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A Eucaristia
1 Realidade atual da eucaristia
A eucaristia, como principal celebração litúrgica da Igreja, sofre nestes tempos as
mesmas tensões e contradições que a fé cristã nas sociedades contemporâneas. Não é
estranho, porque celebra, precisamente, a fé em Jesus Cristo, morto e ressuscitado na vida
atual da humanidade e de cada crente. A liturgia é sensível às mudanças no mundo e na
Igreja, porque não se celebra em espaços e tempos abstratos, mas nos contextos humanos,
culturais e eclesiais concretos de cada crente e de cada comunidade. Em geral, pode-se
dizer que, na última década, um grande número de católicos deixou de participar da
eucaristia dominical e de praticar a vida sacramental. Em geral, são aqueles cuja relação
com a Igreja se baseava sobretudo na recepção dos sacramentos e na participação nos
funerais e nas grandes festas cristãs do ano litúrgico ou dos santuários. As comunidades
eclesiais de base, capelas de bairros mais homogêneos ou setores rurais, por outro lado,
tendem a manter uma práxis celebrativa mais viva e regular. Mas também, muito
frequentemente, têm se ressentido do distanciamento dos jovens e da dificuldade de
engajar leigos e leigas nos vários papéis litúrgicos ligados à eucaristia: coros, leitores,
acólitos. A crise resultante dos abusos de poder, consciência e sexuais de membros do
clero, que nos últimos anos foi amplamente divulgada e afetou fortemente a Igreja em
muitos países do continente, tem sido um fator que, para muitos católicos com uma
pertença mais frágil à Igreja e/ou uma formação mais superficial, os leva a cessar
praticamente toda a participação nela, a começar pela eucaristia dominical.
Certamente, a realidade da celebração da eucaristia é muito vasta e diversa para ser
resumida ou generalizada em poucas linhas. De um lado, existem comunidades com
celebrações muito vivas e participativas, e de outro, igrejas onde o número de fiéis que
vão à missa dominical diminuiu drasticamente, enquanto a idade média dos participantes
aumentou com a mesma radicalidade. Os planos pastorais diocesanos, o carisma dos
párocos ou dos sacerdotes que presidem a eucaristia, a formação dos leigos e das leigas e
a tradição da Igreja local são determinantes para a qualidade da vida litúrgica e, em
particular, das celebrações eucarísticas. As grandes diferenças nestes aspectos também
determinam, em grande parte, as diferenças na qualidade, participação e vivacidade das
missas.
Este olhar realista, que não pretende ser pessimista, é necessário no início de um
tratamento doutrinal da eucaristia, pois nós, católicos, colocamos este sacramento no
lugar mais alto da vida litúrgica da Igreja e não deixamos de proclamar sua centralidade
e importância. Para muitos pode parecer que essas afirmações não correspondem à
realidade no momento e, para falar a verdade, não estariam errados. Por outro lado, pode
a Igreja renunciar a afirmar e ensinar a importância e a centralidade da eucaristia, sem
com isso afetar o próprio cerne da sua práxis litúrgico-sacramental?
2 Valorização do magistério
O magistério da Igreja continua a colocar a eucaristia em um lugar eminente na sua
prática cultual. O Catecismo da Igreja Católica (CEC) reafirma que a eucaristia é “a fonte
e o ápice de toda a vida cristã”, citando a Lumen Gentium n.11 (CEC n.1324); que
“contém todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa”,
citando Presbyterorum ordinis n.5 (CEC n.1325), e termina afirmando que “a eucaristia
é o compêndio e a soma da nossa fé” (CEC n.1327).
Anteriormente, a constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano II,
a Sacrosanctum Concilium (SC), afirmava que a liturgia, da qual a eucaristia é a
expressão máxima, é “o ápice a que tende a atividade da Igreja e, ao mesmo tempo, a
fonte da qual emana toda a sua força” (SC n.10).
O papa São João Paulo II dedicou importantes páginas à eucaristia no seu
magistério, dentre as quais se destaca a sua última carta encíclica, em 2003, Ecclesia de
Eucharistia (EdE). Nela há passagens testemunhais de grande profundidade, como a que
diz: “Aqui (na eucaristia) está o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor do fim
a que todo homem, ainda que inconscientemente, aspira. Um grande mistério, que
certamente nos ultrapassa e põe à prova a capacidade de nossa mente de ir além das
aparências” (EdE n.59).
Também o papa emérito Bento XVI escreveu sobre a eucaristia. Particularmente
importante é a sua exortação apostólica Sacramentum caritatis (SC), de 2007, na qual
integra a reflexão do Sínodo dos Bispos de 2005, cujo tema foi precisamente a eucaristia.
O magistério do papa Francisco, por sua vez, oferece um grande número de
catequeses, homilias e frases sobre a eucaristia. Na catequese de 8 de novembro de 2017,
Francisco recorda o antigo e impressionante episódio dos mártires da Abitínia:
Não podemos esquecer o grande número de cristãos que, no mundo inteiro, em dois mil
anos de história, resistiram até à morte para defender a Eucaristia; e quantos, ainda hoje,
arriscam a vida para participar na Missa dominical. No ano de 304, durante as
perseguições de Diocleciano, um grupo de cristãos, do norte de África, foram
surpreendidos a celebrar a Missa numa casa e foram aprisionados. O procônsul romano,
no interrogatório, perguntou-lhes por que o fizeram, sabendo que era absolutamente
proibido. E eles responderam: “Sem o domingo não podemos viver”, que significava: se
não podemos celebrar a Eucaristia, não podemos viver, a nossa vida cristã morreria. Com
efeito, Jesus disse aos seus discípulos: “se não comerdes a carne do Filho do homem, e
não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 53-54).
Aqueles cristãos do norte de África foram assassinados porque celebravam a Eucaristia.
Deixaram o testemunho de que se pode renunciar à vida terrena pela Eucaristia, porque
ela nos dá a vida eterna, tornando-nos partícipes da vitória de Cristo sobre a morte. Um
testemunho que nos interpela a todos e exige uma resposta acerca do que significa para
cada um de nós participar no Sacrifício da Missa e aproximarmo-nos da Mesa do Senhor.
(FRANCISCO, 2017)
A pergunta do Papa Francisco é chave em nossos dias: o que a eucaristia significa
para nós hoje? Se houve momentos em que não era necessário fazer tal pergunta, não são
estes que se vive. Certamente, para apreciar a eucaristia não basta saber mais sobre ela.
Se o conhecimento não está em conexão vital com toda a vida de fé, é de pouca utilidade.
Pode nos tornar mais sábios, mas não ajuda celebrar melhor nossa fé. A eucaristia é, antes
de tudo, uma experiência. Uma experiência celebrativa, festiva, que nasce da gratuidade
de ser cristão. Podemos saber muito sobre ela, mas para que adquira seu sentido pleno
como sacramento da Igreja, deve ser experimentada, vivida e celebrada na comunidade
dos fiéis. Dessa perspectiva, tenta-se aqui sintetizar sua doutrina fundamental.
3 Sacramento principal
A liturgia e os ministérios da Igreja são orientados para a eucaristia. “Os outros
sacramentos”, afirma o CEC n.1324, “assim como todos os ministérios eclesiais e obras
de apostolado, estão unidos à eucaristia e a ela são ordenados”. Sua centralidade na Igreja
Católica é clara e está bem fundamentada na práxis e na doutrina de sua história. Por isso
é necessário conhecer esses fundamentos nestes tempos em que a formação catequética
da Igreja costuma ser fraca e escassa.
A eucaristia é o principal dos sete sacramentos. No mundo sacramental, está
ordenada com o conjunto dos sacramentos da iniciação cristã, juntamente com o batismo
e a crisma. A tríade batismo-crisma-eucaristia foi, durante os primeiros séculos do
cristianismo, a porta de entrada para a comunidade cristã, como uma celebração
sacramental única e simultânea, da qual a eucaristia era o ponto culminante. Muito tarde
na história da Igreja, apenas no início do século XX, generalizou-se o costume de
antecipar a eucaristia aos mais novos, alterando assim a ordem tradicional em que eram
ministrados os sacramentos de iniciação: 1-batismo, 2-crisma e 3-eucaristia; para uma
nova: 1-batismo, 2-eucaristia e 3-crisma. Mas já antes, na Igreja latina, a crisma havia
sido separada do batismo no momento da administração. A razão é que, no Ocidente, ao
contrário das comunidades do Oriente cristão, o bispo (e não o sacerdote) foi instituído
como ministro ordinário (hoje o chamamos original) da confirmação. Os padres
batizavam os recém-nascidos e somente quando o bispo visitava a localidade, ou quando
crianças ou jovens podiam ir à sé episcopal, eles podiam ser crismados. E muitas vezes
anos se passavam entre os dois sacramentos. Mas mesmo assim, a eucaristia era recebida
pela primeira vez apenas na crisma, preservando assim a ordem tradicional: 1-batismo,
2-crisma e 3-eucaristia e, portanto, se preservava o sinal concreto da eucaristia como
culminância da iniciação cristã.
Hoje se considera importante recuperar a unidade destes três sacramentos, teológica
e pastoralmente vinculados e interdependentes. Já que nas igrejas latinas essa unidade não
pode ser temporal – o costume e certas vantagens pastorais de administrar a primeira
eucaristia primeiro e depois a crisma estão muito arraigados – tenta-se que seja pelo
menos catequética e liturgicamente clara: na formação e no ritual. Considerar a eucaristia
como o ponto culminante da iniciação cristã só pode ser afirmado teoricamente, pois o
sinal estabelece como ponto culminante (pelo menos temporalmente) o sacramento da
crisma.
O batismo e a confirmação imprimem caráter, ou seja, são sacramentos que só são
recebidos uma vez na vida, pois deixam uma marca espiritual indelével em quem os
recebeu. A eucaristia, por sua vez, é o sacramento do caminho cristão: é recebida quantas
vezes forem necessárias, como alimento para viver a união pessoal com Cristo e o
discipulado. É o sacramento do viajante, do peregrino que deseja viver a sua fé no
seguimento e na fidelidade à missão confiada. Na homilia do Corpus Christi de 2015, o
papa Francisco afirmou que “a eucaristia não é uma recompensa para os bons, mas uma
força para os fracos; para os pecadores é o perdão, o viático que nos ajuda a andar, a
caminhar”. Imagem profunda e realista: a comunhão eucarística não pode ser recompensa
pelos méritos que um cristão possui, mas é precisamente o alimento de que necessita na
sua fragilidade e vulnerabilidade para viver e testemunhar a sua fé no complexo mundo
de hoje.
4 Nomes
A eucaristia recebeu vários nomes ao longo da história. Cada um deles destaca
algum aspecto de seu conteúdo teológico ou de sua forma celebrativa. A CEC os lista de
forma mais completa nos números 1328 a 1332. Três deles são particularmente
importantes:
Fração do pão. Esta expressão encontra-se em Atos 2, 42-46, no contexto da
descrição da primeira comunidade cristã, e em Atos 20, 7-11, em um contexto que pode
ser chamado de litúrgico, de uma assembleia no “primeiro dia da semana” (Domingo, Dia
do Senhor), com longa palestra (homilia) de São Paulo. A expressão fração do pão refere-
se diretamente a uma ação própria da eucaristia, como é a de partir o pão para distribuí-
lo, mas tem suas raízes em um costume judaico muito mais antigo: o do pai de família
que, depois de abençoar a mesa, partia e repartia o pão para os seus. Na refeição da Páscoa
judaica, que é o antecedente imediato da eucaristia, este gesto era particularmente
significativo.
Ceia do senhor. Em 1Cor 11,20, São Paulo usa esta expressão para distinguir a ceia
fraterna que precedeu a “Ceia do Senhor” (a eucaristia) nas primeiras comunidades
cristãs. Na comunidade de Corinto, as ceias anteriores eram palco de excessos e desprezo
pelos mais pobres, o que motiva a crítica de Paulo. Apesar de não se reproduzir na própria
Ceia do Senhor, sua proximidade com ela deve torná-los coerentes com o espírito cristão
de fraternidade, solidariedade e apreço pelos mais pobres.
Eucaristia. Este nome encontra-se, na sua forma verbal, dar graças, em Lc 22,19:
“Pegou o pão, deu graças (…)” e em 1Cor 11,24: “Pegou o pão, agradeceu e partiu-o
(…)”. Bem próximo está o termo abençoar, utilizado em Mc 14,22 e Mt 26,26: “Ele
tomou o pão, abençoou-o (…)”. Dado que a ação de graças e a bênção são ações inerentes
à liturgia cristã, e que se manifestam com particular clareza na eucaristia, este é o termo
que a liturgia atual tem privilegiado sobre os demais.
Missa? Embora a expressão “missa” continue a ser usada em linguagem coloquial
e pastoral em português, espanhol e outras línguas, é um termo que deixou de ser usado
em linguagem teológica devido à sua escassa relação com qualquer aspecto central da
eucaristia. Sua origem está na Idade Média, na fórmula de despedida dos fiéis no final da
eucaristia: “Ite, missa est” (literalmente, “vai, foi enviado”, referindo-se implicitamente
à celebração). A partir daí, por metonímia, a eucaristia passou a ser chamada de “missa”.
5 A doutrina fundamental
5.1 Instituída por Cristo na última ceia
A tradição cristã, baseada no Novo Testamento, afirma que a eucaristia foi instituída
por Jesus Cristo na ceia que ele celebrou com seus apóstolos na noite anterior à sua
paixão. Os textos fundamentais são Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-
25. Transmitem, com pequenas variações, o relato da instituição que até hoje constitui a
parte central das Orações eucarísticas. Também é fundamental Jo 13,1-15, que relata o
lava-pés que Jesus fez durante a ceia, considerado um sinal cujo conteúdo e significado
são paralelos e análogos ao da fração do pão: a entrega radical de sua vida ao serviço da
humanidade. Diz que o Senhor, tendo amado os seus, amou-os até o fim. Sabendo que
chegara a hora de deixar este mundo para voltar para seu Pai, durante o jantar, ele lavou
os pés dos apóstolos e deixou-lhes o mandamento do amor como missão. É o mesmo
conteúdo da oferta do pão partido e do vinho repartido, sinais da entrega radical de Jesus
aos seus, que os seus discípulos devem imitar em sua memória.
Na ceia, Jesus deu à Páscoa, a principal festa judaica, seu “significado definitivo”
(CEC n.1340). “O nosso Salvador, na última Ceia, na noite em que foi entregue, instituiu
o sacrifício eucarístico, (…) banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de
graça e nos é concedido o penhor da glória futura” (SC n.47).
Para lhes deixar um penhor desse amor, para nunca se afastar dos seus e torná-los
participantes de sua Páscoa, instituiu a eucaristia como memorial de sua morte e
ressurreição e ordenou a seus apóstolos (“aqueles que constituía os sacerdotes do Novo
Testamento”, Concílio de Trento, Denziger-Hünermann (DH), n.1740) para fazerem o
mesmo “em sua memória” (Lc 22,19 e 1Cor 11,24). Eucaristia e sacerdócio ministerial
são dois temas que a tradição católica manteve essencialmente ligados.
Ao falar da instituição da eucaristia, é necessário referir-se à compreensão
contemporânea de “instituição”: não é apenas o momento fundante de um sacramento,
mas sobretudo a vontade de Jesus de salvar por meio de certos sinais rituais em que Ele
mesmo continua a agir por meio do Espírito Santo, através de ministros que o fazem em
seu nome e em seu lugar. Ou seja, a instituição não é apenas uma ação do passado
histórico, mas um efeito permanente dela, cada vez que o sacramento – neste caso, a
eucaristia – é celebrado novamente: ali está Jesus Cristo, agora ressuscitado e glorioso,
presidindo cada assembleia que celebra sua fé.
5.2 Memorial da Ceia
A eucaristia é “memorial”: “Fazei isto em memória (comemoração) de mim”. Este
conceito é fundamental na compreensão sacramental contemporânea. Permite-nos
compreender melhor o mistério da presença e atualização da obra salvífica de Cristo na
liturgia, e especialmente na eucaristia. Não é uma mera memória subjetiva individual,
mas uma ação ritual e eclesial que torna atual e presente a força libertadora das ações de
Jesus. A eucaristia é, portanto, o memorial do mistério pascal de Cristo: não só evoca ou
recorda, mas também traz, de algum modo, para o aqui e agora, a obra de salvação
realizada pela sua vida, morte e ressurreição. Essa obra torna-se presente e atual através
da ação litúrgica celebrada pela Igreja.
Os ritos e as palavras constituem a “matéria-prima” do mundo sacramental cristão
e, em particular, da eucaristia. Esses ritos, que são ações simbólicas realizadas pelos fiéis
em lugares e com objetos significativos, e acompanhados por palavras igualmente
significativas, faladas ou cantadas, são os elementos básicos de toda celebração litúrgica.
Na história da eucaristia, o âmbito significativo estendeu-se, para além dos ritos e das
palavras, ao prédio em que é celebrada, cujo centro visual e ritual é ocupado pelo altar,
acompanhado do ambão da Palavra, a outros lugares significativos dentro dele (pia
batismal, sacrário, sede, lugar de penitência, imagens), e para a vestimenta dos ministros.
Todos estes sinais são elementos que “falam”, comunicando um sentido que ultrapassa a
mera compreensão racional e envolve todo o ser daqueles que formam a assembleia que
celebra a sua fé. No “prédio-igreja” é realizada a “Ceia do Senhor”, que em sua forma
ritual evoca a ceia de Jesus com seus discípulos antes de sua paixão e morte. A mesa
(alimento) e a palavra (comunicação) também são os elementos centrais de toda ceia de
convívio.
A eucaristia é memorial da única ceia histórica que Jesus celebrou com seus
discípulos antes de padecer. Tanto a última ceia narrada pelos Evangelhos, como também
a paixão, morte e ressurreição de Jesus, ocorridas imediatamente depois, ocorreram
apenas uma vez na história (ephapax). O que foi dado temporalmente se deu uma vez por
todas, sacramentalmente, pela obra do Espírito Santo, pode ser realizado “em memória
sua” todas as vezes e em qualquer lugar que um grupo de cristãos queira celebrar sua fé,
“até que Ele venha” (1Cor 11,26), atualizando hic et nunc (aqui e agora) a salvação
ocorrida no mistério pascal. Assim, cada eucaristia na história participa,
sacramentalmente, na única ceia do passado temporal por obra do Espírito Santo. Cada
eucaristia é um memorial ou comemoração da última ceia.
5.3 Memorial do sacrifício
SC n. 47 afirma: “O nosso Salvador instituiu na última Ceia, na noite em que foi
entregue, o Sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo
decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz (…)”.
Assim como é um memorial da ceia, a eucaristia é também um memorial do único
sacrifício histórico de Cristo na cruz. Isso é comumente expresso simplesmente dizendo
que a eucaristia é sacrifício. Mas essa expressão pode suscitar interpretações equivocadas.
Tal como acontece com a ceia, quando se diz que a eucaristia é sacrifício, não se afirma
em sentido histórico, pois historicamente Jesus morreu uma só vez na cruz, mas em
sentido sacramental ou memorial: a eucaristia é o “sacramento do sacrifício (da cruz)”.
No entanto, isso não explica por que ou em que sentido a própria cruz, ou seja, a morte
histórica de Jesus Cristo crucificado, é um sacrifício. O livro bíblico que desenvolve essa
ideia é a carta aos Hebreus (Hb 7,26-27; 10,1-14), afirmando que Cristo é o único
sacerdote que oferece um único sacrifício (oferecendo-se na cruz), uma vez e para todos.
Ou seja, o sacrifício é feito por Jesus se oferecendo. Daí a expressão que ele é “sacerdote,
vítima e altar”. Fora da Bíblia, a Didaquê, escrita contemporânea aos últimos livros do
Novo Testamento, é a primeira escrita que fala da eucaristia como um “sacrifício”.
A eucaristia não é “sacrifício” no sentido usual da palavra, isto é, uma oferta feita a
Deus para atrair algum favor, expiar uma falta ou purificar-se. O Deus de Jesus Cristo
não precisa de sangue ou sacrifícios humanos – como a terrível tortura e morte na cruz –
para amar e favorecer seu povo. Jesus não se ofereceu como sacrifício nesse sentido. O
“cordeiro de Deus”, Jesus Cristo, que evoca aquele cordeiro sacrificado em cada Páscoa
judaica para ser comido em família, recordando a refeição rápida de cordeiro assado, pão
sem fermento e verduras amargas antes de partir para o êxodo, não pode ser entendido
como uma oferenda apresentado pelo ser humano como um sacrifício a Deus, para
apaziguá-lo ou obter favores.
Por outro lado, a crítica profética do Antigo Testamento já havia alertado que os
sacrifícios sangrentos (de animais sacrificados de maneiras diferentes) não agradam a
Deus se não implicam uma vida diária coerente com a adoração. “Eu quero misericórdia,
não sacrifícios”, diz Oseias 6,6, profetizando contra a adoração vazia. E Isaías diz: “Estou
farto de holocaustos de carneiros… e o sangue de touros e bodes não me agrada. (…)
Buscar o que é justo, dar seus direitos aos oprimidos, fazer justiça aos órfãos, defender a
causa da viúva ”(Is 1,11,17). Um sacrifício “espiritual”, isto é, oração crente e amor ao
próximo, agrada mais a Deus do que sacrifícios materiais de animais.
O que Jesus fez foi dar a sua vida por amor extremo, radical, pela humanidade,
coroando assim uma vida e um ministério de serviço humilde à humanidade, representado
no lava-pés que o Evangelho segundo João coloca no lugar da Ceia do Senhor. Jesus não
queria morrer da maneira que vislumbrava: daí a sua oração pungente no jardim do
Getsêmani. A sua entrega à vontade do Pai é consequência de uma missão entregue à
missão de dar vida, que com a sua morte teria a sua expressão máxima, a ressurreição dos
mortos. Só nesse sentido pode-se dizer que a morte de Cristo foi um sacrifício. Toda a
sua vida foi ser pão partido/corpo entregue e vinho/sangue derramado por seu próximo.
No sacrifício da cruz culmina uma atitude permanente de Jesus, que ele entendeu como
essencial na missão confiada pelo Pai: o despojo de si mesmo assumindo a condição de
escravo (Fl 2,6-8), servindo a humanidade até a entrega voluntária da própria vida.
O caráter sacrificial da eucaristia, sempre afirmado pela doutrina da Igreja Católica,
com extrema força depois que Lutero e a Reforma do século XVI o negaram, deve ser
entendido como uma participação memorial na entrega voluntária e extrema de sua vida,
aceita por Jesus Cristo como consequência da sua missão no mundo. Ao mesmo tempo,
e daí o verdadeiro sentido da apresentação das ofertas na celebração da eucaristia, a
assembleia atualiza o sentido sacrificial da sua própria vida cristã, ou seja, oferece-se
como instrumento do amor de Deus pela humanidade, e está empenhada em perpetuar a
missão de Cristo de anunciar e fazer presente o Reino de Deus no mundo.
A eucaristia é sacrifício neste horizonte. Na medida em que é um dom recebido de
Deus, a eucaristia é memorial do seu amor extremo e, na medida em que é oferta a Deus,
é sacrifício: não para obter algo dele, mas para dar a própria vida por seu Reino, como
Jesus.
5.4 A presença real de Cristo
A Igreja sempre afirmou que, nas espécies “eucaristizadas” do pão e do vinho,
Cristo está presente. A base bíblica fundamental são as palavras de Jesus nas histórias da
instituição: “Este é o meu corpo … este é o meu sangue” (Mt 26,26-28). A fé na presença
de Cristo na celebração e nas espécies eucarísticas está presente desde o início da
formação da liturgia cristã.
Veio então, no desenvolvimento histórico da eucaristia, a veneração das espécies,
principalmente do pão, quando sobravam pedaços após a celebração. Eram conservados
com respeito para serem distribuídos aos enfermos ou impossibilitados de participar da
eucaristia e, posteriormente, passaram a ser objeto de devoção e mantidos em sacrários
ou tabernáculos feitos especialmente para esse fim. Finalmente, em paralelo com a perda
do sentido de comunhão eucarística, quando ninguém ou muito poucos já se
aproximavam para comungar, a adoração do pão consagrado desenvolveu-se mais
intensamente como uma liturgia própria e independente da celebração da eucaristia, e a
construção dos altares barrocos, que muitas vezes exaltavam a guarda para a adoração em
exuberantes retábulos que ocupavam toda a largura e altura da abside das igrejas.
A presença de Cristo na eucaristia é firme doutrina da Igreja Católica, que também
as grandes igrejas reformadas partilham, embora com nuances diferentes na sua
interpretação. O Concílio de Trento formulou dogmaticamente esta afirmação dizendo
que sob as espécies consagradas o próprio Cristo, vivo e glorioso, está presente de
maneira verdadeira, real e substancial, com seu Corpo, seu Sangue, sua alma e sua
divindade (DH n.1640, 1651) .
No entanto, a presença real de Cristo na eucaristia nunca foi fácil de entender
racionalmente; menos ainda para a mentalidade técnico-científica contemporânea.
Percebe-se com muita clareza, como acontece com todas as verdades cristãs
fundamentais, que é somente pela fé que pode ser aceita. A pergunta sobre como isso
pode acontecer sempre acompanhou os cristãos.
5.5 A transubstanciação
Foi a permanente dificuldade em compreender racionalmente a afirmação de que o
pão e o vinho consagrados são o corpo e o sangue de Cristo – quando o bom senso e a
evidência dos sentidos da visão, olfato, paladar e tato dizem que só há pão e vinho – que
levou, já no final da Idade Média, a complexas reflexões e árduas discussões sobre como
ocorre a mudança nas espécies. O resultado foi a teoria finalmente aceita pela Igreja
Católica: a doutrina da transubstanciação (DH n.1642).
Segundo ela, no relato da instituição, ocorre a transubstanciação do pão e do vinho
no Corpo e Sangue de Cristo. A doutrina explica que ocorre uma mudança de substância,
ou de essência, do pão e do vinho, que se tornam Corpo e Sangue de Cristo, mas sem
mudar seus acidentes de pão e vinho (aparência, peso, cor, sabor, cheiro e textura), de
modo que, embora mantenham as características do pão e do vinho, mudaram de essência,
sendo agora, verdadeiramente, a do Corpo e Sangue de Cristo.
A doutrina da transubstanciação continua a ser uma explicação plausível de como
se dá a transformação do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo, mas tem sido
complementada ou ampliada por outras contribuições na contemporaneidade, que
criticam sua concentração no que acontece com a espécie sem considerar um fator
essencial da eucaristia: seu significado e sua finalidade; isto é, eles afirmam que a doutrina
da transubstanciação considera as espécies estaticamente e postulam que a transformação
das espécies deve ser entendida de forma dinâmica e de acordo com o significado do
sacramento da eucaristia: alimento espiritual, força para a vida eclesial. Daí os nomes
dessas teorias: transignificação e transfinalização.
Especialmente interessante é a segunda, pois Jesus, na última ceia, não se limitou a
dizer: “Este é o meu Corpo, este é o meu Sangue”; em vez disso, ele fez os gestos e
pronunciou essas palavras com um propósito: para distribuir aquela comida e aquela
bebida entre os comensais e serem também consumidas por eles. Quer dizer: à afirmação
de que este pão é o seu Corpo e que o vinho é o seu Sangue, o seu consumo na ceia festiva
e fraterna pertence teológica e ritualmente, como uma única ação litúrgica. E, ainda mais,
este consumo visa alimentar a vida interior e a fidelidade ao seguimento de Cristo por
parte de quem o faz, não só individualmente, mas como Igreja, Corpo de Cristo. Não
basta considerar a transubstanciação em si, sem fazê-la juntamente com sua finalidade. É
por isso que não poderia haver uma eucaristia em que apenas o sacerdote celebrante
comungasse, visto que é celebrada para a comunhão eucarística, embora parte das
espécies sejam preservadas para serem distribuídas posteriormente ou para a adoração
eucarística.
5.6 A questão das espécies e a fórmula essencial
Pão de farinha de trigo feito na hora e vinho natural, de uva, não corrompido, são a
“matéria” do sacramento. Um pouco de água deve ser misturada ao vinho. O Código de
Direito Canônico especifica que “ segundo a antiga tradição da Igreja latina, o sacerdote
utilize o pão ázimo, onde quer que celebre” (CIC n.926 §1). O pão ázimo é o pão feito
sem fermento. Os ritos orientais geralmente usam pão fermentado para a eucaristia.
A comunhão, de acordo com a Introdução à última edição do Missal Romano
(2002), pode ser oferecida em muitas ocasiões nas duas espécies (com pão e vinho), mais
do que no passado. Mas a comunhão segue válida sob a espécie única do pão e, se
necessário, quando alguém não está em condições de engolir sólidos, sob a única espécie
do vinho. Mais que a validade, a verdade do sinal aconselha comungar habitualmente sob
as duas espécies, uma vez que isso foi feito pelo Senhor na última ceia e assim se fez
durante séculos em todas as comunidades cristãs.
Todos os sacramentos têm uma fórmula essencial, a cuja proclamação está ligada a
sua validade e que tradicionalmente é muito cuidada pela Igreja. Na eucaristia, esta
fórmula é considerada a Oração eucarística completa, desde o diálogo antes do Prefácio
à doxologia com o Amém final. O cerne da oração é constituído pelo relato da instituição,
que não corresponde literalmente a nenhum dos relatos bíblicos mencionados acima (Mt,
Mc, Lc e 1Cor), mas contém o essencial deles: “Peguem e comam todos dele, porque este
é o meu Corpo, que será entregue por vocês. / Tomem e bebam todos dele, porque este é
o cálice do meu Sangue, Sangue da nova e eterna aliança, que se derramará por vocês e
por muitos para remissão dos pecados. Façam isso em memória de mim.”
6 A eucaristia e a Igreja
São Paulo afirma que os cristãos são o corpo de Cristo e Cristo a sua cabeça (1Cor
12,13-30). Esta imagem tem uma expressão particularmente intensa na celebração da
eucaristia. Nela os fiéis se reúnem como “assembleia” e se identificam como “igreja” de
Cristo (igreja deriva do grego ecclesia, que originalmente significa assembleia). Cada vez
que celebram a eucaristia, os cristãos se constituem uma comunidade de discípulos que
continua a missão de Jesus na história. Celebram juntos em seu nome e “em sua
memória”, presididos pelo próprio Cristo, presente no ministro (SC n.7) e na própria
assembleia, que é o seu Corpo.
Toda a liturgia, e de modo muito especial a eucaristia, é “exercício do sacerdócio
de Cristo”, segundo a expressão de SC n.7. Aqui está a raiz teológica da participação ativa
que a reforma do Vaticano II promoveu na liturgia. Todo o Cristo, isto é, Cabeça e Corpo,
exerce seu sacerdócio na celebração da eucaristia. Portanto, não é o sacerdote ministro
sozinho ou isolado, mas ele juntamente com toda a assembleia, que pelo batismo se
constituiu em “povo sacerdotal” (1Pe 2,9), e cada homem ou mulher batizados, em
“sacerdotes, profetas e reis” (Ritual do Batismo, oração da unção com crisma), que os
torna protagonistas da liturgia pela sua participação ativa, plena, consciente e fecunda
(SC n.48). A eucaristia, cada vez que é celebrada, é uma expressão de toda a Igreja, um
sinal histórico da Igreja celeste.
A participação ativa dos fiéis na liturgia foi uma das grandes conquistas do Concílio
Vaticano II. Desde então, se quis que os cristãos não assistissem à eucaristia como
estranhos e mudos espectadores, mas, conscientes de que na eucaristia há um encontro
com Jesus Cristo vivo e, ao mesmo tempo, compreendendo-o tanto quanto possível, dela
participem pela intimidade da fé, pelos ritos e orações, serviços e ministérios, canções e
gestos simbólicos, na riqueza da celebração. A renovação dos ritos, dos textos e dos
cantos, e especialmente os esforços de inculturação têm facilitado este propósito, embora
hoje, como já foi referido, a eucaristia sofra outras ameaças das nossas sociedades
secularizadas.
A Igreja se alimenta da eucaristia: dela vive porque é o sacramento do caminho, da
peregrinação cristã pelas luzes e sombras da vida e da história, continuando a missão de
Jesus Cristo, para a plenitude do Reino. A relação entre a eucaristia e a Igreja enfatiza
particularmente a dimensão soteriológica (relativa à salvação) e a dimensão escatológica
(relativa ao fim dos tempos), que também estão intimamente ligadas entre si. Quando
celebra a eucaristia, a Igreja é uma Igreja que experimenta a salvação e se nutre para ser
libertadora e, ao mesmo tempo, participando antecipadamente na liturgia celeste (SC n.8),
é uma Igreja da esperança.
Isso não significa que a vida dos cristãos se reduza à eucaristia; significa antes que,
sendo a eucaristia o ápice e a fonte (LG n.11) da vida da Igreja, é o momento em que toda
a nossa vida é oferecida a Deus e dele recebe força para continuar o seu caminho. A
eucaristia supõe a vida e é para a vida, assim como supõe a fé e deve fortalecê-la. Todos
os sacramentos alimentam a vida cristã, mas a eucaristia o faz de uma forma única, como
encontro do crente no centro da sua fé: Jesus Cristo morreu e ressuscitou para que todos
tenham “vida em abundância” (Jo 10,10).
A participação ativa na celebração da eucaristia é um sinal de maturidade dos
cristãos. Responder os diálogos com o ministro que preside, cantar no coro, saudar os
vizinhos no rito da paz e, sobretudo, comungar são parte integrante de uma boa celebração
da eucaristia. São um sinal visível de que não é uma simples festa humana, mas um
encontro pessoal e eclesial com Cristo ressuscitado e vivo na humanidade.
7 A celebração, em síntese
A liturgia da eucaristia desenvolve-se segundo uma estrutura fundamental que se
formou e consolidou desde muito cedo e que se conserva até hoje. Compreende dois
grandes momentos que formam uma unidade básica, “um único ato de culto” (SC n.56):
a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A elas estão associados os dois principais
centros significativos do espaço litúrgico: o altar e o ambão, que devem ser sempre
únicos. É assim que falamos das “duas mesas”: a da palavra e a da eucaristia. Essas duas
grandes partes são enquadradas nos ritos iniciais e nos ritos finais. Ao primeiro pertencem
o ato penitencial e o canto de Glória; ao segundo, a bênção final que envia a assembleia
para vivenciar o que foi celebrado.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II enfatizou de forma marcante a
importância da Sagrada Escritura na eucaristia e em toda a liturgia da Igreja. Para isso
enriqueceu o ciclo anual anterior, que se repetia a cada ano e oferecia muito menos
passagens bíblicas e muita repetição de algumas delas, planejando um ciclo de três anos
para os domingos e dois para as missas da semana (feriais), com uma riqueza muito maior
de passagens bíblicas cujo critério de seleção e distribuição foi que quem celebra a
eucaristia todos os domingos, nos três anos, tenha uma visão global de toda a Sagrada
Escritura. Os ciclos dominicais (ou “anos”) eram chamados de A, B e C, e cada um deles
recebia a leitura de um Evangelho: Mateus para o ciclo A, Marcos e João para o ciclo B
e Lucas para o C. Para a eucaristia dominical, estabeleceram-se ainda leituras do Antigo
e do Novo Testamento.
Para as eucaristias feriais foi estabelecido um ciclo de dois anos, denominado I (anos
ímpares) e II (anos pares), em que o Evangelho se repete todos os anos, mas a primeira
leitura é diferente em anos ímpares e pares. Tanto em quantidade como sobretudo em
qualidade (critérios de seleção dos textos), a Bíblia tem, desde a reforma litúrgica do
Concílio Vaticano II, uma presença digna do seu estatuto de “mesa da Palavra”, parte
essencial da eucaristia e não mera preparação para a comunhão. Em relação à riqueza
bíblica, que deve ser lida e acolhida como palavra viva, isto é, como iluminação da
realidade da assembleia celebrante, a reforma pede aos sacerdotes que façam uma homilia
todos os domingos e, com sorte, em cada eucaristia, e que seja baseada na proclamação
da Palavra de Deus.
A celebração da eucaristia não foi e não pode ser estática. Mantendo o cerne
testemunhado pela Bíblia, especialmente todo o Novo Testamento e a primeira práxis
cristã, carrega o destino de tudo o que é humano: se desenvolve, se adapta, muda ao longo
da história. A esclerose de suas normas ou a inflexibilidade para adaptá-las às culturas e
aos grupos humanos só a alienou do Povo de Deus, que precisa celebrar sua fé e sempre
encontrar uma maneira de fazê-lo. Que esta forma mantenha sempre a eucaristia em
primeiro lugar, é tarefa permanente da Igreja ser fiel a Jesus, que nos pediu
que fizéssemos isso “em sua memória”.
Guillermo Rosas, SSCC. Pontificia Universidad Católica de Chile. Texto original
espanhol. Postado em 30 de dezembro de 2020.
Referências
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Reconciliação
Introdução
A abordagem sobre o sacramento da reconciliação dar-se-á a partir dos seguintes
pontos: 1) A reconciliação como condição para a perfeita integração do ser humano
consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o cosmos;
2) A experiência da reconciliação na Sagrada Escritura; 3) A experiência da reconciliação
na prática da Igreja (abordagem histórico-teológica); 4) A experiência da reconciliação
proposta no novo ritual da penitência e seus desafios pastorais.
Matrimônio
Sabe-se que Santo Agostinho, na sua obra De bono coniugali [Sobre o bem
conjugal], ofereceu a primeira exposição de uma “doutrina matrimonial”, na qual, no
entanto, nota-se uma particularidade que chama a atenção. Embora esse texto esteja na
raiz do discurso cristão e católico sobre os “bens do matrimônio”, na realidade a questão
fundamental a que o texto de Agostinho responde é a pergunta pela compatibilidade entre
matrimônio e vida batismal. A polarização que já observamos acima encontra aqui um
“lugar comum”: se a fé é um modo de “desposar Cristo” – e isso vale para toda a Igreja,
masculina e feminina – é ainda possível ou lícito ou aconselhável para os batizados o
casar-se? A questão, que teve prevalentemente respostas positivas, conserva, aqui e ali ao
longo da história e nas várias tradições, a força de traduzir-se em diferentes disciplinas
ou papéis sociais. Pense-se, por exemplo, em como o matrimônio incidiu diversamente
no Oriente e no Ocidente sobre as formas de vida dos pastores (diáconos, presbíteros e
bispos).
Toda a grande tradição medieval, mediada com autoridade pelo Concílio de Trento,
assume, com esta encíclica de Leão XIII, a problemática nova e inédita de uma
reafirmação da “competência eclesial” em face da reivindicação de competência dos
Estados modernos sobre o matrimônio, que o séc. XIX acabara de inaugurar. Os temas
fundamentais, típicos de toda a tradição precedente, são assim “filtrados” por este novo e
dramático problema. Nesta encíclica elaboram-se as “formas de pensamento e de ação”
que serão posteriormente adotadas pelo Código de Direito Canônico de 1917. E que se
tornarão, por muitas décadas, o eixo decisivo da compreensão “católica” do
matrimônio, da família e do amor. Com seus méritos e seus defeitos. Até hoje, esse
“estrangulamento” institucional lança sua longa sombra na maneira como falamos,
refletimos, agimos e até rezamos sobre o amor e o matrimônio.
A reflexão sobre os “bens” do matrimônio foi, por sua vez, fruto de uma elaboração
natural, cultural e eclesial. Quando falamos dos “bens” do matrimônio, movemo-nos
justamente por essa encosta escorregadia. A sua identificação – inaugurada por Agostinho
através da tríade proles, fides e sacramentum – realiza uma seleção dos “dados” que – de
tempos em tempos – a natureza, a história e a Igreja colocam no foco de sua
atenção. Assim, foi possível que surgissem “bens” que a Igreja antiga, medieval e
moderna não considerava. Examinemos só três:
– o “bem dos cônjuges” e a “comunidade de vida e de amor” adquiriram nova
evidência e uma consistente autonomia;
– a “sexualidade” e o “sentimento do amor” se transformaram de funções da geração
a fins em si;
– uma “vocação eclesial” consciente mudou a relação entre sujeito, família e Igreja,
modificando as relações entre essas diferentes experiências.
Por sua vez, os “bens clássicos” já identificados por Agostinho foram enriquecidos
e transformados:
– a proles” não é simplesmente a geração, como fruto do exercício do sexo. É
antes a descoberta de uma “geração responsável”. Com toda a necessária articulação de
um pensamento sobre o espaço possível de “autodeterminação” do homem / mulher no
gerar;
– a fides não é apenas a “fidelidade conjugal”, mas um ato de fé eclesial. A relação
entre “fidelidade” e “fé” tornou-se um dos pontos-chave da releitura contemporânea do
sacramento. Aqui a relação entre “ato” e “vocação” abriu espaço para uma nova
competência teológica no campo que antes tinha sido praticamente sequestrado pela só e
óbvia competência jurídica.
– o sacramentum não se identifica apenas com a “indissolubilidade” – com o “não
poder dissolver”, ou seja, com a “negação de uma negação” – mas com o ato positivo de
amar, de conviver, de estar numa aliança. Talvez um dos pontos mais delicados dessa
evolução seja interpretar corretamente a palavra forte de Jesus, de que o ser humano “não
deve separar o que Deus uniu”.
Esta palavra-chave de Jesus – “o homem não ouse separar o que Deus uniu” – indica
uma “evidência originária” e um “cumprimento final”. Um teólogo disse há algumas
décadas: o vínculo é indissolúvel, mas não é inquebrável. A questão, em nível
sistemático, requer uma solução que não pode ser simplesmente de caráter judicial,
embora requeira novas formas jurídicas. E é significativo que a tradição tenha
identificado a indissolubilidade não no plano da “diferença sacramental”, mas no da
lógica natural e comum. Por isso, o remédio para o “malogro” do vínculo deve assumir a
tarefa de uma nova compreensão que diz respeito:
– por um lado, aos sujeitos envolvidos e à sua consciência;
– por outro lado, à “historicidade do vínculo”, que não é apenas “ato”, mas
“percurso” e “vocação”.
A solução clássica para fazer frente às crises conjugais era: o vínculo é indissolúvel,
mas o sujeito ligado pelo vínculo pode ter sofrido “vícios de consentimento”. Assim se
pode reconhecer o vínculo como “nulo” com base numa investigação séria dessas “causas
de nulidade”. Porém, tudo o que a indissolubilidade do vínculo garante torna-se muito
frágil se for submetido a uma análise do consenso em que se baseia o vínculo. Assim se
passa facilmente de “tudo” a “nada”. É a solução de “foro externo”, que hoje conhece
limites cada vez maiores, tornando-se motivo de marcantes ficções e mistificações. Uma
nova via, que de algum modo a AL inaugura, retomando uma lógica mais antiga, é a do
“foro interno”, onde se pode descobrir que o vínculo, na consciência dos sujeitos, pode
ter uma história e até malograr. O grande tema que entra na doutrina do matrimônio
católico, graças à AL, com algum precedente na FC, é “a história do vínculo
matrimonial”. A solução doutrinal e disciplinar hoje requer novas categorias jurídicas,
que devem ser construídas e/ou reconhecidas. Há uma “lex condenda” (uma lei a ser
criada) que espera contribuições não acessórias ao perfil teológico do sacramento.
4.4 Lei objetiva e processo pastoral
Se recapitularmos o percurso geral realizado até aqui, podemos observar uma série
de dados relevantes e lê-los em uma perspectiva sapiencial. As relações pessoais, as
comunidades de vida e as alianças esponsais foram interpretadas durante séculos com a
categoria de “bem”, precisamente porque desde o começo houve a tentação de lê-las como
um “mal”. Como vimos, a primeira grande síntese sobre o matrimônio, escrita por Santo
Agostinho, intitulava-se De bono coniugali (Sobre o bem conjugal). Se superarmos a
ideia de que o matrimônio é um mal – essa foi a tentação de uma parte do cristianismo
antigo que permaneceu oculta até L. Tolstoi e mesmo depois – e se assim também
pudermos superar a ideia de que o único “cônjuge” de cada homem ou mulher só pode
ser Cristo e que, portanto, todo “outro” matrimônio é ilícito ou pecaminoso, entramos na
consideração do matrimônio como um “bem”, ou seja, na teoria dos “bens do
matrimônio”. Agostinho ofereceu uma apresentação sintética que fez escola por muitos
séculos: os três bens do matrimônio são os filhos, a fidelidade e o sacramento (isto é, a
indissolubilidade). O primado da geração é claríssimo para Agostinho, pois é a verdadeira
justificativa central da vida matrimonial. Se alguém for incapaz de continência, a
orientação do ato sexual à geração torna-o lícito. Mas não só a “geração” é um bem do
matrimônio; também a “fidelidade” e o “vínculo para sempre”. Já para Agostinho, ser fiel
e vincular-se para sempre tem sua dignidade própria, mesmo que não haja geração.
Esse desenvolvimento não impede de modo algum que ainda hoje se reconheça no
matrimônio a unidade complexa desses quatro bens (geração, bem dos cônjuges,
fidelidade e indissolubilidade), mas não exclui que possam existir formas de vida, uniões
(heterossexuais ou também homossexuais) em que existam só alguns desses bens. Que
permanecem bens, mesmo que não estejam no horizonte da geração. Geram amizade
social, fidelidade, paz, mesmo que não gerem filhos.
A primeira pergunta que devemos fazer é, então: será que um homem e uma mulher
podem viver a fidelidade, a indissolubilidade e o cuidado mútuo sem gerar? Isso não é de
forma alguma impossível, aliás é real e pode até assumir a forma de matrimônio, mesmo
sacramental, contanto que a “ausência de geração” não seja vivida e apresentada como
uma escolha explícita. Assim tem sido desde a época de Agostinho. O “não poder gerar”
não impede o sacramento. Mas mesmo no caso em que a não geração fosse explicitamente
desejada e, portanto, o sacramento fosse excluído, o que nos impediria hoje de
abençoar, na união não sacramental, os bens que existem, ao invés de amaldiçoar pelo
bem que não existe?
Aqui se encontra um ponto delicadíssimo da tradição moral recente: se o “mal
menor” ou “bem possível” pode ser considerado uma “desordem” e, portanto, um pecado,
ou, ao invés, uma “outra ordem”, um “bem menor”.
Referências