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Disputas em ex-repúblicas da União Soviética

crescem em hora difícil para Putin


Envolvido com a invasão à Ucrânia, líder russo vê governos
da Ásia Central e Cáucaso buscarem novos aliados e
soluções para seus problemas, sem a ajuda de Moscou
Por Filipe Barini
09/10/2022 04h31  Atualizado 09/10/2022

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante reunião informal de


líderes da Comunidade dos Estados Independentes Alexey Danichev /
Sputnik / AFP
No dia em que comemorou 70 anos de vida, na última sexta-feira, Vladimir
Putin convidou chefes de Estado dos países da Comunidade dos Estados
Independentes (CEI), criada após o desmantelamento da União Soviética,
para uma “reunião informal” em São Petersburgo, como ato preparatório para
uma reunião de cúpula do grupo no Cazaquistão, na próxima quarta-feira. O
encontro aconteceu em um dos momentos mais complexos das relações entre
Moscou e as antigas repúblicas soviéticas, quando cresce a percepção de que
a Rússia está perdendo parte de sua influência e algumas divergências do
passado são retomadas com força.

 Legado?: Putin afirma que guerra na Ucrânia é um dos resultados


do fim da União Soviética
 Guerra impopular: Rússia começa a convocar reservistas, mas
jovens fogem e falta estrutura de treinamento

— Em nosso círculo, vamos abordar questões de segurança no espaço da


comunidade. De fato, além da Ucrânia, onde eventos verdadeiramente
trágicos estão acontecendo, infelizmente às vezes surgem conflitos entre
outros Estados próximos do espaço pós-soviético — disse Putin sobre o
encontro, do qual participaram sete dos nove líderes da CEI: os chefes de
Estado do Quirguistão e da Moldávia não foram.

Pouco mais de três décadas depois do fim da URSS, alguns problemas


herdados dos tempos soviéticos ainda são presentes. A começar pela disputa
entre Armênia e Azerbaijão, centrada no status do enclave de Nagorno-
Karabakh, que em 2020 levou a uma guerra com mais de dois mil mortos e,
no mês passado, motivou novos episódios de violência, deixando mais de 280
mortos dos dois lados da fronteira.
Mapa das ex-repúblicas da União Soviética — Foto: Editoria de Arte

Dois mil quilômetros ao Leste, outro conflito recorrente, entre Tadjiquistão


e Quirguistão, provocou quase 50 mortes e obrigou milhares de pessoas a
deixarem suas casas em setembro. Os dois países compartilham uma fronteira
de 970 km, dos quais apenas 503 km estão consolidados. Nos últimos 10
anos, foram registrados mais de 150 episódios de violência.

— Esses dois casos são conflitos diferentes, mas o que os liga é o formato
como foi realizado o desmantelamento da União Soviética, e o fato de o
sistema internacional ter reconhecido as fronteiras como elas foram
delimitadas pelos soviéticos, sem levar em consideração certos enclaves,
como no caso de Nagorno-Karabakh — afirmou ao GLOBO Heitor Loureiro,
pesquisador associado do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente
Médio (Gepom).

 Russos em fuga: Voos da Rússia para países onde visto não é


exigido esgotam após convocação de reservistas por Putin

Durante o processo de formação das repúblicas soviéticas, Moscou não levou


em consideração fatores locais, como divisões entre as diferentes
nacionalidades no Cáucaso e na Ásia Central. Isso ficou evidente nos
processos de independência, quando estouraram conflitos de grande porte,
como a guerra no Tadjiquistão (1992-1997) e em Nagorno Karabakh (1988-
1994), e enfrentamentos de menor intensidade, como entre uzbeques e
quirguizes em Osh, no Quirguistão, em 1990. Na Moldávia, cerca de 12% do
território são controlados por um governo separatista nostálgico dos tempos
soviéticos, a Transnístria, que hoje serve como uma base avançada do
Exército russo.

— O que vemos aqui ainda é o processo de formação de Estados jovens, que


ainda estão consolidando suas identidades, e em muitos casos essa identidade
do Estado-nação está relacionada à oposição ao outro — afirma Loureiro,
citando a disputa entre armênios e azeris, que nos anos 1990 desencadeou
episódios de perseguição étnica.

Ambições imperiais
Além de fronteiras mal traçadas, o desejo da Rússia de retomar o antigo posto
de “centro do império” contribuiu para a instabilidade nas antigas repúblicas
da URSS. Em 2008, um ano depois de Putin declarar, na Conferência de
Segurança de Munique, que o “mundo unipolar havia acabado”, a Rússia
invadiu a Geórgia, sob o pretexto de proteger a população russa em duas
áreas separatistas, a Ossétia do Norte e a Abkházia. O conflito durou alguns
dias, mas gerou duas entidades autônomas e reconhecidas por Moscou como
Estados independentes.

 'Ele devia dar um tiro nele mesmo': Revés na Ucrânia eleva


ataques da elite russa contra militares

Em 2014, em meio ao caos da Euromaidan, na Ucrânia, a Rússia invadiu e


posteriormente anexou a Crimeia e apoiou milícias separatistas no Leste do
país, no que se tornou a base para a guerra iniciada em fevereiro, que agora
levou a quatro novas “anexações”: de Kherson, Donetsk, Zaporíjia e
Luhansk, embora nem Moscou saiba quais são as fronteiras dessas regiões
anexadas.

Agora, distante da órbita de influência da Rússia, Kiev quer seguir os


mesmos passos de outras três ex-repúblicas — Estônia, Lituânia e Letônia —
rumo à União Europeia e, eventualmente, à Otan.

— Nós já somos aliados de fato — disse o presidente Volodymyr Zelensky


em 30 de setembro, quando entrou com um pedido para adesão rápida na
aliança militar comandada pelos EUA, embora suas chances de sucesso sejam
incertas.

Olhos para China e Europa


A postura mais agressiva de Moscou também faz com que outros países da
antiga União Soviética busquem seus próprios caminhos. Embora nenhum
tenha adotado as sanções do Ocidente, eles se abstiveram ou não votaram em
resoluções na ONU condenando Moscou e chegaram a criticar a invasão,
como o fez o líder cazaque, Kassym-Jomart Tokayev.

 'Questão humanitária': Cazaquistão promete garantir a segurança


de russos que fugiram para o país

Em janeiro, Tokayev recorreu à Rússia e à Organização do Tratado de


Segurança Coletiva, comandada por Moscou, para controlar protestos que
deixaram 227 mortos. Depois disso, em meio a planos de reforma do Estado,
passou a se distanciar do Kremlin. Como disse à revista Foreign Policy o
vice-chanceler cazaque, “se há uma nova Cortina de Ferro, não queremos
estar atrás dela”.

Meses depois, em uma cúpula da Organização de Cooperação de Xangai


(SCO) em Samarcanda, no Uzbequistão, Putin foi obrigado a esperar alguns
líderes em reuniões bilaterais, algo que costuma fazer com seus convidados.
No aeroporto, foi recebido pelo premier uzbeque, segundo no comando do
país — pouco antes, o presidente Shavkat Mirziyoyev estava no mesmo local,
mas para receber o líder chinês, Xi Jinping.

Dados dos últimos anos apontam que a China ganhou espaço dos russos na
disputa pelo posto de maior parceiro comercial da Ásia Central, e Pequim
vem despejando bilhões de dólares como parte da Iniciativa Cinturão e Rota
— entre os principais projetos está o chamado Corredor Transcaspiano, que
liga a China à Europa e ao Mediterrâneo através de Cazaquistão, Geórgia e
Azerbaijão.

 Apelo: Ucrânia deve vencer para que Rússia não 'avance contra


Varsóvia ou Praga', diz Zelensky em cúpula europeia

A Europa também busca ocupar espaço. Na semana passada, líderes de


Armênia e Azerbaijão se encontraram na primeira cúpula de um novo fórum
multilateral, a Comunidade Política Europeia, capitaneada pelo presidente
francês, Emmanuel Macron — a Rússia não está incluída entre os 44 países
convidados, e outras ex-repúblicas soviéticas, como Geórgia, Moldávia e
Ucrânia, aderiram. Na sexta, a União Europeia confirmou que vai enviar uma
“missão civil” para ajudar a delimitar as fronteiras entre Azerbaijão e
Armênia.

Apesar dos acenos das ex-repúblicas à China e à Europa, Loureiro afirma que
ainda é cedo para cravar que a Rússia se tornará um parceiro dispensável:
afinal, não é tão simples se desfazer de décadas de parceria de uma hora para
outra.

— A Rússia sempre terá a arma econômica, o argumento da venda de armas e


material bélico, mas acho que esse discurso [de distanciamento] ficará mais
no campo político, diplomático — afirma. — Também não vejo grandes
movimentos em direção ao Ocidente, especialmente no caso da Armênia, que
está frágil demais para algo desse porte. A Rússia ainda é o país que garante a
segurança das fronteiras armênias.

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