Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Goiânia
2010
CLEITON RICARDO DAS NEVES
Dissertação apresentada ao
Programa de pós-graduação em
História da Universidade
Federal de Goiás, como
requisito para a obtenção do
grau de mestre em história.
Área de Concentração:
Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de Pesquisa:
Identidades, Fronteiras e
Culturas de Migração.
Orientador: Prof. Dr. Eugênio
Rezende de Carvalho.
Goiânia
2010
Cleiton Ricardo das Neves
INTRODUÇÃO.....................................................................................................9
1. O CONTEXTO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO DO PENSAMENTO DE
MANOEL BOMFIM............................................................................................18
1.1 O Brasil e a América Latina no Final do Século XIX...............................18
1.2- Manoel Bomfim em seu Contexto: vida e obra......................................26
2. REPRESENTAÇÕES DEPRECIATIVAS DE RAIZ EUROPEIA SOBRE A
AMÉRICA LATINA: ORIGENS E REFLEXOS DAS TESES SOBRE A
HIERARQUIA RACIAL E A MESTIÇAGEM.....................................................39
2.1 Georges- Louis Leclerc Buffon................................................................40
2.2 Corneille De Pauw......................................................................................44
2.3 Hegel e a Imaturidade da América...........................................................47
2.4 Darwinismo Social.....................................................................................49
3. O “PARASITISMO SOCIAL” DE MANOEL BOMFIM: OS MALES DA
AMÉRICA LATINA ORIGINÁRIOS DE UM “PASSADO
FUNESTO”........................................................................................................56
3.1 Parasitismo e Degeneração......................................................................57
3.2 As Nações Colonizadoras da América do Sul........................................60
3.3 Efeitos do Parasitismo sobre as Novas Sociedades..............................64
3.4 Efeitos Devidos à Tradição e à Imitação.................................................71
3.5 Revivescência das Lutas Anteriores.......................................................73
4- A IDENTIDADE “MESTIÇA” DE MANOEL BOMFIM..................................75
4.1- O indígena.................................................................................................77
4.2- O negro......................................................................................................80
4.3- O ibérico....................................................................................................81
4.4- A mestiçagem...........................................................................................82
CONCLUSÃO....................................................................................................91
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................94
RESUMO
4
A lista completa de suas publicações encontra-se no capítulo primeiro e, ao final, na bibliografia.
americana. É neste capítulo que é analisado com mais detalhamento o
conceito de parasitismo social, um conceito-chave da interpretação que Bomfim
faz da América Latina, denunciando suas conseqüências nefastas para o futuro
latino-americano. Tais conseqüências negativas seriam o que deveria ser
reparado pelo seu projeto identitário. Portanto, na obra A América Latina: Males
de Origem se percebe uma batalha de representações, batalha na qual a obra
se insere como sendo mais uma representação do passado latino-americano,
só que com a pretensão de libertar e incentivar a América Latina a trilhar um
caminho no qual todas as suas potencialidades pudessem ser efetivadas
plenamente.
5
A Doutrina Monroe foi promulgada pelos Estados Unidos em 1823, pelo então presidente James Monroe,
e primava por certo protecionismo às nações americanas contra possíveis investidas bélicas do Velho
Continente sobre suas antigas colônias. No entanto, passou a ser uma ação unilateral, interpretada a
posteriori (início do século XX, em 1904, com o corolário Roosevelt) como uma possibilidade de
intervenção, inclusive militar, para garantir seus interesses político-econômicos em toda a América Latina.
incorporarem ao discurso civilizatório europeu. Em tal aspecto, os intelectuais
tiveram um papel predominante, pois construíram representações de seus
países e de seus habitantes, nas quais os elementos nativos ou bárbaros foram
introduzidos no discurso, por parte de alguns, ou foram aniquilados
discursivamente, por outros. Aos que fazem parte deste último grupo, no lugar
do elemento nativo, base originária do novo homem, o mestiço foi colocado o
“homem ideal”, de influências europeias e brancas, mais especificamente
anglo-saxônicas, para redimir o atraso e a degeneração causados pela
influência da raça indígena e negra. Poucos foram os pensadores que
consideraram o elemento mestiço como partícipe da nação. Raros também
foram os intelectuais que não pensaram a América Latina a partir do conceito
simplesmente de raça, entre os quais esteve Manoel Bomfim. Ele foi um
intelectual que defendeu a ideia de cultura ao invés de raça, isto porque, para
Bomfim, não existiria uma raça superior a outra, mas sim estágios distintos de
civilização.
Na Europa, discutia-se o seu papel civilizador, ou mesmo a sua missão
civilizatória em relação aos povos “atrasados” que viviam na América. Neste
aspecto, percebe-se como a Europa, em sua relação com os outros povos não
europeus, foi definindo sua identidade, ao mesmo tempo em que definia
também a identidade daqueles considerados, neste caso, atrasados e
bárbaros, incluindo os latino-americanos. Esta discussão é interessante e foi
exposta com maestria por Edward Said, em seu livro Cultura e imperialismo
(2005), no qual o autor analisa os discursos das nações imperialistas, dentre
elas os Estados Unidos.
Enquanto ocorrem apenas algumas iniciativas espaças de se pensar a
América Latina como um conjunto de povos com identidade continental, tem-se
uma quantidade maior de intelectuais engajados na temática nacionalista. Este
ponto indica um caminho que não foi percorrido por muitos pensadores na
América Latina, ou seja, o de relacionar uma identidade nacional com uma
identidade regional, latino-americana. Bomfim foi um dos poucos brasileiros a
Assim se expressava o presidente dos EUA em 1904 “a insistência no erro, da parte de alguma nação
americana, poderia exigir a intervenção de outra nação civilizada” fazendo com que a “fidelidade dos
Estados Unidos à Doutrina Monroe nos leve a exercer um poder de polícia internacional” (ROOSEVELT.
Apud: SCHILLING, 2002, p.42)
tentar tal ousadia e o resultado é, além de seu A América Latina: males de
origem, sua trilogia O Brasil na América, O Brasil na História e O Brasil Nação.
Neste aspecto, será observada a articulação entre o micro e o macro,
pois Brasil e América Latina tinham muitas diferenças, segundo o próprio
Bomfim, mas também havia similitudes que possibilitariam aos representantes
da América Latina lutar para serem inseridos não somente no discurso, mas
também, e principalmente, na vida sócio-político-econômica mundial.
Para pensar a identidade latino-americana, Bomfim fez o que Jorge
Larrain Ibañez afirmou ser um processo de associação de construção
identitária, pois
6
Estes autores serão analisados pormenorizadamente no capítulo 2, dedicado à análise das
ideias depreciativas da América Latina.
ao futuro, futuro este entendido do ponto de vista do progresso, com a figura do
mestiço, símbolo da miscigenação entre raças distintas, em seu meio.
Algo de suma importância para o presente trabalho é vislumbrar como a
discussão em torno da mistura racial, bem como suas possíveis
consequências, estavam em voga no final do século XIX e início do século XX.
Esta discussão pode ser percebida quando Schwarcz (1993, p.45) afirma que
7
A comunidade de Canudos situava-se no nordeste da Bahia e fora formada no ano de 1893
por Antonio Conselheiro, que se opunha às “leis seculares do novo regime, como a separação
entre a Igreja e o Estado e a introdução do casamento civil. Seus seguidores foram acusados
de fazer parte de uma conspiração internacional com o objetivo de restaurar a monarquia, o
que serviu de justificativa para o massacre da comunidade” por parte do aparato militar da
República que se encerrou em 1897. (VENTURA, 2000, p. 332)
8
A Escola de Recife foi um movimento intelectual e cultural que floresceu dentro da faculdade
de direito de Recife a partir de 1871 e se caracterizou por pensar a mestiçagem e o caráter
nacional a partir da influência de postulados europeus como o positivismo e o darwinismo
social, dentre outros.
naturalismo e o cientificismo na poesia e no romance. Estas formas de
interpretação e explicação da realidade foram adaptadas ao contexto brasileiro,
“tendo como horizonte de referência o debate sobre os fundamentos de uma
cultura nacional em oposição aos legados metropolitanos e à origem colonial.”
(SCHWARCZ, 1993, p.28)
A Escola ou Faculdade de Direito de Recife foi transferida de Olinda em
1854 e, a partir de então, teve uma enorme influência no desenvolvimento das
reflexões acerca das raças e de sua influência nos destinos do país, pois,
imbuídos das reflexões desenvolvidas no século XVIII por naturalistas
europeus como Buffon e De Pauw, consideravam as raças não-brancas como
inferiores e degeneradas. Neste aspecto, observa-se que, no campo
intelectual, o debate girava em torno da mestiçagem, defendendo-a ou
refutando-a. Esse era o assunto que ocupava as mentes pensantes do país
naquele momento.
Uma das principais saídas encontradas por quem defendia a
incorporação à nação de elementos supostamente inferiores indígenas e
negros era a mestiçagem como procedimento de eugenia. Esta seria o
elemento que homogeneizaria o homem brasileiro, amenizando as influencias
das raças inferiores e potencializando as características da raça branca. Um
dos teóricos brasileiros que defendiam esta posição e que fazia parte da Escola
de Recife era Silvio Romero (1851-1914) 9 , que afirmava que haveria uma
desigualdade natural entre os homens e, mais do que isso, defendia a ideia de
um determinismo biológico e etnográfico.
No entanto, este posicionamento de Romero só perdurou até 1900,
quando ele mesmo mudou radicalmente sua posição, condenando, a partir de
então, toda e qualquer forma de miscigenação. Surgiu, assim, o pensamento
que o caracterizou em maior proporção, que foi a defesa do arianismo ortodoxo
em detrimento da mestiçagem, que passou a ser vista por Romero como
degradação racial.
9
Silvio Romero foi um dos representantes da Escola de Recife, um intelectual que contribuiu
para o debate de idéias sobre a miscigenação, bem como a viabilidade do Brasil enquanto
nação soberana e próspera.
Para melhor compreender a reflexão de Manoel Bomfim sobre a América
Latina se faz necessário utilizar sua biografia, isto porque a biografia, não
somente pode, como via de regra o faz, elucida as ideias contidas nas obras, e
isto em diálogo com o contexto no qual o autor está inserido. O uso do recurso
biográfico tem sido utilizado em larga escala e é defendido por inúmeros
autores, como por exemplo, Ronaldo Vainfas em seu livro Micro-história: os
protagonistas anônimos da história (2002), além do próprio Bomfim, como
defendeu em seu livro Pensar e dizer: Estudo do symbolo no pensamento e na
linguagem (1923). Neste livro ele afirmou que para se compreender bem o que
se está lendo, inclusive cada palavra, é necessário verificar as
interdependências, pois elas são formais, explícitas e características na
atividade mental de cada consciência. Dessa forma,
10
Binet, pedagogo e psicólogo francês, foi o criador do primeiro teste psicológico de avaliação
da inteligência.
11
O jacobinismo pode ser traduzido nesta frase da historiadora Suely Robles Reis de Queiroz,
que diz: "Uma sociedade laica, anti-clerical, sem o bacharelismo pedante e pontificador, onde
os grupos urbanos tivessem maiores oportunidades. Um Estado republicano, nacionalista,
voltado para as próprias fronteiras e conduzido por um governo forte – eis a concepção
jacobina” (QUEIROZ. Apud: OLIVA, 1998, p. 90)
instrução pública, marcam a obra de Bomfim. Sua caracterização como
jacobino, guardadas as interpretações pessoais que ele dá a alguns aspectos
do ideário jacobino, fica demonstrada por José Maria Oliveira Silva (1991), em
estudo sobre a obra de Bomfim e sua inserção no pensamento radical.
Na política, além da militância jacobina e da participação, em 1903, na
fundação de um partido operário independente, Manoel Bomfim foi deputado
federal por Sergipe, eleito em 1907. O Estado acabava de viver uma grande
comoção provocada pela revolta que tentara derrubar a primeira oligarquia
republicana. Em 1906, Sergipe sofreu intervenção do Governo Federal para
reposição do Governo oligárquico deposto. Sucedeu-se um acordo para a
pacificação do Estado, mediado pelas grandes forças da política nacional. O
nome de Manoel Bomfim como candidato à Câmara fez parte dos itens
negociados por Pinheiro Machado – senador gaúcho que à época liderava a
política nacional – e teve o patrocínio local de Oliveira Valadão, chefe do
jacobinismo sergipano. Na Câmara, Bomfim teve uma atuação pouco marcante
e não conseguiu reeleger-se em 1909. Bomfim continuou, entretanto, dedicado
à Educação, ao Laboratório de Psicologia e à imprensa, participando
ativamente da vida intelectual carioca. Faleceu vítima de câncer em 1932, no
Brasil, após longo sofrimento. Sua vida compreendeu, assim, um período bem
específico da História do Brasil: viveu 32 anos no século XIX; portanto,
vislumbrou a abolição e a proclamação da república, ao mesmo tempo em que
viveu 32 anos no século XX e viu de perto a Semana de Arte Moderna de 1922,
bem como a revolução, segundo Bomfim malograda 12 , de 1930.
Bomfim foi versátil e escreveu sobre diversas áreas do conhecimento,
como, por exemplo, Medicina, Psicologia, Educação, História, Sociologia e
Literatura. E foi através de sua obra escrita, na qual se destacam os títulos A
América Latina: males de origem (1905), O Brasil na América: caracterização
da formação brasileira (1929), O Brasil na História: deturpação das tradições:
Degradação Política (1930) e O Brasil Nação: realidade da soberania brasileira
(1931), que sua contribuição para a construção de um Brasil com identidade
12
Segundo Bomfim, o que se chama de revolução de 1930 não passou de uma agitação
política que, em suas palavras, “por mais profunda que pareça, não realiza nenhuma das
condições de uma legítima revolução renovadora, pois não traz substituição de gentes, nem de
programas, nem de processos.” (BOMFIM, 1931, p. 581)
própria torna-se mais visível, isso apesar de todo o silêncio e anonimato que a
tem marcado ao longo de quase todo o século XX.
Manoel Bomfim veio da geração dos homens que usaram a literatura
como missão ou da geração dos homens de ciência, aqueles que
recepcionaram as novas ideias e, à luz dessas idéias, passaram a olhar o
Brasil. Esses intelectuais procuraram enfrentar o desafio de continuarem a falar
a linguagem da ciência da época, mesmo que ela não se adequasse à
singularidade do objeto. Bomfim desafiou paradigmas e falou do Brasil sempre
com esperança. Foi contemporâneo de figuras como Euclides da Cunha, Olavo
Bilac e Machado de Assis, com quem procurou dialogar em seus trabalhos.
Sílvio Romero produziu um livro intitulado A América Latina: análise do livro de
igual título do Dr. M. Bomfim (1906), somente para criticá-lo. Deixou, portanto,
muito marcada a sua presença no meio intelectual da época, além de
influências identificadas ou declaradas em autores como Gilberto Freyre e
Darcy Ribeiro.
Com Olavo Bilac, Bomfim escreveu uma obra-prima da educação infantil
no Brasil, intitulada Através do Brasil (1910). Neste livro, Bomfim e Bilac
defenderam a ideia de que a educação tem o papel de formação moral e civil
da nação. Ambos estavam ligados à vida intelectual da época, o que pode ser
vislumbrado no fato de Bomfim ter sido convidado por Machado de Assis, mas
não ter aceitado, para fazer parte da Academia Brasileira de Letras, enquanto
Bilac foi co-fundador da academia.
Assim como Bomfim, Bilac foi um profundo crítico do estado e de como
este se mostrava inerte ante o bem-estar da sociedade. Nesta perspectiva,
Bilac afirmou que o governo estava em descompasso com a sociedade e não
proporcionava o verdadeiro progresso advindo de uma educação consistente e
massificadora. No entanto, para Bilac, a ordem no país deveria ser tributária ao
Exército, pois apenas esta instituição seria capaz de restaurá-la e mantê-la.
Mesmo Bomfim e Bilac sendo nacionalistas fervorosos, o
estabelecimento do progresso do país desenvolvia-se com elementos muitas
vezes antitéticos, como é o caso dos militares que, na concepção de Bilac,
eram fundamentais para o restabelecimento e a manutenção da ordem,
enquanto para Bomfim os militares eram justamente os responsáveis pelos
malogros revolucionários, pois interferiam nos destinos políticos do país. Por
ora é necessário apenas reforçar a ideia de que a amizade entre os dois
autores proporcionou excelentes resultados para a educação brasileira. Nas
palavras de Ronaldo Conde Aguiar (2000, p. 269), Olavo Bilac era
13
Grifo do autor.
humanas. Nunca é demais recordar que, nessa época,
Romero vergava-se de angustia e estresse, pois perdera - ele,
um intelectual brilhante, que gastara a vida pensando o Brasil -
a crença de que o país pudesse tão cedo vir a ser uma
verdadeira nação, dominada, como era, por uma maioria de
mestiços. “Só a imigração, povoando de brancos o sul do
Brasil, e depois alastrando-se pelo Norte, poderia reverter
segundo Romero, a tendência, substituindo-se o “exército de
mulatos que nos governa” por brancos educados e cultos.”
14
Tais fontes européias serão trabalhadas pormenorizadamente nos capítulos três e quatro da
presente dissertação.
Apesar de todos os ataques e provocações feitas por Silvio Romero,
Bomfim não se preocupou em revidar; ao contrário, continuou dedicando-se à
interpretação do Brasil.
A bibliografia de Bomfim é vasta e contempla várias áreas do
conhecimento. No entanto, aqui serão listados apenas os livros, não sendo
inseridas, portanto, suas publicações em jornais e revistas, também bastante
significativas. Assim, suas obras são Livro de Composição para o Curso
Complementar das Escolas Primárias (1899), Livro de Leitura para o Curso
Complementar das Escolas Primárias (1901), Compêndio de Zoologia Geral
(1902), Elementos de Zoologia e Botânica Gerais (1904), Das Alucinações
Auditivas dos “Perseguidos” (1904), O Fato Psíquico (1904), A América Latina:
males de origem (1905), Através do Brasil (1910), Obra do Germanismo
(1915), Lições de Pedagogia: teoria e prática da educação (1915), Noções de
Psicologia (1917), Primeiras Saudades (1920), Lições e Leituras (1922),
Crianças e Homens (1922), Livro dos Mestres (1922), Pensar e Dizer: estudo
do símbolo no pensamento e na linguagem (1923), O Brasil na América:
caracterização da formação brasileira (1929), O Brasil na História: deturpação
dos trabalhos, degradação política (1930), O Brasil Nação: realidade da
soberania brasileira (1931) e Cultura e Educação do Povo Brasileiro (1932).
Deixou ainda inacabadas duas obras, intituladas Moral de Darwin e Plástica na
Poesia Brasileira.
De todas as obras de Bomfim, serão destacadas aqui as quatro
principais, e, dentre elas uma que serve de eixo condutor ao seu discurso
latino-americanista. As quatro obras são A América Latina: males de origem, O
Brasil na América: caracterização da formação brasileira; O Brasil na História:
deturpação das tradições; Degradação Política e O Brasil Nação: realidade da
soberania brasileira.
Dar-se-á início pela trilogia de interpretação do Brasil, pois o livro A
América Latina: males de origem será o guia maior, a partir do qual os outros
livros trarão suas contribuições a respeito do discurso identitário latino-
americano defendido por Bomfim.
Em O Brasil na América, Bomfim trabalhou exaustivamente a diferença
entre o Brasil e o restante das nações hispano-americanas, isto porque
acreditava que, à parte a identidade regional latino-americana, da qual o Brasil
também faz parte, cada país tinha suas especificidades e singularidades
historicamente constituídas e foi neste livro que ele buscou justamente fazer o
caminho inverso ao que muitos autores optavam, qual seja, escolheu ir do
macro para o micro e não do micro para o macro. Primeiramente, Bomfim
pensava a América Latina em franco diálogo com a história do Brasil, mas,
neste livro, afunilou a discussão para vislumbrar quais as características que
distinguiam o Brasil do restante da Ibero-América. Nesta obra ele já buscava
elementos que descortinavam a identidade nacional brasileira. Trata-se de uma
história comparativa, baseada nos princípios de identidade e de diferença.
No livro O Brasil na História, Bomfim fez um esforço intelectual no
sentido de relativizar o discurso efetivado pela historiografia oficial. Desse
modo, elegeu alguns interlocutores, dentre os quais o mais conhecido era Adolf
Varnhagem (1816-1878), historiador que escreveu, dentre outros, um livro
intitulado História Geral do Brasil (1854-1857), mas que, segundo Bomfim, foi
uma história a partir da lente lusitana. Neste ponto específico, Bomfim trouxe
uma originalidade interessante, pois, ao contrário de muitos pensadores
brasileiros que cantavam louvores aos colonizadores, ele refutava,
questionava, desmascarava a história do parasitismo ibérico.
Segundo Darcy Ribeiro (2005, p. 16), Bomfim teria desenvolvido
inclusive uma “lusofobia, aliás, iluminada, de tão lúcida e necessária naqueles
tempos em que a tendência era – como continua sendo – a louvação do
colonizador”. Bomfim assim o fez em função de que os ibéricos nunca
quiseram o bem-estar das colônias, a não ser no sentido de que estas
deveriam estar aptas a mandar para a península todas as riquezas que eram
esperadas.
A historiografia que foi intencionalmente revisitada por Bomfim pensava
a história a partir das ideologias dominantes e, nesse sentido, foi fundamental
para desenvolver uma sociedade paradoxal entre dominantes e dominados. A
intenção de Bomfim foi trazer à tona justamente a história dos oprimidos, das
revoluções malogradas, enfim, daqueles que desde o início da colônia tinham
contribuído para a identidade e a cultura nacionais.
Em seu terceiro livro, O Brasil Nação, Bomfim consagrou suas páginas a
analisar as constantes revoluções malogradas pelo espírito conservador
herdado das metrópoles e propôs, por ser um livro de maturidade, uma
revolução nacionalista popular, semelhante a que aconteceu no México no
início do século XX. É neste livro que Bomfim analisou a função da Literatura e
da Poesia 15 como marcadores de intensidade da identidade e da cultura no
Brasil.
Já o livro A América Latina: males de origem servirá de referencial maior
para a discussão identitária, enquanto os livros acima citados complementarão
as ideias desenvolvidas inicialmente no respectivo livro.
No Brasil, Bomfim esteve em contato direto com a abolição dos escravos
(1888) e com a consequente proclamação da república (1889), dois fatos que
deveriam ser considerados fundamentais para a construção da identidade
nacional, nos quais se leva em consideração todos os elementos que estão
inseridos na nação. No caso brasileiro, tem-se os elementos indígena e negro,
que até então estavam excluídos de todos os projetos identitários pensados
para o Brasil e que poderiam sair da condição de apêndices para a de
protagonistas, caso lhes fosse dada tal possibilidade. Por fim, tem-se o
elemento detentor do papel principal, que é o elemento branco ibero-
americano.
No entanto, o que Bomfim viu e registrou principalmente em O Brasil
Nação: realidade da soberania brasileira, de 1931, é que a fase idealista já
havia passado e havia se deparado com o total desprezo em relação à
população negra e indígena e, porque não, a sua mistura – os mestiços – por
parte tanto dos intelectuais quanto dos governantes brasileiros. Prova disso é
que não houve, no ato da abolição, nenhum projeto político-social de
integração desse novo cidadão ao seio da sociedade. O resultado, como pôde
ser observado, foi que muitos preferiram permanecer numa condição servil ao
seu antigo senhor, outros montaram suas comunidades no interior do país,
outros foram para a cidade e, como não foram incorporados como força de
produção, passaram à condição de vadios, sendo, portanto, forçados à
condição de pedintes ou mesmo a promoverem furtos e assaltos, o que
mergulhou a cidade em um caos social.
15
A literatura e a poesia foram fundamentais para o projeto de identidade de Manoel Bomfim,
pois, segundo ele, elas seriam uma espécie de termômetro identitário para se medir o grau de
satisfação e/ou insatisfação social e, a partir de então, expressar com emoção e liberdade as
expectativas do povo.
Bomfim acreditava, no final do século XIX, enquanto idealista positivista,
que a educação seria a saída para o atraso brasileiro, atraso este que seria
consequência de um governo caracterizado pela rapinagem e pela espoliação.
E isso foi detectado por Bomfim a partir de seu diagnóstico da realidade latino-
americana. Seu diagnóstico parte, fundamentalmente, do conceito de
parasitismo social 16 . Para ele, o Brasil, enquanto colônia, foi parasitado pela
metrópole, que sugava todas as suas forças e potencialidades. Tal modelo de
espoliação foi rapidamente implementado pelos novos dirigentes do Brasil no
ato da sua independência. Então, os brasileiros que antes eram usurpados pela
metrópole ultramarina, passaram a ser usurpados pelos governantes formados
em uma cultura dita “de rapinagem e espoliação”, que Bomfim sintetizava no
conceito de “brangantismo” 17 que, grosso modo, poderia ser entendido como
sinônimo de parasitismo social, mais especificamente brasileiro.
No entanto, passados 27 anos da publicação de sua visão idealista da
educação maciça da população, em A América Latina: males de origem,
Bomfim retomou a temática da viabilidade do Brasil enquanto Estado-Nação
com identidade e cultura próprias, só que agora o discurso era menos idealista
e mais realista, para não dizer pessimista, isto porque já se havia vislumbrado
a deturpação das tradições por parte da elite do país ao longo dos anos
referidos.
Segundo Bomfim, o Brasil teria uma tradição guerreira, ou seja, uma
cultura de resistência, a qual permitiu que, ainda que estivesse na condição de
um corpo parasitado, fosse gradativamente construindo sua identidade
nacional. No entanto, tal tradição à qual Bomfim se referia sucumbiu diante de
uma historiografia cunhada numa visão exógena, para não dizer, nas palavras
de Bomfim, “encomendada”, sendo o principal responsável por tal atrocidade
16
Por parasitismo social se entende, segundo Bomfiim, um organismo social, seja uma um
país, uma instituição ou mesmo pessoas que vivem de sugar as forças de organismos
supostamente mais frágeis. E “vivendo parasitariamente, uma sociedade passa a viver às
custas de iniquidades e extorsões; em vez de apurar os sentimentos de moralidade, que
apertam os laços de sociabilidade, ela passa a praticar uma cultura intensiva dos sentimentos
egoísticos e perversos” (BOMFIM, 1905, p. 66).
17
O conceito bragantismo faz referência especificamente à tutela parasitária desenvolvida no
Brasil por parte da monarquia lusitana e tem uma conotação pejorativa para identificar uma
cultura ou forma de pensamento na qual há sempre a opressão de uns sobre outros, cultura
esta que foi, segundo Bomfim, herdada pelos dirigentes do país, mesmo após a destituição da
monarquia.
historiográfica Adolf Varnhagen. Isto pode ser percebido com maior atenção no
livro O Brasil na História 18 .
Segundo José Carlos Reis (2006, p. 186), a obra de Bomfim “é uma
densa revisão da história e da historiografia brasileiras. É uma teoria da história
do Brasil e da América Latina”. Isso mostra a abrangência da obra de Bomfim,
que consegue transitar entre o nacional (Brasil) e o regional (América Latina),
trazendo contribuições tanto à interpretação quanto à proposição de um
modelo de identidade latino-americana. Foi Bomfim, segundo Reis (2006, p.
22), quem “sustentou a força da civilização brasileira contra o olhar
desanimador, aniquilador, de europeus e intelectuais brasileiros aculturados”. É
contra estes olhares europeus, que denegriam a imagem do Brasil e da
América Latina e por consequência a imagem do homem latino-americano
mestiço, que Bomfim se levantou. Alguns desses intelectuais, bem como
sistemas de pensamentos que detratavam a América Latina, serão tratados no
próximo capítulo.
18
Este livro se apresenta como um exercício de desconstrução historiográfica, ao mesmo
tempo em que é um discurso de proposição no qual os nativos e suas histórias, embora tão
heterogêneas, contribuem para o fortalecimento da ideia de coesão social sob uma pátria, no
caso aqui analisado, a identidade do Brasil.
.
2. REPRESENTAÇÕES DEPRECIATIVAS DE RAIZ EUROPEIA
SOBRE A AMÉRICA LATINA: ORIGENS E REFLEXOS DAS
TESES SOBRE A HIERARQUIA RACIAL E A MESTIÇAGEM
19
Gerbi, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
desenvolvidas por Buffon passaram a se referir basicamente à América Latina,
que não havia alcançado tal desenvolvimento, e seu representante, o elemento
mestiço.
20
Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) foi educador, escritor e presidente argentino, fruto
do momento histórico de emancipação e consequente afirmação das antigas colônias ibero-
americanas durante o século XIX. Sua obra, apesar de referir-se à realidade Argentina,
representa o discurso de americanistas identificados com projetos construídos a partir da
noção de superioridade dos anglo-saxões e, por conseqüência, era favorável à tese de
inferioridade do mestiço.
interesse por trás de tais argumentos era o de apropriar-se das riquezas que
tão abundantemente existiam na América Latina e que não podiam ser
extorquidas, se não de forma legitimada. Foi isso que Buffon fez ao afirmar que
“a dimensão do corpo, que parece ser apenas uma grandeza relativa, possui,
entretanto, atributos positivos e direitos reais no ordenamento da natureza: o
grande é tão fixo quanto o pequeno é variável” (BUFFON. Apud: GERBI, 1996,
p. 29). Em suma, o grande é superior ao pequeno, o fixo é superior ao mutável
e isto legitima a dominação do forte sobre o fraco.
Para concluir o pensamento de Buffon, veja-se o que Antonello Gerbi
escreveu sobre sua visão da América:
estão pior ainda que os animais. São tão débeis que ‘o menos
vigoroso dos europeus sem esforço os deitaria por terra numa
luta’; possuem menos sensibilidade, menos humanidade,
menos gosto e menos instinto, menos coração e menos
inteligência, numa palavra, menos tudo. São bebês raquíticos,
irreparavelmente indolentes e incapazes de qualquer
progresso mental. (DE PAUW. Apud: GUERBI, 1996, p. 58)
Como foi dito anteriormente, a deturpação do homem, assim como do
continente americano, tinha como pano de fundo, no século XIX, o interesse
europeu em suas terras e em subjugá-los novamente, num movimento
neocolonizador. Tal interesse fez com que se chegasse à conclusão, segundo
Gerbi (1996, p. 74), de que
Mas tal visão não se apresentava de forma tão simples assim, pois, além
da causa efetiva, interesseira, como a supracitada, há também uma causa
intelectual, que se processa pela total ignorância da realidade sócio-política e
mesmo econômica latino-americana tanto no passado mais remoto, quanto em
sua época (início do século XX). E é essa total ignorância da realidade
histórico-social latino-americana que Bomfim utilizou como arma de defesa,
pois mostrava as fragilidades dos argumentos pseudocientíficos.
Se as teses de Buffon e de De Pauw serviram para legitimar o discurso
imperialista europeu, Hegel se serviu das ideias precedentes e intensificou seu
discurso desfavorável em relação ao novo continente.
Para o elemento natural das Américas, o indígena, não era reservada nem
mesmo uma definição de raça, pois não se encaixava nas características das
raças conhecidas nos velhos continentes, Europa, Ásia e África. Segundo
Hegel, uma das justificativas para essa relativização era que “até a cor da pele
é incerta: brancos, negros e amarelos, sabe-se o que sejam; mas a epiderme
dos americanos é acobreada” e indefinida (HEGEL. Apud: GERBI, 1996, p.
327). Ora, um ser humano em que nem mesmo a cor da pele se podia
mensurar com precisão, segundo Hegel, não podia ser colocado em igualdade
com os seres humanos do Mundo Antigo. Nas palavras de Hegel, que
confirmam o total desprezo pelo Novo Mundo, com tudo o que nele há, as
civilizações americanas, que são rudimentares, “deviam necessariamente
desaparecer com a chegada da incomparável civilização europeia (...), pois
caberá aos europeus fazer florir uma nova civilização nas terras conquistadas”
(HEGEL. Apud: GERBI, 1996, p. 327, 328)
Diante do total desprezo pelos nativos americanos, Hegel se via numa
complicada situação para analisar e emitir seu juízo sobre a participação dos
Estados Unidos nesta América imatura. Mesmo para os Estados Unidos do
século XIX, a análise de Hegel não foi uma das mais favoráveis, apesar dos
primeiros passos em direção à civilização. Segundo Gerbi (1996), Hegel
considerava os Estados Unidos ainda imaturos, não tanto quanto as demais
nações americanas, mas ainda assim imaturos, pois suas estruturas políticas
ainda estavam em fase de consolidação, bem como seu Estado-Nação.
Considerava ainda que houvesse diversos espaços a serem preenchidos no
interior do seu território, o que demandaria uma colonização maciça do oeste.
Os Estados Unidos somente teriam iniciado sua marcha rumo à civilização
porque teriam recebido uma grande quantidade de europeus, que contribuíram
com suas energias ao projeto de criar, no meio do nada, uma nação.
Para reforçar seus argumentos da inferioridade da América e do homem
americano, Hegel começou a formular a hipótese de que os habitantes do
norte, que se consolidaram a partir da matriz europeia, eram superiores, bem
como o clima e a geografia também eram mais propícios para o
desenvolvimento de uma civilização à imagem e semelhança da europeia. Ao
sul do continente ficava de novo, ao qual era reservada toda a espécie de
detração e questionamentos. Desde a geografia até a história, tudo servia para
Hegel como elementos basilares de sua argumentação de que a América e os
americanos são bárbaros e incivilizáveis. Mas agora, o argumento detrator se
dirigia à América do Sul. A antiga contradição entre Velho e Novo Mundo
passa, num segundo momento da fala de Hegel, a uma contradição entre o
norte e o sul do continente americano, sendo que o norte, em função de uma
maior proximidade sócio-cultural com o Velho Mundo, estava em um estágio de
barbárie menor do que os do sul da América. Em suas palavras,
Tal citação indica como, de forma menos feroz, mas nem por isso menos
contundente, Euclides da Cunha interpretava e escrevia sobre os mestiços e
sua degeneração, uma vez que havia incorporado em seu discurso a ideia
presente na teoria das raças superiores de que os brancos eram
inegavelmente superiores aos indígenas e principalmente aos negros.
Foi contra tais discursos e com perspectivas distintas que Bomfim
analisou a história da América Latina e do Brasil. A análise empreendida por
Bomfim visava a identificar no passado histórico latino-americano real a raiz do
atraso, que, no entanto, não estaria ligada às raças, muito menos ao
cruzamento dessas raças, mas sim às alternativas históricas resultantes do
parasitismo social. O parasitismo social é justamente a ferramenta de análise
do passado latino-americano, bem como a chave para a compreensão do
projeto identitário de Bomfim, como será visto a seguir.
3 O “PARASITISMO SOCIAL” DE MANOEL BOMFIM: OS MALES
DA AMÉRICA LATINA ORIGINÁRIOS DE UM “PASSADO
FUNESTO”
Ora, fica claro que Bomfim considerava a vida belicosa da Ibéria como
sendo um empecilho a seu próprio desenvolvimento, pois ao invés de
desenvolver técnicas de aprimoramento da cultura, da sociabilidade,
desenvolveu sim uma cultura da rapinagem e do saque, de forma que, após a
expulsão dos mouros, houve a necessidade de encontrar e pilhar outros povos.
Segundo Bomfim, foi nesta ânsia por encontrar novas vítimas, que Portugal
descobriu as índias e, a Espanha a, América, ambas se lançando ao projeto de
pilhar, matar e destruir tudo o que os olhos alcançavam. O que era heróico na
defesa da Ibéria se degenerava à condição de lutar por lutar, o que
desembocava em outras consequências nefastas na cultura espanhola, que
Bomfim afirmou ser vista em elementos como “a audácia do bandido, a
intrepidez cruel do toureiro, a selvageria das festas e torneios – tudo resulta, na
península, dessa cultura intensiva dos instintos guerreiros” (BOMFIM, 1905, p.
84).
Para Portugal a situação era semelhante, pois foi esta nação quem
primeiro se lançou à campanha de “devorar o descoberto”. Em sua primeira
missão nas Índias, os portugueses não tinham nenhuma dignidade, nem
mesmo humanidade, a ponto de um dos navegadores de uma nau portuguesa
que acabara de saquear os passageiros de um navio árabe, no ano de 1502,
afirmarem:
21
O episódio se refere à conquista de Buenos Aires por tropas britânicas no dia 26 de Junho
de 1806, as quais foram repelidas bravamente por uma milícia crioula sob a direção de Juan
Martin de Pueyrredón, que expulsou definitivamente as tropas inglesas no dia 12 de Agosto de
1806.(MYERS, 2007)
É a partir da hereditariedade do parasitismo social nas sociedades ibero-
americanas que é possível compreender seus efeitos especiais. Isto posto,
segue-se a concepção de que a hereditariedade influiu tanto no caráter
psicológico e social quanto educacional da América Latina. No entanto, é a
partir dos conceitos de “herança, educação e reação” que se compreendem os
efeitos especiais do parasitismo ibérico sobre as nações ibero-americanas.
A hereditariedade social consiste na “transmissão, por herança, das
qualidades psicológicas, comuns e constantes, e que, por serem constantes e
comuns, dão a cada grupo social um caráter próprio distintivo” (BOMFIM, 1905,
p. 172). Esta concepção de hereditariedades social foi o elemento que permitiu
que as nações latino-americanas fossem identificadas em alguns aspectos com
as nações colonizadoras, a partir dos elementos parasitários que herdaram.
Contudo, além da hereditariedade, tem-se a questão da educação, pois
não se pode apenas definir os destinos dos povos pela questão hereditária.
Nesse sentido, segundo Bomfim, a educação promove nas nações uma
espécie de adaptação às novas exigências da realidade e complementa a
formação do caráter nacional. A educação, portanto, teria o papel fundamental
de dar sentido e orientação aos povos na busca por sua identidade e cultura.
Se o passado se colocava como o grande fantasma dos destinos da América
Latina, era necessário, a partir da re-interpretação e identificação dos
elementos funestos que a colocaram em seu estágio atual, eliminar tal
passado, ou melhor, resgatar neste passado os elementos que compuseram
positivamente a identidade e a cultura latino-americana, descartando todo o
resto.
A nova empreitada era nada mais nada menos que construir a América
Latina buscando sua identificação sócio-cultural nesse passado que, em
grande parte, era símbolo de opressão e atraso. Tal deslocamento de
identificação com o passado era fundamental para a América Latina, pois
Darcy Ribeiro afirmou que o que mais lhe chamou a atenção na obra de
Bomfim foi o fato de que ele se “opõe a todos os antigos e modernos
pensadores coniventes com os grupos de interesse que mantém o Brasil em
atraso” (RIBEIRO, 2005, p. 20). Mas não apenas o Brasil, e sim a América
Latina como um todo. Darcy Ribeiro (2005, p. 20) finaliza dizendo que o que o
cativa em Bomfim
22
Isto pode ser aferido na discussão desenvolvida no capitulo II.
4 A IDENTIDADE “MESTIÇA” DE MANOEL BOMFIM
4.1 O Indígena
4.2 O Negro
4.3 O Ibérico
4.4 A Mestiçagem
Dessa forma, para Bomfim o Brasil teria sido o primeiro, mas não o
único, a permitir a miscigenação racial e cultural, dando forma a um novo povo
na América, independente, forte, vivaz e potencialmente superior às raças
matrizes, por constituir-se do que havia de melhor das três raças. Para Bomfim,
o brasileiro mestiço poderia ser considerado como modelo latino-americano de
identidade mestiça, pois, no Brasil, desde os primórdios da colonização, foram
“fundindo-se as raças componentes, desprezaram-se e desfizeram-se os
preconceitos que, noutras colônias, criaram as castas, dando motivo às lutas
de raças.” (BOMFIM, 1929, p. 335)
Bomfim, ainda em sua refutação da depreciação mestiça e da
valorização da mestiçagem, utilizou-se de uma citação do próprio Darwin a
respeito do mestiço. Segundo Darwin,
Darwin foi citado justamente para ser defendido das más utilizações de
suas teorias pelo darwinismo social, teorias que legitimariam a inferioridade das
raças mestiças. Para mostrar que o mestiço poderia e deveria ser considerado
o elemento mais original da América Latina, Bomfim citou ainda uma série de
autores que compartilhavam com ele uma apreciação do mestiço. Um exemplo
foi Quatrefages 23 , para quem, em suas palavras, os mestiços latino-americanos
tinham mostrado
Se, portanto, a América Latina só faz sentido se pensada com base nas
raças e culturas cruzadas, querer conduzi-la a um tipo puro é o mesmo que
deferir-lhe um golpe fatal, pois a identidade da América Latina é, segundo
Bomfim, essencialmente mestiça.
CONCLUSÃO