções, né? Desse, desses
167

instrumentos de medida. E diferenciar o que é que se usa pra medir o líquido, o


que se usa pra medir o peso, que é que se usa pra medir, eh, comprimento. Então a
gente fez essas atividades, de experiências, de escrita também. Certo?

M traz a variação das atividades com os alunos, incluindo experimentos, aulas de

dimensão prática (gênero profissional). A docente também fala em construir conceitos, o que

representa fundamentação teórica, envolvendo Vigotski, no sentido da mobilização do

pensamento e apropriação do conhecimento científico, referências que também constituem o

gênero profissional. M alude aos direitos de aprendizagem que apresentam papel norteador

(prescrito e gênero profissional) sustentando a prática docente e impulsionando o seu

desenvolvimento na busca de estratégias de atuação e leitura dos fenômenos observados.

M coloca que costuma ter dois momentos na semana destinados ao contato das crianças

com os livros e que não os utiliza unicamente entre uma atividade e outra, quando os alunos estão

esperando seus colegas terminarem uma atividade, pois essa prática excluiria as crianças que

levam mais tempo para terminar as atividades.

M: O cantinho da leitura, ele é usado, eh, geralmente depois do intervalo,


quando, na sexta-feira, na quinta-feira, eu sempre deixo um momento pra todos,
porque senão ia acontecer o quê? Quem terminou primeiro seriam os únicos que
iriam ler, entendeu? Pegar o livro, ter acesso ao livro, livro de literatura. Então,
geralmente na quinta-feira, que é o dia deles irem pra biblioteca. Quando eu não
levo pra biblioteca, eu, eu crio esse momento na sala de aula. Aí eles vão pro
cantinho da leitura escolher o livro que querem ler, certo? Quer tenham terminado
a agenda, quer não tenham terminado, eles tem que ter esse momento de leitura,
de contato com os livros, de, de sentar junto com o outro. O outro que sabe ler, lê
pra ele, ou ele sozinho, vendo as imagens. Então eu tenho semanalmente essa
roti... Na rotina, esse cantinho da leitura. Agora quando acontece de terminar
168

mais cedo (a atividade) e quer realmente pegar o livrinho, aí eu deixo pegar o


livro, porque o livro fica acessível. Tem a, tem uma caixinha cheia de livro da,
do PNAIC, do próprio PNAIC, certo? Que é usado pra o cantinho da leitura.
Então eles podem pegar o livro que eles gostaram mais e ficar folheando o livro,
lendo, certo?

(...)

M: (...) Todas as três turmas de primeiro ano tem o acervo de livros do PNAIC, as
do segundo e terceiro, certo?

Novamente surge o atravessamento do PNAIC na prática de M pela disponibilização de

materiais, envolvendo os três primeiros anos do ensino fundamental (1º ao 3º).

Sobre a ausência dos livros didáticos em sua turma, M traz a existência de um problema

recorrente ligado ao censo escolar que registra necessidades da escola que variam de um ano para

o outro devido ao ingresso de mais ou menos crianças, o que determina o envio pelo MEC de

materiais a mais ou a menos. A respeito do livro didático, M coloca:

M: (...) o que foi adotado na escola não veio, veio outro livro de Português, de
Matemática. Então, na verdade a gente perdeu em qualidade porque como não
foi o livro que a gente adotou, veio ou... Vieram outros. E minha turma nem esse
outro veio, né? De qualquer maneira eu achei positivo porque eu tive a
oportunidade de pesquisar em outras fontes. De usar outras, outros recursos,
pra não ficar só amarrada a um livro didático, entendeu? (...) Eh, se o livro
didático estiver dentro dessa orientação dos direitos de aprendizagem, tudo
bem, é uma ajuda, né? Mas e, como a gente, eh, escolheu um livro que tava com
essa orientação e ele não veio, veio outro que não tava com a orientação do
PNAIC, tava fora desse, dessa questão dos direitos, tava mais tradicional esse
livro, então, pra mim, foi um ganho não ter o livro. Entendeu?
169

M traz os entraves do sistema educacional quando diz que o livro escolhido pela escola

para o primeiro ano, que segue as orientações do PNAIC, não foi disponibilizado e, ao invés

disso, outro material considerado mais tradicional pela professora foi distribuído. O livro

didático, nessas condições, aparece como um potencial entrave para a atividade, ficando em

evidência seu papel de prescrição que norteia a prática, de modo que não possui-lo foi percebido

como um ganho para M. Essa situação revela a desconsideração, pelo sistema educativo, da

garantia de condições básicas para a realização do trabalho docente e autonomia dos coletivos nas

escolhas dos seus materiais.

M: As professoras que estão fazendo PNAIC agora, e que tem o livro, elas tão
reclamando muito, “Ah, porque isso aqui, o PNAIC não orienta muito assim, e
o livro só quer desse jeito.”, então acaba que o pai, quando vê aquele conteúdo
do livro, ele quer que você dê conta daquele conteúdo do jeito que tá lá.
Quando você sabe que pode trabalhar mais rápido e melhor s... Eh, de outra
maneira. Tá entendendo? Então assim, é uma faca de dois gumes, você tem que
ter... Se você conhece realmente muita, mais coisa, tem mais experiência... Eu
acho que a experiência conta muito nessa hora. De você saber julgar, né, o que
é que um livro pode ajudar e quando ele atrapalha um pouquinho. Né, no meu
caso dificultou a questão da pesquisa (necessidade de pesquisar as atividades),
mas por outro lado, como eu faço o PNAIC desde 2013, há três anos que eu faço,
né? Bem direitinho, sem faltar aos encontros. Eu fiz o de língua portuguesa, fiz o
de matemática, fiz a parte de projetos, né, de, de ter um conteúdo voltado pra
questão de projetos, de sequência didática. Então me ajudou muito! Tanto que eu
nem senti muita falta do livro didático. Entendeu?

M retrata conflitos vividos por docentes de sua instituição entre diferentes prescrições de

trabalho representadas pelo livro didático ofertado à rede e pelas orientações do PNAIC, que

constituem facetas diferentes e, talvez, contraditórias do gênero profissional. Este cenário dá


170

mostras da falta de articulação entre as diferentes instâncias do sistema educacional, tendo em

vista os programas ofertados à rede, como os do PNAIC, e a não disponibilização de livros pelo

MEC que sejam coerentes a esta perspectiva. A situação enseja conflitos de dimensão

interpessoal quando M refere-se a pais de alunos que pressionam no sentido da realização das

atividades do livro, enquanto considera poder trabalhar mais rápido e melhor (trabalho bem feito)

sem vínculo com um livro didático que, de acordo com a docente, não contribui para o bom

desenvolvimento da atividade de trabalho.

M traz a importância da experiência, de saber julgar quando um livro pode ajudar e

quando ele atrapalha, enfocando a autonomia docente, que implica na construção de uma base de

saberes. A docente coloca o desafio de envolver-se em uma atividade mais intensa de pesquisa

das atividades para os alunos e traz a importância dos cursos de formação do PNAIC como fonte

de orientação e suporte para a sua prática, enriquecendo o gênero profissional, permitindo maior

autonomia de trabalho e possiblidades de desenvolvimento.

Doravante serão trazidas e comentadas falas de M sobre suas impressões acerca das

entrevistas realizadas.

M: Eh, a oportunidade de refletir sobre a prática é muito bom, né? A gente já


faz muito isso nos encontros do PNAIC. De refletir sobre a prática, de ver a
prática de outros professores e discutir, né. Faz assim, não faz assim, porque
assim não deu certo, porque assim deu certo. A gente já tem essa prática.

M considera positiva a reflexão sobre a prática e coloca que os encontros de formação do

PNAIC lhe proporcionaram esta experiência de reflexão e discussão ligada a um coletivo de

trabalho, ao compartilhamento de práticas profissionais e experiências tendo em vista o trabalho


171

bem feito: “assim deu certo”, “assim não deu certo”. Estas situações de colocar em comum têm

potencial para enriquecer o gênero profissional e revitalizar a atividade.

Sobre sua prática, M coloca:

M: A minha prática, ela é comum. Tá entendendo? É a prática comum de alfa...


Professor alfabetizador. Talvez a riqueza seja... Eh, eu tô aprendendo muito
ainda, apesar de já ter muita experiência, de 20, já quase 20 anos, mais de 20
anos, né, em educação. Mas eu vim aprender muito, muito, muito, esses últimos
anos com o PNAIC. Como alfabetizar e letrar ao mesmo tempo. E quando eu
fiz a minha, o meu curso de pedagogia, eu aprendi muito sobre letramento, né?
Mas a gente... Foi numa época que a gente tava, o construtivismo tava chegando.
Já faz muito t... Terminei há 20 anos também, meu curso, né, então assim, eh...
Essa, essa questão da, de, de você conciliar o letramento e a alfabetização, eu
vim aprender nos últimos anos, na prática, fazendo curso, cursos do PNAIC,
observando a prática de outros professores, né.

A docente identifica-se como professora alfabetizadora, colocando sua prática enquanto

comum, o que revela o prescrito e o gênero profissional envolvido, compartilhado por um grupo.

M ressalta sua experiência e o fato de continuar aprendendo, o que reflete a relação dinâmica que

tem com sua atividade. A profissional traz a importância dos cursos do PNAIC para o

enriquecimento do gênero profissional, no sentido da percepção da possibilidade de conciliar

letramento e alfabetização, além do contato com um coletivo de trabalho, oportunidade de

observar novas práticas e discutir sobre as mesmas, permitindo o desenvolvimento de

instrumentos de trabalho.

M: Então assim, Meu Deus do Céu! Eu acho que eu tenho experiência pra dar
um curso, tá entendendo? Eu nunca parei pra pensar como é interessante a
gente conversar com alguém sobre a experiência da gente. Apesar de a gente
172

discutir no PNAIC, discutir já com uma, uma orientação voltada pra aquela
questão do letramento e da alfabetização, mas me, me fez perceber isso aí. Que eu
tenho muita experiência, é uma experiência que é baseada na teoria, mas
também é muito, aprendi muito com a prática. Né, então a ponte entre teoria e
prática foi importante pra mim, mas com, com essa pesquisa me ve... Me veio
essa ideia aí, Meu Deus, eu tenho tanta experiência pra dar um curso!
Realmente, né, de alfabetização e letramento, mas ao mesmo tempo eu fico
inquieta porque eu sei que falta muita coisa ainda e, e eu gosto muito do que eu
faço.

O trecho acima aponta no sentido da ampliação da consciência sobre a própria atividade

proporcionada pelo diálogo com a mesma, próprio da clínica da atividade. M traz com espanto a

percepção de que possui experiência suficiente para dar um curso, o que pode ampliar ainda mais

seu poder de agir, ainda que a docente, ao longo das entrevistas, tenha dado mostras de

empoderamento, pela criatividade e estratégias abordadas diante dos desafios enfrentados. M

coloca sua experiência fundamentada na relação entre teoria e prática, condição de produção de

consciência sobre a atividade na contramão da alienação.

M: Se eu pudesse, se as condições no Brasil fossem bem favoráveis. Eu acho que


eu não, eu não iria, não me aposentaria nem tão cedo. Continuaria sendo
professora alfabetizadora por mais tempo, mas infelizmente a situação do país é
tão difícil, tão caótica, que a gente não tem mais prazer, tanto prazer de ficar
em sala de aula, né. Às vezes, eh, tendo tanto trabalho com a... A gente teve
ganhos esses últimos anos, por exemplo, 25 alunos por turma, que ainda é
muito pra alfabetizar numa turma só. (...) Mas assim, até agora eu tenho
muito prazer em trabalhar no que eu faço, e fazer o que eu faço e, em
alfabetizar, né? E eu digo muito isso aos meus alunos, que eu aprendo todo dia
com eles, né? E também tenho as minhas dificuldades que, são inúmeras,
inúmeras, mas, eh, eu acho que os ganhos que eu tenho em sala de aula... Ganho
173

que eu falo, ganho de ver uma criança aprendendo a ler, né? Começa o ano, eu
tinha, no início do ano só tinham dois alunos que sabiam ler, que tavam
começando a leitura. No início do ano, chegaram assim já. Hoje eu saber que tem
80% já lendo, fica... Eu fico feliz demais, né, pra mim isso aí era pra ser... É um
motivo de orgulho pra mim. Tá entendendo?

No trecho acima, M traz as condições difíceis de trabalho, capazes de tirar o prazer pela

atividade, embora ela própria relate ter prazer com o que faz. A docente ressalta ganhos dos

últimos anos, em relação ao estabelecimento de um limite do numero de alunos para o primeiro

ano do ensino fundamental, numero ainda alto considerando a complexidade da atividade. M

coloca que aprende com os alunos, enfocando a dimensão interpessoal da atividade e seu

potencial na produção do desenvolvimento em relação. A professora fala dos prazeres da

atividade docente no primeiro ano, como o de ver uma criança aprender a ler, e demonstra

satisfação tendo em vista a percepção de realização de um trabalho bem feito, considerando que

cerca de 80% dos seus alunos são capazes de ler ao final do primeiro ano.

M: Como eu consegui sem o livro didático, aí eu fico pensando assim, Meu Deus,
realmente, eu fiz um bom trabalho. Né? Pra me orgulhar. E as mães chegam
pra mim felizes da vida, e isso, eh, pra mim não tem preço, né, uma pessoa de
uma classe popular, de uma escola pública, chegar pra você e dizer, “Professora,
parabéns pelo seu trabalho.”. A mãe chegar pra mim e dizer isso... Às vezes diz
no facebook, elas tem acesso, a gente se comunica, né. E ela coloca agradecendo,
eu fico feliz demais de ver a satisfação dos pais e das crianças, saber que tão
aprendendo. Que eles dizem assim, “Tia, eu aprendi a ler com você.”, é muito
bom isso. Gratificante, então, coisas que a gente só tem na profissão da gente,
mas... Que a gente sabe que a desvalorização salarial é grande, né. E às vezes
atrapalha muito nosso trabalho. Né?
174

O trecho acima reforça o trazido no parágrafo anterior sobre a satisfação de M em relação

ao seu trabalho e percepção de fazer um trabalho bem feito apesar dos desafios. A docente coloca

o reconhecimento de familiares dos alunos e das próprias crianças sobre o seu trabalho e finaliza

sua fala trazendo à tona a desvalorização salarial dos professores, fator que dificulta o trabalho e

a vida.

6.2.3. Vivências e mediações.

Esta seção busca fazer um paralelo entre as vivências da atividade apresentadas e

suas mediações. Trata-se de reconhecer o que ambas dizem da atividade de trabalho,

atravessamentos e modos de constituição da subjetividade.

As vivências da atividade apresentadas revelam possibilidades dentro dos perfis

encontrados, tendo em vista que estes perfis fazem aproximações entre elementos que compõem

a atividade e sua percepção, envolvendo atravessamentos e mediações que implicam de formas

diferentes os sujeitos. As profissionais recrutadas com base nos perfis revelaram formas distintas

de relacionamento com a própria atividade, o que enriqueceu a pesquisa e permitiu visualizar

diferentes perspectivas.

Houve coerência entre as vivências trazidas e os perfis de pertencimento dos sujeitos. A

profissional em situação de risco psicossocial que reconheceu um menor suporte social no

trabalho, S, trouxe vivências de impedimento da atividade e de encontrar-se sem voz e sem

suporte face ao real, expressando sofrimento, além de condições clínicas, como fenda nas cordas

vocais, dores no corpo, etc. A profissional pertencente ao perfil de baixo risco psicossocial, M,

que reconheceu elevado suporte social, revelou-se satisfeita e realizada com o trabalho, trazendo
175

possibilidades de atuação diante dos desafios e contato com fontes de enriquecimento da

atividade, apesar de reconhecer as dificuldades envolvidas na profissão.

Sobre as condições objetivas que medeiam a atividade de trabalho, S trabalha dois turnos

em locais diferentes, ambos distantes de onde habita, tornando a conjuntura mais difícil em

relação a tempo, deslocamento, além do investimento na apropriação e demanda de instituições

diferentes. M trabalha os dois turnos no mesmo local e vive perto da escola, favorecendo seu

tempo, deslocamento e trabalho, em função de já estar familiarizada ao funcionamento da

instituição. Para além de questões de deslocamento e tempo, viver próximo à instituição de

ensino pode implicar em familiaridade com o bairro e comunidade atendida pela escola, o que

pode favorecer a compreensão do contexto das crianças e famílias e o acesso às mesmas,

elementos que podem ter impacto no trabalho docente. S também traz, no começo de sua história

enquanto docente, que houve lida com condições objetivas complexas de trabalho sem suporte

aparente, como o fato de lecionar para uma turma com 38 alunos em situações heterogêneas de

aprendizagem.

Ainda sobre as condições objetivas de trabalho, M traz a importância de sua participação

nos cursos do PNAIC e orientação da prática com base nos direitos de aprendizagem. Estes

instrumentos atuam como fonte de orientação e enriquecimento teórico e prático da atividade

(gênero profissional) através das formações seguidas em grupo e do compartilhamento e

discussão sobre a prática de outros profissionais, funcionando como coletivos de trabalho

norteados pela busca da realização de um trabalho bem feito. Aponta-se para a potencial

produção de autonomia e desenvolvimento da atividade favorecidas pelo compartilhamento de

práticas e discussões em grupo, pela ponte entre teoria e prática e pela orientação com base nos
176

direitos de aprendizagem, que embora certamente precisem ser ampliados e discutidos, tendo em

vista os interesses contraditórios que perpassam a educação, têm potencial para nortear e produzir

desenvolvimento no trabalho docente, contribuindo para a democratização da educação.

No entanto os cursos do PNAIC não são suficientes para melhorar o contexto da educação

pública ou ampliar a autonomia e favorecer o desenvolvimento do trabalho dos professores em

Natal ou no Brasil. Isto porque formar e orientar sem assegurar boas condições de trabalho aos

professores (salário, progressão, tempo para planejamento, número adequado de alunos por

turma, disponibilidade de materiais, formação de coletivos de trabalho para enfrentamento dos

desafios impostos, autonomia dos coletivos na escolha dos materiais, etc.) atravanca o

desenvolvimento e pode produzir sofrimento e alienação, alimentando mecanismos de defesa e

culpabilização de si, dos alunos e das famílias. Outra razão é que mesmo as propostas de

formação do PNAIC e a perspectiva de direitos de aprendizagem não constituem oficialmente

proposta norteadora para os anos inicias do ensino fundamental que, na falta de um projeto

comum, segue sendo orientado, dentre outros, pelas avaliações e defesas engendradas pela

atividade impedida, constituindo um cenário de orientações/prescrições fragmentado e

contraditório. Exemplo disto é que a mesma rede que oferece cursos do PNAIC disponibiliza

livros didáticos que não contemplam seus princípios. Ainda sobre o PNAIC, ocorre de as

formações ocorrerem aos finais de semana, momento que muitos professores encontram para

descansar ou planejar as atividades, podendo desmobiliza-los no comparecimento aos encontros

ou mesmo na opção por seguir a formação.

Sobre a vivência da atividade, S expressa sentimentos de sofrimento, frustração e

desilusão em relação à educação e à escola, envolvendo os alunos, seus familiares e as instâncias


177

gestoras do sistema educacional. A docente responde a prescrições da atividade produzidas por

um contexto alienante que coloca o professor como herói, mas não lhe oferece condições de

trabalho e desenvolvimento apropriadas, podendo leva-lo ao adoecimento e à adoção de

estratégias defensivas centradas, por exemplo, no controle e produção/desempenho da turma sem

enfocar seu aprendizado e desenvolvimento. As condições de trabalho e história de S

participaram na produção de uma vivência da sala de aula enquanto campo de batalha, lugar de

realização da atividade à revelia dos próprios alunos e desafios encontrados, situação paralisadora

da ação e de seu desenvolvimento, uma vez que os alunos são ativos e fundamentais na co-

construção do processo de ensino-aprendizagem.

Por sua vez, a vivência da atividade de M traz à tona sentimentos de satisfação e prazer

pelo trabalho. M utiliza-se de recursos ofertados pelo município, como os cursos do PNAIC, que

envolvem um arcabouço teórico, discussões e compartilhamentos sobre a atividade de trabalho.

Em suas falas, a docente traz a construção e desenvolvimento, no decorrer da prática e das

formações e discussões, de saberes de referência para sua atuação (enriquecimento do gênero

profissional) que lhe permitem ter voz face ao real com autonomia e criatividade no sentido de

um trabalho bem feito em que a prescrição volta-se ao aprendizado e alfabetização dos alunos.

A atividade implica em condições ligadas ao contexto social que se traduzem em

situações e histórias que produzem vivências. Embora as entrevistas utilizadas não esgotem a

vivência da atividade dos sujeitos, elas apontam para sua forma de construção e revelam aspectos

do seu relacionamento com a atividade. As vivências apresentadas são atravessadas por

elementos do contexto social mais amplo que se relacionam com os lugares ocupados pelas

docentes e expressam diferentes possibilidades diante da realidade fragmentada e contraditória da


178

educação pública. O adoecimento docente, por exemplo, está relacionado aos interesses

contraditórios em jogo que prescrevem o fracasso escolar, no entanto este cenário compreende

resistências que se amparam em elementos do contexto e, a despeito das dificuldades, produzem

desenvolvimento da atividade docente no sentido de uma educação potencialmente emancipadora

para os alunos, capaz de produzir mobilização intelectual e acesso aos instrumentos da cultura.
179

7. Conclusão

A presente pesquisa pretendeu enfocar a atividade docente nos anos iniciais do ensino

fundamental da rede municipal de Natal por diferentes óticas, levando em consideração as

mediações envolvidas no trabalho pelo contexto mais amplo e especificidades da prática e

vivência da atividade, atravessamentos, entraves e potências.

Salienta-se a necessidade de atenção do público estudado pelos órgãos gestores e políticas

públicas, dentre outras razões, pelo percentual importante identificado de profissionais que se

sentem solitários em seu trabalho (30,2% da amostra), considerando o isolamento, a situação de

encontrar-se “sem voz” face ao real, enquanto produtora de adoecimento e entraves para a

atividade, que necessita, para se desenvolver, de uma dinâmica de enriquecimento do gênero

profissional pelas possibilidades e significados construídos em um coletivo de trabalho e pela

ponte teoria-prática, bem como através dos conflitos engendrados que mobilizam e gestam o

novo.

A clínica da atividade revelou diferentes formas de lidar com a própria atividade,

sentimentos de satisfação e sofrimento, atravessamentos do contexto mais amplo na construção

das vivências, entraves e potências, recursos e defesas, implicando na assunção de diferentes

prescrições de trabalho (controle/produção, aprendizagem/desenvolvimento) compreendidas no

contexto da educação pública e suas contradições. A IaS, no quadro da clínica da atividade,

mostrou-se capaz de gerar reflexão e ampliação da consciência sobre a atividade, bem como

entrever pequenas mudanças na prática, embora o trabalho com um coletivo nas instituições

tivesse mais chances de gerar mobilização e servir ao contexto local em uma perspectiva de longo

prazo.
180

No sentido do acima tratado, e levando em consideração os elevados percentis de

insatisfação dos docentes com as reuniões semanais (33,7%) e tempo para planejamento

pedagógico (37,8%), pouca familiaridade com o PPP da escola (47,7%) e consideração de pouca

presença de discussão teórica nas reuniões de planejamento (40,7%) e relação destas variáveis,

que representam instrumentos potenciais para enriquecimento do gênero profissional e

desenvolvimento da atividade, com o sentimento de solidão no trabalho, enfatiza-se a

necessidade de criação e fortalecimento de coletivos de trabalho nas escolas. Estes últimos

implicam na disponibilidade de tempo, dentro do horário de trabalho, para encontros periódicos

entre os profissionais, podendo beneficiar de instrumentos de desenvolvimento tais os concebidos

pela clínica da atividade, no sentido da ampliação da consciência sobre a ação no contexto do

grupo, possibilidades, entraves e mediações implicadas, além de discussões em torno de

problemas e recursos teóricos, levando em consideração seu potencial na interpretação das

vivências e criação de recursos para a ação.

O coletivo de trabalho enquanto instrumento de desenvolvimento da atividade e da

subjetividade dos indivíduos deve dirigir-se ao trabalho bem feito e à construção de referenciais

coletivos para a prática, o que envolve a discussão em torno do PPP da escola na construção de

um projeto comum. A importância desses coletivos nas instituições de pertencimento deve-se à

composição com a realidade local, recursos e desafios enfrentados.

No entanto, como apontado ao longo da pesquisa e trazido por Anjos (2013), há questões

de ordem estrutural que ultrapassam o poder de ação dos professores a nível local, ligadas ao

modo de organização do sistema educacional, à função da escola na sociedade e suas

contradições, que afetam diretamente o trabalho docente, e o constituem. Enfatiza-se a atual


181

conjuntura política brasileira que tem promovido a aprovação de medidas impopulares e danosas

a trabalhadores, ferindo direitos sociais, tais a educação pública, como ocorre com a Proposta de

Emenda à Constituição (PEC) 55, aprovada em 13 de dezembro de 2016, que estabelece um

limite para os gastos públicos, prejudicando, por exemplo, o cumprimento das metas do Plano

Nacional de Educação em relação ao investimento em educação e valorização do professor,

dentre outros, limitando potencialmente o repasse da União aos municípios que precisam de

complementação. Também se destaca a proposta de reforma da previdência que amplia para 49

anos o tempo de contribuição necessário para o benefício integral e a recém-aprovada lei da

terceirização (Lei 13.429) que permite a terceirização de todas as atividades da empresa,

ampliando a situação de precarização dos trabalhadores. Nesse sentido, concordando com Anjos

(2013), ainda que o coletivo de professores possa dar suporte à ação na relação com a realidade e

tornar-se instrumento de desenvolvimento do trabalho, é necessário uma perspectiva de luta em

diversas instâncias pela mudança das condições estruturais que compõem a atividade docente,

podendo ser os coletivos vetores possíveis de organização e ampliação da consciência sobre o

contexto vivido na contramão da alienação.


182

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188

ANEXO A

Job Content Questionnaire

QUESTIONÁRIO JCQ (Job Content Questionnaire) - KARASEK-BRASIL (Resumido) com adaptações

para a pesquisa com professores da rede pública.

Em relação a cada uma das afirmações que se seguem acerca de seu trabalho, marque sua

avaliação de concordância ou discordância em escala como a reproduzida abaixo:

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Marque em seguida com um “x”, nos parênteses, suas avaliações para cada uma das afirmações

abaixo (para cada afirmação você deve marcar UMA ÚNICA opção):

Atenção: Ao responder, considere o seu trabalho na PRESENTE instituição!

Q1 - Seu trabalho lhe possibilita aprender novas coisas.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q2 - Seu trabalho é repetitivo.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q3 - Seu trabalho requer que você seja criativo.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q4 - Seu trabalho lhe permite tomar muitas decisões por sua própria conta.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente


189

Q5 - Seu trabalho exige um alto nível de qualificação.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q6 - Em seu trabalho, você tem pouca liberdade para decidir como fazê-lo.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q7 - Em seu trabalho, você é encarregado de fazer muitas tarefas diferentes.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q8 - Há possibilidade de suas ideias serem consideradas na elaboração das políticas

adotadas no seu trabalho (compra de novos equipamentos, alteração de modos de

funcionamento, etc.).

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q9 - No seu trabalho, você tem oportunidade de desenvolver competências profissionais.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q10 - Seu trabalho exige que você trabalhe muito rapidamente.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q11 - Seu trabalho é desenvolvido de modo frenético.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q12 - Você é solicitado a realizar um volume excessivo de trabalho.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente


190

Q13 - O tempo para realização das suas tarefas é suficiente para concluí-las.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q14 - Em seu trabalho, você está livre de demandas conflitantes feitas por outros.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q15 - Seu trabalho exige longos períodos de intensa concentração nas tarefas.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q16 - Suas tarefas, muitas vezes, são interrompidas antes que você possa concluí-las,

adiando para mais tarde sua continuidade.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q17 – Seu trabalho é muito perturbado.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q18 - Esperar pelo trabalho de outras pessoas, muitas vezes, torna mais lento o ritmo do

seu trabalho.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q19 – Seu(s) superior(es) hierárquico(s) preocupa(m)-se com o seu bem-estar.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q20 - Seu(s) superior(es) hierárquico(s) prestam atenção nas coisas que você fala.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente


191

Q21 - Você se sente apoiado/ajudado no seu trabalho pelos seus superiores hierárquicos.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q22 - Seu(s) superior(es) hierárquico(s) são bem sucedidos em promover o trabalho em

equipe.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q23 - As pessoas com quem você trabalha são competentes na realização de suas atividades.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q24 - As pessoas com quem você trabalha interessam-se pelo que acontece com você.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q25 - As pessoas no seu trabalho são amigáveis.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q26 - As pessoas com quem você trabalha são colaborativas na realização das atividades.

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q27 - Há momentos destinados à discussão e reflexão entre você e as pessoas com quem

trabalha. (Questão acrescentada pela pesquisadora não contabilizada para cálculo dos escores)

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente

Q28 – Você se sente só ao realizar o seu trabalho. (Idem questão anterior)

1( )Discordo fortemente 2( ) Discordo 3( ) Concordo 4( ) Concordo fortemente


192

ANEXO B

Fórmulas para cálculo dos escores das dimensões do JCQ (DARES-DRESS,

2008).

Dimensão Fórmula

Q10+Q11+Q12+
Demanda Psicológica
(5-Q13)+Q14+Q15+Q16+Q17+Q18

4*Q4+4*(5-Q6)+4*(Q8)+2*
Latitude de Decisão
(5-Q2)+2*(Q5)+2*(Q7)+2*(Q1)+2*(Q3)+2*(Q9)

Suporte Social Q19+Q20+Q21+Q22+Q23+Q24+Q25+Q26


193

APÊNDICE A

Questionário Sócio-Profissional

As questões apresentadas referem-se a aspectos sócio-demográficos, de formação, ocupacionais,

pedagógicos e participativos que compõem o perfil de professores dos anos iniciais da rede municipal de

Natal.

Atenção: Quando pertinente, responda considerando seu trabalho na presente instituição.

Aspectos sócio-demográficos

Gênero:

( ) Masculino ( ) Feminino

( ) Outro (Especificar):________________

Idade:___________

Estado civil:

( ) Solteiro(a) ( ) Divorciado(a)

( ) Casado(a) ( ) União estável

( )Viúvo(a)

Filhos:

( ) Sim ( ) Não

Se sim, quantos?_________

Tempo na profissão:__________
194

Tempo no local de trabalho:__________

Aspectos de formação

Nível de formação inicial:

( ) Nível médio (Magistério)

( ) Licenciatura curta

( ) Curso normal superior

( ) Graduação

( ) Outro (Especificar):_______________

Especificação da formação de nível superior (ex.: pedagogia, licenciatura em letras, normal

superior, etc.):_________________________________________________________________________

Natureza jurídica da instituição de formação:

( ) Pública ( ) Privada

( ) Instituto Superior de Educação

Modalidade de ensino:

( ) Presencial ( ) À distância ( ) Mista

Como julga a pertinência da formação recebida para a área de atuação? 1 equivalendo a

“Insatisfatória” e 4 a “Amplamente satisfatória”. Circule o número correspondente à sua escolha.

1-------2------3-------4
195

Concluiu ou está cursando alguma pós-graduação?

( ) Sim ( ) Não

Modalidade da pós-graduação:

( ) Stricto sensu (mestrado, doutorado)

( ) Lato sensu (especializações)

( ) Ambas

( ) Não se aplica

*Responder caso se aplique:

Natureza jurídica da instituição de formação (pós-graduação stricto sensu):

( ) Pública ( ) Privada

Modalidade de ensino:

( ) Presencial ( ) À distância ( ) Mista

Como julga a pertinência da formação stricto sensu para a área de atuação? 1 equivalendo a

“Insatisfatória” e 4 a “Amplamente satisfatória”. Circule o número correspondente à sua escolha.

1-------2------3-------4

*Responder caso se aplique:

Área da pós-graduação lato sensu (especializações). Se possuir mais de uma, escolher a mais

significativa para si: ___________________________________________________________________


196

Natureza jurídica da instituição de formação (pós-graduação lato sensu):

( ) Pública ( ) Privada

Modalidade de ensino:

( ) Presencial ( ) À distância

Como julga a pertinência da formação lato sensu para a área de atuação? 1 equivalendo a

“Insatisfatória” e 4 a “Amplamente satisfatória”. Circule o número correspondente à sua escolha.

1-------2------3-------4

Participa ou participou de programa(s) de formação continuada oferecido(s) pela rede pública?

( ) Sim ( ) Não

*Responder caso se aplique:

Se sim, qual(is) programa(s)?

_____________________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________________

Modalidade:

( ) Presencial ( ) À distância ( ) Ambos


197

Como julga a contribuição dos programas para a área de atuação? 1 equivalendo a “Insatisfatória”

e 4 a “Amplamente satisfatória”. Circule o número correspondente à sua escolha. Se houver

participado a mais de um programa, avalie-os na ordem em que foram mencionados.

1-------2------3-------4

1-------2------3-------4

1-------2------3-------4

1-------2------3-------4

Aspectos ocupacionais

Em que Nível e Classe de progressão situa-se (de acordo com o plano de carreira)?

_________________________

Ano da turma em que leciona:

( ) 1º ( ) 2º ( ) 3º ( ) 4º ( ) 5º

( ) Outro (Especificar):_______________

Vínculo:

( ) Efetivo ( ) Temporário

Regime de trabalho na instituição:

( ) 20 horas ( ) 40 horas

Turno em que leciona/trabalha na presente instituição (marcar mais de um, se for o caso):

( ) Matutino ( ) Vespertino ( ) Noturno


198

Média de alunos na(s) turma(s) (na presente instituição): _________________

Turma possui aluno(s) com necessidades educacionais especiais (NEE)?

( ) Sim ( ) Não

Se sim, quantos?_________

Referente a que condições?

_____________________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________________

Turma possui auxiliar?

( ) Sim ( ) Não

Possui outro vínculo profissional ou realiza outra atividade para fins de complementação de renda?

( ) Sim ( ) Não

Quantos(as) vínculos/atividades além do presente:__________

Trata-se de vínculo profissional em escola?

( ) Sim ( ) Não

Em qual rede de ensino:

( ) Na mesma escola ( ) Municipal

( ) Estadual ( ) Federal ( ) Privada

( ) Organização não governamental

Cargo ocupado: _____________________


199

Tipo de vínculo:

( ) Efetivo ( ) Temporário

Regime de trabalho:

( ) 20 horas ( ) 30 horas ( ) 40 horas

( ) Outro (Especificar):_____________

*Responder caso se aplique:

Em caso de exercer outra atividade ou possuir vínculo profissional não relacionado à escola,

especificar a atividade realizada ou cargo ocupado:

_____________________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________________

Aspectos pedagógicos e participativos

Participou da elaboração ou já teve oportunidade consistente de discutir sobre o projeto político

pedagógico da escola?

( ) Sim ( ) Não

Em que medida considera-se familiarizado ao projeto político pedagógico da escola ou a temas

fundamentais do mesmo? 1 equivalendo a “Muito pouco” e 4 a “Muito”. Circule o número

correspondente à sua escolha.

1-------2------3-------4
200

Como avalia a quantidade de tempo disponível para planejamento das atividades de sala de aula? 1

equivalendo a “Insatisfatório” e 4 a “Amplamente satisfatório”. Circule o número correspondente à

sua escolha.

1-------2------3-------4

Como avalia a contribuição das reuniões de planejamento pedagógico para fins de reflexão e

atuação profissional? 1 equivalendo a “Insatisfatório” e 4 a “Amplamente satisfatório”. Circule o

número correspondente à sua escolha.

1-------2------3-------4

Como avalia a presença de discussão, debate e reflexão de ordem teórica nas reuniões de

planejamento pedagógico? 1 equivalendo a “Ausente” e 4 a “Muito presente”.

1--------2--------3--------4

É ou já foi membro do Conselho Escolar?

( ) Sim ( ) Não

Com que frequência participa das atividades do Conselho Escolar (ainda que como observador) na

presente instituição?

( ) Sempre ( ) As vezes ( ) Nunca


201

* Deixar em branco caso não se sinta apto a responder!!!

Considerando a experiência, ainda que como observador: Como avalia os encontros do Conselho

Escolar tendo em vista a participação, qualidade e pertinência das discussões e tratamento dos

problemas? 1 equivalendo a “Insatisfatório” e 4 a “Amplamente satisfatório”. Circule o número

correspondente à sua escolha.

1-------2------3-------4

É membro do sindicato dos professores?

( ) Sim ( ) Não

Como avalia sua participação e envolvimento nas questões da categoria enquanto membro? 1

equivalendo a “Inativo” e 4 a “Muito ativo”. Circule o número correspondente à sua escolha.

1-------2-------3-------4

Considerando 1 “Insatisfeito” e 4 “Muito satisfeito”, como você se situa em relação à sua satisfação

no trabalho? Circule o número correspondente à sua escolha.

1-------2-------3------4

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