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A incorporação do gênero no estudo da Síndrome de Burnout

MATOS, A.A.; JÚNIOR, M.D.

A incorporação do gênero no estudo da Síndrome de Burnout

The incorporation of gender in the study of Burnout Syndrome

Auxiliadôra Aparecida de Matos1


Manoel Deusdedit Júnior2

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a relação entre gênero e Síndrome de Burnout em profissionais
de enfermagem hospitalar. Através da pesquisa bibliográfica realizada, observou-se que a divisão sexual do
trabalho estabelecida em função do gênero é fundamental para entender o modo de inserção das mulheres
no mercado de trabalho, explicando a construção da Enfermagem como uma profissão feminina. Destacou-se
a exaustão emocional, que está relacionada com a sobrecarga de trabalho e é uma das dimensões de Burnout
em que as mulheres pontuam de forma significativamente mais acentuada que os homens. Já na despersonali-
zação, as mulheres pontuam de modo significativamente menor que os homens.

Palavras-chave: Esgotamento Profissional. Sexo. Enfermagem. Saúde Mental.

Abstract: The objective of this work is to analyze the relation between gender and Burnout Syndrome in nurs-
ing professionals. Through a carried bibliographical research, it was observed that the sexual division of the
work established in function of the gender is basic to understand the way of insertion of the women in the work
market, explaining the nursing professional as a feminine one. In this direction, it was distinguished emotional
exhaustion (EE), that is related with the work overload and is one of the dimensions of Burnout Syndrome in
which women is much more affected than men. In the other side, the depersonalization (OF) affected much
more the man than the women.

Key words: Burnout, Professional. Sex. Nursing. Mental Health.

1 Mestre em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa. Docente da Faculdade Santa
Rita – FaSaR.
2 Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Minas Gerais. Docente da Pontifí-
cia Universidade Católica de Minas Gerais e da Faculdade Newton Paiva.
UNIMONTES CIENTÍFICA
Montes Claros, v.10, n.1/2 – jan./dez. 2008

INTRODUÇÃO de sentido num sexo pré-existente. Como indica Ma-


Burnout é uma síndrome característica do tos (2003a), a abordagem de Butler considera a ex-
meio laboral que se dá em resposta à cronificação istência da materialidade do corpo, porém a “diferen-
do estresse ocupacional, trazendo consigo conse- ça entre os sexos” é uma atribuição de sentido dada
quências negativas, tanto em nível individual quanto aos corpos. É, então, dentro desta construção de sen-
profissional, familiar e social. Há maior incidência tidos, que o cuidado como definidor do feminino e
em profissionais que desempenham função assisten- da profissão de enfermeira deve ser compreendido.
cial, que exige deles elevado investimento na relação Sendo assim, este trabalho analisou a relação
interpessoal, marcada pelo cuidado e a dedicação. A entre gênero e Síndrome de Burnout em profissio-
síndrome está inserida na lista de doenças relaciona- nais de enfermagem hospitalar. Especificamente,
das ao trabalho com a denominação de Sensação de pretende-se caracterizar a Síndrome de Burnout,
Estar Acabado (Síndrome de Burnout) ou Síndrome relacionar o gênero com a construção da profissão
do Esgotamento Profissional (CID-10, Z 73.0), in- de Enfermagem e suas implicações para o desen-
cluída no grupo V, nos transtornos mentais e do volvimento da Síndrome de Burnout na enfermagem
comportamento relacionado ao trabalho desde 1996 hospitalar. Trata-se de uma pesquisa exploratória em
(CAMPOS, 2005). função de seu objetivo geral, conforme Gil (2002).
A característica definidora do Burnout é o Este tipo de pesquisa visa aumentar a familiaridade
desgaste, tanto físico quanto emocional. Segundo dos pesquisadores com o problema estudado. O pro-
Maslach; Leiter (1999), este desgaste pode causar cedimento metodológico utilizado foi a pesquisa bib-
problemas físicos como dores de cabeça, doenças liográfica.
gastrointestinais, pressão alta, tensão muscular e
fadiga crônica. Já o desgaste emocional pode levar REVISÃO DE LITERATURA
ao esgotamento mental, na forma de ansiedade, de-
pressão e distúrbios do sono. Síndrome de Burnout
Os custos do desgaste físico e emocional são
significativos tanto para os indivíduos quanto para A síndrome de Burnout é característica de
as empresas. Para os empregados, diminui a quali- profissões orientadas para o ser humano, tais como
dade de suas vidas e seu potencial para uma carreira serviços sociais, assistência médica e educação, isso
produtiva e promissora. Para as empresas, é uma porque são profissões que envolvem muito contato
força de trabalho que já não oferece a dedicação, a pessoal. Estas profissões caracterizam-se, sobretudo,
criatividade e a produtividade costumeiras. pelas longas horas de dedicação e a excessiva carga
Dentre as profissões de risco ao Burnout, de trabalho, bem como os conflitos potenciais com
destaca-se a Enfermagem, que tem no cuidado seu clientes, pacientes, alunos, colegas e supervisores.
atributo central. Partindo do processo de femini- Para Freudenberger (1974) citado por Benev-
zação da enfermagem como fato histórico, a questão ides-Pereira (2002a), Burnout é um estado de esgota-
norteadora deste trabalho é: Existe diferença nos fa- mento ou exaustão resultante de grande dedicação e
tores associados à Síndrome de Burnout em função esforço no trabalho, onde o indivíduo afasta ou deixa
do gênero do profissional de Enfermagem hospitalar? de lado as suas próprias necessidades. Este psicana-
A hipótese central é a de que o gênero é um fator que lista utilizou este termo de origem anglo-saxônica
estabelece diferenças significativas no desenvolvi- para nomear a síndrome com as características hoje
mento da Síndrome de Burnout em profissionais de estudadas. Este termo surgiu como uma metáfora
enfermagem hospitalar, em função da feminização para nomear o sentimento de profissionais que tra-
do cuidado. balhavam com pacientes dependentes de substâncias
O conceito de gênero adotado neste trabalho químicas no início da década de 70 e que sofriam,
é de Butler (2001), que afirma que a diferença sexual sentiam-se derrotados, estavam exaustos e não con-
não é simplesmente uma função de diferenças mate- seguiam alcançar os objetivos a que se propunham.
riais, mas é simultaneamente marcada e formada por Entretanto, este autor utilizou-se de uma perspec-
práticas discursivas. Ou seja, o gênero não deve ser tiva clínica, pois, mesmo reconhecendo que essa
concebido meramente como uma inscrição cultural síndrome decorre do trabalho excessivo, associou as
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causas às características individuais do trabalhador, uma tentativa de se proteger da exaustão e do


dando pouca ênfase aos aspectos sociais. Além disso, desapontamento. A despersonalização, geral-
concebeu a síndrome de Burnout como um estado mente, está acompanhada de ansiedade, au-
apresentado pelo indivíduo e não como um processo mento de irritabilidade e perda da motivação,
gradual. como manifestações emocionais.
Maslach; Leiter (1999) rejeitaram a perspecti- c) baixa Realização Pessoal (RP) – torna-se
va que centraliza as características dos trabalhadores presente uma sensação de menor rendimen-
como atores determinantes do Burnout, partindo da to, insatisfação com o seu desenvolvimento
concepção teórica sócio-psicológica para explicá-la. profissional (como se o indivíduo estivesse
Acrescentam, então, as variáveis sociais e ambien- “regredindo”) e um sentimento de inade-
tais como elementos igualmente atuantes no desen- quação no trabalho. Isso porque, quando se
volvimento do fenômeno. Assim, definem Burnout sentem ineficientes, as pessoas experimentam
como um fenômeno multidimensional que inclui as um sentimento de crescente inadequação. O
seguintes dimensões: trabalhador percebe-se como incompetente,
inábil para a realização de tarefas e inadequa-
a) Exaustão emocional (EE) – quando ficam do diante da organização.
exaustas, as pessoas se sentem sobrecarre- Segundo Maslach; Leiter (1999), Burnout
gadas tanto física quanto emocionalmente. não é um problema do indivíduo, mas prin-
Falta-lhes energia para enfrentar um outro cipalmente do lugar onde ele trabalha. “(...)
projeto ou uma outra pessoa. A necessidade acreditamos que o desgaste físico e emo-
de disponibilidade afetiva para a vinculação cional não é um problema das pessoas, mas
e o consequente desenvolvimento do tra- do ambiente social em que elas trabalham”
balho e a impossibilidade de concretizar as (MASLACH; LEITER: 1999, p.36, grifo das
ações necessárias para a continuidade da autoras). Isso porque a estrutura e o funcion-
lida, levam a um desgaste e um sentimento amento do local de trabalho moldam a forma
de exaustão emocional. O indivíduo não con- de interação das pessoas e a forma como elas
segue mais despender energia, como fazia no realizam seu trabalho.
passado, gerando conflito pessoal e tornan-
do-se sobrecarregado e esgotado, física e/ou Conforme indica Campos (2005), embora
mentalmente. A exaustão é a primeira reação existam diferentes concepções sobre a síndrome de
ao estresse causado pelas exigências do tra- Burnout, a literatura aponta cinco elementos que são
balho. comuns: a) existe predominância de sintomas rela-
b) Despersonalização (DE) – também de- cionados à exaustão emocional, mental, fadiga e de-
nominada ceticismo, acontece quando as pressão; b) os sintomas são relacionados ao trabalho;
pessoas se sentem descrentes. Então, as- c) há ênfase nos sintomas comportamentais e men-
sumem uma atitude distante e fria em relação tais e não nos físicos; d) manifestam-se em pessoas
ao trabalho e aos colegas. Minimizam seu ‘normais’, ou seja, que até então não sofriam distúr-
envolvimento no trabalho e até desistem de bios psicológicos e; e) as atitudes e comportamentos
seus ideais. É uma “coisificação” da relação, o negativos levam a uma diminuição da afetividade e
outro passa a ser visto como um objeto e não do desempenho no trabalho.
um ser humano. O trabalho passa a ser de-
senvolvido com frieza, insensibilidade, irrita- A construção da Enfermagem como profissão fem-
bilidade, chegando-se ao cinismo e a atitudes inina
negativas. Não há comprometimento com os
resultados, com aquilo que se faz, nem com A enfermagem é uma profissão tipicamente
as metas. A indiferença se faz presente. A dis- feminina. Segundo Pitta (1999), embora as primeiras
simulação, certo egotismo e redução de ide- vocações para o cuidado dos enfermos se situem no
alismo acompanham esta conduta. De certa âmbito da religião, este tem sido um trabalho tipica-
forma, o ceticismo ou despersonalização é mente feminino em todas as épocas. Assim, a Enfer-
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magem nasce como um serviço organizado pela in- ao institucionalizar, na Inglaterra Vitoriana (1862),
stituição das ordens sacras. uma profissão para as mulheres, para a qual elas são
A Enfermagem coexiste com o cuidado do- “naturalmente preparadas”, a partir de valores que
méstico às crianças, aos doentes e aos velhos, as- se consideravam femininos. Ao longo do processo
sociado à figura da mulher-mãe que desde sempre de profissionalização, esses valores e atributos serão
foi curandeira e detentora de um saber informal de diferentemente explorados no trabalho institucion-
práticas de saúde, transmitido de mulher para mul- alizado (LOPES; LEAL; 2005).
her. Em função disso, a marca das ordens religiosas Conforme Pitta (1999), o hospital consti-
impõe à enfermagem, por longo período, seu exer- tui um privilegiado espaço de profissionalização do
cício institucional exclusivo e ou, majoritariamente, trabalho doméstico, uma vez que utiliza desta tec-
feminino e caritativo. Aliás, o tardio processo de nologia introjetada culturalmente pelas mulheres,
profissionalização atesta essas características e repro- criando uma situação singular: o fato de que a quali-
duz as relações de trabalho sob o peso hegemônico ficação para o desempenho das tarefas cotidianas não
da medicina “masculina” (LOPES; LEAL: 2005). é adquirida por vias institucionais reconhecidas. Por
Ao considerar o processo de feminização da isso, ela costuma ser negada (ignorada?) tanto pelos
Enfermagem um fato histórico, Lopes; Leal (2005) hierarquicamente superiores, quanto pelas próprias
associam o cuidado de saúde aos processos de reor- trabalhadoras, servindo como um pano de fundo im-
ganização técnica, administrativa e política das in- portante para a “subqualificação” desse tipo de tra-
stituições de saúde, particularmente hospitalares. As balho.
autoras afirmam que “é fato analisado por diferentes Pode-se dizer, então, que na Enfermagem,
estudiosos a indução do processo de institucionali- as enfermeiras não são mulheres na sua maioria por
zação capitalista do trabalho na saúde à seletividade acaso. As enfermeiras são produtos de uma con-
de um tipo ideal de cuidadora” (LOPES; LEAL: 2005, strução complexa e dinâmica da definição de “ser”
p.109). da enfermagem e das relações entre os gêneros, na
As descobertas microbiológicas e os in- qual os valores simbólicos e vocacionais são um ex-
úmeros procedimentos técnicos advindos das Ciên- emplo da concepção de trabalho feminino baseada
cias Biológicas e da Medicina, aliados a um período em qualidades, ditas naturais, que ainda influenciam
de profundas alterações nas relações de trabalho o recrutamento majoritariamente feminino da área
(Revolução Industrial), consolidam o campo de tra- (LOPES; LEAL; 2005).
balho da Enfermagem. Nesse sentido, a divisão sexu- No Brasil, houve uma expansão de institu-
al do trabalho assenta-se em uma tipologia de trabal- ições hospitalares nas décadas de 60 e 70 — durante o
hador/trabalhadora. Portanto, é a noção de cuidado, ciclo de expansão econômica denominado “milagre
enquanto ação concebida como feminina e produto brasileiro” —, influenciando diretamente a Enferma-
das “qualidades naturais” das mulheres, que fornece gem, que deveria oferecer uma assistência de baixo
atributos e coerência ao seu exercício no espaço for- custo e desqualificada. Isso porque a finalidade dessa
mal das relações de trabalho na saúde. Nessa per- expansão era reduzir custos com a utilização de pes-
spectiva, os valores simbólicos e vocacionais, intro- soal sem qualificação ou menos qualificado (baixos
duzidos no recrutamento de trabalhadoras, apelam salários) e em menor número, para manter a mesma
para a entrada seletiva das mulheres nesse espaço quantidade de serviços prestados (LAUTERT; 1997).
profissional apropriado, cultural e socialmente, ao Dessa forma, a lógica capitalista, aliada aos senti-
seu sexo (LOPES; LEAL: 2005). mentos de religiosidade que marcaram a enferma-
A Enfermagem, em cuja essência encontra- gem, explorou intensamente estes profissionais. Res-
se o cuidado, teve no Brasil seu marco para confor- saltavam-se como qualidades do bom profissional
mação enquanto profissão, na década de 20, quando a obediência, o respeito à hierarquia, a humildade,
enfermeiras norte-americanas implantaram o siste- o espírito de servir e a disciplina. Em função disso,
ma nightingaliano, com a criação da Escola de Enfer- Lautert (1997) destacou as dificuldades de ordem
magem Ana Nery, no Rio de Janeiro (MUROFUSE profissional que os trabalhadores de enfermagem
et al.; 2005). A denominação de “sistema nightinga- enfrentam, pois possuem uma organização política
liano” deve-se à influência de Florence Nightingale frágil, com baixa remuneração e quase sem autono-
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mia. resultados destes estudos mostram diferenças signifi-


Nesse sentido, destaca-se a constatação de cativas nos níveis de despersonalização (DE), pois os
Elias; Navarro (2006), de que nas décadas de 1970 e homens pontuam significativamente mais alto que
1980, o mercado de trabalho em saúde se expandiu as mulheres. Nesse sentido, é importante assinalar o
significativamente, tornando-se um ramo de expres- estudo feito por Gil-Monte (2002) na Espanha, cujo
siva absorção de mão-de-obra. Entretanto, a expan- objetivo é analisar se o gênero estabelece diferenças
são de vagas no setor não se fez acompanhada de sig- significativas nos níveis e no processo de desenvolvi-
nificativa melhoria nas condições de trabalho. mento da síndrome de Burnout.
As atividades dos profissionais de saúde são A amostra utilizada por Gil-Monte (2002)
portadoras de extrema tensão, devido às prolongadas foi composta por 330 sujeitos, sendo 72 homens
jornadas de trabalho, ao número limitado de profis- (21,58%) e 258 mulheres (78,2%) e analisada pelo
sionais e ao desgaste psicoemocional nas tarefas re- MBI, confirmando a hipótese de que os homens pon-
alizadas no ambiente hospitalar. Segundo Elias; Nav- tuam a dimensão despersonalização (DE) de forma
arro (2006), o ambiente hospitalar, per se, apresenta significativamente superior às mulheres.
aspectos muito específicos, como a excessiva carga Assim, mesmo observando-se um crescimen-
de trabalho, o contato direto com situações limite, to no número de homens que optam pela enferma-
o elevado nível de tensão e os altos riscos para si e gem, suas escolhas profissionais não correspondem
para os outros. A necessidade de funcionamento diu- com os modelos de socialização que caracterizam a
turno, que implica na existência de regime de turnos imagem tradicional desta profissão. Sabe-se que esta
e plantões, permite a ocorrência de duplos empregos inserção pode dar margem a diferentes modelos de
e longas jornadas de trabalho, comuns entre os tra- desenvolvimento da síndrome de Burnout; porém, as
balhadores da saúde, especialmente quando os sa- amostras com os profissionais de enfermagem com-
lários são insuficientes para a manutenção de uma põem-se predominantemente por mulheres. Portan-
vida digna, o que potencializa a ação dos fatores aqui to, a influência desta variável pode estar mascarada.
elencados. Segundo Benevides-Pereira (2002a), tais diferenças
É justamente por isso que na literatura cientí- podem ter uma explicação nos papéis socialmente
fica cresce o número de comunicações referentes a aceitos, pois se atribui às mulheres maior emotivi-
agravos psíquicos, a medicalizações e a suicídios dade. Assim, por serem “naturalmente” emotivas,
destes profissionais (ELIAS; NAVARRO; 2006). as mulheres expressam suas dificuldades e conflitos,
Dessa maneira, apesar da intensidade do aliviando os sentimentos de raiva, hostilidade e in-
crescimento da força de trabalho feminina, as pes- dignação, daí a explicação da baixa pontuação em
quisas chamam atenção para a permanência de de- despersonalização (DE). Entretanto, ainda que as
terminados traços culturais e sociais que impedem mulheres sejam socializadas para uma maior habi-
uma participação mais efetiva da mulher no mercado lidade no trato e na expressão das emoções, a baixa
de trabalho. É preciso considerar que os padrões de pontuação em despersonalização (DE) implica em
socialização e a própria organização da sociedade uma redução das estratégias de enfrentamento das
separam a vida pública e a vida privada, com dis- condições estressoras. Se a despersonalização (DE) é
tribuição desigual das responsabilidades familiares e tida como uma das estratégias desenvolvidas pelo su-
domésticas que recaem sobremaneira sobre as mul- jeito para enfrentar as condições crônicas de estresse,
heres (MATOS, 2003b). as mulheres, então, estariam mais vulneráveis?
Dessa forma, a consideração da enfermagem
DISCUSSÃO como uma profissão eminentemente feminina e os
diferentes modelos de socialização da sociedade oci-
A Síndrome de Burnout na Enfermagem dental para os diferentes gêneros pode ser a base para
a explicação dessas diferenças. As mulheres são con-
A literatura sobre Burnout indica que exis- dicionadas socialmente para cuidar, educar e encar-
tem diferenças significativas nos níveis de algumas regar-se dos cuidados com os filhos, com o cônjuge,
das dimensões da síndrome de Burnout em função e com os doentes na família.
do gênero. Dentre essas diferenças, ressalta-se que os Partindo da premissa de que o trabalho nos
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constrói enquanto pessoas, pode-se afirmar que con- como um dos fatores responsáveis pela alta pontu-
struímos nossa identidade também no modo como ação em exaustão emocional (EE) em sua pesquisa
nos inserimos no mercado de trabalho. Dessa for- sobre a incidência da Síndrome de Burnout em do-
ma, a atividade de cuidar, historicamente delegada centes de nível superior pertencentes às Faculdades
à mulher, seguindo os padrões da divisão sexual do de Ciências Biológicas e da Saúde.
trabalho, determina as possibilidades de inserção das Outra variável que deve ser destacada é a
mulheres no mercado de trabalho. sobrecarga, pois tem sido apontada por diversos au-
É o que expressa Kergoat (1987), citada por tores como predisponente ao Burnout. A sobrecarga
Neves (2004), quando afirma que são as relações so- diz respeito tanto à quantidade como à qualidade ex-
ciais que fundamentam os lugares e as práticas de cessiva de demandas que ultrapassam a capacidade
homens e mulheres na divisão do trabalho e suas de desempenho, por insuficiência técnica, de tempo
transformações. O conjunto de competências ad- ou da infra-estrutura organizacional (BENEVIDES-
quirido pelos trabalhadores masculinos e femininos PEREIRA: 2002a).
na família e na escola, forma um conjunto de saberes Ao estudar os aspectos psicossociais entre
e habilidades que serão apropriados no local de tra- trabalhadoras de enfermagem, Araújo e colabora-
balho. dores (2002) destacaram como objetivo avaliar a as-
Souza-Lobo (1991), destaca a importância da sociação entre demanda psicológica e controle sobre
articulação entre espaço doméstico e espaço produ- o trabalho e a ocorrência de distúrbios psíquicos
tivo na definição da divisão sexual do trabalho. As- menores (DPM) entre estes. Para tanto, utilizaram
sim, a própria qualificação é sexuada e reflete crité- uma amostra de 502 mulheres em um estudo trans-
rios diferentes para o trabalho realizado por homens versal, e que trabalham em um hospital público de
e mulheres. Salvador, Bahia. A hipótese do trabalho é que os efei-
Assim, as representações sociais de gênero, tos nocivos sobre a saúde, provenientes de elevados
construídas social e culturalmente, influenciam a en- níveis de demanda e estimulação ambiental exces-
trada de homens e mulheres no mundo do trabalho siva, acarretam, especialmente entre as trabalhado-
e se constituem como fator fundamental da segmen- ras de enfermagem, a identificação da sobrecarga de
tação ocupacional e da divisão sexual do trabalho. trabalho como um dos principais fatores de estresse
Dessa forma, ressalta-se a importância de ocupacional.
incorporar a dimensão de gênero nos estudos so- Dos resultados obtidos, destaca-se a alta
bre Burnout. A baixa pontuação em despersonali- prevalência de DPM que é de 33,3%, indicando sério
zação (DE) pode ser explicada em função da “natu- problema de saúde mental na população estudada.
ralização” do cuidado, permitindo que as mulheres A prevalência encontrada foi superior a outros es-
continuem exercendo atividades que lhes esgotam tudos de grupos ocupacionais. O estudo confirmou
emocionalmente e fisicamente. Essa dimensão da a associação positiva entre trabalho em alta exigên-
síndrome tem uma característica importante no pro- cia, realizado em condições de baixo controle e alta
cesso de adoecimento, pois, ao “coisificar” os usuários demanda, e DPM, através da utilização do modelo
de seu serviço, os indivíduos criam estratégias de en- de Karasek. Além disso, destaca-se a importância de
frentamento para o estresse crônico. Acredita-se que considerar as características do trabalho doméstico,
as mulheres, em função de sua socialização, possuem pois a sobrecarga doméstica foi amplamente referida
maiores habilidades para expressar suas emoções, neste estudo, principalmente na sua relação com a
porém, isso reduz as estratégias de enfrentamento, sobrecarga de trabalho (ARAÚJO et al; 2003).
aumentando sua vulnerabilidade ao agravamento da As autoras indicam que este aspecto tem sido
síndrome. negligenciado em investigações sobre estresse e tra-
Além disso, as mulheres pontuam de forma balho, incluindo o modelo adotado (modelo de Kar-
significativamente superior aos homens na dimen- asek). A permanência de sobrecarga doméstica no
são exaustão emocional (EE). A explicação para essa final da análise reforça a necessidade de incorporar a
diferença está na questão da dupla jornada de tra- avaliação da carga total de trabalho aos estudos sobre
balho. A multiplicidade de papéis, profissional, do- saúde e ocupação, considerando as atividades reali-
méstico e materno, foi apontada por Mendes (2002), zadas nos locais de trabalho e no âmbito doméstico.
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A incorporação do gênero no estudo da Síndrome de Burnout
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Os resultados obtidos apontam para a importância como fator diferenciador do desencadeamento da


das consequências advindas do trabalho quando Síndrome de Burnout. Conforme ressalta Gil-Monte
este se apresenta com baixo controle e alta demanda. (2002), na hora de estudar a Síndrome de Burnout
Além disso, as autoras apontam a inadequação do em profissionais de enfermagem e suas consequên-
uso de indicadores que não considerem as diferen- cias para a organização, é necessário considerar pa-
ças de gênero. Por exemplo, ter o trabalho supervi- drões diferenciados, um para os profissionais do sexo
sionado pode não ser tão relevante para as mulheres masculino e outro para os profissionais do sexo femi-
quanto para os homens. Outros aspectos, como a nino.
possibilidade de comunicação entre colegas de tra-
balho e o estabelecimento de relações afetivas com o CONCLUSÕES
trabalho realizado, podem ser mais relevantes para as Este trabalho foi estruturado a partir de uma
mulheres do que para os homens. hipótese central, de que o gênero é um fator que esta-
Existem vários aspectos na profissão de en- belece diferenças significativas no desenvolvimento
fermagem que podem fazer desta atividade uma ocu- da síndrome de Burnout em profissionais de enfer-
pação vulnerável ao Burnout. A literatura enfatiza magem hospitalar. Em função disso, procurou-se
um número considerável de agentes estressores, tais demonstrar, através da revisão de literatura efetuada,
como: a organização do trabalho, o convívio profis- o caráter construtivo de uma categoria central dentro
sional, os agentes físicos, a vida pessoal e a atividade da enfermagem que é o cuidado. Através da análise
profissional (BENEVIDES-PEREIRA; 2002b). da construção da enfermagem enquanto profissão,
Dentre esses fatores, destaca-se a organização retomou-se a idéia do “natural” para explicar a femi-
do trabalho que é marcada por conflito e ambigui- nização da enfermagem.
dade de papéis, pela falta de participação nas de- A constatação de que a divisão sexual do
cisões, plantões, principalmente os noturnos, longas trabalho é estabelecida em função do gênero é fun-
jornadas de trabalho, rodízio de horários, número damental para entender o modo de inserção das
insuficiente de pessoal, recursos escassos, sobrecarga mulheres no mercado de trabalho. Isso quer dizer
de trabalho, excesso de burocracia, excesso de horas que as representações sociais de gênero influenciam
extras, tensão no trabalho. A vida pessoal é outro fa- a entrada das mulheres no mundo do trabalho e se
tor relevante, pois os turnos rotativos dificultam a constituem como fator fundamental da segmentação
convivência familiar e social, gerando conflitos entre ocupacional, implicando em diferentes condições de
os valores pessoais e laborais (BENEVIDES-PEREI- trabalho e de remuneração.
RA; 2002b). A partir disso, é possível relacionar as con-
É necessário considerar a existência de ambos dições vivenciadas concretamente pelas mulheres
os sexos dentro da enfermagem, pois desenvolvem tais como a dupla jornada de trabalho, o cuidado
padrões distintos de resposta ao estresse laboral. A com os filhos e a família e os conflitos para adminis-
sobrecarga laboral é um preditor significativo da trar a vida pessoal e profissional; como fatores distin-
exaustão emocional (EE), estando as mulheres em tivos e perpassados pelas relações de gênero. Dessa
condições laborais distintas dos homens em função forma, a atividade de cuidar, historicamente delegada
dos papéis atribuídos em função de seu gênero (GIL- à mulher, e como foi visto, à enfermagem, é um fator
MONTE; 2002). de vulnerabilidade ao Burnout. Além disso, a enfer-
A pressão para equilibrar demandas profissionais e magem hospitalar é caracterizada por atividades por-
familiares e o estado de cobrança permanente e de tadoras de extrema tensão (adoecimento e morte), e
culpa que as dificuldades encontradas para conciliar excessiva carga de trabalho.
estas demandas podem gerar desgaste. É mais co- A exaustão emocional (EE), que está rela-
mum encontrar a presença de conflitos entre deman- cionada com a sobrecarga de trabalho é uma das di-
das familiares e do trabalho como um dos fatores mensões de Burnout em que as mulheres pontuam
desencadeantes de Burnout em mulheres do que em de forma significativamente mais acentuada que os
homens (DINIZ; 2004). homens. Aliado às exigências do ambiente laboral,
Diante do exposto, verifica-se a importân- verificou-se que as profissionais de enfermagem hos-
cia de estudos que incluam a dimensão de gênero pitalar estão em condições laborais distintas dos ho-
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mens em função dos papéis atribuídos em função de dade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2005.
seu gênero.
Além disso, de forma geral, os resultados DINIZ, G.. Mulher, trabalho e saúde mental. In:
mostram diferenças significativas nos níveis de CODO, W. (org). O trabalho enlouquece? Petrópolis:
despersonalização (DE), uma vez que as mulheres Vozes, 2004.
pontuam de modo significativamente menor que
os homens. Visto que essa dimensão se constitui na ELIAS, M. A.; NAVARRO, V. L. A relação entre o
elaboração de estratégias de enfrentamento das con- trabalho, a saúde e as condições de vida: negativi-
dições negativas advindas do contexto laboral, de dade e positividade no trabalho das profissionais de
modo que o indivíduo se “afasta” emocionalmente enfermagem de um Hospital Escola. Revista Latino-
das atividades realizadas, pode-se inferir que as mul- americana de Enfermagem. São Paulo, v. 14, n. 4, p.
heres estão mais vulneráveis ao agravamento ou pro- 517-525, jul-ago, 2006.
gressão da síndrome de Burnout.
Portanto, se a socialização para os diferentes GIL-MONTE, P. R. Influencia del gênero sobre el
gêneros pode ser a base para a explicação dessas proceso de desarrollo del síndrome de quemarse por
diferenças na síndrome de Burnout, é fundamental el trabajo (burnout) em profesionales de enfermería.
desenvolver pesquisas que incluam a dimensão de Psicologia em Estudo. Maringá, v. 7, n.1, p.3-10, jan-
gênero como fator diferenciador do desencadeamen- jul, 2002.
to da síndrome de Burnout.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pes-
quisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002
REFERÊNCIAS
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