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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


INSTITUTO DE LETRAS - ILUFBA

JOSÉ CALASANS DE SOUSA JÚNIOR


ANA CAROLINA DE CARVALHO ANJOS

A PROFUNDIDADE MÍSTICA DA MÚSICA “GÎT”:


UMA ANÁLISE DO INTERTEXTO DE RAUL SEIXAS E PAULO COELHO

Trabalho solicitado pela profª ​Helitânia S. Pereira​, como requisito final de avaliação da
disciplina ​Introdução à Análise Textual​, do curso de Letras, semestre ​2019.2​.

Salvador,
2019
1. INTRODUÇÃO
Neste breve artigo é feita a análise da intertextualidade intergêneros (KOCH; ELIAS,
2015) presente em “Gita”, canção, de teor místico, considerada a 72ª maior música brasileira
(ROLLING STONE BRASIL, 2009), e que foi composta, em 1974, por Raul Santos Seixas e
Paulo Coelho de Souza, no auge do movimento “New Age”, com ambos sendo grandes
representantes da “contracultura” nacional à época (MAGNANI, 2000, p. 19).
Quanto à importância desta canção, vale ainda pontuar, em sentido histórico, que seu
videoclipe foi o primeiro a ser produzido em cores no Brasil, para ser exibido no programa
“Fantástico, O show da vida” da Rede Globo, além de que o álbum homônimo, no qual tal
canção é a sua 12ª faixa entre as 14 totais, recebeu o “disco de ouro”, por ter vendido mais de
600 mil cópias (ECHEVERRIA, 1999). Em sentido de contemporaneidade, Gita é a 4ª
música de Raul Seixas mais buscada no Google, nos últimos quinze anos (ROLLING
STONE BRASIL, 2019), e a 7ª música mais popular do referido artista, considerando-se o
Spotify AB. (2019) , já com mais 13 milhões e 766 mil execuções. Em relação ao artista em
si, conhecido desde a infância como “Raulzito” (ECHEVERRIA, 1999), sua obra musical no
Spotify AB. (2019) é seguida por mais de 999 mil usuários e é ouvida, mensalmente, por
mais de 1 milhão de pessoas (de qualquer lugar do mundo).
Já quanto ao corpus da análise, este restringe-se à letra da música em questão
(SEIXAS; COELHO, 2019) — considerada, então, como pertencente a esse “gênero textual”
citado, segundo o entendimento de Marcuschi (2008) quanto a tal conceito, no sentido ​de não
serem tais gêneros “entidades formais”, mas sim “entidades comunicativas em que
predominam os aspectos relativos a funções, propósitos, ações e conteúdos” (MARCUSCHI,
2008, pg.159). ​Portanto, desconsidera-se por inteiro a sua melodia, mas, em compensação,
considera-se a influência dos saberes milenares, de ordem metafísica, encontrados nos livros
Bhagavad-Gîtâ (2006) e O Caibalion (1978), já que todo texto ​“não é um simples artefato
linguístico, mas um evento que ocorre na forma de linguagem inserida em contextos
comunicativos” (MARCUSCHI, 2008). E já que ocorre a intertextualidade, em ​stricto sensu,
“quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz
parte da memória social de uma coletividade” (KOCH, 2015), saliente-se o quão primordiais
ambos foram ​para a constituição de tal canção​: ​O primeiro, Bhagavad-Gîtâ (2006), por
tratar-se toda a letra da música homônima de um parafraseamento seu; o segundo, O
Caibalion (1978), por esses preceitos herméticos, “esotéricos e ocultos”, ali apresentados
numa “Doutrina secreta”, estarem “espalhados em todos os países e em todas as religiões”
(TRÊS INICIADOS, 1978), incluindo-se os ensinamentos de Aleister Crowley (inicialmente
membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada), que influenciavam Raul Seixas e Paulo
Coelho à época, com toda aquela ideia de uma “Sociedade Alternativa” (ECHEVERRIA,
1999). Tais referidos livros de caráter místico trazem consigo a “gnose”, a sabedoria milenar
sobre como de fato se constitui o Universo, bem como a real natureza de Deus, com este
sendo “O TODO”, incluindo-se nós mesmos como parte Dele, não somente uma entidade de
comportamento humano que nos seja superior, tal como parece ser o caso das religiões
abraâmicas, já bem adverte o livro “O Caibalion” em suas primeiras páginas:
Os Hermetistas pensam e ensinam que O TODO, ​em si mesmo,​ é e será
sempre INCOGNOSCÍVEL. Eles consideram todas as teorias, conjecturas e
especulações dos teólogos e metafísicos a respeito da natureza íntima do
TODO, como esforços infantis das mentes finitas para compreender o
segredo do Infinito.
Porém são ainda mais presunçosos os que atribuem ao TODO a
personalidade, as qualidades e propriedades — característicos e atributos
deles mesmos —, e querem que O TODO tenha emoções, sensações e outros
característicos humanos que estão abaixo das pequenas qualidades do gênero
humano, tais como a inveja, o desejo de lisonjas e louvores, desejo de
oferendas e adorações, e todos os outros atributos que sobrevivem desde a
infância da raça. (TRÊS INICIADOS, 1978)

Assim sendo, ​esta análise poderá servir a um número incalculável de pessoas, sempre
que alguém perguntar-se o significado da canção Gita e sua associação com as questões
metafísicas que lhe são evidentes. Afinal, somar-se-á a tal quantidade de ouvintes do artista
aos provavelmente também milhões que, no mundo, interessam-se tanto pelos ensinamentos
do “pai da Ciência Oculta, o fundador da Astrologia, o descobridor da Alquimia” (TRÊS
INICIADOS, 1978) quanto pela mensagem de Krishna a Arjuna, presente na “Sublime
Canção, também designada como a Canção do Senhor ou a Mensagem do Mestre”
(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006)​. A saber, com o primeiro, Krishna, representando “o
Homem-Deus, o nosso Ego (ou Eu) Superior”, e o segundo, Arjuna, “um dos cinco príncipes
Pândavas”, representando “o homem no estado evolutivo”, em meio a uma luta “entre dois
exércitos inimigos, dos quais os Pândavas representam as forças superiores, e os Kurus, as
forças inferiores da alma”, com a tarefa de vencer tais “forças inferiores”, para enfim “chegar
ao conhecimento de sua verdadeira essência divina”, ​(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006).
Por tratar-se de uma análise de texto, não essencialmente musical, foi adotada a
perspectiva atual da Linguística Textual, “​uma perspectiva de trabalho com a língua que
recusa a noção de autonomia da língua.” (MARCUSCHI, 2008)​, e na qual se defende, por
exemplo, “a ideia de que, para estudar o texto, é preciso examinar, além de suas relações
internas (que remetem para a organização textual e o sentido que daí decorre) outras relações
que ultrapassam o limite do texto propriamente dito” (INDURSKY, 2015). Por conta disso,
este artigo tem como referenciais teóricos, para tratar tanto da concepção mais atual de texto
quanto das questões de gêneros e intertextualidade, autores relacionados de alguma forma à
mais recente fase da Linguística Textual, como Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias
(2015), Freda Indursky (2015) e Luiz Antônio Marcuschi (2008).
Sua estrutura, não tão rebelde quantos os autores da canção analisada, divide-se nos
seguintes tópicos: Introdução, Fundamentação teórica, Análise do corpus e Conclusão. E a
referida análise é feita seguindo-se a própria ordem da canção, assim, observando-se estrofe
por estrofe, na sua exata sequência original. Todavia, sem que se recaia na concepções
comuns aos precursores da Linguística textual, ainda na sua primeira fase, a “​transfrástica”,
entendo-se “​o texto como uma sequência coerente de frases, considerando texto como uma
extensão da frase” (INDURSKY, 2015).
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Toda a análise do corpus selecionado — a letra da canção “Gita” (SEIXAS;
COELHO, 2019) — está embasada no campo teórico da Linguística Textual, por ser tal
perspectiva capaz de entender o texto “​como um tecido estruturado, uma entidade
significativa, uma entidade de comunicação e um artefato sócio histórico” (MARCUSCHI,
2008), e assim, consequentemente, ver-se o texto como “uma (re)construção do mundo e não
uma simples refração ou reflexo” (MARCUSCHI, 2008), já que a canção revive dizeres
milenares do ​Bhagavad-Gîtâ (2006) e, indiretamente, d’O Caibalion (1978)​, com seus
autores, Raul Seixas e Paulo Coelho, apenas reescrevendo-os em um estilo mais
contemporâneo à época de sua feitura, 1974, cabendo isto na seguinte concepção de
“intertextualidade implícita”:
[...] consideramos a manipulação que o produtor do texto opera sobre texto
alheio ou mesmo próprio, com o fim de produzir determinados efeitos de
sentido, recurso muito usado, por exemplo, na publicidade, no humor, na
canção popular, bem como na literatura. (KOCH; ELIAS, 2015)

Afinal, “como Bakhtin dizia da linguagem que ela ​‘refrata’ ​o mundo e não reflete,
também podemos afirmar do texto que ele ​refrata ​o mundo na medida em que o reordena e
reconstrói” (MARCUSCHI, 2008).
A escolha pela Linguística Textual, portanto, permite que se possa analisar uma letra
de música, que pareceria isolada em si mesma, como “um texto que recorre a outros textos”,
ou seja, em sua “hibridização” ou “intertextualidade intergêneros” ​— “​o fenômeno segundo o
qual um gênero pode assumir a forma de um outro gênero, tendo em vista o propósito de
comunicação” (KOCH; ELIAS, 2015) ​—​, seja isto nos casos em que se considera haver uma
“intertextualidade explícita” ​— ​“quando há citação da fonte do intertexto, como acontece nos
discursos relatados, nas citações e referências; nos resumos, resenhas e traduções” (KOCH;
ELIAS, 2015) ​—​, seja nos casos em que se percebe uma “intertextualidade implícita” ​—
quando “ocorre sem citação expressa da fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la na
memória para construir o sentido do texto” (KOCH; ELIAS, 2015). E é esta última,
perceba-se, a exata definição desta análise da letra de “Gita” (SEIXAS; COELHO, 2019).
Afinal, “quando isso não ocorre, grande parte ou mesmo toda a construção do sentido fica
prejudicada”, como observaram também Koch e Elias (2015), pois que a sua audição por um
leigo quanto à existência do Bhagavad-Gîtâ (2006), inevitavelmente levaria-o a talvez pensar
que o eu lírico desta seria exatamente Raul Seixas, o seu intérprete, em vez de Krishna, ou
seja, o próprio “Homem-Deus, o nosso Ego (ou Eu) Superior” ​(BHAGAVAD-GÎTÂ...,
2006)​ ou logo “O TODO”, tal como concebido no hermetismo (TRÊS INICIADOS, 1978).
Ainda tratando sobre a questão de intertextualidade segundo a Linguística textual,
vale pontuar-se que a sua presença em um determinado texto não faz deste um caso especial
ou uma situação em que se queira “forçar” tal intertextualidade, vez que “​em sentido amplo, a
intertextualidade se faz presente em todo texto, como componente decisivo de suas condições
de produção”, afinal...
[...] ela é condição mesma da existência de textos, já que há sempre um
já-dito, prévio a todo dizer. Segundo J. Kristeva, criadora do termo, todo
texto é um mosaico de citações, de outros dizeres que o antecederam e lhe
deram origem. (KOCH; ELIAS, 2015)

E indo-se mais além, para bem fundamentar esta análise, a qual associa “Gita” ​(SEIXAS;
COELHO, 2019) aos livros Bhagavad-Gîtâ (2006) e O Caibalion (1978)​, é possível ainda
afirmar que...
[...] a intertextualidade é elemento constituinte e constitutivo do processo de
escrita/leitura e compreende as diversas maneiras pelas quais a
produção/recepção de um dado texto depende de conhecimentos de outros
textos por parte dos interlocutores, ou seja, dos diversos tipos de relações que
um texto mantém com outros textos.” (KOCH; ELIAS, 2015, pg. 86)

Quanto à escolha pelo específico gênero textual de “Gita” (SEIXAS; COELHO,


2019), uma letra de música, obviamente, é relevante destacar-se que, o uso do termo “gênero
textual” em si, considerado sem especificidades, ​refere-se aos “textos materializados em
situações comunicativas recorrentes”, ou melhor dizendo:
[...] os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões
sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais,
objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de
forças históricas, sociais, institucionais e técnicas (MARCUSCHI, 2008).
Por Fim, faz-se importante reiterar que é preciso, para estudar-se algum texto na visão da
Linguística Textual...
[...] examinar, além de suas relações internas (que remetem para a
organização textual e o sentido que daí decorre) outras relações que
ultrapassam o limite do texto propriamente dito (INDURSKY, 2015).
3. ANÁLISE DO CORPUS
A canção Gita, em sua letra, começa com com os seguintes dizeres:
"Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando / foi justamente
num sonho que Ele me falou" (SEIXAS; COELHO, 2019).

Nesta primeira estrofe, como se vê, ainda não há claramente uma alusão às
características d’O TODO (TRÊS INICIADOS, 1978) ou Krishna ​(BHAGAVAD-GÎTÂ...,
2006), sendo possível especular, inclusive, que Raul Seixas e Paulo Coelho, neste trecho,
talvez tenham buscado transferir o papel de ouvinte das estrofes seguintes, outrora de Arjuna,
“o homem no estado evolutivo” ​(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006) para um outrem ​—
provavelmente este andarilho citado, o qual procurou possivelmente saber da natureza de
Deus “pelos quatro cantos do mundo”. E isso, obviamente, não mudaria a essência do texto
original, posto que qualquer homem terreno poderia ser tido como em “estado evolutivo”.
Ademais, quando diz que “foi justamente num sonho que Ele me falou”, o tal andarilho
reforça a ideia de que as falas seguintes serão pronunciadas não por qualquer “ele”, mas por
“Ele” (com inicial maiúscula), ou seja, Deus, Krishna, O TODO etc. E apesar de o diálogo
entre Krishna e Arjuna ocorrer em uma situação presencial, ainda que o teor do livro seja
todo metafórico, os autores da canção preferiram transferir tais revelações para como se ditas
em um sonho, talvez com o fim de, desfrutando da licença poética, distanciá-las do original.

Na segunda estrofe, a voz que seria de Krishna já se faz ativa, claramente


direcionando-se àquele que este sonhou:
Às vezes você me pergunta / Por que é que eu sou tão calado / Não falo de
amor quase nada / Nem fico sorrindo ao teu lado (SEIXAS; COELHO, 2019).

Talvez sejam tais versos os mais distantes, dentre as falas que se poderia atribuir a
Krishna, daqueles diálogos realmente presentes no Bhagavad-Gîtâ (2006). Afinal, não se
encontra, meio às indagações de Arjuna, alguma explícita reclamação sobre ser Krishna “tão
calado”, ou sobre ele pouco falar de amor e pouco sorrir.

Em seguida, “Ele” diz:


Você pensa em mim toda hora / Me come, me cospe, me deixa (SEIXAS;
COELHO, 2019).

A primeira dessas duas afirmações é a mais óbvia possível, afinal, a canção já havia
sido iniciada com o sujeito, um alguém equivalente a Arjuna, assumindo que “andou pelos
quatro cantos do mundo procurando” ​— supõe-se que procurando as respostas presentes a
partir da quinta estrofe. Quanto à segunda afirmação dessa estrofe, tratando de uma suposta
rejeição desse sujeito pelo o que ele incessantemente busca ao mesmo tempo, se
considerarmos as considerações feitas na introdução do livro, ela fará sentido plenamente:

Arjuna, o Homem, acha-se colocado no campo de suas ações, entre dois


exércitos inimigos, dos quais os Pândavas representam as forças superiores, e
os Kurus, as forças inferiores da alma. Ali está Arjuna, o filho de Kunti (isto
é, da Alma) contra os seus parentes, os filhos de Dhritarâshtra (Vida material)
ameaçado pelo Egoísmo, pelos seus prazeres e pelas suas paixões, que
formam um poderoso exército de ilusões: a sua tarefa é vencê-las, para chegar
ao conhecimento de sua verdadeira essência divina. Mas, como muitas dessas
ilusões se lhe tomaram agradáveis, acha difícil combatê-las. A seu lado,
entretanto, tem valentes guerreiros: a sua Consciência, o Amor do Bem e da
Verdade, a Obediência à Lei Suprema, a Fé, a Convicção, etc.
(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006)
Resumidamente, ao mesmo tempo que busca por esse “conhecimento de sua
verdadeira essência divina”, o sujeito também rejeita-a sempre que se prende a essas “ilusões
da vida material”.

Em seguida, na quarta estrofe, eis que finalmente Krishna afirma a intenção de


mostrar a Sua verdadeira natureza onipresente:

Talvez você não entenda / Mas hoje eu vou lhe mostrar (SEIXAS; COELHO,
2019).

Nesse sentido, considerando-se todas as estrofes comparativas que virão em diante,


pode-se dizer que a letra de Gita, e consequentemente o próprio texto original do
Bhagavad-Gîtâ (2006), fundamenta-se no “Princípio da correspondência”, tal como ele é
ensinado no hermetismo, já que, como não poderíamos entender a natureza de Deus em si,
visto que “​O TODO, ​em si mesmo​, é e será sempre INCOGNOSCÍVEL” (TRÊS INICIADOS,
1978), precisaríamos equiparar sua lógica à das coisas terrenas. Assim, vejamos a explicação
resumida sobre este que é um dos sete princípios ensinados por Hermes Trismegisto:
Este Princípio contém a verdade que existe uma correspondência entre as leis
e os fenômenos dos diversos planos da Existência e da Vida. O velho axioma
hermético diz estas palavras: “O que está em cima é como o que está
embaixo, e o que está embaixo é como o que está em cima.” A compreensão
deste Princípio dá ao homem os meios de explicar muitos paradoxos obscuros
e segredos da Natureza. Existem planos fora dos nossos conhecimentos, mas
quando lhes aplicamos o Princípio de Correspondência chegamos a
compreender muita coisa que de outro modo nos seria impossível
compreender. Este Princípio é de aplicação e manifestação universal nos
diversos planos do universo material, mental e espiritual: é uma Lei
Universal. (TRÊS INICIADOS, 1978)

E é a partir deste ponto que as estrofes tornar-se-ão, em boa parte, muito similares às
respostas que Krishna fornece às indagações de Arjuna sobre a Sua natureza, como vemos
um similar prenúncio no seguinte trecho do livro:
Fala-me mais ainda, e mais extensamente, do Teu misterioso Ser, das Tuas
forças, dos Teus poderes e formas de manifestação, ó Senhor dos mundos! Eu
tenho sede de ouvir as Tuas imortais palavras, como quem há muitos dias não
bebeu águas. Refrigera-me com os Teus ensinos, ó Mestre inigualável!"
O Verbo Divino: "Ouve, meu caríssimo! Descrever-te-ei as principais das
minhas divinas características e manifestações; só as principais, porque sabes
que o Meu Ser e a Minha Natureza essencial são infinitos; as Minhas
manifestações e Minhas forças não têm limites. ​(BHAGAVAD-GÎTÂ...,
2006)

E para uma melhor compreensão sobre “O TODO onde tudo está”, note-se que:
I. O TODO é Tudo o que É REAL. Nada pode existir fora do TODO, porque
do contrário o TODO não seria mais o TODO.
II. O TODO É INFINITO, porque não há quem defina, restrinja e limite O
TODO. É Infinito no Tempo, OU ETERNO; existiu sempre, sem cessar;
porque nada há que o pudesse criar, e se ele não tivesse existido, não podia
existir agora; existirá perpetuamente, porque não há quem o destrua, e ele não
pode deixar de existir, porque aquilo que é alguma coisa não pode ficar sendo
nada. É infinito no −espaço; está em toda parte porque não há lugar fora do
TODO; é contínuo no Espaço Sem cessação, separação ou interrupção,
porque nada há que separe, divida ou interrompa a sua continuidade, e nada
há para encher lacunas. É Infinito ou Absoluto em Poder; porque não há nada
para limitá−lo, restringi−lo ou acondicioná−lo; não está sujeito a nenhum
outro Poder, porque não há outro Poder.
III. O TODO É IMUTÁVEL, ou não está sujeito a ser mudado na sua
natureza real, nada há que possa operar mudanças nele, nada há em que possa
ser mudado nem nada que tenha sido mudado. Não pode ser aumentado nem
diminuído, nem ficar maior ou menor, seja qual for o motivo. Ele sempre foi
e sempre será tal como é agora: O TODO; nada houve, nada há e nada haverá
em que ele possa ser mudado.
O TODO sendo Infinito, Absoluto, Eterno e Imutável, segue−se que tudo o
que é finito, passageiro, condicional e Mutável não é o Todo. E como não há
nada Real fora do TODO, todas as coisas finitas não são Reais. (TRÊS
INICIADOS, 1978)
Assim, pontuadas todas essas referências, podemos partir para a estrofe seguinte:

Eu sou a luz das estrelas / Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu
sou o medo de amar (SEIXAS; COELHO, 2019).

Nesta parte, comparando-se às coisas da natureza tanto físicas quanto intrinsecamente


humanas, tais falas do Krishna da canção equivalem-se a algumas presentes nesse livro que,
como consta em sua introdução, é “altamente prezado pelos budistas e venerado como
Escritura Sagrada pelos brâmanes”. Portanto, vejamos uma delas:
Eu sou o líquido da água; Eu sou a luz do sol e da lua; Eu sou a sílaba sagrada
AUM.” ​(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006)

Agora, passemos à estrofe seguinte da canção:


Eu sou o medo do fraco / A força da imaginação / O blefe do jogador / Eu
sou, eu fui, eu vou (SEIXAS; COELHO, 2019).
Esta também, como há de se perceber claramente, assemelha-se à mesma linha da estrofe
anterior e, assim, pode ser comparada ao seguinte trecho dessa “Mensagem do Mestre”:
Sabe que de Mim procedem todas as qualidades dos seres individuais, como:
a razão, o conhecimento, a sabedoria, paciência, verdade, clemência, domínio
de si próprio, tranqüilidade, prazer e dor, nascimento e morte, coragem e
medo.
Igualmente: a inocência, equanimidade, abstinência, contentamento,
afabilidade, caridade, severidade, glória e modéstia.” (BHAGAVAD-GÎTÂ...,
2006)

Na estrofe seguinte, Krishan haveria dito àquele andarilho, por meio de um sonho:
Eu sou o seu sacrifício / A placa de contramão / O sangue no olhar do
vampiro / E as juras de maldição (SEIXAS; COELHO, 2019).

Tais dizeres, ao associarem Krishna, o “Homem-Deus, o nosso Ego (ou Eu)


Superior”, às “coisas da vida” que possuem, à primeira vista, um teor negativo, acabam
assemelhando-se ao seguinte trecho do livro, no qual o próprio assume ser também a morte:
“Eu sou tanto a Morte, que não poupa a ninguém, como o Renascimento, que
dissolve a Morte. Eu sou a Glória, a Fortuna, a Eloqüência, a Memória, o
Juízo, a Força, a Fidelidade, a Paciência.” (BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006)

Em seguida, o eu lírico, provavelmente O TODO ou simplesmente Krishna, diz que...

Eu sou a vela que acende / Eu sou a luz que se apaga / Eu sou a beira do
abismo / Eu sou o tudo e o nada (SEIXAS; COELHO, 2019).
Nesse ínterim, nota-se que O TODO estaria tanto na vela, o objeto físico, quanto na
luz que se torna escuridão, assim como “na beira do abismo”, algo que costuma simbolizar,
no senso comum, a perda total do sentido e da vontade de viver, em suma, a falência e o
suicídio. Portanto, ainda que o ser se sentisse desiludido e Nele não acreditasse, ainda assim
O TODO pertenceria a isto, como resumiu a Arjuna, quase que dizendo-se “o tudo e o nada”,
assim como na canção:
Em suma, ó príncipe! Eu sou Aquilo que é o princípio essencial na semente
de todos os sêres e de tôdas as coisas na Natureza; cada ser, animado ou
inanimado, é por Mim penetrado, e, sem Mim, nada pode existir nem por um
instante.
Sem fim são as minhas manifestações divinas, ó Arjuna! Só exemplos delas
te apresentei. Os meus poderes são infinitos em qualidade e variedade.
Todo ser e tôda coisa são o produto de uma infinitésima porção do meu Poder
e da minha Glória. ​(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006)

Em seguida, como que aconselhando Arjuna (ou o andarilho e sonhador não


identificado da canção) a “chegar ao conhecimento de sua verdadeira essência divina” em vez
de simplesmente fazer-lhe perguntas, diz o “nosso Eu Superior”, através de Raul Seixas:
Por que você me pergunta / Perguntas não vão lhe mostrar / Que eu sou feito
da terra/ Do fogo, da água e do ar (SEIXAS; COELHO, 2019).

Com essa lógica, pode-se notar similaridade da estrofe supracitada com o seguinte
trecho do livro:
Em minha natureza, há oito formas elementais, conhecidas como: terra, água,
fogo, ar, éter, mente, razão e consciência individual.
Mas, além destas formas da minha natureza material, possuo uma natureza
espiritual, superior e mais nobre: é o Princípio que vivifica e sustenta o
universo.
Sabe que os elementos de que falei são a matriz de toda a criação. Eu, porém,
sou a fonte de que tôda a criação provém e à qual tudo volta: Eu sou o
Princípio da criação e da dissolução do Universo.” (BHAGAVAD-GÎTÂ...,
2006)

Na estrofe seguinte, diz Krishna:

Você me tem todo dia / Mas não sabe se é bom ou ruim /Mas saiba que eu
estou em você / Mas você não está em mim (SEIXAS; COELHO, 2019).

Tal trecho da canção, ao mesmo tempo, reitera a onipresença d’O TODO e as


incertezas do homem em evolução perante o seu “Eu divino”, mas ele também traz a
afirmação de Krishna estaria em todos nós sem que estivéssemos necessariamente em
Krishna. Assim, a estrofe citada rememora e reescreve dois trechos distintos das várias
respostas que Krishna forneceu a Arjuna:
As três qualidades da minha natureza: a harmonia, a atividade e a inatividade,
as quais também se manifestam como a luz da verdade, o desejo da paixão e
as trevas da ignorância, em Mim têm o princípio e estão em Mim, mas Eu não
dependo delas. ​(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006, p. 87)

Todo êste universo, tanto em suas partes, como em sua totalidade, é uma
emanação minha, e Eu o penetro com minha natureza invisível, Eu que sou o
Imanifesto.
Todas as coisas de Mim provêm, mas Eu não tenho origem nelas; em Mim
estão todas as coisas, mas Eu — em minha Divindade — não estou
circunscrito por elas.
Não penses que tôdas as coisas sejam Eu mesmo. Eu sou o sustentador de
tudo, penetro tudo, mas não sou limitado nem encerrado nisso.
(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006, p. 102)

Ainda sobre tal questão, é bem elucidativa a nota de rodapé presente na página 87, a
qual diz que “Deus é superior à natureza; a natureza não é Deus, mas é uma manifestação da
força Divina. Deus está na natureza, mas não se limita a ela.” ​(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006)

Chegamos, agora, a uma importante estrofe da canção “Gita”, dada a sua


intertextualidade ficar bem menos sutil, ao falar da “letra A”. Vejamos:
Das telhas eu sou o telhado / A pesca do pescador / A letra A tem meu nome /
Dos sonhos eu sou o amor (SEIXAS; COELHO, 2019).

E como se pode ver no livro, tal letra “A” tem muito a ver com Krishna:
“Das letras, sou o A; nas palavras a conjunção. Eu sou o tempo perdurável e
Aquêle cuja face se volta para tôdas as partes.” ​(BHAGAVAD-GÎTÂ...,
2006)

Outro trecho, sobre “AUM”, reforça-o, por este conter, obviamente, a referida letra:
AUM é o símbolo do Ser Supremo. A simboliza o Criador ou Pai; U, o
Conservador, Salvador ou Filho, e M, o Destruidor, Renovador ou Espírito
Santo.” (BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006)

Na continuação da letra de “Gita”, encontramos as antepenúltima e penúltima estrofes


com comparações de mesmo tipo, semelhantes entre si e, portanto, as analisaremos em
conjunto:
Eu sou a dona de casa / Nos pegue-pagues do mundo / Eu sou a mão do
carrasco / Sou raso, largo, profundo
Eu sou a mosca da sopa / E o dente do tubarão / Eu sou os olhos do cego / E a
cegueira da visão (SEIXAS; COELHO, 2019).

Dadas tais possibilidades comparativas, e só restando-nos mais uma estrofe a analisar,


vejamos uma longa fala de Krishna que em muito se assemelha ao estilo de associações
usadas na canção, a fim de esgotarem-se todas as possíveis referências encontradas no livro:
Acima de Mim, não há nada. Todos os objetos do universo dependem de
Mim e por Mim são sustentados, assim como as pérolas dependem do fio que
passa por elas tôdas, unindo-as e sustentando-as.
Eu sou o líquido da água; Eu sou a luz do sol e da lua; Eu sou a sílaba sagrada
AUM; Eu sou o cântico dos livros sagrados; Eu sou a harmonia dos sons que
vibram no éter; Eu sou a virilidade dos homens.
Eu sou o perfume da terra e o esplendor do fogo; Eu sou a vida de todos os
vivos; Eu sou yoga dos yogis, a santidade dos santos.
Eu sou a semente eterna e imortal de todos os sêres. Eu sou a sabedoria dos
sábios, a razão dos racionais, a glória dos gloriosos, a nobreza dos nobres.
Eu sou a força dos fortes, livres de toda avidez e paixão. Eu sou o amor puro
em todos os sêres, que não pode ser proibido por lei alguma.
(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006, p. 86-87)

Por fim, chegamos à derradeira estrofe, e talvez a mais impactante delas, vez que
funciona quase como um refrão, dadas as repetições de seus penúltimo (duas vezes) e último
verso (três vezes). Ei-la:
Mas eu sou o amargo da língua / A mãe, o pai e o avô /O filho que ainda não
veio / O início, o fim e o meio /Eu sou o início, o fim e o meio (SEIXAS;
COELHO, 2019).

Nessa última estrofe, sendo Ele, por exemplo, as várias gerações de uma família,
incluindo-se aqueles ainda não nascidos — passado, presente e futuro, percebe-se — mais
uma vez refere-se o Krishna da canção a ser ele “O TODO”, na concepção mesma d’O
Caibalion (1978). E, assim, Raul Seixas e Paulo Coelho resolveram encerrar a canção
magnanimamente, com “Eu sou o início, o fim e o meio”, uma afirmação que remete
diretamente a Krishna, quando este diz que “de tôda a criação, Eu sou o princípio, o meio e o
fim. Das ciências, sou a ciência do Espírito e o verbo dos oradores.” (BHAGAVAD-GÎTÂ...,
2006, p. 115) Ou ainda melhor...
Eu, ó príncipe! sou o Espírito que reside na consciência de todos os sêres, e
cujo reflexo é conhecido por todos como o "Eu" (ou Ego). ​Eu sou o
princípio, o meio e o fim de tôdas as coisas. ​(grifo nosso)
(BHAGAVAD-GÎTÂ..., 2006, p. 113)
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encerrada esta análise, a qual embasou-se na Linguística Textual, pode-se concluir
que há todo sentido em fazer-se a relação de “intertextualidade intergêneros” (KOCH;
ELIAS, 2015) entre a letra de “Gita” (SEIXAS; COELHO, 2019) e os livros Bhagavad-Gîtâ
(2006) e O Caibalion (1978). Até porque tal associação já foi assumida pelos próprios autores
da canção, a exemplo do que disse claramente Raul Seixas, em vídeo, logo antes de ir ao ar o
videoclipe de Gita pela primeira vez, programa Fantástico, da Rede Globo:
“Esse fenômeno mágico. Esse interesse súbito, vamos dizer assim, por
essa magia, que está pintando agora, como o filme O Exorcista. Esta
coisa toda está sendo considerada causa, quando na realidade é um
efeito. E a música Gita, que eu fiz agora, coloca bem isso. Ela desperta
em cada um o que a pessoa é. O bem e o mal como sendo uma coisa
só. E desperta na pessoa Deus como um todo.” (SOUZA, 2013)

 
 
 
 
 
 
5. REFERÊNCIAS
100 Maiores Músicas Brasileiras. In: ROLLING STONE BRASIL (São Paulo).
Rolling Stone. São Paulo: Spring Publicações, 9 dez. 2009. Disponível em:
https://rollingstone.uol.com.br/edicao/37/as-100-maiores-musicas-brasileiras/. Acesso em: 23
nov. 2019.
30 anos sem Raul Seixas: quais foram as 10 músicas mais buscadas do Maluco
Beleza?: O artista morreu no dia 21 de agosto de 1989, aos 44 anos, deixando um rico legado
para o rock nacional. ​In:​ ROLLING STONE BRASIL (São Paulo). Rolling Stone. São Paulo:
Spring Publicações, 21 ago. 2019. Disponível em:
https://rollingstone.uol.com.br/noticia/30-anos-sem-raul-seixas-confira-10-musicas-de-maluc
o-beleza-mais-buscadas-nos-ultimos-anos/. Acesso em: 23 nov. 2019.
BHAGAVAD-GÎTÂ: A mensagem do mestre. Tradução: Francisco Valdomiro
Lorenz. 22. ed. São Paulo: Pensamento, 2006. 180 p. ISBN 978-85-315-0058-9.
ECHEVERRIA, Regina. Gente do século - Raul Seixas: O Maluco Beleza. São
Paulo: Editora Três, 1999. 96 p. ISBN 85-7368-525-5.
INDURSKY, Freda. O texto nos estudos da linguagem: especificidades e limites.
Separata de: ORLANDI, Eni P.; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy (org.). Introdução às
ciências da linguagem - Discurso e textualidade. 3. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.
p. 37-87. ISBN 97885-7113-227-6.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do
texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2015. 216 p. ISBN 978-85-7244-327-2.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. O Brasil da Nova Era. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2000.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SEIXAS, Raul. COELHO, Paulo. Gita. Disponível em:
https://www.vagalume.com.br/raul-seixas/gita-letras.html. Acesso em: 23 nov. 2019.
SOUZA, Lucas Tomás. Nas trilhas de um “Maluco Beleza”: mapeando a construção
de um ídolo. Música Popular em Revista, Campinas, SP, ano 2, v. 1, p. 152-174, dez. 2013.
Disponível em: https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/muspop/article/view/120.
Acesso em: 24 nov. 2019.
SPOTIFY AB. Raul Seixas. [S. l.], 23 nov. 2019. Disponível em:
https://open.spotify.com/artist/7jrRQZg4FZq6dwpi3baKcu. Acesso em: 23 nov. 2019.
TRÊS INICIADOS. O Caibalion: Estudo da filosofia hermética do Antigo Egito e da
Grécia. Tradução: Rosabis Camaysar. 1. ed. São Paulo: Pensamento, 1978. 128 p. ISBN
978-85-315-0071-8.

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