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I

O fim da União Soviética representou o fim do contexto bipolar que se


instalara no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, deixando as
repúblicas que a formava desprovidas do aparato ideológico que norteava suas
políticas e ações militares, encontrando-se então deslocadas temporalmente,
mas que sutilmente demonstravam a busca por novos interesses.

Nesse caso específico, será analisado o modo como a Federação Russa,


sob o comando do presidente Vladimir Putin, lidou com a questão da crise na
Geórgia do ponto de vista geopolítico.

Em termos de política externa e estratégia, muito fora perdido pela Rússia


com a dissolução da URSS, esta se viu desamparada de identidade, tendo que
recomeçar essa busca no início dos anos 90 para rapidamente se colocar nas
discussões mais importantes da agenda internacional. Até o presente momento
é desconhecida a definição de qual seria o padrão das atitudes russas frente o
mundo, mas aos poucos foram sendo vistas notórios eventos que se juntam
para constituir algo mais sólido. Esse é o caso da guerra na Ossétia do Sul em
2008, em que através de ações militares, a Rússia foi se impondo tanto
externamente quanto internamente, buscando a defesa de seus interesses
nacionais, relacionados à sua influência militar, política e econômica na região
bem como ao papel de importante ator regional e mundial frente à comunidade
internacional.

II

A recente guerra no Cáucaso pode ser considerada não só um ponto de


inflexão nas relações internacionais contemporâneas, marcando a volta
definitiva da Rússia ao centro do cenário político internacional como um desafio
à unipolaridade supostamente criada com o fim da Guerra Fria, mas também
um marco de sua estratégia geopolítica, evidenciada através dessa ação
internacional e traduzida em diversos documentos emitidos pelo Kremlin como
o “Military Doctrine” e o “National Security Concept”.
O conflito no qual Rússia e Geórgia se envolveram teve como palco a
região conhecida como Ossétia do Sul, provocando também grande efeito na
região da Abecásia. Tanto a Abecásia quanto a Ossétia do Sul governam-se
como Estados independentes e buscam há anos obter o reconhecimento de
sua soberania pelo governo da Geórgia e pela comunidade internacional, que
as consideram ainda como parte do dito país. Por essa razão, desde o fim da
União Soviética a situação na região é de instabilidade e iminente conflito.
Ainda assim, o fato de ter ocorrido uma guerra física na região entre russos e
georgianos surpreendeu a comunidade internacional levando essa a reavaliar
profundamente suas relações com os russos.

Para se compreender como a Ossétia do Sul, uma pequena área no Cáucaso,


acabou por figurar um marco nas relações entre a Rússia e o Ocidente, devemos
primeiro entender a história da região. Toda essa região pertencia ao Império Russo,
mas com a Revolução Russa de 1917, os georgianos declararam sua independência
decretando que seu território se expandia da região da Abecásia e a metade da região
da Ossétia. Entretanto esse não durou muito, já que em 1921 o país foi invadido e
anexado a União Soviética.

Quando sete décadas mais tarde ocorreu o colapso da União Soviética e a


Geórgia pode declarar novamente sua independência, mas dessa vez também os
abecásios e sul ossetas reivindicaram soberania sobre suas regiões. A recusa do
governo central da Geórgia a reconhecer as independências levou à graves e intensos
conflitos internos, com os governos autoproclamados a solicitando apoio de Moscou. A
intermediação russa congelou a situação: tropas de paz foram enviadas às duas
regiões e lá se encontram até hoje; apesar de possuírem governos e instituições
próprias, a Ossétia do Sul e a Abecásia jamais foram reconhecidas como Estados
independentes pela comunidade internacional. A situação nas repúblicas separatistas
acirrou-se após a eleição de Mikhail Saakashvili, em 2004.

O então presidente tinha como principal objetivo reconstituir a


integridade territorial da Geórgia, retomando o controle das regiões
separatistas, e ao mesmo tempo aproximar-se, ideológica e economicamente,
dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Não é preciso nem dizer que
ambos os objetivos se opunham aos interesses de Moscou, que via a região
como parte importante de sua “esfera de influência”. Os direcionamentos pró-
ocidentais adotados por Mikhail não foram recebidos com apatia pela Rússia
de Putin, gerando uma sequência de vários anos de atos coercitivos para com
a Geórgia, como impor embargos para exportações de vinho georgiano, água
mineral e bens agrícolas, e deportar cidadão georgianos.

Em 2008, os Russos intensificaram a pressão política depois da Cimeira


da NATO em Bucareste, onde dirigentes da Aliança declararam que a Geórgia
viria um dia a ser membro da Aliança, o Presidente Putin deu instruções para
estreitar os laços oficiais entre os ministérios russos e os seus homólogos em
ambos os territórios em disputa.

Neste contexto de crescente antagonismo, que se chegou em Agosto de


2008 à guerra dos “cinco dias”. É secundário no presente trabalho saber quem
iniciou a guerra. Mas podemos observar que a Geórgia nunca afastou à força
militar como um recurso para reconquistar as províncias perdidas. Também se
sabe que as milícias da Ossétia do Sul são peritas em provocar as Forças
Armadas georgianas. E por fim ninguém ignora que a Rússia, como já foi
comentado, aumentou a sua presença militar na região nas semanas anteriores
ao conflito, e também é sabido que as forças da Geórgia usaram a força militar
como resposta a ataques dos ossetas.

Tendo em conta a presença das forças russas no território da Ossétia do


Sul, a resposta militar Russa teve inicio, mas é importante observar que a ação
de Moscou foi muito além de uma resposta defensiva a seu protetorado. Em
primeiro lugar, as tropas russas não se limitaram a defender o território da
Ossétia do Sul e penetraram na Geórgia, chegando a cerca de 40 quilômetros
da capital e ocupando Gori e o porto georgiano de Poti no mar Negro. Ou seja,
foi uma guerra ofensiva e não meramente defensiva. Em segundo lugar, a
Rússia envolveu a Abcásia no conflito, alargando a ofensiva militar contra a
Geórgia, a partir do dia 11 de Agosto.

A partir desses dados podemos dizer que Moscou aproveitou a


oportunidade para mostrar de um modo bem claro que a Geórgia nunca
recuperaria a sua autoridade sobre as províncias. Assim, um conflito que se
iniciou na Ossétia do Sul rapidamente se alastrou à Abcásia, e teve seu fim
com o reconhecimento da independência dos dois territórios, no dia 26 de
Agosto.
O comportamento da Rússia consagra claramente a ruptura que já se
anunciava desde 2004. Ruptura essa que teve início com o segundo mandato
presidencial de Putin, de Março de 2004 a Março de 2008, marcou o que Pierre
Hassner chamou a “transição para a autocracia”.

Assistiu-se, gradualmente à centralização da autoridade do poder


central; ao enfraquecimento do sistema multipartidário; à supressão da
liberdade de imprensa e ao fim de uma comunicação social independente com
força; a ataques a organizações não governamentais liberais e conotadas com
o Ocidente; e a uma alteração da composição das elites políticas russas, com
um crescente envolvimento de elementos das forças de segurança. A doutrina
oficial russa começava, simultaneamente, a desenvolver a definição de
democracia soberana: uma democracia ao serviço dos interesses nacionais e
da expansão do poder da Rússia.

Simultaneamente, a partir de 2006, Moscou sentiu-se mais confiante,


com mais poder e mais determinada em preservar uma esfera de influência
junto das suas fronteiras, já que a UE dependia diretamente dos países que
dividiam suas fronteiras com a Rússia para importação de gás, sendo ele o
maior fornecedor do mesmo e sabia que a represália seria débil e cautelosa, já
os Estados Unidos por questões geográficas não seriam de grande ajuda para
a Geórgia e tampouco se colocariam em uma guerra por ela.

Moscou enviou três sinais à Europa, aos Estados Unidos e ao resto do


mundo. Antes de mais, há uma esfera de influência russa junto das suas
fronteiras onde Moscou faz o que for necessário para defender os seus
interesses e de um modo unilateral. Em segundo lugar, a Rússia de Medvedev-
Putin não hesita, nem teme, em hostilizar o Ocidente. Pelo contrário, pretende
demonstrar os limites de poder quer dos países europeus, quer dos Estados
Unidos, e mostrar o novo equilíbrio de poder regional, mais favorável aos
russos. Por fim, a Rússia reserva o direito de recorrer ao uso da força militar
para prosseguir e defender interesses políticos.
III

Nota-se, portanto, as intenções russas quanto à guerra na Ossétia do


Sul – relacionadas às chamadas Revoluções Coloridas 1 - e que são traduzidas
sob forma de forte intervenção militar e manipulação política, visando
principalmente prevenir a ascensão de regimes anti-russos (ou mais
especificamente anti-Putin) ou que a onda dessas revoluções chegassem à
Rússia. A Geórgia é acusada pelo governo russo de apoiar separatistas
chechenos e estabelecer relações com a OTAN e é notável o modo como a
Rússia tenta ganhar vantagem na instabilidade do governo de Saakashvili no
impasse suscitado por uma eventual fuga da esfera de controle russa pela
Geórgia.

As ações russas contam, por exemplo, com o estabelecimento de um


regime de vistos para cidadãos georgianos que queiram adentrar o território
russo, banimento de bens produzidos pela Geórgia, garantia de cidadania
russa para residentes da Ossétia do Sul e da Abcásia, uma campanha
midiática anti-georgiana e principalmente pressão militar, através da invasão do
espaço aéreo da Geórgia e bombardeios a partir de caças não especificados.

A Rússia quer assegurar as ex-repúblicas soviéticas como aliadas e


mantê-las dentro de sua órbita geopolítica, garantindo o importante status de
potência regional, mantendo sua coesão interna, livre de possíveis influências
revolucionárias que ameacem o sistema político russo. Muito material
ideológico compositor de políticas externas pode ter sido perdido com a URSS,
mas a Rússia manteve posturas que se encontram anterior à revolução
Bolchevique, como a necessidade de manutenção de uma enorme extensão
territorial ou a forte militarização, sendo esses grandes componentes da
construção da Rússia, que perduram até hoje de maneira marcante e norteiam
o país inteiro mesmo que ainda sejam órfãos de embasamentos teóricos como
plano de ação.

1
Série de manifestações políticas no espaço que corresponde à ex-URRS e coloca-se portanto sob forte
influência e controle russo, dentre as manifestações, as mais notórias e que suscitaram uma maior
intervenção da Rússia são as que ocorreram na Ucrânia e Geórgia.

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