Igreja. - março 17, 2023 A renúncia de Bento XVI pegou a todos de surpresa. Os mais piedosos e conservadores viram como uma coisa impensável e absurda, o ato de coragem do velho e cansado papa Ratzinger que, do alto de sua genialidade teológica, demonstrava o fim de suas energias pastorais.
A renúncia de Ratzinger como que fecha um ciclo eclesial marcado
pela pretensão do poder absoluto do papa e abre uma nova etapa marcada por uma imagem mais humana do pontífice. O panzer kardinal conhece os próprios limites e não repete a atitude do antecessor que, totalmente incapacitado pela doença, permaneceu no posto até a falência total das energias vitais. Ratzinger, teólogo brilhante, sabia, desde o início, que suas forças não seriam suficientes: “Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes” (Bento XVI, Primeira saudação 19/04/2005). No fim de um pontificado difícil, bento XVI afirma: Tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado” (Bento XVI, Declaração, 11/02/2013).
O dia 13 de março de 2013 é a sequência da nova etapa aberta pela
significativa renúncia de Ratzinger. Prenunciada pela fumaça branca, surge uma nova postura na direção da velha Igreja. A imagem do bispo de branco que aparece na janela é surpreendentemente renovadora. Ele não usa os paramentos tradicionais, fala como um bispo que caminha junto com o povo, curva-se para receber as orações dos fiéis e assume profeticamente o nome e o espírito de Francisco, não como título, mas como programa. A força profética do nome do pobrezinho de Assis me fez sair do quarto onde assistira, pela televisão, a primeira aparição do novo papa, cantarolando o refrão: "volte Francisco a esta terra trazendo o Cristo de novo"... Lembro que durante alguns dias cantarolei isso.
No sábado, 16 de março, no discurso aos representantes da imprensa,
Francisco explica a escolha do nome. “Na eleição, tinha ao meu lado o Cardeal Cláudio Hummes, o arcebispo emérito de São Paulo e também prefeito emérito da Congregação para o Clero: um grande amigo, um grande amigo! Quando o caso começava a tornar-se um pouco „perigoso‟, ele animava-me. E quando os votos atingiram dois terços, surgiu o habitual aplauso, porque foi eleito o Papa. Ele abraçou-me, beijou-me e disse-me: „Não te esqueças dos pobres!‟ E aquela palavra gravou-se-me na cabeça: os pobres, os pobres. Logo depois, associando com os pobres, pensei em Francisco de Assis. Em seguida pensei nas guerras, (...) E Francisco é o homem da paz. E assim surgiu o nome no meu coração: Francisco de Assis. Para mim, é o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que ama e preserva a criação; (...) [Francisco] é o homem que nos dá este espírito de paz, o homem pobre... Ah, como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres! “ Nestas palavras Bergoglio explica sutilmente o conteúdo a que pretende doravante dedicar-se: os pobres, a paz e a ecologia. Mas essa explicação não diz tudo. O nome escolhido carrega em si uma carga profética muito mais específica e não revelada pelo novo papa, mas, certamente presente em seu coração: a Reforma da Igreja.
Em mais um ano de pontificado é possível ver a Reforma em plena
marcha. Francisco rejeitou os títulos, as vestes, os tronos. Despojado, mostra ao mundo a face de uma Igreja do povo e não da nobreza, mostra a figura do papa pastor e não monarca. Sua imagem e suas atitudes sinalizam um novo tempo para a sempre nova Igreja de Cristo muitas vezes desfigurada pelos pecados de seus próprios membros e envelhecida pela burocracia e rigidez de suas próprias estruturas. E, na Exortação Apostólica Evangelli Gaudim, apresenta claramente sua proposta: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação” (EG 27). A recepção à proposta reformadora de Francisco nem sempre é boa. Nos bastidores da vida eclesiástica, é possível sentir e ver algumas reações de resistência, desconfiança, indiferença e até hostilidade da parte dos segmentos mais conservadores. Enquanto alguns franzem a testa e resmungam diante das atitudes de Bergoglio, outros, mais reacionários, o questionam, como os quatro cardeais dos Dubia, ou o insultam como os Arautos do Evangelho, considerando-o uma alma estúpida e servidor do demônio.
Há ainda os que, na sua zona de conforto, insistem em ignorar a
Reforma de Francisco afirmando que é errado falar em Reforma da Igreja porque o papa está fazendo apenas uma reforma na Cúria Romana. E assim esperam pacientemente que passe a era de Francisco de Roma sem que se deixem tocar pela novidade do Espírito que desinstala e renova a face da terra.
No ocaso de uma pandemia devastadora e uma guerra que impacta a
vida de todos num mundo globalizado, começa mais um ano de pontificado e Francisco continua sendo a expressão mais atual da reserva profética da Igreja de Cristo. Apesar das resistências, trabalha duro para cumprir a difícil tarefa de mostrar ao mundo e, principalmente à própria Igreja, que é possível e necessário que a mesma se aproxime mais de seu fundamento, Jesus de Nazaré.
Passados dez anos da eleição de Bergoglio, começamos a nos
perguntar o que será amanhã. Teremos continuidade ou ruptura do processo de reforma da Igreja? Ainda ouviremos falar de Igreja em saída, Igreja-hospital de campanha, Igreja enlameada, Igreja pobre para os pobres? Ouviremos falar em ecologia integral? Em terra, teto e trabalho? Em amizade social, santidade da vizinhança e tantos outros conceitos simples e importantíssimos para a Igreja?