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SOCIOLOGIA RURAL

um manual para alunos de graduação

Flávio Sacco dos Anjos & Nádia Velleda Caldas


SOCIOLOGIA RURAL
um manual para alunos de graduação
Reitoria
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Zamperetti e Silvana Schimanski
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Chris de Azevedo Ramil e João Fernando Igansi Nunes
SOCIOLOGIA RURAL
um manual para alunos de graduação

Flávio Sacco dos Anjos


Nádia Velleda Caldas

Pelotas
2022
Chefia
Ana da Rosa Bandeira
Editora-Chefe

Seção de Pré-Produção
Isabel Cochrane
Administrativo

Seção de Produção
Suelen Aires Böettge
Administrativo
Eliana Peter Braz
Preparação de originais
Filiada à A.B.E.U. Anelise Heidrich
Assistente de Revisão
Rua Benjamin Constant, 1071 - Porto Angélica Knuth (Bolsista)
Pelotas, RS - Brasil Design Editorial
Fone +55 (53)3284 1684
Seção de Pós-Produção
editora.ufpel@gmail.com
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Assessoria
Madelon Schimmelpfennig Lopes
Administrativo

Revisão Técnica
Ana da Rosa Bandeira
Assistente de Revisão Ortográfica
Anelise Heidrich
Projeto Gráfico & Capa
Angélica Knuth

Capa
Título: Retirantes; FCO: 2733; CR: 2054;
DATA: 1944; Técnica: Painel a óleo / tela;
Dimensões: 190 X 180 cm.
Direito de reprodução gentilmente cedido por
João Candido Portinari.

Dados de Catalogação na Publicação:


Bibliotecária Leda Lopes - CRB-10/2064

S678 Sociologia rural [recurso eletrônico] : um manual


para alunos de graduação. / organizadores
Flávio Sacco dos Anjos e Nádia Velleda Caldas –
Pelotas: UFPel, 2022.
127 p. ; PDF ; 29,8MB

ISBN 978-65-86440-97-3

1. Sociologia rural. I. Anjos, Flávio Sacco dos,


org. II. Caldas, Nádia Velleda, org.

CDD 307.72
Apresentação

No final do século XX tornaram-se célebres as teses do cientista político e


economista norte-americano Francis Fukuyama que, com seu famoso livro
(O fim da história e o último homem) (FUKUYAMA, 1992), argumentava
que havíamos chegado a um estágio avançado de evolução da humanidade
em virtude do elevado grau de difusão planetária das democracias liberais
e da consolidação dos ideais do capitalismo de mercado.
Todo esse entusiasmo está relacionado com os acontecimentos de-
correntes da “queda do muro de Berlim” (1989), entendida como a derro-
cada do comunismo em diversos países que estavam submetidos a esse
regime de governo, cuja liderança, em nível mundial, era exercida pela
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Não precisou muito tempo
para que chovessem críticas contra uma obra que se situa a meia distância
entre o delírio e a impostura científica. Cientista é aquele que desconfia de
tudo, até mesmo de suas próprias convicções. Decididamente Fukuyama
não agiu como sendo portador dessa virtude. Não agiu como homem da
ciência, mas como um transloucado profeta.
O fato é que o planeta terra vive sempre imerso em profundas con-
vulsões. A queda das torres gêmeas em 2001 ou a crise econômica de
2008 são episódios que mostram que ciência não combina com futuro-
logia. No momento em que este livro é concebido vivemos os efeitos de
uma pandemia que se alastrou pelos quatro cantos do planeta e que, ao
que parece, está longe de ser vencida. Em alguns países, onde a ciência e
o bom senso se impuseram, há claros sinais de controlar a disseminação
da covid-19 e suas variantes. No extremo oposto, estão as nações coman-
dadas por governantes que se posicionam contra os mais elementares
fundamentos científicos.
A sociologia estuda a própria sociedade, as instituições e os fenôme-
nos sociais. Trabalha sobre um objeto que está em permanente estado de
ebulição. É uma ciência que possui pouco mais de 180 anos de existência
e que ainda reivindica o seu reconhecimento. Este livro está dedicado a
apresentar a Sociologia Rural aos estudantes de Ciências Agrárias. É um
ramo especializado da Sociologia que é muito relevante para aqueles cujo
olhar se volta para a dinâmica das atividades agropecuárias e para a re-
alidade do mundo rural.
Os autores desta obra estão convencidos de que os conteúdos aqui
reunidos podem ser muito úteis para a formação de profissionais que
querem conciliar o domínio dos conhecimentos técnicos, ligados à produ-
ção animal e vegetal, com o devido preparo para lidar com as demandas
das pessoas do campo e da cidade, com suas formas de vida e com suas
organizações. Nesta obra fizemos uso de uma linguagem acessível e todo
o esforço despendido é no sentido de converter o conteúdo programático
de Sociologia Rural num conjunto de tópicos devidamente conectados e
apresentados dentro de uma sequência lógica.
Agradecemos aos colegas do Departamento de Ciências Sociais Agrá-
rias da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel da Universidade Federal
de Pelotas pelo apoio e o incentivo, os quais foram fundamentais para
que seguíssemos adiante nessa missão que tanto nos orgulha. O mesmo
agradecimento à Capes pela concessão de bolsa durante estância que
realizamos junto ao Instituto de Estudos Sociais Avançados da Espanha
(2019-2020), onde atuamos como professores visitantes. Foi assim que
conseguimos realizar esta obra nos interstícios de nossa atuação no âmbito
da pesquisa e da formação de recursos humanos. A todos e a todas que
nos animaram a realizá-la, nosso mais sincero muito obrigado.

Os Autores

7
Sumário

10 Introdução
13 O conhecimento científico

15 Características fundamentais do conhecimento científico

21 A importância da Filosofia

25 As Ciências Humanas e a Sociologia

28 O surgimento e o desenvolvimento da Sociologia

32 A Sociologia e seus fundadores

53 A Sociologia Rural
54 A primeira fase da Sociologia Rural (1900-1950)

57 A segunda fase da Sociologia Rural (1950-1980)

62 A modernização conservadora da agricultura


brasileira
71 Estado e modernização conservadora

74 Principais impactos da modernização conservadora

92 A estrutura agrária brasileira


92 Estrutura fundiária e estrutura agrária

93 Reforma Agrária ou Revolução Agrária?

100 Alguns dados sobre a estrutura fundiária do Brasil


102 O que é Agricultura Familiar?

103 Questão Agrária é o mesmo que Questão Agrícola?

106 O modo de produção capitalista e a agricultura:


a questão agrária clássica
107 Karl Max

109 Vladimir Lênin

111 Karl Kautsky

113 Alexander Chayanov

117 Epílogo

120 Referências
Introdução

O homem é, por natureza, um animal político. Essa foi uma das frases lapi-
dares proferida por Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), um dos grandes ícones
da filosofia ocidental, há aproximadamente 2.300 anos. O que queria dizer
com tais palavras esse pensador que, com sua obra magistral, sentou as
bases do pensamento científico universal? Em primeiro lugar, que todos
nós vivemos na polis, ou seja, numa cidade ou comunidade, portanto, junto
a outras pessoas com as quais, continuamente, estabelecemos uma forte
interação. Indivíduos se juntam para constituir famílias, famílias formam
vilas e vilas erguem cidades.
Em segundo lugar, que a nossa própria sobrevivência depende das
relações contraídas com os demais habitantes da polis, por meio das quais
temos acesso a coisas (alimento, abrigo, segurança, etc.) que nos são ab-
solutamente essenciais. Há, portanto, uma inclinação natural dos homens
e mulheres a viverem em sociedade.
Quem poderia imaginar uma sociedade sem os bens e serviços pro-
duzidos por outras pessoas, agências e instituições? O médico do posto de
saúde, que nos atende quando estamos enfermos, é tão importante quanto
o produtor ou produtora rural que asseguram os alimentos que chegam
às nossas mesas. O mesmo há que ser dito em relação ao funcionário da
prefeitura que toda a semana recolhe os resíduos de nossas casas para
o serviço de reciclagem, sem esquecer dos provedores de água, luz ou
internet que tanto necessitamos.
A sociedade é vista por Aristóteles como lugar de excelência e onde
seus habitantes podem alcançar a felicidade. Mas o pilar fundamental
dessa sociedade não são as edificações e as estruturas materiais que a
integram, mas a virtude dos seus cidadãos. No entendimento de Aris-
tóteles, as leis servem para fazer com que os cidadãos pratiquem atos
virtuosos que levem ao almejado “bem comum”. O que está claro é que a
Introdução

ética aristotélica é eminentemente social. Em outras palavras, as regras


são construídas a partir de valores ou princípios que são fundamentais
para preservar a vida em sociedade.
Em sendo um ser político, o bicho homem acha-se em plenas con-
dições de deliberar, de comum acordo com seus semelhantes, sobre o que
é justo e o que é injusto, sobre o que é moral e o que é imoral, sobre o que
é legal e o que é ilegal. Mas Aristóteles em sua obra magistral reconhece
que não existe um regime político perfeito e nem regras perfeitas de vida
em sociedade.
A monarquia (governo de uma pessoa) pode converter-se na tirania,
assim como a aristocracia (governo de um grupo de pessoas) em oligar-
quia. Mesmo a democracia (governo de muitos) pode degenerar-se e gerar
um regime demagógico e corrupto. E governos degenerados são aqueles
onde a riqueza de uns poucos aparece ligada à pobreza de muitos, ou seja,
onde a desigualdade, a injustiça social, a miséria e as privações no exercí-
cio das liberdades se impõem sobre a esmagadora maioria dos cidadãos.
Esse assunto sempre pautou a reflexão humana, desde os tempos
dos grandes filósofos da Antiguidade Clássica, até os dias atuais. O estudo
dos problemas e fenômenos sociais é o objeto central da Sociologia, a mais
jovem e complexa disciplina que integra o campo das Ciências Humanas.
A título de exemplo poder-se-ia propor algumas questões “sociológicas”:
quais são as causas da fome que acomete hoje a 690 milhões de pessoas,
segundo os últimos dados da Organização das Nações Unidas para a Agri-
cultura e Alimentação (2019)?
Seria simplesmente o resultado da baixa oferta ou disponibilidade de
alimentos? Seguramente não, sobretudo quando é sabido que a produtivi-
dade dos cultivos e criações alcançou níveis extremamente elevados por
conta do uso de inovações tecnológicas que potencializaram enormemente
os fatores de produção (terra, capital e trabalho). Respostas simplistas não
nos ajudam a avançar no estudo desse complexo tema, sobre o qual a Socio-
logia tem muito a dizer enquanto ferramenta de interpretação da realidade.

11
Introdução

Este livro é dedicado fundamentalmente a estudantes da área de Ci-


ências Agrárias, mas também a não especialistas que desejam aprofundar
seus conhecimentos sobre a Sociologia Rural, uma das mais importan-
tes disciplinas do campo das Ciências Humanas. A elaboração desta obra
persegue três objetivos. O primeiro deles é o de servir de apoio didático e
pedagógico aos alunos de Agronomia, Zootecnia, Engenharia Agrícola e
Medicina Veterinária que frequentam as matérias ministradas pelo Depar-
tamento de Ciências Sociais Agrárias da Faculdade de Agronomia da UFPel.
O segundo objetivo é deveras ambicioso. É que, para além do que
aqui foi dito, temos a pretensão de mostrar como a Sociologia, e, em espe-
cífico, a Sociologia Rural, pode ser útil para o exercício profissional e para
a vida de nossos discentes em sociedade. Ninguém é capaz de renunciar
à vida social. Aristóteles admitia apenas dois tipos de seres capazes de
não viver em sociedade: os deuses e os selvagens.
Nesse momento em que você se encontra, ao matricular-se e fre-
quentar nossas aulas, está participando da vida social e interagindo com
os próprios colegas, com os professores e servidores que integram a comu-
nidade universitária. Dentro de alguns anos, depois de formado, terá de se
relacionar com outros profissionais da área, com agricultores, criadores,
associados de uma cooperativa, pesquisadores, extensionistas, trabalha-
dores rurais, homens e mulheres do campo e com os mais diversos tipos
de atores que integram a vida em sociedade.
O terceiro objetivo é formar pessoas com capacidade de pensar sobre
as coisas e construir a sua própria visão de mundo. Nunca foi tão neces-
sário contar com pessoas dispostas a enfrentar as grandes mazelas de um
mundo onde convivem as mentes mais brilhantes e pessoas desprovidas
de qualquer senso de lógica. A crise desatada pela pandemia da covid-19
trouxe à tona posturas que remontam a tempos imemoriais.
Ao finalizar a introdução deste livro queremos dizer que a Sociologia,
em geral, e a Sociologia Rural, em específico, possuem sua própria histó-
ria e suas peculiaridades. Mas não podemos começar a construir a casa
pelo telhado. Antes de falar da Sociologia como ciência, é preciso explicar,

12
Introdução

minimamente, o que entendemos por ciência, quais as características


fundamentais do conhecimento científico e de como a ciência avançou
através do tempo. Nessa aproximação voltaremos novamente à Antigui-
dade Clássica, não somente pela importância que possuem alguns autores
para entender o papel da ciência, mas também pelos fortes vínculos que
a Sociologia tem com o pensamento filosófico.

O conhecimento científico
A mandioca (Manihot esculenta) é uma planta tuberosa da família das Eu-
forbiáceas. Sua importância para a cultura alimentar brasileira é tão
grande quanto o milho para o caso do México. Existe uma terminologia
muito variada para se referir a essa espécie (mandioca, macaxeira, aipim,
castelinha, uaipi, mandioca-doce, mandioca-mansa, maniva, maniveira,
pão-de-pobre, etc.) que é cultivada em todos os quadrantes do país. Nos
tempos do Brasil colônia, quando ainda não havia uma produção agrícola
consolidada, essa planta, a terceira maior fonte de carboidratos das regiões
tropicais, depois do arroz e do milho, era a base das populações locais.
Na era do Brasil colônia, os exércitos portugueses esperavam navios
que traziam carregamentos de farinha de trigo que muitas vezes nem
chegavam ao seu destino. Por essa e outras razões a farinha de mandioca
era também chamada de “farinha de guerra”. O conquistador ibérico teve
que se render aos conhecimentos das populações autóctones para fazer
uso de um cultivo, que para além do seu valor nutricional, é uma planta
sagrada para os povos indígenas. Em uma palavra poder-se-ia dizer que a
mandioca faz parte do DNA cultural do povo brasileiro. Atualmente virou
a febre das dietas alimentares por uma série de motivos, dentre os quais
por liberar a glicose mais lentamente para o corpo, facilitando a digestão
e evitando picos de açúcar no sangue. Mas quantos milhares de anos fo-
ram consumidos para que a humanidade descobrisse as propriedades da
mandioca, dominasse as técnicas de cultivo e desenvolvesse plantas mais
produtivas e de maior valor nutricional?

13
Introdução

Há uma espécie de mandioca, não por acaso chamada de brava


ou venenosa, que inclusive pode matar pelo seu elevado teor de ácido
cianídrico (HCN), o qual só pode ser desativado através da plena cocção.
Quantas pessoas devem ter morrido até que se descobrisse as espécies
que poderiam ser consumidas, bem como os processos de desativação
das substâncias tóxicas?
O exemplo da mandioca serve para introduzir nossa reflexão sobre a
importância do conhecimento no sentido pleno da palavra. Praticamente
tudo o que fazemos no nosso dia a dia leva em conta um conjunto imenso
de conhecimentos que foram sendo desenvolvidos ao longo da história da
espécie humana. Costuma-se falar de conhecimento empírico e de saber
científico como duas noções que se opõem mutuamente. Todavia, pouco
se fala das relações que existem entre ambos e de que muitos dos avanços
científicos surgiram a partir dos saberes ancestrais, dos conhecimentos
tradicionais que nos legaram as civilizações que nos antecederam.
O que queremos dizer é que ao tratar sobre o saber científico esta-
mos referindo-nos a uma classe particular de conhecimento, a exemplo
do aludido saber empírico, ou mesmo do conhecimento teológico (expli-
cação dos deuses). O conhecimento pode ser definido, em sentido amplo,
como a busca da verdade. Essa foi a posição adotada por Sócrates (470
A.C; 399 A.C) para definir a Filosofia, campo da reflexão humana que é
considerado como a mãe de todas as ciências. Ao falar de verdade não
estamos nos referindo ao oposto da mentira, mas como explicação para
os fatos e fenômenos que existem ao nosso redor ou como uma forma de
compreensão da realidade que nos cerca.
Aristóteles era discípulo de Platão, mas discordava de seu mestre.
Tal discordância ficou imortalizada na célebre frase proferida pelo ilustre
aluno, onde ele diz: “Sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade”.
Em grande medida trata-se de mostrar que a discordância, a controvérsia
e as visões enfrentadas fazem parte do mundo da ciência, sendo inclu-
sive um aspecto salutar para a evolução do pensamento. Mas, afinal de
contas, como o conhecimento científico pode ser definido? Quais são as

14
Introdução

suas principais características ou aspectos definidores? Esse é o objetivo


do próximo tópico.

Questões para fixação de conteúdos

1. O que quis dizer Aristóteles quando afirmou que o homem é um animal


político?

2. O que é evidência verificável? O que é neutralidade axiológica?

3. Qual a importância da filosofia no desenvolvimento da ciência em


geral?

4. Qual a relação entre a alegoria da caverna de Platão e o surgimento da


filosofia?

5. Por que a dúvida é um atributo tão importante para a atividade


científica?

Características fundamentais do conhecimento científico


Horton & Hunt (1980) ponderam que existem ao menos quatro grandes
fontes de verdade, quais sejam, a intuição, a autoridade, a tradição e o bom
senso. Vejamos rapidamente o que cada uma delas significa. Intuir nada
mais é que a faculdade de compreender as coisas instantaneamente. É
um ato ou capacidade que alguns indivíduos têm de pressentir ou prever
certas coisas ou fenômenos. Grandes descobertas nasceram da intuição
de cientistas que decidiram dar vazão a determinados lampejos que pos-
teriormente se mostraram brilhantes.
A segunda fonte de verdade vem a ser a autoridade. E quando nos
referimos à autoridade, estamos pensando em indivíduos e instituições
que se consagraram ao longo do tempo pela excelência de seus estudos.
E há diversos tipos de autoridades (religiosas, acadêmicas, seculares) que
influenciam decisivamente o pensamento das pessoas.

15
Introdução

Livros religiosos (alcorão, bíblia, talmude etc.) são apresentados


como a voz de autoridade religiosa que se impõe sobre o modo como os
indivíduos interpretam o mundo à sua volta. Lamentavelmente vivemos
hoje um tempo em que uma mensagem apócrifa - enviada pelo aplicativo
WhatsApp, torna-se verdade, mesmo que seja um tremendo absurdo. E o
pior de tudo é que muitas pessoas acreditam. Nunca houve tanto acesso
à informação, mas nunca houve tanta gente desinformada1.
A terceira fonte de verdade destacada por Horton & Hunt (1980, p.
5) é a tradição, entendida aqui como uma espécie de sabedoria acumu-
lada através dos séculos. No entendimento desses autores a tradição é
uma espécie de sótão das sociedades, onde tanto os costumes válidos são
guardados quanto as mais inúteis quinquilharias.
A quarta fonte de verdade referida na aludida obra é o bom senso.
Segundo os próprios autores:

Durante milhares de anos o bom senso das pessoas lhes dis-


se que a terra era achatada e que os grandes objetos caem
mais depressa que os pequenos, que a pedra e o ferro eram
minerais perfeitamente sólidos e que o verdadeiro caráter
era traído pelas características faciais; no entanto, hoje sa-
bemos que nenhuma das assertivas é verdadeira (HORTON
& HUNT, 1980, p. 5).

Incrível imaginar que em pleno século XXI, depois de mais de meio


século que o homem pisou na lua e que foram desveladas as complexas
estruturas do código genético das diversas espécies, ainda há legiões de
pessoas que acreditam que a terra é plana. Compreender como chegamos
a esse grau de estupidez vai muito além dos objetivos desta obra. O que
aqui queremos dizer é que as quatro fontes de verdade podem nos fazer

1 Quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Comunicação e Cultura da


Universidade de Turim (Itália), em 10/06/2015, Umberto Eco, o célebre escritor, filósofo e
semiólogo italiano afirmou que as redes sociais haviam dado voz a uma legião de im-
becis. Segundo este autor, o drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a
portador da verdade.

16
Introdução

avançar na elucidação dos problemas que atormentam a humanidade,


mas podem nos levar também aos mais grotescos absurdos, como o de
acreditar na superioridade de uma raça em relação à outra, ou que homens
seriam intelectualmente superiores às mulheres.
Ainda segundo Horton & Hunt (1980, p. 6-7), há duas características
fundamentais que definem o conhecimento científico. Vejamos agora o
que cada uma delas significa.

a) Evidência verificável
Evidência verificável significa que estamos não apenas nos referindo a
algo que pode ser visto, medido, pesado, contado, reconhecido como tal,
mas algo que outras pessoas, no caso, outros cientistas, pesquisadores
ou estudiosos do assunto, poderão comprovar se é correto ou não. En-
tre os séculos XVI e XVII, em meio à invasão do território Inca (Peru), os
espanhóis acabaram por contrair a malária ou paludismo, uma doença
causada por protozoários do gênero plasmodium que são introduzidos na
pessoa através da picada de mosquito do gênero Anopheles.
Soube-se então que os índios utilizavam um chá da casca de uma
árvore – a “chinchona” (Chinchona officinalis) – que se mostrava extrema-
mente eficaz para o tratamento de uma doença (malária) que, no ano de
2018, foi responsável pela contaminação de 228 milhões de pessoas e
pela morte de outras 405 mil, segundo dados da Organização das Nações
Unidas (ONU, 2019). Trata-se de uma planta pertencente à família do café
que possui um alto teor de quinino, um componente químico altamente
eficaz no tratamento dessa doença. Os incas já sabiam disso há muito
tempo, mas é somente no final do século XIX que o mecanismo da cura
começa a ser desvendado. Tratava-se, portanto, de uma evidência que
pode ser finalmente verificada, e a partir da qual avançou o estudo e o
aperfeiçoamento de diversos tipos de tratamentos.
Dissemos antes que a ciência é a busca da verdade ou de encontrar
respostas a questões que desafiam a nossa compreensão sobre o mundo
ao nosso redor. Todavia, há um tipo de pergunta sobre a qual a ciência

17
Introdução

não tem respostas. Referimo-nos a indagações tais como: Deus existe?


Qual a razão de nossa própria existência? Cientistas como antropólogos
podem estudar a mitologia de uma dada comunidade, ou seja, os aspectos
sagrados que guiam o modo de vida dessas pessoas, mas jamais poderão
responder sobre a existência divina. Isso porque acreditar ou não acredi-
tar num ente superior que supostamente governa o universo não é uma
questão científica, é uma questão de fé.
Não há elementos que neguem sua existência, nem mesmo que afir-
mem que Deus realmente existe. Frente a essa inquietante questão há
três tipos de posturas: de quem acredita (crente), de quem não acredita
(ateu) e dos que consideram que tal pergunta sequer pode ser formulada
(agnóstico). Para esse último grupo de pessoas é impossível dizer que Deus
existe ou não existe. Não se trata de entrar aqui em polêmicas que fogem
completamente ao objetivo deste livro. O que importa é deixar claro que
há uma classe de questões sobre as quais o conhecimento científico se
mostra incapaz de oferecer respostas. A ciência, nesses termos, se enfrenta
a limites intransponíveis.

b) Neutralidade axiológica
O mundo foi sacudido no ano 2020 com a pandemia da covid-19, doença
de origem viral que até o momento de finalizar este livro havia levado a
óbito a 3,8 milhões de pessoas no mundo e quase meio milhão de pessoas
no Brasil. A vacinação tornou-se a tábua de salvação para imunizar a po-
pulação e frear o ritmo de contágios que causam mortes que não param
de crescer. Até o momento presente não há uma droga eficaz que assegure
a cura daqueles que desenvolveram os sintomas da doença.
O caso desta pandemia serve de exemplo para mostrar a importân-
cia do pensamento científico. Muita gente tenta explicar o surgimento
dessa enfermidade a partir da ideia absurda de que se trata de um casti-
go divino ou de que é resultado da guerra bacteriológica e das chamadas
teorias conspiratórias. Já ouvimos inclusive pessoas postarem vídeos na
internet afirmando que os extraterrestres plantaram o vírus para dizimar
os terráqueos.

18
Introdução

Mas o que é mais impressionante é quando pessoas, sem nenhuma


formação acadêmica na área da saúde, resolvem propor tratamentos sem
qualquer base científica para a cura dessa e de outras doenças. E o que é
pior, usam as estruturas do Estado para promover tratamentos ineficazes e
que inclusive podem causar doenças graves na população. O que queremos
reafirmar é que a atividade científica não pode sofrer constrangimentos
de ordem política, econômica, social ou religiosa, sempre e quando esteja
voltada ao enfrentamento dos grandes problemas que afetam a humani-
dade, a exemplo desta interminável pandemia.
Servimo-nos desse exemplo para entrar na discussão sobre o que
vem a ser a segunda característica do conhecimento científico: a neutrali-
dade axiológica. Neutralidade nada mais é do que a qualidade de ser neutro
ou imparcial em relação a algum assunto ou questão. Já o segundo termo
vem da palavra axiologia, disciplina filosófica que estuda a questão dos
valores ou princípios. A justiça e a honestidade são exemplos de valores
que as pessoas dignas trazem dentro de si. Alguns dizem que a ocasião faz
o ladrão, mas quem tem princípios ou valores jamais se deixa corromper
quando as circunstâncias favorecem atos ilícitos como roubar o que não
lhe pertence.
E o que isso tem a ver com a ciência? É que a rigor a ciência é uma
atividade que deve ser eticamente neutra. As pressões de ordem política,
econômica ou religiosa podem interferir no resultado das pesquisas e
distorcer os seus resultados. Inclusive os preconceitos do pesquisador e as
opiniões prévias podem comprometer o desenvolvimento da investigação
científica em que ele esteja atuando. A neutralidade é, portanto, um valor
que precisa pautar a conduta dos cientistas, independentemente da área
em que atuam.
Uma das pressões mais fortes exercidas sobre a atividade científica
provém da esfera econômica. Imagine que hoje descobríssemos, na selva
amazônica, uma erva poderosa no combate aos sintomas da covid-19? Ce-
lebraríamos a possibilidade de evitar com que milhões de pessoas fossem
mortas em todo o planeta. Mas imagine também que uma grande empresa
farmacêutica se apossasse dessa informação, isolasse o princípio ativo e

19
Introdução

começasse a produzir comercialmente o tal medicamento. Já imaginou os


lucros que colheria apenas com a valorização de suas ações no mercado
financeiro? Antes mesmo de produzir um só comprimido o patrimônio
dessa empresa sofreria uma valorização exponencial.
Isso ocorre devido ao fato de que os usos do conhecimento científico
geram dividendos e colocam a própria ciência diante de grandes dilemas
éticos. No caso em questão, entre, de um lado, salvar milhões de vidas e,
de outro, garantir lucros estratosféricos para as grandes indústrias far-
macêuticas. Mas como bem sublinharam Horton & Hunt (1980, p. 8), “a
ciência é eticamente neutra, mas os cientistas não o são”.
Devemos então esquecer a neutralidade e assumir que estamos dian-
te de uma espécie de vale-tudo na produção do conhecimento? Claro que
não. Os princípios éticos devem falar mais alto. Aqueles que decidem con-
verter-se em cientistas sabem que construir a própria trajetória e lograr
uma boa reputação passa pelo compromisso de preservar uma atitude
neutra. Isso implica inclusive duvidar das próprias convicções e afastar
todos os tipos de preconceito e outros fatores que impedem a ciência de
atuar livremente. Nesse contexto, nossa simpatia por uma determinada
forma de agricultura não pode fazer com que deixemos de lado o rigor na
execução da pesquisa que avalia os resultados de práticas com ela iden-
tificadas. Torturar os dados para que confessem o que queremos não é
uma atitude típica de cientistas, mas de impostores.
A essas alturas poderíamos esboçar uma definição de ciência como
sendo um conjunto organizado de conhecimentos relativos a um determina-
do objeto, especialmente os conhecimentos obtidos através da observação,
da experiência dos fatos e de um método próprio. É preciso dizer que no
mundo ocidental, regido durante séculos pelos dogmas do catolicismo, a
atividade científica não poderia se desenvolver em virtude da doutrina esco-
lástica, a qual considerava que todo pensamento deveria estar subordinado
à autoridade eclesiástica e que textos religiosos, a exemplo da bíblia, eram
uma inquestionável fonte de conhecimento.
Em 1600 o gênio da Astronomia Giordano Bruno foi considerado
um herege e queimado vivo em Roma pela Inquisição. É que ele jamais

20
Introdução

renunciou às suas teses, entre as quais


a de que o sol era o centro do universo
e não a terra, bem como a existência
de mundos infinitos, contrariando as
teses de que tudo seria obra da cria-
ção divina. Foram mentes irrequietas
e desafiadoras que fizeram a ciência
avançar e transformar radicalmente o
mundo em que vivemos. E qual o lugar
das Ciências Humanas e da Sociologia
nesse processo? Do que trata, efetiva-
mente, esse campo do conhecimento?
Que particularidades possui a Socio-
logia em relação a outras ciências?
Responder a essas questões é uma
das tarefas que nos toca desenvolver
Giordono Bruno na primeira unidade deste curso.

A importância da Filosofia
Nascido em Atenas, mais de quatro séculos antes de Cristo, Sócrates é con-
siderado como um dos grandes fundadores da Filosofia ocidental. É ele o
autor da famosa frase “Só sei que nada sei” que assume enorme relevância
para a discussão que vimos, até aqui, desenvolvendo. Em primeiro lugar,
porque aponta para o que deveria ser uma das virtudes do verdadeiro cien-
tista: a humildade. Pode-se saber muito sobre um determinado tema, mas
jamais saberemos tudo. Uma vida dedicada ao assunto não quer dizer que
tenhamos um conhecimento pleno ou final sobre as coisas.
A segunda lição é justamente no sentido de reconhecer que as coisas
estão permanentemente sendo transformadas e, se o mundo ao nosso
redor se modifica, logicamente nossas concepções precisam se adequar a
essas mudanças. Questionar sobre a natureza das coisas, sobre o mundo
que nos cerca, sobre os mais diversos tipos de fenômenos e sobre o próprio

21
Introdução

ser é o campo essencial da Filosofia.


Esse é um dos principais aspectos que
nos diferenciam dos demais animais.
Mas não se engane. Pensar pode
ser perigoso, sobretudo porque pode
levar as pessoas a mudarem de opi-
nião sobre as coisas. Algumas delas
realmente mudam seu modo de ver
as coisas, enquanto outras, pelas mais
diversas razões, se negam a fazê-lo,
como assim mostra a chamada “ale-
goria da caverna”, uma estória escrita
por Platão, cujo objetivo maior, era o
de explicar o surgimento da própria
Filosofia (ver o Box 1).
Perceber a si próprio e ao mundo
em que se está imerso deveria ser uma Sócrates

iniciativa de todas as pessoas dotadas


de intelecto, sobretudo quando essas são estudantes, professores, pesqui-
sadores. Lamentavelmente o mundo parece se mover numa outra direção,
a de formar indivíduos que não sabem pensar por si próprios e que sequer
sabem que poderiam exercer uma função do cérebro que custou milhões
de anos para ser forjada.
Aristóteles, de quem já falamos anteriormente, dizia que a dúvida é
o princípio da sabedoria. Devemos duvidar sempre, inclusive de nossas
convicções. O mundo da ciência não pode se agarrar a verdades absolutas
e/ou de rever posições consolidadas. Blaise Pascal (1623-1662), físico e
matemático francês, que estabeleceu princípios barométricos da prensa
hidráulica, afirmou que não tinha vergonha de mudar de ideia, dado que
não tinha vergonha de pensar.
Duvidar de si mesmo é o primeiro sinal de inteligência, afirmou Ugo
Ojetti (1871-1946), um grande jornalista italiano. E se esses exemplos não
são suficientes para mostrar como a dúvida é fundamental para evoluir

22
Introdução

nossa percepção sobre as coisas, o que


dizer da frase célebre do gênio da co-
municação Orson Welles (1915-1985)?
Para esse personagem marcan-
te do século XX, é preciso ter dúvidas,
dado que só os estúpidos têm uma con-
fiança absoluta em si mesmos. Lamen-
tavelmente nossas escolas e nossas
universidades se mostram refratárias
a estudantes questionadores, que têm
dúvidas. Mas é para isso que escreve-
mos livros como este e adotamos uma
postura que busca resgatar os princí-
pios basais do pensamento científico.
Questionar sobre a natureza das coisas
deveria ser uma atitude obrigatória de
Platão todos os seres pensantes, sobretudo
daqueles que pertencem a uma comu-
nidade universitária. As academias de ginástica estão repletas de pessoas
que buscam exercitar os próprios músculos, mas o mesmo não se pode
dizer com relação ao próprio cérebro. O “músculo” cerebral também pre-
cisa de exercícios que ajudem a pessoa a compreender a si próprio e o
mundo onde está imersa.
As questões que aqui elencamos se inserem no contexto da Episte-
mologia, um campo do conhecimento pertencente à Filosofia e que estuda
os princípios, fundamentos e métodos científicos. É uma área importante,
especialmente para aquelas pessoas interessadas em seguir a carreira aca-
dêmica, mas também para alunos da universidade que atuam como bolsistas
de iniciação científica e/ou enquanto estagiários em projetos de pesquisa.

23
Introdução

A alegoria ou mito da caverna

Trata-se de uma estória que está inserida em “A República”, uma


das mais importantes obras de Platão, a qual pode ser explicada
nos seguintes termos: Imaginemos um grupo de pessoas que des-
de a infância vivem acorrentadas no interior de uma caverna. Elas
passam o dia olhando para uma parede vazia e a única coisa que
conseguem ver são sombras projetadas pela luz que emana de
uma fogueira que está às suas costas, fora da caverna.
Os pobres infelizes veem apenas imagens de pessoas que se
movem e objetos por elas transportados. Não podem se mexer,
nem mesmo virar a cabeça para o lado. Há, assim, dois mundos, o
mundo de dentro e o de fora da caverna. Mas imagine que um dos
prisioneiros rompe as correntes e sai para fora da caverna. Ao to-
mar contato com o mundo externo seus olhos e a sua mente ficam
ofuscados. Sob a luz brilhante do sol ele percebe que toda a sua
vida esteve preso a imagens projetadas por outrem. Ele se encanta
com a natureza, com os animais com as plantas, com tudo.
Maravilhado com o mundo real, o ex-prisioneiro decide retor-
nar à caverna para tentar libertar os seus companheiros. Ao che-
gar lá descreve o que viu e sentiu, mas é ridicularizado por essas
pessoas que seguem aferradas às mesmas sombras projetadas na
parede. Lamentavelmente eles não querem ouvi-lo e o rechaçam
totalmente. Ele é visto como ameaça porque seus argumentos
se contrapõem à visão a que as pessoas estão aferradas. Elas não
querem nem mesmo dialogar, trocar ideias, refletir sobre as coisas
e pensar sobre outras possibilidades.
A Filosofia nos distingue dos animais. Nos convida a pensar
sobre o que somos e a construir nossa própria visão de mundo. Isso
só pode ser alcançado através da reflexão, do diálogo com outras
pessoas e do desenvolvimento da própria percepção. A universida-
de existe para fazer com que as pessoas exercitem tal faculdade,
que conheçam outros pontos de vista. Ao se aterem apenas à apa-
rência das coisas e não à essência, ao se apegarem à matéria (ri-
queza material) fazem aquilo que o sistema quer, convertendo-se
em autômatos que anseiam consumir os objetos que a publicida-
de lhes indica.

Box 1

24
Introdução

continuação do box 1

Estão elas condenadas à mediocridade. Elas se sentem to-


talmente seguras na sua ignorância. A Filosofia surge para fazer
com que desenvolvam a própria razão em lugar de pensar o que os
outros ou o sistema determina. É por esses motivos que uma das
primeiras coisas que os regimes autoritários fazem é justamente
perseguir os cursos e os profissionais que atuam no âmbito das
Ciências Humanas. O momento vivido pela humanidade mostra
o quão atual é a alegoria da caverna concebida por Platão. Nunca
houve tanta gente que se nega a exercitar o próprio cérebro.

As Ciências Humanas e a Sociologia


Segundo Lakatos (1992), existem três níveis do conhecimento científico,
quais sejam, o inorgânico, o orgânico e o superorgânico. O inorgânico cor-
responde às Ciências Físicas, o orgânico às Biológicas e o superorgânico às
Ciências Sociais e Humanas. É no âmbito desse terceiro nível que se situa
a Sociologia. Mas qual é o objeto de estudo dessa ciência? Grosso modo
poder-se-ia dizer que se trata de uma ciência cuja ênfase recai no estudo
sobre a vida social ou sobre o comportamento humano em sociedade.
Nesse contexto, muitas das pesquisas sociológicas voltam-se ao estudo
dos mais diversos tipos de problemas sociais.
Tomemos, como exemplo, o caso da fome e da insegurança alimentar
e nutricional em nosso país. Depois de uma década de grandes avanços
no combate a essa grande mazela nacional (2004-2014), a fome cresce,
atualmente, de forma acentuada. Segundo dados oficiais (IBGE, 2020),
36,7% dos domicílios do país enfrentam, hoje, a insegurança alimentar.
De acordo com a mesma fonte, em 2018 havia 10,3 milhões de famintos
no Brasil, mas o mais impressionante é que esse fenômeno atinge 23,3%
da população urbana e 40,1% da população rural.

25
Introdução

Dados ainda mais recentes indicam que, em 2020, apenas 44,8%


dos domicílios brasileiros se encontravam em situação de segurança ali-
mentar. Consta ainda que: “dos 55,2% restantes, 9% passavam fome, ou
seja, estavam em situação alimentar grave, sendo pior essa condição nos
domicílios da área rural” (REDE PENSSAN, 2021, p. 8)2.
É uma situação paradoxal, se temos em mente que o agronegócio é
visto como grande orgulho nacional. Em outras palavras, o Brasil, que se
considera um dos grandes celeiros do planeta, se mostra incapaz de saciar
a fome da própria população rural, ou seja, das pessoas que vivem no es-
paço onde essa produção agrícola é gerada e em grande parte exportada
para todo o planeta. E aí surgem algumas perguntas inquietantes.
Quais as razões para a fome no
Brasil? Quais as explicações para a ver-
gonhosa condição em que nos encon-
tramos? Se aumentar a produtividade
das lavouras e criações fosse a solução
para aplacar esse flagelo nacional, tal
problema já teria sido solucionado, em
que pesem os sucessivos avanços na
produção agropecuária verificados nos
últimos 40 anos. Antes de mais nada é
preciso dizer que a Sociologia tem mui-
to a contribuir nessa discussão. Veja-
mos um exemplo disso.
No auge dos anos 1950, o médi-
co, geógrafo e escritor brasileiro Josué
de Castro (1904-1973) ganhou notorie-
dade mundial ao estudar as causas da
fome em nosso país. Não por acaso, ele Josué de Castro

2 Trata-se da pesquisa realizada em todo o território nacional pela Rede Brasileira de


Pesquisa em Soberania Alimentar e Segurança Alimentar (REDE PENSSAN, 2021), cujo
objetivo foi analisar a insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19.

26
Introdução

foi eleito presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações


Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). Em 1954 foi distinguido
com o Prêmio Internacional da Paz. Quando ainda era médico em Recife
dedicou-se ao estudo de doenças endêmicas das populações ribeirinhas
da capital pernambucana e tomou contato com as precárias condições em
que essas pessoas viviam. Conforme Melo filho afirmou:

O principal mérito de Josué de Castro talvez tenha sido o de


revelar o fenômeno da fome para a humanidade, desnatu-
ralizando-o e demonstrando que foram as relações sociais e
econômicas, estabelecidas entre os homens, que o produzi-
ram e o mantêm. Em estilo autobiográfico, ele confessa que
logo cedo entrou em contato com a fome nos alagados, nos
mangues do Capibaribe e nos bairros miseráveis do Recife
(MELO FILHO, 2003, p. 511).

Desnaturalizar o fenômeno da fome significa mostrar que ela não é


uma coisa “natural”, mas, sim, uma situação provocada pela desigualdade
social que atinge os mais diversos rincões do país. Por força disso, uma
minoria de pessoas usufrui de privilégios enquanto a grande massa de
brasileiros vive sem ter o que comer e em habitações miseráveis, como
no caso das palafitas de Recife. As precárias casas são construídas sobre
a lama onde vive o caranguejo, que se alimenta também da matéria or-
gânica que emana dos excrementos humanos. Mas o mesmo caranguejo
que serve de alimento para essas famílias é também uma fonte de renda
das pessoas ao ser vendido para terceiros.
E foi nos mangues de Recife que Castro mergulhou na realidade
dramática de um país que se acostumou a ver a desgraça de muitos de
seus habitantes como um fato banal, uma coisa normal e corriqueira. À
época em que concebeu sua obra, reconhecida internacionalmente, a
Universidade de Sorbonne (Paris, França) era tida como um dos templos
sagrados do mundo acadêmico e científico mundial. Nesse sentido, vale
a pena refletir sobre o que diz o próprio Josué de Castro acerca do que
aprendeu nos mangues de Recife:

27
Introdução

Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do


Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres hu-
manos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo
como caranguejo. Seres anfíbios — habitantes da terra e da
água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância
com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos
que faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que apren-
diam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama, de
se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos man-
gues e de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre
e de maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de
lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus
irmãos, com suas duras carapaças também enlambuzadas
de lama (CASTRO, 1967, p. 12-13).

Ao finalizar essa seção podemos dizer que muitas das pesquisas


sociológicas se voltam a problemas sociais, os quais decorrem de causas
e circunstâncias de ordem econômica, política, cultural, etc. Além disso,
dedica-se igualmente aos mais diversos assuntos relacionados à vida em
sociedade, ao estudo dos fenômenos e das instituições sociais. Possui
diversas especialidades (Sociologia Ambiental, Sociologia Econômica, So-
ciologia do Consumo, etc.), entre as quais a própria Sociologia Rural, que
é precisamente o foco deste livro e do curso que ministramos. Mas antes
de entrar propriamente nas peculiaridades da Sociologia Rural é preciso
abordar como surge a Sociologia em geral, quais são os autores clássicos
e qual a respectiva contribuição dos fundadores dessa ciência.

O surgimento e o desenvolvimento da Sociologia


A Sociologia é a mais jovem das Ciências Humanas. O marco do surgimento
é a publicação, em 1838, de uma importante obra concebida pelo filósofo
francês Augusto Comte (1798-1857), intitulada “Curso de Filosofia Posi-
tiva”. A vida do homem em sociedade sempre foi objeto da atenção dos
pensadores, como assim ficou demonstrado nas observações que fizemos
anteriormente sobre personagens marcantes da Filosofia grega. Entretan-

28
Introdução

to, é a partir de Comte que surge a ideia


de criação de uma ciência identificada
com o estudo da vida em sociedade.
A Sociologia concebida por Com-
te foi inicialmente referida por esse fi-
lósofo francês como Física Social. Essa
denominação reflete a necessidade de
que uma ciência da sociedade tivesse
o mesmo rigor metodológico da Física,
da Matemática e de outras disciplinas
do campo das Exatas. Comte defendia
a tese de que o conhecimento da hu-
manidade passaria por três sucessivos
estágios ou estados. O primeiro deles
é o estado teológico, aquele em que as
explicações para os diversos tipos de
Augusto Comte fenômenos se baseiam nos aspectos
divinos. Em uma palavra os deuses
governariam os fenômenos. A título de exemplo, Ceres é a deusa da agri-
cultura na mitologia romana. Em tempos pretéritos, habitantes da velha
Sicília, nas imediações do vulcão Etna, realizavam viagens noturnas e
portavam tochas acesas dando gritos em louvor à Ceres.
O segundo estado do conhecimento é o estado metafísico ou filosó-
fico. Segundo Comte é aquele momento em que o ser humano já não se
satisfaz com as explicações religiosas ou divinas para compreender os
fenômenos. A falta ou excesso de chuva não são resultado do castigo dos
deuses, mas como efeito de outros fatores. O homem começa a formular
teorias racionais para conjecturar sobre possíveis causas, mas ainda sem
um raciocínio fundamentado. Até aí não havia uma rigorosa observação
da própria natureza.
O terceiro e último estado é o estado positivo ou científico. É o momen-
to em que os indivíduos buscam compreender a relação entre as coisas e os
acontecimentos que se desenvolvem ao seu redor, com base na observação

29
Introdução

e no raciocínio, mediante os quais elaboram leis explicativas universais. To-


das as ciências, incluindo a Sociologia, precisam chegar ao estado positivo
ou científico. O estado positivo representaria, no entendimento de Comte, o
ápice da humanidade. Os três estados corresponderiam, respectivamente,
à infância, adolescência e maturidade do pensamento humano.
Mas Comte era também um personagem muito controvertido, isso
porque foi também responsável pela criação de uma doutrina filosófica
denominada positivismo. Esse movimento influenciou enormemente a
cultura, a educação, a política e as ciências - em grande parte do mundo
- no espaço de tempo compreendido entre a segunda metade do século
XIX e o começo do século XX.
Comte divide a Sociologia em dois ramos. O primeiro deles é estáti-
ca social, correspondente à ordem. O segundo deles é a dinâmica social,
correspondente ao progresso. Ordem e Progresso é a frase magistral dis-
posta no centro da bandeira brasileira, mostrando que a influência do
positivismo é mais do que evidente na história nacional, havendo sido,
inclusive, a fonte inspiradora para o nascimento da república federativa
brasileira em 1889. É preciso frisar o contexto em que surge a Sociologia
concebida pelo filósofo francês, bem como a sua obsessão pela ordem e
pelo progresso.
O século XIX é marcado por grandes revoluções no velho continente,
as quais refletem a decadência das monarquias e dos grandes impérios,
a ascensão da burguesia, mas também o surgimento de uma classe social
nova – o proletariado – constituída por uma população pobre empregada
nas manufaturas que se expandem dentro do período que ficou conhecido
como revolução industrial. Tais pessoas possuem apenas os próprios bra-
ços para prover o seu sustento, vendendo sua força de trabalho nas fábricas
que exploravam, inclusive, a mão de obra infantil em jornadas extenuantes.
A sociedade idealizada por Comte baseava-se no desenvolvimento
científico e tecnológico associado à revolução industrial e representava a
fé inabalável no progresso da humanidade. Poucos países do mundo fo-
ram tão influenciados pelas teses de Comte como o Brasil. Não somente

30
Introdução

a Proclamação da República, mas outros episódios importantes, entre os


quais, a revolução federalista no Rio Grande do Sul.
Essa guerra civil sangrenta e fratricida, desencadeada em solo gaú-
cho entre 1893 e 1895, esteve marcada pelas degolas de inimigos, sendo
praticadas por ambos os bandos enfrentados. De um lado, estavam os
republicanos (chimangos ou pica-paus), liderados por Júlio de Castilhos,
então presidente da província de São Pedro (governador do RS); de outro,
os federalistas (maragatos), liderados por Gaspar Silveira Martins.
Os segundos se mostravam contrários ao regime autoritário instituí-
do por Floriano Peixoto em nível nacional e pelos desmandos de Castilhos
no Rio Grande do Sul. Castilhos era entusiasta do positivismo, que ele
próprio denominava “ditadura científica”, para justificar a perseguição
implacável de seus adversários. Tal regime teve continuidade nos suces-
sivos governos de Borges de Medeiros, através de eleições fraudulentas,
e de outras práticas que acabaram por causar novos conflitos bélicos, a
exemplo das revoluções de 1923 e 1924.
A ascensão de Getúlio Vargas ao poder central em 1930 e a ditadu-
ra que esse caudilho gaúcho impôs ao país, durante o chamado Estado
Novo (1937-1945), são claramente inspiradas no positivismo de Comte.
O mesmo se pode dizer da ditadura militar que vigorou durante o período
compreendido entre 1964 e 1985. O progresso vislumbrado pelos militares
se traduziu em grandes obras, sendo que muitas delas redundaram em
rotundos fracassos e grandes prejuízos econômicos, a exemplo da rodovia
transamazônica3.

3 A rodovia transamazônica é um projeto concebido durante o governo do general


Garrastazu Médici (1969-1974), sendo uma das obras inacabadas do regime militar que
pretendia ligar as regiões Norte e Nordeste do Brasil, a qual contribuiu para a crise eco-
nômica que explode no final dos anos 1970.

31
Introdução

Questões para fixação de conteúdos

1. A sociologia é também entendida como ciência que se volta ao estudo


dos problemas sociais, a exemplo da fome e da insegurança alimentar.
Que aspectos são apontados no texto para sustentar tal afirmação?

2. Ao estudar a realidade do homem-caranguejo nos mangues de Recife,


Josué de Castro desnaturalizou o fenômeno da fome no Brasil. O que isso
significa?

3. Augusto Comte foi o responsável por criar uma nova ciência a sociologia,
a qual aparece dividida em dois ramos: a estática social (ordem) e a
dinâmica social (progresso). O que cada uma delas significa.

4. Comte foi também responsável pelo surgimento do positivismo, uma


doutrina filosófica que influenciou a história do Brasil. Quais são os
episódios mais marcantes dessa influência?

5. Como era a realidade da Europa à época em que Comte concebe a


sociologia?

A Sociologia e seus fundadores


Comte teve o mérito de criar a Sociologia, mas sua consolidação como ci-
ência se deu entre o final do século XIX e o começo do século XX, período
em que surgem e se consagram três grandes escolas sociológicas, as quais
serão abordadas na presente seção deste livro. A ordem de apresentação
dessas escolas não se baseou no critério cronológico em que tais autores
e suas obras surgiram e se tornaram célebres, mas na forma que nos pa-
receu mais apropriada do ponto de vista do encadeamento das ideias e
de suas teorias.

32
Introdução

A Sociologia objetiva de
Durkheim
O francês Èmile Durkheim (1858-
1917) assentou formalmente as bases
da Sociologia como disciplina acadê-
mica. Por essa e outras razões é consi-
derado um dos pais da Sociologia. Sua
obra surge em pleno auge da revolução
industrial, uma mudança econômica e
social que alterou profundamente a re-
alidade dos países europeus. Dentre as
suas obras mais importantes, constam:
Da divisão social do trabalho (1893); As
regras do método sociológico (1895); O
suicídio (1897) e As formas elementa-
res da vida religiosa: o sistema totêmi-
co na Austrália (1912). Abordaremos Èmile Durkheim

aqui as três primeiras.


Na primeira obra, que corresponde à sua tese de doutoramento,
Durkheim analisa as transformações impostas pela industrialização. As
sociedades arcaicas, simples ou primitivas, baseadas essencialmente na
produção agrária, apresentavam uma escassa divisão social do trabalho
e uma baixa diferenciação social dos indivíduos. Nesse caso poderíamos
dizer que todas as pessoas exerciam praticamente as mesmas funções.
Na sociedade moderna (industrial) encontramo-nos diante de um elevado
grau de complexidade, de uma forte divisão do trabalho e de uma intensa
diferenciação social dos indivíduos. As pessoas exercem, cada qual, ati-
vidades e ofícios diversos.
A sociedade, segundo Durkheim, se constitui a partir da ordem e do
consenso. Nesse aspecto, esse sociólogo francês demonstra a influência
exercida por Augusto Comte. Mas as sociedades diferem no modo como
alcançam a ordem e nesse ponto ele se esforça por evidenciar novamente
as diferenças entre as sociedades primitivas e as sociedades modernas ou

33
Introdução

industriais. Ambas nascem do consenso e da solidariedade entre os indiví-


duos. Todavia, se as sociedades primitivas são regidas por uma solidarieda-
de mecânica, as modernas são regidas por uma solidariedade de natureza
orgânica. Em que essas duas formas de solidariedade se diferenciam?
A diferença está no fato de que nas sociedades arcaicas o homem
primitivo “pensa, sente e age conforme determina ou prescreve o grupo a
que pertence” (LAKATOS, 1992, p. 45). A sua consciência individual é to-
talmente dominada pela consciência coletiva. Comportamentos divergen-
tes são totalmente condenados e sancionados pelo grupo. Já no caso das
sociedades modernas tem-se uma solidariedade orgânica. Nesse sentido:

A divisão do trabalho gera um novo tipo de solidariedade,


baseado na complementação de partes diversificadas. O en-
contro de interesses complementares cria um laço social
novo, ou seja, um outro tipo de princípio com moral própria,
e que dá origem a uma nova organização social (LAKATOS,
1992, p. 46).

A sociedade moderna é como se fosse o corpo humano, formado por


diversos órgãos (cérebro, coração, fígado, rins, pulmões, etc.) que exercem
funções distintas e complexas que são crucias para que todo o sistema
possa funcionar. Não é à toa que algumas pessoas usam essa expressão
– corpo social – para falar das complexas estruturas que movem as socie-
dades contemporâneas. Mas, nesse caso, a solidariedade não está mais
centrada nas semelhanças dos indivíduos, mas na sua interdependência.
A segunda obra assume uma importância crucial para o desenvol-
vimento da Sociologia, porque é através dela que Durkheim estabelece
qual é o objeto de estudo desse novo campo do conhecimento. Como toda
ciência, a Sociologia se baseia em métodos ou regras requeridas para o
estudo de fenômenos sociais. Sendo ainda mais objetivo, o que estuda a
Sociologia? Estuda fatos sociais. E o que são fatos sociais? Todo o dia o sol
nasce e se põe, em alguns dias faz frio e em outros faz calor. Decididamente
o modo como o clima se comporta e os fenômenos da natureza não são
fatos sociais. Segundo o próprio Durkheim:

34
Introdução

É fato social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de


exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então
ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apre-
sentando uma existência própria, independente das mani-
festações individuais [...] (DURKHEIM, 1968, p. 12).

Há várias formas de traduzir a visão de Durkheim sobre o fato so-


cial. Imagine que você vem ao mundo e as regras e normas que regem o
funcionamento da sociedade já estão estabelecidas. Através da educação
e do convívio com os demais temos de aprender tudo, desde como do-
minar a própria língua, a nos alimentarmos como os demais, bem como
saber o que é certo e o que é errado, o que é permitido e o que é proibido.
Em Durkheim a sociedade precede o indivíduo, o qual se molda ao que
encontra enraizado no grupo ou coletividade a que pertence.
Nas nossas aulas de Sociologia usamos vários exemplos ilustrativos
para explicar o fato social. Veja o caso do mate ou chimarrão consumido
na Argentina, Uruguai e no Sul do Brasil. Trata-se de um hábito herda-
do de civilizações ancestrais (charruas, minuanos, guaranis, etc.) que se
mantém ao longo dos séculos. Existem múltiplas formas de saciar a sede
e o mate é apenas uma delas. Por que razão os gaúchos preservam esse
costume? Por uma série de razões, mas uma das mais importantes é por-
que reflete a afirmação da própria identidade, entendida aqui como um
modo de se reconhecer como indivíduo pertencente a uma dada cultura.
Ninguém é obrigado a assimilar esse hábito. Mas se a pessoa nasce nessa
parte do mundo há uma grande chance de incorporar o chimarrão nas
suas atividades rotineiras, de manter essa tradição ao longo do tempo e
de transmiti-la aos seus descendentes.
Outro modo de entender o que é o fato social é através da apresen-
tação das suas três características: exterioridade, generalidade e coer-
citividade. A exterioridade quer dizer que todas essas formas de agir, de
pensar e de sentir são exteriores aos indivíduos. É sobretudo através da
educação que somos incentivados a incorporar formas de agir e outros
aspectos que marcam o funcionamento da vida em sociedade. Mas o fato
social é também geral, ou seja, se aplica ao conjunto de pessoas que vivem

35
Introdução

numa dada coletividade, daí a ideia de generalidade, com o qual, normas,


leis e costumes são aplicáveis a todos os que a ela pertencem.
A terceira característica do fato social é a coercitividade. Precisamos
recalcar no fato de que as formas de agir, pensar e sentir são dotadas de
um poder coercitivo. Coercitivo vem de coerção, dado que os indivíduos
são forçados a assumir o comportamento que a sociedade determina.
Comportamentos desviantes são frequentemente punidos com algum
tipo de sanção. Essa coerção pode ser tanto uma simples recriminação
imposta pelo grupo ou coletividade a que o indivíduo está vinculado até
uma penalidade ou multa instituída pela sociedade.
Mas por que a Sociologia de Durkheim é denominada Sociologia
objetiva? Basicamente porque ele defende a ideia de que os fatos sociais
devem ser tratados como coisas. O sociólogo deve estudar o fato social da
mesma forma que o meteorologista interpreta o clima ou os fenômenos
atmosféricos. A terceira grande obra Durkheim se refere justamente a um
fato social sobre o qual ele se debruçou ao estudar as causas do suicídio
cometidos na sociedade de sua época. A grande conclusão a que chega é
que a força determinante do suicídio é sobretudo de natureza social, muito
mais do que psicológica.
Através do levantamento de dados e estatísticas ele analisou as ra-
zões desse fenômeno. Durkheim considera que existem três tipos de sui-
cídio: a) egoísta, b) altruísta e c) anômico. O suicídio egoísta envolveria as
situações em que haveria limites efetivos de integração dos indivíduos à
sociedade. Quem de nós não quer ser aceito pelo grupo ou coletividade?
Todavia, muitas vezes há filtros que rechaçam a entrada de novos mem-
bros. Dar cabo da própria vida é uma forma de acabar com o sofrimento.
É uma forma de individualismo extremado praticado por aqueles que se
sentem excluídos da família, do grupo de amigos, do grupo de colegas de
profissão, etc.
O suicídio altruísta, como o próprio nome indica, é uma forma em
que o indivíduo sacrifica a própria vida em nome do grupo a que perten-
ce. Reflete situações em que se dá a submissão total do ato individual em
relação a imperativos sociais. Um bom exemplo é o caso dos soldados

36
Introdução

japoneses que durante a II Guerra Mundial entregavam sua própria vida


ao país e ao imperador Hirohito (1901-1989), lançando de encontro aos
navios dos EUA a própria aeronave para tentar causar baixas ao inimigo
num momento em o Japão estava à beira da derrota. Conscientemente o
piloto dava cabo da própria existência.
A terceira modalidade – o suicídio anômico – é a que mais interes-
sa a Durkheim. A palavra anomia significa dizer “ausência de normas”.
Imagine uma sociedade que, por alguma ou outra situação, vive uma to-
tal desorganização devido à ausência das normas sociais. Segundo esse
sociólogo francês, nas fases de depressão econômica, mas também nos
períodos de prosperidade econômica, há um aumento do que ele mesmo
denomina de “corrente suicidógena”.
As crises econômicas são recorrentes no sistema capitalista, as quais
estão geralmente associadas ao desemprego de milhões de pessoas e à
falta de perspectivas. Mas é também nos períodos de prosperidade econô-
mica que surgem novas regras e valores sociais que muitas das vezes se
chocam contra o modo como muitos indivíduos se reconhecem como tal.
Segundo Durkheim, as sociedades viveriam a alternância entre ciclos de
anomia (ausência de normas) e de efervescência, quando novas normas
de conduta, regras ou leis, são instituídas. Resumidamente são esses os
aspectos que identificam a Sociologia objetiva de Durkheim.

Questões para fixação de conteúdos

1. Segundo Durkheim a sociedade nasce do consenso. Não obstante,


Durkheim mostra as diferenças entre sociedades primitivas e sociedades
modernas, às quais correspondem formas distintas de solidariedade
estabelecidas entre as pessoas. Quais são elas e em que se diferenciam?

2. De acordo com Durkheim, o fato social é o objeto de estudo da


sociologia. Como ele pode ser definido? Quais são as características do
fato social?

37
Introdução

3. Por que a sociologia de Durkheim é chamada de objetiva?

4. O suicídio foi um fenômeno estudado por Durkheim, sendo visto como


exemplo de fato social estudado por este sociólogo francês. Ele propôs
uma tipologia do suicídio, estabelecendo três modalidades ou subtipos.
Apresente as suas principais características?

5. Explique o significado da palavra anomia e a sua relação com a corrente


suicidógena.

A Sociologia compreensiva de
Max Weber
A importância do sociólogo alemão
Max Weber (1864-1920) para a afirma-
ção da Sociologia e para o desenvolvi-
mento das Ciências Sociais como um
todo é inquestionável. Como bem fri-
sou Aron (2002, p. 456), embora Weber
e Durkheim fossem contemporâneos,
jamais houve entre ambos algum tipo
de diálogo ou interlocução. Do ponto
de vista sociológico, há dois trabalhos
que são centrais, quais sejam: “A ética
protestante e o espírito do capitalis-
mo” (1905) e “Economia e sociedade”
Max Weber
(1922), publicada postumamente. É na
segunda obra que Weber esclarece que
o objeto de estudo da Sociologia é a Ação Social. Mas o que é uma ação so-
cial? A ideia de ação social remete a algo em movimento, contrariamente
ao caso de fato social apresentado por Durkheim. E o que é uma ação so-
cial? Alguma coisa que envolve atores sociais, circunstâncias e um sentido
(objetivo ou subjetivo) que governa essa ou aquela ação.

38
Introdução

Imagine uma sala de aula (presencial ou virtual) em que professores


e alunos interagem entre si, trocam impressões, estabelecem acordos, pro-
gramam atividades, etc. Cada qual deposita suas expectativas na relação
com os demais e age segundo uma determinada lógica. Esse exemplo nos
parece bastante ilustrativo. Para Weber, a Sociologia é uma ciência que
busca compreender o sentido que o ator social atribui à própria conduta.
Por que uma pessoa ou mesmo um grupo de pessoas age de uma
determinada forma? Qual a lógica que guia a atitude de um indivíduo ou
coletividade? Weber estabelece a existência do que ele denomina quatro
(04) tipos puros de Ação Social. São elas: a) Ação racional com relação a
um objetivo; b) Ação racional com relação a valores; c) Ação tradicional;
d) Ação emocional. Vejamos cada uma delas separadamente.

a) Ação racional com relação a um objetivo


Nesse tipo de ação, o ator social define seu objetivo e combina os meios
disponíveis para satisfazê-lo. Exemplo: O professor de Sociologia Rural tem
como objetivo despertar a importância dessa ciência à formação acadê-
mica dos alunos. Nesse caso, o docente realizará um esforço no sentido de
ministrar aulas de qualidade, valendo-se de todos os recursos pedagógicos
possíveis para alcançar o que tanto almeja. O sentido dessa ação social será
governado pela necessidade de atingir os resultados previamente definidos.

b) Ação racional com relação a um valor


Na ação racional com relação a um valor ou a valores o ator social não
age em função de um objetivo previamente definido, mas de um valor ou
princípio que guia a sua conduta. Toda a sociedade ou um dado grupo de
pessoas cultiva determinados valores de ordem ética ou moral. Imagine
uma dada sociedade em que a solidariedade seja um valor fundamental
enraizado na cultura da população.
Ser solidário é algo natural na atitude dos indivíduos. Ser individua-
lista contraria um princípio que rege essa coletividade. Ajudar os demais
sem esperar nenhuma recompensa imediata e fazer esse esforço sem

39
Introdução

avaliar o custo material é prova de que tal pessoa carrega dentro de si esse
princípio. Mas é importante dizer que ela age racionalmente em função do
valor e que essa racionalidade é definida em função dos conhecimentos
do ator e não do observador externo.

c) Ação tradicional
Na ação tradicional, como o próprio nome indica, o ator social age de
acordo com a tradição, ou seja, com as normas ou costumes arraigados no
grupo social ou coletividade a que pertence. Note que aqui não temos mais
o adjetivo racional na definição da ação social, isso porque a tradição se
sobrepõe à racionalidade. Nas sociedades cristãs, o Dia de Finados é uma
data importante e coincide com as atividades de visitação aos cemitérios
onde estão enterradas pessoas queridas que já faleceram. É uma tradição
que governa a conduta das pessoas e não o sentido lógico, racional ou
algum objetivo definido previamente. O ator social aceita a norma e age
de acordo com ela, independentemente do resultado. O que manda é a
tradição enraizada.

d) Ação afetiva ou emocional


A ação afetiva ou emocional é resultante do estado de consciência ou de hu-
mor do ator social. Uma mãe que dá uma palmada no filho quando perdeu
a paciência com as suas travessuras é um exemplo de uma ação desse nai-
pe. Aqui também não há lógica ou racionalidade, o ator social age segundo
fatores estritamente subjetivos e associados às circunstâncias específicas.
A Sociologia de Weber se opõe à Sociologia de Durkheim por uma
série de aspectos. Nesse sentido, se em Durkheim as atenções estão postas
na sociedade que molda o modo de agir e de pensar dos indivíduos, em
Weber a ênfase está em compreender as razões que governam a conduta
do ator social. Antes de encerrar essa abordagem da Sociologia compre-
ensiva de Max Weber é importante mencionar que se trata de tipos puros
de ação social, isso porque as ações se misturam no cotidiano das pessoas.
Em virtude disso, os tipos de ação social podem estar entrelaçados.

40
Introdução

Ao exemplificar a ação racional com relação a um objetivo, mencio-


namos o caso do professor que almeja despertar o interesse dos alunos
pela Sociologia e faz uso de todos os meios possíveis para chegar a bom
termo. Mas esse professor também se move por um sistema de valores
que traz dentro de si, como no caso da sensação do dever cumprido, de
ter feito o seu melhor para que os estudantes efetivamente tenham uma
formação adequada e consistente. Nesse caso tem-se claramente eviden-
ciada uma ação racional com relação a valores. Desse modo, o exemplo do
professor mostra que os dois tipos de ação social estão imbricados e não
podem ser dissociados.

Questões para fixação de conteúdos

1. O alemão Max Weber exerceu um papel extremamente relevante na


consolidação da sociologia como disciplina científica. O ponto de vista
dele ficou conhecido a defesa de uma sociologia compreensiva. A partir
do que foi aqui exposto, o que isso significa?

2. Segundo Weber o objeto de estudo da sociologia é a Ação Social. O


que é uma ação social? Proponha um exemplo de ação social nos termos
definidos por Weber.

3. Weber distingue quatro tipos puros de ação social. A primeira delas é a


ação social com relação a valores. Explique o que significa e exemplifique.

4. A ação tradicional não segue um padrão de lógica ou racionalidade.


Explique como isso ocorre, segundo a perspectiva de Weber, bem como
exemplifique.

5. A sociologia de Weber diverge frontalmente da sociologia de Durkheim.


Explique por quê.

A Sociologia do conflito
A terceira grande vertente sociológica é a chamada “Sociologia do confli-
to” e deriva da contribuição de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels

41
Introdução

(1820-1895), os pais do que se conhece como materialismo histórico e


dialético. Importante dizer que Marx não reconhecia o status científico
da Sociologia, justamente porque, em sua época, tal ciência dava apenas
os primeiros passos em termos de conquistar o próprio espaço, além de
apresentar um viés altamente conservador. Marx se considerava um filó-
sofo social e foi sua vasta obra a base para que os pensadores que lhe su-
cederam atribuíssem a ele o papel de ser um dos fundadores da Sociologia
e de uma vertente específica dessa jovem ciência. O crucial não é apenas
entender o ponto de vista desses autores e sua contribuição à Sociologia,
mas também ter uma clara noção do que seu enfoque se diferencia dos
dois outros autores que vimos anteriormente.

Karl Max Friedrich Engels

Para entender a Sociologia do conflito é preciso começar pelo bá-


sico, por algumas questões muito concretas. De que necessitamos para
viver? Quais são as coisas essenciais que nos mantêm vivos? A primeira

42
Introdução

coisa que viria à mente seria comida. Mas daí vem a segunda pergunta: e
como fazemos para obter essa comida? Numa economia capitalista, como
a que vivemos no Brasil, temos comida se temos dinheiro. Nesse sentido,
a esmagadora maioria das pessoas ganha seu suado dinheirinho através
do trabalho, recebendo um salário ou remuneração em troca do serviço
prestado a alguém.
Sobreviver implica aceitar muitas vezes trabalhos precários e arris-
car-se para ganhar o pão de cada dia. Mas aí vem a grande constatação:
enquanto a esmagadora maioria das pessoas não tem outra coisa senão o
próprio corpo para assegurar sua sobrevivência, uma ínfima minoria vive
de rendas, da especulação financeira e do trabalho de outrem. Resumida-
mente podemos dizer que sob o capitalismo uma imensa massa de pessoas
vive do próprio trabalho enquanto uma diminuta parcela vive do trabalho
dos demais ou do dinheiro proveniente da mera especulação financeira.
Mas daí vem uma nova indagação: essa dinâmica sempre existiu? O
mundo foi sempre assim? A forma com que nos acostumamos a obter os
meios essenciais à nossa sobrevivência foi a mesma ao longo da história
da humanidade? Decididamente não. Basta um rápido resgate de nosso
passado e nos daremos conta que há 250 anos atrás o mundo era muito
diferente. A grande conclusão que se pode extrair é que a maneira como
se consegue as coisas para sobreviver confere a característica essencial
de uma dada sociedade. Vivemos um mundo em que a quase totalidade
dos países do planeta é regida pelas leis do capitalismo, ainda que haja
algumas nuances entre as diversas nações. Mas isso foi resultado de um
longo processo histórico e não obra do acaso.
Ao longo da história os humanos estabelecem relações entre si para
obter os meios de que necessitam para conseguir o seu sustento material.
Sem isso, segundo Marx e Engels, é impossível compreender o modo como
a sociedade está organizada, assim como o lugar que as pessoas ocupam
nas estruturas de poder. Esse é o ponto fundamental para entender as
bases do chamado materialismo histórico.

43
Introdução

Há um conceito importante na obra dos dois citados autores que é


preciso frisar para seguir explicando essa escola sociológica. Referimo-nos
ao conceito de “modo de produção”, que é o conjunto representado pelas
forças de produção e relações de produção. Nesse sentido, o modo de
produção capitalista é caracterizado por forças de produção (terra, capi-
tal e trabalho) e relações de produção específicas com ênfase na relação
de assalariamento estabelecida entre patrões e empregados. Em épocas
pretéritas não existiam fábricas ou indústrias, assim como não havia em-
pregados contratados por meio de salário. Houve um tempo também em
que algumas pessoas eram donas da terra e também de outras pessoas
que estavam a elas submetidas através de relações de escravidão.
Diante disso, cabe a pergunta: o que fez a sociedade passar de uma
situação à outra? Responder a essa questão é também explicar a razão pela
qual a perspectiva de Marx e Engels é chamada de “sociologia do conflito”.
Acontece que o modo de produção capitalista é consequência de outros
modos de produção precedentes.
Imagine o longo período que vai da pré-história ao momento em que
os humanos abandonam a vida nômade e o extrativismo puro, se seden-
tarizam e passam a cultivar a terra e domesticar os animais. Poderíamos
dizer que havia um modo de produção comunista primitivo, onde os meios
de produção eram de domínio social ou coletivo. Inexistiam diferenças
de classe e a divisão de trabalho se dava apenas com base no gênero e
idade. Os homens encarregados de lavrar a terra, caçar, abater animais
e proteger a coletividade e as mulheres de cuidar da prole e elaborar a
comida dos demais.
Mas com a sedentarização começam também a surgir enfrentamentos
entre as sociedades em torno ao controle dos meios de produção. Vales fér-
teis, onde a natureza é generosa, passam a ser disputados por coletividades,
sendo que os mais fortes subjugam os mais fracos, escravizando-os. São
essas as bases fundamentais para a aparição do modo de produção escravis-
ta, onde seres humanos tornam-se propriedade de outros seres humanos.
Entretanto, a realidade é sempre muito dinâmica e as sociedades
vão se tornando cada vez mais complexas. As grandes civilizações da Ásia,

44
Introdução

África, mas também da Europa, estiveram durante séculos operando com


base em relações de escravidão. Seguindo o ponto de vista da Sociologia
do conflito, os enfrentamentos entre exploradores e explorados levam a
um modo de produção mais sofisticado – o modo de produção feudal ou
feudalismo, no período correspondente à chamada idade média.
O feudalismo é um modo de produção mais sofisticado diante das
diferentes classes sociais que o integram, com ênfase na nobreza, no clero
(igreja) e na população camponesa. Do primeiro grupo fazem parte o mo-
narca (rei), o senhor feudal, suseranos e vassalos. O segundo grupo (cle-
ro) era formado por padres e toda a hierarquia eclesiástica. Camponeses
constituíam a classe mais frágil e a base dessa estrutura social. Todavia,
a relação social mais importante e que dava sustentação ao sistema social
era aquela estabelecida entre senhores feudais e os camponeses que vi-
viam dentro de seus domínios. Alguém poderia perguntar: os camponeses
eram escravos? A resposta é não. Eram livres? Também não.
Há sempre um risco de ser demasiado simplista ao comentar um
período que abarca uns mil e duzentos anos de existência. Todavia algu-
mas coisas são bastante eloquentes acerca dessa fase da história euro-
peia correspondente ao modo de produção feudal. É preciso dizer que
os camponeses produziam alimentos e uma série de bens e serviços que
eram essenciais para que a sociedade, no caso específico, o feudo, com as
pessoas que viviam em seu interior e que estavam separadas do mundo
externo por grandes muralhas, pudessem, assim, subsistir.
Nesse sentido, o feudo era uma unidade econômica que se bastava
a si mesmo: produzia tudo o que consumia e consumia tudo o que pro-
duzia. Os camponeses não eram escravos, mas estavam ligados à terra
e não poderiam abandonar o lugar em que viviam sem o consentimento
do senhor feudal. Deviam obediência a ele e eram obrigados a trabalhar a
terra na produção vegetal e animal, mas também na obtenção de diversos
artefatos e dos próprios utensílios e equipamentos de trabalho.
E como operavam as relações entre camponeses e senhores feu-
dais? Os camponeses deviam pagar aos senhores feudais duas formas de
renda pelo uso da terra. A primeira delas era a chamada renda produto,

45
Introdução

envolvendo a entrega de grande parte da produção animal e vegetal gerada


pelo seu trabalho e o de sua família. A outra forma de renda era a chama-
da renda trabalho ou “corveia”, a qual correspondia à obrigatoriedade
do camponês de trabalhar gratuitamente para o senhor feudal em outras
atividades existentes dentro do feudo (moinhos, lagares, atafonas, etc.).
Na baixa idade média (séculos XIV e XV) florescem diversas cida-
des a partir da intensificação do comércio. Vem dessa época o chamado
direito aduaneiro. Para levar as mercadorias a uma dada feira o dono da
produção tinha que passar pelos domínios de um outro senhor feudal.
Mas para que isso acontecesse ele deveria entregar parte da mercadoria
ou pagar uma renda em dinheiro. As feiras convertem-se em espaços de
intensa atividade comercial e intercâmbio de mercadorias. Esse período
era marcado pelo chamado ciclo M-D-M (mercadoria-dinheiro-merca-
doria). Paulatinamente o dinheiro (metal) começa a se impor como base
de troca. A produção é levada aos mercados, trocada por dinheiro e esse
dinheiro é utilizado para comprar outras mercadorias.
Não obstante, é também o momento em que se inicia a decadência
do modo de produção feudal. São múltiplas causas para esse processo.
As guerras são frequentes e o custo para manter exércitos regulares se
amplia. Uma das formas mais utilizadas para enfrentar esse problema é
aumentar a tributação que pesa sobre os camponeses, os quais, além de
se submeterem à exploração, são obrigados a deixar que seus filhos sejam
arregimentados para guerras cada vez mais frequentes. Os conflitos entre
camponeses e senhores feudais acontecem de forma recorrente.

46
Introdução

Figura 1 – “Detalhe da pintura Setembro, da obra Les Très Riches


Heures du Duc de Berry, Irmãos Limbourg, séc. XV

Fonte: Wikipedia Inglesa, 2005.

47
Introdução

Na velha Inglaterra, a história de Robin Hood não pode ser vista como
uma lenda ilustrada em inúmeros filmes, mas como expressão do conflito
de classes, seguindo a concepção marxista da evolução social comentada
anteriormente. Em 1381 tem-se outro caso emblemático quando a rebe-
lião camponesa liderada por Wat Tyler, nesse mesmo país, foi sufocada
após sangrentos embates. Essa foi uma insurreição popular causada pela
reação aos impostos extorsivos cobrados pelas classes dominantes. Esse
quadro não era distinto ao que acontecia nas demais regiões da Europa. As
inúmeras epidemias (peste negra, difteria, etc.) levaram à morte milhões
de pessoas, especialmente de camponeses.
A decadência do feudalismo leva ao modo de produção capitalista que
domina a realidade mundial até os dias atuais. O surgimento do capitalismo
está visceralmente ligado à revolução industrial, um fenômeno que se ini-
cia na Inglaterra e se espalha em seguida pelos diversos países da Europa
norte e central. As primeiras manufaturas dão origem a grandes indústrias
de tecidos que demandam cada vez mais matéria-prima, sobretudo de lã
ovina. Desse modo, grandes extensões e inclusive florestas são convertidas,
da noite para o dia, em áreas de pastagens para criação de ovelhas.
Tal fato leva à expulsão da gente do campo para as cidades, as quais
se convertem em locais onde fervilha uma população miserável que não
tem mais acesso à terra e muito menos condições de assegurar a própria
sobrevivência. Não é à toa que eclodem tantas enfermidades, em grande
medida derivadas das precárias condições de vida, da pobreza e da fome.
Jornadas extenuantes e a exploração de homens, mulheres e crianças
marcaram as fases iniciais do capitalismo industrial. Mas a essas alturas
é crucial apresentar os traços básicos do modo de produção capitalista e
os aspectos que o diferenciam dos modos de produção anteriores. Apre-
sentamos a seguir quatro de suas características essenciais:
a) A primeira característica é a de que temos o predomínio de uma
produção voltada fundamentalmente à venda. Ou seja, já se produz com o
intuito de vender o produto do trabalho. Durante o feudalismo as roupas
que os camponeses produziam artesanalmente eram destinadas ao uso

48
Introdução

próprio, possuíam, portanto, um valor de uso. Nas manufaturas que surgem


durante o capitalismo toda a produção era fabricada com o intuito de venda.
b) A segunda característica é que sob o capitalismo surge também
um mercado de trabalho onde a força laboral é comprada e vendida a
câmbio de um salário. Lembre-se que no feudalismo o camponês era obri-
gado a trabalhar para o senhor feudal, mas não havia salário, apenas a
entrega das duas formas de renda cobradas pelo dono da terra descritas
anteriormente. Contudo é mister frisar que o capitalista não compra a
pessoa em si como se fazia no tempo do escravismo. O que ele compra é
força de trabalho dos indivíduos, ou seja, a capacidade desses de produzir
mercadorias. E para realizar a compra é preciso que esses trabalhadores
sejam livres e não obrigados a permanecer no feudo como ocorriam com
os camponeses durante o feudalismo.
c) No modo de produção capitalista o dinheiro se impõe como base
essencial de troca. O dinheiro existe desde tempos remotos, mas sob o
capitalismo é que ele assume uma importância crescente. O ciclo econô-
mico adquire uma nova forma: D-M-D (dinheiro – mercadoria – dinheiro),
ou seja, começa com dinheiro e termina com dinheiro. Vejamos como isso
funciona. Imagine uma fábrica onde o empresário capitalista, dono dos
meios de produção (máquinas, instalações, etc.), vai iniciar o processo
produtivo. Ele tem tudo, mas não tem o essencial, que é a força de trabalho,
ou seja, a capacidade dos operários de fabricar os artigos.
Como ele faz então? Pois compra essa força de trabalho, arregimen-
tando pessoas em troca da promessa de um salário mensal ou semanal
fixo. Compra também as matérias-primas e as demais coisas empregadas
na produção. Finalizado o processo ele vende a mercadoria obtendo um
lucro, entendido aqui como a diferença entre o que foi gasto no processo
produtivo (D) e o preço que obteve na venda do produto final (D’). O lucro
obtido pode ser decomposto em duas partes: uma delas o empresário
reserva para reiniciar todo o processo produtivo (comprar a força de tra-
balho, as matérias-primas, renovar as máquinas, etc.) e a outra parte é o
que Marx e Engels definem como sendo a mais-valia.

49
Introdução

O que é mais-valia? É um conceito cunhado pelos autores citados e


que é entendido como sendo um valor produzido pelo trabalhador que é
apropriado pelo empresário capitalista sem que um equivalente lhe seja
dado em troca. Esse conceito foi desenvolvido por Marx e Engels para
mostrar como se dá a exploração do trabalhador sob as regras que regem
o modo de produção capitalista.
Nas nossas aulas costumamos usar um exemplo que ajuda a escla-
recer o que seja mais-valia. Imagine uma fábrica de calçados que emprega
50 trabalhadores no total. Cada trabalhador produz diariamente 50 pares
de sapato. A empresa produz, assim, 2.500 pares por dia e aproximada-
mente 50 mil pares por mês. Cada operário ganha um salário-mínimo.
Desse modo, ele custa ao patrão, incluindo gastos sociais, uma quantia
de dinheiro equivalente a cinco pares de calçados por dia ou 100 pares
de calçados por mês.
Assim sendo ele gera para o dono da empresa, descontando o custo
do seu salário, o equivalente a 45 pares de sapatos. O empresário paga
um salário fixo mensal, mas sempre vai pressionar os seus operários a
aumentarem a produtividade com o objetivo de incrementar o lucro da
empresa. O trabalhador aceita as regras do jogo e se submete à pressão
justamente porque não tem outra alternativa. Não dispõe dos equipamen-
tos de trabalho e não se reconhece como sujeito da produção na medida
em que realiza apenas uma parte do processo produtivo. Essa é uma das
formas de entender o que se conhece como “alienação do trabalhador”.
Fazemos uso das próprias palavras de Marx para reforçar esse aspecto:

A força de trabalho de um homem é consumida, ou usada,


fazendo-o trabalhar, assim como se consome ou se usa uma
máquina, fazendo-a funcionar. Portanto, o capitalista, ao
comprar o valor diário, ou semanal, da força de trabalho do
operário, adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la
funcionar durante todo o dia ou toda a semana (MARX, 1982,
p. 163).

50
Introdução

Vamos agora à quarta característica essencial do modo de produção


capitalista.
d) Controle sobre o processo produtivo executado pelo trabalhador.
No capitalismo é fundamental aperfeiçoar os mecanismos de controle
do processo produtivo executado pelo proletariado. A garantia de lucros
crescentes se dá justamente a partir dos incrementos de produtividade
da força de trabalho e da mais-valia extraída dos trabalhadores. Tal fato
surge como uma coisa nova na história da humanidade. Sob as condições
do feudalismo isso não existia porque era uma economia voltada para si
mesma. Repetimos aqui o que foi dito antes: o feudo produzia tudo o que
consumia e consumia tudo o que produzia. O comércio ainda era uma ati-
vidade incipiente durante o longo período que antecede à industrialização.
A vasta obra de Marx e Engels representa uma perspectiva com-
pletamente distinta de entender o surgimento das sociedades e o modo
como as transformações sociais ocorreram ao longo da história. Além de
trazer uma contribuição importante às Ciências Humanas e Sociais, o
pensamento desses autores exerceu enorme influência na organização
da classe trabalhadora em nível mundial e no surgimento de diversos
partidos e movimentos sociais identificados com a luta pelos direitos dos
trabalhadores e por uma sociedade mais justa e igualitária.
A sociedade capitalista, sobre o qual Marx e Engels debruçaram-se
detidamente a estudar, é aquela em que homens e mulheres são juridica-
mente livres, mas não são economicamente livres, devendo se submeter
às condições impostas pelo capital. Sob o modo de produção capitalista
existem duas classes essenciais: de um lado, a burguesia, segmento social
detentor dos meios de produção; de outro, o proletariado, classe vende-
dora da própria força de trabalho. O Estado nada mais seria do que uma
estrutura de representação dos interesses da burguesia.
Assim como a luta de classes nos trouxe ao capitalismo, uma forma
superior de sociedade em relação aos outros modos de produção prece-
dentes, é desse mesmo modo, ou seja, da luta dos oprimidos contra os
opressores, que se chegaria a um novo modo de produção. Eis aí mais

51
Introdução

uma das chaves que permitem entender por que o ponto de vista de Marx
e Engels é considerado uma “Sociologia do conflito”.

Questões para fixação de conteúdos

1. Por que a perspectiva sociológica de Marx e Engels é chamada


sociologia do conflito?

2. O que é modo de produção? Qual é a relação de produção essencial do


modo de produção feudal?

3. Uma das características fundamentais do modo de produção capitalista


é o controle do processo produtivo exercido pelo trabalhador. Quais as
razões para que isso ocorra?

4. Sob o modo de produção capitalista os homens são juridicamente


livres mas não são economicamente livres. Explique o que isso significa.

5. O que é mais-valia? Explique esse conceito a partir do que foi


apresentado no texto.

52
A Sociologia Rural

Até aqui nossa atenção esteve voltada ao surgimento da Sociologia, bem


como à análise do que é referido na literatura como as três grandes ver-
tentes sociológicas, com suas diferentes visões de entender a sociedade
e os fenômenos sociais. A tarefa agora é centrar o olhar sobre o que en-
tendemos como uma Sociologia especial: a “Sociologia Rural”, com suas
especificidades e sua vocação como campo da ciência.
Este capítulo de nosso curso persegue três objetivos: a) compreender
as especificidades da Sociologia Rural enquanto disciplina acadêmica;
b) conhecer as inter-relações entre a Sociologia Rural e o processo de
modernização da agricultura levado a cabo no Brasil e em outros países
latino-americanos; c) compreender o debate sobre o objeto de estudo da
Sociologia Rural e a crise que origina o surgimento de outras sociologias
específicas. Comecemos pelo princípio: quais as particularidades da So-
ciologia Rural? Que razões explicam o seu surgimento?
Em 1946 é publicada no Brasil a obra “Sociologia da Vida Rural”
de Lynn Smith. No prefácio desse livro, escrito por Ramos (1946, p.7), é
dito de forma tácita: a “Sociologia Rural é uma ciência tipicamente ame-
ricana”. Ela surge no interior das grandes escolas de Agronomia dos EUA
que haviam sido criadas entre os anos 1862 e 1890 com forte incentivo
público (“Morril Act”) durante o governo de Abraham Lincoln e nos anos
subsequentes. O impulso dado à Sociologia Rural é resultado do “Purnell
Act”, uma legislação específica voltada a apoiar a formação de um corpo de
pesquisadores dedicados ao estudo da sociedade rural norte-americana.
Os EUA vivenciaram uma transformação profunda no período com-
preendido entre a segunda metade do século XIX e o começo do século
XX. A rápida modernização da agricultura promoveu um êxodo rural que
empurrou grande parte da população rural para as zonas setentrionais
do país que se industrializavam rapidamente após o término de uma san-
A Sociologia Rural

grenta guerra civil (1861-1865). Todavia, grande parte das zonas rurais
estavam marcadas pela pobreza e pela desigualdade social, sobretudo no
sul dos EUA, uma ampla zona dominada por grandes propriedades que
operavam com base sob o regime da escravidão. Para efeito de entendi-
mento podemos dizer que a história da Sociologia Rural pode ser dividida
em três fases. Vejamos cada uma delas.

A primeira fase da Sociologia Rural (1900-1950)


Os primeiros estudos sobre os problemas rurais eram realizados sobretudo
por clérigos cujo foco era levantar informações que ajudassem o Estado a
tentar mitigar os efeitos da modernização da agricultura. Essa fase da So-
ciologia Rural é marcada pela influência exercida pelo estudo de Sorokin,
Zimmerman & Galpin (1986 [1929]), intitulado “Diferenças fundamentais
entre o mundo rural e o urbano”. Tal concepção entrou para a história das
ideias como a teoria dicotômica. Antes de explicar o que isso significa é
preciso dizer, minimamente, o que é dicotomia.
Tal palavra pode ser entendida como a divisão lógica de um con-
ceito em dois outros conceitos que se opõem ou se excluem mutua-
mente. Há inúmeros exemplos de dicotomias (amor-ódio; claro-escuro;
sagrado-profano; certo-errado, etc.). A realidade de qualquer fenômeno
seria a junção de dois mundos que se opõem reciprocamente. A visão de
Sorokin, Zimmerman & Galpin é chamada teoria dicotômica em virtude do
fato de conceber o mundo rural e o mundo urbano como duas realidades
antagônicas, ou seja, que seriam diametralmente opostas, contrárias ou
polarizadas entre si.
No texto em questão a ênfase está em apresentar múltiplos critérios
de diferenciação entre o âmbito rural e o urbano. Entre esses critérios
poder-se-ia mencionar o tipo de ambiente dominante, a ocupação laboral
das pessoas, o tamanho das comunidades, densidade populacional, ho-
mogeneidade das populações ou o nível de mobilidade vertical. O Quadro
1 expõe sinteticamente algumas dessas diferenças.

54
A Sociologia Rural

Quadro 1 – Alguns critérios de diferenciação rural-urbana


segundo a concepção dicotômica

Critérios Mundo Rural Mundo Urbano

Tipo ambiente dominante Natural Artificial


Ocupação laboral dominante Agropecuária Diversificada
Tamanho das comunidades Pequeno Médio-Grande
Densidade populacional Baixa Alta
Grau de homogeneidade populacional Alto Baixo
Mobilidade social Baixa Alta

Fonte: Elaboração dos autores a partir do estudo de


Sorokin, Zimmerman & Galpin (1986 [1929]).

No mundo rural o tipo de ambiente dominante é o natural, clara-


mente marcado pelos ritmos da natureza, enquanto no mundo urbano as
construções, equipamentos e a sofisticação tecnológica tendem a construir
um universo artificializado. A ocupação laboral dominante no meio rural é
o exercício de atividades agropecuárias, enquanto no meio urbano existe
uma plêiade de atividades produtivas ligadas aos mais distintos setores
econômicos (indústria, comércio, serviços, etc.). O caráter agrícola do
mundo rural faz com que o tamanho das comunidades seja comparativa-
mente menor que no âmbito urbano, dinâmica que se repete no caso da
densidade populacional.
As populações rurais tendem a ser mais homogêneas que as popu-
lações urbanas. Em relação a esse aspecto evocamos as próprias palavras
dos autores para ilustrar tal afirmação:

No decorrer deste livro veremos que a cidade é uma comu-


nidade na qual coexistem os tipos humanos os mais opos-
tos e contrastantes: gênios e idiotas; brancos e negros; os
mais sadios e os mais doentios; multimilionários e indigen-
tes; imperadores e escravos; santos e criminosos; ateus e
crentes ardentes; reacionários radicais e revolucionários

55
A Sociologia Rural

radicais. Em todos estes e outros aspectos, a cidade é uma


co-residência dos tipos de personalidades humanas as mais
heterogêneas e contrastantes, enquanto a comunidade do
campo contém tipos mais “nivelados”, homogêneos e uni-
formes (SOROKIN, ZIMMERMAN & GALPIN, 1986 [1929], p.
204; aspas no original).

A mobilidade social é comparativamente muito mais intensa no


meio urbano que no meio rural. Segundo os autores citados, a chance de
passar da pobreza à riqueza e da riqueza para a pobreza é muito mais fácil
na cidade do que no campo. A explicação para esse fato é apresentada nos
seguintes termos:

[...] todas as instituições que servem de canais de circulação


vertical [...] de indivíduos em uma sociedade, as universida-
des, igrejas, centros de poder econômico e financeiro, quar-
téis-generais, centros de poder político, centros das artes,
ciências, literatura, parlamentos, jornais influentes, cortes
de imperadores e outros “elevadores sociais” estão localiza-
dos nas cidades e não no campo (SOROKIN, ZIMMERMAN &
GALPIN, 1986 [1929], p. 215; aspas no original).

Ao acentuar tais diferenças o urbano é assumido como um lugar


dinâmico, moderno e heterogêneo regido pela rapidez e intensidade das
atividades ligadas à produção industrial e ao comércio. No extremo oposto,
o rural é visto como sinônimo do atraso, do conservadorismo, da tradição
e da homogeneidade.
Nos anos subsequentes a teoria dicotômica começa a ser fortemente
questionada. Fruto desse movimento tem-se o surgimento de uma outra
corrente teórica liderada por Robert Redfield (1897-1958), cujos estudos
referem-se a pesquisas que ele realizou junto a comunidades camponesas
do México. Esse antropólogo norte-americano se mostra contrário à teoria
dicotômica e ao antagonismo campo-cidade. No seu entendimento, entre
o assentamento rural mais isolado e as áreas mais urbanizadas, a exemplo
das grandes metrópoles, haveria uma zona de transição cuja gradação é
infinita, ou seja, um continuum rural-urbano. Esse fenômeno é marcante

56
A Sociologia Rural

nas sociedades industrializadas, onde há um processo intenso de urba-


nização dos espaços rurais. Fruto dessa dinâmica, as diferenças sociais
entre os dois mundos tendem a se diluir sensivelmente, de tal sorte que
já não seria mais possível perceber as diferenças.

A segunda fase da Sociologia Rural (1950-1980)


A segunda fase da Sociologia Rural é aquela marcada pelo vínculo dessa
disciplina acadêmica com o projeto de modernização da agricultura. O
enfoque dos estudos e pesquisas está em criar as condições para que as
tecnologias da revolução verde (adubos químicos, máquinas agrícolas e
agrotóxicos) sejam adotadas rápida e massivamente pelos agricultores e
criadores dos países do III Mundo, incluindo, obviamente, o Brasil.
Em outras palavras, o grosso das energias dos sociólogos é fomentar
pesquisas que identificassem mecanismos capazes de acelerar a tomada
de decisão dos produtores no sentido de incorporar o que também se
denomina “insumos modernos”. Tais artigos - no auge dos anos 1960 e
1970 - eram importados, em grande medida, dos EUA e dos países indus-
trializados. Durante essa época tornou-se popular a chamada curva de
adoção de tecnologias, ligada ao trabalho do sociólogo norte-americano
Everett Rogers (1962). De uma forma bastante objetiva pode-se dizer que
Rogers entendia que o comportamento dos produtores frente à adoção
das tecnologias refletiria a existência de quatro grandes grupos: o dos
inovadores, dos adotantes rápidos, dos retardatários e os irracionais. Os
inovadores são aqueles que assimilam a inovação rapidamente; os ado-
tantes rápidos seguem o exemplo dos inovadores; os retardatários são
os últimos a incorporar a novidade e os irracionais são os que recusam a
fazê-lo por medo, desconfiança ou outro motivo.
Martins resume essa fase da Sociologia Rural nos seguintes termos:

[...] a Sociologia Rural desenvolver-se-ia de preferência nas


escolas de agronomia, nas estações experimentais, etc. Daí,
também, a preocupação com a modernização e com a difusão

57
A Sociologia Rural

de inovações como duas grandes e centrais preocupações da


Sociologia Rural. Noutras palavras, a Sociologia Rural mostra-se
como expressão da dominação da cidade sobre o campo (MARTINS,
1986, p. 32; cursivas no original).

No começo deste livro falamos que um valor fundamental que pre-


cisa pautar a conduta dos cientistas, independente da área em que atu-
am, é a neutralidade. A atividade científica volta-se à busca da verdade
relacionada com os mais diversos fenômenos, incluindo os fenômenos
de natureza social. Mas o que dizer de uma disciplina acadêmica que, de
antemão, assume o papel de instrumento a serviço da difusão de novas
tecnologias ou dos insumos modernos?
Poucos autores foram tão eloquentes como Martins para traduzir essa
segunda fase da Sociologia Rural e sobre a questão da ausência de neutra-
lidade desse campo do conhecimento. Segundo suas próprias palavras:

Quando assumiu o mundo rural como objeto, a Sociologia


Rural o fez mais como “adversária” do que como ciência
isenta e neutra. Mais como ciência da modernização do que
como ciência aberta à compreensão dos efeitos destrutivos
e perversos que não raro a modernização acarreta. A moder-
nização é um valor dos sociólogos rurais e não necessaria-
mente das populações rurais, porque, de fato, para estas não
raro ela tem representado desemprego, desenraizamento,
desagregação da família e da comunidade, dor e sofrimento
(MARTINS, 2001, p. 32; aspas no original).

A partir da década de 1980 a Sociologia Rural vive uma crise profun-


da. Parte dessa crise se deve ao reconhecimento de que ela mesma serviu
de instrumento para o projeto de modernização da agricultura capitane-
ado pelo que hoje denominamos agronegócio. Parte-se aqui da premissa
de que o rural profundo é cada vez mais difícil de encontrar em virtude
do processo de urbanização e da diluição das diferenças em relação ao
mundo da cidade. Todavia, não se pode negar que algumas características
se preservam ao longo do tempo. Por isso se fala hoje de ruralidade e até
de “ruralidades”.

58
A Sociologia Rural

A crise da Sociologia Rural corresponde ao que se veio a chamar de


terceira fase dessa disciplina acadêmica, a qual deu origem ao surgimento
de outras disciplinas específicas, a exemplo da Sociologia da Agricultura e
da Sociologia Ambiental. Tais sociologias voltam-se a temas extremamente
relevantes e ligados, direta ou indiretamente, à produção de alimentos,
fibras e matérias-primas. A título de esclarecimento poder-se-ia dizer que
a Sociologia da Agricultura significa o estudo de como operam os proces-
sos relacionados à produção agropecuária enquanto atividade econômica.
Desse modo, os sociólogos centram sua atenção nas atividades produtivas
e não mais nas coletividades que habitam o meio rural.
A Sociologia Ambiental surge em decorrência dos movimentos am-
bientalistas que denunciam a destruição causada pela modernização da
agricultura, com seu uso intensivo de agrotóxicos e adubos químicos e
pelas intoxicações que causam aos agricultores e trabalhadores rurais.
Essa Sociologia está intimamente ligada ao ecologismo, uma corrente iden-
tificada com a luta pela preservação da
natureza e que tem, na figura de Rachel
Carson, uma figura marcante. Vale a
pena comentar alguns fatos relaciona-
dos com essa figura tão emblemática.
Carson era uma bióloga estaduni-
dense que publicou, em 1962, um livro
bombástico intitulado “Primavera Si-
lenciosa” onde ela revela a destruição
causada pelos agrotóxicos. Por conta
disso, sofreu a feroz oposição das gran-
des empresas químicas em seu país.
Mas com suas pesquisas fez com que
houvesse mudanças na política nacio-
nal desse setor nos EUA e o completo
banimento do DDT, um pesticida orga-
noclorado altamente poluente.
Rachel Carson

59
A Sociologia Rural

No Brasil essa obra foi publicada no final dos anos 60 (CARSON,


1969). Essa personagem não era socióloga, mas sua obra serviu de fonte
inspiradora para o surgimento da Sociologia Ambiental. Morreu de cân-
cer aos 56 anos de idade, mas seu legado foi decisivo para o despertar da
consciência pública acerca dos impactos da agricultura produtivista.
Finalizamos este capítulo do livro dizendo que muita gente ainda
não se deu conta de certas mudanças. Referimo-nos ao fato de que desde
o final do século XX a vocação dos espaços rurais já não apenas a produção
de alimentos, fibras e matérias-primas. Outras funções vêm sendo incor-
poradas e assumem uma importância crescente, a exemplo da produção
de energias renováveis (eólica, hídrica, fotovoltaica) e de biocombustíveis.
Outro papel importante é a prestação de serviços ambientais, como
no caso de conservar os mananciais hídricos que abastecem as cidades, e
proteger a biodiversidade. Não se pode esquecer o fato de que os ambientes
naturais propiciam à gente da cidade um espaço de ócio e de entreteni-
mento. O rural não acabou como muitos haviam suposto, mas ele é muito
distinto do que se pensava há 60 anos atrás. Como tudo o que existe na
sociedade, o rural também sofreu mudanças e está permanentemente
sendo ressignificado.

Questões para fixação de conteúdos

1. A sociologia rural surgiu dentro de condições e circunstâncias históricas


bastante específicas. Explique quais são.

2. A primeira fase da sociologia rural é marcada pela chamada teoria


dicotômica. Caracterize essa abordagem a partir do que foi apresentado
no texto.

3. A segunda fase da sociologia rural assume uma orientação bastante


particular na sua atuação. Apresente e discuta essa orientação.

60
A Sociologia Rural

4. Na fase difusionista da sociologia rural a obra de Rogers (1962) exerceu


grande influência. Este sociólogo norte-americano concebe a existência
de quatro tipos de comportamento dos produtores rurais frente à adoção
de novas tecnologias. Explique quais são.

5. A partir dos anos 1980 a sociologia rural vive uma crise profunda. Quais
são as causas dessa crise?

61
A modernização conservadora
da agricultura brasileira

Esta unidade possui dois grandes objetivos dentro da disciplina de Socio-


logia Rural. O primeiro deles é conhecer as características da moderni-
zação da agricultura brasileira, as causas e as circunstâncias históricas
que engendraram esse processo. Nessa análise veremos que nosso país
seguiu um caminho distinto ao de outras nações do planeta e que, por esse
motivo, enfrentamos graves problemas estruturais.
O segundo objetivo é debater as principais consequências da mo-
dernização da agricultura brasileira e as razões pelas quais é considerada
“conservadora”, ao ser comparada com outras experiências internacio-
nais. O Brasil sofreu mudanças profundas em virtude desse fenômeno,
as quais precisam ser estudadas e entendidas pelos futuros profissionais
das Ciências Agrárias.
A modernização da agricultura poderia ser definida, de forma in-
trodutória, como um processo liderado pelo Estado e que visa a ampliar
a produção agropecuária a partir de duas medidas básicas, de um lado, a
ampliação do acesso à terra, e de outro, pelo incentivo à incorporação de
novas tecnologias (mecanização, adubos, irrigação, etc.) que incremen-
tam a produtividade dos fatores de produção (terra, capital e trabalho).
Dentre os instrumentos empregados pelo Estado se destacam a política
de financiamento das atividades agropecuárias e o incentivo à instalação
de jovens agricultores.
Muitos países modernizaram o seu setor agrário, mas nenhum deles
pode ser comparado com o caso dos EUA do ponto de vista da profundi-
dade e extensão das mudanças. Antes de entrar na análise propriamente
dita do caso brasileiro convém descrever, ainda que brevemente, o caso
norte-americano. O território atual dos EUA é imenso (9.833.517 km2)
A modernização conservadora da agricultura brasileira

ocupando o 3º posto na lista dos países com maior superfície territorial


do planeta, atrás apenas da Rússia e do Canadá.
Após a Independência e aprovação da Constituição que oficializou
os Estados Unidos como um país, em 1787, o então presidente George
Washington percebeu a necessidade de fazer essa nação se expandir, in-
centivando a ocupação territorial, processo que ficou conhecido como
“Marcha para o Oeste”. Até esse período, a população desse imenso país
estava concentrada “quase que exclusivamente numa estreita fímbria
acompanhando a planície atlântica, desde o Maine até a Geórgia” (SMITH,
1946, p. 63).
A grande transformação vai ocorrer com Abraham Lincoln (1809-
1865), o presidente responsável pela criação do chamado Homestead Act
(Fig. 34), a Lei da propriedade rural que garantia 160 acres (64 ha) para
cada família que cultivasse a terra durante, ao menos, cinco anos. O Homes-
tead Act foi uma política de democratização do acesso à terra que trouxe
enormes benefícios aos EUA, à exceção dos indígenas que foram massa-
crados e afroamericanos que seguiram submetidos à exclusão social.
Os dados são impressionantes: até meados do século XX cerca de
600 mil fazendeiros haviam recebido 80 milhões de acres ou aproxima-
damente 32 milhões de hectares. Camponeses anglo-saxões, germânicos,
escandinavos e de outras nações da Europa atravessaram o Atlântico para
se converterem em pequenos proprietários de terras. Essa página da his-
tória dos EUA aparece retratada em centenas de filmes e séries televisivas.
Mas, para além dos números, é preciso fazer aqui uma pequena resenha
dos impactos dessa política norte-americana de acesso à terra. Em pri-
meiro lugar, ela ajudou a consolidar a ocupação do território dos Estados
Unidos da América.

4 Trata-se de um certificado de propriedade rural concedido sob Certificado de bem de


família em Nebraska concedido sob o Homestead Act de 1862.

63
A modernização conservadora da agricultura brasileira

Figura 2 – Certificado de bem de família de Daniel Freeman

Fonte: National archives on Education, 1863.

Em segundo lugar, aumentou a produção de riquezas, criando um


imenso setor de pequenos proprietários e um amplo mercado consumi-
dor. Em terceiro lugar, estimulou o desenvolvimento da infraestrutura
nacional, consolidando as bases para o processo de industrialização. Em
quarto lugar, assegurou a soberania alimentar, incrementou a produção
e a exportação agrícola. E foi desse modo que os EUA se converteram,
rapidamente, numa grande potência econômica em nível mundial.
E o Brasil? Como bem lembrou Romeiro (1994, p. 118), nosso país
possui dimensões continentais e detém sozinho a maior superfície agrí-
cola do planeta (quatro vezes superior à da China). Mas é também um país

64
A modernização conservadora da agricultura brasileira

que foi construído a partir do regime das capitanias hereditárias (doação


de territórios a indivíduos leais à coroa portuguesa), da distribuição de
sesmarias e da criação de condições para o surgimento de imensos la-
tifúndios operados a partir da exploração cruel da força de trabalho de
africanos escravizados.
Diferentemente dos EUA, o que se viu no Brasil, durante a segunda
metade do século XIX, foi a instituição da Lei de Terras, que só assegura-
va a propriedade rural através da compra, algo impossível para a grande
massa dos pobres do campo:

Nos Estados Unidos, onde as oligarquias escravocratas foram


derrotadas militarmente, as elites formadas de imigrantes e
descendentes tinham uma clara consciência do país como
uma nação em formação. Esta consciência se expressa clara-
mente com o “Homestead Act” de 1862, que visava a garantir
legalmente a abertura do oeste para as levas de imigrantes
que começavam a afluir em massa da Europa. É extrema-
mente revelador notar que pouco antes, no Brasil, as elites
escravocratas procuravam, ao contrário, fechar a fronteira
agrícola, através da “Lei de Terras” de 1850. Essa lei esta-
belecia que as terras devolutas não mais seriam passíveis
de serem apropriadas livremente, mas somente contra o
pagamento de uma importância, suficientemente elevada,
para impedir o acesso a elas pelos imigrantes europeus que
começavam a vir para substituir o trabalho escravo (ROMEI-
RO, 1994, p. 108-109; aspas no original).

Usamos o caso dos EUA para falar de modernização, mostrando


como é fundamental, para a afirmação do próprio capitalismo, a demo-
cratização do acesso à terra, juntamente com o acesso ao crédito agrícola,
à assistência técnica e à tecnologia. O Brasil viveu vários períodos em
que a reforma agrária esteve na agenda dos grandes debates nacionais.
Um desses momentos se inicia nos anos 1950, logo após o término da II
guerra mundial. O Brasil tinha Getúlio Vargas (1882-1954) como presi-
dente da República, o qual realizou grandes investimentos na chamada
industrialização de base, criando várias empresas importantes, a exemplo

65
A modernização conservadora da agricultura brasileira

da Companhia Siderúrgica Nacional, um setor crucial para as pretensões


do país, bem como a Petrobrás.
A industrialização era vista como a prioridade nacional. Após o sui-
cídio de Vargas o Brasil tem eleições diretas, sendo escolhido o mineiro
Juscelino Kubitschek (JK) para o cargo de mandatário máximo do Brasil.
A estratégia de JK era atrair o capital estrangeiro para investir na indus-
trialização nacional. Ele propõe um ambicioso Plano de Metas que ficou
conhecido como 50 anos em 5. O país vivia ares de liberdade política. No
campo a questão agrária cobrava importância diante das grandes desi-
gualdades que se arrastavam desde o tempo do Brasil colônia e do auge
do regime escravocrata.
Não obstante, desde o período de Vargas tem-se o surgimento de um
movimento social que marcou a história agrária e social do país. Referi-
mo-nos às Ligas Camponesas, uma forma de associativismo liderada pelo
deputado federal Francisco Julião que eclode inicialmente no interior do
estado de Pernambuco e se espalha pelo nordeste do Brasil e em outros
estados da federação, integrando, em seu seio, milhares de associados.
As Ligas lutavam contra as condições extremas de exploração dos traba-
lhadores rurais5.
O chamado regime do “cambão” era um dos maiores absurdos exis-
tentes no meio rural nordestino. Baseava-se em obrigar as famílias rurais
que habitavam o interior de grandes fazendas a trabalharem gratuitamente
para os senhores de engenho durante vários dias da semana. Elas faziam

5 A primeira Liga Camponesa surgiu em 1955 no Engenho Galileia, situado no municí-


pio de Vitória de Santo Antão (PE). Chamava-se “Sociedade Agrícola de Plantadores e
Pecuaristas de Pernambuco”, aglutinando, em torno de si, 140 famílias. Tinha fins es-
sencialmente assistenciais (criação de escolas, assistência médica, etc.), com destaque
para a criação de um fundo funerário que assegurasse a compra de um caixão para
enterrar dignamente os associados que falecessem. Esse aspecto ficou eternizado no
poema “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), célebre escri-
tor pernambucano, que foi depois musicado pelo cantor e compositor Chico Buarque
de Holanda. Nesse poema João Cabral de Melo Neto mostra que o trabalhador rural
nordestino só se torna dono de um pedaço de terra quando encontra a morte e é se-
pultado numa cova rasa.

66
A modernização conservadora da agricultura brasileira

isso para dispor de um pedaço de chão para morar, plantar pequenas roças
e criar alguns poucos animais para a própria subsistência.
Os obstáculos no acesso à terra obrigam as pessoas a se submete-
rem a formas cruéis de exploração. Eis porque rapidamente a reforma
agrária – “na lei ou na marra” – converteu-se na bandeira que unificava
camponeses e trabalhadores rurais em torno das sonhadas mudanças.
No estado do Rio Grande do Sul surge o MASTER – Movimento dos Agri-
cultores Sem-Terra durante o governo de Leonel Brizola (1922-2004), que
não somente era simpático à causa, mas inclusive realizou experiências
pioneiras de reforma agrária durante a sua gestão (1959-1963), como é
o caso do assentamento do Banhado do Colégio no interior do município
de Camaquã.
No Brasil dos anos 1950 havia um claro consenso em torno à indus-
trialização como caminho para o desenvolvimento nacional. Mas à essa
época o país ainda era eminentemente agrícola, setor de onde provinha
a maior parte da riqueza nacional, bem como uma nação essencialmente
rural, dado que a maioria das pessoas ainda vivia no campo. Admitia-se, à
época, que o setor agropecuário deveria encarregar-se de cumprir cinco
papéis fundamentais, quais sejam:

a) Financiar o processo de industrialização. Mas como fazer isso? Atra-


vés da tributação (taxas e impostos), por meio da qual o Estado transfe-
re recursos da agropecuária para o setor urbano-industrial emergente.

b) Gerar divisas (US$) via incremento das exportações.

c) Reduzir os gastos com importações de alimentos e matérias-primas,


buscando produzir internamente nossas necessidades nessa esfera.

d) A agricultura deveria converter-se num mercado consumidor dos


produtos industriais.

e) Fornecer alimentos e matérias-primas a custos constantes e de-


crescentes. Uma das principais razões é fazer com que as famílias
urbanas gastem o mínimo possível com a sua alimentação, sobran-

67
A modernização conservadora da agricultura brasileira

do dinheiro para que possam adquirir os bens duráveis fabricados


pelas nascentes indústrias.

Se existia alguma convergência em relação à importância desses


papéis, o mesmo não pode ser dito em relação ao modo como alcançá-los.
O Brasil, nessa época, se divide em dois grandes grupos, de um lado a
“corrente estruturalista”, e de outro a “corrente conservadora”. A corrente
estruturalista considerava que a agricultura – e o país como um todo –
somente poderia se desenvolver a partir da implantação das chamadas
reformas de base. E o que eram essas reformas de base? Eram mudanças
que o país demandava para se desenvolver, incluindo uma reforma bancá-
ria, educacional, urbana e, especialmente, a tão sonhada reforma agrária.
A corrente conservadora era integrada por setores políticos que não
se mostravam dispostos a realizar tais reformas, admitindo que o Brasil
poderia se desenvolver sem a necessidade de alterações. O debate entre
ambas as vertentes se aprofunda no final dos anos 1950 e início dos anos
1960. Em 1961 é eleito Jânio Quadros (1917-1992) presidente do Brasil.
Sua campanha se baseava na ideia de que ele iria “varrer a corrupção
nacional”. Nessa época havia uma eleição paralela para vice-presidente,
a qual teve como vencedor o gaúcho João Goulart (Jango), figura emble-
mática e herdeiro político do trabalhismo de Getúlio Vargas.
Todavia, depois de apenas sete meses de ser empossado, na tarde do
dia 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros, inexplicavelmente, renuncia ao
cargo de presidente. Era um personagem controvertido que durante esse
curto período de tempo dedicou-se a coisas tão absurdas e irrelevantes
como proibir as brigas de galo, a participação de menores de 18 anos em
programas de rádio e televisão e o uso de traje de banho (biquíni) nos con-
cursos de beleza feminina. Além disso, em plena guerra fria entre EUA e
União Soviética, resolve condecorar o líder da revolução cubana Ernesto Che
Guevara, desatando a ira dos setores conservadores do Brasil e dos EUA.
Eis que, justo no momento da renúncia de Jânio Quadros, o
vice-presidente João Goulart se encontrava na China em missão diplo-
mática. A Constituição brasileira da época determinava, no caso de re-

68
A modernização conservadora da agricultura brasileira

núncia ou impedimento do presidente eleito, que o vice-presidente eleito


assumisse tais funções. Não obstante, as forças conservadoras do Brasil
criam obstáculos à posse de Jango, contrariando a própria constituição.
Por conta desse fato o governador Brizola lidera um movimento de
resistência e defesa da constituição e da posse de Jango. Trata-se da “cam-
panha da legalidade”, uma iniciativa acolhida por grande parte do povo
gaúcho. Machado Lopes, comandante do III Exército, sediado em Porto
Alegre, adere ao movimento, comunicando a Brizola que iria apoiar a posse
de Jango. Tal decisão contrariava as ordens vindas de Brasília.
Por conta desse ato de resistência e defesa da democracia, Jango é
empossado no dia 2 de setembro de 1961. Todavia, como bem frisou Rubiat-
ti (2008, p. vii) “os ministros militares tentam impor um veto a essa posse.
Para solucionar essa crise, o Congresso aprova uma Emenda Constitucional
que mudava o sistema de governo presidencialista para parlamentarista”.
Tratava-se de uma manobra cujo objetivo era retirar os poderes de João
Goulart. Não obstante, tal regime foi revogado através de plebiscito reali-
zado em 06/01/1963, voltando-se, assim, ao presidencialismo.
Apesar de ser oriundo do setor de grandes proprietários rurais do
Rio Grande do Sul, Jango tinha grandes vínculos com a classe trabalhadora
e com as aludidas reformas de base, com destaque para a realização da
reforma agrária. Sob seu governo são encaminhadas diversas medidas
como a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, que buscava estender
ao campo os direitos dos assalariados urbanos, bem como o Estatuto da
Terra, que almejava criar as condições para assegurar o acesso à proprie-
dade rural, seguindo o exemplo dos países desenvolvidos.
Crescia a mobilização no campo e na cidade. Eis que no dia 30 de
março de 1964 Jango discursa, na Central do Brasil (RJ), para um público
estimado em 200 mil pessoas, onde ele reafirma o seu compromisso com
a reforma agrária. Em sua fala estabelece como prioritárias as terras pú-
blicas que margeiam as rodovias federais para o assentamento das famí-
lias rurais. Todavia, o discurso da Central do Brasil foi a gota d’água para
que eclodisse um golpe militar levado a cabo por setores do exército. Tal
movimento representava a ponta de lança de uma aliança que integrava

69
A modernização conservadora da agricultura brasileira

três grupos de interesse. O primeiro, representado pelos norte-americanos


que temiam o avanço das esquerdas na América Latina após a vergonhosa
derrota que sofreram em Cuba.
O segundo grupo era formado pelos grandes latifundiários e setores
conservadores da agricultura nacional. O terceiro grupo era constituído
por setores da indústria que já se haviam apropriado de imensas áreas
de terra, sobretudo em amplas zonas do Brasil Central. A ditadura militar
durou 21 anos (1964-1985) e foi ao longo desse período que se desenvolveu
e se aprofundou a modernização conservadora da agricultura brasileira.
Tal período coincide com a revolução verde em nível mundial, a qual
deve ser entendida como um incremento impressionante na produtividade
agropecuária em virtude do uso de sementes melhoradas, de novas raças
animais e cultivares, da incorporação massiva de máquinas agrícolas ao
processo produtivo, de adubos químicos e toda classe de agrotóxicos (in-
seticidas, herbicidas, fungicidas, carrapaticidas, etc.).
O balanço que se pode fazer é que, decididamente, o Brasil não se-
guiu o caminho das nações desenvolvidas. Os interesses das forças con-
servadores preponderaram. A escolha dos governantes foi alterar a base
técnica de produção através da introdução dos insumos modernos, ou seja,
as tecnologias da revolução verde, mantendo intacta a injusta distribuição
da terra. Mas como ocorreu a modernização? Que ações foram tomadas
para promover essa mudança? Esse é o objetivo central da próxima secção.

Questões para fixação de conteúdos

1. Foi durante o governo de Abraham Lincoln que foi implantado o


“Homestead Act”, uma lei que transformou, para sempre, a estrutura
agrária norte-americana. Em que consistia essa lei? Quais as
consequências que ela acarretou para a economia desse país?

2. Diferentemente dos EUA, o Brasil, um país de dimensões continentais


e detentor da maior superfície agrária do mundo, seguiu um outro
caminho. Sendo assim, por que a modernização da agricultura brasileira
é considerada conservadora?

70
A modernização conservadora da agricultura brasileira

3. No auge dos anos 1950 e começo dos anos 1960 abriu-se um grande
debate no Brasil que dividiu em lados opostos a vertente estruturalista e
a vertente conservadora. Qual a principal diferença entre ambas? Qual a
corrente que acabou preponderando?

4. O processo de modernização conservadora da agricultura brasileira foi


uma transformação induzida pelo Estado autoritário. Como se deu esse
processo? Quais os principais instrumentos utilizados pelos sucessivos
governos militares?

5. O binômio seleção-exclusão foi a marca insofismável da modernização


conservadora da agricultura brasileira. Explique o que isso significa.

Estado e modernização conservadora


A modernização conservadora da agricultura brasileira6 não teria sido
posta em prática sem um forte protagonismo do Estado. Após o golpe mi-
litar de 1964 tem-se um período de ajustes, de reorganização do sistema
financeiro nacional e recuperação da capacidade econômica do Estado.
Em 1965 é criado o Sistema Nacional de Crédito Rural, que vai exercer um
papel central no financiamento da agropecuária brasileira.
O período que vai de 1968 a 1973 foi por muitos estudiosos conside-
rado como o milagre brasileiro em virtude das altas taxas de crescimento
da economia nacional (superiores a 10% ao ano) e o setor agropecuário
tem muito a ver com esse desempenho. O país alcançava grandes e suces-
sivos superávits comerciais, ou seja, uma forte entrada de divisas estran-
geiras em relação ao que se gastava com importações de outros países.
As circunstâncias eram bastante favoráveis nos mercados internacionais
para a exportação dos produtos agrícolas (sobretudo soja, café, açúcar).
Some-se a isso a ampliação da fronteira agrícola através da incorporação

6 Esse assunto foi sobejamente tratado na literatura brasileira. Destacamos a obra de


Brum (1987) e de Graziano da Silva (1999).

71
A modernização conservadora da agricultura brasileira

de imensas áreas dos estados do Brasil Central (Goiás, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul) ao processo produtivo.
A modernização conservadora é um processo fortemente induzido
pelo Estado autoritário. Ele aparece evidenciado na montagem de uma po-
lítica de crédito rural subsidiada pelo Governo Federal. Em que consistia
essa política? Em disponibilizar financiamento agropecuário tanto para
operações de custeio da produção como para investimentos com taxas muito
baixas de juros, que sequer cobriam o custo da inflação. Desse modo, quando
o dinheiro era devolvido ao banco, e consequentemente às arcas públicas,
valia menos do que quando havia sido tomado. Esse aspecto trará graves
consequências para a economia nacional, como posteriormente veremos.
Mas esses financiamentos subsidiados eram concedidos a todos
os tipos de produtos agropecuários? A todos os tipos de produtores (pe-
quenos, médios e grandes)? A todas as regiões do país? As três perguntas
têm uma única resposta: não. Em primeiro lugar, porque o crédito era
claramente direcionado aos produtos de exportação.
Em segundo lugar, porque o crédito era voltado para os médios e
grandes proprietários, dado que os bancos tinham interesse nas grandes
operações. Não havia qualquer preocupação com democratizar o acesso aos
financiamentos e de permitir com que os pequenos produtores pudessem
realizar empréstimos e ter algum tipo de apoio por parte do Estado. É pre-
ciso lembrar que tais produtores representam um setor que é fundamental
para a produção de alimentos e para assegurar a soberania nacional.
Com relação à terceira pergunta é preciso ter em mente que o crédito
rural subsidiado privilegiou o que se considerava como regiões dinâmicas
do país, ou seja, o eixo centro-sul de nossa geografia em detrimento dos
estados do norte e do nordeste. Desse modo, entre as décadas de 1960 e
1970, o sul e o sudeste receberam ao redor de 3/4 de todo o volume de di-
nheiro destinado à agricultura nacional (SACCO DOS ANJOS, 2003, p. 183).
Os dados do Gráfico 1 mostram a relação entre o volume do crédito
rural e o produto interno bruto (PIB) da agropecuária em termos percen-
tuais. Como é possível perceber, no auge dos anos 1970 o crédito rural

72
A modernização conservadora da agricultura brasileira

chegou a representar aproximadamente 65% do PIB do setor agropecuário,


o que evidencia, de forma indiscutível, a enorme participação do Estado
como indutor do processo, bem como do recurso público nessa conta.
Mas a participação do Estado nas transformações do setor agropecu-
ário não se limitou à farta concessão de crédito subsidiado para os setores
de interesse. É preciso mencionar a criação, no começo dos anos 1970, de
duas grandes agências públicas ligadas ao setor agropecuário. De um lado,
a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e, de outro, a
Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater).
A Embrapa era encarregada de coordenar a pesquisa agropecuária
em nível nacional, bem como a importação, adaptação e geração de novas
tecnologias. Já a Embrater tinha sobre seus ombros a responsabilidade
de estabelecer as diretrizes do serviço de extensão rural do Brasil e de
coordenar as agências estaduais responsáveis pela execução desse tipo
de política em todo o território nacional. Juntas essas empresas forma-
vam o sistema brasileiro de pesquisa agropecuária, assistência técnica e
extensão rural.

Gráfico 1 – Relação crédito rural e PIB da agropecuária – Brasil


(1969-2011) em termos percentuais

0,7

0,6
Crédito / PiB agro

0,5

0,4

0,3

0,2

0,1

0
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016

Fonte: Belik, 2015.

73
A modernização conservadora da agricultura brasileira

O foco da atuação desse sistema era a difusão das tecnologias agro-


pecuárias. Sendo bastante concisos podemos dizer que as tecnologias
adaptadas pelas unidades da Embrapa eram repassadas aos serviços de
extensão rural (Emater) que finalmente transferiam-nas, através de técni-
cas de difusão, aos produtores agropecuários. Os agricultores e criadores
inovadores eram privilegiados nesse sistema, justamente por estarem
dispostos a incorporar as tecnologias da revolução verde e embarcar no
projeto de modernização sem questionar o custo desse processo ou even-
tuais desdobramentos negativos dessa assimilação.
A modernização da agricultura converteu o Brasil num grande pro-
dutor de commodities agrícolas (mercadorias cujo preço é regido pelos
mercados globais). A produção agropecuária sofreu uma grande expan-
são, sobretudo durante as décadas de 1970 e 1980. Mas esse processo foi
francamente desequilibrado. Nesse sentido, a marca da modernização foi
o binômio “seleção-exclusão”. De um lado, a seleção dos agricultores mais
aptos, das culturas consideradas mais dinâmicas, dos cultivos de exporta-
ção (complexo açúcar-álcool, café, soja e laranja) e das regiões mais prós-
peras (eixo sul-sudeste). De outro, a exclusão dos pequenos agricultores,
das culturas mais tradicionais e das regiões norte e nordeste do país. A
próxima secção deste livro é dedicada à análise dos principais impactos
da modernização conservadora da agricultura brasileira. Antes disso, há
algumas questões a serem respondidas para fixação do conteúdo deste
capítulo do livro.

Principais impactos da modernização conservadora


Resumindo tudo o que foi dito: a modernização foi um processo drástico de
transformação do Brasil, não somente do setor agropecuário e da realidade
rural, mas da sociedade brasileira como um todo. Tais mudanças afeta-
ram os mais diversos âmbitos (social, demográfico, político, econômico,
cultural e ambiental) onde atuam os profissionais das Ciências Agrárias.
Eis porque é tão importante debater esse assunto dentro da disciplina de
Sociologia Rural.

74
A modernização conservadora da agricultura brasileira

A tarefa agora é apresentar e comentar os diversos impactos da mo-


dernização conservadora. Não há uma hierarquia ou ordem de importân-
cia de um impacto em relação a outro. Todos são importantes, além deles
estarem relacionados entre si. A modernização trouxe muitas consequên-
cias. As que apresentaremos aqui são as que consideramos como as mais
importantes. Vejamos cada uma delas separadamente.

a) A modernização causou o aumento da sazonalidade do


emprego agrícola
Como ocorre isso? É preciso dizer que a incorporação de máquinas agríco-
las ao processo produtivo foi intensa durante as décadas de 1970 e 1980
no Brasil, especialmente nos estados do eixo centro-sul, seguindo o padrão
referido anteriormente. Esse é o caso de tratores de médio e grande porte,
grades niveladoras, colhedoras, etc. Nos anos 1970 os estados sulistas
dispunham de um trator para cada 171 hectares cultivados; 15 anos mais
tarde (1985) o mesmo dado correspondia a 52. Ou seja, cresceu a área
cultivada, mas a mecanização superou tal incremento. Nesses termos,

Para que se faça uma ideia do que isto supõe, basta dizer que
em 1984, ou seja, praticamente na mesma data de referên-
cia, a moderna e paradigmática agricultura norte-americana
contava com um trator para cada 41 hectares cultivados [...].
Já em 1995 havia 35,4 ha cultivados por cada trator no Rio
Grande do Sul, 39 no Paraná e 25 em Santa Catarina (SACCO
DOS ANJOS, 2003, p. 191).

O que ocorreu nos estados sulistas não é distinto ao que sucedeu em


outras unidades federativas da parte rica do Brasil. Nesse sentido, vale
frisar que a mecanização age em duas grandes frentes: por uma parte,
reduz a necessidade de mão de obra; de outra parte, concentra o trabalho
braçal em certas fases específicas do ciclo produtivo e que não podem ser
substituídas pela máquina.
É por conta dessa dinâmica que surgem trabalhadores do campo
empregados na safra apenas para executar algumas tarefas específicas.

75
A modernização conservadora da agricultura brasileira

São os chamados safristas, a exemplo de cortadores de cana (boias-frias),


ou dos colhedores de frutas. Na cultura do arroz existiam diversos ofícios
como os entaipadores (encarregados de construir e dar manutenção às
taipas ou marachas), assim como ensacadores. Tais atividades foram to-
talmente substituídas por modernos equipamentos, colhedoras automo-
trizes e outros equipamentos. O pouco trabalho que resta concentra-se
em apenas uma época específica do ano.

b) A modernização favoreceu a extinção das formas tradicionais


de trabalho
Esse impacto está diretamente ligado ao anterior. Em um passado não
muito distante as grandes fazendas e as estâncias do sul do Brasil con-
tavam com uma legião de trabalhadores e trabalhadoras rurais durante
todo o ano agrícola. Espalhados pelos quatro quadrantes do país esse con-
tingente de indivíduos era referido sob as mais diversas formas, segundo
as particularidades de cada região ou estado da federação. Entre as mais
conhecidas formas, temos: o morador, o foreiro, o agregado, o parceiro,
o posteiro, o sitiante, o meeiro, o peão, apenas para citar algumas delas.
Há, evidentemente, variações nas relações que tais pessoas con-
traíam com o dono da terra, mas um traço é absolutamente recorrente:
o de que tais indivíduos não tinham a propriedade da terra onde even-
tualmente criavam algum animal e cultivavam roças de subsistência. E
para que não fossem expulsos, deviam aceitar as imposições do dono do
estabelecimento. Com a modernização do campo e a entrada das máqui-
nas, a manutenção desses trabalhadores já não se mostra interessante,
sobretudo quando ocorre a extensão da legislação trabalhista ao campo.
Até então a remuneração que muitos trabalhadores recebiam era viver
numa pequena área, onde a família poderia sobreviver durante o ano e
trabalhar de graça para o dono da terra.
Mas, depois disso, em muitas regiões do Brasil, essa relação se con-
verte em contrato de trabalho (assalariamento) cujos custos, invariavel-
mente, muitos empresários não se mostram interessados em assumir.

76
A modernização conservadora da agricultura brasileira

Nesse caso, a solução adotada tem sido sempre no sentido de restringir


ao máximo a contratação de trabalhadores. A substituição do trabalho hu-
mano pela máquina tem sido intensa desde a década de 1960. Some-se a
isso o fato de o Brasil seguir sendo um país onde o trabalho em condições
análogas à escravidão, infelizmente, é uma realidade.
Em 1995 o Brasil tornou-se um dos primeiros países do mundo a
reconhecer oficialmente a presença desse problema em seu território
perante a Organização Internacional do Trabalho. Assim, entre os anos
1995 e 2020, nada menos que 55 mil trabalhadores foram libertados dessa
condição tanto no campo como na cidade7. Não obstante, a esmagadora
maioria dos casos ocorre no meio rural, com destaque para a pecuária
(31%), cana de açúcar (22%), lavouras diversas (18%), produção de carvão
vegetal (7%), desmatamento (7%), reflorestamento (3%), extrativismo ve-
getal (2%). E aí fica a grande indagação: o que seria dessas pessoas se no
passado houvessem sido criadas as condições para terem acesso à própria
terra? Certamente não teriam que se submeter a essa degradante situação.

c) A modernização induziu a um processo de especialização regional


Um mundo globalizado e marcado pela competitividade obriga as regiões
a um processo que visa a explorar as chamadas vantagens comparati-
vas. Foi assim que surgiram, nos EUA, as grandes zonas especializadas,
a exemplo dos conhecidos cinturões do milho, do algodão e dos laticínios
(respectivamente “corn belt”, “cotton belt” e “dairy-belt”), apenas para citar
alguns exemplos. No Brasil a situação não é distinta. Os cinturões da soja,
da cana-de-açúcar e do citros são idênticos.
Com base nessa dinâmica, uma dada região torna-se totalmente
tributária do desempenho de um reduzidíssimo número de cultivos ou
criações que, em grande medida, dependem do comportamento de preços
internacionais e de uma cadeia internacional de suprimento. Qualquer
perturbação de ordem interna ou externa pode comprometer a viabilidade

7 Essas informações estão reunidas no Fascículo Trabalho escravo contemporâneo: + de


20 anos de combate (desde 1995) (PROGRAMA ESCRAVO, NEM PENSAR! & SINAT, 2017).

77
A modernização conservadora da agricultura brasileira

dos negócios, a geração de renda e a preservação de postos de trabalho.


Uma região especializada pode ser muito eficiente, mas isso também pode
torná-la muito vulnerável aos humores dos mercados e às crises sanitárias.
Quanto mais diversificada for a economia regional, maior a sua re-
siliência. Há um velho ditado popular que parece válido para ilustrar essa
ideia: não devemos colocar todos os ovos numa única cesta. A lógica da
modernização conservadora, pautada no incentivo à maximização da pro-
dutividade e nas vantagens comparativas, é um dos fatores responsáveis
pelo incentivo à especialização das regiões produtivas.

d) A modernização intensificou o processo de concentração fundiária


O Brasil é um dos países que apresenta a maior concentração de terras em
todo o planeta. Dados do último censo agropecuário (IBGE, 2017) indicam
que aproximadamente 1% dos proprietários controlam cerca de 50% da
superfície agrária do país. No extremo oposto, os estabelecimentos com
área inferior a 10 hectares, correspondentes à metade do total, absorvem,
conjuntamente, apenas 2% da área total.
O título de uma conhecida obra publicada nos anos 1960 – Quatro
séculos de latifúndio (Guimarães, 1968) – nos diz muito sobre a trajetória
de um país que, como afirmamos anteriormente, optou por trafegar na
contramão da história das nações desenvolvidas do mundo. Em pleno
século XXI, a estrutura agrária do Brasil é o retrato de um processo que se
impõe ao longo de nossa história, mas que se amplia a partir da moder-
nização conservadora. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que a forma
como a agricultura se modernizou no Brasil acabou por aumentar ainda
mais a concentração das terras. Mas como isso ocorreu? Que elementos
há para afirmar isso?
Dissemos antes que o crédito rural subsidiado foi uma poderosa
ferramenta a serviço da modernização. Os recursos financeiros eram li-
berados, em grande medida, para agricultores dedicados a produzir os
cultivos protegidos pelo Estado, sobretudo os que se voltam à exportação.

78
A modernização conservadora da agricultura brasileira

Além disso, os recursos são liberados proporcionalmente à quantidade de


terras em posse do produtor.
Um bom exemplo disso é o chamado “valor básico de custeio” (VBC),
uma quantia de dinheiro previamente estipulada para cada hectare planta-
do de soja, por exemplo. Nesses termos, se eu tivesse 100 hectares, recebia
o valor equivalente a 100 VBCs. Ora, se alguém planta dez mil hectares,
receberá 100 vezes mais! Diante disso surge uma espiral especulativa que
incita os produtores a comprarem mais terra para obterem mais crédito.
Também em virtude dessa lógica, durante os anos 1970 houve vários epi-
sódios dentro do que ficou conhecido como fraude do “adubo papel”. Elas
envolviam desvio de dinheiro do crédito agrícola para outras finalidades
(compra de imóveis, automóveis, etc.). Tais fatos foram amplamente no-
ticiados, à época, pela imprensa (Fig. 3).

Figura 3 – Golpe do Adubo, reportagem de 11 ago. 1977, Jornal Zero Hora

Fonte: Jornal Zero Hora, 1977, p. 30.

79
A modernização conservadora da agricultura brasileira

e) A modernização aprofundou o êxodo rural


A cara do Brasil mudou radicalmente a partir dos anos 1960 e 1970, so-
bretudo do ponto de vista da situação demográfica. Um país que era emi-
nentemente rural tornou-se rápida, e violentamente, um país urbano e
a modernização conservadora tem tudo a ver com esse fenômeno, por
diversas razões. Em primeiro lugar, porque ela negou aos trabalhadores
e trabalhadoras rurais o acesso à terra. Decididamente a ênfase não foi
no sentido de gerar novos postos de trabalho e de absorver a população
em seus locais de origem, senão justamente o contrário.
Em segundo lugar, porque optou por absorver tecnologias poupa-
doras de trabalho e absorvedoras de capital, as quais expulsam a gente
do campo. Desde tempos do Brasil colônia este país possuía um enorme
contingente de pessoas sujeitas a seculares mecanismos de exclusão. Em
terceiro lugar, porque apoiou a extinção de formas tradicionais de trabalho
(parceria, meação, etc.), tal como comentado anteriormente.
O resultado desse processo foi empurrar legiões de brasileiros e
brasileiras para a periferia das cidades, que rapidamente se converteram
em aglomerações miseráveis, onde milhões de pessoas passam a residir
(Fig. 4-5). Muitos desses lugares surgiram sem qualquer planejamento, ca-
rentes de serviços sociais básicos (água potável, saneamento básico, etc.),
sendo extremamente insalubres e com elevados índices de criminalidade.
Os dados da Tab. 1 dão uma ideia da transformação drástica que ocor-
reu no país. Em 1940 havia pouco mais de 41 milhões de habitantes no Bra-
sil, sendo que apenas 31,2% deles viviam nas cidades. É durante a década
de 1960 para 1970 que se dá a grande virada. Os últimos dados disponíveis
(2010) mostram que apenas 15,6% dos brasileiros vivem em áreas rurais.
Todavia, são 29,8 milhões de indivíduos que ainda moram no campo, um
contingente que supera a população de diversos países do planeta e que
exige uma atenção do Estado no enfrentamento de suas demandas.

80
A modernização conservadora da agricultura brasileira

Figura 4 – Fotografia Êxodo rural, sertão do Ceará, 1983


Figura 5 – Fotografia Favela da Rocinha Close-Up, Rio de Janeiro, Brasil, Chensiyuan 2010

Fonte [figura 4]: Studio Sebastião Salgado. © Sebastião Salgado.


Fonte [figura 5]: Wikimedia Commons.

Tabela 1 – Evolução da população rural, urbana e total do Brasil e participação percentual

Ano População % População % População %


Rural Urbana Total

1940 28.356.133 68,8 12.880.182 31,2 41.236.315 100,0

1950 33.161.506 63,8 18.782.891 36,2 51.944.397 100,0

1960 38.767.423 55,3 31.303.034 44,7 70.070.457 100,0

1970 41.054.053 44,1 52.084.984 55,9 93.139.037 100,0

1980 38.566.297 32,4 80.436.409 67,6 119.002.706 100,0

1991 35.834.485 24,4 110.990.990 75,6 146.825.475 100,0

2000 31.845.211 18,8 137.953.959 81,2 169.799.170 100,0

2010 29.852.986 15,6 160.879.708 84,4 190.732.694 100,0

Fonte: Censos Demográficos do IBGE (1940-2010)

81
A modernização conservadora da agricultura brasileira

As grandes migrações do norte e nordeste para o sudeste do país


guardam estreitos vínculos com a crise de oportunidades vivenciadas
pela população rural, bem como pela expulsão gerada pela moderniza-
ção da agricultura. O êxodo rural massivo se dá sem a abertura de postos
de trabalho que pudessem absorver a população migrante. O resultado
imediato é o inchaço das cidades e a degradação social, como reiteramos
anteriormente.
A modernização se traduz hoje na incorporação de equipamentos
cada vez mais sofisticados na produção agropecuária, a exemplo de tra-
tores e colheitadeiras pilotados à distância com o uso de joystick e sem
operários dentro das cabines. Os veículos aéreos não tripulados, popular-
mente conhecidos como drones, são uma realidade em grandes culturas
(cana-de-açúcar, milho; soja; café; algodão; silvicultura), seguindo o padrão
da agricultura de precisão. Todavia, por conta desse e de outros fatores,
como a falta de uma política consistente de acesso à terra, as pessoas
seguem deixando o campo e vão para as médias e grandes cidades na
expectativa de fugir da pobreza e/ou para não morrer de fome.

f) A modernização intensifica a internacionalização da agricultura


A modernização conservadora se desenvolveu sempre a serviço das com-
modities agrícolas (soja, café, algodão, citros, etc.) e de alguns produtos con-
siderados estratégicos, a exemplo da cana-de-açúcar, que recebeu um forte
apoio em 1975 com a criação do PROALCOOL, um programa cujo objetivo
era estimular a produção do álcool, visando ao atendimento das necessida-
des do mercado interno e externo e da política de combustíveis automotivos.
O que precisa ficar claro é que a modernização privilegiou um grupo
reduzido de cultivos, sempre orientada ao ambiente externo e a uma eco-
nomia internacionalizada. A questão é que muitas das vezes o mercado
interno e a soberania alimentar foram sacrificados em nome dos interes-
ses dos grandes grupos econômicos que contam com acesso ao crédito e
isenções fiscais, como é precisamente o caso da soja. Que razões existem
para que um país que se orgulha da pujança do agronegócio exportador

82
A modernização conservadora da agricultura brasileira

tenha atualmente uma população de aproximadamente dez milhões de


pessoas que diariamente passam fome? E o que é pior, que essa fome
atinja 40,1% das pessoas do campo, justamente o lugar que deveria prover
alimento a essa gente sofrida?
A modernização conservadora, nos moldes como foi concebida, re-
forçou a internacionalização de nossa agricultura. Esse movimento se deu
em detrimento das preocupações com o abastecimento alimentar interno.
Mas a internacionalização traz também outros inconvenientes na medida
em que o preço dos produtos passa a ser governado pelos mercados inter-
nacionais. As bolsas de Chicago, Londres, Nova York comandam totalmente
o processo. O resultado disso é que a renda dos produtores passa a estar
subordinada aos humores dos mercados e a um sistema que se mostra
muito vulnerável, tal como ocorreu na última crise financeira (2008) que
abalou a economia mundial.

g) A modernização conservadora consolidou o complexo


agroindustrial brasileiro
Em 2017 uma grande rede de televisão brasileira lançou uma poderosa
campanha publicitária cujo refrão era: “Agro é tech, agro é pop – Agro: a
indústria riqueza do Brasil”. A ideia central era mostrar a face tecnológi-
ca de um setor – o agronegócio – que assume grande importância para
a economia nacional, particularmente em virtude da geração de divisas
internacionais (US$). Um dos publicitários responsáveis por essa iniciativa
afirmou, à época, que o grande objetivo da campanha era mostrar que a ri-
queza gerada pelo agronegócio movimenta os demais setores da economia.
Mas o que é agronegócio? O termo nada mais é do que a tradução
literal da palavra agribusiness – um neologismo que surgiu nos EUA a par-
tir do livro de Davis & Goldberg publicado em 1957, cujo título era A con-
cept of agribusiness (um conceito de agribusiness). A ideia de “negócios da
agricultura” rompe com antigos esquemas mentais que viam a economia
dividida em três grandes setores: primário (agropecuária), secundário
(indústria) e terciário (comércio e serviços). Desse modo, o mundo para

83
A modernização conservadora da agricultura brasileira

dentro e o mundo para fora da porteira da fazenda se mostram intima-


mente interligados.
A industrialização da agricultura é um processo de revolução tec-
nológica que tornou a produção agropecuária totalmente dependente dos
insumos industriais (adubos, máquinas, sementes, medicamentos, etc.).
Além disso, o destino da produção final é também a indústria de proces-
samento. Nesse sentido:

Atividades como armazenamento, processamento e distribui-


ção foram transferidas para outras empresas, que também
passaram a produzir produtos industriais utilizados neste
modelo agrícola, como tratores, caminhões, combustível,
fertilizantes, ração, pesticidas, entre outros (MENDONÇA,
2015, p. 376).

Davis & Goldberg justificam a criação dessa nova palavra por enten-
der que o vocabulário da época não acompanhava o ritmo do progresso
da agropecuária norte-americana. Além de toda a estrutura edificada
para pôr em funcionamento toda a máquina produtiva, é preciso agregar
a engrenagem financeira, a infraestrutura de transportes (terrestre, flu-
vial, marítimo, aéreo), a indústria pesada, a assistência técnica, enfim, um
conjunto de fatores que operam dentro de uma estrutura extremamente
complexa e articulada.
Na época em que o livro de Davis & Goldberg foi publicado tais au-
tores estimavam que o agronegócio representaria algo entre 35 e 50% da
economia norte-americana. Segundo Mendonça:

O percentual de 35% a 40% coincide com as estimativas dos


ideólogos do agronegócio brasileiro, que baseiam sua es-
tatística nas chamadas cadeias produtivas ou no modelo de
novo mundo rural, incluindo o que é produzido dentro e fora
da porteira (MENDONÇA, 2015, p. 377; itálico no original).

84
A modernização conservadora da agricultura brasileira

Embora esses dados possam ser criticados por possivelmente supe-


restimarem a participação do agronegócio na formação da riqueza nacio-
nal, o certo é que a constatação desse peso econômico confere poder aos
atores econômicos que operam em seu interior. Dentro do parlamento tal
setor conta com uma poderosa máquina de lobistas que buscam proteger
os interesses dos grandes produtores e das empresas do agronegócio. Isso
é crucial justamente porque saem das arcas públicas os recursos que ge-
nerosamente irrigam essa economia. A Figura 6 ilustra a representação
esquemática do agribusiness ou agronegócio brasileiro.

Figura 6 – Representação esquemática do Complexo Agroindustrial (CAI) ou agribusiness

Fonte: Elaborado pelos autores, a partir de dados do CEPEA e do CNA, 2021.

Já o Gráfico 2 mostra a participação do agronegócio brasileiro no


Produto Interno Brasileiro (PIB) no período compreendido entre 1996 e
2019. Há uma grande oscilação ao longo desse intervalo de tempo com
uma forte tendência de declínio, saindo de 35% em 1996 para aproxima-

85
A modernização conservadora da agricultura brasileira

damente 20% em 2019. Segundo dados do CEPEA e CNA (2019), o agro-


negócio brasileiro equivale atualmente a 322 bilhões de reais.

Gráfico 2 – Participação do Agronegócio no PIB brasileiro

Fonte: CEPEA & CNA, 2019.

h) Masculinização, envelhecimento e a crise de sucessão


A falta de uma política consistente de apoio à agricultura familiar e de
democratização de acesso à terra leva a uma crise de perspectivas da
população rural, sobretudo nos estados do sul e do nordeste do Brasil,
onde esse tipo de estabelecimento rural é numericamente mais expres-
sivo. Segundo indicam alguns estudos, a modernização conservadora da
agricultura brasileira é vista como

[...] promotora de um dos mais drásticos e violentos pro-


cessos de expulsão da população rural, fenômeno que, tal
como dissemos anteriormente, provocou a saída de quase
30 milhões de pessoas do campo no curto espaço de tempo
compreendido entre os anos sessenta e os oitenta (SACCO
DOS ANJOS, 2003, p. 212).

86
A modernização conservadora da agricultura brasileira

Nas décadas subsequentes, a erosão demográfica do meio rural não


se interrompe, mas adquire novos contornos e um quadro deveras pre-
ocupante. Há dois fenômenos muito importantes que merecem nossa
atenção. O primeiro deles é a masculinização do campo, entendida aqui
como um claro predomínio do número de homens em relação ao número
de mulheres residentes no meio rural.
Muitas causas poderiam ser mencionadas para explicar essa des-
proporção que pode comprometer a continuidade de muitos estabeleci-
mentos rurais. Um deles é a falta de opções de renda e de trabalho para
as mulheres do campo e a própria precariedade das localidades interiora-
nas de nosso país. Os dados da Tab. 2 atestam essa tendência. A razão de
sexos (quociente entre a população masculina e feminina) mostra como
claramente cresce esse desequilíbrio ao longo do tempo.
Os dados do Gráfico 3 indicam a participação da população jovem
(0 a 24 anos) no conjunto da população urbana e rural dos três estados
do sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná). Em 1970
esse estrato populacional equivalia a 59,2% da população urbana e 66,2%
da população rural. Uma população mais jovem tem a ver com o fato de
que, nessa época, até meados dos anos 1980, as famílias eram compara-
tivamente mais numerosas que as famílias de hoje. No âmbito rural isso
ainda era mais forte.

Tabela 2 – População brasileira rural, proporção e razão de sexos entre 1940 e 2010

População rural Homens (%) Mulheres (%) Razão de sexos

1940 28.356.133 51,0 49,0 1,04


1950 33.161.506 51,0 49,0 1,04
1960 38.767.423 51,4 48,6 1,06
1970 41.054.053 51,4 48,6 1,06
1980 38.566.297 51,6 48,4 1,06
1991 35.834.485 52,0 48,0 1,08
2000 31.845.211 52,2 47,6 1,10
2010 29.830.007 52,6 47,4 1,11

Fonte: Censos demográficos do IBGE (1940-2010).

87
A modernização conservadora da agricultura brasileira

Desse modo, proles numerosas compensavam a saída massiva e


prematura de jovens do campo. No censo demográfico do ano 2000 perce-
be-se que há uma rigorosa equivalência do percentual de jovens nos dois
âmbitos (urbano e rural). Não obstante, no censo demográfico de 2010, o
último disponível, a situação se inverte pela primeira vez e o percentual
de jovens no meio rural (38,3%) mostra-se inferior ao do meio urbano
(39,1%). Esse dado mostra que as últimas décadas são marcadas por um
êxodo seletivo que remete para as cidades os mais jovens, ou seja, o grosso
da população ativa rural.

Gráfico 3 – Participação da população jovem na população total


nos estados do sul do Brasil (RS, SC, PR)

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados dos censos


demográficos do IBGE (1970-2010).

Esse dado é deveras preocupante. Muitas propriedades, sobretudo


as de caráter familiar, enfrentam hoje problemas de sucessão. As mudan-
ças demográficas do meio rural têm sido abordadas em diversos estudos
(FROEHLICH et al., 2011; VELLEDA CALDAS & POLLNOW, 2014) realizados

88
A modernização conservadora da agricultura brasileira

recentemente. Torna-se cada vez mais urgente criar políticas públicas de


enfrentamento à erosão demográfica e à crise de sucessão na agricultura
familiar. E tudo isso tem a ver com a modernização conservadora adotada
no Brasil.

i) A modernização conservadora e seus impactos ambientais


A questão relativa à sustentabilidade adquiriu uma grande dimensão nos
debates mundiais, seja na atuação das agências de desenvolvimento, seja
na agenda dos países desenvolvidos. No âmbito da União Europeia as
críticas da sociedade civil contra o padrão de agricultura intensiva que
contamina os recursos naturais são cada vez mais contundentes. O excesso
de compostos químicos levados ao mar pelas águas dos rios, sobretudo
dos fertilizantes nitrogenados usados na agricultura, é apontado como
formador de zonas mortas nos oceanos devido à reprodução excessiva
de algas.
Esse modelo de produção agropecuária - altamente consumidor de
adubos químicos e de agrotóxicos - tem sido responsável pela destruição
progressiva da biologia dos solos, pela contaminação dos aquíferos e pela
eliminação de diversas formas de vida, incluindo animais silvestres, inse-
tos polinizadores e plantas nativas cujo papel é central para a preservação
dos ecossistemas. A pressão sobre os recursos hídricos é também vista
como consequência do padrão produtivista.
No Rio Grande do Sul, a mecanização intensiva, o monocultivo e as
práticas agronômicas incorretas vêm causando um processo de arenização
dos solos que incide sobre uma extensa zona que abrange 11 municípios
da Campanha gaúcha, como indicam Vieira & Verdum (2015). No que tange
à questão dos agrotóxicos o cenário é ainda mais grave. O Brasil é hoje o
maior mercado consumidor de pesticidas do planeta.
Estudo realizado por Valadares, Alves & Galiza (2020) analisa o es-
paço de tempo compreendido entre os dois últimos censos agropecuários.
Segundo suas próprias palavras, “o volume de vendas de agrotóxicos cres-
ceu mais de 2,5 vezes entre 2006 e 2017, saltando de 204,1 mil toneladas

89
A modernização conservadora da agricultura brasileira

para 541,8 mil toneladas de ingrediente ativo” (VALADARES, ALVES &


GALIZA, 2020, p. 7). Esse crescimento aparece ilustrado no Gráfico 4.

Gráfico 4 – Consumo de agrotóxico no Brasil, de 2000 a


2020 (em toneladas de ingrediente ativo)

Fonte: IBAMA, 20228.

A mesma fonte refere que o consumo nacional de agrotóxicos passou


de 3,2 kg/hectare, em 2005, para 6,7 kg/hectare em 2014. Seria absolu-
tamente impossível analisar um tema tão polêmico no espaço que aqui
dispomos. Mas uma coisa é certa: o mundo caminha para uma mudança
profunda na forma como nos relacionamos com a natureza e no modo
como se desenvolve a produção agropecuária. Existem outros sistemas

8 Os dados informados pelas empresas nos anos de 2007 e 2008 não foram sistemati-
zados pelo Ibama.
Em virtude de retificações que ocorrem nos relatórios semestrais de produção, impor-
tação, exportação e vendas, decorrentes de auditagem dos dados por parte do Iba-
ma, os valores das vendas finais, referentes de 2009 a 2013,foram recalculados em 2016.
Além da correção dos dados as empresas foram autuadas devido à apresentação de
informação incorreta (Art. 85, III, Decreto 4.074/2002)

90
A modernização conservadora da agricultura brasileira

de produção totalmente viáveis e comprometidos com a conservação dos


recursos naturais, com a preservação da vida de quem vive e trabalha no
campo e de quem consome os produtos ali gerados. E se existe um lugar
onde esse assunto deve ser debatido é justamente dentro dos muros de
nossas universidades.

Questões para fixação de conteúdos

1. A modernização conservadora da agricultura brasileira teve diversas


consequências. Uma delas foi no sentido de intensificar o processo de
concentração fundiária. Explique como e por que isso acontece.

2. O êxodo rural é uma das mais violentas consequências da modernização


conservadora. A partir do que leu no texto, e da sua própria visão sobre o
assunto, quais são as causas desse fenômeno? Que implicações acarreta
para a realidade social do país?

3. A internacionalização da agricultura está diretamente ligada com a


modernização conservadora da agricultura. Explique o que é, bem como
as consequências que gera para o agronegócio brasileiro.

4. A modernização consolidou o chamado complexo agroindustrial


brasileiro. Mais recentemente se consagrou o termo agribusiness ou
agronegócio. Explique o que isso significa.

5. O censo demográfico de 2010 mostrou um processo de envelhecimento


do campo impressionante. Isso ficou claro no texto ao analisar a realidade
rural da região sul do Brasil (RS, SC, PR), comparativamente com a
realidade urbana. Explique qual é a novidade preocupante trazida pelo
último censo, bem como o impacto que isso acarreta para o futuro das
propriedades rurais.

91
A estrutura agrária brasileira

Em outras passagens deste livro comentamos sobre as causas de nosso


subdesenvolvimento e da relação que tal fato possui com a concentração
da posse da terra e a ausência de uma política consistente de democra-
tização do acesso a esse fator de produção. O presente capítulo do livro
possui dois grandes objetivos. O primeiro deles é apresentar e discutir
alguns conceitos básicos da legislação agrária brasileira. Tais conceitos são
centrais para entender o modo como foram construídas algumas políticas
públicas voltadas ao campo. O segundo objetivo é mostrar um panorama
da estrutura fundiária do Brasil a partir dos últimos dados censitários
disponíveis.

Estrutura fundiária e estrutura agrária


Normalmente os dois termos acima são apresentados como se fossem
sinônimos, o que não é certo. A estrutura fundiária corresponde ao modo
como se distribui a posse e propriedade da terra no espaço geográfico de
um país ou região. É um retrato da realidade construído a partir do aporte
da geografia. Já a estrutura agrária é um conceito muito mais amplo. Pode-
mos dizer que a estrutura agrária corresponde à estrutura fundiária de um
país associada às instituições jurídicas, econômicas e sociais que regulam
a atividade agrária. Vejamos um exemplo para ilustrar tal diferença.
Imagine um país que apresenta uma elevada concentração da posse
da terra. Os dados do censo agropecuário brasileiro refletem esse quadro.
Nesse caso estamos nos referindo apenas à estrutura fundiária. Todavia, a
questão ganha uma outra dimensão quando buscamos respostas a umas
poucas perguntas tais como: a legislação desse país dispõe de mecanis-
A estrutura agrária brasileira

mos para punir a manutenção da terra improdutiva e/ou a especulação


fundiária? Há políticas consistentes de democratização do acesso à terra?
No caso brasileiro, como dissemos anteriormente, são recorrentes
os casos de trabalhadores brasileiros submetidos a condições análogas à
escravidão na produção agropecuária. Essa questão se insere, também,
dentro do âmbito da estrutura agrária.

Reforma Agrária ou Revolução Agrária?


A estrutura fundiária de um país pode ser equilibrada ou desequilibra-
da. Um dos parâmetros para avaliar o grau de desequilíbrio é o chamado
índice de Gini, um número que varia entre zero (0) e um (1). Zero seria a
situação ideal de distribuição, enquanto o Um seria a concentração abso-
luta. Em nível mundial a situação é bastante distinta nos mais diversos
países com relação a esse índice.
No âmbito europeu, segundo dados recentes (IGAC, 2012), tem-se
países como a Noruega (0,18), Finlândia (0,27) ou Suécia (0,32) que apre-
sentam uma situação bastante favorável no que tange à distribuição da
terra. No extremo oposto há países como Paraguai (0,93), Brasil (0,87) ou
Peru (0,86) que mostram uma realidade diametralmente oposta, onde a
concentração do solo é absurda.
E se a estrutura fundiária é desequilibrada, que caminhos há para a
mudança? A literatura e a história nos apontam dois grandes caminhos.
Um deles é o caminho da reforma e o outro é o da revolução agrária. A Lei
nº 4.504 de 30/11/64, mais conhecida como Estatuto da Terra, já comenta-
da anteriormente, define a reforma agrária como “o conjunto de medidas
que visem a promover uma melhor distribuição da terra, mediante mo-
dificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios
de justiça social e ao aumento de produtividade”.
Uma estrutura fundiária equilibrada é aquela que promove o incre-
mento da produção econômica global, a preservação dos recursos naturais
e o desenvolvimento social, econômico e cultural do produtor e de sua fa-

93
A estrutura agrária brasileira

mília. Parece claro que a discussão vai muito além da simples distribuição
de terras. A lei menciona isso claramente.
O caminho da revolução é totalmente distinto. Poderíamos dizer
que se trata de um meio “não institucional” de assegurar o acesso à terra.
Nesse caso tem-se uma ruptura em relação às instituições e à legislação
vigente. Para exemplificar isso poderíamos comparar a reforma da casa
e a construção de uma nova casa. Uma coisa é fazer algumas modifica-
ções, outra coisa é levantar um novo prédio, do alicerce ao telhado. Como
exemplos de revolução agrária podemos citar a trajetória de alguns países
como México, Cuba, União Soviética ou China.
Exemplos de reforma agrária incluem os EUA, Japão, Coreia do Sul,
Bolívia, Chile, etc. Nesse caso, trata-se de um meio institucional, também
chamado de “via democrática”, onde apenas se reformam instituições e a
legislação vigente. As instituições que atuam nessa área continuamente
acompanham a situação no campo e podem promover alterações que
corrijam eventuais distorções no uso da terra.
A reforma agrária é também definida, no Brasil, como um proces-
so amplo, imediato e drástico de redistribuição da posse e uso da terra,
promovido pelo Estado e com a ativa participação da sociedade. Ou seja,
é só o Estado (Governo Federal) que pode realizar a reforma agrária. Uma
das questões chaves da legislação é a chamada “função social” da terra ou
da propriedade fundiária. No Estatuto da Terra (Art.2º) consta a seguinte
definição: a terra cumpre a sua função social quando simultaneamente:

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores


que nela labutam; b) mantém níveis satisfatórios de produ-
tividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições que regulam as justas relações de
trabalho entre os que a possuem e os que nela trabalham
(BRASIL, 1964).

Os quatro aspectos devem ser simultaneamente atendidos. O Esta-


do deve zelar para que a terra cumpra com a sua função social. E o que
ocorre quando isso não acontece? O não cumprimento confere ao Estado

94
A estrutura agrária brasileira

o direito de realizar a desapropriação por interesse social. Mas há ainda


outros aspectos que são cruciais para compreender o sentido da reforma
agrária, a importância e a atualidade do assunto.
Antes de entrar nesse assunto torna-se necessário apresentar e re-
fletir sobre outros termos que estão contidos na nossa legislação agrária,
como é o caso da definição de a) módulo rural; b) propriedade rural e c)
classificação de imóveis rurais. Um futuro profissional de Ciências Agrá-
rias deve saber a diferença existente entre o que é um latifúndio e um
minifúndio e outras classes de imóveis rurais.
Comecemos pelo princípio: o que é um imóvel rural? O Estatuto
da Terra estabelece que se trata de um “prédio rústico de área contínua
qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa
agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de
valorização, quer através de iniciativa privada” (BRASIL, 1964). Desse
modo, um imóvel rural pode estar situado inclusive dentro do perímetro
urbano de um município. O que importa não é onde se localiza, mas a que
ele se destina.
Outro conceito básico é o de Módulo Rural. Segundo o disposto no
Art. 4º do Estatuto da Terra, trata-se do equivalente à propriedade familiar,
a qual é definida nos seguintes termos:

[...] imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo


agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de traba-
lho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e
econômico, com área máxima fixada para cada região e
tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de
terceiros. (BRASIL, 1964 – aspas no original; grifos nossos).

A ideia do módulo rural se baseia no esforço de pensar numa deter-


minada quantidade de terra, numa dada região, que seja capaz de garantir
a sobrevivência de uma família rural. Mas as regiões no Brasil diferem
entre si de acordo com as condições de infraestrutura (estradas, condi-
ções climáticas, acesso à eletrificação, etc.). Por esse motivo o tamanho do

95
A estrutura agrária brasileira

módulo varia muito dentro de um país de dimensões continentais como


é o caso do Brasil.
A partir do conceito de módulo rural a nossa legislação agrária es-
tabelece cinco categorias ou classes de imóveis rurais, quais sejam: a)
Propriedade Familiar; b) Minifúndio; c) Latifúndio por Extensão; d) Lati-
fúndio por Exploração; e) Empresa Rural.
Vejamos cada um deles e em que eles se diferenciam.

a) Propriedade Familiar: imóvel rural que, direta e pessoalmente


explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força
de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e
econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de ex-
ploração, e eventualmente trabalhado com a ajuda de terceiros.

Como é possível ver, o conceito de propriedade familiar corresponde


exatamente ao de módulo rural. O que isso quer dizer? Que esse tipo de
imóvel rural deveria ser a base de nossa estrutura fundiária. O objetivo
central dessa lei era formar um grande setor de pequenos e médios pro-
prietários com capacidade de produzir, gerar emprego e renda e assegurar
nossa soberania alimentar.

b) Minifúndio: imóvel rural de área e possibilidades inferiores às da


propriedade familiar ou do módulo rural.

O minifúndio sequer alcança o mínimo que se espera para assegurar


a subsistência de uma família rural. Aqui vai uma outra ponderação impor-
tante: o objetivo da reforma agrária não é só somente enfrentar o problema
de propriedades imensas, mas também das propriedades extremamente
pequenas, como é o caso dos minifúndios. Nesse caso a saída seria criar
políticas específicas para ampliar tais propriedades tornando-as viáveis.

c) Latifúndio por Extensão: o imóvel rural cuja área é superior a 600


vezes o módulo rural, independente do grau de utilização da terra.

96
A estrutura agrária brasileira

Estamos agora diante de imóveis que são excessivamente grandes.


Sua área supera a 600 vezes o módulo regional. Imagine uma região onde
o módulo rural corresponde a 10 hectares. Todo imóvel que tiver mais que
6.000 hectares seria considerado um latifúndio por extensão. Nesse caso,
não importa quanto da área é efetivamente explorada. Ele é um latifúndio
pelas dimensões que possui.

d) Latifúndio por Exploração: imóvel rural com área maior ou igual


ao módulo rural e menor que 600 vezes, mas é mantido inexplorado
em relação às suas possibilidades físicas econômicas e sociais.

Esse imóvel é aquele que é maior do que a propriedade familiar, mas


não é tão grande quando o Latifúndio por Extensão. Todavia, não é explo-
rado como deveria. Nesse caso a legislação se refere a um tipo de imóvel
que atende a fins especulativos e não para a produção agropecuária, como
deveria ser a sua finalidade.

e) Empresa Rural: imóvel rural com área maior que o módulo rural e
menor que 600 vezes o mesmo, sendo explorado econômica e racio-
nalmente, com um mínimo de 50% de sua área agricultável utilizada.

Essa quinta classe de imóvel rural se refere a imóveis que podem


ser médios ou grandes, mas inferiores a 600 vezes o tamanho do módulo
rural. Todavia, são efetivamente utilizados, sendo que ao menos a metade
da área agricultável é explorada.
E que relevância tem essa classificação? Muitas coisas poderiam ser
ditas para responder a essa pergunta. Ela serve para tributar a terra que
não produz ou é mantida apenas para fins especulativos. Pode igualmente
servir para premiar a propriedade que é racionalmente explorada. A lei
visa a promover a justiça social e proteger a propriedade produtiva. Outra
coisa que vale a pena ser sublinhada é que há políticas públicas que estão
diretamente atreladas ao tamanho das propriedades. Exemplos disso são
as vacinas gratuitas para o gado, o troca-troca de sementes, a assistência

97
A estrutura agrária brasileira

técnica gratuita, etc., que, em geral, buscam beneficiar a agricultura fa-


miliar e a pecuária familiar.
A legislação agrária brasileira contempla ainda um outro conceito,
o de módulo fiscal, uma definição importante para a execução da reforma
agrária e para a promoção da política agrícola nacional.

Módulo Fiscal: Trata-se de uma unidade de área (expressa em hecta-


res), fixada para cada município e que leva em conta as particulari-
dades locais, o tipo de exploração predominante em cada município
(hortifrutigranjeiros, pecuária, etc.). Resumidamente pode-se dizer
que o módulo fiscal corresponde à área mínima necessária a uma pro-
priedade rural para que sua exploração seja economicamente viável. O
tamanho do módulo fiscal é definido, para cada município brasileiro,
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Módulo Rural e Módulo Fiscal: Ao abordar a questão da classificação


dos imóveis rurais falamos de módulo rural e aí fica a dúvida: qual a
diferença entre módulo rural e módulo fiscal? A diferença básica é
que o módulo rural refere-se à região onde a propriedade está inse-
rida, enquanto que o módulo fiscal é definido para cada município.

No Brasil o tamanho do módulo fiscal varia enormemente. Há muni-


cípios paulistas, como São Lourenço da Serra ou Taboão da Serra, onde o
módulo fiscal é de apenas cinco hectares. Todavia, em localidades, como
Corumbá (MS), o mesmo dado alcança 110 hectares. Esse dado é reflexo
das grandes diferenças regionais do ponto de vista das atividades agro-
pecuárias e das próprias infraestruturas disponíveis (ver Mapa 1).

98
A estrutura agrária brasileira

Figura 7 – Módulos Fiscais dos municípios brasileiros segundo classes de tamanho.

Fonte: EMBRAPA, Módulos Fiscais, 2012.

99
A estrutura agrária brasileira

Alguns dados sobre a estrutura fundiária do Brasil


Os dados disponíveis mais recentes sobre a estrutura fundiária brasileira
se referem ao último Censo Agropecuário (IBGE, 2017). Todavia, tal edição
sofreu algumas mudanças metodológicas que impedem a comparabilidade
dos dados com os censos agropecuários anteriores.
Dissemos antes que a propriedade da terra é muito concentrada em
nosso país. Bastam alguns poucos dados para evidenciar essa realidade.
Como mostra a Tab. 3, os dados do último censo agropecuário (IBGE, 2017)
contabilizaram a existência de mais de 5 milhões de estabelecimentos
rurais, sendo que 76,8% deles são de natureza familiar.
Basicamente é um tipo de exploração em que as atividades são reali-
zadas pelo produtor e sua família, sem a contratação de trabalhadores as-
salariados. Mas observe que esse tipo de estabelecimento fica com apenas
23,0% de toda a superfície agrícola do país. O outro lado da moeda são os
estabelecimentos não familiares ou patronais, que, apesar de representa-
rem 23,2% do total de estabelecimentos rurais do país, abocanham 77%
de toda área disponível. A área média dos dois tipos de estabelecimentos
é uma outra forma de constatar a alta concentração de terra em nosso
país. Nos familiares a média é 20,7 hectares, nos estabelecimentos não
familiares, a média é 230,0 hectares, ou seja, 11 vezes maior.

Tabela 3 – Número de estabelecimentos familiares e não familiares e área ocupada

Tipo de Número de Área ocupada Tamanho médio


estabelecimento estabelecimentos (hectares) (em hectares)

Agricultura Familiar 3.897.408 80.891.084 20,7

Não Familiar 1.175.916 270.398.732 230,0

Total 5.073.324 351.289.816 69,2

Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2017.

Os estabelecimentos familiares são muito importantes para assegu-


rar a soberania alimentar do país, tanto no que tange à produção vegetal

100
A estrutura agrária brasileira

(frutas, legumes, cereais, etc.) como na produção animal (leite, aves, suínos,
bovinos, ovinos, etc.). Nos serviremos dos dados do Censo Agropecuário
anterior (IBGE, 2006) para demonstrar esse aspecto em virtude das alu-
didas dificuldades de utilizar os dados do último censo.
Conforme mostra a Tab. 4, a agricultura familiar se destaca em vá-
rios tipos de produção, sobretudo as que se voltam a suprir o mercado
alimentar interno, como é o caso da mandioca, legumes e hortaliças, mas
também na produção animal (suínos, ovinos, leite). Sempre lembrando
que tais explorações ficam com uma parcela muito reduzida da superfície
agrícola do país, bem como com uma ínfima parte do volume de crédito
disponibilizado pelo Estado para o financiamento das atividades de cus-
teio, investimento e comercialização.
Outro papel importante desempenhado pela agricultura familiar
tem a ver com a ocupação da mão de obra no meio rural. Os dados da
Tab. 5 mostram que duas de cada três pessoas que vivem das atividades
agropecuárias estão ligadas ao setor familiar de nossa agricultura. Num
país onde há enorme desigualdade social, apoiar a agricultura familiar
é fundamental para simultaneamente reduzir o êxodo rural, melhorar
as condições de vida das pessoas que vivem no campo, gerar emprego e
renda, bem como assegurar a soberania alimentar do país.

Tabela 4 – Participação da agricultura familiar na geração


de alguns produtos agropecuários

Produto % Produto %
Arroz 10,9 Couve-flor 85,1
Feijão 41,8 Morango 89,0
Mandioca 69,6 Pimentão 82,7
Milho 12,4 Repolho 84,5
Alface 82,1 Leite (litros) 64,2
Berinjela 82,5 Suínos (cabeças) 80,6
Beterraba 84,3 Ovinos (cabeças) 57,0
Cenoura 81,7 Soja 9,3

Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2017.

101
A estrutura agrária brasileira

Tabela 5 – Número de pessoas ocupadas em estabelecimentos


de agricultura familiar e não familiar

Tipo de estabelecimento Nº pessoas ocupadas %


Familiar 10.115.559 67,0
Não-Familiar 4.989.566 33,0
Total 15.105.125 100,0

Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2017.

O que é Agricultura Familiar?


Ao longo deste livro fizemos várias alusões ao termo “agricultura familiar”.
É um conceito largamente utilizado em todo o mundo para se referir a
uma forma social de produção em que as atividades agropecuárias são
desenvolvidas pela própria família. Em outras palavras, trata-se de um
negócio produtivo onde inexiste a figura do patrão e do empregado, pois
tudo o que envolve a produção é desenvolvido pelos membros da própria
família. Em seu interior, cada uma das pessoas busca dar sua parcela de
sacrifício para que esse grupo, ligado por laços de consanguinidade e pa-
rentesco, consiga um padrão de vida aceitável.
É também um estilo de vida e uma forma de produzir que se volta
fundamentalmente a assegurar a sobrevivência das pessoas que habitam
o estabelecimento agropecuário. Difere, portanto, dos estabelecimentos
que buscam alcançar uma taxa de lucro e usam a mão de obra contratada
de terceiros.
A importância é tão grande que a FAO - principal agência da Organi-
zação das Nações Unidas, elegeu 2014 como o ano da agricultura familiar.
Segundo estudo realizado por Graeub et al. (2016), esse tipo de exploração
agrícola corresponde a 475 milhões de estabelecimentos (98% do total)
existentes no mundo, os quais são responsáveis por 53% dos alimentos
que abastecem os habitantes do planeta.
No caso brasileiro, a definição de agricultura familiar está prevista
na Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Segundo essa lei, considera-se
agricultor familiar o produtor que pratica atividades no meio rural, aten-
dendo, simultaneamente, quatro requisitos:

102
A estrutura agrária brasileira

I – não detenha uma área de terra maior do que quatro (04) módulos
fiscais;

II – utilize predominantemente mão de obra da própria família nas


atividades econômicas do seu estabelecimento;

III – tenha percentual mínimo da renda familiar originada de ativi-


dades econômicas do seu estabelecimento;

IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

Como é possível perceber, as definições estão totalmente interliga-


das. Para entender o que é um latifúndio, é preciso saber o que é módulo
rural, Para compreender o que define um estabelecimento familiar, é ne-
cessário saber o que é módulo fiscal. E tudo isso está relacionado com o
acesso aos financiamentos, com a tributação da terra e mais um conjunto
de desdobramentos que seria impossível explicar no espaço que aqui
dispomos. Antes de passarmos para um outro tópico deste livro há uma
pergunta que, no nosso entendimento, merece resposta: questão agrícola
e questão agrária são a mesma coisa?

Questão Agrária é o mesmo que Questão Agrícola?


No âmbito das Ciências Agrárias reina certa confusão entre os dois termos.
Nesse sentido, há muitas pessoas que acreditam que questão agrária é a
mesma coisa que questão agrícola. A resposta é taxativamente não! Pode-
mos esclarecer essa dúvida de uma forma bastante simples.
Com o perdão da redundância, questão agrária se resolve com polí-
tica agrária e questão agrícola se resolve com política agrícola. Mas uma
coisa não se resolve com a outra. Política agrária tem a ver com a ação
do Estado no sentido de assegurar o acesso ao solo para que as pessoas
possam produzir. Há vários caminhos para isso. Vejamos quatro destes
caminhos. A) O primeiro deles é a reforma agrária, envolvendo desapro-
priação de terra improdutiva e o assentamento de trabalhadores rurais

103
A estrutura agrária brasileira

com o apoio do Estado. B) O segundo deles é a criação de linhas de crédito


para a compra de terra. Isso ocorreu com o programa Banco da Terra,
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e, mais recentemente,
durante o período dos presidentes Lula e Dilma, com o Programa Na-
cional de Crédito Fundiário que assegurava o financiamento da compra
da terra a longo prazo por famílias e trabalhadores rurais. C) O terceiro
caminho é a tributação progressiva de propriedades improdutivas que
são controladas por quem só quer lucrar com a especulação. O quarto
caminho é proteger as áreas de conservação e coibir a grilagem de terras
públicas. Esses e outros caminhos podem ser usados simultaneamente e
sua aplicação depende apenas de vontade política e compromisso com o
desenvolvimento social e econômico do país.
Já as políticas agrícolas voltam-se, por exemplo, ao financiamento
do crédito de custeio, investimento e comercialização da produção. No
primeiro caso consta o apoio à compra de equipamentos (tratores, máqui-
nas, equipamentos, etc.) e melhorias na propriedade (calagem das terras,
novas edificações, construção de cercas, etc.).
O custeio assegura a compra de insumos (sementes, rações, etc.) para
produzir, enquanto o crédito para comercialização visa a apoiar produtores
e produtoras a venderem sua própria produção, evitando prejuízos pelas
oscilações dos mercados. Nesse plano estão os instrumentos relaciona-
dos com a formação de estoques reguladores por parte do Estado. O que
precisa ficar claro é que as duas grandes políticas (agrárias e agrícolas)
se complementam reciprocamente.
Em outras palavras podemos dizer que repartir terras sem dar as
condições para produzir é um equívoco tão grande quanto pensar que dar
crédito agrícola para comprar insumos resolveria os graves problemas
que vemos em muitas regiões do Brasil.

104
A estrutura agrária brasileira

Questões para fixação de conteúdos

1. Qual a diferença entre estrutura fundiária e estrutura agrária?

2. Qual a diferença entre reforma agrária e revolução agrária? Indique


exemplos ilustrativos destes dois conceitos.

3. O que é função social da terra ou função social da propriedade rural?


Qual a importância dessa definição?

4. O que é módulo rural? O que é Latifúndio por extensão?

5. Como nossa legislação define o que é agricultura familiar?

6. Qual a diferença entre Questão Agrária e Questão Agrícola?

105
O modo de produção capitalista
e a agricultura: a questão
agrária clássica

Chegamos à última unidade do nosso curso de Sociologia Rural. Sobre esse


assunto milhões de páginas têm sido escritas em muitos locais do mundo
e em circunstâncias históricas muito distintas. Todavia, as contribuições
mais expressivas sobre o assunto surgiram entre a segunda metade do
século XIX e o começo do século XX.
Durante esse intervalo de tempo vieram à luz obras magistrais de-
dicadas ao que se convencionou chamar “Questão Agrária Clássica”, bem
como ao estudo sobre as transformações que incidem sobre a agricultura
em virtude da penetração do capitalismo no campo. Nos nossos cursos de
Sociologia Rural a questão agrária pode ser apresentada através de duas
indagações fundamentais:
a) Qual a melhor forma social de produção para o desenvolvimento de
um determinado país? As opiniões se dividem entre escolas de pensamento
que defendem um modelo baseado em pequenas explorações de caráter
familiar, enquanto outras se inclinam para um modelo centrado na gran-
de exploração de caráter capitalista. O primeiro é chamado “via farmer”,
identificado com o que houve no caso dos EUA, marcado por um processo
de democratização do acesso à terra. O segundo modelo é chamado de “via
junker”, identificado com o caso de uma antiga região da Alemanha (Prús-
sia) onde a modernização ocorreu a partir da modernização de grandes
latifúndios, sendo muito mais lento, se comparado com a “via farmer”9.

9 Esse assunto foi abordado numa infinidade de obras clássicas da literatura socio-
lógica. Para os que tiverem maior interesse no tema sugerimos a conhecida obra “A
questão Agrária hoje”, coordenada por Stédile (1994), em cujo interior consta o capítulo
elaborado por Jacob Gorender (ver referências).
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

b) O que acontece com a agricultura de um dado país ou região em vir-


tude da penetração de relações capitalistas? Nas partes iniciais deste livro
alertamos sobre as transformações sociais ocasionadas pelo capitalismo
durante a segunda metade do século XIX. Mas as mudanças se desenvol-
vem de uma forma peculiar no âmbito da agricultura e do meio rural. Esse
é outro tema relevante dentro deste capítulo do curso de Sociologia Rural.
Existem quatro paradigmas teóricos dentro do marco da questão
agrária clássica, os quais correspondem à obra de quatro consagrados
autores. São eles: Karl Marx, Vladimir Lênin, Karl Kautsky e Alexander
Chayanov. Tais obras, consideradas como escolas da questão agrária, foram
concebidas dentro de circunstâncias históricas específicas. Entre eles há
aspectos convergentes, bem como posições antagônicas. Resumidamente
o que se busca, nos próximos parágrafos, é evidenciar o pensamento dos
autores sobre a questão agrária e os aspectos que sobressaem em suas
análises. Vejamos separadamente cada um destes autores.

Karl Marx
Já falamos sobre Karl Marx (1818-
1883) ao apresentar os fundadores
da Sociologia. Além de uma volumosa
obra científica, esse filósofo e econo-
mista alemão é considerado como o
mais eminente teórico do comunismo
ou do modo de produção comunista.
Com relação à questão agrária, deli-
mitada anteriormente, encontraremos
referências sobre o assunto em várias
passagens da obra de Marx, onde fi-
gura em destaque um livro elaborado
na fase do “jovem Marx” intitulado “O
XVIII Brumário de Luís Bonaparte”.
Nesse estudo ele narra os episódios
Karl Max
que se sucederam na França no perí-

107
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

odo revolucionário compreendido entre 1848-1851 e que levaram à as-


censão da burguesia comercial e industrial ao poder.
O segundo texto que destacamos na obra de Marx é o capítulo “A
acumulação primitiva do capital”, pertencente ao Livro 1 de “O Capital”,
onde ele descreve a gênese histórica do capitalismo. Por fim, tem-se o
Livro III, tomo 2, de “O Capital”, intitulado “Crítica da Economia Política”,
onde ele aborda as teorias sobre a renda da terra.
A obra de Marx se volta ao estudo da consolidação do capitalismo na
Europa com ênfase no caso da Inglaterra, onde eclodiu a revolução indus-
trial que rapidamente se alastra pelos demais países do velho continente.
O que importa sublinhar, no espaço que aqui dispomos, é que Marx não
via futuro na capacidade de sobrevivência dos camponeses, ou do que
hoje denominamos de agricultura familiar. A penetração do capitalismo
no campo levaria, inexoravelmente, à desaparição dos camponeses na
opinião de Marx.
Na obra citada anteriormente (O XVIII Brumário...) ele chega a se
referir aos camponeses como um “saco de batatas”. Marx considerava-os
como uma massa indiferenciada de indivíduos, reacionária e conserva-
dora. Sendo ainda mais conciso, pode-se dizer que Marx não considerava
prioritário lutar por um setor que estava fadado a desaparecer no curso
da história. Ao descrever a transição do feudalismo para o capitalismo
Marx disse que haveria uma desagregação das antigas formas e relações
de produção. Em lugar do camponês e do senhor feudal emergem três no-
vas classes sociais, que estabelecem, entre si, relações socioeconômicas
específicas. Quais seriam essas novas classes? São elas:

Arrendatário capitalista ou empresário: aquele que obtém lucro e


extrai mais-valia dos trabalhadores. Em outras palavras, quem tem
o capital.

Proprietário fundiário: o dono da terra, ou seja, o que aluga o solo


agrícola para o capitalista explorar, recebendo uma renda da terra
em contrapartida.

108
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

Proletário: trata-se do trabalhador rural que vende sua força de tra-


balho e recebe, em troca, um salário.

Sob o capitalismo ocorreria a generalização do trabalho assalaria-


do. Fruto disso, o camponês de antanho se converteria, inevitavelmente,
em proletariado (trabalhador rural desprovido dos meios de produção).
A sociedade capitalista é marcada pelas contradições de classe entre os
que detêm os meios de produção, no caso a terra e os equipamentos, e os
que nada possuem a não ser a força de trabalho que é vendida em troca de
um salário. Na obra de Marx percebe-se claramente que os camponeses
aparecem “como espécies fatalmente condenadas à diferenciação, e con-
sequentemente à eliminação social” (ABRAMOVAY, 2007, p. 45).

Vladimir Lênin
Vladimir Ilich Ulianov, ou simplesmen-
te Lênin (1870-1924), foi um filósofo,
teórico, político e revolucionário rus-
so. Ele liderou o partido operário russo
durante a luta contra o regime impe-
rial (czarismo), a qual teve, como ponto
culminante, a revolução de outubro de
1917. A ascensão dos bolcheviques10
ao poder marca a implantação do co-
munismo e o surgimento da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas.
A obra literária de Lênin é vas-
ta, mas as mais importantes reflexões
sobre a questão agrária aparecem em
dois trabalhos magistrais: “O desenvol-
Vladimir Lênin

10 Bolcheviques eram um grupo político pertencente ao Partido Obreiro Socialdemo-


crata da Rússia.

109
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

vimento do capitalismo na Rússia”, escrito em 1899, e o “Programa agrário


da socialdemocracia de 1905-1907”, publicado em 1908.
Resumidamente comentaremos aqui os pontos essenciais no que
tange à questão agrária naquele país, sobre o qual Lênin construiu sua
teoria. Importante frisar que a Rússia, do final do século XIX, era um país
eminentemente agrário e rural, além de bastante atrasado em relação aos
países europeus onde a revolução industrial havia avançado rapidamente
e mudado completamente a vida econômica e social.
É preciso pensar que somente em 1862 é que foi abolido o regime da
servidão na Rússia, entendido aqui como uma versão cruel do feudalismo
num país onde preponderava a subordinação total das pessoas aos grandes
proprietários rurais e ao czar (monarca). Essa reforma foi implementada
diante do temor do Czar Alexandre II de que as precárias condições de
vida dos camponeses desembocassem numa grande revolução.
Na Rússia rural que antecede à revolução bolchevique havia a comu-
nidade aldeã russa, também chamada de “obshchina” ou “mir”, uma forma
de organização dos camponeses que administrava o uso das terras que eles
haviam recebido no período de abolição da servidão. Nas comunidades ha-
via uma assembleia que destinava a terra arável segundo o tamanho e as
necessidades de cada família. Não obstante, pastagens e florestas eram de
propriedade comum e uso coletivo. O mir era também responsável pelo pa-
gamento dos impostos para o governo e para as demais estruturas de poder.
O esforço intelectual de Lênin, autor da concepção que ficou conhe-
cida como “teoria da diferenciação social do campesinato”, foi no sentido
de buscar mostrar que o capitalismo já se havia consolidado na Rússia no
final do século XIX e começo do século XX. A comunidade aldeã russa não
era mais igualitária e homogênea em função da penetração de relações
capitalistas. A desintegração do campesinato cria as condições para con-
solidar um mercado interno para o modo de produção capitalista.
Aquele camponês russo típico (“seredniak”), uma espécie de classe
média do camponês original, estava sendo rapidamente desintegrada.

110
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

Estavam eles sofrendo um típico processo de diferenciação social. Uma


parcela pequena desses se aburguesava, assumindo a condição do que os
russos denominavam “kulaks”.
Todavia, no extremo oposto, a grande massa rural se estava con-
vertendo em “bedniaks” ou “mujiques”, um campesinato miserável que
detinha escassas condições de produzir e que sobreviviam vendendo a
sua força de trabalho para os kulaks. As teses de Lênin foram construídas
a partir de uma ampla base estatística e seu esforço foi no sentido de mos-
trar a necessidade de ganhar para a causa proletária esse campesinato
miserável. Unindo-se aos operários de fábricas poderiam eles criar uma
nova sociedade.
A partir de 1928, durante o governo de Stalin, é extinto, definitiva-
mente, o regime de terras comunais (mir). A partir de então são criadas
as grandes fazendas estatais (“sovkhozes”) e os “kolkhozes”, as grandes pro-
priedades coletivas.
Concluímos esse resumo acerca
da contribuição de Lênin sobre a ques-
tão agrária afirmando que, para esse
grande teórico e ativista russo, não ha-
veria futuro para o campesinato. Nesse
ponto ele coincide com a visão de Karl
Marx. O capitalismo não deixa espe-
ranças à permanência das pequenas
explorações, ou do que hoje denomi-
namos agricultura familiar.

Karl Kautsky
Karl Kautsky (1854- 1938) nasceu em
Praga (atual República Tcheca) nos
tempos do império austro-húngaro.
Karl Kautsky Foi um dos teóricos mais influentes do

111
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

partido socialdemocrata alemão e do socialismo europeu, sobretudo de-


pois da morte de Marx (1883) e de Engels (1895). A obra máxima de Kaut-
sky é “Dier Agrarfrage” (A Questão Agrária) um livro que coincidentemente
foi publicado no mesmo ano (1899) em que surge o “Desenvolvimento
capitalista na Rússia” de Lênin. Apesar de se identificarem com as bases
do pensamento marxista, ambos os autores - Lênin e Kautsky - guardavam,
entre si, algumas divergências. Kautsky tinha muitas reservas contra o
bolchevismo liderado por Lênin.
O fato é que “A Questão Agrária” tornou-se um clássico para todos
aqueles interessados em compreender as transformações da agricultura e
do meio rural com o avanço do capitalismo. O contexto empírico abordado
por Kautsky corresponde aos países da Europa Central. Ele desenvolve um
estudo muito consistente, mostrando inclusive o surgimento da química
agrícola, cuja história se confunde com o surgimento da própria Agronomia.
A obra em questão passa a ser chamada de “teoria da industriali-
zação da agricultura”. Qual o motivo dessa denominação? Ele mostra, a
partir de um amplo conjunto de informações, que o capital se apodera da
agricultura pela revolução que promove na forma de produzir nas ativi-
dades agropecuárias. No curso dessa mudança tal setor torna-se cada vez
mais dependente da indústria.
Tal constatação se mostra extremamente atual quando observamos
o modo como opera atualmente a agropecuária em nível mundial. A es-
magadora maioria dos estabelecimentos rurais depende totalmente dos
insumos produtivos (sementes, adubos, máquinas, agrotóxicos, carrapa-
ticidas, etc.) fabricados pelos grandes conglomerados industriais. Kautsky
admite a superioridade técnica da grande em relação à pequena explo-
ração de caráter familiar. Mas a grande propriedade capitalista também
pode enfrentar dificuldades técnicas no que tange à própria administração.
A pequena propriedade, de caráter familiar, pode persistir em virtu-
de de sua tenacidade e da capacidade de se sacrificar em nome da própria
sobrevivência, um processo que pode se arrastar durante séculos. Algumas
famílias se mantêm no campo a partir de relações contraídas com grandes
empresas agroindustriais.

112
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

Esse é o caso das famílias produtoras de tabaco no sul do Brasil. Elas


se vinculam às fumageiras através de contratos de integração vertical, sen-
do obrigadas a comprar insumos (adubos, sementes, agrotóxicos) dessas
mesmas empresas e entregar a elas a produção final, após a realização
das operações de secagem e classificação do fumo.
Esse tipo de situação já havia sido profetizada por Kautsky quando
ele dizia que a articulação entre a exploração familiar e as agroindústrias
reduziria o camponês à condição de “trabalhador disfarçado” ou proprie-
tário “apenas formal” dos meios de produção. Desse modo, a família é dona
da terra, mas não tem poder sobre suas decisões e fica totalmente refém
das imposições das grandes empresas.
De forma bem resumida podemos dizer que o tom de Kautsky é
um pouco mais ameno que o de Lênin, mas não se pode extrair de sua
obra elementos que levem a crer que a exploração familiar poderá sub-
sistir sob o modo de produção capita-
lista. Sua desaparição poderá demorar,
mas igualmente não há futuro para a
agricultura camponesa ou familiar na
visão de Kautsky.

Alexander Chayanov
Alexander Chayanov (1888-1937) era
um agrônomo e economista russo cuja
atuação se destaca no período poste-
rior à revolução bolchevique. Ele era
um intelectual e expoente máximo da
chamada “Escola da Organização da
Produção”, uma organização acadêmi-
ca russa que realizava diversos estudos
comprometidos com o desenvolvimen-
to agrário e rural daquele país. Alexander Chayanov

113
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

A principal obra de Chayanov, e que deve ser entendida como res-


posta ao que se convencionou chamar Questão Agrária, está exposta no
livro “A organização da unidade camponesa” (1925). Sua teoria se mostra
totalmente contrária às teses marxistas que profetizavam o desapareci-
mento fatal da economia camponesa ou familiar. Ele também se mostrava
contrário ao caminho de coletivização das terras que acabou sendo ado-
tado a partir da ascensão de Stalin ao poder, logo após a morte de Lênin.
Por conta disso, Chayanov foi considerado traidor e executado pelos seus
detratores em 1937.
Chayanov é autor de uma concepção que ficou conhecida como “te-
oria da diferenciação demográfica do campesinato”, também chamada de
“microeconomia do comportamento camponês”. O que apregoava essa
teoria? De onde partiu Chayanov para concebê-la? Chayanov partiu pra-
ticamente dos mesmos dados de que Lênin se serviu para propor a sua
teoria, quais sejam, as estatísticas dos zemstvos, um tipo de governo local
instituído durante as grandes reformas realizadas pelo czar Alejandro II
comentadas anteriormente. Era uma grande fonte de dados que monito-
rava a evolução da superfície cultivada, a produção, o número de arados
e outras informações detalhadas sobre o estado da agricultura russa.
A que conclusões chegou Chayanov? Chayanov analisou os dados
e concluiu que as explorações camponesas tinham um comportamento
particular que destoava totalmente do funcionamento das empresas ca-
pitalistas. Resumidamente, Chayanov dizia que as famílias priorizavam
o atendimento de suas necessidades de consumo.
Para alcançar esse objetivo as famílias imprimiam, sobre si mesmas,
um ritmo de autoexploração. Portanto, o camponês e sua família traba-
lham fundamentalmente para garantir a própria sobrevivência, o que não
quer dizer que não pratiquem a venda de parte de sua produção ou que
trabalhem fora de sua propriedade nos intervalos da safra para ampliar
suas fontes de renda. Também concluiu que os camponeses não eram
contrários ao aperfeiçoamento de sua capacidade produtiva. Quando essa
condição de atendimento de suas necessidades básicas era alcançada,

114
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

havia uma tendência de arrefecer o ritmo de trabalho. Por esse motivo


uma família camponesa não mostrava propensão a converter-se numa
empresa capitalista.
Pense numa típica propriedade de tipo familiar: lá existem bocas a
alimentar e braços para trabalhar. Todavia, quando essa família é jovem,
há muitas bocas a alimentar e poucos braços adultos para trabalhar. Em
outras palavras, há muitos consumidores (C) e poucos trabalhadores (T).
Imagine uma fração matemática onde C é o numerador e T o denomina-
dor. Quanto maior a pressão de C sobre T, maior a intensidade de auto-
exploração da família. Em outras palavras, mais os adultos da unidade
familiar de produção se empenham para que não falte nada para os seus
membros. O regime das terras comunais admitia uma certa flexibilidade
na incorporação de novas terras. Quando a família crescia o camponês
podia requisitar mais terras para plantar. O inverso acontecia quando a
família diminuía de tamanho.
Mas as famílias rurais amadurecem, chegam ao seu ápice e depois
começam a reduzir seu tamanho. Os filhos tornam-se adultos, saem da
exploração, procuram outras atividades e muitos deles se casam, cons-
tituem uma nova família e dão início a um novo ciclo familiar. Chayanov
era também um entusiasta do cooperativismo agrário.
Além disso, preconizava a chamada “Agronomia Social” entendida
como o compromisso de conciliar a formação técnica de agrônomo com
o compromisso social de desenvolver o meio rural russo. A chamada “lei
de Chayanov” tornou-se uma teoria extremamente importante para com-
preender o funcionamento das explorações familiares na maior parte dos
países do mundo, especialmente na América Latina. Diferentemente dos
autores que analisamos anteriormente, Chayanov acreditava no futuro da
agricultura familiar e considerava que através de aperfeiçoamento nos
processos produtivos e na organização das famílias rurais era possível
desenvolver a economia rural e o país como um todo.

115
O modo de produção capitalista e a agricultura: a questão agrária clássica

Questões para fixação de conteúdos

1. Segundo Marx, haveria futuro para o campesinato sob as condições


impostas pelo capitalismo na agricultura? O que ele queria dizer ao
comparar os camponeses com um saco de batatas?

2. A decadência do modo de produção feudal e a penetração do


capitalismo descrita magistralmente por Marx ao estudar o caso da
Inglaterra, leva ao surgimento de três classes sociais novas e distintas.
Quais são elas e como elas se apresentam na nova ordem social e
econômica representada pelo capitalismo?

3. Em que se baseou o esforço intelectual de Lenin com sua “teoria da


diferenciação social do campesinato”?

4. Em que se baseia a tese da “industrialização da agricultura” exposta


por Karl Kautsky? Ele acreditava no futuro do que hoje chamamos
agricultura familiar com o avanço do capitalismo?

5. O agrônomo e economista russo Alexander Chayanov assume uma


posição totalmente antagônica aos teóricos marxistas, sendo autor de
uma concepção que ficou conhecida como “teoria da diferenciação
demográfica do campesinato”, também chamada de “microeconomia
do comportamento camponês”. Explique o ponto de vista desse autor.

6. Chayanov preconizava uma “Agronomia Social”. Explique o que isso


significa.

116
Epílogo

O objetivo precípuo deste livro foi apresentar e debater um conjunto de


conhecimentos relacionados com a Sociologia Rural, um ramo da Socio-
logia geral que se considera extremamente importante para a formação
acadêmica e científica dos profissionais das Ciências Agrárias. A parte
inicial desta obra mostrou as bases fundantes do pensamento científico
ocidental, bem como alguns aspectos de caráter geral acerca das origens
das Ciências Humanas como um todo e da própria Sociologia.
As três grandes escolas de pensamento sociológico e a obra dos seus
fundadores (Durkheim, Weber e Marx) foram resumidamente expostas.
A aproximação realizada está longe de ser um exame exaustivo da con-
tribuição desses autores à consolidação da ciência sociológica. O objetivo
maior foi evidenciar as diferenças entre essas escolas e o seu potencial
enquanto ferramentas de interpretação do mundo social.
A Sociologia Rural – objeto central deste curso – foi examinada a par-
tir do caráter peculiar desse campo do conhecimento, explorando traços
centrais de sua trajetória desde que foi criada nos EUA no final do século
XIX. Nessa reflexão expusemos as contradições internas que ensejaram
uma crise da Sociologia Rural e o surgimento de novas sociologias voltadas
ao estudo da dinâmica da agricultura, das mutações que experimenta a
realidade rural e a sociedade como um todo a partir da importância cres-
cente dos compromissos com a sustentabilidade do planeta.
Hoje em dia se fala de uma Sociologia voltada ao estudo da vida
social em áreas não densamente urbanizadas e/ou regiões não metropo-
litanas. Em certa medida, tal atitude busca superar os equívocos da visão
dicotômica que via o rural como sinônimo do atraso e como algo a ser su-
perado e sacrificado no altar da modernidade. O rural seguirá sendo um
valor para nossas sociedades. Isso não significa fechar os olhos para as
mudanças mais amplas que incidem sobre o campo e sobre a sociedade
como um todo. O rural, como dissemos anteriormente, incorporou novas
e importantes funções.
A modernização conservadora da agricultura foi um processo que
acarretou transformações profundas para a sociedade brasileira. As cir-
cunstâncias históricas foram retratadas neste livro, assim como alguns
dos seus principais desdobramentos. O Brasil dos anos 1960 era muito
distinto da realidade atual. Os problemas da “urbanização sem urbanida-
de” são mais do que evidentes. A falta de compromisso com as reformas
de base fez com que um contingente estimado em 30 milhões de pessoas,
entre as décadas de 1960 e 1980, tivessem de abandonar o campo para
buscar, na periferia das cidades, um meio de lutar contra a fome e a falta
de oportunidades.
A mesma lógica da modernização conservadora se vê atualmente
repetida numa imensa região do país, onde o bioma Cerrado é dominante,
unindo terras do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A palavra “Matopiba”
é um acrônimo formado pelas iniciais dessas quatro unidades federativas
brasileiras. A palavra é empregada para descrever o gigantesco espaço
geográfico que une essas quatro unidades da federação movidas quase
que pela mesma lógica extrativista dos tempos do pau Brasil. Entretan-
to, é também visto como um território que representa a última fronteira
agrícola do Brasil.
Trata-se de uma área de 73 milhões de hectares (maior do que a
Alemanha) que desde meados dos anos 1980 se converteu num espaço
dedicado à produção de commodities agrícolas. Estudos recentes (Fava-
reto et al., 2019) indicam que se trata da reprodução fiel da desastrosa
receita aplicada durante o regime militar, a qual está marcada pela nefasta
combinação de destruição dos recursos naturais, intensificação dos pro-
cessos produtivos, uso indiscriminado de agrotóxicos, desmatamento e
exclusão social. Mas este livro também buscou trazer à tona outros temas
importantes da história recente da agricultura e da sociedade brasileira.
Nos anos 1960, em plena ditadura militar, foi instituída uma legis-
lação agrária que criou uma série de conceitos importantes que foram

118
aqui trazidos à reflexão. Conhecer essa terminologia é relevante devido às
implicações que tais definições assumem enquanto critérios de aplicação
de políticas públicas de corte agrário e rural. Uma especial atenção foi
dada à elucidação de dúvidas que reiteradamente pairam sobre alguns
termos (questão agrícola, questão agrária, estrutura agrária, fundiária,
política agrícola, política agrária, etc.).
Na última parte deste livro guiamos nossa mirada para a chama-
da “questão agrária” clássica. O exercício foi no sentido de examinar o
que Abramovay (2007) define como paradigmas do capitalismo agrário.
Estamos cientes de que a análise resultou numa abordagem demasiado
esquemática e superficial. É que as razões que nos movem na elaboração
desta obra são de ordem essencialmente didática e pedagógica.
Em última instância nosso ímpeto foi o de elaborar um material de
apoio às disciplinas da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas,
mas que servisse também para os estudantes interessados em ampliar
sua visão de mundo para além dos muros da universidade. Esse é um
fato deveras importante, considerando que atualmente menos de 20% de
nossos estudantes têm uma origem rural ou algum tipo de vínculo efetivo,
de caráter pessoal ou familiar com as atividades agropecuárias e/ou com
o mundo rural.
Pensamos também nos profissionais já formados que desejam in-
gressar na pós-graduação, nos que anseiam trabalhar no âmbito da exten-
são rural e da assistência técnica, seja ela de caráter público ou privado,
assim como nos que pretendem realizar concursos públicos para atuar na
área da pesquisa e do desenvolvimento agropecuário. Para essas pessoas
o livro pode ser útil e válido.
Francis Bacon, o pai do empirismo filosófico, dizia que alguns livros são
provados, outros são devorados e pouquíssimos são mastigados e digeridos.
Acalentamos o sonho de que esta modesta obra receba o terceiro tipo de
destino aludido por Bacon. Só o futuro dirá se o nosso desejo será atendido.

119
Referências
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Edusp, 2007.

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