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Notícias Brasil Internacional Economia

Qual o papel da Otan


no confronto entre
Rússia e Ucrânia?
Julia Braun
Da BBC News Brasil em São Paulo

2 março 2022

EPA

A invasão russa à Ucrânia tem como um de seus


principais panos de fundo os temores da Rússia
com o avanço da Otan (Organização do Tratado
do Atlântico Norte) no leste da Europa.

Desde o fim da União Soviética (URSS), em


1991, a aliança militar encabeçada por Estados
Unidos e Europa incorporou 13 países da região
aos seus membros, entre eles as ex-repúblicas
soviéticas Estônia, Lituânia e Letônia.

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espalhar por outros países? A resposta a
essa e outras perguntas de leitores

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e Ucrânia

A Ucrânia é atualmente um "país-associado" à


Otan, o que significa que pode se unir à
organização no futuro.

Para o governo russo, a inclusão de seus


vizinhos na aliança é uma tentativa dos
americanos e das potências europeias de cercar
seu território, o que configuraria uma ameaça à
Rússia. "Para os EUA e seus aliados, é a chamada
política de detenção da Rússia, com óbvios
dividendos políticos. E para nosso país, é uma
questão de vida ou morte, é uma questão do
nosso futuro histórico como povo. Não é
exagero. É uma ameaça real não só aos nossos
interesses, mas à própria existência do nosso
Estado e sua soberania", disse Putin ao anunciar
a invasão da Ucrânia em 24/02.

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E para tentar conter o que classifica como


ameaça, Putin vem exigindo ao longo dos
últimos anos que a Otan cesse suas atividades
militares no leste da Europa e forneça garantias
de que a Ucrânia não será aceita na organização.

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com a Rússia

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quase R$ 5 bi

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mundo — mas não do jeito que
queria

Mas afinal, qual a responsabilidade da Otan na


atual invasão da Ucrânia pela Rússia? A
expansão da aliança militar pelos países do
antigo bloco comunista ajudou a manter a paz
(como diz oficialmente) ou está justamente na
raiz da guerra que vemos hoje?

Putin costuma repetir que a Otan é "apenas um


instrumento da política externa dos EUA", país
com o maior poderio militar do mundo. Por
outro lado, a organização ressalta que todas as
suas decisões são negociadas e tomadas por
consenso entre os seus 30 membros.

A BBC News Brasil consultou especialistas de


diversas vertentes em busca de contexto e
análises variadas num debate que contrapõe
visões de mundo bastante opostas.

Quais os objetivos da Otan?

Em primeiro lugar, é
preciso lembrar que a
Otan foi criada em 1949 Podcast
por 12 países, entre eles
EUA, Canadá, Reino
Unido e França,
justamente com o
objetivo de conter o
avanço da então União
Soviética.

BBC Lê
Os membros da aliança
têm o compromisso de A equipe da BBC
News Brasil lê para
se defender
você algumas de
mutuamente em caso de
suas melhores
ataque armado contra reportagens
qualquer um deles.
Episódios

A Segunda Guerra
Mundial acabara quatro
anos antes, e os soviéticos que haviam ajudado a
derrotar a Alemanha nazista emergiam,
principalmente por questões ideológicas, como
o maior adversário da Europa Ocidental e dos
Estados Unidos.

Ou seja, a aliança militar nasceu de uma


rivalidade com a Rússia, o principal país-
membro da URSS, numa oposição entre dois
campos: o capitalista e o comunista.

Em 1955, a Alemanha, antiga inimiga na guerra,


entrou para a organização. No mesmo ano, os
soviéticos criaram sua própria aliança militar, o
Pacto de Varsóvia, com outros países do Leste
Europeu de orientação comunista.

A organização do bloco comunista se manteve


de pé até 1991, quando a URSS entrou em
colapso após o fim da Guerra Fria e uma Rússia
enfraquecida emergiu como herdeira política.

Naquele momento, chegou-se a discutir uma


nova arquitetura de segurança mundial que
incluísse a Rússia. A Otan chegou, inclusive, a
assinar acordos de cooperação com a Rússia
durante as décadas de 1990 e 2000, mas a
parceria foi aos poucos se deteriorando por
conta de divergências entre os membros. Os
russos também tentaram entrar para a Otan,
sem sucesso.

"Depois da Guerra Fria, houve conversas e


negociações para parcerias, mas a Otan é uma
aliança construída com base na confiança e nos
valores comuns — e a Rússia nunca teve um
momento realmente democrático na sua história
moderna", diz o analista americano Bruce Jones,
diretor do Projeto sobre Ordem Internacional e
Estratégia do think tank Brookings Institution.

"Havia desafios sistêmicos e psicológicos


intransponíveis para a adesão da Rússia à Otan,
entre eles a falta de confiança das forças
militares dos membros da aliança em relação à
Moscou, que herdou muito de seu arsenal e
procedimentos operacionais da URSS", diz
Mikhail Troitskiy, professor da Universidade
Mgimo e especialista em relações internacionais
de Moscou.

O fim da URSS, por sua vez, deu início a um


processo de conquista de independência dos
países do Leste Europeu e, ao longo dos anos,
quase todos os membros do antigo Pacto de
Varsóvia entraram para a Otan.

Para Putin, a Otan serve como instrumento da


política externa americana e exemplo da forte
influência que o país exerce sobre seus aliados.
"Todos os seus países-satélites não só
concordam com eles sempre que podem como
também copiam o comportamento deles e
aceitam com admiração as regras impostas."

Os EUA e a Alemanha são os países que mais


contribuem financeiramente com a organização
(16% do orçamento total cada), mas a Otan
ressalta que todas as decisões da aliança são
tomadas em conjunto e por consenso de todos
os seus 30 membros. "Decisões por consenso
significam que não há votação na Otan.
Consultas são feitas até que se chegue a uma
decisão aceitável para todos. Algumas vezes
alguns países-membros discordam em alguns
pontos. Em geral, o processo de negociação é
rápido porque seus membros estão em contato
regularmente e sabem as posições dos outros de
forma antecipada", afirma a Otan.

Por outro lado, vale lembrar que os EUA são o


país mais rico e com o maior poderio militar do
mundo. Segundo levantamento do Brookings
Institution, os americanos gastam mais
anualmente com segurança e defesa do que
China, Rússia, Arábia Saudita, França, Reino
Unido, Alemanha, Índia e Japão juntos.

Otan avança sobre o Leste


Europeu?

Para Moscou, a presença da Otan no leste


europeu é uma das principais ameaças ao país.
Putin afirma que os Estados Unidos e a Europa
Ocidental utilizam a aliança para cercar a Rússia
e quer que a organização cesse suas atividades
militares no Leste Europeu.

"A Rússia quer algum tipo de comprometimento


por parte da Otan de que a aliança não está
interessada em recrutar a Geórgia, e mais
especialmente a Ucrânia, como seus membros",
diz Troitskiy.

"De forma mais geral, o governo russo também


quer que a Otan imponha algum tipo de limite à
sua política de portas abertas", afirma o
especialista russo, em referência ao Artigo 10º
do tratado, que permite a adesão de qualquer
país europeu que possa melhorar e contribuir
"para a segurança da região do Atlântico Norte".

O presidente russo teme ainda que, no caso de


uma aliança com a Ucrânia, a nação vizinha sirva
de base para o eventual lançamento de mísseis
contra a Rússia.

Para Alexandre Uehara, coordenador acadêmico


do Centro Brasileiro de Estudos de Negócios
Internacionais da ESPM, as negociações para a
entrada da Ucrânia na Otan soaram como uma
provocação para os russos. "Nesse aspecto,
faltou uma maior habilidade para conduzir o
processo de forma a evitar qualquer tensão", diz.
"Mas, por outro lado, a Otan é aberta a qualquer
nação."

Em discursos pouco antes da invasão ao país


vizinho, Putin também acusou os EUA e os
demais membros da Otan de desprezarem
totalmente os interesses russos e ignorarem
seus pedidos por provas de que não
incorporariam a Ucrânia aos seus membros ou
expandiriam ainda mais sua presença militar na
região.

"Já está claro: as preocupações fundamentais da


Rússia foram ignoradas", disse Putin em
entrevista a jornalistas no início de fevereiro.

ALEXEY NIKOLSKY/GETTY IMAGES

Governo russo acredita que a inclusão de seus


vizinhos na aliança é uma tentativa dos
americanos e das potências europeias de cercar
seu território

A Otan, por sua vez, rechaça essas afirmações e


diz que só um número reduzido de seus Estados-
membros compartilha fronteiras com a Rússia,
além de sustentar que trata-se de uma aliança
defensiva, e não ofensiva.

A organização afirma ainda que todos os países


do Leste Europeu incorporados como membros
solicitaram sua entrada de forma independente,
sem qualquer tipo de pressão por parte dos EUA
ou da Europa.

"Estamos preparados para ouvir as


preocupações da Rússia e travar uma conversa
real sobre como defender e reforçar os
princípios fundamentais da segurança europeia
com que todos nós nos comprometemos, a
começar pelos Acordos de Helsinki", disse o
secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, em
janeiro, referindo-se aos pactos assinados após a
Guerra Fria para estabelecer uma "coexistência
pacífica" entre os blocos comunista e capitalista.

"Isso inclui o direito de cada nação de escolher


seus próprios arranjos de segurança", defendeu.

Para Bruce Jones, entre as razões que levaram


os países do Leste Europeu a se juntarem à
organização esteve justamente o temor de uma
invasão russa. "A Otan não recrutou as ex-
repúblicas soviéticas. Muito pelo contrário, esses
países se inscreveram para ser parte da aliança
de maneira efusiva porque não confiam na
Rússia", diz.

Qual foi a atuação da Otan na


Rússia e na Ucrânia?

Quando os ucranianos depuseram o seu


presidente pró-Rússia no início de 2014, quando
ele se recusou a se aproximar da União Europeia
apesar do apoio popular majoritário, a Rússia
anexou a península da Crimeia, ao sul da
Ucrânia. Também respaldou separatistas pró-
Rússia que ocuparam grandes territórios ao
leste da Ucrânia.

A Otan não interveio, mas respondeu colocando


tropas em vários países do Leste Europeu pela
primeira vez.

GETTY IMGES

Otan colocou grupos de combate no leste


europeu

A aliança possui quatro grupos de batalha


multinacionais do tamanho de um batalhão na
Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia; e uma
brigada multinacional na Romênia.

A Otan também ampliou sua vigilância aérea


nos países bálticos e no leste da Europa para
interceptar qualquer avião russo que ultrapasse
a fronteira de seus Estados-membros.

A Rússia exige que esse poderio bélico seja


retirado daquela região.

Após a invasão à Ucrânia, os países-membros da


Otan concordaram em enviar ajuda militar a
Kiev em forma de milhares de armas antitanque
e centenas de mísseis de defesa, bem como
munição.

Os países da União Europeia também aprovaram


envio de suprimentos de armas no valor de 450
milhões de euros (R$ 2,5 bilhões) e
equipamentos de proteção no valor de 50
milhões de euros (R$ 288 milhões), além de um
apoio ao Exército ucraniano com caças e
combustível.

Mas a Otan tem repetido que não haverá


participação de soldados da organização no
conflito.

A Otan pode ser


responsabilizada pela invasão à
Ucrânia?

Segundo a narrativa defendida pelo Kremlin e


seus apoiadores, a invasão à Ucrânia seria uma
reação às ações tomadas pela própria Otan
contra os interesses russos.

Putin afirma que a aliança traiu a Rússia ao


quebrar uma promessa feita à União Soviética
ao fim da Guerra Fria.

Segundo o presidente russo, o secretário de


Estado do presidente americano George H. W.
Bush, James Baker, teria se comprometido
verbalmente a não expandir a influência da Otan
pelo Leste Europeu durante discussões em
fevereiro de 1990 com o então líder soviético
Mikhail Gorbachev. Em troca, a URSS teria que
aceitar a unificação da Alemanha.

A promessa, porém, nunca se tornou um acordo


formal. Anos depois, em 2014, Gorbachev negou
em uma entrevista que houve um
comprometimento formal dos EUA para evitar o
avanço da Otan.

Ataque à maior torre de TV da capital ucraniana


deixou cinco mortos na terça-feira

"O tema da 'expansão da Otan' não foi discutido


e não foi abordado naqueles anos", disse ele ao
jornal Russia Beyond. "Uma questão que
levantamos e que foi discutida foi garantir que
as estruturas militares da Otan não avançassem
e que forças armadas adicionais não fossem
implantadas no território da então República
Democrática Alemã após a reunificação. A
declaração de Baker foi feita nesse contexto."

No entanto, Gorbachev disse acreditar que,


apesar de a expansão da Otan não trair
promessas concretas, ela desrespeita o espírito
do que estava sendo acordado naquele
momento. "Foi um grande erro desde o início.
Foi definitivamente uma violação do espírito das
declarações e garantias feitas a nós em 1990",
disse.

E as críticas em relação ao avanço da Otan não


são novidade nem tampouco exclusividade de
vozes russas. George Kennan, um dos
diplomatas americanos mais influentes no
período de oposição à URSS, classificou a
expansão da Otan na Europa Central como "o
erro mais fatídico da política americana em toda
a era pós-Guerra Fria".

Em um artigo publicado no jornal The New York


Times em 1997, ele afirmou que a ampliação
rumo ao leste inflamaria tendências
nacionalistas e militaristas entre os russos e
poderia afetar o próprio desenvolvimento da
democracia na Rússia. Não seria, portanto, a
maneira mais inteligente de lidar com um
império humilhado após sua dissolução e
detentor do maior arsenal nuclear do mundo.

Para Mikhail Troitskiy, da Universidade Mgimo, a


resistência dos membros da aliança em relação
aos interesses russos levou a uma insatisfação
cada vez maior no Kremlin. "A relutância da
Otan em considerar as demandas de Moscou
sobre a adesão da Ucrânia e o fim da política de
expansão da aliança irritaram a Rússia", diz. "No
entanto, essas eram contradições de fundo que
de forma alguma tornaram inevitável o
confronto militar entre a Rússia e a Ucrânia."

Por outro lado, Bruce Jones, do Brookings


Institution, avalia que as ações militares do
governo de Vladimir Putin contra a Ucrânia têm
mais raízes internas do que externas. "A invasão
tem mais a ver com o sentimento profundo de
conexão e o desejo que os russo nutrem de ter a
Ucrânia de volta ao seu invólucro do que com
qualquer ação da Otan."

Mas segundo o analista americano, isso não


quer dizer que o temor de Moscou em relação à
aliança militar ocidental seja irracional.

"Historicamente, alianças multilaterais já


mudaram de opinião sobre suas políticas. Por
isso, a Rússia pode sim ter razões para se
preocupar com uma mudança de posição da
Otan", diz. "Mas isso não explica o porquê de
uma ação militar".

O professor Alexandre Uehara compartilha da


opinião de que a incursão russa é injustificável.

"Analisando retrospectivamente, existem alguns


aspectos legítimos para que a Rússia questione
essa expansão para o Leste Europeu", afirma.
"Mas isso ainda não justifica a invasão da
Ucrânia, pois toda a questão poderia ter sido
resolvida diplomaticamente".

A Otan possui apenas objetivos


defensivos?

A Otan se define como uma aliança militar


criada para a defesa de seus membros e,
segundo seus membros, só age militarmente
quando atacada.

Esse princípio de defesa coletiva está registrado


no artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, que
garante que os recursos de todos os países da
organização possam ser usados para proteger os
demais.

Essa definição defensiva, porém, é vista com


desconfiança por muitos na Rússia.

Membros do governo e o próprio presidente


Putin citam com frequência o bombardeio
realizado pela Otan contra a antiga Iugoslávia
em 1999 como prova de que a aliança não se
restringe à defesa.

Durante seu encontro com o chanceler alemão


Olaf Scholz em meados de fevereiro, o líder
russo levantou a questão mais uma vez.

"O chanceler federal acabou de dizer que as


pessoas de sua geração — e eu certamente
pertenço a essa geração — acham difícil
imaginar uma guerra na Europa", disse na
entrevista coletiva após o encontro com o
alemão. "Mas todos nós fomos testemunhas da
guerra na Europa que a Otan desencadeou
contra a Iugoslávia."

EPA/PRESIDENCIA DE UCRANIA

Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, em


foto de 26 de fevereiro

"Aconteceu. Sem nenhuma sanção do Conselho


de Segurança da ONU. É um exemplo muito
triste, mas é um fato difícil", disse Putin,
referindo-se à operação militar contra Belgrado
e Novi Sad, que levou à retirada das forças
iugoslavas do Kosovo e o estabelecimento de
uma missão da ONU no país.

De acordo com a posição da Otan à época, a


operação foi um sucesso e cumpriu seus
objetivos ao colocar fim ao conflito que assolava
a região há quase uma década.

Para os russos, porém, é mais uma prova de que


a aliança poderia usar sua presença no Leste
Europeu para atacar seu território.

Segundo Troitskiy, a Otan tem um histórico


complexo quando o tema é sua natureza
pacífica. "A adesão dos países da Europa Central
e Oriental na Otan após o fim da Guerra Fria
certamente ajudou pacificar e reduzir as
ambições perigosas desses Estados", diz. "Mas,
por outro lado, a Rússia sempre citará o
bombardeio contra a Iugoslávia como evidência
de uma intervenção."

"E claro, alguns membros da Otan invadiram o


Iraque, uma operação que pode facilmente ser
usada para testemunhar a natureza
expansionista da aliança", diz o analista de
Moscou. "Houve ainda a intervenção na Líbia em

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