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ANOTACÕES DE LEITURA

EDINGER, Edward. ANATOMIA DA PSIQUE. O Simbolismo Alquímico na


Psicoterapia.
São Paulo: Cultrix, 2017
Nery Reiner

II. CALCINATIO FOGO

O processo químico da calcinação está ligada ao intenso aquecimento de um


sólido, retirando dele a água e os demais elementos possíveis de volatização,
restando só um pó seco. O exemplo clássico da calcinatio é o aquecimento da
pedra calcária ou do hidróxido de cálcio para produzir a cal viva. Se
acrescentarmos água à cal viva gerará calor e a água ferverá. A calcinatio é a
operação do fogo. Jung afirmou que o fogo simboliza a libido. Em The Twelve
Keys, de Basil Valentine, encontramos a seguinte receita de calcinatio:

Toma um lobo feroz.


Dá-lhe o corpo do rei morto.
Quando o lobo tiver devorado o rei, queima-o totalmente, numa grande fogueira.
Só sobrarão as cinzas. Assim o rei será libertado. Queima-o por três vezes. O
leão (o fogo) terá suplantado o lobo e nada mais encontrará nele para devorar.
Dessa maneira, nosso corpo terá se tornado apropriado para o primeiro estágio
de nosso trabalho.
Resumindo:
Morte do rei. Tempo de crise e de transição. O regicídio é o crime mais grave.
Psicologicamente, significa a morte do princípio que rege a consciência, a mais
elevada autoridade da estrutura do ego. Desta forma, a morte do rei será
acompanhada por uma dissolução regressiva da personalidade.
Quando o lobo raivoso devora o corpo do rei, significa que o ego foi devorado
pelo desejo faminto.
Morte do rei = morte do ego.
Lobo = desejo faminto. Mas o lobo alimenta o fogo. Então:
Desejo = fogo. O desejo consome o fogo. O desejo consome a si mesmo. Depois
da descida ao Inferno, o ego (rei) renasce como a fênix, num estado de
purificação. A repetição tríplice, assim como aparece nos contos de fadas,
significa a consumação de um processo temporal. Quando o texto fala que o leão
terá suplantado o lobo, significa que o leão = fogo que consome o lobo. O leão é
o “sol inferior” = o princípio masculino. Então: sol = rei = ouro. Isto significa a
descida da consciência ao reino animal, tendo que suportar as energias do
instinto que seria a purificação ou refino do ouro.
No texto há três níveis. De baixo para cima teríamos:
1. Nível do lobo
2. Nível do fogo = leão
3. Nível do rei
Se equipararmos:

• o lobo = desejo
• o leão = impulso egocêntrico do poder
• o rei = consciência objetiva, chegaremos a um paralelo próximo
aos estágios dos instintos. Segundo Esther Harding, seria:

• o autos
• o ego
• o Si-mesmo

Isso significa camadas estruturais residuais da psique adulta que podem ser
reativadas. Alimentar o lobo com o rei + a consumação do lobo pelo fogo = leão,
+ o renascimento do rei a partir do fogo, significariam a regressão do ego ou do
poder pessoal ao estágio “autos” original de desejo auto - erótico. Segue-se o
estágio do ego ou do poder pessoal e, finalmente, o retorno de uma consciência
objetiva refinada ou aumentada.
A natureza da substância a ser calcinada recebe vários nomes:

• lobo voraz
• sedimento negro
• dragão
• poderoso etíope

Esses termos dizem que a calcinatio se dá no lado primitivo da sombra que


acolhe o desejo faminto e instintivo e é contaminado pelo inconsciente. No
processo, o fogo vem da frustração dos desejos instintivos. O sofrimento que
vem do desejo frustrado é um aspecto do processo de desenvolvimento. Depois
de sofrer uma terrível frustração, um homem teve o seguinte sonho:

O sonhador se acha num local cavernoso, talvez subterrâneo. Por uma porta surgem poderosas
massas de brancas e quentes de pedra calcária que rolam e passam por ele. O lugar fica tomado
pela fumaça e pelo fogo. Ele procura uma saída, mas sempre que encontra uma porta, encontra
ondas de fumaça que o fazem retroceder. Quando acorda, o sonhador associa seu sonho com
o inferno ou com a fornalha de Nabucodonosor II.

No sonho, a pedra calcária está ligada ao processo de ser transformada na cal


viva por meio da calcinatio. Quanto a Nabucodonosor II, rei da Babilônia,
precisamos nos lembrar que ele ordenava a todas as pessoas que se
prostassem diante de sua imagem de ouro, numa atitude de adoração. Porém,
Sadraque, Mesaque e Abede – Nego recusaram-se a fazê-lo. Cheio de ódio,
Nabucodonosor II, ordenou que os jogassem na fornalha abrasadora. Mas eles
ficaram ilesos. Ficaram em meio ao fogo, quatro homens, tendo o quarto homem
“aspecto de um filho dos deuses”. (Daniel, 3:25; J.B.).
Podemos resumir assim:
1. A raiva de Nabucodonosor = fornalha abrasadora.
2. Nabucodonosor = o poder, a autoridade arbitrária do ego inflamado, que
passa pelo cacinatio, quando fica frustrado ao ver os homens saírem
ilesos do fogo.
3. Nabucodonosor = ao rei morto da citação alquímica que serve de alimento
ao lobo e depois é calcinado.
É preciso notar que na fornalha os três homens se transformam em quatro. É
uma alusão à totalidade do Si - mesmo, que emerge em meio à frustração das
exigências de poder do ego.
4. A fornalha de Nabucodonosor II exprime uma situação arquetípica. É o
que encontramos quando desafiamos uma autoridade arbitrária, seja
interior ou exterior. Passar ou não por uma calcinatio depende dos
motivos que nos levam a agir: motivos do ego ou do Si – mesmo. A
imagem da invulnerabilidade do fogo indica uma imunidade à identificação
com o afeto. A experiência da psique arquetípica tem esse efeito graças
ao fato de ampliar e aprofundar a consciência do ego. Por isso, há
menores possibilidades de identificações emocionais pessoais ou dos
outros. Por outro lado,um ego fraco é vulnerável ao ser consumido pelo
encontro com um afeto intenso.

O fogo da calcinatio é purgador, embranquecedor. Atua sobre a matéria negra,


a nigredo, tornando-a branca. A calcinatio é o único meio correto e legítimo de
purificar nossa substância. Isso a liga ao simbolismo do purgatório que é uma
versão teológica da calcinatio projetada na vida depois da morte. Agostinho não
conhecia a doutrina do purgatório mas fez observações importantes que seriam
aplicadas posteriormente ao fogo purgatório.
1. O fogo do purgatório é causado pelas frustrações da luxúria, do desejo,
do amor possessivo, isto é, pela concupiscência.
2. Podemos sobreviver a esse fogo caso tenhamos um forte fundamento em
Cristo. Psicologicamente falando, isso significa que o desenvolvimento
psicológico será promovido pela frustração dos desejos de prazer, de
poder, desde que a pessoa tenha uma relação essencialmente viável com
o Si – mesmo, simbolizado pelo Cristo.
Em vários textos, associa-se Cristo com o fogo. Em Lucas, 12:49 (RSV), disse
Cristo: “Vim lançar fogo na terra; e não quero senão que ele acenda”.
O pensamento místico apresenta dois tipos de fogo. Os estoicos falavam de um
fogo terrestre e de um fogo etéreo, correspondente ao NOUS, o divino LOGOS,
aproximando-se da concepção cristã, posterior do Espírito Santo. No milagre de
Pentecostes (Atos, 2:3), o Espírito Santo vem como língua de fogo.
Nos povos primitivos, o fogo era o principal método de sacrifício aos deuses. O
que era sacrificado pelo fogo tornava-se sagrado. O que se queima transforma-
se em fumaça sobe às regiões superiores, aos deuses, através da sublimação.
Assim também pensavam os gregos e os judeus.
Na Índia, Agni é o deus hindu do fogo. Para os hindus, o fogo é um meio de
comunicação com os deuses e com as esferas celestes.
Muitos mitos falam da imortalidade pelo banho de fogo. A imortalidade é uma
qualidade dos arquétipos. Assim, o significado psicológico do banho de fogo da
imortal idade será o estabelecimento de um vínculo entre o ego e a psique
arquetípica, tornando aquele (ego) consciente de seu aspecto transpessoal, ou
eterno ou imortal. O produto final da calcinatio é uma cinza branca que
corresponde ao “xisto” branco de vários textos alquímicos. Representa a albedo
ou fase de embranquecimento, que admite associações paradoxais:

Cinzas = desespero, pranto ou arrependimento.


Cinzas = valor supremo, o alvo da obra, da opus.

O “xisto” branco é considerado o corpo glorificado. A causa da transformação


das cinzas do fracasso na coroa da vitória é explicada pelo fato de a cinza ser,
alquimicamente, equivalente ao sal. Jung em Mysterium Conunctionis, CW 14,
explica que o sal simboliza o EROS, aparecendo sob dois aspectos:
1. Como amargor, lágrimas, decepção.
2. Como sabedoria = consolo de qualquer dor psíquica.
Onde há amargor, falta sabedoria. Onde há sabedoria não pode haver amargor.
O sal, portador de amargor e sabedoria é atribuído à natureza feminina.
A calcinatio é um processo de secagem. A Psicoterapia envolve também a
secagem de complexos inconscientes que vivem na água. O fogo ou intensidade
emocional necessária para esta operação reside no próprio complexo consciente
mediante o compartilhamento com outra pessoa. Os pensamentos, ações e
lembranças que trazem vergonha, culpa ou ansiedade precisam ser expressos
pela palavra. O afeto liberado se transforma em fogo capaz de secar o complexo
e purificá-lo de sua contaminação inconsciente. A frustração do desejo luxurioso
ou concupiscência é a principal etapa da calcinatio. De início, o desejo, exigência
do inconsciente, tem que ser identificado. A premência instintiva que diz “eu
quero” ou “eu faço jus a isso” deve ser aceito pelo ego. Não haverá uma
calcinatio distinta da autoflagelação masoquista, enquanto o material não estiver
à mão. A calcinatio só ocorrerá através do aquecimento interior do corpo.
O terapeuta pode evocar a calcinatio pelas atitudes e reações que frustem o
paciente. Isso é um procedimento muito arriscado porque poderá provocar
negatividade destrutiva no paciente. A calcinatio só deve ocorrer através do
aquecimento interior do corpo, através de seu próprio calor, pela auto-calcinatio.
O terapeuta deve trabalhar com o material próprio do paciente, promovendo a
frustração de um desejo apenas quando a tendência interior de desenvolvimento
contenha a negação desse desejo. A partir de sua umidade radical. São
gotículas de inconsciência que acompanham as energias que emergem. As
energias da psique arquetípica surgem de início em estado de identificação com
o ego, aparecendo como desejos de prazer e de poder para o ego.
A calcinatio tem um efeito purgador ou purificador. A substância é purgada a
partir de sua umidade radical. São gotículas de inconsciência que acompanham
as energias que emergem. As energias da psique arquetípica surgem de início
em estado de identificação com o ego, aparecendo como desejos de prazer e de
poder para o ego. O fogo da calcinatio purga essas identificações em impulsos
da raiz ou umidade primordial, deixando o conteúdo em sua condição eterna ou
transpessoal, restaurando sua energia e seu funcionamento próprios. A
calcinatio produz uma imunidade ao afeto e uma habilidade para ver o aspecto
arquetípico da existência. Quando nos relacionamos com o aspecto transpessoal
de nosso ser, experimentamos o afeto como fogo etéreo (Espírito Santo) e não
como fogo terrestre – a dor do desejo frustrado. Jung explica isso: “Nessa
transformação, é essencial afastar os objetos dos demônios do animus ou da
anima. Eles só se preocupam com objetos quando você se permite a
autoindulgência. Concupiscentia é o termo na igreja. (...) O fogo do desejo deve
ser combatido. Isso acontece no budismo, no bramanismo, no tantrismo, no
catolicismo. Também importa à psicologia”.
Quando o homem se entrega ao desejo, este se volta para o céu ou para o
inferno. O homem dá um objeto à anima. Esse desejo vai para o mundo. Não
fica no interior do ser humano. Mas se o homem puder dizer: “Sim, eu o desejo,
mas não sou obrigado a tê-lo. Posso renunciar a esse desejo”. Aí não há chances
para o animus ou para a anima. Caso contrário, o homem será governado pelos
seus desejos e será possuído.
Segundo Jung, se o homem colocar o animus ou a anima numa garrafa, ficará
livre da possessão, embora sofra interiormente. Uma pedra crescerá na garrafa.
Quando essa atitude se tornar um fait accompli, isto é, um fato consumado, a
pedra se tornará um diamante.
FIM Dia 25.03.2020

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