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Batismo – Crisma

1 A unidade da iniciação cristã (TABORDA, 2012, p.25-28)


Batismo e crisma são dois sacramentos, como se pode verificar na lista dos sete
sacramentos definida pelo Concílio de Trento (cf. DH 1901). Mas são dois sacramentos
intimamente unidos. Juntamente com a eucaristia batismal são os sacramentos da
iniciação cristã. Como a eucaristia não é só sacramento de iniciação, aqui se tratará
somente do batismo e da crisma em sua unidade. Tal foi, nas origens, a prática da tradição
eclesial conservada ainda hoje no Oriente, mesmo para crianças de colo. A prática atual
da Igreja Latina é testemunhada desde o séc. V (cf. DH 215). Em consequência dessa
prática, perdeu-se na Igreja Latina a visão da unidade dos sacramentos da iniciação cristã
e tentou-se (em vão) desenvolver uma teologia da crisma independente do batismo. Só
considerando a unidade dos dois sacramentos é possível fazer uma teologia da crisma que
não “roube” algo do batismo, e vice-versa, uma teologia do batismo que não “perca” algo
para que a crisma possa existir.
2 Da lex orandi à lex credendi (TABORDA, 2015, p.23-47)
Graças à volta às fontes, a teologia redescobriu na Patrística uma forma de refletir
sobre os sacramentos, distinta da maneira usual da sacramentária sistematizada pela
Escolástica. A Patrística parte da celebração vivida em comunidade. A prática litúrgica
da Igreja, tal como foi “em toda a parte, sempre e por todos” celebrada (Vicente de Lérins,
† cerca de 450), contém uma teologia implícita a ser desenvolvida. Segundo o antigo
axioma, verificando como a Igreja ora (lex orandi), conclui-se sobre o que devemos crer
(lex credendi).
2.1 A iniciação cristã no século III (BRADSHAW; JOHNSON; PHILLIPS, 2002;
JOHNSON, 1999, p.82-135; TRADIÇÃO APOSTÓLICA, 1971, p.40-55)
A chamada “Tradição Apostólica”, outrora atribuída a Hipólito de Roma
(BRADSHAW, 1996), é um antiquíssimo testemunho pormenorizado de como se
processava a iniciação cristã nos sécs. III-IV. O texto que apresenta a tradição do santo
batismo pode ser dividido em cinco cenas: 1) a apresentação e exame do candidato ao
batismo; 2) o catecumenato e a escolha dos que serão batizados; 3) a preparação próxima
para o batismo; 4) a celebração do batismo; 5) a vida cristã subsequente. Embora se fale
da “tradição do santo batismo”, trata-se do que poderia ser chamado “o grande batismo”,
que inclui todos os ritos da iniciação cristã, inclusive crisma e eucaristia, pois a iniciação
cristã constitui uma unidade composta por uma série de ações e ritos, pelos quais a pessoa
se torna cristã. O processo tem como ponto de partida a vida pregressa (paganismo) e
como ponto de chegada a prática da vida cristã. É, portanto, um processo de conversão e
de iniciação que culmina no banho batismal, durante o qual o eleito professa a
fé trinitária. Com isso, em sua estrutura litúrgica mais tradicional, o batismo-crisma se
desvenda como sacramento da fé, da conversão e da iniciação cristã.
2.2 A caracterização do batismo-crisma (TABORDA, 2012, p.39-45)
2.2.1 Batismo-crisma, sacramento da fé (TABORDA, 2012, p.55-78)
Com base na profissão de fé trinitária que acompanha o banho batismal, o (grande)
batismo é sacramento da fé. A fé não é inata ao ser humano. Ela vem pela pregação do
Evangelho (cf. Rm 10,17), a boa notícia de que Deus se revelou em Cristo crucificado
(cf. 1Cor 1,23). No entanto, ele é escândalo para os “piedosos” e loucura para os “sábios”,
pois significa que a salvação de Deus vem através de um rejeitado. Ambos os grupos
pretendem saber como é Deus e como ele se deve revelar. Os “piedosos” só admitem que
ele se mostre no maravilhoso e extraordinário; os “sábios”, no razoável. “Piedosos” e
“sábios” personificam a falta de fé. Coincidem em pretender saber perfeitamente quem é
Deus e querer dar normas a seu agir.
Revelando-se no “crucificado pela injustiça” (cf. Puebla), Deus manifesta sua
proximidade, pois o último aos olhos humanos é a fonte de salvação. Mas, com isso, ao
mesmo tempo ele revela o pecado e o perdão de Deus. “Nenhum dos poderosos deste
mundo a conheceu [a sabedoria de Deus, Cristo crucificado]. Pois, se a tivessem
conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória” (1Cor 2,8). Fora da fé é impossível
reconhecer o pecado e acolher o perdão. O pecado não é “boa notícia”, mas o Evangelho
torna patente o pecado como contraponto da fé. Como sacramento da fé, o batismo-crisma
sela a aceitação da fé e inclui, por isso mesmo, a remissão dos pecados como a outra face
da “obediência da fé” (cf. Rm 1,5).
O reconhecimento do pecado permite captar a incapacidade humana de salvar-se
pelas próprias forças (autossalvação). Nem a mera contemplação da verdade (“sábios”),
nem a observância abstrata da Lei (“piedosos”) são capazes de salvar, mas a ação do
Espírito que impele o ser humano a “fazer a verdade” (cf. Jo 3,21), aproximando-se de
quem está à margem do caminho (cf. Lc 10,29-37) e realizando o bem concreto, que agora
se apresenta a ser feito, mesmo que a Lei pudesse lançar dúvidas sobre sua liceidade (cf.
curas no sábado).
A fé no Evangelho é dom e presença do Espírito, porque a criatura animada pelo
Espírito não vive a partir de si, mas a partir de Deus. Essa vida nova é fruto de um novo
nascimento pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,5). Como para o banho batismal o
catecúmeno tem que despir-se para depois vestir novas roupas, assim também, pela fé e
pelo batismo, o neófito se reveste do “homem novo, criado à imagem de Deus, na
verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,24). A nova criação que surge da fonte batismal, por
um lado, só se realizará plenamente na consumação do mundo e, portanto, é objeto da
esperança; por outro lado, ela já está presente na novidade trazida por Cristo. O “velho
homem” que morre no batismo é o ser humano atingido pelo pecado, até a raiz de sua
existência histórica (cf. pecado original, pecado social).
Se o Evangelho é o Cristo crucificado, este concretiza em si, por sua obediência até
a morte, o Reino de Deus. Ele é o “reino em pessoa” (autobasileia, Orígenes † 254). O
Reino de Deus é uma nova ordem de coisas, fundamentada em Deus, onde predominam
justiça, fraternidade, amor, igualdade, solidariedade… Quando Deus reina, a fraternidade
não fica em palavras, mas passa à prática e se torna história. O batismo-crisma expressa
e realiza a adesão ao Reino, segundo o Espírito de Jesus, aprendendo a obediência na sua
entrega ao Pai (cf. Hb 5,8).
2.2.2 Batismo-crisma, sacramento da conversão (TABORDA, 2012, p.79-109)
A “Tradição Apostólica” descreve o processo batismal como mudança de costumes
e hábitos, passagem dos ídolos ao Deus verdadeiro (cf. 1Ts 1,9). A idolatria não
necessariamente tem feição religiosa, pois consiste em pôr como o absoluto de nossa
existência aquilo que é relativo. Tudo pode tornar-se ídolo. Hoje se trata especialmente
da riqueza, poder, prazer e saber, coisas boas em si, que se transformam em ídolo quando
se faz delas o valor supremo da vida. Por isso, o cuidado que se observa na “Tradição
Apostólica” para que o candidato abandone toda atividade que, de alguma maneira,
rescenda a idolatria.
Pertence à natureza do ídolo exigir sacrifícios humanos (cf. Dt 12,31; 2Rs 16,3; Os
13,2; Mq 6,7; Jr 7,31 e 19,5; Ez 20,31 e 23,39), porque são forças de morte. Para obtê-
los, passa-se por cima dos direitos dos outros, ou os próprios idólatras se sacrificam,
desgastando-se para obter intimidade com o ídolo. O Deus vivo, Pai de Jesus Cristo, ao
contrário, quer a vida do ser humano, e vida em abundância (cf. Jo 10,10). Desse modo,
em Cristo se aproxima dos excluídos e dos pecadores. Lança o desafio a que as pessoas
mudem de vida, acercando-se de quem está à margem e é desprezado (cf. Lc 10,29-37).
Só a partir de baixo se pode construir a igualdade exigida pelo Reino de Deus. Jesus vai
à frente (cf. Hb 12,2), abrindo caminho, para que se reconheça Deus nos pequenos e
humilhados, pois ele próprio carregou a humilhação da morte de cruz fora dos muros da
Cidade Santa (cf. Hb 13,12-13).
A conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro é uma passagem da morte à vida. É
Páscoa, como a existência de Jesus (cf. Jo 16,28). O mistério pascal de Cristo só pode ser
entendido de modo correto quando visto como consequência de sua vida. Jesus morreu
condenado à morte, porque viveu da forma que viveu. Ressuscitou, porque viveu e morreu
daquela maneira. Ora, a vida e obra de Jesus se resumem na fidelidade à sua missão de
tornar presente o Reino de Deus, que exige que se absolutize somente a Deus e nada mais,
e ninguém mais (cf. Mt 13,44-46). Onde Deus é o único absoluto, pratica-se o primado
da justiça, da verdade, da solidariedade, da fraternidade e de todos os demais valores do
Reino.
A mensagem do Reino que Jesus tematiza em suas ações e em suas palavras é, pois,
uma mensagem de vida contra os ídolos da morte. Nada mais natural que os ídolos se
voltem contra Jesus e procurem eliminá-lo. Por sua atuação, Jesus entra na luta entre os
ídolos e Deus e morre vítima desses ídolos. A Lei dos judeus absolutizada e o poder dos
romanos divinizado são os dois ídolos que determinam a condenação de Jesus. Por isso,
a conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro é participação na luta de vida e morte de Jesus
contra os ídolos.
O mistério pascal é a passagem de Cristo da morte à vida. O aspecto “vida” no
mistério pascal é uma unidade estruturada, diferenciada em três momentos: ressurreição-
ascensão-Pentecostes. Essas três etapas podem ser apresentadas num esquema temporal,
como o faz Lucas em sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos), bem como o final
canônico de Marcos (cf. Mc 16,9-20). Mas também podem ser vistos em sua unidade,
como sintetiza João sob o conceito de “glorificação” que entretece morte, ressurreição,
ida ao Pai e envio do Espírito numa unidade inseparável. Mateus, embora não distinga os
três momentos, supõe-nos na única aparição de Jesus aos discípulos em um monte da
Galileia (cf. Mt 28,16-20).
A unidade diferenciada do mistério pascal de Cristo possibilita que reconheçamos
o mesmo para batismo e crisma. A passagem pela água – afogamento e fonte de vida –
simboliza a participação no mistério pascal enquanto passagem da morte à vida
(ressurreição); os gestos simbólicos da crisma expressam a comunhão ao mistério pascal
de Cristo como novo Pentecostes (cf. a seguir em 2.3).
Pela conversão a Cristo, o ser humano faz também sua páscoa ou “passagem”, em
Cristo e com Cristo, ao Pai. Aceitar na fé o mistério pascal e aceitar participar dele só é
possível se nos é dada a mesma liberdade de Cristo, seu Espírito que transformou os
apóstolos de medrosos em audazes e valentes. Não por acaso, Pentecostes é uma
dimensão do mistério pascal de Cristo, o seu fecho e desfecho. Participar do mistério
pascal de Cristo é tomar parte em sua liberdade. Ora, a liberdade está ali, onde está o
Espírito do Senhor (cf. 2Cor 3,17).
A conversão, dos ídolos ao Deus verdadeiro, não é simplesmente um ato nosso: é
dom de Deus, graça. Deus tem a iniciativa no convite à conversão. A ação de Deus
desperta a liberdade humana e, despertando-a, a “carrega”, acompanha, liberta e salva dos
ídolos, forças de morte. A idolatria torna a liberdade humana escrava do pecado (cf. Jo
8,34). Pela conversão à fé cristã e pelo (grande) batismo, “fomos chamados à liberdade”
(Gl 5,13).
A liberdade apresenta dois polos: é liberdade de e liberdade para. Negativamente,
é liberdade de: liberdade do pecado, da Lei, da morte, forças de morte próprias da
idolatria. Positivamente, ela se concretiza como liberdade para Deus (cf. Rm 6,18-22; Gl
5,13; 1Pd 2,16; 1Cor 7,21s), liberdade para o outro (cf. Gl 5,13s.22s; 1Cor 6,12),
liberdade em Cristo e por ele (cf. Gl 2,4; 5,1; Jo 8,36). A liberdade segundo o Espírito de
Cristo é serviço mútuo (cf. Gl 5,13), é dar espaço à liberdade dos outros, limitar-se por
amor ao outro (cf. 1Cor 8,13; Rm 14,20-21).
2.2.3 Batismo-crisma, sacramento da iniciação cristã (TABORDA, 2012, p.111-
134)
O processo batismal descrito na “Tradição Apostólica” mostra também que é
preciso aprender a ser cristão, porque, como disse Tertuliano, “não nascemos cristãos;
nós nos fazemos cristãos” (Apologeticus, c.18). Esse processo consiste em que, pela ação
do Espírito Santo, o candidato seja introduzido no mistério de Deus (mistagogia), pois
somente no Espírito temos acesso ao Pai para clamar “Abbá” (cf. Rm 8,14-17; Gl 4,4-7).
Sem ele, não é possível conhecer o Pai (cf. 1Cor 2,10-12) nem confessar o Filho (cf. 1Cor
12,3). Por isso, tradicionalmente o (grande) batismo recebeu o nome de “iluminação”: só
se pode ter acesso ao Mistério de Deus pela luz do alto.
Como todo conhecimento entre pessoas, também o conhecimento de Deus só é
possível na revelação mútua que se autossupera no amor: é um tipo de conhecimento não
meramente intelectual; ele se dá na práxis do seguimento de Jesus. Quem se converte a
Cristo não precisa apenas ser instruído numa doutrina, mas posto em contato com uma
pessoa viva a quem se entrega no amor.
O seguimento é concretização da fé em Jesus. Ele vai à frente na caminhada (cf. Hb
12,2), mas junto com ele, empós ele, vem toda a “nuvem de testemunhas” (cf. Hb 12,1),
com as quais está prometido obtermos a “plena realização” (cf. Hb 11,40). O caminho do
seguimento de Jesus é comunitário, eclesial. Seguir Jesus significa assemelhar-se a ele
(proximidade) por uma prática semelhante à dele (movimento subordinado), que tem um
desenlace como o dele, na cruz. Pois somente a partir da cruz se pode conhecer a Jesus e
assim ao Pai, porque então realmente se rompem todos os esquemas humanos sobre quem
é Deus e sobre o que significa ser Filho de Deus. A cruz é crise e revolução na ideia de
Deus. Deus, que se costuma considerar como poder, força e glória, mostra-se na
impotência, vergonha e ignomínia, no absurdo (kénosis).
O Espírito Santo nos leva a fixar os olhos em Jesus, para nele vermos o Pai (cf. Jo
14,9) e caminharmos com ele, pois sua existência toda foi passagem para o Pai (Páscoa).
Seguir Jesus nos revela a face do Pai como nosso Pai, pois, sob ação do Espírito, somos
feitos “filhos no Filho” pela fé e pelo batismo.
Nessa condição, podemos dirigir-nos ao Pai na franqueza e liberdade (parrhesía) de
filhas e filhos. Por isso, ao rito da iniciação cristã pertence a “entrega do Pai Nosso” que
é aprendizado da oração cristã com suas características próprias, diferentes das de outras
religiões. A oração especificamente cristã sempre se dirige ao Pai, pela mediação do Filho
no Espírito Santo, porque não é a oração de um estranho, mas de alguém que está inserido
no mistério de Deus e no qual habita Deus por seu Espírito (cf. 1Cor 6,19). De fato, pelo
Espírito Santo estamos mergulhados no mistério do Deus que se aproximou de nós em
Jesus Cristo. Ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, a oração do cristão é a graça de
participar da dinâmica mesma da vida trinitária.
Salientem-se dois elementos essenciais da oração cristã: a consciência de não
sabermos orar como convém e, por isso mesmo, deixar que o Espírito ore por nós “com
gemidos inenarráveis” (cf. Rm 8,14-27); e não fugir da realidade para orar, mas dirigir-
nos ao Pai a partir de nossa inserção na história humana, ouvindo e fazendo eco aos
gemidos da criação (cf. Rm 8,22-23).
2.3 A distinção entre o batismo e a crisma (TABORDA, 2012, p.145-150; 187-
211)
Até agora foi explicitada a graça comum ao batismo e à crisma, que pode ser
resumida como participação no mistério pascal de Cristo e, portanto, na vida trinitária.
Ora, o mistério pascal com seus três momentos (ressurreição, ascensão e Pentecostes) é
uma unidade diferenciada. Da mesma forma os sacramentos da iniciação, em sua unidade,
diferenciam-se em batismo e crisma (e eucaristia). Batismo e crisma, pelos gestos
simbólicos com que se realizam, remetem a dois momentos do mistério pascal de Cristo:
morte-ressurreição (passagem da morte à vida) e Pentecostes (efusão do Espírito para o
testemunho). A passagem da morte à vida é simbolizada no banho batismal, pois afogar-
se leva à morte, mas desse mergulho na morte se sai com uma vida nova. Pentecostes é
significado pelo gesto simples e complexo da imposição das mãos, assinalação e unção
com óleo perfumado. A imposição das mãos é um gesto de bênção; no caso, a bênção por
excelência que é o Espírito (cf. Lc 11,13). A assinalação significa pertença a alguém e,
biblicamente, também é sinal de salvação para quando do juízo escatológico de Deus (cf.
Ez 9,4-6; Ap 7,3 e 9,4). Na crisma, significa que já agora pertencemos a Deus (cf. 2Cor
1,22), embora essa pertença ainda não se manifeste em plenitude (cf. 1Jo 3,2). A unção
indica que pelo batismo-crisma somos sacerdotes, profetas e reis. Como, porém, se trata
de um óleo perfumado, o sacramento nos constitui, por nossa própria vida, testemunhas
do Ressuscitado, pois o perfume permite perceber a presença de alguém, mesmo sem que
se veja a pessoa.
Os gestos simbólicos distinguem os dois sacramentos (batismo e crisma), mas é na
sua unidade que eles devem ser compreendidos como participação no mistério pascal. A
eucaristia, terceiro sacramento da iniciação, tem uma característica específica: é o
sacramento cotidiano de nossa entrega com Cristo ao Pai pela ação do Espírito Santo. Dá-
nos parte no mistério pascal enquanto sacrifício.
3 A dimensão eclesial do batismo-crisma
A característica do sacramento é sua dimensão eclesial (→Eclesialidade dos
sacramentos). Há uma relação mútua entre Igreja e sacramento, expressa no axioma “a
Igreja faz os sacramentos; os sacramentos fazem a Igreja”.
3.1 A Igreja faz o batismo-crisma (TABORDA, 2012, p.215-230)
A missão da Igreja está expressa em Mt 28,19-20, em termos de fazer todos os povos
discípulos de Jesus, batizando-os. Batizar é intrínseco ao ser da Igreja. A ela cabe não só
iniciar na fé pelo (grande) batismo, mas também propiciar aos batizados um crescimento
constante na fé recebida no batismo, porque, embora a fé seja um ato pessoal, livre e
intransferível, é essencialmente comunitário. Sendo a fé adesão ao mistério inesgotável
de Deus, ninguém é capaz de vivê-la plenamente; tem que confrontar-se sempre com
outras formas de acolher e viver o Deus que se autocomunica por meio de Cristo no
Espírito Santo.
A Igreja é criada pelo Espírito de Cristo que desperta a fé, move à conversão, atua
na iniciação. O Espírito Santo é o Espírito da unidade e da diversidade. No batismo-
crisma ele eleva os iniciados à dignidade de filhos e filhas de Deus. Confere-lhes uma
dignidade que torna iguais todos os membros da Igreja. Mas, como Espírito de vida, “na
variedade dos dons celestes e na diversidade dos membros”, faz “crescer com admirável
unidade” o Corpo de Cristo (prece de ordenação diaconal da liturgia romana). Como os
membros do corpo não são iguais, também cada membro da Igreja tem seu carisma a ser
vivido harmonicamente com os demais carismas, pois todos provém do Espírito que nos
foi dado no (grande) batismo.
3.2 O batismo-crisma faz a Igreja (TABORDA, 2012, p.231-248)
Ao dar a todos os cristãos igual dignidade, o (grande) batismo cria a Igreja como
comunidade de iguais. Gl 3,26-28 professa que a Igreja, pelo batismo, é uma comunidade
onde todas as diferenças sociais, culturais, religiosas, nacionais, raciais e de gênero são
superadas ou, pelo menos, deveriam sê-lo, porque todos foram revestidos de Cristo. O
que conta, a partir do batismo, não são os papéis sociais, culturais e religiosos, mas o
discipulado e o poder concedido pelo Espírito. Conferindo igualdade a judeus e gregos,
escravos e livres, homens e mulheres, a Igreja vive numa constante tensão, criada pelo
batismo, entre a igualdade em Cristo e as desigualdades criadas pela sociedade.
A igualdade batismal tem sua base na dignidade de sacerdotes, profetas e reis,
comum a todos os batizados. Esse tríplice múnus se resume em dar testemunho da fé.
Como sacerdote, o cristão proclama os grandes feitos de Deus em Cristo Jesus (cf. 1Pd
2,9), adora Deus com sua vida, rejeitando os ídolos históricos da riqueza, do poder, do
prazer e do saber, descobre a imagem de Deus ultrajada no rosto do pobre. Como rei,
concretiza o Reino na busca da justiça e do direito, combatendo os ídolos que, para
viverem, exigem a morte do pobre, lutando por implantar a igualdade batismal, para além
de toda diferença de raça, posição social e gênero, o que, nas condições concretas da
história, só se faz privilegiando quem é descartado. Como profeta, desmascara a falta de
fé como egoísmo e negação do outro, especialmente do pobre, mostra-se livre para Deus
e para o próximo, denuncia toda desfiguração da imagem de Deus no ser humano,
resultante da exploração de uns pelos outros.
Embora a Igreja seja una pelo batismo, existe em diversas confissões, devido ao
pecado dos cristãos. Sob esse ponto de vista, vale o que declarou o Documento de Lima
(1982): “Nosso único batismo em Cristo constitui um apelo dirigido às Igrejas, para
ultrapassarem suas divisões e manifestarem visivelmente sua comunhão”, pois o batismo
“nos une ao Cristo na fé” e é, assim, “um vínculo fundamental de unidade” (CONSELHO
MUNDIAL DE IGREJAS, 1983, n.6, p.17).
Francisco Taborda, SJ. FAJE, Belo Horizonte (Brasil). Texto original em
português.
4 Referências bibliográficas
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BRADSHAW, P. F. Re-dating the Apostolic Tradition: Some Preliminary Steps. In:
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of Aidan Kavanagh, OSB. Collegeville: The Liturgical Press, 1996. p.3-17.
CASPANI, P. Renascer da água e do Espírito: batismo e crisma, sacramentos da
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CODINA, V.; IRARRÁZAVAL, D. Sacramentos da iniciação: água e Espírito de
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CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS – Comissão de Fé e Constituição. Batismo
– Eucaristia – Ministério: convergência da fé. Rio de Janeiro: Tempo e Presença, 1983.
JOHNSON, M. E. The Rites of Christian Initiation: Their Evolution and
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OÑATIBIA, I. Batismo e confirmação: sacramentos de iniciação. São Paulo:
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TABORDA, F. Nas fontes da vida cristã: uma teologia do batismo-crisma. 3.ed.
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______. O memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a
eucaristia. 2.ed. revista e ampliada. São Paulo: Loyola, 2015.
TENA, P.; BOROBIO, D. Sacramentos da iniciação cristã: batismo e confirmação.
In: BOROBIO, D. A celebração na Igreja. V.2. São Paulo: Loyola, 1993. p21-141.
TRADIÇÃO APOSTÓLICA DE HIPÓLITO DE ROMA: liturgia e catequese em
Roma no séc. III. Tradução da versão latina e notas por Maria da Glória Novak;
introdução de Maucyr Gibin. Petrópolis: Vozes, 1971.

A Eucaristia
1 Realidade atual da eucaristia
A eucaristia, como principal celebração litúrgica da Igreja, sofre nestes tempos as
mesmas tensões e contradições que a fé cristã nas sociedades contemporâneas. Não é
estranho, porque celebra, precisamente, a fé em Jesus Cristo, morto e ressuscitado na vida
atual da humanidade e de cada crente. A liturgia é sensível às mudanças no mundo e na
Igreja, porque não se celebra em espaços e tempos abstratos, mas nos contextos humanos,
culturais e eclesiais concretos de cada crente e de cada comunidade. Em geral, pode-se
dizer que, na última década, um grande número de católicos deixou de participar da
eucaristia dominical e de praticar a vida sacramental. Em geral, são aqueles cuja relação
com a Igreja se baseava sobretudo na recepção dos sacramentos e na participação nos
funerais e nas grandes festas cristãs do ano litúrgico ou dos santuários. As comunidades
eclesiais de base, capelas de bairros mais homogêneos ou setores rurais, por outro lado,
tendem a manter uma práxis celebrativa mais viva e regular. Mas também, muito
frequentemente, têm se ressentido do distanciamento dos jovens e da dificuldade de
engajar leigos e leigas nos vários papéis litúrgicos ligados à eucaristia: coros, leitores,
acólitos. A crise resultante dos abusos de poder, consciência e sexuais de membros do
clero, que nos últimos anos foi amplamente divulgada e afetou fortemente a Igreja em
muitos países do continente, tem sido um fator que, para muitos católicos com uma
pertença mais frágil à Igreja e/ou uma formação mais superficial, os leva a cessar
praticamente toda a participação nela, a começar pela eucaristia dominical.
Certamente, a realidade da celebração da eucaristia é muito vasta e diversa para ser
resumida ou generalizada em poucas linhas. De um lado, existem comunidades com
celebrações muito vivas e participativas, e de outro, igrejas onde o número de fiéis que
vão à missa dominical diminuiu drasticamente, enquanto a idade média dos participantes
aumentou com a mesma radicalidade. Os planos pastorais diocesanos, o carisma dos
párocos ou dos sacerdotes que presidem a eucaristia, a formação dos leigos e das leigas e
a tradição da Igreja local são determinantes para a qualidade da vida litúrgica e, em
particular, das celebrações eucarísticas. As grandes diferenças nestes aspectos também
determinam, em grande parte, as diferenças na qualidade, participação e vivacidade das
missas.
Este olhar realista, que não pretende ser pessimista, é necessário no início de um
tratamento doutrinal da eucaristia, pois nós, católicos, colocamos este sacramento no
lugar mais alto da vida litúrgica da Igreja e não deixamos de proclamar sua centralidade
e importância. Para muitos pode parecer que essas afirmações não correspondem à
realidade no momento e, para falar a verdade, não estariam errados. Por outro lado, pode
a Igreja renunciar a afirmar e ensinar a importância e a centralidade da eucaristia, sem
com isso afetar o próprio cerne da sua práxis litúrgico-sacramental?
2 Valorização do magistério
O magistério da Igreja continua a colocar a eucaristia em um lugar eminente na sua
prática cultual. O Catecismo da Igreja Católica (CEC) reafirma que a eucaristia é “a fonte
e o ápice de toda a vida cristã”, citando a Lumen Gentium n.11 (CEC n.1324); que
“contém todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa”,
citando Presbyterorum ordinis n.5 (CEC n.1325), e termina afirmando que “a eucaristia
é o compêndio e a soma da nossa fé” (CEC n.1327).
Anteriormente, a constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano II,
a Sacrosanctum Concilium (SC), afirmava que a liturgia, da qual a eucaristia é a
expressão máxima, é “o ápice a que tende a atividade da Igreja e, ao mesmo tempo, a
fonte da qual emana toda a sua força” (SC n.10).
O papa São João Paulo II dedicou importantes páginas à eucaristia no seu
magistério, dentre as quais se destaca a sua última carta encíclica, em 2003, Ecclesia de
Eucharistia (EdE). Nela há passagens testemunhais de grande profundidade, como a que
diz: “Aqui (na eucaristia) está o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor do fim
a que todo homem, ainda que inconscientemente, aspira. Um grande mistério, que
certamente nos ultrapassa e põe à prova a capacidade de nossa mente de ir além das
aparências” (EdE n.59).
Também o papa emérito Bento XVI escreveu sobre a eucaristia. Particularmente
importante é a sua exortação apostólica Sacramentum caritatis (SC), de 2007, na qual
integra a reflexão do Sínodo dos Bispos de 2005, cujo tema foi precisamente a eucaristia.
O magistério do papa Francisco, por sua vez, oferece um grande número de
catequeses, homilias e frases sobre a eucaristia. Na catequese de 8 de novembro de 2017,
Francisco recorda o antigo e impressionante episódio dos mártires da Abitínia:
Não podemos esquecer o grande número de cristãos que, no mundo inteiro, em dois mil
anos de história, resistiram até à morte para defender a Eucaristia; e quantos, ainda hoje,
arriscam a vida para participar na Missa dominical. No ano de 304, durante as
perseguições de Diocleciano, um grupo de cristãos, do norte de África, foram
surpreendidos a celebrar a Missa numa casa e foram aprisionados. O procônsul romano,
no interrogatório, perguntou-lhes por que o fizeram, sabendo que era absolutamente
proibido. E eles responderam: “Sem o domingo não podemos viver”, que significava: se
não podemos celebrar a Eucaristia, não podemos viver, a nossa vida cristã morreria. Com
efeito, Jesus disse aos seus discípulos: “se não comerdes a carne do Filho do homem, e
não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 53-54).
Aqueles cristãos do norte de África foram assassinados porque celebravam a Eucaristia.
Deixaram o testemunho de que se pode renunciar à vida terrena pela Eucaristia, porque
ela nos dá a vida eterna, tornando-nos partícipes da vitória de Cristo sobre a morte. Um
testemunho que nos interpela a todos e exige uma resposta acerca do que significa para
cada um de nós participar no Sacrifício da Missa e aproximarmo-nos da Mesa do Senhor.
(FRANCISCO, 2017)
A pergunta do Papa Francisco é chave em nossos dias: o que a eucaristia significa
para nós hoje? Se houve momentos em que não era necessário fazer tal pergunta, não são
estes que se vive. Certamente, para apreciar a eucaristia não basta saber mais sobre ela.
Se o conhecimento não está em conexão vital com toda a vida de fé, é de pouca utilidade.
Pode nos tornar mais sábios, mas não ajuda celebrar melhor nossa fé. A eucaristia é, antes
de tudo, uma experiência. Uma experiência celebrativa, festiva, que nasce da gratuidade
de ser cristão. Podemos saber muito sobre ela, mas para que adquira seu sentido pleno
como sacramento da Igreja, deve ser experimentada, vivida e celebrada na comunidade
dos fiéis. Dessa perspectiva, tenta-se aqui sintetizar sua doutrina fundamental.
3 Sacramento principal
A liturgia e os ministérios da Igreja são orientados para a eucaristia. “Os outros
sacramentos”, afirma o CEC n.1324, “assim como todos os ministérios eclesiais e obras
de apostolado, estão unidos à eucaristia e a ela são ordenados”. Sua centralidade na Igreja
Católica é clara e está bem fundamentada na práxis e na doutrina de sua história. Por isso
é necessário conhecer esses fundamentos nestes tempos em que a formação catequética
da Igreja costuma ser fraca e escassa.
A eucaristia é o principal dos sete sacramentos. No mundo sacramental, está
ordenada com o conjunto dos sacramentos da iniciação cristã, juntamente com o batismo
e a crisma. A tríade batismo-crisma-eucaristia foi, durante os primeiros séculos do
cristianismo, a porta de entrada para a comunidade cristã, como uma celebração
sacramental única e simultânea, da qual a eucaristia era o ponto culminante. Muito tarde
na história da Igreja, apenas no início do século XX, generalizou-se o costume de
antecipar a eucaristia aos mais novos, alterando assim a ordem tradicional em que eram
ministrados os sacramentos de iniciação: 1-batismo, 2-crisma e 3-eucaristia; para uma
nova: 1-batismo, 2-eucaristia e 3-crisma. Mas já antes, na Igreja latina, a crisma havia
sido separada do batismo no momento da administração. A razão é que, no Ocidente, ao
contrário das comunidades do Oriente cristão, o bispo (e não o sacerdote) foi instituído
como ministro ordinário (hoje o chamamos original) da confirmação. Os padres
batizavam os recém-nascidos e somente quando o bispo visitava a localidade, ou quando
crianças ou jovens podiam ir à sé episcopal, eles podiam ser crismados. E muitas vezes
anos se passavam entre os dois sacramentos. Mas mesmo assim, a eucaristia era recebida
pela primeira vez apenas na crisma, preservando assim a ordem tradicional: 1-batismo,
2-crisma e 3-eucaristia e, portanto, se preservava o sinal concreto da eucaristia como
culminância da iniciação cristã.
Hoje se considera importante recuperar a unidade destes três sacramentos, teológica
e pastoralmente vinculados e interdependentes. Já que nas igrejas latinas essa unidade não
pode ser temporal – o costume e certas vantagens pastorais de administrar a primeira
eucaristia primeiro e depois a crisma estão muito arraigados – tenta-se que seja pelo
menos catequética e liturgicamente clara: na formação e no ritual. Considerar a eucaristia
como o ponto culminante da iniciação cristã só pode ser afirmado teoricamente, pois o
sinal estabelece como ponto culminante (pelo menos temporalmente) o sacramento da
crisma.
O batismo e a confirmação imprimem caráter, ou seja, são sacramentos que só são
recebidos uma vez na vida, pois deixam uma marca espiritual indelével em quem os
recebeu. A eucaristia, por sua vez, é o sacramento do caminho cristão: é recebida quantas
vezes forem necessárias, como alimento para viver a união pessoal com Cristo e o
discipulado. É o sacramento do viajante, do peregrino que deseja viver a sua fé no
seguimento e na fidelidade à missão confiada. Na homilia do Corpus Christi de 2015, o
papa Francisco afirmou que “a eucaristia não é uma recompensa para os bons, mas uma
força para os fracos; para os pecadores é o perdão, o viático que nos ajuda a andar, a
caminhar”. Imagem profunda e realista: a comunhão eucarística não pode ser recompensa
pelos méritos que um cristão possui, mas é precisamente o alimento de que necessita na
sua fragilidade e vulnerabilidade para viver e testemunhar a sua fé no complexo mundo
de hoje.
4 Nomes
A eucaristia recebeu vários nomes ao longo da história. Cada um deles destaca
algum aspecto de seu conteúdo teológico ou de sua forma celebrativa. A CEC os lista de
forma mais completa nos números 1328 a 1332. Três deles são particularmente
importantes:
Fração do pão. Esta expressão encontra-se em Atos 2, 42-46, no contexto da
descrição da primeira comunidade cristã, e em Atos 20, 7-11, em um contexto que pode
ser chamado de litúrgico, de uma assembleia no “primeiro dia da semana” (Domingo, Dia
do Senhor), com longa palestra (homilia) de São Paulo. A expressão fração do pão refere-
se diretamente a uma ação própria da eucaristia, como é a de partir o pão para distribuí-
lo, mas tem suas raízes em um costume judaico muito mais antigo: o do pai de família
que, depois de abençoar a mesa, partia e repartia o pão para os seus. Na refeição da Páscoa
judaica, que é o antecedente imediato da eucaristia, este gesto era particularmente
significativo.
Ceia do senhor. Em 1Cor 11,20, São Paulo usa esta expressão para distinguir a ceia
fraterna que precedeu a “Ceia do Senhor” (a eucaristia) nas primeiras comunidades
cristãs. Na comunidade de Corinto, as ceias anteriores eram palco de excessos e desprezo
pelos mais pobres, o que motiva a crítica de Paulo. Apesar de não se reproduzir na própria
Ceia do Senhor, sua proximidade com ela deve torná-los coerentes com o espírito cristão
de fraternidade, solidariedade e apreço pelos mais pobres.
Eucaristia. Este nome encontra-se, na sua forma verbal, dar graças, em Lc 22,19:
“Pegou o pão, deu graças (…)” e em 1Cor 11,24: “Pegou o pão, agradeceu e partiu-o
(…)”. Bem próximo está o termo abençoar, utilizado em Mc 14,22 e Mt 26,26: “Ele
tomou o pão, abençoou-o (…)”. Dado que a ação de graças e a bênção são ações inerentes
à liturgia cristã, e que se manifestam com particular clareza na eucaristia, este é o termo
que a liturgia atual tem privilegiado sobre os demais.
Missa? Embora a expressão “missa” continue a ser usada em linguagem coloquial
e pastoral em português, espanhol e outras línguas, é um termo que deixou de ser usado
em linguagem teológica devido à sua escassa relação com qualquer aspecto central da
eucaristia. Sua origem está na Idade Média, na fórmula de despedida dos fiéis no final da
eucaristia: “Ite, missa est” (literalmente, “vai, foi enviado”, referindo-se implicitamente
à celebração). A partir daí, por metonímia, a eucaristia passou a ser chamada de “missa”.
5 A doutrina fundamental
5.1 Instituída por Cristo na última ceia
A tradição cristã, baseada no Novo Testamento, afirma que a eucaristia foi instituída
por Jesus Cristo na ceia que ele celebrou com seus apóstolos na noite anterior à sua
paixão. Os textos fundamentais são Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-
25. Transmitem, com pequenas variações, o relato da instituição que até hoje constitui a
parte central das Orações eucarísticas. Também é fundamental Jo 13,1-15, que relata o
lava-pés que Jesus fez durante a ceia, considerado um sinal cujo conteúdo e significado
são paralelos e análogos ao da fração do pão: a entrega radical de sua vida ao serviço da
humanidade. Diz que o Senhor, tendo amado os seus, amou-os até o fim. Sabendo que
chegara a hora de deixar este mundo para voltar para seu Pai, durante o jantar, ele lavou
os pés dos apóstolos e deixou-lhes o mandamento do amor como missão. É o mesmo
conteúdo da oferta do pão partido e do vinho repartido, sinais da entrega radical de Jesus
aos seus, que os seus discípulos devem imitar em sua memória.
Na ceia, Jesus deu à Páscoa, a principal festa judaica, seu “significado definitivo”
(CEC n.1340). “O nosso Salvador, na última Ceia, na noite em que foi entregue, instituiu
o sacrifício eucarístico, (…) banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de
graça e nos é concedido o penhor da glória futura” (SC n.47).
Para lhes deixar um penhor desse amor, para nunca se afastar dos seus e torná-los
participantes de sua Páscoa, instituiu a eucaristia como memorial de sua morte e
ressurreição e ordenou a seus apóstolos (“aqueles que constituía os sacerdotes do Novo
Testamento”, Concílio de Trento, Denziger-Hünermann (DH), n.1740) para fazerem o
mesmo “em sua memória” (Lc 22,19 e 1Cor 11,24). Eucaristia e sacerdócio ministerial
são dois temas que a tradição católica manteve essencialmente ligados.
Ao falar da instituição da eucaristia, é necessário referir-se à compreensão
contemporânea de “instituição”: não é apenas o momento fundante de um sacramento,
mas sobretudo a vontade de Jesus de salvar por meio de certos sinais rituais em que Ele
mesmo continua a agir por meio do Espírito Santo, através de ministros que o fazem em
seu nome e em seu lugar. Ou seja, a instituição não é apenas uma ação do passado
histórico, mas um efeito permanente dela, cada vez que o sacramento – neste caso, a
eucaristia – é celebrado novamente: ali está Jesus Cristo, agora ressuscitado e glorioso,
presidindo cada assembleia que celebra sua fé.
5.2 Memorial da Ceia
A eucaristia é “memorial”: “Fazei isto em memória (comemoração) de mim”. Este
conceito é fundamental na compreensão sacramental contemporânea. Permite-nos
compreender melhor o mistério da presença e atualização da obra salvífica de Cristo na
liturgia, e especialmente na eucaristia. Não é uma mera memória subjetiva individual,
mas uma ação ritual e eclesial que torna atual e presente a força libertadora das ações de
Jesus. A eucaristia é, portanto, o memorial do mistério pascal de Cristo: não só evoca ou
recorda, mas também traz, de algum modo, para o aqui e agora, a obra de salvação
realizada pela sua vida, morte e ressurreição. Essa obra torna-se presente e atual através
da ação litúrgica celebrada pela Igreja.
Os ritos e as palavras constituem a “matéria-prima” do mundo sacramental cristão
e, em particular, da eucaristia. Esses ritos, que são ações simbólicas realizadas pelos fiéis
em lugares e com objetos significativos, e acompanhados por palavras igualmente
significativas, faladas ou cantadas, são os elementos básicos de toda celebração litúrgica.
Na história da eucaristia, o âmbito significativo estendeu-se, para além dos ritos e das
palavras, ao prédio em que é celebrada, cujo centro visual e ritual é ocupado pelo altar,
acompanhado do ambão da Palavra, a outros lugares significativos dentro dele (pia
batismal, sacrário, sede, lugar de penitência, imagens), e para a vestimenta dos ministros.
Todos estes sinais são elementos que “falam”, comunicando um sentido que ultrapassa a
mera compreensão racional e envolve todo o ser daqueles que formam a assembleia que
celebra a sua fé. No “prédio-igreja” é realizada a “Ceia do Senhor”, que em sua forma
ritual evoca a ceia de Jesus com seus discípulos antes de sua paixão e morte. A mesa
(alimento) e a palavra (comunicação) também são os elementos centrais de toda ceia de
convívio.
A eucaristia é memorial da única ceia histórica que Jesus celebrou com seus
discípulos antes de padecer. Tanto a última ceia narrada pelos Evangelhos, como também
a paixão, morte e ressurreição de Jesus, ocorridas imediatamente depois, ocorreram
apenas uma vez na história (ephapax). O que foi dado temporalmente se deu uma vez por
todas, sacramentalmente, pela obra do Espírito Santo, pode ser realizado “em memória
sua” todas as vezes e em qualquer lugar que um grupo de cristãos queira celebrar sua fé,
“até que Ele venha” (1Cor 11,26), atualizando hic et nunc (aqui e agora) a salvação
ocorrida no mistério pascal. Assim, cada eucaristia na história participa,
sacramentalmente, na única ceia do passado temporal por obra do Espírito Santo. Cada
eucaristia é um memorial ou comemoração da última ceia.
5.3 Memorial do sacrifício
SC n. 47 afirma: “O nosso Salvador instituiu na última Ceia, na noite em que foi
entregue, o Sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo
decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz (…)”.
Assim como é um memorial da ceia, a eucaristia é também um memorial do único
sacrifício histórico de Cristo na cruz. Isso é comumente expresso simplesmente dizendo
que a eucaristia é sacrifício. Mas essa expressão pode suscitar interpretações equivocadas.
Tal como acontece com a ceia, quando se diz que a eucaristia é sacrifício, não se afirma
em sentido histórico, pois historicamente Jesus morreu uma só vez na cruz, mas em
sentido sacramental ou memorial: a eucaristia é o “sacramento do sacrifício (da cruz)”.
No entanto, isso não explica por que ou em que sentido a própria cruz, ou seja, a morte
histórica de Jesus Cristo crucificado, é um sacrifício. O livro bíblico que desenvolve essa
ideia é a carta aos Hebreus (Hb 7,26-27; 10,1-14), afirmando que Cristo é o único
sacerdote que oferece um único sacrifício (oferecendo-se na cruz), uma vez e para todos.
Ou seja, o sacrifício é feito por Jesus se oferecendo. Daí a expressão que ele é “sacerdote,
vítima e altar”. Fora da Bíblia, a Didaquê, escrita contemporânea aos últimos livros do
Novo Testamento, é a primeira escrita que fala da eucaristia como um “sacrifício”.
A eucaristia não é “sacrifício” no sentido usual da palavra, isto é, uma oferta feita a
Deus para atrair algum favor, expiar uma falta ou purificar-se. O Deus de Jesus Cristo
não precisa de sangue ou sacrifícios humanos – como a terrível tortura e morte na cruz –
para amar e favorecer seu povo. Jesus não se ofereceu como sacrifício nesse sentido. O
“cordeiro de Deus”, Jesus Cristo, que evoca aquele cordeiro sacrificado em cada Páscoa
judaica para ser comido em família, recordando a refeição rápida de cordeiro assado, pão
sem fermento e verduras amargas antes de partir para o êxodo, não pode ser entendido
como uma oferenda apresentado pelo ser humano como um sacrifício a Deus, para
apaziguá-lo ou obter favores.
Por outro lado, a crítica profética do Antigo Testamento já havia alertado que os
sacrifícios sangrentos (de animais sacrificados de maneiras diferentes) não agradam a
Deus se não implicam uma vida diária coerente com a adoração. “Eu quero misericórdia,
não sacrifícios”, diz Oseias 6,6, profetizando contra a adoração vazia. E Isaías diz: “Estou
farto de holocaustos de carneiros… e o sangue de touros e bodes não me agrada. (…)
Buscar o que é justo, dar seus direitos aos oprimidos, fazer justiça aos órfãos, defender a
causa da viúva ”(Is 1,11,17). Um sacrifício “espiritual”, isto é, oração crente e amor ao
próximo, agrada mais a Deus do que sacrifícios materiais de animais.
O que Jesus fez foi dar a sua vida por amor extremo, radical, pela humanidade,
coroando assim uma vida e um ministério de serviço humilde à humanidade, representado
no lava-pés que o Evangelho segundo João coloca no lugar da Ceia do Senhor. Jesus não
queria morrer da maneira que vislumbrava: daí a sua oração pungente no jardim do
Getsêmani. A sua entrega à vontade do Pai é consequência de uma missão entregue à
missão de dar vida, que com a sua morte teria a sua expressão máxima, a ressurreição dos
mortos. Só nesse sentido pode-se dizer que a morte de Cristo foi um sacrifício. Toda a
sua vida foi ser pão partido/corpo entregue e vinho/sangue derramado por seu próximo.
No sacrifício da cruz culmina uma atitude permanente de Jesus, que ele entendeu como
essencial na missão confiada pelo Pai: o despojo de si mesmo assumindo a condição de
escravo (Fl 2,6-8), servindo a humanidade até a entrega voluntária da própria vida.
O caráter sacrificial da eucaristia, sempre afirmado pela doutrina da Igreja Católica,
com extrema força depois que Lutero e a Reforma do século XVI o negaram, deve ser
entendido como uma participação memorial na entrega voluntária e extrema de sua vida,
aceita por Jesus Cristo como consequência da sua missão no mundo. Ao mesmo tempo,
e daí o verdadeiro sentido da apresentação das ofertas na celebração da eucaristia, a
assembleia atualiza o sentido sacrificial da sua própria vida cristã, ou seja, oferece-se
como instrumento do amor de Deus pela humanidade, e está empenhada em perpetuar a
missão de Cristo de anunciar e fazer presente o Reino de Deus no mundo.
A eucaristia é sacrifício neste horizonte. Na medida em que é um dom recebido de
Deus, a eucaristia é memorial do seu amor extremo e, na medida em que é oferta a Deus,
é sacrifício: não para obter algo dele, mas para dar a própria vida por seu Reino, como
Jesus.
5.4 A presença real de Cristo
A Igreja sempre afirmou que, nas espécies “eucaristizadas” do pão e do vinho,
Cristo está presente. A base bíblica fundamental são as palavras de Jesus nas histórias da
instituição: “Este é o meu corpo … este é o meu sangue” (Mt 26,26-28). A fé na presença
de Cristo na celebração e nas espécies eucarísticas está presente desde o início da
formação da liturgia cristã.
Veio então, no desenvolvimento histórico da eucaristia, a veneração das espécies,
principalmente do pão, quando sobravam pedaços após a celebração. Eram conservados
com respeito para serem distribuídos aos enfermos ou impossibilitados de participar da
eucaristia e, posteriormente, passaram a ser objeto de devoção e mantidos em sacrários
ou tabernáculos feitos especialmente para esse fim. Finalmente, em paralelo com a perda
do sentido de comunhão eucarística, quando ninguém ou muito poucos já se
aproximavam para comungar, a adoração do pão consagrado desenvolveu-se mais
intensamente como uma liturgia própria e independente da celebração da eucaristia, e a
construção dos altares barrocos, que muitas vezes exaltavam a guarda para a adoração em
exuberantes retábulos que ocupavam toda a largura e altura da abside das igrejas.
A presença de Cristo na eucaristia é firme doutrina da Igreja Católica, que também
as grandes igrejas reformadas partilham, embora com nuances diferentes na sua
interpretação. O Concílio de Trento formulou dogmaticamente esta afirmação dizendo
que sob as espécies consagradas o próprio Cristo, vivo e glorioso, está presente de
maneira verdadeira, real e substancial, com seu Corpo, seu Sangue, sua alma e sua
divindade (DH n.1640, 1651) .
No entanto, a presença real de Cristo na eucaristia nunca foi fácil de entender
racionalmente; menos ainda para a mentalidade técnico-científica contemporânea.
Percebe-se com muita clareza, como acontece com todas as verdades cristãs
fundamentais, que é somente pela fé que pode ser aceita. A pergunta sobre como isso
pode acontecer sempre acompanhou os cristãos.
5.5 A transubstanciação
Foi a permanente dificuldade em compreender racionalmente a afirmação de que o
pão e o vinho consagrados são o corpo e o sangue de Cristo – quando o bom senso e a
evidência dos sentidos da visão, olfato, paladar e tato dizem que só há pão e vinho – que
levou, já no final da Idade Média, a complexas reflexões e árduas discussões sobre como
ocorre a mudança nas espécies. O resultado foi a teoria finalmente aceita pela Igreja
Católica: a doutrina da transubstanciação (DH n.1642).
Segundo ela, no relato da instituição, ocorre a transubstanciação do pão e do vinho
no Corpo e Sangue de Cristo. A doutrina explica que ocorre uma mudança de substância,
ou de essência, do pão e do vinho, que se tornam Corpo e Sangue de Cristo, mas sem
mudar seus acidentes de pão e vinho (aparência, peso, cor, sabor, cheiro e textura), de
modo que, embora mantenham as características do pão e do vinho, mudaram de essência,
sendo agora, verdadeiramente, a do Corpo e Sangue de Cristo.
A doutrina da transubstanciação continua a ser uma explicação plausível de como
se dá a transformação do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo, mas tem sido
complementada ou ampliada por outras contribuições na contemporaneidade, que
criticam sua concentração no que acontece com a espécie sem considerar um fator
essencial da eucaristia: seu significado e sua finalidade; isto é, eles afirmam que a doutrina
da transubstanciação considera as espécies estaticamente e postulam que a transformação
das espécies deve ser entendida de forma dinâmica e de acordo com o significado do
sacramento da eucaristia: alimento espiritual, força para a vida eclesial. Daí os nomes
dessas teorias: transignificação e transfinalização.
Especialmente interessante é a segunda, pois Jesus, na última ceia, não se limitou a
dizer: “Este é o meu Corpo, este é o meu Sangue”; em vez disso, ele fez os gestos e
pronunciou essas palavras com um propósito: para distribuir aquela comida e aquela
bebida entre os comensais e serem também consumidas por eles. Quer dizer: à afirmação
de que este pão é o seu Corpo e que o vinho é o seu Sangue, o seu consumo na ceia festiva
e fraterna pertence teológica e ritualmente, como uma única ação litúrgica. E, ainda mais,
este consumo visa alimentar a vida interior e a fidelidade ao seguimento de Cristo por
parte de quem o faz, não só individualmente, mas como Igreja, Corpo de Cristo. Não
basta considerar a transubstanciação em si, sem fazê-la juntamente com sua finalidade. É
por isso que não poderia haver uma eucaristia em que apenas o sacerdote celebrante
comungasse, visto que é celebrada para a comunhão eucarística, embora parte das
espécies sejam preservadas para serem distribuídas posteriormente ou para a adoração
eucarística.
5.6 A questão das espécies e a fórmula essencial
Pão de farinha de trigo feito na hora e vinho natural, de uva, não corrompido, são a
“matéria” do sacramento. Um pouco de água deve ser misturada ao vinho. O Código de
Direito Canônico especifica que “ segundo a antiga tradição da Igreja latina, o sacerdote
utilize o pão ázimo, onde quer que celebre” (CIC n.926 §1). O pão ázimo é o pão feito
sem fermento. Os ritos orientais geralmente usam pão fermentado para a eucaristia.
A comunhão, de acordo com a Introdução à última edição do Missal Romano
(2002), pode ser oferecida em muitas ocasiões nas duas espécies (com pão e vinho), mais
do que no passado. Mas a comunhão segue válida sob a espécie única do pão e, se
necessário, quando alguém não está em condições de engolir sólidos, sob a única espécie
do vinho. Mais que a validade, a verdade do sinal aconselha comungar habitualmente sob
as duas espécies, uma vez que isso foi feito pelo Senhor na última ceia e assim se fez
durante séculos em todas as comunidades cristãs.
Todos os sacramentos têm uma fórmula essencial, a cuja proclamação está ligada a
sua validade e que tradicionalmente é muito cuidada pela Igreja. Na eucaristia, esta
fórmula é considerada a Oração eucarística completa, desde o diálogo antes do Prefácio
à doxologia com o Amém final. O cerne da oração é constituído pelo relato da instituição,
que não corresponde literalmente a nenhum dos relatos bíblicos mencionados acima (Mt,
Mc, Lc e 1Cor), mas contém o essencial deles: “Peguem e comam todos dele, porque este
é o meu Corpo, que será entregue por vocês. / Tomem e bebam todos dele, porque este é
o cálice do meu Sangue, Sangue da nova e eterna aliança, que se derramará por vocês e
por muitos para remissão dos pecados. Façam isso em memória de mim.”
6 A eucaristia e a Igreja
São Paulo afirma que os cristãos são o corpo de Cristo e Cristo a sua cabeça (1Cor
12,13-30). Esta imagem tem uma expressão particularmente intensa na celebração da
eucaristia. Nela os fiéis se reúnem como “assembleia” e se identificam como “igreja” de
Cristo (igreja deriva do grego ecclesia, que originalmente significa assembleia). Cada vez
que celebram a eucaristia, os cristãos se constituem uma comunidade de discípulos que
continua a missão de Jesus na história. Celebram juntos em seu nome e “em sua
memória”, presididos pelo próprio Cristo, presente no ministro (SC n.7) e na própria
assembleia, que é o seu Corpo.
Toda a liturgia, e de modo muito especial a eucaristia, é “exercício do sacerdócio
de Cristo”, segundo a expressão de SC n.7. Aqui está a raiz teológica da participação ativa
que a reforma do Vaticano II promoveu na liturgia. Todo o Cristo, isto é, Cabeça e Corpo,
exerce seu sacerdócio na celebração da eucaristia. Portanto, não é o sacerdote ministro
sozinho ou isolado, mas ele juntamente com toda a assembleia, que pelo batismo se
constituiu em “povo sacerdotal” (1Pe 2,9), e cada homem ou mulher batizados, em
“sacerdotes, profetas e reis” (Ritual do Batismo, oração da unção com crisma), que os
torna protagonistas da liturgia pela sua participação ativa, plena, consciente e fecunda
(SC n.48). A eucaristia, cada vez que é celebrada, é uma expressão de toda a Igreja, um
sinal histórico da Igreja celeste.
A participação ativa dos fiéis na liturgia foi uma das grandes conquistas do Concílio
Vaticano II. Desde então, se quis que os cristãos não assistissem à eucaristia como
estranhos e mudos espectadores, mas, conscientes de que na eucaristia há um encontro
com Jesus Cristo vivo e, ao mesmo tempo, compreendendo-o tanto quanto possível, dela
participem pela intimidade da fé, pelos ritos e orações, serviços e ministérios, canções e
gestos simbólicos, na riqueza da celebração. A renovação dos ritos, dos textos e dos
cantos, e especialmente os esforços de inculturação têm facilitado este propósito, embora
hoje, como já foi referido, a eucaristia sofra outras ameaças das nossas sociedades
secularizadas.
A Igreja se alimenta da eucaristia: dela vive porque é o sacramento do caminho, da
peregrinação cristã pelas luzes e sombras da vida e da história, continuando a missão de
Jesus Cristo, para a plenitude do Reino. A relação entre a eucaristia e a Igreja enfatiza
particularmente a dimensão soteriológica (relativa à salvação) e a dimensão escatológica
(relativa ao fim dos tempos), que também estão intimamente ligadas entre si. Quando
celebra a eucaristia, a Igreja é uma Igreja que experimenta a salvação e se nutre para ser
libertadora e, ao mesmo tempo, participando antecipadamente na liturgia celeste (SC n.8),
é uma Igreja da esperança.
Isso não significa que a vida dos cristãos se reduza à eucaristia; significa antes que,
sendo a eucaristia o ápice e a fonte (LG n.11) da vida da Igreja, é o momento em que toda
a nossa vida é oferecida a Deus e dele recebe força para continuar o seu caminho. A
eucaristia supõe a vida e é para a vida, assim como supõe a fé e deve fortalecê-la. Todos
os sacramentos alimentam a vida cristã, mas a eucaristia o faz de uma forma única, como
encontro do crente no centro da sua fé: Jesus Cristo morreu e ressuscitou para que todos
tenham “vida em abundância” (Jo 10,10).
A participação ativa na celebração da eucaristia é um sinal de maturidade dos
cristãos. Responder os diálogos com o ministro que preside, cantar no coro, saudar os
vizinhos no rito da paz e, sobretudo, comungar são parte integrante de uma boa celebração
da eucaristia. São um sinal visível de que não é uma simples festa humana, mas um
encontro pessoal e eclesial com Cristo ressuscitado e vivo na humanidade.
7 A celebração, em síntese
A liturgia da eucaristia desenvolve-se segundo uma estrutura fundamental que se
formou e consolidou desde muito cedo e que se conserva até hoje. Compreende dois
grandes momentos que formam uma unidade básica, “um único ato de culto” (SC n.56):
a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A elas estão associados os dois principais
centros significativos do espaço litúrgico: o altar e o ambão, que devem ser sempre
únicos. É assim que falamos das “duas mesas”: a da palavra e a da eucaristia. Essas duas
grandes partes são enquadradas nos ritos iniciais e nos ritos finais. Ao primeiro pertencem
o ato penitencial e o canto de Glória; ao segundo, a bênção final que envia a assembleia
para vivenciar o que foi celebrado.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II enfatizou de forma marcante a
importância da Sagrada Escritura na eucaristia e em toda a liturgia da Igreja. Para isso
enriqueceu o ciclo anual anterior, que se repetia a cada ano e oferecia muito menos
passagens bíblicas e muita repetição de algumas delas, planejando um ciclo de três anos
para os domingos e dois para as missas da semana (feriais), com uma riqueza muito maior
de passagens bíblicas cujo critério de seleção e distribuição foi que quem celebra a
eucaristia todos os domingos, nos três anos, tenha uma visão global de toda a Sagrada
Escritura. Os ciclos dominicais (ou “anos”) eram chamados de A, B e C, e cada um deles
recebia a leitura de um Evangelho: Mateus para o ciclo A, Marcos e João para o ciclo B
e Lucas para o C. Para a eucaristia dominical, estabeleceram-se ainda leituras do Antigo
e do Novo Testamento.
Para as eucaristias feriais foi estabelecido um ciclo de dois anos, denominado I (anos
ímpares) e II (anos pares), em que o Evangelho se repete todos os anos, mas a primeira
leitura é diferente em anos ímpares e pares. Tanto em quantidade como sobretudo em
qualidade (critérios de seleção dos textos), a Bíblia tem, desde a reforma litúrgica do
Concílio Vaticano II, uma presença digna do seu estatuto de “mesa da Palavra”, parte
essencial da eucaristia e não mera preparação para a comunhão. Em relação à riqueza
bíblica, que deve ser lida e acolhida como palavra viva, isto é, como iluminação da
realidade da assembleia celebrante, a reforma pede aos sacerdotes que façam uma homilia
todos os domingos e, com sorte, em cada eucaristia, e que seja baseada na proclamação
da Palavra de Deus.
A celebração da eucaristia não foi e não pode ser estática. Mantendo o cerne
testemunhado pela Bíblia, especialmente todo o Novo Testamento e a primeira práxis
cristã, carrega o destino de tudo o que é humano: se desenvolve, se adapta, muda ao longo
da história. A esclerose de suas normas ou a inflexibilidade para adaptá-las às culturas e
aos grupos humanos só a alienou do Povo de Deus, que precisa celebrar sua fé e sempre
encontrar uma maneira de fazê-lo. Que esta forma mantenha sempre a eucaristia em
primeiro lugar, é tarefa permanente da Igreja ser fiel a Jesus, que nos pediu
que fizéssemos isso “em sua memória”.
Guillermo Rosas, SSCC. Pontificia Universidad Católica de Chile. Texto original
espanhol. Postado em 30 de dezembro de 2020.
Referências
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NOCKE, F.-J. Doctrina especial de los sacramentos. In: SCHNEIDER,
T. Manual de teología dogmática. Barcelona: Herder, 1996.

Reconciliação
Introdução
A abordagem sobre o sacramento da reconciliação dar-se-á a partir dos seguintes
pontos: 1) A reconciliação como condição para a perfeita integração do ser humano
consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o cosmos;
2) A experiência da reconciliação na Sagrada Escritura; 3) A experiência da reconciliação
na prática da Igreja (abordagem histórico-teológica); 4) A experiência da reconciliação
proposta no novo ritual da penitência e seus desafios pastorais.

1 Reconciliação: condição para a perfeita integração do ser humano consigo


mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o cosmos
Dentre as questões existenciais postas pelo ser humano, ao longo da história, talvez
a que mais o inquiete seja a da busca pela paz. Dentre as múltiplas formas de
comportamento, tanto em nível pessoal como social, há aquelas que geram sérias rupturas
que extrapolam o âmbito das relações humanas, a ponto de pôr em risco até a viabilidade
da vida no planeta. Parece que as divisões e tensões no mundo tendem a se desenvolver
em círculos concêntricos, ou seja, desde simples conflitos interpessoais e familiares até
grandes impasses gerados por interesses políticos de povos e nações. O papa Francisco,
em sua Constituição Apostólica Veritatis Gaudium, enfoca, com lucidez, aspectos dessa
questão:
Tanto mais que, hoje, não vivemos apenas uma época de mudanças, mas uma verdadeira
e própria mudança de época, caracterizada por uma “crise antropológica” e
“socioambiental” global, em que verificamos de dia para dia cada vez mais “sintomas
dum ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação, que
se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo
financeiras”. Em última análise, trata-se de “mudar o modelo de desenvolvimento global”
e de “redefinir o progresso” (VG n.3).
Essa mudança e redefinição de modelo comportamental a que o Papa se refere pode
ser vinculada à palavra “reconciliação”, tão cara à tradição bíblico-litúrgica. É sabido que
o ser humano, na sua essência, aspira por um mundo melhor, justo, fraterno, reconciliado.
A concretização de tal aspiração exige da pessoa de boa vontade a decisão de colocar-se
num contínuo processo de metanoia, de mudança radical de seu pensar, agir e sentir. Isso
porque o ser humano “não é nem um ‘não’, nem um ‘já’, mas um ‘ainda não’, um ser
inacabado chamado a se aperfeiçoar, que deve ser criativo e deve se sentir chamado a
lutar e avançar” (BOROBIO, 2009, p.298).
A reconciliação é condição sine qua non para que se estabeleça a perfeita integração
do ser humano consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade
e com o próprio cosmos. Esse processo se dá, em primeira instância, no reconhecimento
das limitações e fraquezas que induzem o ser humano a práticas ilícitas e injustas.
É falsa, portanto, a reconciliação daquele que fecha os olhos para a realidade e faz como
se não existisse; ou a do que começa desculpando-se a si mesmo de modo total; ou a de
quem pretende se reconciliar aniquilando o contrário; ou a de quem renuncia a todo
esforço de reconciliação dizendo a si mesmo: “Não há nada a fazer”. Esses caminhos são
falsos porque negam, em princípio, a condição básica para a reconciliação: aceitar os dois
polos ou realidades que devem ser reconciliados. (BOROBIO, 2009, p.297)
A reconciliação é, portanto, fruto de contínuo processo de conversão que perpassa
todo o agir humano, desde a simples tarefa de cumprir o dever cotidiano até ações de
maior vulto como: solidariedade, correção fraterna, perdão mútuo, compromisso com a
justiça, engajamento na defesa da vida no planeta etc. Portanto, essa compreensão de
“conversão” e a consequente “reconciliação” suplantarão a mentalidade de que o perdão
de Deus se limita tão somente ao momento celebrativo do sacramento da reconciliação.
2 A experiência da reconciliação na Sagrada Escritura
A história de Israel é marcada pela intervenção constante daquele que é “paciente e
misericordioso”, que não leva em conta as faltas e pecados desse povo (Sl 130,3). Esse
agir salvífico do Eterno perpassa toda a Sagrada Escritura. Embora admitindo haver
outras possibilidades de enfoque do tema em questão, para o escopo deste texto, optamos
por tecer alguns apontamentos sobre a experiência da reconciliação a partir da tríade:
pecado – misericórdia – conversão (cf. NOCENT, 1989, p.149-154).
2.1 Pecado – misericórdia – conversão, no Antigo Testamento
a) O pecado remonta às origens, ou seja, a partir do momento em que o ser humano
ambiciona tomar o lugar do próprio Deus. Por causa desse pecado das origens, fomos
gerados na culpa (Sl 51,7). O pecado está relacionado com a Aliança. É, pois, apostasia
da fidelidade a Deus. Há diversos tipos de pecado, sendo o mais comum e mais grave o
da idolatria. Em virtude dessas “infidelidades”, o povo de Israel é submetido a “castigos”
e experimenta a alegria do “retorno” a Deus. Embora sendo de responsabilidade de todos,
inclusive de reis, o pecado é também responsabilidade individual. O pecado é escravidão
e, por isso mesmo, atrai o castigo de Deus. Esse castigo é, muitas vezes, interpretado
como um tipo de remédio dado por Deus para corrigir seus filhos e filhas do pecado.
b) A misericórdia de Deus é largamente cantada nos textos sagrados, pois ele é,
desde sempre, misericórdia (Dt 4,31). No livro dos salmos, por exemplo, encontramos
eloquentes vozes que cantam esse agir de Deus: “Ele perdoa todas as tuas iniquidades e
cura todas as tuas doenças” (Sl 103,3); “Perdoaste a maldade do teu povo, encobriste
todos os seus pecados” (Sl 85,3); “Não age conosco segundo nossos pecados, e não nos
retribui segundo nossas iniquidades” (Sl 103,10); “Dai graças ao Senhor, porque ele é
bom: sua misericórdia é para sempre” (Sl 136,1).
c) A conversão é experimentada como dom do próprio Deus. Ele, em pessoa, ou
através dos profetas, convida seu povo à conversão: “Filhos dos homens, até quando tereis
o coração pesado? Para que amais a vaidade e procurais a mentira?” (Sl 4,3); “Não
endureçais os vossos corações como em Meriba, como no dia de Massa, no deserto” (Sl
95,8); “Cada qual volte atrás do seu mau caminho. Melhorai vossa conduta e vossas
obras” (Jr 18,11); “Vinde, voltemos ao Senhor” (Os 6,1). Enfim, o salmo 51 sintetiza, de
forma eloquente, a teologia da culpa, da conversão e da misericórdia de Deus no Primeiro
Testamento.
2.2 Pecado – misericórdia – conversão, no Novo Testamento
a) O pecado, bem como todas as suas implicações, deve ser abordado à luz do
mistério de Cristo. Conforme o apóstolo Paulo, o pecado entrou no mundo por um só
homem (Rm 5,12) e por um só homem a morte será vencida (1Cor 15,21). Portanto, o
pecado advém do início do mundo e todos os seres humanos estão implicados nele: “Se
dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em
nós” (1Jo 1,8); “Quem dentre vós não tiver pecado atire a primeira pedra!” (Jo 8,7).
Em geral, nos escritos neotestamentários, o pecado consiste na recusa da Palavra
(Mt 13,22), na negação do Verbo e da luz (Jo 3,19), no não reconhecimento da própria
cegueira (Jo 9,41), na recusa de Cristo (Jo 1,11), na prática da iniquidade (1Jo 2,14-17).
Enfim, do “pecado” brotam os pecados, como bem aponta o apóstolo Paulo em uma de
suas listas: “libertinos, idólatras, adúlteros, sodomitas, ladrões, gananciosos, beberrões,
maldizentes, estelionatários (…)” (1Cor 6,9-10).
b) A misericórdia caracteriza o Deus dos cristãos. Os fiéis são o objeto dessa
misericórdia divina: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia” (Mt 5,7). Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. “Quando se
completou o tempo previsto, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à
Lei, para resgatar os que eram sujeitos à Lei, e todos recebermos a dignidade de filhos”
(Gl 4,4-5). O evangelista Lucas é, certamente, quem melhor reúne os diversos
comportamentos de Jesus que manifestam a misericórdia. A parábola do pai e dos dois
filhos é paradigmática: o pai, tomado de compaixão, vai às pressas ao encontro do filho
que retorna e, depois de tê-lo acolhido afetuosamente (com abraços e beijos), de ter
ouvido a sua “confissão”, o conduz para o banquete (Lc 15,11-32). Aliás, a atitude de
Jesus de se mostrar amigo dos pecadores, marginalizados, doentes, atribulados – e que
foi motivo de escândalo para fariseus e até alguns de seus discípulos! – decorre de sua
missão primordial, que é revelar a misericórdia do Pai.
Enfim, misericórdia
é condição da nossa salvação; é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade;
é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro; é a lei fundamental que
mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que se encontra
no caminho da vida; é o caminho que une Deus e o homem” (MV n.2).
c) A conversão é meio eficaz para a obtenção da misericórdia e se processa sob duas
vertentes: o desejo humano de uma mudança radical de vida (metanoia) e o auxílio divino
para sua plena realização. No entanto, vale a ressalva de que a iniciativa é sempre de
Deus, como bem expressa o apóstolo Paulo, Cristo foi enviado não quando estávamos
decididos a nos converter, mas quando estávamos em plena situação de pecado (cf. Rm
5,6s).
A escuta da Palavra de Deus e a consequente adesão a ela nos reposicionam na trilha
do seguimento de Cristo, pois ele nos perdoa o pecado, e nos torna criaturas novas, graças
ao mistério de sua morte e ressurreição. Em outras palavras, trata-se de levar a efeito, em
nossas vidas, a dinâmica do mistério pascal de Cristo.
3 A experiência da reconciliação na prática da Igreja
A Igreja, ao longo de sua história, conheceu modalidades diversas quanto à
compreensão teológica e à prática celebrativa da reconciliação. Para o escopo deste texto,
a abordagem histórico-teológica dar-se-á a partir dos seguintes períodos: a) séculos I-VI
(mediante penitência canônica); b) séculos VII-XI (reconciliação mediante penitência
tarifada / privada); c) séculos XI-XX (reconciliação mediante penitência de confissão).
3.1 Séculos I-VI: reconciliação mediante penitência canônica
Nos dois primeiros séculos da era cristã, há poucos registros alusivos à prática
penitencial dos cristãos. A título de exemplo, citamos a Didaqué, a Carta de Barnabé, a
Primeira Carta de Clemente de Roma aos Coríntios e O Pastor de Hermas (cf. NOCENT,
1989, p.165-169).
a) A Didaqué (séc. I), na esteira dos escritos neotestamentários, elenca alguns
pecados graves, correspondentes aos mandamentos (cap. 2). Fala, igualmente, da
“confissão” dos pecados à assembleia (cap. 4) e impõe condições (confissão dos pecados)
para a participação plena na mesa do Senhor (cap. 14). Vale o alerta de que tal “confissão”
seja, possivelmente, uma espécie de reconhecimento público dos próprios pecados, tipo
“ato penitencial”, de nossas celebrações eucarísticas.
b) A Primeira carta de Clemente de Roma aos Coríntios (séc. I) traz algo mais
concreto: “Vós que inspirastes a revolta, submetei-vos aos presbíteros e aceitai o castigo
como vossa penitência, dobrando os joelhos do vosso coração” (57,1).
c) A Carta de Barnabé (séc. II), além de listar uma série de vícios a serem evitados,
traz advertências de cunho escatológico: “O Senhor está perto, com o seu salário” (cap.
19).
d) O Pastor de Hermas (séc. II) aborda a questão penitencial sob os aspectos da
perspectiva escatológica, da conversão e da única possibilidade de receber o perdão da
Igreja.
A partir do século III, verifica-se com mais clareza a prática penitencial. Estabelece-
se a “penitência “canônica” ou “pública”, concedida uma única vez na vida para os
pecados mais graves. Trata-se de uma disciplina rigorosa de expiação, que terminava com
a reconciliação eclesial, através do ministério do bispo. Constava, basicamente, de três
momentos bem distintos: a) a confissão secreta do pecado, ao bispo. Este admitia a pessoa
ao grupo dos “penitentes”; b) o tempo necessário para a realização das obras de
penitência, ou seja: jejuns prolongados, restrições alimentares, uso de vestes penitenciais
e de cilício, oração de joelhos etc. Ao penitente cabia, ainda, a tarefa de pedir aos
membros da comunidade de fé que orassem em seu favor; c) a reconciliação ou a paz.
Trata-se do momento celebrativo em que o bispo e os presbíteros presentes impunham as
mãos sobre os penitentes, concedendo-lhes a remissão dos pecados e sua readmissão na
assembleia eclesial.
Enfim, ninguém duvida do valor pedagógico dessa prática antiga de penitência,
respaldada pela consciência de sua estreita vinculação com o sacramento do batismo. Este
é, na verdade, a “penitência primeira”. O sacramento da reconciliação, por sua vez, era
tido como um segundo batismo. No entanto, o rigor extremo e o fato de ser concedido
somente uma vez na vida e de ter consequências para toda a vida contribuíram para que
as pessoas adiassem, o quanto possível, o acesso ao sacramento da reconciliação. Disso
decorreram efeitos colaterais como: o afastamento progressivo da comunhão eucarística
e a transformação da reconciliação em sacramento de idosos e moribundos.
3.2 Séculos VII-XI: reconciliação mediante penitência tarifada / privada
O século VII é tido como um divisor de águas em matéria de disciplina penitencial.
Dá-se uma ruptura com a antiga prática, ou seja: a reconciliação pode realizar-se
privadamente e ser repetida. Essa prática disciplinar, utilizada por monges irlandeses e
escoceses, fora também estendida às comunidades paroquiais. O fato de a maioria dos
bispos serem também monges contribuiu para a expansão dessa “novidade”. Daí surgiram
os célebres “livros penitenciais”. Nesses livros se encontram tabelas e listas de pecados e
a pena correspondente (tarifa) a ser imposta ao penitente, por cada pecado cometido. O
prazo de duração do cumprimento dessas penas variava, conforme a gravidade do pecado,
podendo estender-se em dias, semanas, meses, anos de jejum etc. Em contrapartida,
continuava em vigor o princípio: “Para pecado grave e oculto, penitência secreta; para
pecado grave e público, penitência pública”.
Na prática, a penitência tarifada provocou impasses, tipo: como solucionar casos
de, numa única confissão, a pessoa se ver obrigada a reparar muitos anos de penitência?
Diante disso, criaram-se as chamadas comutações ou resgates da ação penitencial. Tais
comutações podiam ser feitas conforme cálculos previstos, por exemplo: a) ação
penitencial de longa duração: podia ser substituída por outra mais breve, porém mais dura;
b) ação penitencial trocada por dinheiro: a quantia variava conforme a pena; c) ação
penitencial substituída pela missa: encomendava-se certo número de missas como
pagamento da penitência imposta; d) ação penitencial resgatada por meio de outra pessoa:
valia-se do preceito evangélico de uns suportarem as cargas dos outros (cf. BAÑADOS,
2005, p.217).
Embora o acesso reiterado ao sacramento tenha sido um dado positivo na história
da Penitência, no que tange à prática pastoral, houve limites consideráveis, por exemplo,
à “mercantilização” das penas. Isso, além de acentuar o caráter individual e mágico do
sacramento, reforçou o binômio confissão-absolvição, relativizando a penitência como
tal.
3.3 Séculos XI-XX: reconciliação mediante penitência de confissão
Mesmo ainda existindo a penitência pública reservada a pecados públicos, tidos
como escandalosos, a confissão auricular ocupou, gradativamente, seu espaço, a ponto de
tornar-se a única forma de celebrar o sacramento. Desencadeia-se um tipo de “confissão
devocional”, caracterizada pela acusação dos pecados (da parte do penitente) e a
absolvição imediata (da parte do ministro ordenado). Essa “confissão” foi, aos poucos,
tornando-se um condicionante para a comunhão eucarística, mesmo que uma vez ao ano,
como propôs o Concílio de Latrão (1215). Enfim, a reconciliação que, nos primeiros
séculos, era concedida uma vez na vida – pois este sacramento era tido como um segundo
batismo, ou “batismo laborioso” –, agora torna-se obrigatória uma vez ao ano. Essa
prática se estendeu até o Concílio de Trento (séc. XVI).
Na época do Concílio de Trento, o problema teológico e disciplinar do sacramento da
penitência era complexo não só por causa da Reforma e da sua atitude para com o
sacramento, mas também pela complexidade do problema, da disciplina do sacramento e
da própria Igreja. Com efeito, do ponto de vista da disciplina do sacramento verificavam-
se várias divergências nas suas aplicações (NOCENT, 1989, p.204).
Limitando-se a dar uma resposta de cunho dogmático aos ataques dos reformadores,
o Concílio de Trento tratou o sacramento da penitência em si mesmo, e quando o
considera em relação à eucaristia, o faz sob o aspecto da dignidade necessária para
comungar e também para salientar que a eucaristia não pode substituir a absolvição no
caso de pecado grave. Da doutrina sobre o sacramento da penitência ensinada por Trento,
vale destacar: a) a afirmação sobre a instituição do sacramento por Cristo e sua
necessidade por direito divino, para a salvação aos que caíram depois do batismo; b) o
ensinamento de que a confissão só se faz ao sacerdote e é secreta; c) o apelo para a
necessidade de se confessar todos os pecados, inclusive os veniais, ao menos uma vez por
ano.
Trento enfatiza a estreita relação entre indivíduo e confessor: da parte do indivíduo
é exigida uma atitude de profunda contrição, seguida da declaração de todos os pecados
(confissão) e a satisfação das penas; ao confessor, representante de Deus e juiz, caberá a
absolvição dos pecados do penitente.
Vale destacar, ainda, o ensinamento de Trento sobre a diferença entre o sacramento
da penitência e o sacramento do batismo:
É evidente que este sacramento é diferente do batismo por muitas razões. Pois além de
serem muitíssimo diferentes a matéria e a forma que perfazem a essência do sacramento,
consta também que o ministro do batismo não deve ser juiz, porque a Igreja não exerce
jurisdição sobre a pessoa que não tenha primeiro entrado pela porta do batismo. (…) O
mesmo não se dá com os que são da família da fé, os que o Cristo Senhor, com o banho
do batismo, fez uma vez por todas membros de seu corpo. Com efeito, se estes se
contaminarem depois de algum delito, devem, segundo a sua vontade, purificar-se, não
por um novo batismo, o que de nenhum modo é lícito na Igreja católica, mas
comparecendo como réus diante deste tribunal da penitência, a fim de poderem, pela
sentença do sacerdote, libertar-se, não apenas uma vez, mas todas as vezes que,
arrependidos de seus pecados, recorrerem a ele (DENZINGER-HÜNERMANN, 2007,
n.1671).
Nos séculos seguintes (pós-tridentinos), a teologia e a prática pastoral do
sacramento da penitência percorrem a trilha traçada por Trento e não apresentam
mudanças substanciais, apesar de acaloradas discussões em torno da intensidade da
“contrição”. A “satisfação” imposta após a absolvição, além de levar o penitente à
aceitação da pena (cura das sequelas do pecado cometido), torna-o mais cauteloso e
vigilante no futuro. Também sobressaem nesse período reiterados apelos à “confissão
individual”, quase sempre tida como condição para se receber dignamente a eucaristia. A
confissão frequente de todos os pecados (inclusive os veniais) torna-se obsessão da parte
do clero.
4 A experiência da reconciliação proposta no Ritual da Penitência de 1973 e
seus desafios pastorais
Esta última seção se ocupará, em primeiro lugar, do estudo do Ritual da Penitência
de 1973, buscando destacar nele sua teologia. Em seguida, serão apresentadas três pistas
de ação, tendo em vista uma consciente, ativa e frutuosa participação dos fiéis na
celebração da reconciliação.
4.1 O Ritual da Penitência de 1973
Atendendo ao pedido expresso do Concílio Vaticano de que “o rito e as fórmulas da
Penitência sejam revistos de tal forma que exprimam mais claramente a natureza e o efeito
deste sacramento” (SC n.72), a Sagrada Congregação para o Culto Divino publicou, em
Roma, no dia 2 de dezembro de 1973, o novo Ritual da Penitência (RP).
Esse ritual é composto de uma “Introdução geral”, de um “Rito para a reconciliação
individual dos penitentes”, de um “Rito para a reconciliação de vários penitentes com
confissão e absolvição individuais”, de um “Rito para a reconciliação de vários penitentes
com confissão e absolvição geral”; de um amplo “Lecionário”; e de três “Apêndices”, a
saber: a) absolvição de censuras e de dispensa de irregularidade; b) exemplos de
celebrações penitenciais: Quaresma, Advento, Celebrações ordinárias para crianças, para
jovens, para enfermos; c) esquema para exame de consciência.
4.1.1 Destaques teológico-litúrgicos
A “Introdução geral” do RP, afinada com a Sacrosanctum Concilium, inicia-se com
a abordagem do ministério da reconciliação no âmbito da história da Salvação: o Pai,
desde sempre, manifestou sua misericórdia e reconciliou o mundo consigo. Esse plano
divino atingiu seu ápice no mistério pascal de Cristo. Desde então, a Igreja jamais deixou
de convocar homens e mulheres à conversão, mediante a celebração do sacramento da
reconciliação. A este sacramento associa-se o batismo, “pelo qual o velho homem é
crucificado com Cristo para que, destruído o corpo do pecado, já não sirvamos o pecado,
mas, ressuscitados com Cristo, vivamos para Deus”, e a eucaristia, que edifica a Igreja e
faz de seus membros “um só corpo e um só espírito” (RP n.1-2).
A segunda seção discorre sobre a reconciliação dos penitentes na vida da Igreja:
Cristo amou a Igreja e por ela se entregou para santificá-la, unindo-a a si como esposa.
Essa, por sua vez, nem sempre lhe é fiel e, por isso mesmo, necessita de contínua
purificação e renovação. No sacramento da reconciliação, “os fiéis obtêm da misericórdia
divina o perdão da ofensa feita a Deus e, ao mesmo tempo, são reconciliados com a Igreja,
que eles feriram pelo pecado e que colabora para sua conversão com a caridade, o
exemplo e as orações” (LG n.11).
Ainda nesta seção, vêm apresentadas as partes constitutivas do sacramento da
reconciliação, a saber:
a) A contrição. Da contrição interior depende a autenticidade da penitência. A
conversão deve atingir intimamente o ser humano para iluminá-lo cada dia, com maior
intensidade, e configurá-lo cada vez mais ao Cristo.
b) A confissão exige do penitente a vontade de abrir seu coração ao ministro de
Deus; e da parte deste, um julgamento espiritual pelo qual, agindo em nome de Cristo,
pronuncia, em virtude do poder das chaves, a sentença da remissão ou da retenção dos
pecados.
c) A satisfação das culpas é expressão concreta da verdadeira conversão, ou seja,
da reparação do dano causado. É necessário, por conseguinte, que a satisfação imposta
seja realmente remédio para o pecado e, de algum modo, renovação de vida. Assim, o
penitente, esquecendo o que passou (Fl 3,13), integra-se de novo no mistério da salvação
lançando-se para frente.
d) A absolvição. Pela confissão sacramental, Deus concede perdão mediante o sinal
da absolvição, e assim realiza o sacramento da reconciliação. Por este sacramento, o Pai
acolhe o seu filho que regressa; Cristo coloca sobre os ombros a ovelha perdida,
reconduzindo-a ao redil; e o Espírito Santo santifica de novo seu templo ou passa a habitá-
lo mais plenamente. Isso se manifesta plenamente na participação frequente ou mais
fervorosa na mesa do Senhor, havendo grande júbilo na Igreja de Deus pela volta do filho
distante (cf. RP n.6).
Vale observar que a satisfação aparece antes da absolvição, ou seja, a ordem ideal
da estrutura do sacramento fora restabelecida.
Quanto à reiteração do sacramento, dentre outras recomendações, o RP esclarece
que
não se trata de mera repetição ritual, nem de uma espécie de exercício psicológico, mas
de um esforço assíduo para aperfeiçoar a graça do batismo, a fim de que, trazendo em
nosso corpo a mortificação de Cristo, a vida de Jesus se manifeste cada vez mais em nós.
(…) A celebração deste sacramento é sempre uma ação pela qual a Igreja proclama sua
fé, dá graças a Deus pela liberdade com que Cristo nos libertou, e oferece sua vida como
sacrifício espiritual para o louvor da glória de Deus, enquanto se apressa ao encontro de
Cristo (RP n.7).
A terceira seção versa sobre as funções e ministérios na reconciliação dos
penitentes. Além de destacar o papel de toda a comunidade na celebração da
reconciliação, recorda que a Igreja está envolvida e age na reconciliação; salienta a
responsabilidade do bispo e dos presbíteros (que agem em comunhão com o bispo) na
remissão dos pecados; lembra que “o fiel, enquanto experimenta e proclama em sua vida
a misericórdia de Deus, celebra junto com o ministro ordenado a liturgia de uma Igreja
que continuamente se renova” (RP n.8-11).
A quarta seção, por sua vez, descreve as três modalidades de celebração do
sacramento da reconciliação, buscando mostrar sua importância na vida dos fiéis; ressalta
a teologia da fórmula da absolvição, nestes termos:
A fórmula da absolvição mostra que a reconciliação do penitente procede da misericórdia
do Pai; indica o nexo entre a reconciliação do pecador e o mistério pascal; exalta a ação
do Espírito Santo no perdão dos pecados, e finalmente evidencia o aspecto eclesial do
sacramento, uma vez que a reconciliação com Deus é solicitada e concedida pelo
ministério da Igreja (RP n.19).
A quinta seção fala das “Celebrações penitenciais”. Quanto à natureza e estrutura,
essas celebrações são
reuniões do povo de Deus para ouvir sua Palavra, que convida à conversão e à renovação
de vida, proclamando também nossa libertação do pecado pela morte e ressurreição de
Cristo. Sua estrutura é a mesma das celebrações da Palavra, proposta no “Rito para
reconciliação de vários penitentes”. (RP n.36)
Quanto à utilidade e importância, as “Celebrações penitenciais” fomentam o espírito
de penitência da comunidade cristã; ajudam os fiéis a prepararem a confissão que cada
um poderá fazer oportunamente; educam as crianças a adquirirem, gradualmente, a
consciência do pecado na vida humana e da libertação do pecado por Cristo; ajudam os
catecúmenos em sua conversão. Além disso, onde não houver nenhum ministro ordenado
disponível para conceder a absolvição sacramental, as celebrações penitenciais são
utilíssimas por despertar nos fiéis uma contrição perfeita, nascida da caridade, pela qual,
com o desejo de receber mais tarde o sacramento da reconciliação, possam conseguir a
graça de Deus (cf. RP n.37).
A última seção da “Introdução geral” do RP discorre sobre as “Adaptações do Rito
às diversas regiões e circunstâncias”. Tais adaptações poderão ser feitas pelas
conferências episcopais (RP n.38), pelo bispo diocesano (RP n.39) e pelo ministro (RP
n.40).
4.1.2 Avanços e limites
Para tecer algum juízo sobre o RP de 1973, é necessário levar em conta que este
ritual é fruto de um laborioso trabalho articulado pelo Consilium. A. Bugnini, em sua
antológica obra A reforma litúrgica, assim se expressa: “A revisão dos ritos da Penitência
passou por um caminho bastante longo e difícil. Foram necessários sete anos para pôr em
prática as poucas linhas que a Constituição litúrgica dedica a esse assunto” (2018, p.551).
Grandes questões foram discutidas, algumas delas, de forma “acalorada”, já na
primeira etapa dos trabalhos (1966-1969), como o aspecto social e comunitário do pecado
e da reconciliação, a questão de uma possível celebração comunitária da reconciliação,
com absolvição geral, sem prévia confissão individual, uma nova fórmula sacramental de
absolvição e a possibilidade de fórmulas sacramentais facultativas etc.
Foi a partir desse contexto que se elaborou o novo RP. As três modalidades de
celebração da reconciliação, propostas nesse ritual, constituem um bom exemplo disso.
O célebre liturgista A. Nocent, numa análise crítica do RP, reconhece como positivas
essas modalidades, sob três aspectos: a) a tentativa de restabelecer a unidade entre Palavra
e sacramento; b) a intervenção, ao menos parcial, da comunidade eclesial; c) a
apresentação de formulário de absolvição dogmaticamente mais rico, e que corrige o
aspecto jurídico. Por outro lado, lamenta que nenhuma das três modalidades é realmente
satisfatória e adequada às circunstâncias atuais, nestes termos:
O primeiro ritual, aquele relativo ao penitente que se encontra com o confessor, não se
realiza facilmente: supõe contato humano e espiritual para diálogo, une ao sacramento
breve liturgia da Palavra, mas falta-lhe a visibilidade da comunidade e sobretudo
dificilmente se pode realizar em paróquia ou grupo de pessoas que se apresentam juntas;
e isso impossibilita a prática prevista pelo ritual.
O segundo ritual acentua a preparação comunitária para a confissão, coisa que não tem
nenhuma base na tradição, mas que de fato constitui enriquecimento. Mas no momento
em que o ritual sacramental deveria acentuar o aspecto comunitário do sacramento, a
absolvição, sem a licença do Ordinário, permanece individual. É comunitária só a
preparação para o sacramento, enquanto o sacramento mesmo continua visivelmente
individual.
O terceiro ritual, a absolvição sem confissão prévia, não encontra nenhum apoio na
tradição, pelo fato de que a antiguidade considerava a absolvição coroamento da
conversão. Aqui, ao contrário, a absolvição é posta em plano jurídico, sem nenhum
controle sobre o modo como o penitente tenciona converter-se. Contudo, é forçoso
reconhecê-lo, vivemos em situações novas, que a Igreja antiga não conheceu (NOCENT,
1989, p. 215-216).
4.2 Celebrar a reconciliação hoje: pistas de ação
Celebrar a reconciliação nas comunidades, hoje, continua sendo um grande desafio.
Mesmo assim, ousamos apontar três exigências que julgamos fundamentais no
incremento da pastoral da reconciliação. Ei-las:
a) Promover uma formação teológico-litúrgica sobre a sacramento da
reconciliação para o clero e o povo, em geral. Uma vez que esse sacramento seja “um
alegre encontro do ser humano com Deus, pela mediação da Igreja”, tal formação poderá
ser realizada, a partir do tripé:
– Deus: aquele que promove e torna possível a plena reconciliação;
– A Igreja: aquela que colabora e torna visível o encontro de reconciliação;
– O penitente: a pessoa que aceita e participa ativamente na reconciliação
(BOROBIO, 2009, p.324).
b) Promover as celebrações penitenciais. Essas celebrações, previstas no RP, ainda
carecem de especial atenção da parte dos párocos e lideranças das comunidades eclesiais.
A liturgista I. Buyst nos dá boas razões para o incremento de tais celebrações (cf. BUYST,
2008, p.54-66):
– As celebrações penitenciais poderão facilitar a passagem de uma concepção
individualista, legalista, formalista, para uma mentalidade mais bíblica e comunitário-
eclesial da reconciliação. Não tendo de preocupar-se com confissão e absolvição, as
pessoas estão mais dispostas a concentrar-se na Palavra de Deus e deixar-se transformar
por ela. E ainda: com o fato de a presidência dessas celebrações não se restringir ao
ministro ordenado, torna-se mais evidente a responsabilidade da comunidade e de cada
pessoa como ministra da penitência.
– A comunidade poderá privilegiar momentos propícios para as celebrações
penitenciais, como: nos tempos da Quaresma e do Advento, nas festas dos padroeiros,
nos encontros de romarias, em momentos pontuais da caminhada eclesial, sobretudo em
situações de desencontros, desentendimentos, rixas etc.
– As celebrações penitenciais poderão ajudar as comunidades na compreensão de
que a reconciliação é um itinerário espiritual que dura toda a vida e que seu objetivo
primordial é o “homem novo”.
– Uma vez que as celebrações penitenciais são “reuniões do povo de Deus para
ouvir sua Palavra, que o convida à conversão e à renovação de vida, proclamando também
nossa libertação do pecado pela morte de Cristo” (RP n.36), seu incremento na vida da
comunidade propiciará aos fiéis a experiência da eficácia da Palavra proclamada que, pela
ação do Espírito, faz acontecer a conversão e a renovação da vida.
c) Atentar-se para o horizonte aberto de possíveis “adaptações”. Como vimos
anteriormente, a “Introdução geral” do RP propõe adaptações do rito às diversas regiões
e circunstâncias, abrangendo os níveis da conferência episcopal, do bispo diocesano e do
ministro (RP n.38-40).
Para os dois primeiros níveis (da conferência episcopal e do bispo diocesano),
excetuando a exigência explícita de que se deva conservar a fórmula sacramental na sua
integralidade, todo o restante do ritual poderá ser adaptado, inclusive com a composição
de novos textos.
No nível do ministro, principalmente os párocos, fica aberta a possibilidade de
adaptar o rito às circunstâncias concretas dos penitentes, desde que se conserve sua
estrutura essencial e a integralidade da fórmula de absolvição. Recomenda-se, também, o
uso frequente de celebrações penitenciais ao longo do ano.
Portanto, no RP, há um vasto campo de possibilidades de adaptações do rito. Isso
propiciará à comunidade de fé celebrar de forma mais consciente, ativa e frutuosa a
reconciliação.
Concluímos este texto com uma observação sobre o título do ritual. A. Bugnini
assim o justifica:
O título geral do volume é Ordo Paenitentiae, porque contém indicações para os ritos quer
sacramentais, quer não sacramentais.
Para a ação litúrgica sacramental é preferido, nos capítulos individuais do Ordo, o
termo Reconciliatio. Ele indica melhor que a penitência sacramental é, a um tempo, ação
de Deus e do homem, ao passo que “Penitência” enfatiza mais a ação do homem.
(…) Reconciliatio é mais propriamente usado pela Igreja antiga para o ato sacramental.
(…) Esta terminologia serve também para chamar a atenção e aprofundar um aspecto
fundamental para a compreensão e a renovação da penitência sacramental (2018, p.560-
561).
Em suma, a reconciliação é ação de Deus, é iniciativa de Deus, como bem expressa
o Apóstolo:
Tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério
da reconciliação. Sim, foi o próprio Deus que, em Cristo reconciliou o mundo consigo,
não levando em conta os delitos da humanidade, e foi ele que pôs em nós a palavra da
reconciliação (2Cor 5,18-19).
Joaquim Fonseca, OFM – Instituto Santo Tomás de Aquino. (texto original
português)
Referências
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mistério pascal; os sacramentos: sinais do mistério pascal. São Paulo: Paulus, 2005.
Manual de liturgia, v. III, p.205-238.
BOROBIO, D. Celebrar para viver; liturgia e sacramentos da Igreja. São Paulo:
Loyola, 2009.
BUGNINI, A. A reforma litúrgica (1948-1975). São Paulo: Paulus; Paulinas;
Loyola, 2018.
BUYST, I. As celebrações penitenciais. In: CNBB. Deixai-vos reconciliar. São
Paulo: Paulus, 2008, p. 49-66. Estudos da CNBB, n.96.
DENZINGER – HÜNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e
declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas / Loyola, 2007.
FRANCISCO. Veritatis Gaudium. Sobre as universidades e as faculdades
eclesiásticas. Disponível
em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_constitutions/documents/papa-
francesco_costituzione-ap_20171208_veritatis-gaudium.html Acesso em: 12 set 2019.
______. Misericordiae Vultus. O rosto da misericórdia. Bula de proclamação do
jubileu extraordinário da misericórdia. São Paulo: Paulus, 2015.
NOCENT, A. O sacramento da penitência e da reconciliação. In: NOCENT, A. et
al. Os sacramentos; teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1989, p.143-
221. Anamnesis, 4.
VISENTIN, P. Penitência. In: VV.AA. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus,
1992. p. 920-937.
Unção dos enfermos (Sacramento)
A abordagem sobre o sacramento da unção dos enfermos virá apresentada a partir
dos seguintes pontos: 1) O ser humano frente à enfermidade; 2) A enfermidade e a cura
na Sagrada Escritura; 3) A enfermidade e a cura na prática da Igreja; 4) Desafios pastorais.
1 O ser humano frente à enfermidade
Dentre os muitos dramas enfrentados pelo ser humano está a doença. Sem marcar
dia e hora ela chega, e sem previsão e duração de tempo ela se instala, trazendo
consequências tanto para o paciente como para as pessoas que estão ao seu redor,
sobretudo familiares e amigos. A busca da cura nem sempre é caminho fácil. Dependendo
do lugar social em que o paciente se encontra, o drama pode transformar-se em pesadelo,
como escassez de centros e profissionais da saúde, precária infraestrutura para
atendimento dos enfermos. Nos tempos atuais, há o paradoxo do avanço da medicina e o
consequente prolongamento da vida a qualquer custo. Em muitos casos, esse
prolongamento tem levado pacientes e pessoas idosas ao isolamento, à marginalização,
ao abandono.
É comum, no Brasil e em outros países da América Latina, o dilema dos pobres que,
não tendo condições de arcar com elevadas taxas dos planos de saúde, se veem obrigados
a enfrentar a dura realidade do descaso dos poderes públicos quanto à prevenção de
doenças e ao atendimento médico e hospitalar. A privatização da saúde, além de seu
caráter restritivo e elitista, tem se convertido em empreendimento rentável e lucrativo.
Esses e outros fenômenos têm impacto direto na comunidade de fé. Vale recordar,
aqui, a clássica imagem do corpo e de seus membros descrita pelo apóstolo Paulo: “O
corpo não é feito de um membro apenas, mas de muitos. […] Se um membro sofre, todos
sofrem com ele” (1Cor 12,13.26). Em atenção a esses membros sofredores, a Igreja, desde
seus primórdios, tem marcado presença e prestado assistência aos seus filhos e filhas
enfermos.
2 A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura
Uma vez que os textos escriturísticos foram compilados em épocas e contextos bem
distintos, buscar uma compreensão do sentido da doença e da cura na Bíblia é tarefa
complexa. Por questão de espaço e pela brevidade deste estudo, limitar-nos-emos a
apresentar apenas alguns elementos que poderão servir de base para o entendimento do
sentido teológico-litúrgico do sacramento da unção dos enfermos.
2.1 No Antigo Testamento
O binômio doença-cura no Antigo Testamento deve ser compreendido a partir do
contexto cultural do Oriente Antigo. Aqui, a doença aparece relacionada com as forças
do mal e com o pecado. Uma forma comum de se obter a cura era a prática de exorcismos
e ritos mágicos de cura. Na Bíblia, a questão da doença não é abordada de forma isolada
ou mesmo do ponto de vista estrito da ciência, mas sim a partir da perspectiva religiosa,
da relação do enfermo com Deus e vice-versa. A doença é tida como algo que afeta o ser
humano na sua inteireza.
Mais que perguntar sobre a causa natural da doença, a Sagrada Escritura se ocupa
de sua significação ou de seu porquê. Disso decorrem interpretações diversas, sendo
comum a vinculação da enfermidade ao pecado, ao castigo de Deus e à possessão
demoníaca. Também continuam sem respostas satisfatórias questões relacionadas com o
sofrimento, sobretudo dos justos, como bem aparecem retratadas no livro de Jó.
Para a cura de enfermidades, recorre-se a meios terapêuticos extraídos da natureza,
especialmente das plantas. Dentre esses produtos, destaca-se o óleo, que além de ser
empregado na cura e purificação de doenças era também utilizado na consagração de
objetos (altares e monumentos) ou de pessoas (sacerdotes, profetas e reis). O
comportamento com os doentes consiste a dupla atitude: por um lado, aconselha-se a
prática de visitá-los e dar-lhes a devida atenção (cf. Sl 40,4; Jó 2,11); por outro, a lei
prescreve a exclusão da comunidade de todas as pessoas vítimas de doenças contagiosas
como a lepra (cf. Lv 13-14; Nm 12,10.15). É nesse contexto que se deve compreender
determinadas atitudes de Jesus para com os enfermos.
2.2 No Novo Testamento
No Novo Testamento, há inúmeras referências sobre diferentes tipos de doença
(febre, hemorragia, hidropisia…), bem como sobre pessoas deficientes (coxos, cegos,
surdos, mudos, paralíticos…). Os meios empregados para a cura são: óleo (Mc 6,13; Lc
3,18; Tg 5,14), vinho (Lc 10,34), colírio para os olhos (Ap 3,18), águas termais (Jo 5,2ss.),
saliva (Mc 7,33; Jo 9,6), barro (Jo 9,6ss.). Jesus se utiliza desses meios terapêuticos para
dar novo sentido ao mistério do sofrimento humano. Longe do curandeirismo, as curas
realizadas por Jesus são, na verdade, sinais messiânicos da salvação acontecendo aqui e
agora e apontam para a escatologia plena do Reino do Pai, onde não haverá sofrimento,
nem choro, nem dor. Tais curas realizadas são sinais simbólico-sacramentais do poder
libertador de Jesus em favor do ser humano integral, a saber: a cura da enfermidade do
corpo e a libertação da pessoa do pecado e da morte.
Jesus, por um lado, desvincula a concepção de que a doença é consequência do
pecado ou castigo de Deus. Por outro, procura incutir na mente de seus contemporâneos
que a enfermidade pode ser enfrentada no âmbito da fé, como algo relacionado ao plano
de Deus: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as
obras de Deus” (Jo 9,3). Aliás, Jesus deu novo sentido ao sofrimento e à morte, graças à
sua entrega incondicional nas mãos do Pai, assumindo e redimindo a dor da humanidade.
Desde então,
a dor, a enfermidade e a morte não são obstáculos para o plano salvífico que Deus
manifestou em Jesus Cristo. O caminho libertador de Cristo, e agora da Igreja, passa pelo
acontecimento da Páscoa, em sua dupla vertente de morte e ressurreição. E como Cristo,
também a Igreja luta e vence o mal, a enfermidade e a morte (ALDAZÁBAL, 1999,
p.865).
Os discípulos de Jesus deram continuidade ao exemplo do Mestre. Curar os
enfermos era tarefa primordial da missão evangelizadora da comunidade apostólica: “Eles
saíram para proclamar que o povo se convertesse. Expulsavam muitos demônios, ungiam
com óleo numerosos doentes e os curavam” (Mc 6,12-13). O livro dos Atos dos
Apóstolos, especialmente nos capítulos 2 e 3, descreve como a comunidade dos fiéis
crescia mediante a pregação, a conversão, o batismo, a eucaristia e outras ações
extraordinárias realizadas em nome de Cristo, como, por exemplo, a “cura do paralítico”
(At 3,1-26). Essas ações são como uma repetição daquelas que Jesus realizou e têm as
mesmas sequências do que vem narrado nos evangelhos.
3 A enfermidade e a cura na prática da Igreja
As comunidades cristãs, desde cedo, buscaram pôr em prática os gestos (rituais) de
cura realizados por Jesus. O texto da Carta de Tiago é um importante testemunho disso.
Esse texto serviu de base para a reflexão teológica posterior sobre o que chamamos hoje
de “Sacramento da unção dos enfermos”. Ei-lo:
Alguém de vós está sofrendo? Recorra à oração. Alguém está alegre? Entoe hinos.
Alguém de vós está doente? Mande chamar os presbíteros da igreja, para que orem sobre
ele, ungindo-o com óleo no nome do Senhor. A oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor
o levantará. E se tiver cometido pecados, receberá o perdão (Tg 5,13-16).
O apóstolo Tiago, além de apresentar uma prática em vias de institucionalização,
utiliza termos que expressam a complexidade existencial da situação do doente e a ação
pastoral da comunidade: oração, unção, conforto e alívio, cura, perdão dos pecados.
Diferente das demais referências neotestamentárias sobre a enfermidade e a cura, o texto
de Tiago apresenta, de forma mais explícita, a intenção sacramental do gesto, unido à
palavra de oração que a comunidade eleva a Deus em favor do enfermo. Ao falar do
sofrimento e da alegria, o Apóstolo deixa entrever que, seja qual for a circunstância vital,
tudo deve ser visto a partir de Deus e para Deus (oração e canto). Em seguida, fala da
enfermidade como tal, e é quando se chama os presbíteros da comunidade. Esses agem
com um gesto simbólico, a unção com óleo e uma oração feita com fé. O efeito dessa
dupla ação será a salvação, o reerguimento e o perdão dos pecados.
Enfim, Tiago fala de ritos destinados a quem está doente, não necessariamente
moribundo. Trata-se de uma ação de caráter eclesial e comunitário, uma vez que é
ministrada pelos presbíteros da Igreja. A eficácia está relacionada à oração de fé no
Senhor. Os efeitos se referem ao ser humano, na sua totalidade, embora não excluam a
cura corporal e não se restrinjam a ela. Todavia, o texto em questão, para ser entendido
no sentido do sacramento da unção dos enfermos, deve ser lido à luz da Tradição da Igreja
e não isoladamente dessa, como veremos a seguir.
A história da prática e da teologia desse sacramento pode ser dividida em três
períodos, a saber: a) Dos séculos III ao VIII, b) Do século VIII ao Concílio de Trento, c)
De Trento ao Concílio Vaticano II (cf. SCICOLONE, 1989, p.235-64).
3.1 Dos séculos III ao VIII
Nos três primeiros séculos da era cristã, tidos como tempo de “improvisação” das
fórmulas litúrgico-sacramentais, encontramos poucos registros de textos eucológicos para
a celebração da unção. O texto mais eloquente desse período é a “bênção do óleo”, contido
na Tradição Apostólica e atribuído a Hipólito de Roma (ano 215):
Assim como, santificando este óleo, com o qual ungistes reis, sacerdotes e profetas,
concedei, ó Deus, a santidade aos que com ele são ungidos e aos que o recebem, assim
também ele dê alívio àqueles que vierem a prová-lo e saúde aos que dele se servirem
(ANTOLOGIA LITÚRGICA, 2003, p.231).
Essa bênção aparece enxertada na prece eucarística, com a cláusula: “Se alguém
oferece óleo”. Nela, o bispo rende graças a Deus e pede santidade, alívio e saúde para
quem se servisse daquele óleo. Ao se referir à unção de reis, sacerdotes e profetas, é
possível que esse óleo abençoado também fosse usado para outros fins, não se
restringindo aos enfermos. O texto nada diz sobre o ministro da unção.
Um importante documento pontifício que gozou de notável influência também
sobre autores posteriores é a carta de Inocêncio I a Decêncio, bispo de Gúbio (ano 416).
À pergunta de Decêncio – se o bispo pode dar a unção aos doentes, pois Tiago fala apenas
de presbíteros –, Inocêncio responde:
Tua caridade mencionou o que está escrito na carta do bem-aventurado Apóstolo Tiago:
“Se há um enfermo entre vós, chame os presbíteros, e rezem sobre ele, ungindo-o com
óleo no nome do Senhor, e a oração da fé salvará aquele que sofre, e que o Senhor o
levantará; e, se cometeu algum pecado, lhe perdoará”. Não há dúvida de que isto deva ser
recebido e entendido a respeito dos fiéis enfermos, os quais podem ser ungidos com o
santo óleo do crisma, que, consagrado pelo bispo, pode ser usado para unção não somente
pelos sacerdotes, mas também por todos os cristãos para necessidade própria ou dos
parentes.
De resto, consideramos supérfluo o acréscimo que pergunta se é lícito ao bispo o
que certamente o é aos presbíteros. Pois nesta matéria são mencionados os presbíteros
porque os bispos, empenhados em outros afazeres, não podem visitar cada doente. Mas
se um bispo pode ou julga digno visitar alguém, pode também, já que lhe compete a
consagração do crisma, sem dúvida, tanto benzer como ungir com o crisma. Ora, não
pode ser derramado sobre quem é penitente, pois é do gênero do sacramento. Como
pensar que àqueles aos quais são negados outros sacramentos possa ser concedido um
gênero “de Sacramento”? (DENZINGER-HÜNERMANN, 2007, n.216).
Como se vê, não somente o bispo, mas também presbíteros e todos os cristãos (com
exceção dos penitentes) podem ministrar o sacramento. No entanto, a “confecção” do
óleo destinado a este sacramento (à semelhança da eucaristia) compete ao bispo.
No século VI, merecem destaque os sermões de Cesário de Arles (503-543). Neles,
Cesário fala da unção no contexto da luta contra os ritos mágicos pagãos de cura. Além
de apresentar a unção como remédio mais seguro contra as forças diabólicas, o bispo de
Arles acena para o perdão dos pecados, especialmente daqueles cometidos em práticas
pagãs.
As principais conclusões que compreendem o arco entre séculos III e VIII da
história do sacramento da unção dos enfermos são:
a) A continuidade da prática das primeiras comunidades, sobretudo no que tange à
visita e atenção aos doentes. Consciente de que devia prolongar o ministério de Cristo e
dos apóstolos, a Igreja se serve do testemunho e do sinal: a unção com óleo.
b) A documentação de fórmulas eucológicas (bênçãos do óleo) para os enfermos, a
partir do século III. Nessas fórmulas se suplica a efusão do Espírito Santo para que cure
os doentes das doenças e lhes restitua a saúde do corpo, da alma e do espírito.
c) O ministro da bênção do óleo é o bispo, que a faz durante a oração eucarística (na
eucaristia da quinta-feira santa).
d) Os destinatários da unção são todos os cristãos enfermos, exceto os penitentes,
uma vez que o óleo pertence ao gênero dos sacramentos.
e) O efeito esperado da unção é, sobretudo, a restituição da saúde corporal. Só a
partir do século VIII é que se começa a acentuar o efeito espiritual, ou seja, a remissão
dos pecados.
3.2 Do século VIII ao Concílio de Trento
Do séc. VIII ao séc. XI, encontramos diversos rituais de unção dos enfermos. Nesses
rituais aparecem, além de formulários para a oração de bênção sobre o óleo, outros ritos
com especificações bem precisas. Nesse período, além da proliferação de rituais,
acontecem mudanças significativas na teologia e na prática pastoral do sacramento da
unção dos enfermos, como: a) clericalização e consequente monopólio do clero na
administração do sacramento; b) espiritualização dos efeitos do sacramento, ficando à
margem o efeito corporal de cura; c) penitencialização do sacramento, ou seja: para
recebê-lo, é necessário o perdão dos pecados pela penitência; d) extremização dos
sujeitos: a unção passou a ser considerada como sacramento de preparação para a morte.
O sujeito passa a ser de simples enfermo a doente que se encontra em perigo de morte.
Daí, o nome que prevaleceu até o século XX: “Extrema Unção”.
Em geral, esses ritos da extrema unção obedecem à seguinte ordem: entrada na casa,
bênção e aspersão da água, confissão e ritos penitenciais (salmos e orações), unções (em
geral, dos cinco sentidos), comunhão como viático. Na realidade, a partir do séc. XIII, por
influência da crescente “escatologização”, muda-se a sequência: penitência – unção –
viático, para: penitência – eucaristia – unção (esta deve ser o último sacramento, pois
prepara imediatamente para a glória do céu, apagando os últimos resquícios do pecado).
Essa sequência permanecerá nos rituais até a reforma litúrgica do Vaticano II, quando se
voltará à tradição mais antiga.
Do séc. XI ao Concílio de Trento (séc. XVI), a celebração e a prática da extrema
unção não sofrem mudanças significativas. Contudo, nesse período dá-se a
“sistematização escolástica” desse sacramento. Os teólogos escolásticos (Pedro
Lombardo, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura, João Duns Scotus etc)
desenvolvem uma teologia da unção que, de certa forma, se distancia da tradição
primitiva. Insistem no efeito espiritual do sacramento, no sujeito em perigo de morte e no
caráter secundário da cura.
O Concílio de Trento, preocupado em rebater as contestações dos reformadores,
toma como base de argumentação da legitimidade e eficácia do sacramento da unção a
teologia escolástica, especialmente a de Tomás de Aquino. Apoiando-se nos textos
neotestamentários de Mc 6,13 e de Tiago 5,14-16, Trento ensina, dentre outras coisas,
que a unção é sacramento que remonta, em última instância, à vontade de Cristo, como
se vê na missão dos doze e em seu comportamento com os doentes. O conteúdo do
sacramento é a graça do Espírito Santo, cuja unção (efeito) apaga os delitos e as sequelas
do pecado, consola e confirma a alma do doente, excitando nele uma grande confiança na
misericórdia divina e, eventualmente, obtém a saúde do corpo quando for conveniente à
salvação da alma. O ministro da sagrada unção é o presbítero, e o momento da
administração do sacramento é, de preferência, quando o enfermo estiver correndo risco
iminente de morte (cf. DENZINGER-HÜNERMANN, 2007, n.1695-1697).
3.3 De Trento ao Concílio Vaticano II
Ao longo dos quatro séculos que separam o Concílio de Trento e o Concílio
Vaticano II, não se pode dizer que tenha havido grandes progressos na teologia e na
prática da unção. Aliás, o estudo desse sacramento praticamente ficou vinculado ao
tratado sobre a penitência. Com o Movimento Litúrgico, especialmente a partir da década
de 1940, é que se desencadeou uma renovação teológica. Isso graças ao estudo das fontes
da genuína Tradição e ao desejo de superar a concepção mágica dos sacramentos. Duas
linhas de renovação merecem destaque: a escola alemã e a escola francesa.
Os teólogos alemães acentuam a dimensão escatológica do sacramento,
relacionando a última unção com a unção batismal. A unção é tida como “consagração
para a última luta”, como “sacramento da ressurreição”, como lugar da autorrealização
da esperança escatológica da Igreja no momento definitivo. Os franceses, por sua vez,
enveredam por uma teologia de cunho mais existencial. Seguem de perto a teologia
subjacente da Igreja primitiva, acentuam a destinação da unção dos enfermos (não
necessariamente em perigo de morte) em seu caráter curativo e terapêutico para o ser
humano integral. Nesse entendimento, só o viático deve ser “sacramento na perspectiva
da morte” (cf. BOROBIO, 1993, p.557-8).
O Concílio Vaticano II não teve pretensão de oferecer uma doutrina completa sobre
a unção e muito menos dirimir questões ainda discutíveis. Contudo, concentrou a atenção
no âmbito litúrgico-pastoral. Dentre os documentos conciliares que aludem ao
sacramento da unção dos enfermos, além da Sacrosanctum Concilium, merece destaque
a Constituição Lumen Gentium (n.11). Aqui, vêm sublinhadas as dimensões
eclesiológica, cristológica e antropológica do sacramento.
Nos três números dedicados a esse sacramento, a Sacrosanctum
Concilium determina: a) Que seu melhor nome é “unção dos enfermos” e que não se trata
de um sacramento só para quem está em perigo de morte, mas para outros doentes e
pessoas idosas (cf. SC n.73); b) Que, além dos ritos separados da unção dos enfermos e
do viático, faça-se um rito conjunto pelo qual se administre a unção ao enfermo depois
da confissão e antes da recepção do viático (cf. SC n.74). Essa ordenação penitência-
unção-viático reproduz, de alguma forma, aquela dos sacramentos de iniciação: batismo-
confirmação-eucaristia; c) Que o número de unções seja acomodado às circunstâncias dos
enfermos e que os ritos sejam revistos para melhor corresponderem às condições dos
destinatários do sacramento (cf. SC n.75). Outras orientações teológico-litúrgico-
pastorais são encontradas na “Constituição apostólica sobre o sacramento da unção dos
enfermos” de Paulo VI e na “Introdução” do novo ritual da unção dos enfermos, publicado
em janeiro de 1973.
A “Constituição apostólica” foi oportuna pelo fato de ter havido mudanças de
elementos essenciais do rito, como a matéria, a forma e as disposições sobre a
reiterabilidade do sacramento. Para a matéria, ficou estabelecido que se pode utilizar
outro tipo de óleo vegetal, não exclusivamente o de oliveira. A fórmula do sacramento
foi alterada em função de exprimir maior clareza sobre sua natureza e seus efeitos. O texto
definitivo, na tradução oficial brasileira, ficou assim: “Por esta santa unção e pela sua
infinita misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para
que, liberto dos teus pecados, ele te salve e, na sua bondade, alivie os teus sofrimentos”.
O número de unções é reduzido a duas (na fronte e nas mãos), podendo ser restringido a
uma só, na fronte, ou em outra parte do corpo. O sacramento pode ser administrado mais
vezes, dependendo da duração da enfermidade ou de seu agravamento.
A “Introdução” do novo ritual contém cinco seções intituladas: 1) “A enfermidade
humana e seu significado no mistério da salvação”. Aqui, vem apresentada uma síntese
do pensamento cristão sobre o estado de doença e seu significado na história da salvação.
2) “Os sacramentos a serem conferidos aos doentes”. Nesta seção, vêm claramente
expressos os dois sacramentos: a unção e o viático. 3) “Funções e ministérios em relação
aos enfermos”. Aqui são contemplados os diversos ofícios e serviços em favor dos
doentes. É avaliado como positivo e louvável o esforço de toda a humanidade
(especialmente os profissionais da saúde e cientistas) na tarefa de aliviar os sofrimentos
provocados pela doença e o consequente prolongamento da vida. Também os familiares
são contemplados pela especial participação nesse “ministério de consolação”. Por fim,
os ministros (presbíteros) são lembrados de seu dever de visitar pessoalmente os
enfermos, de administrar-lhes os sacramentos, de cuidar da catequese tanto para os
enfermos como para os fiéis em geral, tendo em vista sua participação ativa e frutuosa na
celebração dos sacramentos. 4) “Adaptações que competem às conferências episcopais”.
Nesta seção, são apresentadas várias possibilidades de adaptações do novo ritual, de
acordo com as tradições e culturas de cada povo. 5) “Adaptações que competem ao
ministro”. Cabe ao ministro, em sua solicitude pastoral, levar em conta as circunstâncias
em que se encontram os enfermos e a melhor maneira de celebrar o sacramento.
O rito como tal (Ordo) compreende sete capítulos, a saber: 1) Visita e a comunhão
dos enfermos; 2) Rito ordinário da unção (rito comum, rito durante a Missa, rito em
grande concentração de fiéis); 3) O viático (dentro e fora da missa); 4) A administração
dos sacramentos a enfermo em perigo de morte (rito contínuo penitência-unção-viático,
unção sem viático e unção na dúvida se o enfermo ainda está vivo); 5) A confirmação em
perigo de morte; 6) Rito de encomendação dos agonizantes; 7) Textos bíblicos e outras
fórmulas eucológicas a serem usados nos ritos de assistência aos enfermos.
Do ponto de vista da teologia litúrgica, o “Ritual da unção dos enfermos e sua
assistência pastoral” (1973) traz expressivos avanços, se comparado ao precedente
(1614). Dentre as inovações, merecem destaque:
a) A centralidade do mistério pascal de Cristo que veio salvar o ser humano integral.
O sacramento dos enfermos é memorial desse mistério, pois continua e atualiza a ação
salvífica de Cristo em favor dos doentes, completando, assim, neles, o que falta à sua
paixão (cf. Cl 1,24).
b) A redescoberta do valor pneumático do sacramento, especialmente na fórmula de
bênção do óleo.
c) A dimensão eclesial e comunitária que perpassa todo o ritual. A Igreja se faz
presente junto ao enfermo com solicitude pastoral permanente, pois tem consciência de
que o doente é membro (sofredor) do corpo vivo de Cristo e que espera participar da sua
glorificação. O enfermo, por sua vez, imerso no mistério de seu sofrimento, também
edifica a Igreja. As diversas possibilidades e formas de celebração do sacramento –
sobretudo com vários enfermos ao mesmo tempo e com numerosa assembleia – atestam
sua índole comunitária.
Do ponto de vista antropológico, o novo ritual avança na compreensão holística do
ser humano e o consequente efeito (holístico) do sacramento para quem o recebe.
4 Desafios pastorais
Conforme dito acima, o novo ritual da unção dos enfermos possui forte apelo
pastoral, a começar pelo próprio nome: “Ritual da unção dos enfermos e sua assistência
pastoral”. As celebrações ali previstas devem ser “cume e fonte” de uma ação pastoral da
Igreja que leva a sério o drama vivido por quem enfrenta o peso da doença, da idade
avançada e de toda sorte de sofrimento. Disso decorre a necessidade de formação
teológico-litúrgica para toda a comunidade com os seguintes objetivos, dentre outros:
a) Romper a antiga mentalidade de que o sacramento da unção é somente para quem
está à beira da morte.
b) Obter uma visão global dos efeitos do sacramento. Essa visão também livrará os
fiéis do risco de se fixarem na ideia de cura da doença ou do sentido do sacramento como
algo mágico.
c) Ampliar a compreensão do que constitui a pastoral da saúde. Em última instância,
essa pastoral deverá abranger todas as etapas e momentos da vida humana, não apenas
restringindo seu campo de ação a quem se encontra gravemente enfermo. Enfim, uma
pastoral que tenha implicações no contexto familiar, comunitário, social. Mais que uma
pastoral de conservação e remédio ante a doença que se impõe, é uma ação que promove
a saúde e o bem-estar de todas as pessoas, à luz do Evangelho.
d) Recuperar a Tradição da Igreja Primitiva, buscando desvincular a unção dos
enfermos do sacramento da penitência. Nesse caso, seria desejável que houvesse leigos
instituídos ministros extraordinários da unção.
e) Incrementar a prática de celebrações comunitárias do sacramento da unção,
reafirmando sua índole eclesial. Valendo o alerta de que essa prática não resulte na
banalização do sacramento, ou seja, ministrando-o a qualquer pessoa, de forma
indiscriminada.
Joaquim Fonseca, OFM. ISTA. Texto original Português.
5 Referências bibliográficas
ALDAZÁBAL, J. Unção dos enfermos. In: SAMANES, C. F.; TAMOYO-
ACOSTA, J-J. (Ed.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo:
Paulus, 1999, p.864-9.
ANTOLOGIA LITÚRGICA. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro
milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003.
BOROBIO, D. Unção dos enfermos. In: ____. (Ed.). A celebração da Igreja II –
Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993, p.539-614.
____. Antropología y pastoral de la salud. Phase, Barcelona, n. 325, p. 25-38,
ene./feb. 2015.
COLOMBO, G. Unção dos enfermos. In: SARTORE, D.; TRIACCA, A.
(Ed.). Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, p.1203-13.
DENZINGER – HÜNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e
declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas / Loyola, 2007.
ORTEMANN, C. A força dos que sofrem; história e significação do sacramento dos
enfermos. São Paulo: Paulinas, 1978.
SCICOLONE, H. Unção dos enfermos. In: NOCENT, A. et al. Os sacramentos:
teologia e história da celebração. São Paulo: Paulus, 1989, p.223-64.

Matrimônio

1 O matrimônio no conjunto dos 7 sacramentos

1.1 A “diferença” do primeiro / último sacramento

O matrimônio deve ser entendido ao mesmo tempo como dado natural,


como construção social e como símbolo ritual da relação entre Deus e a humanidade,
entre Cristo e a Igreja. Como tal, aparece, desde as primeiras listas dos “sete sacramentos”
no século XIII, como um deles. É surpreendente, porém, que, mesmo nas listas mais
antigas, a peculiaridade do matrimônio tenha características “polares”. Com efeito, está
colocado no final ou no início da lista, visto que representa, ao mesmo tempo, o caso por
excelência e o caso limite do fenômeno sacramento. Está na cabeça ou no fim da
experiência sacramental. Por um lado, de fato, é o “último” entre os sacramentos, pois
“torna lícito o que seria ilícito” e pode ser entendido como remedium concupiscentiae, ou
seja, como remédio para a concupiscência. Por outro lado, os próprios autores
escolásticos não esquecem que ratione significationis (ou seja, “em razão do
significado”) o matrimônio é também o primeiro dos sacramentos: não apenas porque foi
instituído por Deus antes da queda do pecado, mas porque expressa a unidade entre Deus
e a humanidade, entre Cristo e a Igreja, com uma força e uma imediatidade
completamente inimitáveis. Essas duas “almas” da tradição eclesial concentram-se ambas
em duas famosas expressões paulinas: o matrimônio como “distração” e como “limitação
do ardor” (1Cor 7) e o matrimônio como via de acesso ao “grande mistério” da relação
entre Cristo e a Igreja (Ef 5). Toda a tradição eclesial se move entre esses dois polos.
1.2 A lógica paradoxal do matrimônio

Santo Tomás de Aquino explicita-nos, com extrema clareza, a natureza complexa


deste sacramento. Na Suma Teológica (III, 65, 1, c), apresenta um famoso paralelismo
entre “vida natural” e “vida espiritual” e, depois de ter ilustrado para cada sacramento seu
“equivalente natural” (ao nascimento corresponde o batismo; ao crescimento, a crisma
etc.), ao chegar ao matrimônio, diz que “esta realidade natural” é o sacramento. Em vez
disso, na Suma contra os Gentios, aborda o matrimônio em duas partes diversas (III e
IV): a maior parte do que escreve encontra-se na seção onde a razão elabora os dados,
enquanto poucas linhas são dedicadas à parte propriamente “revelada” e sacramental
(voltaremos a isso no próximo parágrafo). Estes dois exemplos, na obra de Tomás,
confirmam algo importante: no matrimônio, de forma muito particular, natureza e graça,
razão e fé estão indissoluvelmente entrelaçadas. Isso significa que a assunção da
realidade, seja natural, seja civil, na lógica do matrimônio é uma condição de
possibilidade do sacramento. Não é por acaso que só deste sacramento se diz que não é
“instituído por Jesus Cristo”, mas é “elevado” a sacramento, sendo a sua dinâmica já
assegurada pela lógica da criação, da natureza e das instituições civis.

1.3 O matrimônio é um bem?

Sabe-se que Santo Agostinho, na sua obra De bono coniugali [Sobre o bem
conjugal], ofereceu a primeira exposição de uma “doutrina matrimonial”, na qual, no
entanto, nota-se uma particularidade que chama a atenção. Embora esse texto esteja na
raiz do discurso cristão e católico sobre os “bens do matrimônio”, na realidade a questão
fundamental a que o texto de Agostinho responde é a pergunta pela compatibilidade entre
matrimônio e vida batismal. A polarização que já observamos acima encontra aqui um
“lugar comum”: se a fé é um modo de “desposar Cristo” – e isso vale para toda a Igreja,
masculina e feminina – é ainda possível ou lícito ou aconselhável para os batizados o
casar-se? A questão, que teve prevalentemente respostas positivas, conserva, aqui e ali ao
longo da história e nas várias tradições, a força de traduzir-se em diferentes disciplinas
ou papéis sociais. Pense-se, por exemplo, em como o matrimônio incidiu diversamente
no Oriente e no Ocidente sobre as formas de vida dos pastores (diáconos, presbíteros e
bispos).

1.4 A história dos sujeitos e o depositum fidei

As características particulares do sétimo sacramento sempre tiveram que mediar


entre natureza, história e graça. Por essa razão, as grandes etapas da teologia do
matrimônio são afetadas por uma relação muito estreita entre as formas de vida (familiar,
econômica, cultural) e sua interpretação pela Igreja. Pelo menos até o séc. XV, será
bastante óbvio confiar à natureza e à sociedade a articulação dessa experiência, que a
Igreja se limitava a abençoar e elevar à dignidade de sacramento. As mudanças da história
das instituições, da compreensão geográfica do mundo, das formas de produção e da
consciência subjetiva conduzirão, a partir do século XIX, a uma mudança progressiva no
modelo de matrimônio e família. E será surpreendente observar como o tema clássico do
“matrimônio” se unirá sempre mais ao novo tema da “família”, ignorado pela doutrina
eclesial por cerca de dezenove séculos. No entanto, deve-se reconhecer que, precisamente
por causa do entrelaçamento muito singular de níveis de experiência e conhecimento, o
matrimônio é objeto de profunda reconsideração natural, social, psicológica e
econômica. Em todos esses níveis, a tradição teológica, após a tentativa de resistência a
todo custo, foi forçada a “traduzir a tradição”, como já tinha acontecido pelo menos
quatro vezes ao longo da história e como mais uma vez a Amoris Laetitia (AL) exige
claramente como tarefa para as próximas décadas. Examinemos, pois, quatro formas
clássicas de impostação da teologia matrimonial.

2 Quatro modelos clássicos de teologia do matrimônio

2.1 O modelo das origens: matrimônio e patrimônio

O anúncio da plenitude da relação entre homem e mulher, como lugar de verdade


da Aliança com o Pai celeste, qualifica a palavra de Jesus (Mt 19,1-9) e inaugura a
superação da “dureza de coração”. Mas já nas palavras mais antigas a presença da
“cláusula de exceção” – “exceto no caso de porneia” – abre espaço para uma elaboração
eclesial da palavra do Mestre, o que implica uma mediação delicada entre as lógicas
naturais, civis e eclesiais. A identificação dos destinatários da palavra – que foi recebida
como palavra universal, mas tem características proféticas e escatológicas que indicam
que tem os discípulos como destinatários primeiros – pode ser esclarecida examinando a
lógica do conjunto do cap. 19 do Evangelho segundo Mateus, no qual se passa do
“matrimônio” (Mt 19,3-9) ao “patrimônio” (Mt 19,16-30): a indissolubilidade do vínculo
pessoal e a ausência de vínculos econômicos são anunciadas no mesmo texto, embora a
tradição se tenha orientado a receber o primeiro como “norma de direito natural” e o
segundo como “conselho evangélico” (cf. BARBAGLIA, 2016). O resultado é, por um
lado, a valorização simbólica da união esponsal e, por outro, uma disciplina cada vez mais
acurada das vivências dos cristãos. A assunção da realidade criatural (“os cristãos casam-
se como todos”, da Epístola a Diogneto) ou o juízo sobre a relação no plano jurídico,
profético ou escatológico colorem diversamente os primeiros séculos de recepção do
Evangelho, até à primeira sistematização por Agostinho (Sobre o bem conjugal).

2.2 A laboriosa construção de um modelo medieval: tradições romanas e bárbaras

A evolução doutrinal e disciplinar na Idade Média merece uma consideração


cuidadosa (cf. CORTONI, 2021). Em primeiro lugar, surge como evidência que a
doutrina do matrimônio, na sua unidade, precisou mediar diferentes tradições culturais,
jurídicas e mesmo “naturais”. Há, de fato, uma longa elaboração, com a duração de alguns
séculos, que tenta harmonizar a leitura do matrimônio como “consentimento” – típica da
tradição romana – com a que o entende como “coito” – típica dos povos que chegaram a
Roma provenientes do Norte. A síntese, que o saber teológico e jurídico sustentará nas
Universidades de Paris e de Bolonha, a partir do séc. XII, oferecerá uma poderosa
mediação histórica, combinando no mesmo ato a “validade do consentimento” e a
“indissolubilidade por consumação”. A fórmula jurídica, porém, esconde a presença, na
dinâmica do sacramento, de diversos níveis de experiência, cuja composição está
permanentemente confiada também à mediação da natureza e da cultura civil e não pode
ser simplesmente antecipada pela Igreja.
Resulta, portanto, extremamente útil analisar cuidadosamente uma das grandes
sínteses do saber medieval sobre o matrimônio, tal como se encontra na Suma contra os
Gentios (Summa contra Gentiles = ScG), de Tomás de Aquino. A temática do
matrimônio encontra-se “dividida” em duas partes. A primeira, mais consistente, está no
livro III (cap. 122-126), enquanto a mais estritamente sacramental se encontra no livro
IV. É preciso saber que os três primeiros livros da ScG são dedicados à discussão dos
argumentos “da razão natural”, enquanto o livro IV trabalha no campo da “revelação
divina”. Portanto há dois discursos sobre o matrimônio:
– no livro III (cap. 122-126), o texto se ocupa do matrimônio natural, da
indissolubilidade, do matrimônio monogâmico, do parentesco e da natureza pecaminosa
de toda união carnal;
– o matrimônio (sacramento) encontra-se no livro IV e se limita a um único capítulo
(78).
Neste capítulo 78, o discurso teológico concentra-se em algumas linhas em torno
do tema da
generatio (isto é, da “geração”), como categoria central do sacramento:
Generatio autem humana ordinatur ad multa: scilicet ad perpetuitatem speciei; et
ad perpetuitatem alicuius boni politici, puta ad perpetuitatem populi in aliqua civitate;
ordinatur etiam ad perpetuitatem Ecclesiae, quae in fidelium collectione consistit. Unde
oportet quod huiusmodi generatio a diversis dirigatur. Inquantum igitur ordinatur ad
bonum naturae, quod est perpetuitas speciei, dirigitur in finem a natura inclinante in hunc
finem: et sic dicitur esse naturae officium. Inquantum vero ordinatur ad bonum politicum,
subiacet ordinationi civilis legis. Inquantum igitur ordinatur ad bonum Ecclesiae, oportet
quod subiaceat regimini ecclesiastico. Ea autem quae populo per ministros Ecclesiae
dispensantur, sacramenta dicuntur. Matrimonium igitur secundum quod consistit in
coniunctione maris et feminae intendentium prolem ad cultum Dei generare et educare
est Ecclesiae sacramentum: unde et quaedam benedictio nubentibus per ministros
Ecclesiae adhibetur. (TOMÁS DE AQUINO, ScG, l. IV, c. 78)
Na tradução:
A geração humana está ordenada a várias coisas, a saber: à perpetuação da espécie, à
perpetuação de algum bem político, como seria a perpetuação do povo numa determinada
cidade, ou à perpetuação da Igreja, que consiste na assembleia dos fiéis. É, pois,
necessário que tal geração seja dirigida por diversos sujeitos. Com efeito, enquanto
ordenada ao bem da natureza, que é a perpetuação da espécie, dirige-se a este fim por
força da natureza que a inclina para esse fim: e por isso se diz que é um dever
natural. Enquanto ordenada a um bem político, está sujeita à força de lei
civil. Enquanto ordenada ao bem da Igreja, convém que esteja submissa ao regime
eclesiástico. Ora, o que é conferido ao povo pelos ministros da Igreja, chama-se
sacramento. Portanto, o matrimônio, ao consistir na união de varão e mulher tendente à
geração e educação da prole para o culto a Deus, é um sacramento da Igreja e, por isso, é
prevista uma bênção dos nubentes pelos ministros da Igreja. (TOMÁS DE AQUINO,
ScG, l. IV, c. 78)
Se examinarmos o texto, veremos apresentados, como num espelho, as
características do modelo medieval que permanecerá até o Concílio de Trento. Resumam-
se seus pontos chave:
– é caracterizado pela “pluralidade de foros”. Um mesmo fenômeno, o matrimônio,
lê-se em três âmbitos: natural, civil e eclesial, aos quais correspondem três “leis” e três
“lógicas”;
– a dimensão sacramental é a geração e educação dos filhos na fé;
– o sacramento consiste evidentemente na “bênção dos esposos” pelos ministros da
Igreja, sem que inclua diretamente a união sexual nem o consentimento, que pertencem à
lógica natural e civil.
Do ponto de vista sistemático, a “forma” do sacramento e sua ministerialidade são
concebidas segundo uma visão muito diferente da atual. Já que o “consentimento” e a
“consumação” pertencem à lógica racional, natural e civil, à dimensão eclesial compete
simplesmente a “bênção”, que obviamente não é ato dos cônjuges (como o são o
consentimento e a consumação), mas do presbítero ou do bispo.

2.3 O modelo moderno: nasce a forma canônica

A passagem que ocorre com o Concílio de Trento é de extrema importância. Não


apenas porque a doutrina clássica sobre o matrimônio é reafirmada, contra a contestação
protestante, mas porque, mediante o Decreto Tametsi (1563), se transforma a
compreensão institucional do matrimônio: como diz a primeira palavra, “tametsi” [=
embora, não obstante], há uma “concessão”, no cerne do documento, que revoluciona a
história do matrimônio católico. Leiamos o primeiro parágrafo do decreto:
A santa Igreja de Deus sempre detestou e proibiu por justíssimas causas os matrimônios
clandestinos, embora não se deva duvidar que, realizados com o livre consentimento dos
contraentes, sejam matrimônios ratificados e verdadeiros, enquanto a Igreja não os tenha
anulado;
e, por conseguinte, com razão devem ser condenados, como o santo Sínodo com
anátema condena os que negam que sejam verdadeiros e ratificados, e também os que
afirmam erroneamente que os matrimônios contraídos pelos filhos da família sem o
consentimento dos pais são nulos, e que os pais podem torná-los ratificados ou nulos.
(DH 1813)
Neste parágrafo, que abre o decreto, um mundo está mudando. Muda o papel da
Igreja no matrimônio. A introdução da “forma canônica”, necessária para a validade do
ato, coloca a Igreja numa nova posição. Houve resistência na época. Eis o parecer
esclarecedor de um dos bispos no Concílio, que disse: “se o matrimônio clandestino fosse
abolido, os matrimônios feitos livre e espontaneamente seriam abolidos e,
consequentemente, seria proibida a verdadeira amizade entre os cônjuges” (assim diz o
bispo de Cava dei Tirreni, Tomás Caselius).
Esta decisão inaugura a competência da Igreja nos casos matrimoniais, que
permanecerá uma espécie de imprinting para todo o período moderno e que estourará na
época da modernidade tardia, quando a concorrência não será mais dos primeiros Estados
modernos, mas dos Estados liberais que se sucederam à Revolução Francesa. O embate
girará em torno à “competência no tocante à união e à geração”. Um contemporâneo,
Paulo Sarpi, que foi um cronista respeitado e crítico do Concílio de Trento, escreveu sobre
o decreto:
Seja como for – diziam –, o decreto não teria sido feito senão para elaborar, dentro em
breve, um artigo de fé que afirmasse que as palavras pronunciadas pelo pároco seriam a
forma do sacramento… Pelo contrário, foi estabelecido que, sem a presença do sacerdote,
todo matrimônio era nulo, suprema exaltação da ordem eclesiástica, visto que uma ação
tão importante na administração política e econômica, que até então estava nas mãos
unicamente daqueles a quem competia, ficava inteiramente submetida ao clero, não
restando maneira alguma de contrair matrimônio se os padres, isto é, o pároco e o bispo,
pelo interesse que fosse, se recusassem a comparecer. (SARPI)
John Bossy, por sua vez, autor de uma síntese bem-sucedida sobre a Cristandade,
entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, esclarece o que aconteceu com
o matrimônio no decreto:
A proposta foi aceita – era a única que poderia conciliar as partes – e virou lei. Mesmo
que tivesse sido de alguma forma prefigurada pela história anterior sobre o assunto, foi
ainda assim um raio em céu sereno, e não está claro até que ponto o Concílio estava ciente
de ter imposto à Cristandade uma verdadeira revolução, no sentido próprio da palavra. Ao
cancelar a doutrina canônica segundo a qual o contrato conjugal seguido pela cópula
carnal constituía o matrimônio cristão, excluindo o vasto corpus de ritos e acordos
consuetudinários por estar privado de potencialidade sacramental, transformava-se o
matrimônio de processo social garantido pela Igreja em processo eclesiástico
administrado pela Igreja. (BOSSY, 1997, p. 79)
A figura do matrimônio, surgida depois da metade do séc. XVI, terá grande
influência em nossa maneira de pensar o sacramento, sua verdade e seus efeitos. Embora
seja uma intervenção meramente disciplinar, terá não pequenas consequências doutrinais,
que se farão sentir sobretudo a partir do séc. XIX.

2.4 A era secular e a reação católica: resistência do poder temporal

O título da recente Exortação Apostólica (FRANCISCO, 2016) é Amoris Laetitia,


a alegria do amor, o regozijo do amor, mas também a fecundidade e a criatividade do
amor. A palavra latina laetitia é rica em ressonâncias e promessas. Assim começa
o documento: com a alegria do amor. Depois da alegria do evangelho – em Evangelii
Gaudium – a alegria do amor – em Amoris Laetitia. Como chegamos até aqui? Pode ser
útil resgatar, de forma extremamente sumária, as grandes etapas que nos trouxeram até
este ponto, que é uma espécie de “novo começo”. Depois do modelo antigo, medieval e
moderno-tridentino, surgiu um “modelo séc. XIX”, que tem sua estreia no primeiro
documento papal da “Idade Moderna tardia”, que aborda a questão “matrimonial” em um
novo contexto. Estamos em 1880, durante o pontificado de Leão XIII, poucos anos depois
do “assalto da Porta Pia” e da perda do “poder temporal” dos papas. A história que
começa naquele momento – e que chega a seu termo com a AL – está profundamente
marcada por questões institucionais, jurídicas e políticas, que caracterizaram a evolução
de grande parte dos 140 anos seguintes. Questões teológicas e questões institucionais
foram se entrelaçando de uma nova forma, que não tem precedentes na história da
Igreja. À luz do novo texto, podemos reler essa história de outra maneira.
2.4.1 Arcanum Divinae Sapientiae, Leão XIII (1880) e Código de 1917

Toda a grande tradição medieval, mediada com autoridade pelo Concílio de Trento,
assume, com esta encíclica de Leão XIII, a problemática nova e inédita de uma
reafirmação da “competência eclesial” em face da reivindicação de competência dos
Estados modernos sobre o matrimônio, que o séc. XIX acabara de inaugurar. Os temas
fundamentais, típicos de toda a tradição precedente, são assim “filtrados” por este novo e
dramático problema. Nesta encíclica elaboram-se as “formas de pensamento e de ação”
que serão posteriormente adotadas pelo Código de Direito Canônico de 1917. E que se
tornarão, por muitas décadas, o eixo decisivo da compreensão “católica” do
matrimônio, da família e do amor. Com seus méritos e seus defeitos. Até hoje, esse
“estrangulamento” institucional lança sua longa sombra na maneira como falamos,
refletimos, agimos e até rezamos sobre o amor e o matrimônio.

2.4.2 Casti Connubii, Pio XI (1930)

Cinquenta anos depois, num mundo completamente diferente, Pio XI assumia um


tema particular como o da “contracepção” como “chave de compreensão” do matrimônio
e da família. Isso determinará, a partir de então, uma determinada prioridade na leitura
“natural” do matrimônio e da família. A renúncia à “liberdade” no contexto
matrimonial traduz-se na norma de uma sexualidade puramente “objetiva”, quase
purificada da subjetividade e regulada apenas naturalmente e, portanto, pelo próprio
Deus. Num abraço entre graça e natureza que, a longo prazo, corre o risco de asfixiar e
polarizar cada vez mais a relação com a cultura civil e sua inevitável evolução
“responsável”. A identificação de Deus com o “natural” e do homem com o “artificial”
criou uma polarização crescente, que não trouxe somente clareza, mas que, a longo
prazo, ofuscou as mentes e os corações. Assim, o tema da “natureza”, que para a tradição
teológica era garantia do “diálogo com a razão”, tornou-se princípio de confronto e
oposição à cultura contemporânea.

2.4.3 Gaudium et Spes, Concílio Vaticano II (1965)

Os textos que encontramos em GS (n. 46-52) testemunham alguns fenômenos de


grande importância:
– matrimônio e família são unidos e pensados na categoria de “problemas mais
urgentes”, mas não mais principalmente apologeticamente, mas com abertura,
misericórdia e diálogo;
– propõe-se uma “leitura personalista” que, de forma alguma, exclui a manutenção
das estruturas disciplinares e doutrinais do séc. XIX, mas as relê com novas lentes: a
santidade familiar, o amor conjugal e a fecundidade são entendidos como parte da missão
eclesial;
– o diálogo cultural torna-se um terreno promissor para o desenvolvimento comum,
para o reconhecimento do bem do matrimônio e da família, como “escola de
enriquecimento humano”.
Esta etapa é crucial, enquanto se enquadra na “natureza pastoral” do Vaticano II,
segundo a qual a substância da antiga doutrina do depositum fidei se distingue da
formulação de seu revestimento, de acordo com a alocução Gaudet Mater Ecclesia, com
que João XXIII abriu os trabalhos conciliares.

2.4.4 Humanae Vitae, Paulo VI (1968)

Não obstante a mudança parcial de linguagem introduzida pelo Concílio Vaticano


II e o caminho para uma “personalização” do matrimônio e da família, que certamente
encontram uma afirmação de grande importância na Gaudium et Spes, ainda em 1968
encontramos na Humanae Vitae, de Paulo VI, amplos vestígios da configuração que
remonta a Arcanum Divinae Sapientiae e Casti Connubii: o matrimônio e a família –
como lugares únicos para o exercício da sexualidade – são
inteiramente “predeterminados” por Deus, deixando ao ser humano um espaço
de responsabilidade tão pequeno que resulta muitas vezes quase fictício e sempre muito
formal e, em todo o caso, sequestrado pelas teorias do “consentimento contratual”. A
possibilidade de uma “geração responsável” torna-se um tema abstrato, ao qual
não correspondem “práticas” e “disciplinas” realistas. Mas a solução ineficaz depende –
mais geralmente – de um modo de pensar o matrimônio e a família “em contraste” com a
cultura civil moderna. Matrimônio e família ainda podem ser “usados” como baluartes
antimodernos e reservas de competência eclesiástica. Mas neste “uso” sofrem também
mortificações e reduções progressivas, que paralisam o pensamento e a prática eclesial,
isolando-a e marginalizando-a da cultura comum. A “paternidade responsável” torna-se
um espaço de reflexão sobre o mundo e de autorreflexão sobre a Igreja, tendo em vista
uma compreensão diferente da relação entre união e geração.

2.4.5 Familiaris Consortio, João Paulo II (1981)

Embora dentro de uma forte continuidade com a linguagem do século


anterior, Familiaris Consortio realiza duas importantes mudanças: por um lado, introduz,
inclusive no título, a expressão familiaris, que é nova no magistério, que sempre se tinha
ocupado de “matrimônio”, não de família. Seu precedente é certamente o Concílio
Vaticano II e seu repensar a família eclesialmente. Mas a segunda passagem decisiva é o
reconhecimento aberto de uma “diferenciação” da sociedade, que doravante emerge
como evidente também para a Igreja. Não existem apenas “famílias regulares”, mas
também “irregulares”, que já não são mais automaticamente e ipso facto “infames” e
“excomungadas”. O documento de João Paulo II não dá muita importância a essa
“admissão”, mas é o início de uma pequena revolução. A lógica da contraposição à
sociedade civil, inaugurada por Arcanum Divinae Sapientiae, em 1880, cem anos depois
já não se sustenta mais no plano prático e operacional, mesmo que teoricamente ainda
possa dar um pouco de conforto. Em vez da contraposição frontal entra em questão a
conciliação na diferenciação. É apenas uma tarefa, indicada e não realizada, mas
claramente reconhecida. Isso abre o caminho para uma evolução primeiro da práxis e
depois também da teoria.
2.4.6 Código de Direito Canônico (1983)

No Catecismo da Igreja Católica, n. 1601, encontra-se, sob o título “O Sacramento


do Matrimônio”, o seguinte texto:
O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio
íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação
e educação da prole, entre os batizados foi elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade
de sacramento. (CIC can. 1055, § 1)
Se olharmos sistematicamente, um fato deve nos surpreender: este é o único dos
sete sacramentos a começar com uma citação do código. Esse fato diz muito sobre a
tradição, suas luzes e sombras. É uma tradição que, como vimos, é preparada pelos
desenvolvimentos teóricos medievais, pelas reviravoltas institucionais modernas, e assim
encontra uma linguagem e uma mens pronta para ser aplicada também às novas questões,
que surgem muito mais tarde do que o Concílio de Trento. Vemos a raiz deste “início
jurídico” na evolução do magistério e da experiência eclesial, tal como se desenvolveu
nos sécs. XIX e XX.
O Código de Direito Canônico de 1917 definia o matrimônio nos seguintes termos:
“O consentimento matrimonial é o ato de vontade pelo qual cada uma das duas partes
transmite e recebe o direito perpétuo e exclusivo sobre o corpo (ius in corpus), em vista
de atos, por sua natureza, aptos à geração da prole” (cân. 1081 § 2 do CDC de 1917).
Podem-se observar aqui pelo menos três pontos importantes:
– o matrimônio é compreendido como um “contrato”;
– o ponto central é o “direito de dispor do corpo do cônjuge” e não o “consórcio
íntimo de toda a vida”;
– a ausência de qualquer referência ao “bem dos cônjuges”.
Também a linguagem jurídica, em um século, mudou profundamente, o que não
deixou de ser significativo como preparação do salto que aconteceu com a Amoris
Laetitia.

2.4.7 Amoris Laetitia, Francisco (2016)

Assim, chegamos ao magistério de Francisco. É o último elo da corrente magisterial


da Idade Moderna tardia. Não temos apenas um “novo” documento, seguindo um acurado
processo sinodal, com uma forte exigência de conversão pastoral e de vigorosa recepção
do Concílio Vaticano II. Mesmo apenas no nível do “léxico”, os “nomes do amor”
mudam e se transformam: de “arcano da sabedoria divina” a “matrimônio casto”, depois
à “vida humana”, a “consórcio familiar”, para finalmente chegar à “alegria do amor”. Por
detrás desses nomes que mudam, vemos aflorar uma história complexa, sofrida,
problemática e, ao mesmo tempo, promissora. O novo documento deve ser lido nesse
“amplo arco”, no contexto dessa história recente, sem simplesmente dissolvê-lo
nos 2.000 anos de história cristã, mas tampouco comprimi-lo na história recentíssima das
últimas décadas. À luz deste último documento, todos os outros assumem hoje
inevitavelmente novas cores e formas. Assim foi sempre na longa história da Igreja cristã,
todas as vezes em que a tradição conseguiu mostrar-se e reconhecer-se não só “viva”, mas
também “sã”. Para manter esta “constituição sadia e robusta”, é preciso recorrer
incessantemente às fontes da tradição e oferecer uma “tradução”, como procuro fazer a
seguir.

3 O início de um “novo paradigma” matrimonial, familiar e relacional

O período que se seguiu ao Concílio Vaticano II acelerou a dissolução do “modelo


séc. XIX” de compreensão e articulação da experiência matrimonial. Para usar a imagem
de um grande sociólogo alemão da segunda metade do séc. XX, “a sociedade moderna se
distingue das formações sociais anteriores por um duplo incremento: uma possibilidade
maior de relações impessoais e relações pessoais mais intensas” (LUHMANN, 2008, p.
43). O texto da AL, de fato, sancionou o encontro eclesial com este mundo por meio de
uma série de novidades que merecem ser consideradas brevemente, a seguir.

3.1 Uma teologia pós-moderna com esquemas pré-modernos

O fim do modelo de teologia católica do matrimônio do séc. XIX se nutre não só de


uma nova experiência de “união” e “geração”, oferecida pela sociedade aberta liberal e
pós-liberal, mas também do uso de “esquemas interpretativos” diferentes dos
estabelecidos entre o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano II. Uma teologia “pós-
moderna” da união e da geração recorre a “esquemas pré-modernos” para superar as
dificuldades da leitura moderna proporcionada pela “forma canônica” tridentina,
reinterpretada pela apologética do séc. XIX e pelos dois códigos do séc. XX.

3.2 A autocrítica do magistério do séc. XIX

De forma bastante explícita, a AL propõe uma “autocrítica” do estilo magisterial


dos dois séculos precedentes (cf. AL n. 35-37). Em particular, sublinham-se as distorções
de uma pastoral matrimonial baseada na denúncia estéril, na pretensa normatização, nos
“modos inadequados de expressar as convicções e de tratar as pessoas”, no “desequilíbrio
entre o fim unitivo e o fim procriativo”, na idealização ideológica da teologia, na pretensa
“autossuficiência da doutrina” e na presunção de “substituir as consciências, não formá-
las”.

3.3 Do ato ao processo: a dimensão escatológica do matrimônio

Um dos aspectos mais decisivos da mudança de paradigma consiste justamente em


uma difícil transição de considerar o matrimônio como “ato” para pensá-lo como
“processo”. A relevância dos “fatos da vida” e dos “caminhos da consciência” torna-se
assim decisiva também para a teologia, como afirma, com luminosa clareza, o último
número da AL:
Contemplar a plenitude que ainda não alcançamos permite-nos também relativizar o
percurso histórico que fazemos como famílias, deixando assim de exigir das relações
interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos
encontrar no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que
vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a
tensão por algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e toda família deve viver
nesse estímulo constante. (AL n.325)

4 As questões abertas sobre união e geração

Uma doutrina sobre matrimônio, família e fatos de convivência implica uma


releitura do conjunto da tradição. Eis os principais elementos que sintetizam análise
histórica e reflexão sistemática.

4.1 O caráter complexo do matrimônio

O matrimônio é uma “instituição” que participa simultaneamente da natureza, da


cultura civil e da vocação eclesial. Nenhuma dessas dimensões, mesmo em sua relativa
autonomia, pode ser considerada sem as outras. Há, portanto:
– fatos e desejos a serem assumidos;
– direitos / deveres a serem observados e processados;
– dons e mistérios a serem reconhecidos e celebrados.
A irredutibilidade de cada um desses níveis aos demais é um dos maiores desafios
deste sacramento. E o desafio da tradição reside justamente em salvaguardar a correlação
entre elementos não redutíveis. Essa complexidade originária do matrimônio pôs à prova
a doutrina eclesial. Seja porque o matrimônio vem “antes” do sacramento, seja porque
vem “no final” do sacramento. Por isso pôde ser o “primeiro” e “último” dos
sacramentos. Porque no matrimônio a “graça” se mostra como natureza e, ao mesmo
tempo, a natureza “já é” graça. E, em meio a esses “polos”, move-se a lei, que, por um
lado, funciona como “pedagogia” e, por outro, como “reconhecimento”. Talvez seja
precisamente nesse ponto que encontramos mais dificuldades no nosso tempo.

4.2 Os diversos bens do matrimônio

A reflexão sobre os “bens” do matrimônio foi, por sua vez, fruto de uma elaboração
natural, cultural e eclesial. Quando falamos dos “bens” do matrimônio, movemo-nos
justamente por essa encosta escorregadia. A sua identificação – inaugurada por Agostinho
através da tríade proles, fides e sacramentum – realiza uma seleção dos “dados” que – de
tempos em tempos – a natureza, a história e a Igreja colocam no foco de sua
atenção. Assim, foi possível que surgissem “bens” que a Igreja antiga, medieval e
moderna não considerava. Examinemos só três:
– o “bem dos cônjuges” e a “comunidade de vida e de amor” adquiriram nova
evidência e uma consistente autonomia;
– a “sexualidade” e o “sentimento do amor” se transformaram de funções da geração
a fins em si;
– uma “vocação eclesial” consciente mudou a relação entre sujeito, família e Igreja,
modificando as relações entre essas diferentes experiências.
Por sua vez, os “bens clássicos” já identificados por Agostinho foram enriquecidos
e transformados:
– a proles” não é simplesmente a geração, como fruto do exercício do sexo. É
antes a descoberta de uma “geração responsável”. Com toda a necessária articulação de
um pensamento sobre o espaço possível de “autodeterminação” do homem / mulher no
gerar;
– a fides não é apenas a “fidelidade conjugal”, mas um ato de fé eclesial. A relação
entre “fidelidade” e “fé” tornou-se um dos pontos-chave da releitura contemporânea do
sacramento. Aqui a relação entre “ato” e “vocação” abriu espaço para uma nova
competência teológica no campo que antes tinha sido praticamente sequestrado pela só e
óbvia competência jurídica.
– o sacramentum não se identifica apenas com a “indissolubilidade” – com o “não
poder dissolver”, ou seja, com a “negação de uma negação” – mas com o ato positivo de
amar, de conviver, de estar numa aliança. Talvez um dos pontos mais delicados dessa
evolução seja interpretar corretamente a palavra forte de Jesus, de que o ser humano “não
deve separar o que Deus uniu”.

4.3 O debate sobre a indissolubilidade

Esta palavra-chave de Jesus – “o homem não ouse separar o que Deus uniu” – indica
uma “evidência originária” e um “cumprimento final”. Um teólogo disse há algumas
décadas: o vínculo é indissolúvel, mas não é inquebrável. A questão, em nível
sistemático, requer uma solução que não pode ser simplesmente de caráter judicial,
embora requeira novas formas jurídicas. E é significativo que a tradição tenha
identificado a indissolubilidade não no plano da “diferença sacramental”, mas no da
lógica natural e comum. Por isso, o remédio para o “malogro” do vínculo deve assumir a
tarefa de uma nova compreensão que diz respeito:
– por um lado, aos sujeitos envolvidos e à sua consciência;
– por outro lado, à “historicidade do vínculo”, que não é apenas “ato”, mas
“percurso” e “vocação”.
A solução clássica para fazer frente às crises conjugais era: o vínculo é indissolúvel,
mas o sujeito ligado pelo vínculo pode ter sofrido “vícios de consentimento”. Assim se
pode reconhecer o vínculo como “nulo” com base numa investigação séria dessas “causas
de nulidade”. Porém, tudo o que a indissolubilidade do vínculo garante torna-se muito
frágil se for submetido a uma análise do consenso em que se baseia o vínculo. Assim se
passa facilmente de “tudo” a “nada”. É a solução de “foro externo”, que hoje conhece
limites cada vez maiores, tornando-se motivo de marcantes ficções e mistificações. Uma
nova via, que de algum modo a AL inaugura, retomando uma lógica mais antiga, é a do
“foro interno”, onde se pode descobrir que o vínculo, na consciência dos sujeitos, pode
ter uma história e até malograr. O grande tema que entra na doutrina do matrimônio
católico, graças à AL, com algum precedente na FC, é “a história do vínculo
matrimonial”. A solução doutrinal e disciplinar hoje requer novas categorias jurídicas,
que devem ser construídas e/ou reconhecidas. Há uma “lex condenda” (uma lei a ser
criada) que espera contribuições não acessórias ao perfil teológico do sacramento.
4.4 Lei objetiva e processo pastoral

A recuperação de uma “dimensão escatológica” do matrimônio sacramental impõe,


portanto, uma certa distância entre “instituição jurídica” e “vocação sacramental”. Isso
foi muito difícil na Europa marcada pelo Decreto Tametsi, que originou indiretamente o
que os Códigos de 1917 e de 1983 assumiram posteriormente como regra: ou seja, a
identificação de todo matrimônio entre batizados como “sacramento”. Essa identificação
determina uma espécie de “zeramento vocacional” do sacramento. E aqui entra o novo
paradigma teológico da Amoris Laetitia. Não modifica a doutrina, mas lhe garante uma
hermenêutica mais antiga e mais nova do que a da modernidade tardia. Ao recuperar uma
antiga distinção entre esferas que possuem uma certa autonomia, pode superar a ideia
(idealizada) de identificar o bem com a lei objetiva. Há “bens possíveis” que a natureza e
a cultura realizam, na diferença e na analogia com relação ao ideal eclesial. Esses bens
não só podem, mas devem ser reconhecíveis e reconhecidos.

4.5 As formas de vida e os cinco continentes do catolicismo

Uma reconsideração teológica do matrimônio, em uma relação estrutural com a


família, exige uma nova correlação de mundos e experiências, que já não podem ser
interpretados como “sistemas jurídicos paralelos”. O resíduo de “poder temporal” que
subsiste no “direito matrimonial canônico” ainda impede de reconhecer o “bem possível”
da esfera natural e da esfera civil. Um grande repensar teológico reinterpreta a dimensão
jurídica à luz da escatologia. A tudo isto deve se acrescentar a grande mudança
introduzida na doutrina do matrimônio, após o Concílio Vaticano II, pela descoberta de
culturas – também matrimoniais – de cinco continentes diferentes, que entram como
sujeitos na doutrina e disciplina eclesial. O testemunho eclesial, mediado por experiências
naturais e por histórias civis muito diversas – entre África, Oceania, Ásia, América e
Europa – aporta à doutrina do matrimônio uma nova riqueza e uma grande diversificação
de perspectivas, embora em continuidade com a tradição. Somente um papa “latino-
americano” poderia levar à plena evidência essa novidade estrutural.

5 O bem da relação sexual e o “fenômeno amor”

Se recapitularmos o percurso geral realizado até aqui, podemos observar uma série
de dados relevantes e lê-los em uma perspectiva sapiencial. As relações pessoais, as
comunidades de vida e as alianças esponsais foram interpretadas durante séculos com a
categoria de “bem”, precisamente porque desde o começo houve a tentação de lê-las como
um “mal”. Como vimos, a primeira grande síntese sobre o matrimônio, escrita por Santo
Agostinho, intitulava-se De bono coniugali (Sobre o bem conjugal). Se superarmos a
ideia de que o matrimônio é um mal – essa foi a tentação de uma parte do cristianismo
antigo que permaneceu oculta até L. Tolstoi e mesmo depois – e se assim também
pudermos superar a ideia de que o único “cônjuge” de cada homem ou mulher só pode
ser Cristo e que, portanto, todo “outro” matrimônio é ilícito ou pecaminoso, entramos na
consideração do matrimônio como um “bem”, ou seja, na teoria dos “bens do
matrimônio”. Agostinho ofereceu uma apresentação sintética que fez escola por muitos
séculos: os três bens do matrimônio são os filhos, a fidelidade e o sacramento (isto é, a
indissolubilidade). O primado da geração é claríssimo para Agostinho, pois é a verdadeira
justificativa central da vida matrimonial. Se alguém for incapaz de continência, a
orientação do ato sexual à geração torna-o lícito. Mas não só a “geração” é um bem do
matrimônio; também a “fidelidade” e o “vínculo para sempre”. Já para Agostinho, ser fiel
e vincular-se para sempre tem sua dignidade própria, mesmo que não haja geração.

5.1 Os bens do matrimônio são três, aliás quatro

Durante séculos essa representação do matrimônio, justificado pela geração,


permaneceu central. Pelo menos até o código de 1917 – e assim oficialmente até 1983 –
a definição do vínculo matrimonial como ius in corpus (direito ao corpo) de cada um dos
cônjuges sobre o outro mostra a centralidade do ato de união sexual como justificativa
teológica do matrimônio. Deve-se acrescentar que, sempre a partir de Agostinho, a
distinção entre “bens em si” e “bens para outrem” colocou o matrimônio “em função” ou
da geração ou da amizade social.
Mas, com a modernidade tardia, outro modo de entender a relação entre homem e
mulher foi ganhando força. Agora no matrimônio cada sujeito, além de gerar os filhos,
encontrava no bem do outro e no bem próprio em relação ao outro um valor decisivo. A
consideração do próprio prazer da carne perdeu o caráter de libido a ser refreada e de
intemperança a ser combatida, para assumir o de expressão e experiência de amor – ao
ponto de levar a própria Igreja Católica, a partir do Concílio Vaticano II, a falar do
matrimônio como “comunidade de vida e de amor” e assim acrescentar aos clássicos tria
bona (três bens), de que Agostinho tinha falado, um quarto bem, o bonum coniugum,
o bem dos cônjuges. Nesse horizonte, obviamente, muitas coisas estavam destinadas a
mudar.

5.2 A geração perde a exclusividade

A personalização do matrimônio e da família não é indolor, nem mesmo para a


teologia. A centralidade da geração começava a ser contestada e falava-se, oficialmente,
pelo menos a partir da Humanae Vitae, de “procriação responsável” ou de “paternidade e
maternidade responsável”. Um certo “controle” da geração tornou-se possível e razoável,
em consonância com a nova relevância do bem do casal. Do ponto de vista de um
pensamento sistemático, esse novo posicionamento alterava profundamente o sistema
latino, que Agostinho tinha inaugurado com sua autoridade e cuja síntese tinha
atravessado com grande força mais de um milênio e meio de história.
No entanto, não é comum tirar as consequências sistemáticas necessárias desta
grande transformação: ou seja, é difícil admitir que, se a geração é absolutamente central,
é evidente que a relação entre homem e mulher só pode ser “ordenada” se o ius in
corpus (direito ao corpo) for exercido dentro do matrimônio. Se, portanto, o sexo se
justifica pela geração, é evidente que apenas o matrimônio é o lugar do exercício do
sexo. Se, porém, a relação entre homem e mulher tem, em si, um valor de “bem”, o
exercício da sexualidade adquire certa autonomia, não só da geração, mas também do
matrimônio. Torna-se um “bem” sem necessariamente ter que estar ligado à geração. A
relação entre união e geração muda e pede novas mediações, mais flexíveis e menos
rígidas.
5.3 Do uso do sexo à experiência da sexualidade

Esse desenvolvimento não impede de modo algum que ainda hoje se reconheça no
matrimônio a unidade complexa desses quatro bens (geração, bem dos cônjuges,
fidelidade e indissolubilidade), mas não exclui que possam existir formas de vida, uniões
(heterossexuais ou também homossexuais) em que existam só alguns desses bens. Que
permanecem bens, mesmo que não estejam no horizonte da geração. Geram amizade
social, fidelidade, paz, mesmo que não gerem filhos.
A primeira pergunta que devemos fazer é, então: será que um homem e uma mulher
podem viver a fidelidade, a indissolubilidade e o cuidado mútuo sem gerar? Isso não é de
forma alguma impossível, aliás é real e pode até assumir a forma de matrimônio, mesmo
sacramental, contanto que a “ausência de geração” não seja vivida e apresentada como
uma escolha explícita. Assim tem sido desde a época de Agostinho. O “não poder gerar”
não impede o sacramento. Mas mesmo no caso em que a não geração fosse explicitamente
desejada e, portanto, o sacramento fosse excluído, o que nos impediria hoje de
abençoar, na união não sacramental, os bens que existem, ao invés de amaldiçoar pelo
bem que não existe?
Aqui se encontra um ponto delicadíssimo da tradição moral recente: se o “mal
menor” ou “bem possível” pode ser considerado uma “desordem” e, portanto, um pecado,
ou, ao invés, uma “outra ordem”, um “bem menor”.

5.4 Um único bem pode ser abençoado?

Lembremos que, em 2010, houve uma polêmica em torno de algumas declarações


de Bento XVI a respeito do uso de preservativo por um “prostituto”, o que em certas
circunstâncias poderia ser considerado um “ato moral”. O mesmo exemplo pode ser
aplicado não no que toca o juízo moral, mas no que concerne ao discernimento
pastoral. Tomemos o caso extremo em que, na vida de um “prostituto” ou de uma
“prostituta”, sejam expressamente desejadas – diríamos por profissão – a ausência de
geração e a óbvia ausência de fidelidade, mas se viva uma relação estável, heterossexual
ou homossexual, na qual um cuida do outro e deseja o bem do outro. Essa “comunidade
de vida e de amor”, percebida não como ocasional, mas como tendo uma estabilidade
adquirida, fora de qualquer perspectiva sacramental, por que não poderia ser reconhecida
e abençoada? E, se assim fosse, não poderia ser a fortiori válido também para a vida
descomprometida de um homem e uma mulher, ou de dois homens, ou de duas mulheres,
que vivem a sua infertilidade natural forçada ou voluntária, mas que são fecundos na
relação pessoal, social, cultural e eclesial? Se faltassem três dos quatro bens que
compõem a relação matrimonial, mas o subsistente fosse realmente um bem, uma forma
de “viver para o outro” e de “abnegação”, ainda que em meio à possível ausência dos
outros três, não seria a Igreja o lugar ideal para um reconhecimento profético, antes que
o tribunal severo de um julgamento de exclusão?
5.5 O centro e a periferia: as diferentes linguagens da Igreja

Concluindo, perguntamo-nos qual deve ser a consciência dos ministros da Igreja


diante do fenômeno da união e da geração. Deveria ser a de consciência de funcionários
de uma instituição que carrega, importa e impõe o centro em todas as periferias? Ou de
homens de Deus que conduzem ao centro toda periferia por remota e isolada que seja? A
Igreja não estabelece nem impõe o bem: antes de mais nada, ela o reconhece e acolhe.
Por conseguinte, a questão decisiva não é qual é o poder da Igreja sobre a bênção, mas
sim qual é a autoridade que o bem real e o bem possível exercem sobre a Igreja
mesma. A primeira pergunta surge de uma Igreja “fechada em seu centro”; a segunda
surge espontaneamente de uma Igreja verdadeiramente em saída universal, convicta de
ter um centro eucarístico, mas também um corpo sacramental e, finalmente, uma periferia
e um “fora de si” a ser estimulado no louvor, na ação de graças e na bênção. Uma igreja
que sabe poder e dever falar com linguagens diferentes no seu centro, no seu corpo
alargado e nas margens mais extremas de sua periferia. Quanta semelhança com seu
Esposo e Senhor poderia reencontrar em si mesma uma Igreja que estivesse acostumada
a comer com as prostitutas e os publicanos, que soubesse deter-se para conversar com
mulheres de muitos maridos, que não perdesse a ocasião para se entreter com cegos de
nascença e com pobres doentes, nos quais seria sempre capaz de descobrir – sem grande
surpresa e com abertura magnânima – o rosto cheio de esperança das “primícias do
Reino”. Por isso, as distinções entre matrimônio, união civil e união natural servem
justamente para reconhecer, em cada realidade, o máximo de bem possível por parte de
uma Igreja que se reconhece não só como mestra, mas sobretudo como mãe.
Andrea Grillo. Pontifício Ateneo Santo Anselmo (Roma); Abadia de Santa Justina
(Pádua). Texto original em italiano. Tradução Paolo Brivio; revisor Francisco Taborda.
Submetido: 03/03/2021. Aprovado: 06/06/2021. Publicado: 30/12/2021.

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Ordem (Sacramento da)


1 O nome do sacramento (TABORDA, 2016, 21-26)
O nome deste sacramento não consta no Novo Testamento. Pode trazer consigo um
mal-entendido, já que a palavra “ordem” normalmente significa “cada coisa no seu lugar”.
Mas não é este o sentido da palavra. Ela se refere a um grupo de pessoas de determinada
categoria, como, por exemplo, a “Ordem dos Advogados do Brasil” (OAB), que congrega
os bacharéis em direito a quem é permitido advogar no país.
Não deve causar estranheza que a designação deste sacramento não tenha conotação
sacral nem tenha sido tomada de empréstimo à linguagem religiosa, já que, para designar
as funções eclesiais, o Novo Testamento nunca usa termos tomados das religiões.
“Sacerdote”, por exemplo, não designa nenhum ministro da Igreja, mas somente os
sacerdotes judeus (cf. Lc 10,31) e pagãos (cf. At 14,13), os cristãos em seu conjunto (cf.
Ap 1,6; 5,10) e o próprio Cristo (uso exclusivo da Carta aos Hebreus).
O termo “ordem” tem a vantagem de trazer à luz o caráter colegial ou corporativo
do ministério eclesial (cf. os Doze Mc 3,14; os Sete At 6,3; o presbitério At 15,6). À
ordenação não compete transmitir um poder possuído como indivíduo, mas incorporar
num grupo do mesmo grau, cuja tarefa consiste em contribuir para o bem da comunidade
num coletivo posto a serviço de unidade da Igreja. Não se pode, pois, conceber o ministro
da Igreja pensando e agindo por si no isolamento de sua individualidade, mas articulado
com a comunidade e os demais ministros do mesmo e dos demais graus.
Mas o termo apresenta também uma desvantagem. Embora sua adoção seja anterior
à era constantiniana, teve consequências nefastas quando o cristianismo foi reconhecido
oficialmente no Império. Ao designar-se desta maneira o ministério eclesial, transpôs-se
aos bispos, presbíteros e diáconos a mentalidade rigorosamente hierarquizada da
burocracia imperial romana. Como consequência, passou a conceber-se o ministério em
termos de “carreira das honras” (em linguagem moderna: “plano de carreira”).
A Igreja Bizantina conserva para este sacramento o nome de “imposição das mãos”
(quirotonia). Tem a vantagem de ser um termo bíblico, mas traz consigo o perigo de
esquecer-se a dimensão colegiada própria ao ministério eclesial, levando a uma
concepção privatizante, como honra possuída pessoalmente.
2 Da lex orandi à lex credendi (TABORDA, 2015, p.23-47)
A melhor maneira de apresentar um sacramento é partir da prática litúrgica da
Igreja, tal como foi “em toda a parte, sempre e por todos” celebrada (Vicente de Lérins,
† cerca de 450). Verificando a forma como a Igreja ora (lex orandi), conclui-se sobre o
que devemos crer (lex credendi).
2.1 Uma ordenação episcopal no século III (BRADSHA; JOHNSON e
PHILLIPS, 2002)
A chamada “Tradição Apostólica”, outrora atribuída a Hipólito de Roma, é o mais
antigo testemunho pormenorizado de uma ordenação episcopal. Eis o texto:
“Ordene-se bispo aquele que, [sendo] irrepreensível, tiver sido escolhido por todo o povo.
Quando tiver sido chamado pelo nome e tiver agradado, o povo se reunirá com o
presbitério e os bispos presentes, no dia do Senhor. Com o consentimento de todos, [os
bispos] imponham-lhe as mãos e o presbitério permaneça sossegado. Todos guardem
silêncio, orando em seus corações pela descida do Espírito. E um dos bispos presentes,
instado por todos, impondo a mão ao que é ordenado bispo, reze dizendo:” (Tradição
Apostólica, nº 2)
[Segue-se a prece de ordenação]
“Quando tiver sido feito bispo, todos lhe deem o ósculo da paz, saudando-o, porque
se tornou digno. Os diáconos apresentem-lhe a oblação e ele, impondo as mãos sobre ela
com todo o presbitério, diga, dando graças: ’O Senhor esteja convosco‘. E todos
respondam: ’E com teu espírito‘. ’Corações ao alto‘. ’Nós [os] temos no Senhor‘. ’Demos
graças ao Senhor‘. “É digno e justo”. E então prossiga assim:” (Tradição Apostólica, nº
4)
[Segue-se a oração eucarística]
Esse texto apresenta a celebração como um movimento contínuo em três
momentos: 1) a eleição pelo povo (incluindo o clero); 2) a imposição das mãos pelos
bispos com a prece de ordenação dita por um deles; 3) o reconhecimento da comunidade,
expresso no abraço da paz e na subsequente presidência da eucaristia.
Em cada um desses momentos atuam quatro atores: 1) os cristãos da Igreja local; 2)
os bispos das Igrejas vizinhas; 3) o ordinando; 4) o Espírito Santo, ator principal
(LEGRAND, 1988, 194-201; TABORDA, 2016, 230-240).
2.2 A comunidade e o ministério ordenado (TABORDA, 2016, 157-170)
A estrutura da liturgia de ordenação mostra a íntima conexão entre o ministério
eclesial e a Igreja presente na comunidade local. Não é o ministro ordenado que cria a
comunidade, mas é a comunidade de fé que recebe de Deus o ministro que a conserve na
unidade e estabeleça o vínculo entre ela e a Igreja espalhada pelo mundo. Discernindo no
Espírito Santo, o ator principal em toda a liturgia de ordenação, a comunidade escolhe a
pessoa que parece indicada em sua situação concreta. Mas o escolhido não se torna bispo
por essa eleição. É imprescindível o aval dos bispos vizinhos que julgarão da ortodoxia
do eleito e, pela imposição das mãos e oração, o constituirão bispo pela graça de Deus.
Também neste momento a comunidade está ativa, orando em seus corações pela descida
do Espírito. Uma vez constituído bispo, novamente a comunidade o reconhece ao acolhê-
lo pelo abraço da paz e ao participar na eucaristia por ele presidida.
A estrutura da ordenação episcopal mostra a relação entre ministério ordenado e
comunidade: o ministro vem da comunidade e nela permanece, mas, ao mesmo tempo, se
põe diante da comunidade. O bispo Agostinho de Hipona († 430) expressou-o
lapidarmente: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo; aquele é o título de minha
dignidade, este o título de minha responsabilidade; aquele é título de honra, este título de
perigo”. Mais fundamental que ser bispo é ser cristão; essa é a verdadeira dignidade.
Como bispo, o cristão assume uma responsabilidade que se torna um perigo, caso não
seja exercida como serviço à comunidade.
Estando diante da comunidade eclesial, o ministro representa para ela a Cristo, pela
força do Espírito Santo recebido na ordenação. Essa relação costuma ser expressa na
fórmula latina: o ministro age in persona Christi (na pessoa de Cristo, como seu
representante), mas só representa Cristo representando também a Igreja, inserido em sua
fé e comunhão (in persona Ecclesiae). Os dois aspectos devem ser articulados entre si.
Cristo tem uma dupla relação com a Igreja: por um lado, ela é seu Corpo (cf. 1Cor 12,12;
At 9,4); por outro, Cristo é a Cabeça e, como tal, anima o Corpo (cf. 1Cor 11,3). Assim,
o ministro, enquanto representa Cristo, está face a face com a comunidade; enquanto
representa a Igreja é um membro entre outros, apenas com uma função específica de
presidência em nome do Cristo-Cabeça.
A relação entre o regente e a orquestra pode ilustrar essa relação. O regente, diante
da orquestra, tem a função de conduzi-la na unidade. Enquanto regente, não toca nenhum
instrumento, mas sua atuação permite que todos os instrumentos toquem
harmonicamente, na hora devida, com a intensidade devida. Ele não é a orquestra, mas a
orquestra se reconhece nele. Sem a orquestra ele não é nada; precisa da orquestra para ser
regente. Não é ele que manda na orquestra, mas tampouco a orquestra manda nele. Ambos
obedecem à partitura. A execução da partitura dependerá da interpretação do regente, mas
também da capacidade dos músicos de aderirem a essa interpretação. Deste modo, o
regente representa a orquestra diante da orquestra, mas representa também o compositor.
Tal é, analogamente, a articulação entre o ministro ordenado e a comunidade eclesial.
3 A tríade bispo-presbítero-diácono (TABORDA, 2016, 190-209; BORRAS e
POTTIER, 2010)
O ministério na Igreja é uno: a função de conduzir a Igreja na unidade da fé, do
amor, da celebração. Esse ministério uno da Igreja é exercido em diversos graus por
aqueles que “já desde antigamente são chamados bispos, presbíteros e diáconos”
(LG n.28; DH 4153).
Todos eles são ministros da unidade da Igreja, mas se distinguem pelo âmbito que
lhes é próprio. O ministério fundamental é o episcopado. Sua função é animar a
comunidade em fidelidade ao testemunho apostólico. Ao interno da comunidade cabe-lhe
presidir a comunidade na adesão à fé apostólica (querigma), na prática da fraternidade
(diaconia) e na celebração da fé (liturgia). Com relação às demais Igrejas locais, é de sua
competência representar a Igreja por ele presidida na comunhão da Igreja universal
(responsabilidade colegial por todas as Igrejas) e na comunhão com a Igreja de Roma
“que preside a caridade” (Inácio de Antioquia).
O bispo não está só na presidência de uma Igreja local; é auxiliado por seu
presbitério e pelos diáconos. O bispo é bispo por presidir uma Igreja num âmbito maior,
ligada por vínculos históricos, geográficos, culturais. Por isso cabe-lhe ordenar
presbíteros que constituem com ele uma personalidade corporativa no governo da Igreja
local e, assim, presidem, em nome do bispo, as pequenas parcelas dessa Igreja local
(paróquias).
Os presbíteros são, em primeiro lugar, membros do “senado” do bispo para o
governo da Igreja local, isto é, para sua unidade. A partir daí, pode caber-lhes presidir
parcelas dessa Igreja local (comunidades eucarísticas) como representantes do bispo. A
prece de ordenação da liturgia romana define o presbítero como “cooperador da ordem
episcopal”.
A diferença básica entre bispo e presbítero reside no grau de responsabilidade que
cada um tem por uma Igreja local e na relação mútua. O bispo exerce seu ministério da
unidade sobre o todo da Igreja local e, a partir dela, é, com os outros bispos, responsável
pela Igreja universal, diante da qual testemunha a forma específica de cada Igreja local
inculturar a fé.
O diácono é o ministro encarregado dos pobres, marginalizados e enfermos, serviço
vital para a Igreja encontrar sua identidade ao modo do Servo do Senhor, descrito nos
quatro cânticos do Deuteroisaías (cf. Is 42,1-4; 49,1-6; 50,4-11; 52,13 – 53,12). Sua
função fundamental é animar, reavivar, organizar a comunidade em vista do serviço aos
pobres. A partir desse serviço aos pobres compete ao diácono o ministério da Palavra e a
atuação na liturgia; a Palavra dá dimensão cristã ao serviço aos pobres, que é um dever
moral de toda humanidade, creia ou não no Cristo. Cabe a ele levar a Palavra ao concreto
da prática solidária, testemunhar a caridade cristã, encorajar os cristãos a tomar a sério o
Evangelho.
O diácono tem sua forma própria de ser ministro da unidade. Não preside, mas
contribui à unidade da Igreja a partir dos menos favorecidos. É um ministério “partidário”.
Expressa o partidarismo da Igreja em favor do pobre. Indica que a unidade da Igreja não
se constrói a partir dos poderosos. Procura imprimir na Igreja a marca evangélica de uma
unidade desde os pobres. Por isso mesmo, vale, na Igreja antiga, como a mão direita do
bispo. Ele está, pois, relacionado ao bispo e não ao presbítero.
O diácono não é um substituto do presbítero em locais onde não existem presbíteros
em número suficiente. Seu ministério não é congregar a Igreja (presidência), mas levá-la
para fora, para as periferias do mundo, de forma que ela possa celebrar em verdade a
eucaristia, pois “não há eucaristia sem lava-pés” (E. van Waelderen).
Fazer presente o amor de Cristo para com os pobres e todos os que sofrem, são
perseguidos, excluídos, é um dever do bispo, não menor que o de presidir a vida e a
celebração da comunidade. Nesta tarefa é coadjuvado pelo presbitério, naquela pelos
diáconos. A ordem diaconal existe a serviço da Igreja local, junto com o bispo e seu
presbitério, para abrir a comunidade ao mundo.
O presbítero não é um diácono com mais algum “poder”, como o bispo não é um
presbítero com mais algum “poder”. Não são degraus de uma escada. A relação entre a
tríade deveria ser vista não numa linha vertical (superior-inferior; alto-baixo), mas numa
bifurcação. O episcopado é o ministério fundamental com dois tipos de
auxiliares diferentes e complementares como são diferentes e complementares homem e
mulher, mão direita e mão esquerda. O homem não é superior à mulher, nem vice-versa;
a mão direita não é melhor que a esquerda, nem vice-versa.
4 A espiritualidade ministerial
A pergunta subjacente a esta temática da espiritualidade é a pergunta sobre que
figuras inspiram a vida e a missão do ministro ordenado.
4.1 Cristo, o Servo do Senhor (TABORDA, 2016, 46-52; SANTANER, 1986;
MESTERS, 1981)
A figura fundamental nos é dada pelo próprio Jesus em Mc 10,42-45: “Sabeis que
os que são considerados chefes das nações as dominam, e os seus grandes fazem sentir
seu poder. Entre vós não deve ser assim. Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele
que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos. Pois o Filho
do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos”.
Nestas palavras Jesus alude aos poemas do Servo do Senhor (Deuteroisaías) e equaciona
assim a questão do poder na Igreja.
Os quatro cânticos inspiram quatro aspectos do exercício do poder na comunidade
cristã. O primeiro aspecto é o esvaziar-se, não afirmar o seu poder dominando os demais,
mas despertando o poder que neles existe (cf. Is 42,1-4: o Servo não grita, não levanta a
voz; não apaga a mecha que ainda fumega). O “poder” do ministro ordenado não é dele,
mas da Igreja, cujo poder se concentra nele. Por isso não lhe cabe nem açambarcar o
poder nem dividi-lo, como se o poder fosse dele. Cabe-lhe, sim, suscitar o poder que há
em cada um, incentivar o exercício do poder de cada um e cuidar que seja exercido no
respeito aos demais e no cuidado pela unidade do todo.
O segundo aspecto mostra que o esvaziamento deve ir ao extremo de dar a vida
pela multidão (cf. Is 52,13 – 53,12). A identidade do ministro com a comunidade já é, por
si, um “morrer” cada dia, para que a comunidade se desenvolva com autonomia. Em
determinadas circunstâncias, o dar a vida terá que ser levado às últimas consequências, o
martírio.
O terceiro aspecto é ouvir o Senhor e confiar nele (cf. Is 50,4-11). Basear sua vida
na escuta da Palavra de Deus assimilada na oração, celebrada na eucaristia, vivida a cada
momento. Elemento constitutivo do serviço ministerial é a intercessão “em favor do povo
a ele confiado e em favor de todo o mundo” (prece de ordenação presbiteral da liturgia
romana).
O quarto aspecto é levar a sério que sua missão não vem de si mesmo, mas lhe foi
confiada pelo Senhor (cf. Is 49,1-6) através da comunidade que o reconheceu apto. Seu
ministério não lhe advém por ser um privilegiado, mas por se esperar dele que viva os
aspectos antes especificados.
Em resumo: o “poder” do ministro é o poder gerado na fraqueza, que, confiando
em Deus, deixa espaço aos demais e suscita o poder dos demais.
4.2 Cristo, o Pastor exemplar (TABORDA, 2016, 70-74)
No capítulo 10 do Evangelho de João, Cristo se apresenta como “o Pastor
exemplar” (KONINGS, 2005, 204). A figura do pastor é arquetípica e apresenta quatro
características (BOSETTI, 1986a, 21-51): o pastor, guia, conduz, caminha à frente das
ovelhas; provê para que o rebanho cresça e se multiplique (procura água, pastagem,
conduz ao aprisco ou a outro lugar seguro…); está atento às ovelhas: de dia guia, de noite
guarda, especialmente se as ovelhas tem que pernoitar ao relento…; é solidário, tem com
o rebanho uma ligação afetiva, conhecimento, solidariedade. É “o pastor com cheiro de
ovelha” (Papa Francisco).
Mas a designação de pastor tem sua ambiguidade, porque o pastor é superior às
ovelhas; ele é um ser racional, as ovelhas animais irracionais. Por isso é preciso lembrar
que o “o Pastor exemplar” (“o bom Pastor”) se tornou o “Cordeiro imolado” para a vida
do rebanho. E, principalmente, é necessário iluminar a figura do pastor com a do Servo
que dá a vida pela multidão, como o fez Jesus: “O pastor exemplar dá a vida por suas
ovelhas” (Jo 10,11).
O ministro ordenado, enquanto pastor, deveria caracterizar-se por um amor
entranhado a Cristo, não apenas um amor superficial. Dada, porém, a fraqueza do homem
pecador, para início de caminhada basta o amor de simpatia (cf. Jo 21,15-17). Enquanto
não se atinge aquele grau de amor profundo por Cristo, vale a sinceridade de uma resposta
ao chamado, cuidando de não cair nas tentações que o rodeiam: não ser pastor por coação,
mas de boa vontade, espontaneamente, livremente; não por torpe ganância, mas de
coração generoso; não como dominadores, mas como modelos do rebanho (cf. 1Pd 5,2-
3) (BOSETTI, 1986b, 101-12).
4.3 Cristo, o único sacerdote (TABORDA, 2016, 32-46)
A designação mais comum para o ministro ordenado é sacerdote e, no entanto, é a
menos adequada. Provém de uma releitura veterotestamentária do Novo Testamento, que
não usa para os ministros da Igreja termos tomados das religiões. Episkopos (termo do
qual deriva a palavra bispo) significa supervisor; presbítero quer dizer ancião; diácono é
o servidor da mesa. Tampouco Jesus foi sacerdote, pois não pertencia à tribo de Levi,
condição indispensável para o sacerdócio no judaísmo.
O único escrito do Novo Testamento que qualifica Jesus como sacerdote é a Carta
aos Hebreus. E o faz para negar que Jesus seja sacerdote no sentido do sacerdócio ritual,
aarônico. O autor da Carta aos Hebreus quer mostrar como, depois de Cristo, não há mais
necessidade de sacerdotes. Ele o faz no estilo próprio da reflexão teológica judaica,
comparando a vida de Cristo com a ação do Sumo Sacerdote judeu no Dia do Perdão
(Yom Kippur), o único dia do ano em que ele atravessava o véu do Templo e entrava no
Santo dos Santos. Jesus, por sua morte, atravessou o véu e entrou no verdadeiro Santuário
do céu, onde vive eternamente a interceder por nós (cf. Hb 7,25). Jesus exerce seu
sacerdócio através de sua vida, morte e ressurreição (cf. Hb 9–10). Seu sacerdócio não é
ritual, mas existencial (cf. Hb 10,4-10); seu sacrifício não se realiza num lugar sagrado,
mas no profano, fora dos muros da Cidade Santa de Jerusalém (cf. Hb 13,11-13); não
precisa ser repetido, pois adquiriu para nós uma redenção eterna (cf. Hb 9,12).
Desta forma, se deve dizer que Cristo é o fim do sacerdócio (cf. a expressão de
Paulo: Cristo é o “fim da Lei”, Rm 10,4). Fim significa ao mesmo tempo “término”,
desaparecimento do fenômeno em questão, e “culminação “, “meta”, aquilo a que
algo tende. Cristo é fim e realização de todo sacerdócio. A finalidade dos sacerdotes nas
religiões era mediar Deus e a humanidade. Ora, a distância entre Deus e a humanidade
foi abolida em Cristo. Primeiramente, porque, como homem e Deus (cf. DH 301-302),
une definitiva e escatologicamente os dois polos entre os quais os sacerdotes deviam fazer
a mediação. Ele é, em sua pessoa, o mediador único e perene (cf. 1Tm 2,5). Mas, além
disso, tendo nos dado o Espírito Santo, pelo qual o ser humano pode viver na imediatidade
com Deus, dispensa ulteriores sacerdotes. Pelo Espírito constituímos um povo sacerdotal
(cf. 1Pd 2,5; Ap 1,6; 5,10), temos constantemente acesso ao Pai (cf. Hb 4,16), clamamos
Abba (cf. Gl 4,6; Rm 8,15), somos ensinados por Deus (cf. Jo 6,45). Nossa imediatidade
a Deus no Espírito torna o sacerdócio dispensável (fim do sacerdócio) e Cristo é assim o
único sacerdote (realização do sacerdócio), pois nos possibilitou, de uma vez para sempre,
o acesso constante e definitivo a Deus. Tal acesso só existe no Espírito de Cristo (e não
pela natureza humana). Por isso, a Igreja é o povo sacerdotal por sua atividade missionária
que continua a missão de Cristo (cf. Jo 20,21; 1Pd 2,9).
Francisco Taborda, SJ. FAJE (Brasil). Texto original em português.
5 Referências bibliográficas
BORRAS, A.; POTTIER, B. A graça do diaconato: questões atuais relativas ao
diaconato latino. São Paulo: Loyola, 2010.
BOSETTI, E. A regra pastoral de 1Pd 5,1-5. In: BOSETTI, E.; PANIMOLLE, S.
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1986. p.7-60.
______. O Deus-Pastor. In: ______. Deus-Pastor na Bíblia: solidariedade de Deus
com seu povo. São Paulo: Paulinas, 1986. p.81-122.
BRADSHAW, P. F.; JOHNSON, M. E.; PHILLIPS, L. E. The Apostolic Tradition:
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GRESHAKE, G. Ser sacerdote hoy: teología, práxis pastoral y espiritualidad. 2.ed.
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KONINGS, J. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola,
2005.
LEGRAND, H. La réalisation de l’Église en un lieu. In: LAURET, B.; REFOULÉ,
F. (dir.). Initiation à la pratique de la théologie. Tome III: Dogmatique 2. Paris: Cerf,
1983p. 143-345.
MESTERS, C. A missão do povo que sofre: os cânticos do Servo de Deus no livro
do profeta Isaías. Petrópolis e Angra dos Reis: Vozes e CEBI, 1981.
SANTANER, M.-A. Homem e poder: Igreja e ministérios. São Paulo: Loyola, 1986.
TABORDA, F. O memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos
sobre a eucaristia. 2.ed. revista e ampliada. São Paulo: Loyola, 2015.
______. A Igreja e seus ministros: uma teologia do ministério ordenado. 2ª
reimpressão. São Paulo: Paulus, 2016.

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