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EDIÇÕES MAHATMA
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Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
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~ Henri le Saux
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N
unca fomos senão o espaço ininito onde continuamente surgem, se
transformam e dissipam todo o tipo de fenómenos, mundos, astros,
céus, terras, seres vivos, coisas, acontecimentos, emoções e pensa-
mentos, incluindo o de haver tudo isso… Nunca fomos senão o ininito, a sua
imensa paz e liberdade silenciosa. Nunca fomos e jamais seremos senão o ini-
nito. Mas imaginamo-nos distintos e separados, vemo-nos não como o espaço,
mas como algo ou alguém no espaço. Somos muitos a fazê-lo e achamos isso
evidente e normal. Estamos a dormir, sonhamos que estamos despertos e que
o sonho é real. E isso é estarmos cativos na prisão que não há. Num sentido
a mais temível, noutro sentido a mais ridícula. Pois as suas únicas grades são
as da mente que mente, a mente demente, que deposita uma crença cega na
objectividade das suas alucinações e desconsidera, escarnece ou insulta quem
lhe diga o contrário, que os seus melhores sonhos cor-de-rosa e os seus mais
temíveis pesadelos, tudo aquilo que lhe dá uma tão forte sensação de ser real,
não existem e nunca existiram.
O passarinho recusa admitir que não há gaiola fora do seu imaginar-se distinto
da vastidão, como uma onda que se acreditasse separada do oceano. O passarinho
recusa admitir que não há gaiola porque não há passarinho distinto do ininito e
de todas as coisas. Ou então insiste em ver-se distinto e que isso não é uma gaiola,
que isso é ser livre e que nisso pode e deve ser feliz. O passarinho não suporta que
lhe digam que é livre e que sempre o foi. Mas livre de si, livre da gaiola de se ver
algo ou alguém no espaço ininito, fechado na forma do corpo ou do pensamento.
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O passarinho não suporta que lhe digam que é, sempre foi e não pode deixar de
ser liberdade. E que enquanto não o reconhecer todos os seus desejos, projectos ou
experiências de bem-estar na gaiola do ver-se distinto do ininito serão apenas bolas
de sabão destinadas a desaparecer como se nunca houvessem existido.
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1 Cf., para uma esclarecedora genealogia do movimento mindfulness e das suas ineren-
tes ambiguidades na perspectiva de um eminente representante da tradição heravada
do budismo original: Bikkhu BODHI, “he Transformations of Mindfulness”,
in AAVV, Handbook of Mindfulness. Culture, Context, and Social Engagement, edita-
do por Ronald E. Purser, David Forbes e Adam Burke, Springer, 2016, pp. 3-14. Veja-
-se uma complementar genealogia em Robert H. SHARF, “Is mindfulness buddhist?
(and why it matters)”, in AAVV, What’s Wrong With Mindfulness (And What Isn’t).
Zen Perspectives, editado por Robert Meikyo Rosenbaum e Barry Magid, Somerville, Wis-
dom Publications, 2016, pp.139-151.
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procurada como via para a felicidade, que, entendida como corolário do desen-
volvimento pessoal e da plena airmação e expansão de si, é hoje objecto de uma
verdadeira corrida e de um verdadeiro culto, inevitavelmente associado a um novo
e lorescente negócio, em torno de livros, seminários e técnicas de coaching 2. A
um outro nível, mais profundo e mais conforme com as suas origens tradicionais, a
procura da meditação insere-se na busca do que podemos chamar de espiritualida-
de, entendida como o despertar transformativo da consciência profunda, que pode
dar-se ou não num contexto religioso e assume hoje a novidade de expressões pu-
ramente laicas e seculares (neste sentido pode haver e há efectivamente uma espiri-
tualidade agnóstica ou ateia). A meditação integra aqui uma via de pleno desenvol-
vimento das potencialidades cognitivo-afectivas da consciência e de conhecimento
experiencial da natureza profunda e última da realidade, do qual se considera pro-
vir a verdadeira e duradoura felicidade, inseparável do sentimento de se viver uma
vida plena de sentido. Neste sentido, a meditação não é um mero meio ou instru-
mento, mas coincide com o próprio im, que é a contemplação desinteressada das
coisas tais como são, livre dos medos, desejos e expectativas egocêntricos do sujeito,
que nesta perspectiva são a causa profunda do seu mal-estar e sofrimento. Livre
do desejo de felicidade, esta experiência é a própria felicidade, a felicidade da pura
experiência e consciência de ser e do que é tal como é. Esta felicidade contemplativa
aproxima-se da noção de eudaimonia em Aristóteles, que a considerou sobretudo
presente no sábio 3. O nosso anterior livro O Coração da Vida 4 é precisamente um
guia prático de meditação nesta perspectiva de uma espiritualidade laica, acessível a
crentes e descrentes. É esta mesma perspectiva que inspira o programa de formação
com o mesmo nome apresentado no inal deste livro.
2 Sobre a situação, cf. Claire AUBÉ, “Happiness Business”, Les Hors de Série de L’OBS. Les
Sagesses Orientales, nº96 (Paris, juillet-août 2017), pp.97-98. Para uma leitura crítica do fe-
nómeno, cf. Roger POL-DROIT, La philosophie ne fait pas le bonheur… et c’est tant mieux!,
Paris, Flammarion, 2015.
3 Cf. ARISTÓTELES, Éthique a Nicomaque, X, 10, 7-9, introdução, notas e índex de J. Tricot,
Paris, J. Vrin, 1987, 6ª edição, pp.508-522.
4 Cf. Paulo BORGES, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral (guia
prático de meditação), Lisboa, Mahatma, 2017, 2 ª edição.
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cimento da natureza última das coisas, que consideramos urgente não perder
de vista, o que está em risco de acontecer quer no fenómeno actual da sua glo-
balização e popularização por via da mindfulness – em que tende a ser procu-
rada como instrumento para ins e objectivos exteriores à própria experiência
meditativa, além de muito limitados em relação a todo o seu potencial alcance
e benefício, quando não claramente estranhos à sua vocação original ou dela
contraditórios – , quer no fenómeno da New Age, em que as práticas medita-
tivas perdem os seus tradicionais contextos, contornos e comprovada eicácia
num confuso cocktail de “espiritualidades” ao gosto do instrutor/vendedor e do
consumidor.
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9 Processo que gerou a crítica do mundo capitalista moderno, quer de teor tradicionalista
e reaccionário, quer de teor socialista, revolucionário e libertário, até ao surgimento do
actual movimento ecológico. Cf., entre muitos outros, René GUÉNON, A crise do mun-
do moderno, tradução, prefácio e notas de António Carlos Carvalho, Lisboa, Vega, 1977
[1927]; Id., Le régne de la quantité et les signes des temps, Paris, Gallimard, 1970 [1945]; Ju-
lius EVOLA, Rivolta contra il mondo moderno, Roma, Edizioni Mediterranee, 1969 [1934];
Michael LÖWY / Robert SAYRE, Révolte et mélancolie. Le romantisme à contre-courant de
la modernité, Paris, Payot, 1992; Serge AUDIER, La Société Écologique et ses ennemis. Pour
une histoire alternative de l’émancipation, Paris, La Découverte, 2017.
10 Cf. Rémi BRAGUE, Le Régne de l’Homme. Genèse et échec du projet moderne, Paris, Gal-
limard, 2015, p.14.
11 Veja-se o diagnóstico que Erich Fromm fez, já em 1976, acerca do “fracasso” e do “im
de uma ilusão”: “A Grande Promessa de Progresso Ilimitado – a promessa de domínio da
Natureza, de abundância material, de maior felicidade para o maior número de indiví-
duos, e de liberdade pessoal irrestrita – alimentou a esperança e a fé de inúmeras gerações
desde o início da Revolução Industrial”; “A trindade da produção ilimitada, liberdade
absoluta e felicidade irrestrita formaram o núcleo de uma nova religião”; “É importante
visualizar a imensidão da Grande Promessa, as maravilhosas conquistas materiais e inte-
lectuais da Revolução Industrial para podermos compreender o trauma que a constata-
ção do seu fracasso está a produzir nos dias de hoje. Porque a Revolução Industrial falhou
efectivamente no cumprimento da sua Grande Promessa” – Erich FROMM, Ter ou Ser?,
Lisboa, Editorial Presença, 1999, pp.13-14.
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gresso material, é sem dúvida um dos factores mais importantes do renovar da in-
quietação espiritual da humanidade e da reorientação da mente de cada vez mais
indivíduos para a busca do autoconhecimento profundo e para uma alternativa
espiritual pós-moderna, livre das tendências dogmáticas e autoritárias das insti-
tuições religiosas tradicionais. Com efeito, a milenar e predominante orientação
da humanidade e, desde o séc. XVII, da ciência para o conhecimento do mundo
externo e para a sua aplicação tecnológica, parece haver esquecido a necessidade
de se conhecer primeiro que tudo aquilo que em nós conhece, ou seja, a própria
mente 12. Este esquecimento da mente é também, num outro sentido, o esqueci-
mento daquilo cujo estado condiciona toda a percepção dos acontecimentos do
mundo como agradáveis, desagradáveis ou neutros, e assim toda a reacção ou
ausência de reacção a eles, determinando a qualidade satisfatória ou insatisfatória
da própria vida, que parece assim depender, em última instância, de um factor
interno e não tanto das condições externas da existência, como o prova o facto de
se encontrarem elevados índices de insatisfação, depressão e suicídio em pessoas,
grupos e sociedades dotados das circunstâncias de vida material mais favoráveis e
elevados índices de satisfação, alegria e apreço pela vida em pessoas, grupos e so-
ciedades que vivem nas mais difíceis dessas mesmas circunstâncias. A renovada
atenção da mente a si mesma é o que pretende a meditação.
12 “Desde a época das cavernas, o ser humano procura a paz e a felicidade caçando, cultivan-
do a terra e acumulando bens materiais. Passámos tanto tempo a procurá-las fora de nós
mesmos que nunca tivemos a ocasião de as recolher na nossa própria mente” – Dzigar
KONGTRÜL, Le Bonheur est entre vos mains. Petit guide du bouddhisme à l’usage de tous,
prefácio de Matthieu Ricard, tradução de Carisse Busquet, Paris, NiL éditions, 2007, p.55
(tradução portuguesa do autor).
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A meditatio latina corresponde ao grego meleté (que por sua vez traduz termos
hebraicos provenientes da raiz hāgâ 13) e ambas designam “exercícios preparató-
rios”, que consistem, por exemplo, no “esforço por assimilar, por tornar vivos na
alma uma ideia, uma noção, um princípio” 14. Destacamos, a par do sentido mais
comum de relexão, a ideia de um exercício prático e preparatório, ainda com ins
terapêuticos. Com efeito, como nota Pierre Hadot, o “exercício” é o signiicado
comum de palavras gregas como askesis e meleté 15, que estão associadas ao sen-
tido originário da ilosoia como “maneira de viver”, presente nas várias escolas
ilosóicas gregas e mais evidente nas helenísticas e romanas. Veja-se o exemplo
da estóica, onde a ilosoia pouco tem a ver com uma “teoria abstracta” e ainda
menos com “exegese de textos”, tratando-se sobretudo de uma “arte de viver”, que
visa não só o conhecimento mas a melhoria do ser e deve conduzir, por uma “te-
rapêutica das paixões” ou “medicina da alma”, de “um estado de vida inautêntico,
obscurecido pela inconsciência, roído pela preocupação, a um estado de vida au-
têntico, no qual o homem atinge a consciência de si, a visão exacta do mundo, a
paz e a liberdade interiores” 16. O mesmo autor compara duas listas desses “exercí-
13 Cf. Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’Hésychasme. Une tradition contemplative oubliée, Paris,
Albin Michel, 1999, p.19.
14 Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique, prefácio de Arnold I.
Davidson, Paris, Albin Michel, 2002, nova edição revista e aumentada, p.29, nota 2.
15 Cf. Ibid., p.77.
16 Cf. Ibid., pp.22-23. A “ilosoia” como “medicina da alma” surge em CÍCERO, Tuscu-
lanas,, III, 6. Cf. André-Jean VOELKE, La philosophie comme thérapie de l’âme. Études
de philosophie hellénistique, prefácio de Pierre Hadot, Friburgo/Paris, Academic Press/
Éditions du Cerf, 1993, 2ª edição corrigida.
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26 Cf. ATANÁSIO, Vida de António, PG 26 844B e 969B, citado em Pierre Hadot, Exercices
spirituels et philosophie antique, pp.83-84.
27 Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique, p.84.
28 Cf. Ibid., pp.85 e 87.
29 DOROTEU DE GAZA, Didaskaliai, edição de L. Regnault e J. de Préville, Paris, Sources
Chrétiennes, 1963, t.92, 60, 27, citado em Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie
antique, p.88.
30 Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique, p.88.
31 Cf. Ibid., pp.89-90. Cf. ATANÁSIO, Vida de António, 924B, citado in Ibid., p.90. Para uma
antologia dos Padres do deserto, cf. Ditos e feitos dos Padres do deserto, organização de
Cristina Campo e Piero Draghi, tradução de Armando Silva Carvalho, Lisboa, Assírio &
Alvim, 2003.
32 Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique, p.90.
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Note-se que, para que isso seja eicaz, é necessário um treino metódico e cons-
tante dessa atenção a si, dessa “técnica de introspecção” que visa a autotransfor-
mação do sujeito 33, condição prévia do seu acesso à verdade. Como bem mostrou
Michel Foucault, a ilosoia, enquanto interrogação e determinação do que permite
ao sujeito aceder à verdade, é aqui inseparável de uma espiritualidade, “a busca, a
prática, a experiência pelas quais o sujeito opera sobre si mesmo as transformações
necessárias para ter acesso à verdade”. Ao contrário do senso comum e da ciên-
cia, a espiritualidade considera que a verdade não é acessível ao sujeito sem uma
profunda transformação deste, não meramente no plano da formação ou atitude
intelectual, que pode assumir dois aspectos: um é o movimento de descentramento
do sujeito em direcção à verdade, arrancando-o do seu estatuto e condição actual,
ou o movimento pelo qual a verdade vem a si e o ilumina, duplo dinamismo que
Foucault designa como erôs, amor; outro é o trabalho de si sobre si mesmo, o longo
exercício de transformação progressiva a que o ilósofo chama ascese (askêsis). Estas
duas principais formas da espiritualidade, na dimensão prática sem a qual a ilosoia
permanece uma teoria sem eicácia operativa, reduzida a mero exercício abstracto e
intelectual, têm efeitos que não se reduzem ao conhecimento, mas que se prendem
com a realização e transiguração do sujeito, sob a forma da iluminação da cons-
ciência, da beatitude e/ou da tranquilidade da alma 34. Esta articulação entre iloso-
ia e espiritualidade processa-se nos quadros de um fenómeno marcante que se de-
senrolou ao longo de dez séculos, do século V antes de Cristo até aos séculos IV-V
depois de Cristo, abrangendo a ilosoia grega (com a relativa excepção de Aristóte-
les), helenística e romana, bem como a espiritualidade cristã, e que se formulou na
noção de “cuidado de si” (epimeleia heautou; cura sui), abrangendo um vasto corpo
de modos de ser, relexões e exercícios práticos que integravam e subordinavam o
“conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seauton). Destacamos aqui que essas práticas in-
cluíam a conversão do olhar do exterior para “si-mesmo” e “vigiar o que se pensa e o
que se passa no pensamento”, traduzindo-se em “técnicas de meditação”, “de exame
de consciência” e de “veriicação das representações à medida que se apresentam na
mente” (a epimeleia é parente de meletê, que signiica simultaneamente “exercício”
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44 Cf. Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’Hésychasme. Une tradition contemplative oubliée., p.72.
45 Cf. Ibid., pp.52-54.
46 Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, p.61. Sobre
o “diabólico”, cf. Eudoro de SOUSA, Mitologia, in Mitologia. História e Mito, apresentação
de Constança Marcondes César, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, pp.
89-106; Vilém FLUSSER, A História do Diabo, revisão técnica de Gustavo Bernardo, São
Paulo, Annablume, 2006, 2ª edição, pp. 21-29.
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hesicasta. Como diz João Clímaco: “A obra principal da hesíquia é uma ame-
rimnia perfeita a respeito de todas as coisas, razoáveis ou irrazoáveis” 52. É essa
ausência de preocupações e inquietações que abre o caminho à contemplação e
união com Deus, pois “quem quer colocar em presença de Deus uma inteligên-
cia pura, e se deixa perturbar pelas preocupações, é semelhante a um homem
que se houvesse entravado solidamente os pés e pretendesse acelerar o passo” 53.
Já Evagro Pôntico havia escrito que “não se pode correr amarrado” e que uma
inteligência “sacudida para aqui e para ali por via do pensamento apaixonado
[…] não pode manter-se inlexível” 54. Por esse motivo, João Clímaco precisa
que a ausência de preocupações implica a de “pensamentos”, entendidos aqui
como as “preocupações contínuas” que agitam a mente, ligadas ou não ao mun-
do material: “Não poderás ter a oração pura se estás embaraçado com coisas
materiais e agitado por preocupações contínuas, pois a oração é eliminação de
pensamentos” 55. “Esta ausência de pensamentos é esquecimento de si”, pois na
paciicação da mente desaparece o “pequeno eu” conigurado pelas pré-ocupa-
ções, dissolvido na abertura “à Outridade que o funda” 56.
ciência da realidade da qual podemos ser porta-vozes. Para isso devemos despojar-nos, des-
prender-nos, de todo o conjunto de atributos que, se em muito conformam a nossa persona-
lidade, ao identiicarmo-nos exclusivamente com eles limitam-nos e, frequentemente, asi-
xiam-nos” – Raimon PANIKKAR, Iconos del Misterio. La experiencia de Dios, Barcelona,
Ediciones Península, 2001, 3ª edição corrigida e aumentada, p.43.
52 João CLÍMACO, Scala Paradisi, P.G. 88, 1109b.
53 Ibid., 1112 a.
54 Evagro PÔNTICO, De Oratione, 71, P.G. 79, 1181d.
55 João CLÍMACO, De Oratione, 70, P. G. 79, 1181.
56 Cf. Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’Hésychasme. Une tradition contemplative oubliée, p.47.
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60 John MAIN, he Heart of Creation. Meditation: a way of setting God free in the world, pp.1-
3. Cf. outras obras de John MAIN: Essential Writings, seleccionados com uma introdução
por Laurence Freeman, Maryknoll, Nova Iorque, Orbis Books, 2002; Door to Silence. An
anthology for Christian meditation, editado por Laurence Freeman, Norwich, Canterbury
Press, 2010; he Way of Unknowing. Expanding spiritual horizons through meditation,
introdução de Laurence Freeman, Norwich, Canterbury Press, 2011; Fully Alive, editado
por Laurence Freeman, Norwich, Canterbury Press, 2013. Cf. também Laurence
FREEMAN, Light Within. Meditation as pure prayer, Norwich, Canterbury Press, 2008;
A peregrinação interior. O caminho da meditação, Prior Velho, Paulinas Editora, 2012.
Para um guia de retiro contemplativo cristão, cf. Franz JALICS, Contemplative Retreat.
An introduction to the Contemplative Way of Life and to the Jesus Prayer, S. l., Xulon Press,
2003.
61 ANÓNIMO, he Book of Privy Counselling, in he Cloud of Unknowing and Other
Works, tradução de A. C. Spearing, Harmondsworth, Penguin, 2001, p.104 (citado em
Martin LAIRD, Into the Silent Land. he Practice of Contemplation, Nova Iorque, Oxford
University Press, 2009, p.9, com ligeira alteração da tradução).
62 “Hier ist Gottes Grund mein Grund und mein Grund Gottes Grund” – Mestre ECKHART,
Predigten, Werke, I, 5b, textos e versões de Josef Quint, editados e comentados por Niklaus
Largier, Frankfurt am Main, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, 5b, p.71.
63 “El centro de el alma es Dios […]” – São JOÃO DA CRUZ, Llama de amor viva, 1, 12, in
Obras Completas, edição crítica preparada por Lucinio Ruano de la Iglesia, Madrid, B. A.
C., 2002, p.923.
64 Santa CATARINA DE GÉNOVA, cit. in E. UNDERHILL, he Mystics of the Church,
James Clarke, 1975, p.51.
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4. A meditação no budismo
O anterior e notável trecho permite uma oportuna ponte para aquela tra-
dição meditativa oriental, a budista, que é hoje predominantemente desco-
berta pelos ocidentais e da qual foi extraída a mindfulness 67, com os riscos
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2013, pp.1-17.
68 Cf. DALAI LAMA, Estágios da Meditação, texto-raiz de Kamalashila, traduzido para
o inglês por Venerável Geshe Lobsang Jordhen, Losang Choephel Ganchenpa e Jeremy
Russell, tradução portuguesa de Paulo Borges, Lisboa, Âncora Editora, 2001, pp.99-100
e 113-116.
69 Cf. Ibid., pp.125-127.
70 Cf. Anguttara Nikāya 2: III, 10; I 61; 4:170; II 156-57, cit. em In the Buddha’s Words. An
anthology of discourses from the pāli canon, editada e introduzida por Bhikkhu Bodhi,
prefácio do Dalai Lama, Boston, Wisdom Publications, 2005, pp.268-270.
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71
o Buda descreve como o cultivo da atenção plena em śamatha, ao longo
do qual o praticante se vai libertando de níveis cada vez mais subtis dos dois
principais obstáculos à meditação – a agitação e o torpor mentais – , se aplica
em vipaśyāna mediante uma investigação e compreensão directa da “origem,
presença, eicácia causal e dissolução” de todos os “domínios da experiência”
relativos ao corpo, às sensações e aos estados/processos mentais 72.
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ética (não prejudicar nenhum ser vivo e fazer tudo para o bem de todos), meditação
(libertar a mente de todos os conceitos e emoções que a agitam, desenvolvendo uma
atenção concentrada, calma e pacíica) e sabedoria (o conhecimento directo da vacuidade
e sacralidade de todos os fenómenos e o viver em conformidade com isso, pondo a vida
ao serviço do bem e da libertação de todos os seres)” – Paulo BORGES, Descobrir Buda.
Estudos e ensaios sobre a via do despertar, Lisboa, Âncora Editora, 2010, pp.13-14 (texto
ligeiramente modiicado).
75 Cf. DZONGSAR JAMYANG KHYENTSE, O que não faz de ti um budista, tradução de
Paulo Borges, Alfragide, Lua de Papel, 2009, p.11.
76 Sobre as seis emoções e os seis modos/mundos de existência, cf. Chögyam TRUNGPA,
Bardo. Au-delà de la folie, traduzido por Stéphane Bédard, prefácio de Judith L. Lief,
Paris, Éditions du Seuil, 1995, pp.309-347.
77 Cf. B. Alan WALLACE, Genuine Happiness. Meditation as a path to fulillment, prefácio de
S. S. o Dalai Lama, Hoboken, New Jersey, John Wiley & Sons, 2005, pp.107-153.
78 Cf. Id., he Attention Revolution. Unlocking the power of focused mind, p.7.
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É isso que, segundo Peter Sloterdijk, faz com que o “projecto da moderni-
dade” repouse numa “utopia cinética: a totalidade do movimento do mundo
deve tornar-se a execução do projecto que temos para ele” 98. Se esse projec-
to, mais do que fazer história, é o de (re)“fazer natureza” 99, a verdade é que
nele nada se passa conforme o previsto e, se o sujeito moderno se pretende
automobilizar racionalmente, acaba por se ver arrastado por “uma heteromo-
bilidade catastróica” ao colocar em movimento energias externas e internas
incontroláveis, num processo que Sloterdijk diz marcado por uma “ironia
“kármica”” 100: colhemos o contrário daquilo que julgamos semear porque na
verdade não vemos a verdadeira natureza do que semeamos. Concebidos o
“progresso” e a “liberdade” como aceleração da acção e emancipação de to-
dos os entraves e limites ao movimento humano no sentido de cada vez mais
movimento 101, a modernidade, no mesmo lance em que realiza a utopia da
“automobilização completa” e faz do automóvel o “objecto sacrossanto” da
“religião universal cinética” 102, vê a sua ilusão desfazer-se ao mergulhar no
pesadelo pós-moderno dos engarrafamentos diários, da “imobilidade gene-
ralizada” e da passividade imposta que paradoxalmente resulta da aposta na
hiperactividade 103. Estamos, a par do esgotamento neuronal diagnosticado
por Byung-Chul Han, perante as imprevistas e indesejadas consequências ex-
tremas do que já Ernst Jünger havia descrito como a “mobilização do mundo
pela Figura do Trabalhador” 104. É este o paradigma que a modernidade euro-
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peia-ocidental tornou global 105, tão bem descrito por Paul Valéry como uma
hybris do desejo e da vontade:
“Por todo o lado onde o Espírito europeu domina, vê-se aparecer o máximo
de necessidades, o máximo de trabalho, o máximo de capital, o máximo de ren-
dimento, o máximo de ambição, o máximo de potência, o máximo de modiica-
ção da natureza exterior, o máximo de relações e de trocas” 106.
105 Cf. Serge LATOUCHE, L’Occidentalisation du Monde. Essai sur la signiication, la portée
et les limites de l’uniformisation planétaire, Paris, La Découverte, 2005.
106 Paul VALÉRY, La Crise de l’esprit, citado in Peter SLOTERDIJK, La mobilisation ininie.
Vers une critique de la cinétique politique, p.68.
107 Francis BACON, Nova Atlântida, Lisboa, Editorial Minerva, 1976, p.60.
108 René DESCARTES, Discurso do Método, in Discurso do Método / Tratado das Paixões
da Alma, tradução, prefácio e notas de Newton de Macedo, Lisboa, Sá da Costa, 1968,
5ª edição, p.73.
109 Cf. Serge LATOUCHE, O Desaio do Decrescimento, Lisboa, Instituto Piaget, 2012,
pp.33-57; Survivre au Développement. De la décolonisation de l’imaginaire économique
à la construction d’une société alternative, Paris, Éditions Mille et Une Nuits, 2004;
Décoloniser l’imaginaire. La pensée créative contre l’économie de l’absurde, Lyon,
Parangon/Vs, 2005; Richard HEINBERG, he End of Growth, New Society Publishers,
2011; Dominique MÉDA, La Mystique de la Croissance. Comment s’en libérer, Paris,
Flammarion, 2013; Andrew SIMMS, Travar o Apocalipse. Porque precisamos de parar de
crescer e começar a viver, Lisboa, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2014.
51 ||
110 Cf. Serge LATOUCHE, L’Âge des Limites, Paris, Mille et Une Nuits, 2012.
111 Cf. Id., Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, tradução de Victor Silva, Lisboa,
Edições 70, 2011; Vers une Société d’Abondance Frugale. Contresens et controverses sur la
décroissance, Paris, Éditions Mille et Une Nuits, 2011.
112 Cf. Tim JACKSON, Prosperidade sem Crescimento. Economia para um planeta inito,
tradução de Francisca Cortesão, Lisboa, Tinta da China, 2013.
113 Cf. Peter SLOTERDIJK, La mobilisation ininie. Vers une critique de la cinétique politique,
pp.47-48.
|| 52
114 Agostinho da SILVA, A Comédia Latina [1952], in Estudos sobre Cultura Clássica,
introdução e organização de Paulo Borges, Lisboa, Âncora Editora, 2002, p.304.
53 ||
115 Cf. Hannah ARENDT, Condition de L’Homme Moderne, tradução de Georges Fradier, in
L’Humaine Condition, edição estabelecida e apresentada por Philippe Raynaud, prefácio,
introdução e glossário de Philippe Raynaud, Paris, Gallimard, 2012, pp.294-296.
116 Cf. Friedrich NIETZSCHE, La Naissance de la Philosophie à Époque de la Tragédie
Grecque, traduzido por Geneviève Bianquis, Paris, Gallimard, 1938, p.38.
117 Cf. Ibid., pp.298-323.
118 Byung-Chul HAN, El aroma del tiempo. Un ensayo ilosóico sobre el arte de demorarse,
tradução de Paula Kufer, Barcelona, Herder, 2015, pp.10-11 e 122.
|| 54
que está em igual correspondência com a absolutização da vita activa – que leva
em grande medida à histeria e ao nervosismo da sociedade moderna da acção”
119
. Estes diagnóstico e prescrição de tratamento, que fazemos nossos, foram aliás
já claramente antecipados por Nietzsche, ao constatar que as “prioridades” dos
tempos modernos “acarretam um retrocesso e uma eventual depreciação da vita
contemplativa”, que a “enorme aceleração da vida” acostuma “o espírito e o olhar
(…) a ver e a julgar parcial ou erradamente”, que “quem não tiver para si dois
terços do seu dia é um escravo”, faça o que izer, e que aos homens activos falta a
“actividade superior” 120, concluindo:
“Esta movimentação torna-se tão grande que a cultura superior já não pode
madurar os seus frutos; é como se as estações do ano se seguissem umas às ou-
tras demasiado depressa. Por falta de sossego, a nossa civilização vai dar a uma
nova barbárie. Em nenhuma época, os activos, ou seja, os irrequietos, foram tão
considerados. Reforçar em grande medida o elemento contemplativo faz parte,
por conseguinte, das necessárias correcções que se tem de efectuar no carácter
da humanidade” 121.
Sendo inegável que há hoje cada vez mais pessoas e instituições interessadas
na redescoberta da meditação, cabe veriicar quais as condições a assegurar para
que se dê genuinamente este “regresso em força do génio da meditação”, enquanto
55 ||
123 Cf. Diógenes LAÉRCIO, Vie, Doctrines et Sentences des Philosophes Illustres, II, tradução,
notícia e notas por Robert Genaille, Paris, Flammarion, 1999, p.127.
|| 56
Retomando a noção pitagórica de verdade como visão pura, cabe ter presente
que a verdade foi experienciada em grego como a-létheia e pode ser interpretada
como o não-esquecimento ou não-velamento do que é 124, que compreendemos
como uma abertura mútua da consciência e do real na qual se desvela a sua in-
distinção original, anterior à clivagem entre pensar e ser 125, mas sempre acompa-
nhada pela sombra do seu oposto, léthe, o esquecimento ou velamento que a obs-
curece 126. A experiência da verdade não seria assim a da adequação mental entre
sujeito e objecto, mas antes o desvelamento da não-dualidade anterior à cisão,
ictícia e meramente conceptual, entre sujeito e objecto. Heidegger identiica alé-
theia com o “aberto” 127, o que evoca o “das Ofene” (“o Aberto”) da “Oitava Elegia”
de Rilke, o que há antes da ixação do olhar na “Forma” (“Gestaltung”, também
com o signiicado de “formação, coniguração”), que faz com que a mente adulta
– em contraste, segundo o poeta, com a da criança, do animal, dos moribundos e
dos amantes – nunca se abra ao “puro espaço” e apenas a um “mundo” aparente-
mente distinto de si, trocando a salvação perene no “seio” do “Todo” e do “Tudo”
pela experiência do “futuro” e da “separação” 128.
124 Cf. Martin HEIDEGGER, “De l’essence de la vérité”, Questions I, tradução de Henry
Corbin, Roger Munier, Alphonse de Waelhens, Walter Biemel, Gérard Granel e André
Preau, Paris, Gallimard, 1968, p.176.
125 Cf., ainda na aurora da ilosoia grega, a airmação de Parménides: “O mesmo, ele, é
simultaneamente pensar e ser” – PARMÉNIDES, Le Poème, III, edição bilíngue, apre-
sentado por Jean Beaufret, Paris, PUF, 1986, 3ª edição, p.79.
126 Cf. Marcel DETIENNE, Les Maîtres de Vérité dans la Grèce Archaïque, prefácio de Pierre
Vidal-Naquet, Paris, Pocket, 1995, pp.92 e 116-120.
127 Cf. Martin HEIDEGGER, “De l’essence de la vérité”, Questions I, p.176.
128 Cf. Rainer Maria RILKE, “A Oitava Elegia”, As Elegias de Duíno, introdução e tradução
de Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, 2ª edição, pp.90-95.
57 ||
mesmo que por vezes possa exigir “a cessação mais ou menos completa de toda
actividade” externa. A revelação da verdade, ou melhor, o desvelamento que é a
verdade, processa-se por contraste na “passividade” ou “calma total” própria da
experiência contemplativa. Embora em contextos diferentes, Platão e Aristóte-
les consideraram o “processo dialéctico do pensamento” como mero “meio de
preparar a alma e de conduzir a inteligência a uma contemplação da verdade”
que supera “pensamento” e “linguagem”, dita por Platão arrhèton, indizível ou
inefável 129. Ainda segundo Arendt, a contemplação, numa das suas vertentes,
é aim à “admiração”, “maravilhamento” ou “espanto (thaumazein) perante o
milagre do Ser” que Platão e depois Aristóteles, de modo diverso, assumiram
como início de toda a ilosoia 130. Segundo a ilósofa, este “transe maravilhado
deve ter sido essencialmente mudo”, com um conteúdo “oralmente intraduzí-
vel”, daí que os mesmos Platão e Aristóteles, que o assumiram no início da i-
losoia, o tenham assumido igualmente no seu im, vendo “um certo mutismo,
o estado essencialmente mudo da contemplação”, como “o termo da ilosoia”.
Como conclui:
129 Cf. Hannah ARENDT, Condition de L’Homme Moderne, tradução de Georges Fradier, in
L’Humaine Condition, pp.295-296. Cf. PLATÃO, Carta VII, 341 c, in Oeuvres Complètes,
II, nova tradução enotas por Léon Robin com a colaboração de M.-J. Moreau, Paris,
Gallimard, 1981, p.1208.
130 Cf. PLATÃO, Teeteto, 155 d; ARISTÓTELES, Metafísica, 982 b e 983 a.
131 Cf. Hannah ARENDT, Condition de L’Homme Moderne, in L’Humaine Condition,
pp.304-305.
132 Cf. Peter SLOTERDIJK, O Estranhamento do Mundo, tradução de Ana Nolasco, Lisboa,
Relógio D’Água, 2008, pp.77-78.
|| 58
133 Cf. Hannah ARENDT, Condition de L’Homme Moderne, tradução de Georges Fradier,
in L’Humaine Condition, p.323. Cf. ainda a consideração nietzschiana de que “aos
activos falta, habitualmente, a atividade superior” – Friedrich NIETZSCHE, Humano,
Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres, 283, Obras Escolhidas, vol. 2, p.256.
134 Cf. Josef PIEPER, O que é ilosofar? O que é acadêmico?, tradução de Helmuth Alfredo
Simon, São Paulo, Editora Pedagógica e Universitária, 1981, pp.9-10 e 26-29. Cf.
Friedrich NIETZSCHE, Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres,
281 e 284, Obras Escolhidas, vol. 2, pp.255 e 257.
59 ||
querer e tentar que a realidade, o mundo e a vida se moldem aos desejos e inte-
resses humanos. Pois na verdade há dois sentidos do útil: o que serve a um im
particular, como o aquecimento, o sistema de iluminação ou os transportes, e o
que conduz a um im universal ou é já a realização desse im, como o despertar
da consciência e a vida plena. A ilosoia, e neste caso a ilosoia da meditação,
tem como missão “revelar aos homens a utilidade do inútil” 135.
135 Cf. Pierre HADOT, Exercices Spirituels et Philosophie Antique, pp.362-363. Cf., a este
respeito, o belíssimo livro de Nuccio ORDINE, La Utilidad de lo Inútil. Maniiesto,
com um ensaio de Abraham Flexner, tradução do italiano e do inglês de Jordi Bayod,
Barcelona, Acantilado, 2104, 4ª edição.
136 Cf. ARISTÓTELES, Éthique a Nicomaque, X, 8, introdução, notas e índex de J. Tricot,
Paris, J. Vrin, 1987, 6ª edição, pp.518-519.
137 Cf. Ibid., I, 1, pp.31-32 e respectivas notas de rodapé.
138 Cf. Id., La Métaphysique, Λ, 7 e 9, tomo II, introdução, notas e índex por J. Tricot, Paris,
J. Vrin, 1974, pp.675-683 e 701-706.
139 Cf. Id., Éthique a Nicomaque, X, 9, pp.519-520.
|| 60
to divino” em si presente e “o próprio ser humano no mais alto grau” 140. Essa
é a “vida mais perfeita” que nos é dado viver, segundo Aristóteles, apenas “por
um breve momento”, quando “há identidade entre a inteligência e o inteligível”
e coincidimos assim com a vida divina, cuja natureza é essa mesma identidade,
sendo eterna “fruição”, “beatitude” e “alegria” 141.
61 ||
|| 62
dizer é sempre dizer algo ou alguma coisa – legein ti – e deste modo implicita-
mente deinir, delimitar e determinar o mundo em sujeitos, objectos, entidades
e identidades, indivíduos, espécies e géneros distintos, supostamente existentes
em si e por si, substancialmente, e só externamente relacionados 145, em vez de se
reconduzirem a uma tessitura de relações, interdependências e interpenetrações
em contínua mutação.
145 Cf. François JULLIEN, Si Parler Va Sans Dire. Du logos et d’autres ressources, Paris,
Seuil, 2006, pp.11-13. Destacamos: “(…) que “falar” seja “dizer” e que dizer, tornando-se
transitivo, seja “dizer alguma coisa”, legein ti. O que, com efeito, nos legaram primeiro
os Gregos, de modo tão convincente que nós o tomámos depois por uma evidência, na
qual por isso doravante habitamos, é que, quando eu falo, eu “diga” necessariamente –
logicamente – “alguma coisa”; sem o qual a minha palavra não diz “nada”, propriamente
falando, não tem objecto e anula-se” – p.11.
146 Cf. Friedrich NIETZSCHE, La Volonté de Puissance, II, texto estabelecido por Friedrich
Würzbach, traduzido por Geneviève Bianquis, Livro III, Paris, Gallimard, 1995, 582,
p.216, 584, pp.216-217, 588, p.218, 595, p.221 e 631, p.231.
147 Cf. PLATÃO, Teeteto, 152 d, 179 e, 180 c – d; Crátilo, 402 a – c, onde se acrescenta Hesíodo
e Orfeu a Homero, como aqueles que mitopoeticamente “tendem ao pensamento de
Heraclito”. Sobre estas questões, Paulo BORGES, “Imaginário mítico-metafísico do
Oceano e do extremo-ocidente atlântico”, in Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2001, pp.15-56.
63 ||
Conirmando isto, José Enes mostrou que os termos que designam as prin-
cipais operações mentais na cultura europeia de matriz greco-romana – pensar,
148 Cf. José ENES, Noeticidade e Ontologia, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1999, p.158.
149 Roger Pol-Droit diz que a “ordem do conceito (…) implica sempre uma captura (prise)”
– Roger POL-DROIT, Le Silence du Bouddha et autres questions indiennes, Paris,
Hermann Éditeurs, 2010, p.21.
150 Cf. Philippe CORNU, “Interdépendence”, Dictionnaire Encyclopédique du Bouddhisme,
Paris, Seuil, 2001, pp.258-261. É esta apropriação que retém a consciência na insatisfação
ávida do samsāra, ou seja, na dualidade sujeito-objecto, creditados como entidades
intrinsecamente existentes, em si e por si (enquanto a cessação disso, e dos consequentes
apego, aversão e indiferença egocêntricos, é o nirvāna).
|| 64
Na verdade, num sentido pode-se dizer que a mente mente, enquanto mede e
avalia o mundo em função do autocentramento de um sujeito que icticiamente
concebe distinto do real, supondo exteriores a si os objectos que se coniguram
em si, inseparáveis da sua percepção, e conferindo utilitariamente medida, ou se-
151 Cf. José ENES, Linguagem e Ser, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983,
pp.136-139.
152 Cf. Ibid., p.136.
153 Cf. Ibid., p.141.
154 Cf. THRANGOU RINPOCHE, Le Traité des 5 Sagesses et des 8 Consciences, tradução
e comentário da obra do III Karmapa RANGJUNG DORJÉ, Le Traité distinguant
conscience individuelle et sagesse, tradução inglesa de Peter Roberts, tradução em francês
do inglês e do tibetano por Tashi Tcheudreun, Saint-Cannat, Éditions Claire Lumière,
2007, p.92.
65 ||
ja, determinação e limite, ao que a não tem, se não for pelas operações mentais
abstractamente desintegrado do corpo ou tessitura de relações e interdependên-
cias da realidade global. Ainda nesta perspectiva as operações mentais são re-
lacionadas, como acontece na ilosoia Vedanta, com a noção indiana de māyā,
cujo sentido habitual de ilusão procede de um mais original em que designa o
jogo e poder criador dos deuses, a demiurgia que faz aparecer com forma o que a
não tem, o informe. Neste sentido, o trabalho da mente pode ser visto como uma
prestidigitação ou ilusionismo contínuo, uma operação mágica cujo primeiro
sortilégio é o aparecimento, num fundo original indiferenciado e indeterminado,
de observador e observado, sujeito e objecto, consciência e realidade, eu e outro,
enquanto criação que se confunde com um dado porque a actividade criadora é
inaparente para a mente desatenta ao jogo impulsivo e irrelectido dos intuitos,
juízos e conceitos com que a cada momento constrói uma dada percepção do
mundo. É neste prisma que toda a cosmovisão é ainal uma cosmoicção. Como
diz Agostinho da Silva: “Talvez não tenha cada um sua mundividência; mais certo
seria dizer-se que tem sua mundinvenção, e que só essa é real” 155.
|| 66
mentais numa consciência ou experiência silenciosa, pura e nua, sem forma nem con-
teúdo, como na vertente dita “mística” das espiritualidades planetárias 157.
Note-se que também nas línguas anglo-germânicas o que se traduz como “pen-
sar” tem um sentido muito diverso da etimologia latina. Pensar é agradecer, como
mostra a raiz comum do inglês “think” e “thank” e do alemão “denken” e “danken”,
mas também reconhecer, recordar e comemorar (“Gedanke” é aim a “gedenken”)
161
. Como escreve Paul Celan: “Pensar e agradecer, denken und danken, são na nossa
157 Cf. AAVV, he Problem of Pure Consciousness. Mysticism and Philosophy, editado por
Robert K. C. Forman, Nova Iorque/Oxford, Oxford University Press, 1990; Robert K.
C. FORMAN, Mysticism, Mind, Consciousness, Albany, State University of New York
Press, 1999.
158 Cf. Pero MEOGO, Cantigas de Amigo dos Trovadores Galego-Portugueses, edição crítica
de José Joaquim Nunes, II, CCCCXIII, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p.374.
159 Cf. José ENES, Linguagem e Ser, pp.146-150.
160 Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, p.187.
161 Cf. Martin HEIDEGGER, Qu’apelle-t-on penser?, traduzido do alemão por Aloys Becker
e Gerard Granel, Paris, PUF, 1983, 4ª edição, p.238; “L’Expérience de la pensée”, in
Questions III, traduzido do alemão por André Preau, Julien Hervier e Roger Munier,
Paris, Gallimard, 1966, p.33. Cf. também José ENES, Linguagem e Ser, pp.130-135.
67 ||
língua palavras com uma única e mesma origem. Quem se abandona ao seu senti-
do aventura-se no campo de signiicação de “lembrar-se”, “recordar-se”, “memória”,
“recolhimento” (gedenken, eingedenk sein, Andenken, Andacht)” 162.
162 Cf. Paul CELAN, “Discours de Brême”, tradução de John E. Jackson, Revue de Belles
Lettres, nº2-3 (1972). Cf. Philippe LACOUE-LABARTHE, La poésie comme expérience,
s. l., Christian Bourgois éditeur, 2015, pp.35-37.
163 Cf. Álvaro de CAMPOS, “Ah, perante esta única realidade, que é o mistério”, in Fernando
PESSOA, Obras, I, introduções, organização, biobibliograia e notas de António
Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, pp.1018-1020.
Cf. o nosso comentário deste poema em Paulo BORGES, Do Vazio ao Cais Absoluto ou
Fernando Pessoa entre Oriente e Ocidente, Lisboa, Âncora Editora, 2017, pp.73-82.
|| 68
Cabe aqui recordar duas iguras icónicas, na arte ocidental, do pensar como pe-
sar, que porventura nelas revela toda a ambivalência que faz com que do mesmo
pensare / pendere latino venha o pesar no sentido verbal de aligir, causar tristeza, ou
nominal de mágoa, desgosto, remorso, arrependimento, tristeza (cf. os “pêsames”).
Giorgio Agamben recorda que na língua italiana “pensamento” signiica original-
mente angústia, ímpeto ansioso, ainda patente na expressão familiar: “stare in pen-
siero” (estar atormentado) 165. Que iguras haverá mais paradigmáticas disso do que
Melencolia I de Albrecht Dürer (igura 1) e O Pensador de Auguste Rodin (igura 2),
que originalmente se chamou O Poeta e visava representar Dante perante as Portas
do Inferno? Em ambos encontramos a coluna vertebral e o corpo dobrados, com a
cabeça baixa apoiada na mão e o cotovelo no joelho, na postura típica da re-lexão,
essa dobra pensativa e pesarosa do espírito sobre si mesmo que se propaga ao corpo
na curvatura da coluna que – dir-se-ia no Oriente – diiculta e desarmoniza o luxo
da energia vital (o prana indiano, o ch’i chinês, o rlung tibetano) e evidencia o ensi-
mesmamento do sujeito fechado ao mundo ou dele desligado por estar (pré-)ocu-
pado ou perdido no labirinto ou ruminação dos pensamentos. No caso da gravura
de Dürer, Klibansky, Panofsky e Saxl bem mostraram como nela estão os motivos
tradicionais do temperamento melancólico ou saturnino, na versão de uma acédia
inactiva, que notamos surgir associada aos instrumentos de pesar, medir e contar
(a balança, o compasso, a ampulheta, o quadro…) que fazem com a que a igura
feminina, apesar de ser alada e de o seu olhar se erguer para o espaço longínquo,
na verdade tenha um rosto sombrio assente num punho fechado e pese sobre a
164 Cf. Rémi BRAGUE, Le Règne de l’Homme. Genèse et échec du projet moderne, pp.7 e 14.
165 Cf. Giorgio AGAMBEN, La Fine del Pensiero / La Fin de la Pensée, edição bilíngue, Paris,
Le Nouveau Commerce, 1982.
69 ||
terra numa marcada atmosfera crepuscular e ocidental, pois ao longe o sol decli-
na e morre (Ocidente vem do occidere latino, que signiica desmoronar-se, morrer,
desaparecer). Dizem os autores, na sua obra clássica sobre Saturno e a Melancolia,
que o punho cerrado “simboliza agora a concentração fanática de um espírito que
captou verdadeiramente um problema, mas que, ao mesmo tempo, se sente incapaz
de o resolver ou de dele se desembaraçar” 166. O “anoitecer” ou “twilight” em que
mergulha toda a imagem “indica o anoitecer inquietante do espírito que não pode
nem rejeitar os seus pensamentos na sombra, nem “levá-los à luz””. Desprende-se
assim da igura uma clara sensação de fracasso e insucesso, acentuado no “olhar
pensativo, pungente, preso no longínquo”, mas “desviado do mundo”, de uma mu-
lher laureada, “mas sem nenhum sorriso de vitória”” 167. Cremos não haver melhor
ilustração do tormento típico de muitos intelectuais e característico do pensamen-
to conceptual que, pela sua própria natureza apropriativa, reiicante e geradora de
problemas ictícios e por isso sem solução, se confronta com os seus limites sem
conseguir experienciá-los como limiares de autotranscendência 168.
|| 70
169 Cf. Paulo BORGES, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral, pp.21-
22 e 111-116.
170 Cf. Jens BRAARVIG, “Words for “Meditation” in Classical Yoga and Early Buddhism”, in
AAVV, Hindu, Buddhist and Daoist Meditation, edição de Halvor Eifring, Oslo, Hermes
Publishing, 2014, pp.41-56.
171 Como escreve o Professor Carlos Silva, num trabalho inédito que generosa e honrosamente
nos disponibilizou e dedicou, “Dhyana, da raiz *dhî-, “brilhar”, “irradiar”…, comparável
ao gr. thaumázo, “admirar-se” e também a theázomai, “ver em espanto”…, como no
lat. ido, “coniar”…, tem sempre suposta uma indicação do pensar como meditação
ou até de ordem contemplativa. Cf. Franco RENDICH, Comparative etymological
Dictionary of classical Indo-European languages, Indo-European – Sanskrit – Greek –
Latin, London, Amazon Repr., s.d., p. 283; S. M. MONIER-WILLIAMS, A Sanskrit-
English Dictionary, Oxford, Clarendon Pr., reed. 1970, p. 520; Jean HERBERT e Jean
VARENNE, Vocabulaire de l’hindouisme, Paris, Dervy, 1985, p. 45 sub nom » – Carlos
H. do C. SILVA, « CISMANDO A VIDA CONTEMPLATIVA – Para uma abordagem
sapiente e diferencial” (Texto-base para a comunicação no Colóquio Internacional: «Vita
Contemplativa – Práticas Contemplativas e Cultura Contemporânea », Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, 19 de Outubro de 2015, inédito).
172 “Quando alguém, não um ego necessitado, sai ao mundo a percepcionar, a sentir e a
conhecer, nada é segundo a medida de alguém, tudo é desconcertantemente livre e sem
referência a ninguém. Quando se sai assim, não se sai a caçar porque já não existe a caça,
nem ninguém pode voltar a casa carregado com uma peça, porque nem há caçador, nem
há peça, nem há casa onde voltar” – Marià Corbí, Hacia una espiritualidade laica. Sin
creencias, sin religiones, sin dioses, Barcelona, Herder, 2007, pp.297-298.
71 ||
173 Cf. PATAÑJALI, he Yoga-Sūtra, III, 3, pp.96-97; Mircea ELIADE, Le Yoga. Immortalité
et Liberté, Paris, Payot, 1991, pp.86-94.
174 Cf. Chāndogya Upanishad, VII, 6.1, in Hindu Scriptures, traduzidas e editadas por R. C.
Zaehner, Londres, Everyman’s Library, 1992, p.146.
|| 72
175 Sobre esta questão, cf. Jean BRUN, A Mão e o Espírito, tradução de Mário Rui Almeida
Matos, revista por Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1990.
176 Cf. Shizuteru UEDA, Zen y Filosofía, edição de Raquel Bouzo García, tradução de Ra-
quel Bouzo García, Barcelona, Herder, 2004, pp.34-42. Transcrevemos alguns trechos
expressivos do que referimos: “Em antropologia, a postura erguida é considerada como
a característica que tornou possível o desenvolvimento das diferentes culturas do mun-
do. Com a postura bípede, as nossas mãos icaram livres, proporcionando-nos a “aber-
tura” necessária para transcender o nosso meio ambiente biológico e transformá-lo num
mundo humano. (…) A razão de a postura vertical ser considerada a base da superiori-
dade humana é (…) que esta posição liberta as nossas mãos para fazer coisas e isso evita
que iquemos apanhados no nosso meio biológico graças à criação de uma cultura nova.
Contudo, ao fazê-lo, a própria humanidade situa-se no centro da existência e passa a
impor, cada vez mais aceleradamente, esta estrutura antropocêntrica em todo o mundo.
Parece-me que um simples olhar rápido ao estado do meio ambiente basta para que
comprovemos aonde nos conduziu tal atitude. Pelo contrário, o sentar-se com as mãos
e as pernas imóveis anula todos os meios de superioridade biológica do homem e de-
volve-o, por um momento, ao ponto de “não fazer” (…) Os olhos, ainda que per-
maneçam abertos, não olham nada em particular, simplesmente estão abertos a uma
73 ||
Neste sentido é muito sugestivo que algumas das mais antigas imagens da
postura meditativa – como por exemplo as que surgem na cultura pré-indo-eu-
ropeia de Mohenjo-Daro, no vale do Indo, ou na cultura céltica – sejam iguras
antropomóricas, porventura de divindades como um proto-Shiva (igura 3) ou
Cernunos (igura 4), com chifres e animais ao seu redor. É como se a postura
meditativa fosse um ícone da experiência original da não separação humano-
-divino-natureza ou natureza-cultura 177, e assim de uma experiência da unidade
superabundante do real alheia à deriva epistemológica e objectivante da razão
antropocêntrica europeia-ocidental hoje globalizada. Essa experiência pode ser,
como aponta Eudoro de Sousa, a da integração original no triângulo da comple-
mentaridade simbólica 178 anterior à dolorosa cisão pela qual o humano, o divino
e o mundo / natureza se passaram a conceber como entidades distintas e separa-
das 179, na progressiva deriva dessa experiência arcaica ou auroral – mais dançada
ou ritualmente dramatizada nos povos indígenas do que relectida e verbalizada,
pois anterior à separação entre a consciência mental-verbal e a espiritual-corporal
– para a ilosoia categorial que tudo encerra em classes e ordens lógicas distintas.
abertura luminosa, uma abertura que não pertence à classe de abertura na qual o eu é o
centro. Quando estamos de pé, também estamos abertos ao mundo, porém trata-se de
uma abertura centrada inevitavelmente no eu e, portanto, limitada ao eu. Em vez disso,
ao estar sentado com as mãos e as pernas imóveis, sem olhar nada em particular, estan-
do meramente em presença da luminosidade, não se é o centro senão que, simples-
mente, se está aberto à abertura ininita. Pode ser que isto nos pareça um estado en-
simesmado, porém, na realidade, é muito mais signiicativo que isso: é um estado de não
confrontação, no qual nenhuma coisa é considerada como um objecto. Além disso, este
é um modo de ser que se actualiza isicamente na prática do zazen” – Ibid., pp.36-38.
177 Cf. Philippe DESCOLA, Par-delà Nature et Culture, Paris, Gallimard, 2005.
178 Cf. Eudoro de SOUSA, Mitologia. História e Mito, apresentação de Constança Marcondes
César, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.77-80 e 315-325. Eudoro an-
tecipa muito da intuição cosmoteândrica: Raimon PANIKKAR, Intuição Cosmoteândrica.
A Religião do Terceiro Milénio, Lisboa, Editorial Notícias, 2003.
179 Cf. Eudoro de SOUSA, Sempre o Mesmo Acerca do Mesmo, in Horizonte e Complemen-
taridade. Sempre o Mesmo Acerca do Mesmo, prefácio de Fernando Bastos, Lisboa, Im-
prensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, p.185.
|| 74
75 ||
184 Cf. Peter SLOTERDIJK, La mobilisation ininie. Vers une critique de la cinétique politique,
pp.24-26 e 28.
185 “One is almost tempted to resuscitate the old infamous Marxist cliché of religion as the
“opium of the people,” as the imaginary supplement to terrestrial misery. he “Western
Buddhist” meditative stance is arguably the most eicient way for us to fully participate in
capitalist dynamics while retaining the appearance of mental sanity. If Max Weber were
alive today, he would deinitely write a second, supplementary, volume to his Protestant
Ethic, entitled he Taoist Ethic and the Spirit of Global Capitalism” – Slavoj ZIZEK, “From
Western Marxism to Western Buddhism”, Cabinet, 2 (Spring, 2001).
186 Cf. a célebre deinição do yoga: “Yoga é a restrição das lutuações (vrtti) da consciência”
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77 ||
prefácio de Daniel Goleman, Londres, Bantam Books, 2009, p.63; “Precisamente porque
a nossa mais profunda identidade, fundando a personalidade, está oculta com Cristo em
Deus e para além do alcance da compreensão, a experiência desta identidade-fundo que
é uma com Deus será registada na nossa percepção, se na verdade se regista, como uma
experiência de nenhuma coisa particular, um grande e luente abismo, um fundo sem
fundo. Para aqueles que só conhecem a mente discursiva, isto pode parecer um terror
que lida com a morte ou uma vertigem giratória. Mas, para aqueles cuja mente se dilatou
numa mente-coração, é um encontro transbordante com o luxo da vasta e aberta
vacuidade que é o fundo de tudo. Esta “não coisa” [“no thing”], esta vacuidade, não é
uma ausência, mas uma superabundância” – Martin LAIRD, Into the Silent Land. he
Practice of Contemplation, Londres, Darton, Logman and Todd, 2009, p.14.
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79 ||
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Figura 3 – Shiva-Pashupati
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Shiva_Pashupati.jpg
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83 ||
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190 Cf. duas visões complementares deste processo, nas tradições heravada e Zen: Bikkhu
BODHI, “he Transformations of Mindfulness”, in AAVV, Handbook of Mindfulness.
Culture, Context, and Social Engagement, editado por Ronald E. Purser, David Forbes
e Adam Burke, Springer, 2016, pp. 3-14; Robert H. SHARF, “Is mindfulness buddhist?
(and why it matters)”, in AAVV, What’s Wrong With Mindfulness (And What Isn’t). Zen
Perspectives, pp.139-151.
191 Cf. Anguttara Nikāya 8:6; IV 157-159, In the Buddha’s Words. An anthology of discourses
from the pāli canon, editada e introduzida por Bhikkhu Bodhi, prefácio do Dalai Lama,
Boston, Wisdom Publications, 2005, pp.32-33.
85 ||
192 Cf. Jon KABAT-ZINN, Full Catastrophe Living: Using the Wisdom of Your Body and
Mind to Face Stress, Pain, and Illness; J. Mark G. WILLIAMS e John KABAT-ZINN,
“Mindfulness: diverse perspectives on its meaning, origins, and multiple applications at
the intersection of science and dharma”, in AAVV, Mindfulness. Diverse Perspectives on its
Meaning, Origins and Applications, pp.1-17; John KABAT-ZINN, “Some relections on
the origins of MBSR, skillful means, and the trouble with maps”, in AAVV, Mindfulness.
Diverse Perspectives on its Meaning, Origins and Applications, pp.281-306.
193 Vejam-se alguns exemplos recentes: Jake H. DAVIS / David R. VAGO, “Can enlighten-
ment be traced to speciic neural correlates, cognition, or behavior? No, and (a qua-
liied) Yes”, Frontiers in Psychology (November, 2013), vol. 4, pp.1-4; Gaëlle DESBOR-
DES, Tim GARD, Elizabeth A. HOGE, Britta K. HÖLZEL, Catherine KERR, Sara W.
LAZAR, Andrew OLENDZKI, David R. VAGO, “Moving Beyond Mindfulness: Dein-
ing Equanimity as an Outcome Measure in Meditation and Contemplative Research”,
Mindfulness (December, 2013), vol. 4, nº4; Jared R. LINDAHL, “Why Right Mindful-
ness Might Not Be Right for Mindfulness”, Mindfulness (2015) 6:57–62 , DOI 10.1007/
s12671-014-0380-5; AAVV, Handbook of Mindfulness. Culture, Context, and Social
Engagement, editado por Ronald E. Purser, David Forbes e Adam Burke, Springer,
2016; Miguel FARIAS, Catherine WIKHOLM, “Has the science of mindfulness lost its
mind?”, BJPsych Bulletin (2016), 40, 329-332, doi: 10.1192/pb.bp.116.053686; Adam W.
HANLEY, Neil ABELL, Debra S. OSBORN, Alysia D. ROEHRIG e Angela I. CANTO,
“Mind the Gaps: Are Conclusions About Mindfulness Entirely Conclusive?”, Journal
of Counseling & Development (January, 2016), vol. 94, pp.103-113; P. SHARMA, S.
SINGH, S. GNANAVEL, N. KUMAR, “Meditation – a two edged sword for psycho-
sis: a case report”, Irish Journal of Psychological Medicine (2016), 33, 247–249; J. David
CRESWELL, “Mindfulness Interventions”, Annual Review of Psychology (2017), doi:
10.1146/annurev-psych-042716-051139; A. CHIESA, T. FAZIA, L. BERNARDINELLI,
G. MORANDI, “Citation patterns and trends of systematic reviews about mindfulness”,
Complementary herapies in Clinical Practice (2017), doi: 10.1016/j.ctcp.2017.04.006.
|| 86
194 hich Nhat HANH, “Preface”, in Jon KABAT-ZINN, Full Catastrophe Living: Using the
Wisdom of Your Body and Mind to Face Stress, Pain, and Illness, p.XXIII.
195 John KABAT-ZINN, “Some relections on the origins of MBSR, skillful means, and the
trouble with maps”, in AAVV, Mindfulness. Diverse Perspectives on its Meaning, Origins
and Applications, pp.281-306, p.288.
196 Cf. Ibid., pp.287, 288 e 293-294.
87 ||
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89 ||
Dito isto, toda a questão reside em averiguar se as novas portas que se abrem
continuam a ser portas do Dharma, não no sentido de serem portas “budistas”,
mas no de constituírem meios hábeis que levam a todo o tipo de seres humanos,
nas suas concretas e singulares condições mentais e circunstâncias de vida, uma
informação e uma prática benéicas e libertadoras, que sem os converter a uma
religião ou ilosoia não deixe contudo de lhes propor e de lhes possibilitar um
caminho profundo de paciicação, despertar e libertação da consciência e não
meras terapias ou formas de bem-estar supericiais e fugazes. No que respeita à
questão especíica da mindfulness, e recordando as palavras de Jon Kabat-Zinn,
há que ponderar se os posteriores e actuais rumos da mindfulness, dos seus
202 hich Nhat HANH, Living Buddha, Living Christ, introdução de Elaine Pagels, prefácio
do Irmão David Steindl-Rast, Nova Iorque, Riverhead Books, 2007, p.39.
|| 90
91 ||
egocêntrica (o que é inevitável numa mente que ainda não se desfez do conceito
de um eu separado dos outros e do mundo). Sem pretender compará-lo com a
mindfulness, fenómeno a um nível bem menor da evolução da consciência, é o
que aconteceu em que as revoluções espirituais da humanidade se converteram
em religiões socialmente institucionalizadas, adaptadas aos medos e expectativas
da consciência colectiva e ao apetite de poder de alguns, é o que aconteceu quan-
do a ilosoia se converteu de interrogação profunda e modo de vida numa prois-
são e num currículo escolar intelectualizado e é o que aconteceu, num fenómeno
ainda recente e já aim ao que acontece com a mindfulness, com o yoga ao passar
de via de libertação para técnica de bem-estar integrada no novo mercado da “es-
piritualidade”. Não duvidando das intenções de Jon Kabat-Zinn, cremos que era
previsível e inevitável que na sua evolução a mindfulness cedesse às preocupações
mundanas a partir do momento em que – se não na intenção e prática do seu
fundador e de muitos professores empenhados, mas nas de muitos outros que
não seguem o seu exemplo e têm a via livre para isso – surgiu de ou evoluiu pa-
ra uma efectiva decontextualização do lugar que ocupa no ensinamento budista
tradicional, onde foi separada do nobre caminho óctuplo (no qual é indissociável
da ética e da sabedoria), dos sete factores da iluminação e da tríade visão-medita-
ção-acção, bem como dos fundamentos e enquadramento indispensáveis de uma
via espiritual autêntica, como são, no caso budista, a renúncia (à ideia de um eu
permanente, independente e singular, ao desejo ávido e à aversão e às consequen-
tes preocupações mundanas: ganhar e perder, prazer e dor, elogio e censura, fama
e descrédito), a devoção/aspiração ao Despertar da consciência (a aspiração a ser
Buda) e a compaixão/bodhicitta (fazer isso pelo bem de todos os seres).
|| 92
ta, que a formação se faça segundo os melhores critérios e com o melhor tempo
de maturação, e que os formadores sejam necessariamente pessoas que hajam
desenvolvido o melhor potencial da consciência e do ser, tendo contactado o
essencial em si e estando assim qualiicados para o transmitir ou sugerir mini-
mamente aos outros, acompanhando-os com sabedoria, amor e compaixão ao
longo de um processo longo que pode ser recheado de irrupções psíquicas difí-
ceis de gerir (não parece aliás haver essa intenção nas formações aceleradas de
oito semanas, após as quais as pessoas são em geral abandonadas à sua sorte 205).
Esta situação é neste momento alvo de debate aceso e de publicações de quali-
dade onde se equaciona por exemplo o contraste entre a McMindfulness, uma
espécie de pronto-socorro ou técnica de auto-ajuda para todos os problemas,
e uma “mindfulness crítica” (não só da mindfulness, mas das próprias críticas
a ela) 206. Como é habitual, no preciso momento do aparente triunfo do movi-
mento da mindfulness surgem os sinais de uma reacção crítica que a contesta
em pontos essenciais no que respeita à sua natureza, evolução e credibilidade.
A nosso ver, eis algumas das questões mais problemáticas que surgem da
efectiva decontextualização da mindfulness da sua matriz budista e, num senti-
do mais amplo, da decontextualização da prática meditativa do seu tradicional
enquadramento numa via espiritual integral, budista ou outra:
205 Cf. Marc R. POIRIER, “Mischief in the marketplace for mindfulness”, in AAVV, What’s
Wrong With Mindfulness (And What Isn’t). Zen Perspectives, p.21.
206 Cf. Zack WALSH, “A Meta-Critique of Mindfulness Critiques: From McMindfulness to
Critical Mindfulness”, in AAVV, Handbook of Mindfulness. Culture, Context, and Social
Engagement, pp.153-166.
93 ||
praticantes, sendo considerados mestres aqueles que por sua vez foram reconheci-
dos pelos seus próprios mestres e comunidades, numa cadeia que remonta aos pró-
prios fundadores de cada tradição. Em vez disso, na actual secularização das práticas
meditativas a certiicação passou a fazer-se de forma escolarizada, proissionalizada
e comercializada, com base no domínio técnico de programas e protocolos ao longo
de formações (muito bem) pagas onde oito semanas de treino e um ou alguns reti-
ros não se podem comparar a vidas inteiras ou muitos anos totalmente dedicados
ao estudo, à meditação e à ética unicamente com vista ao despertar da consciência
pelo bem de todos os seres (como acontece na tradição budista e tem o seu análogo
noutras tradições). No novo contexto secular, os formadores, com todas as felizes e
honrosas excepções, tendem maioritariamente a ser técnicos formados por outros
técnicos e muito improvavelmente mestres ou professores despertos ou minima-
mente inspirados pelo vislumbre da natureza profunda, incondicionada e bondosa
do ser e da consciência, tendendo assim a reproduzir-se com uma motivação incer-
ta na transmissão de métodos, sobretudo de concentração, que neste contexto ainda
menos se pode garantir que venham a servir o pleno desenvolvimento humano
ou a ser utilizados de forma minimamente ética, como adiante referiremos. Além
disto, no presente contexto desaparece ou é mínima a validação e acompanhamento
comunitários dos formadores e dos formandos .
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95 ||
|| 96
“Estando ausente uma aguda crítica social, as práticas budistas podem fa-
cilmente ser usadas para justiicar e estabilizar o status quo, tornando-se um
reforço do capitalismo consumista” 212.
97 ||
214 Cf. Paulo BORGES, “A ética na via do Buda”, in AAVV, Ética. Teoria e Prática, coordenação
de Cristina Beckert, Manuel João Pires, Sara Fernandes e Teresa Antunes, Centro de
Filosoia da Universidade de Lisboa, 2012, pp.59-81; “Mente, ética e natureza no budismo.
A constituição kármica da experiência do mundo”, in Descobrir Buda. Estudos e ensaios
sobre a via do Despertar, Lisboa, Âncora Editora, 2010, pp.33-50.
215 http://www.matthieuricard.org/en/blog/posts/a-sniper-s-mindfulness (acedido em 10.08.2017).
216 “he brain is not the self ” – Marc R. POIRIER, “Mischief in the Market Place for
Mindfulness”, in AAVV, What’s Wrong With Mindfulness (and what isn’t). Zen
Perspectives, p.23.
217 Cf. Robert Meikyo ROSENBAUM, “Mindfulness Myths. Fantasies and facts”, in AAVV,
What’s Wrong With Mindfulness (and what isn’t). Zen Perspectives, pp.55-59.
|| 98
deixar de se ver separado dela e assim de todos e de cada um dos seres vivos. E
a melhor prova disso não é dada por electroencefalogramas, tumograias axiais
computorizadas ou imagens de ressonância magnética, mas sim por uma vida
impregnada de amor e compaixão universais, o que no vocabulário espiritual tra-
dicional se chama com toda a justeza realização.
218 Cf. Pat Enkyo O’HARA, “Which River Will You Cross?”, Buddhadharma, Fall 2014, pp.7-8.
219 Cf. Miles NEALE, “Frozen Yoga and McMindfulness: A Critical Perspective on the
Mainstreaming of Contemplative Practice”, Shambhala Sun Space, 2010; Jon KABAT-
ZINN, “Mindfulness has huge health potential—But McMindfulness is no panacea”, he
Guardian, October 20, 2015.
99 ||
220 Cf. Ron PURSER e David LOY, “Beyond McMindfulness”, citado em Hozan Alan
SENAUKE, “One Body, Whole Life”, in AAVV, What’s Wrong With Mindfulness (And
What Isn’t). Zen Perspectives, p.75.
221 Cf. Bhikkhu BODHI, “What does mindfulness really mean? A canonical perspective”,
in AAVV, Mindfulness. Diverse Perspectives on its Meaning, Origins and Applications,
pp.22-25.
222 Cf. Gil FRONSDAL e Max ERDSTEIN, “Two practices, one path”, in AAVV, What’s
Wrong With Mindfulness (And What Isn’t). Zen Perspectives, p.96.
|| 100
algo que não se pratica, mas que se tem: nesse sentido, seria melhor traduzi-la
como “awareness” ou “consciência”, enquanto “estado de atenção receptiva que
não requer esforço autoconsciente” 223.
Seja como for, o que parece fundamental notar é que a primeira referência
do Buda Gautama a sati surge no seu primeiro discurso, como o sétimo aspecto
do “Nobre Caminho Óctuplo” 224, que por sua vez constitui a quarta das quatro
nobres verdades (ou “tarefas”, na leitura ética e não metafísica de Stephen Bat-
chelor 225): 1 – a compreensão da insatisfação, mal-estar ou sofrimento (dukkha)
inerente à experiência condicionada da vida; 2 – o abandono da sua origem,
primeiro identiicada com o desejo ávido (tanhā) e depois completada com a
ilusão e o ódio 226; 3 – a realização ou reconhecimento da cessação de dukkha;
4 – o desenvolvimento do caminho que conduz a essa cessação (magga). Sati
integra o “caminho do meio”, deinido como equidistante dos extremos da bus-
ca de felicidade nos prazeres sensoriais e da sua recusa auto-mortiicadora 227.
Designada como sammā sati 228, ou seja, atenção ou consciência plena 229, é in-
separável dos oito aspectos do caminho: visão, pensamento (intenção), palavra,
acção, meio de existência, esforço, atenção e concentração, todos qualiicados
como sammā, que signiica pleno, completo, perfeito, e daí justo ou recto, co-
mo muitas vezes se traduz, mas que não deve ser reduzido ao sentido moral.
Expusemos noutro estudo com algum detalhe o sentido de cada um destes oito
223 Cf. Ibid., p.97.
224 Cf. Samyutta Nikāya 56:11: Dhammacakkappavattana Sutta; V 420-424, in he Connected
Discourses of the Buddha: A New Translation of the Samyutta Nikāya, II, tradução de
Bhikkhu Bodhi, Somerville, MA: Wisdom Publications, 2000, p.1844.
225 Cf. Stephen BATCHELOR, Ater Buddhism. Rethinking the dharma for a secular age,
New Haven / London, Yale University Press, 2015, p.122.
226 Anguttara Nikāya 3:65; I 188-193, in In the Buddha’s Words. An anthology of discourses
from the pāli canon, p.89.
227 Cf. Samyutta Nikāya 56:11: Dhammacakkappavattana Sutta; V 420-424, in he Connected
Discourses of the Buddha: A New Translation of the Samyutta Nikāya, II, p.1844.
228 Cf. Walpola RAHULA, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens,
p.68.
229 “Eu descreveria a atenção plena (“mindfulness”) como uma consciência (“awareness”)
lúcida do campo fenomenal” – Bhikkhu BODHI, “What does mindfulness really mean?
A canonical perspective”, in AAVV, Mindfulness. Diverse Perspectives on its Meaning,
Origins and Applications, p.22.
101 ||
230 Cf. Paulo BORGES, “A ética na via do Buda”, in AAVV, Ética. Teoria e Prática, pp.59-81.
231 Cf. Majjhima-nikāya I (edição PTS), p.301, citado in Walpola RAHULA, L’enseignement
du Bouddha d’après les textes les plus anciens, p.69.
232 Cf. Samyutta Nikāya 22:45; III 44-45, in In the Buddha’s Words. An anthology of discourses
from the pāli canon, pp.342-343.
233 Cf. Ibid.
|| 102
234 Cf. Majjhima Nikāya 10: Satipatthāna Sutta; I 55-63, in In the Buddha’s Words. An
Anthology of Discourses from the Pāli Canon, p.281.
235 Cf. Ibid.
236 Cf. Ibid., pp.288-289.
237 Cf. Ibid., p.290.
238 Cf. Samyutta Nikāya 38:1; IV 251-252, in In the Buddha’s Words. An Anthology of
Discourses from the Pāli Canon, p.364.
239 Cf. Samyutta Nikāya 43: 1-44, in Ibid., pp.364-365 e Udāna 8:3; 80-81, in Ibid., p.366.
103 ||
destino” 240. Esta airmação é importante, pois mostra não haver dualidade
entre meio e im: o meio é o im, o im é o meio. Neste sentido, o caminho,
em todos os seus oito aspectos e em cada um deles, é já o próprio Nibbāna,
ou incondicionado, que consiste não numa “visão especulativa” 241, mas nu-
ma “destruição, desvanecimento, cessação, abandono e desistência de toda
a concepção, de toda a ruminação, de todo o fazer-eu, fazer-meu e da ten-
dência subjacente para a presunção”, o que torna “o Tathāgata (…) livre pelo
não apego” 242. Perante a perplexidade de um interlocutor, o Buda declara
que ela é normal, pois este “Dhamma”, no duplo sentido de ensinamento e
via, é algo de “subtil”, “inalcançável pelo mero raciocínio”, que há que “ser
experienciado pelos sábios” 243. A experiência em causa, a do estado de Buda,
é a de uma libertação de todas as formas de a considerar, medir e descrever
segundo os cinco agregados e as categorias do pensamento-linguagem, que
apenas expressam os estados de uma experiência por essas mesmas categorias
construídos e condicionados 244. O que se designa como Buda é a experiência
plena e irreversível de uma “base” sem qualquer base ou “suporte” (um fundo
sem fundo, um espaço sem dimensões, ou seja, o ininito), sendo de destacar
que o Buda Gautama acrescente que “apenas isto é o im do sofrimento” 245. O
que se designa como Buda é algo “livre do cálculo em termos de consciência”
(conceptual) e assim “profundo, imensurável, difícil de sondar como o ocea-
no” 246. O sofrimento só tem um im deinitivo pela libertação da consciência
de todo o apego a um qualquer objecto, conceito ou visão e pela experiência
incondicionada que nisso se abre, sendo isto a essência do caminho em que
a atenção plena se insere, enquanto cura profunda que não se limita a tratar
ou atenuar os sintomas do mal-estar, ou a promover formas compensatórias
de bem-estar fugaz, mas visa a irreversível erradicação das causas profundas
da insatisfação e do sofrimento – a ignorância da natureza insubstancial, im-
permanente e insatisfatória dos fenómenos condicionados e as consequentes
240 Cf. Samyutta Nikāya 43: 1-44, in Ibid.,p.365.
241 Cf. Majjhima Nikāya 72: Aggivacchagotta Sutta; I 486-488, in Ibid., p.367.
242 Cf. Ibid.
243 Cf. Ibid., p.368.
244 Cf. Ibid., pp.368-369.
245 Cf. Udāna 8:1; 80, in Ibid., pp.365-366.
246 Cf. Majjhima Nikāya 72: Aggivacchagotta Sutta; I 486-488, in Ibid., p.369.
|| 104
Cremos que não será aqui redundante citar de novo o trecho transcrito um
pouco acima:
247 Cf. Anguttara Nikāya 8:6; IV 157-159, in In the Buddha’s Words. An anthology of discourses
from the pāli canon, pp.32-33.
105 ||
das suas raízes budistas, nem sequer estar conscientes do modo alternativo
aqui descrito” 248.
248 Marc R. POIRIER, “Mischief in the Market Place for Mindfulness”, in AAVV, What’s
Wrong With Mindfulness (and what isn’t). Zen Perspectives, p.26.
|| 106
249 Cf. THRANGOU RINPOCHE, Le Traité des 5 Sagesses et des 8 Consciences, tradução
e comentário da obra do III Karmapa RANGJUNG DORJÉ Le Traité distinguant
conscience individuelle et sagesse, tradução inglesa de Peter Roberts, tradução em francês
do inglês e do tibetano por Tashi Tcheudreun, Saint-Cannat, Éditions Claire Lumière,
2007, p.92.
250 Cf. Ibid., pp.95-101.
251 Cf. Nyoshul Khenpo Jamyang DORJE, he Fearless Lion’s Roar. Profound instructions on
Dzogchen, the Great Perfection, com comentários sobre Jigme LINGPA, he Lion’s Roar,
e LONGCHENPA, Resting at Ease in Illusion, traduzido por David Christensen, Boston
/ Londres, Snow Lion, 2015, pp.131-133.
107 ||
|| 108
Ainda na visão do Dzogchen tibetano, exposto agora pela tradição Bön pré-
-budista, há uma tríade na experiência do estado primordial: o fundo universal
(künshi) é designado como ma, “mãe”, a vacuidade primordial e matricial onde
tudo emerge; a clareza ou luminosidade do seu reconhecimento espontaneamen-
te emergente é bu, o “ilho”, a consciência desperta (rigpa); a energia criativa e
compassiva, a própria inseparabilidade da “mãe” e do “ilho”, é tsel, de onde emer-
gem as cinco energias luminosas que estruturam toda a manifestação 256. Esta
tríade, na escola Nyingma do budismo tibetano, corresponde a outra: essência
(ngowo) vazia, natureza (rang shyin) luminosa e energia compassiva (thukjé) 257.
O despertar da consciência é visto, nas primeiras metáforas, como o regresso do
ilho ao regaço materno 258, o que não deixa de evocar, na tradição evangélica e
cristã, a alegoria do regresso do ilho pródigo à casa paterna, ou no gnosticismo
o exílio e regresso da alma à sua natureza divina 259. As referidas tríades tibetanas
também não deixam de evocar, salvaguardada toda a diferença de contextos entre
uma tradição não-teísta e outra teísta, várias leituras teológico-ilosóicas da dinâ-
mica da Trindade cristã (em que o Pai corresponde ao ser, o Filho à sabedoria e o
Espírito Santo ao amor que da união do Pai e do Filho procede).
109 ||
|| 110
260 Cf. Chögyam TRUNGPA, he Path is the Goal, in he Collected Works of Chögyam
Trungpa, vol. 2, editado por Carolyn Rose Gimian, Boston / Londres, 2003, p.20
261 Cf. Ibid., p.21.
262 Cf. Ibid., pp.10-11.
263 Cf. Ibid., p.13.
264 Cf. Ibid., p.26.
265 Cf. Ibid., p.28.
266 Cf. Ibid., p.12.
111 ||
É essa luz que, numa profunda sugestão para o encontro e diálogo inter-re-
ligiosos, está na etimologia da palavra Deus, procedente da raiz indo-europeia
dei-, que designa “tudo o que brilha”, remete para a luminosidade do céu aberto
e origina o português “dia” (do latino dies) 267. Jean-Yves Leloup segue contudo
uma outra via, dizendo que o “Deus” latino não traduz adequadamente o héos
grego, que vê presente na theôria, mal traduzida por “teoria” por signiicar, co-
mo vimos, “visão” ou “contemplação”, que segundo o ilósofo francês é “con-
templação da luz, consciência do Invisível”. Uma luz invisível, que não pode ser
vista por ser o que permite ver, estando antes de toda a relação sujeito-objecto,
sendo por isso designada pelo Pseudo-Dionísio Areopagita como “treva de si-
lêncio, mais que luminosa” 268. A luz-consciência inerente à abertura incondi-
cionada que em rigor transcende a sua conceptualização-determinação como
Deus, pois na verdade designa um Nada 269, não niilista, mas no sentido do oúd-en
grego, do ni-hillum latino, do no-thing inglês, do né-ant francês, do ni-ente italiano e
do N-ichts alemão: respectivamente um não-um, não-coisinha, não-coisa, não-ente,
não-eu, ou seja, um não-sei-quê jamais deinível pelos limites do pensamento, da
linguagem e da imaginação, o in-inito (cf. a deusa védica Aditi, “sem limites”, mãe
dos deuses e de tudo). Daí a possibilidade da ainidade e convergência da experiên-
cia do além-Deus da teologia apofática e mística cristã (Pseudo-Dionísio, Mestre
Eckhart, Angelus Silesius) com a experiência do vazio taoísta ou da vacuidade bu-
dista 270. Desaiando os seguidores das vias teístas e budista que tendem a enfatizar
267 Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64.
Veja-se uma exposição condensada das mais importantes referências e obras sobre esta
questão em Carlos H. do Carmo SILVA, “Divina perfeição na sabedoria pré-socrática
– da teogonia mítica a uma dramática ideal do theós”, in AAVV, A Questão de Deus na
História da Filosoia, I, coordenação de Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéiro, 2008,
p.33, nota 68.
268 Pseudo-DIONÍSIO AREOPAGITA, Teologia Mística (ed. bilingue), versão do grego e estudo
complementar de Mário Santiago de Carvalho, Mediaevalia, 10 (Porto, 1996), p.11.
269 Cf. Jean-Yves LELOUP, La sagesse qui guérit, Paris, Albin Michel, 2015, pp.8-10.
270 Cf. Paulo BORGES, “Vacuidade e Deus. Um estudo comparado sobre Nagarjuna e Pseudo-
Dionísio Areopagita”, in Descobrir Buda. Estudos e ensaios sobre a via do Despertar, pp.103-
154.
|| 112
as divergências entre elas em torno de noções axiais como Deus e vacuidade, o que
acontece sempre que uma via não se aprofunda até ao silenciamento da mente con-
ceptual, registamos aqui a resposta de Bokar Rinpoche a um discípulo que o ques-
tionou sobre se no budismo “há um conceito de Deus”: após considerar que, numa
primeira abordagem, a noção de um Deus exterior é uma manifestação da nossa
própria mente, o mestre tibetano acrescenta que, “todavia, a abordagem última é a
realização de que Deus e a nossa própria mente são indiferenciados” 271.
Ao abordar este ponto, queremos começar por esclarecer uma vez mais
que a nosso ver as mais iáveis formas de transmissão da experiência medita-
tiva e contemplativa são as que ao longo de séculos e milénios se processam
através de linhagens de mestres e discípulos, nas vias espirituais tradicionais,
onde surgem num organismo vivo inseparáveis da ética e da sabedoria e de
um caminho de transformação profunda da consciência e da vida, simulta-
neamente individual e comunitário. A comprovação da sua eicácia não vem
dos efeitos sobre o cérebro ou o corpo veriicados nos laboratórios cientí-
icos, mas das vidas exemplares e inspiradoras de todos os mestres, sábios
e santos da humanidade que são as lores e os frutos livres de declínio e
corrupção da imensa e frondosa árvore das múltiplas tradições espirituais
planetárias. Nas vias espirituais tradicionais e nos ensinamentos dos mes-
271 Cf. BOKAR RINPOCHE, Savoir Méditer, traduzido por Cheukyi Séngué, Saint-Cannat,
Éditions Claire Lumière, 2008, pp.37-38.
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272 Cf. o que Raimon Panikkar enuncia como “e.l.m.i.r.a.”, a experiência imediata mediada
pela linguagem, memória, interpretação, recepção e actualização – Raimon PANIKKAR,
De la Mística. Experiencia plena de la Vida, Barcelona, Herder, 2005, pp.131-161.
273 Marià CORBÍ, Hacia una espiritualidad laica. Sin creencias, sin religiones, sin dioses,
Barcelona, Herder, 2007.
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ou seja, sem tudo o que é apenas relativo às operações mentais dualistas. Tudo
surge num ilimitado campo de consciência e dela inseparável, desconstruindo
o pressuposto de um determinado centro ou princípio/origem (a arché dos
primeiros ilósofos gregos) da realidade cósmica – a ela extrínseco porque
concebido à imagem do sujeito que dela se julga distinto – , que exerça sobre
ela um poder hegemónico ou a ordene hierarquicamente em termos de alto
e baixo, superior e inferior ou princípio, meio e im 276. Suspensa a elabora-
ção conceptual que instaura antropocêntrica e utilitariamente um mundo de
entidades distintas e separadas, tudo surge interconectado, interdependen-
te e interpenetrado num multiverso em auto-organização espontânea. Tudo,
todo o ser ou fenómeno, é igualmente uma epifania da totalidade ou da sua
matriz original e como tal investido de absoluto valor, irrelativo ao que possa
valer instrumentalmente para um aliás inexistente avaliador ou apreciador
independente. Se por um lado, enquanto tudo se manifesta interligado, nada
tem existência substancial e intrínseca, em si e por si, já por outro tudo as-
sume um ininito valor intrínseco, enquanto manifestação singular, única e
sempre nova da própria totalidade. Todo o multiverso está presente em cada
partícula e esta em todo o multiverso. Cada partícula é o multiverso. Cada
onda é todo o oceano e todo o oceano ondula em cada onda 277. Neste sentido,
tudo é sagrado porque in-útil. Todo o cosmos se cumpre em cada fenómeno
e acontecimento, que são a imediata e plena presentiicação do ininito, não
sendo jamais meio para um qualquer im. Tudo se cumpre na pura fulguração
de entre-ser, sem porquê nem para quê, sem quem nem quê 278.
nem há caçador, nem há peça de caça, nem há casa para onde voltar ” – Marià CORBÍ,
Ibid., pp.298-299.
276 Cf. Reiner SCHÜRMANN, Des hégémonies brisées, Trans-Europe-Repress, 1996.
277 Cf. Willigis JÄGER, A Onda é o Mar.
278 Cf. Paulo BORGES, “Aquém-além do reino do humano. Entre-ser e ética sem centro”,
in AAVV, Pensar Para o Outro. Desaios Éticos Contemporâneos. Homenagem a Cristina
Beckert, organização de Filipa Afonso, José Luis Pérez, Lavínia Pereira, Maria José
Varandas, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Sandra Escobar, Viriato Soromenho-Marques,
Lisboa, Centro de Filosoia da Universidade de Lisboa, 2017, pp.169-180.
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281 Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique, pp.77 e 81; Paulo BORGES,
O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral, p.52; Mónica CAVALLÉ,
La Sabiduría Recobrada. Filosofía como terapia.
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Apresentação
Esta é a proposta de uma via prática para a realização do nosso melhor po-
tencial humano, baseada no treino meditativo da consciência, no cultivo de
um bom coração e no despertar da nossa sabedoria inata. É uma via universal,
aberta a todos, religiosos, ateus ou agnósticos, composta de exercícios diários,
faseados mensalmente ao longo de um programa de formação de um ano, que
visam conduzir a uma vida com sentido, aberta, lorescente e harmoniosa, na
relação consigo, com os outros e o mundo.
282 Este programa de formação foi por nós concebido, tendo na sua formulação inal
o contributo destacado de Daniela Velho, ao qual se juntaram os de Teresa Alfama,
Micael Inês, Ângela Santos e Maurício Pereira. Com excepção do último, somos todos
membros do Círculo do Entre-Ser, associação ilosóica e ética, entidade responsável
pela organização dos retiros, workshops e cursos onde são fornecidas todas as
indicações para a prática deste programa. O nosso anterior livro, O Coração da Vida,
Visão, meditação, transformação integral (guia prático de meditação), serve de apoio para
as práticas meditativas do nível I e de parte do nível II deste programa. Para toda a
informação: circuloentreser.org
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A prática dos três níveis será integrada com o percurso diário dos seguintes
doze passos, que consistem em tomadas de consciência relexivas, meditativas e
contemplativas, bem como em aspirações, que geram um dinamismo de aper-
feiçoamento progressivo do/da praticante. Não é suposto que o/a praticante
adira incondicionalmente às tomadas de consciência propostas. Propõe-se ape-
nas que se abra a elas como hipóteses de trabalho que poderá comprovar ou não
pela sua relexão e pela sua experiência.
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Nível I – Consciência
(Se o/a praticante se reconhece desde já nesta mensagem e confere a este fundo
uma forma religiosa ou outra que o inspira, que lhe suscita devoção e com a qual
se sente particularmente conectado/a, pode colocar essa imagem diante de si ou
visualizá-la e sobretudo senti-la bem presente, vibrante e viva, experimentando
ser dela inseparável).
Reconheço ou posso vir a reconhecer que eu, todas as formas de vida e o intei-
ro cosmos somos sagrados, sendo a cada instante a manifestação viva deste fundo
universal. Reconheço ou posso vir a reconhecer também, todavia, que a incons-
ciência, esquecimento ou distracção disto nos pode conduzir a viver como real a
ilusão de sermos seres separados e limitados e que isso pode obscurecer a nossa
consciência gerando o medo e egocentrismo que podem ser a raiz dos sofrimen-
tos e problemas fundamentais que nós, os demais viventes e a Terra padecemos.
Por este motivo, e para conirmar ou não pela minha experiência esta hipótese de
trabalho, dedicar-me-ei às práticas desta via, que me podem conduzir da desaten-
ção à consciência plena e à experiência da essência da Vida. Faço isto para o meu
bem, para o bem da minha família e para o bem de todos os seres, contribuindo
para uma sociedade e um mundo mais despertos, éticos e felizes.
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Estou consciente de que a imensa maioria dos seres não está a ter esta opor-
tunidade e sinto a responsabilidade de cuidar da minha saúde e de orientar o
melhor possível a minha vida, a im de realizar plenamente o potencial de que
agora usufruo.
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Relicto sobre a evidência de que nada é garantido, que tudo está sempre
a mudar e que não terei esta preciosa oportunidade para sempre, estando
sujeito/a ao envelhecimento, à doença e à morte. Tomo consciência de que
inevitavelmente terei de abandonar tudo, desde a família, os amigos e os
bens até ao corpo e à actual percepção do mundo, e que isso pode acontecer
a qualquer momento.
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Relicto sobre o facto de ser inseparável de tudo quanto existe e que por isso
as minhas acções e omissões – mentais, verbais e físicas – afectam positiva ou
negativamente a mim, aos demais seres vivos e ao mundo. Reconheço que o
que experiencio no presente é fruto das percepções, intenções e acções passa-
das e que o que experienciarei no futuro será fruto das percepções, intenções
e acções presentes. Reconheço que a realidade não é exterior à percepção que
dela temos, que a percepção e os juízos e conceitos que a determinam são a mais
subtil forma de acção e que estamos todos a cada instante a criar o mundo que
experimentamos mediante o modo como pensamos, falamos e agimos.
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Nível II – Bondade
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Relicto sobre o facto de que todos os seres vivos procuram constantemente, tal
como eu, evitar o sofrimento e ser felizes. Reconheço que porventura manifestamos
todos, em diversas formas e modos, a mesma essência profunda e que estamos inti-
mamente interligados na imensa comunidade dos viventes. Em todos habita, infe-
lizmente desconhecida ou não plenamente reconhecida, a mesma bondade funda-
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mental que ao longo desta via em mim vou reconhecendo e manifestando. Aspiro
assim a desenvolver por todos, sem qualquer excepção, sentimentos profundos e
estáveis de amor, compaixão, alegria e imparcialidade, desejando que todos tenham
felicidade e suas causas e que todos sejam livres do sofrimento e das suas causas,
além de me regozijar e sentir alegria pelo bem de todos.
Meditação: cultivar amor (1ª semana), compaixão (2ª semana), alegria (3ª
semana) e imparcialidade (4ª semana), integrando progressivamente a si, aos
entes queridos, a pessoas neutras, a pessoas com quem temos diiculdades e a
todos os seres, consoante as indicações do/da formador/a.
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Perante a minha natureza pura e profunda (ou o que tenho por mais sagra-
do), reconheço que a minha essência nada tem a ver com essas acções e omis-
sões, aspiro a renunciar a elas e a não mais as praticar. Enquanto persistirem os
hábitos mentais e emocionais que me arrastam a elas, farei todo o possível por
não me identiicar com eles e não seguir os seus impulsos.
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onde tudo acontece e nada está separado. Reconheço que avançar nesta Via é
descobrir e sentir cada vez mais que sou inseparável deste espaço e que a minha
essência é a sua. Nesta forma aparente, e em função de uma percepção ainda
condicionada, pareço um ser limitado no espaço e no tempo, separado dos ou-
tros e do mundo e sujeito a nascer e morrer, mas a minha natureza verdadeira é
o ininito e a eternidade e esta é a verdade última de todos os seres e coisas. No
fundo sem fundo de mim e de tudo, no fundo sem mim de mim, sou o próprio
Coração do Cosmos e da Vida.
I – O/A praticante visualiza a sua natureza profunda ou o que tem por mais
sagrado, de acordo com as instruções do/ formador/a. Foca a atenção na visua-
lização, sentindo a profunda conexão com o que representa e manifesta, com
um sentimento de total entrega e abertura. Aquilo que visualiza condensa toda
a consciência, bondade e sabedoria que há no Coração do Cosmos e da Vida.
Invoca-o então, não como algo exterior, mas como aquilo que é desde sempre
a essência mais íntima de si, o imo do próprio ser. Se sentir ainidade com esta
prática, pode recitar durante o tempo que desejar, em voz baixa ou silencio-
samente, um mantra ou palavra simples que para si faça sentido e que corres-
ponda à essência do que invoca, eventualmente harmonizando a recitação com
o ritmo da respiração. Após a invocação e a eventual recitação, experienciar
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