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Caderno #03

urdume
O Bordado
Madeira
em terras
paulistas

s e lo
Urdume
O caderno
Urdume
é um programa do Instituto Urdume,
que tem por objetivo partilhar, com
aqueles que nos acompanham, ensaios,
esboços e referências de pesquisas que
temos realizado e têm nos acompanhado
nos últimos dois anos.

Sempre com foco em um tema específico,


os Cadernos chegam para complementar
o conteúdo plural que produzimos para a
revista, porém com mais argumentação
histórica e questionamentos que esbar-
ram nas lacunas existentes na produção
teórica na área. Convidamos você, esti-
mado leitor, a adentrar os cadernos e tra-
má-los conosco.

Boa Leitura!
Ai borda, rica filha, borda borda
Ai borda, rica filha, borda bem
Lá em casa, rica filha, todos bordam
E borda o pai e borda a filha e borda a mãe [e eu também]

- Canção popular da Madeira -

Não é possível localizar precisamente o início da prática do bordado em terras


portuguesas. Contudo, referências apontam para a origem do ensino e da di-
vulgação por ordens religiosas, conventos e escolas femininas 1. Bordar era uma
técnica praticada e comercializada em todo o país, sendo desenvolvidas peças
para o lar (toalhas, colchas, centros de mesa, entre outros) e para vestimentas:

Trabalhos de bordado podem ser encontrados em várias zonas do país: Minho


– Bordados de Viana do Castelo e de Guimarães; Douro Litoral – Bordados de
Lixa (Amarante) e de Felgueiras (bordados de Filé e Airães); Beira Alta – Borda-
dos de Viseu (Alcafache, Mangualde, Tibaldinho); Beira Baixa – Bordados de
Castelo Branco; Alto Alentejo – Bordados de Nisa e Arraiolos; Beira Litoral –
Bordados da Figueira da Foz (Buarcos); Estremadura – Bordados das Caldas da
Rainha, Açores – Bordados dos Açores. (GARRIDO, 2015, p.71)

Porém, nenhum tipo de bordado englobou as dimensões usufruídas pelo Bor-


dado Madeira, oriundo da Ilha da Madeira, caracterizado como indústria,
apesar do seu caráter de atividade manual 2.

A Ilha da Madeira foi descoberta pelos portugueses em 1419. De formação


vulcânica, ela faz parte de um arquipélago de mesmo nome, situada no Ocea-

1 GOMES, 2019, p. 14
2 GARRIDO, 2015, p.75

3
no Atlântico, a 500 km da costa africana e a pouco mais de 1000 km de Portu-
gal 3. Luís de Camões chama-a “grande” e a considera a preferida de Vênus,
"Passamos a grande ilha da Madeira / que do muito arvoredo assi se chama" 4.
Grande, pois é naturalmente rica e exuberante:

A riqueza da ilha está nela própria e na força das suas gentes. Porque tem o mar à
volta. O lugar fica situado numa das curvas do mar. Sentados na boca do vulcão,
olhámos para seiscentos anos de História. Ousámos casear o mundo daqui. Cada
ponto do nosso bordado foi pegado de espuma pela montanha fora. Foi chão
e foi mar. Foi verso de poeta. Foi suor de homens que vieram do mar, abriram
rugas na terra, subiram as encostas e plantaram as casas no abraço das vides.
Foi arrepio das paredes da serra, quando a água escorre em cascatas e risca os
montes de branco. Derramamos o bordado sobre o colo. Embebedamo-nos dos
versos dos poetas que nos falam de horizontes, porta de entrada de gente, porta
de saída de sonhos. Está lá o mar, a abraçar de azul e futuro o que ainda está
por fazer. As marés contam de um mar branco de açúcar, enfunando as velas das
caravelas. (ALVES, 2020, p. 165)

Na Ilha da Madeira, o bordado é um elemento representante da história, cul-


tura e tradição do seu povo 5. Como descreve o professor Alberto Vieira 6,
coordenador do Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA), "o bor-
dado faz parte da nossa cultura. É uma marca que identifica a ilha, tal como
sucede com o vinho. A sua presença suplanta as barreiras da ilha (...)."

Sua origem remonta à povoação da ilha no século XV. Aprendido e ensinado


de mãe para filha 7 e agregado a outros costumes e tradições trazidos pela

3 KODJA, 2008, p. 34
4 Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto V.
5 GOMES, 2019, p. 15
6 VIEIRA, 2004, p.9. Alberto Vieira (1964-2019) foi um importante professor e historiador madeirense, além de coorde-
nador do Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA). Seu legado para os estudos e registros histórico-sociais da
região é imensurável.
7 É interessante mencionar aqui que há relatos de meninos que, na primeira infância, também aprenderam alguns pontos
com as bordadeiras de suas famílias.

4
Bordadeiras da Madeira.
Bordadeiras de campo.
Fotografia de 1940 (c.).
Arredores do Funchal,
Ilha da Madeira.
(Wikimedia Commons)

população oriunda de várias zonas do país, destacando-se Viana do Castelo 8,


a prática do bordado acompanhou as gerações que sucederam-se. Inicialmen-
te, era realizado para consumo pessoal ou para oferta a familiares e amigos,
tratado como um bem herdável, devido a seu valor incalculável. Destinava-se
desde a decoração do lar, passando pela ornamentação do vestuário e atingia
seu ápice no tradicional enxoval de casamento.

O registro mais antigo sobre o Bordado Madeira está presente no livro Saudades da
Terra, de Gaspar Frutuoso 9, escrito no final do século XVI, no qual o autor descre-
ve que as mulheres “(...) são estremadas na perfeição deles e em toda as invenções
de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores (...)”10.

8 Viana do Castelo é uma cidade portuguesa, capital do distrito de mesmo nome, na região norte do país, e integrada na
sub-região do Alto Minho.
9 Gaspar Frutuoso (1522-1591) foi um historiador, sacerdote e humanista açoriano. Destacou-se pela autoria da obra Sau-
dades da Terra, uma detalhada descrição histórica e geográfica dos arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias, para
além de múltiplas referências ao de Cabo Verde e a outras regiões atlânticas. Essa abrangência faz de Gaspar Frutuoso um
verdadeiro cronista insulano, já que a sua obra interessa ao conhecimento de toda a Macaronésia.
10 VIEIRA, 2004, p.25

5
Com motivos inspirados na natureza da ilha, o bordado era caracterizado pelo
seu desenho livre, da autoria das bordadeiras, desenhado diretamente sobre
o tecido e bordado em branco, branco azulado ou castanho. Os tecidos utili-
zados (o linho, a cambraia e o morim, de cor crua ou clara) eram criados nos
teares da ilha. Inicialmente, era realizado por mulheres abastadas, mas com o
tempo, popularizou-se por todas as camadas sociais da região.11

Do século XVIII até meados do século XIX, são poucas as referências sobre o
Bordado Madeira e a sua comercialização. Salienta-se que este período coin-
cide com o início da revolução industrial.12

Os primeiros registros de exportação e venda de bordado datam da segunda me-


tade do século XIX, possivelmente impulsionadas pela exposição das indústrias
madeirenses 13, em abril de 1850, apesar de, na época, a Madeira atravessar um
período de crise social e econômica, resultante dos diversos conflitos europeus e da
doença das vinhas, que atingiu a produção agrícola da região. O início da exporta-
ção para diferentes países influenciou e acrescentou elementos ao bordado. Estas
influências dividem-se em três fases consecutivas designadas como Fase Inglesa, de
1850 a 1880; Fase Alemã, de 1880 a 1916; e Fase Síria, de 1916 a 1925 14, cada
fase com seus altos e baixos, desdobramentos e personagens muito particulares.

Da Rainha Victoria e seus domínios, passando pelos mercados alemão, italia-


no, venezuelano, australiano, norte-americano, brasileiro e muitos outros, o
Bordado Madeira tornou-se muito popular e uma atividade fundamental para

11 GOMES, 2019, p. 15
12 GOMES, 2019, p. 16
13 Organizada no Funchal por José Silvestre Ribeiro, na época, governador civil e conselheiro do rei, ocorrida no período
do ano de maior afluência de estrangeiros na ilha. A exposição foi um sucesso, suscitou o interesse dos britânicos pelo
Bordado Madeira e o consequente convite da própria Rainha Victoria para apresentá-lo no ano seguinte na Exposição
Universal das Indústrias em Londres.
14 GARRIDO, 2015, p. 26-37

6
muitas famílias madeirenses, chegando a ser mais rentável que toda a ativida-
de pesqueira da região. Fábricas de bordado foram inauguradas por toda ilha
e formalizou-se o processo de produção e certificação das peças bordadas, vi-
gentes até a atualidade, bem como o surgimento de novos profissionais envol-
vidos na prática — desenhadores, picotadores, agentes, comerciantes — além
das próprias bordadeiras, que seguem bordando manualmente até os dias de
hoje 15. Além disso, pode-se afirmar que

Foi através da indústria do bordado que a Madeira se tornou pioneira em


muitas iniciativas. Foi a primeira região a ter o primeiro têxtil com certifi-
cação e selo de origem; foi a primeira a criar legislação específica para uma
actividade doméstica, (...) (GARRIDO, 2015, p.38).

Já no século XX, em decorrência à Revolução de 25 de abril de 1974 16, dá-se o


fim do Estado Novo e a democracia chega a Portugal trazendo novos avanços.
Coloca-se em questão o modelo do Grêmio da Indústria dos Bordados, esta-
belecido durante o regime autoritário, verificando que não havia promoção à
inovação da indústria em si 17. Em 1978, o Grêmio é substituído pelo Instituto
de Bordados, Tapeçarias e Artesanato da Madeira (IBTAM) com a finalidade
de promover, preservar e valorizar estes três setores. Mais tarde, fundiu-se ao
Instituto do Vinho da Madeira, tornando-se finalmente o Instituto do Vinho,
do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM), ativo até aos dias de hoje.

Aos finais do século XX, a indústria entra em um período lento de colapsos


provocados por circunstâncias externas e que acentuaram-se na década de

15 GOMES, 2019, p. 19
16 A Revolução de 25 de Abril de 1974, também conhecida como Revolução dos Cravos, trata-se de um evento histórico
de Portugal, resultado do movimento político e social, responsável por depor o regime ditatorial do Estado Novo, vigente
desde 1933, e de iniciar um processo que culminaria na implantação do regime democrático e com a entrada em vigor da
nova Constituição em 25 de abril de 1976, marcada por forte orientação socialista.
17 GOMES, 2019, p. 21

7
1990. A implementação da escolaridade mínima obrigatória, a ampliação da
oferta de empregos fora do âmbito doméstico e agrícola na ilha, a introdução do
Euro, em 2000, que, pelo seu valor superior ao dólar norte-americano, agravou
os preços de comercialização do bordado, diminuindo o lucro das empresas,
além do irrompimento da indústria emergente dos países asiáticos — que re-
produzem cópias fiéis de tudo, incluindo o bordado, a preços sem concorrência,
o que provocou a incapacidade dos industriais locais de competirem com esses
mercados 18 — foram algumas das razões pela crise contemporânea do Bordado
Madeira, que perdura até os dias de hoje, com sérios riscos de extinção 19.

Desde o início do século XXI, têm


sido realizadas ações promotoras do
bordado através de participações em
feiras, mostras e delegações sobre o
tema, em âmbito nacional e interna-
cional, na intenção de se preservar a
atividade. No entanto, o número de
bordadeiras e fábricas tem diminuído
continuamente, salientando-se que
a faixa etária com maior número de
bordadeiras situa-se entre os 41 e 50
anos, e, apesar de estarem registradas
nove fábricas no website do IVBAM,
presume-se que, em 2015, apenas
quatro se encontram ativas 20.

18 GARRIDO, 2015, p.46 "Homenagem a bordadeira", Funchal,


19 GOMES, 2019, p. 22 Madeira. (Wikimedia Commons)
20 Idem et ibidem

8
Já sobre o processo de produção do Bordado Madeira nas fábricas da ilha, que
como dito anteriormente, permanece praticamente o mesmo desde o final do
século XIX, nota-se a presença de diferentes etapas e um número considerável
de operários envolvidos. Os processos são realizados em partes, respeitando uma
sequência e ocorrem tanto na própria fábrica, como nas casas das bordadeiras.
As etapas são divididas em: desenho, contagem dos pontos, picotagem, estam-
pagem, envio às bordadeiras pelos agentes, o bordado em si, retorno à fábrica,
verificação primária, lavagem, engomagem, tratamentos finais, verificação final e
certificação 21. Através da contagem dos pontos é estipulado o valor pago à bor-
dadeira, que não é remunerada por tempo trabalhado, e sim, por quantidade de
pontos bordados, sendo, em 2018, 100 pontos industriais equivalentes a 1,98€ 22.

No que refere-se às bordadeiras, não há nomes proeminentes conhecidos ou


registrados no decorrer da história. Porém há uma mulher, Maria Ganança 23,
que alcançou certo grau de conhecimento popular, não por sua arte em si, mas
como porta voz da luta das bordadeiras por melhores condições de trabalho.

No entanto, não eram apenas as bordadeiras que enfrentavam condições adver-


sas de vida e trabalho. O século XX na Madeira foi marcado por um expressivo
processo de emigração. As dificuldades econômicas enfrentadas pelos madei-
renses foram consideradas pela historiografia como o mote central para o fato:

21 GOMES, 2019, pp. 26-29. Neste vídeo do IVBAM, é possível ter uma ideia do processo de produção de uma peça certifi-
cada: https://www.youtube.com/watch?v=g13rlLMMdHM&t=6s
22 Idem et ibidem
23 Maria Ganança é uma figura histórica da luta sindical e uma das poucas pessoas vivas que participou na denominada
“Revolta das Águas”, na Lombada da Ponta do Sol, na Madeira. Uma revolucionária, como gosta de ser descrita, que não
hesitou em desafiar a ditadura quando, com apenas 16 anos, fez parte das pessoas que lutaram para que a água de rega
roubada aos agricultores da Lombada lhes fosse devolvida. Participou também na luta pelo pagamento justo da cana-de-
açúcar. Integrou a Direção do Sindicato dos Bordados e o Conselho Regional da União dos Sindicatos da Madeira. Fez parte
de diversas parcerias internacionais, tendo dado formação a bordadeiras na Madeira e em Cabo Verde. Representou sua
categoria sindical na Índia, na Turquia e em outros países, onde levou a arte e reputação do Bordado Madeira.

9
Assim sendo, pode-se observar que os madeirenses emigravam por vários motivos,
como: poucas oportunidades de trabalho, ganhos baixos e problemas de subsistência,
tipo de propriedade e sua exploração, somados [...] ao atraso tecnológico, [...], fugas
ao recrutamento militar 24, desigualdades sociais e populacionais; também se fizeram
presente nestes processos os desejos de “fazer a América”, a busca por melhores condi-
ções de vida e realização de sonhos (FREITAS; MATOS, 2018, p. 304).

Assim, foram madeirenses para todas as partes do Brasil. Vinham mediante


a carta de chamada 25. No sudeste, depois do Rio de Janeiro, São Paulo era o
estado de maior presença de portugueses em geral, tornando-se um polo de
atração, devido às perspectivas geradas pelo desenvolvimento urbano e indus-
trial, que possibilitava trabalho e oportunidades 26. As famílias que chegavam
eram acolhidas na casa de parentes ou conterrâneos e as ilhoas, como são
chamadas as mulheres provenientes da Madeira, trouxeram consigo todo seu
material de trabalho da terra natal: dedais, tesouras e agulhas. No segundo ou
terceiro dia após o desembarque, já estavam trabalhando e tendo no bordado,
um complemento para as rendas familiares 27:

E foi com aquela garra que caracteriza o povo português, que as ilhoas, ainda com
as mãos calejadas pela ajuda no erguimento das casas, retomaram com toda a fé, o
tradicional hábito da execução dos bordados da Ilha da Madeira. Era mais uma pre-
ciosa fonte de renda para o custeio das despesas do lar. (NASCIMENTO, 1992, p. 14)

24 Nas décadas de 1950 e 1960, Portugal era caracterizado pelo conservadorismo e autoritarismo do governo salazarista,
que, entre outras ações, impôs esforços de guerra para preservar as colônias em África, gerando tensões políticas, econômi-
cas e sociais. Tal contexto de dificuldades se encontrava referendado nos relatórios de atividades enviados pelos cônsules
brasileiros na Madeira e que, em várias ocasiões, relatavam ser a corrente emigratória “a principal atividade desta repartição
consular” (AIRJ, 1953 apud FREITAS; MATOS, 2018, p. 304)
25 São missivas enviadas aos parentes e amigos com o objetivo de “garantir a quem queria partir a existência de acomodação
e/ou emprego no local de destino […] sendo anexadas ao processo de pedido de passaporte como garantia de sucesso na pas-
sagem. No caso da emigração feminina constituíam, até 1921, um elemento indispensável, sem a qual era quase impossível
partir” (VILLAS BÔAS; PADILHA, 2007, p. 125; SILVA, 2007). A obrigatoriedade de sua apresentação no porto de chegada
no Brasil foi regulamentada pelo Decreto brasileiro n° 9081 de 3 de novembro de 1911 (FREITAS; MATOS, 2018, p. 305).
26 FREITAS; MATOS, 2018, p. 305
27 KODJA, 2008, p. 44

10
Um grupo de bordadeiras destacou-se logo
nos primeiros anos em terras paulistas.
Eram elas moradoras do Morro São Bento,
na cidade de Santos. Intrépidas, colocaram-
se a trabalhar assim que chegaram e, logo,
tornaram-se conhecidas pela cidade e em
suas adjacências. Até a década de 1960, não
havia, na cidade de Santos, quem não sou-
besse da existência dessas artesãs 28. Com o
tempo e por conta dos processos de indus-
trialização dos produtos têxteis, as bordadei-
ras foram perdendo espaço no mercado. Até
que em 1982, um projeto de resgate reali-
zado pelo pesquisador Francisco Ribeiro do As bordadeiras madeirenses imigrantes, Maria
Nascimento, juntamente com o professor e e Beatriz, com a família já em São Paulo,
1940. (Acervo Gabriela Ferreira)
folclorista Albino Luiz Caldas e a prefeitura
de Santos, resultou na criação da União das Bordadeiras do Morro de São Bento,
organizada e gerida pelas próprias mulheres, que, na época, contava com artesãs
entre 24 a 65 anos, sendo aproximadamente 70% delas naturais da Ilha da Ma-
deira e 30% entre suas descendentes e outras brasileiras que aprenderam o ofício.

Já na capital, os madeirenses estabeleceram-se principalmente no Imirim e bair-


ros próximos ao Horto Florestal (Zona Norte) e em Santo Amaro (Zona Sul),
sendo ainda possível localizá-los na Zona Norte através da sede da Casa Ilha da
Madeira 29 de São Paulo 30. Pela região, também é possível encontrar resquícios
do Bordado Madeira e quem muito luta por sua preservação e divulgação.

28 KODJA, 2008, p. 30
29 Uma das mais tradicionais entidades luso brasileiras, a Casa Ilha da Madeira foi fundada em 1952, como “Sociedade
Amigos Ilha da Madeira”, uma sociedade civil, cultural, beneficente e recreativa, sem fins lucrativos, para divulgação dos
costumes, tradições, cultura e folclore da Ilha da Madeira.
30 FREITAS; MATOS, 2018, p. 305
Uma dessas pessoas é a pesquisadora Maria Vieira Sardinha Gonçalves 31,
conselheira da Diáspora Madeirense no Brasil, colaboradora do Museu da
Imigração, mestra de saberes tradicionais e guardiã de inúmeras histórias, de-
poimentos e registros de diversos e/imigrantes madeirenses de São Paulo e
de outras regiões do Brasil. Maria organiza oficinas de Bordado Madeira, em
parceria ao Museu da Imigração, além de coordenar um grupo de bordadei-
ras na Zona Norte de São Paulo, contribuindo largamente na perpetuação das
manifestações culturais madeirenses no Brasil.

Porém, ainda há informações acerca da trajetória do Bordado Madeira na


cidade de São Paulo que precisam ser investigadas e registradas. Uma delas é
a questão das fábricas de bordado que existiam pela cidade durante a segunda
metade do século XX:

As mulheres da Ilha da Madeira bordavam para compradores particulares.


Mas, a partir dos anos 1950, com a instalação de fábricas de bordado em São
Paulo, o artesanato foi perdendo força e valor. [...] Em geral, elas não saíam
para comercializar seus produtos. As fábricas de São Paulo mandavam inter-
mediários, que distribuíam e recolhiam os bordados. (KODJA, 2008, p. 38-45)

31 Maria Vieira Sardinha Gonçalves nasceu na década de 1960 em São Paulo, filha de imigrantes madeirenses chegados
ao Brasil nos anos 1950. Inicia suas pesquisas relacionadas com a Cultura Madeirense e madeirenses no Brasil a partir dos
anos 1980, identificando algumas lacunas importantes nos registros históricos e a necessidade de se aprofundar em algu-
mas questões sobre o assunto. Nos anos 2000, orientada pelo professor Dr. Alberto Vieira, percebendo a necessidade de
mais pesquisas e registros da ligação histórica do Brasil com a Ilha da Madeira, apresentou alguns trabalhos em diversas
instituições da cidade e atualmente colabora com o Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA) com depoimen-
tos de madeirenses no Brasil. Tem colaborado com o Museu da Imigração em São Paulo desde a 3ª Festa do Imigrante. A
convite da Drª Sônia Maria de Freitas aprofundou-se no universo da história oral, auxiliando na identificação e contribu-
indo com as necessidades dos madeirenses no Brasil. Também é membro da Comissão Paulista de Folclore, enquanto
Mestra de Saber Tradicional e com a vivência do Grupo de Folclore fundado em 1985. Tem colaborado com trabalhos
acadêmicos (TCCs, mestrado, doutorado e pós-doutorado), sendo uma referência no Brasil e na Madeira no âmbito da
pesquisa e do estudo da Diáspora Madeirense no Brasil. Para além das pesquisas, identificação e dos registros que colhe
por toda parte, também desenvolve alguns projetos com a comunidade relacionando os valores da Cultura, Gastronomia
e Artesanato da Ilha da Madeira com madeirenses de primeira, segunda, terceira e até mesmo quarta geração.

12
Bordado representando um vilão –
nome que se dá ao homem camponês
da Madeira – com um cacho de
bananas. (Acervo Maria Sardinha)

Já em uma entrevista cedida


a pesquisadoras da Pontifí-
cia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP), em
2015, Dona Rita, umas das
bordadeiras da Zona Norte
de São Paulo, resgata suas
memórias sobre o assunto:

Em São Paulo: as primas lá todas bordavam, foi indicando bordados. Pra essas lojas
que tinha naquela época, deixa eu ver, tinha o Maison Blanche. Então tinha aquela,
ah, fulana dona Maria dos bordados. Iam lá, pegavam os bordados, traziam pra casa,
bordavam, depois iam entregar, recebia o dinheirinho, era assim, né. E a mulher
fazia o resto. Depois ensinaram a minha mãe que aqui na avenida Tucuruvi tinha
um senhor que tinha loja de bordados. Era um madeirense, ai eu não me lembro do
nome dele (Rita, 2015, entrevista em FREITAS; MATOS, 2018, p. 311).

Diversas bordadeiras afirmam que vendiam seus trabalhos para as "fábricas


de São Paulo", mas muito pouco sabem dizer sobre elas. Muito possivelmente
porque não compareciam às fábricas em si, mas lidavam diretamente com
seus agentes, ou seja, funcionários da fábrica que iam até suas casas entregar
os materiais para a confecção de peças predeterminadas e retirá-las quando
prontas. Há poucas informações concretas sobre esses funcionários também:

Os bordados passaram a ser comercializados através de intermediários (agencia-


dores) das grandes lojas e oficinas da cidade de São Paulo e de Santos. Eles traziam
e ainda trazem as encomendas já definidas: tipos de pontos, tecido, linha, riscado
e com preço de mão-de-obra pré-estabelecido, não permitindo assim, qualquer

13
espaço à criatividade, desestimulando ainda mais o interesse das bordadeiras, de
transmitirem às filhas a sua técnica, adquirida por quando muito crianças, de avós
e mães. (NASCIMENTO, 1992, p. 16)

Além das fábricas e dos seus agentes, havia distribuidores e todo um mercado
consumidor do Bordado Madeira na cidade de São Paulo. Há muito o que se
contar ainda acerca de sua história na região e de suas exímias executoras. Por-
que foi precisamente o bordado que trouxeram de sua terra, e que souberam tão
bem defender de distorções, que tornaram-se parte de uma nova sociedade, que
fez com que a cidade soubesse da sua existência e reconhecesse o seu valor 32.

Compreender a importância e a dimensão das diversas memórias ainda não re-


gistradas e espalhadas pela cidade e do consequente processo do resgate da ora-
lidade no decorrer da História é imprescindível. Entender as práticas artesanais
como ferramentas indispensáveis à existência humana e a necessidade de regis-
trá-las e protegê-las dentro do âmbito dos bens culturais imateriais é urgente.

De William Morris, passando por Mário de Andrade, às instituições cultu-


rais contemporâneas, existe, há tempos, um consenso sobre a importância da
pesquisa e do registro dos saberes artesanais de diferentes culturas, desde seus
contextos histórico-sociais, à realização prática de seus produtos. Mesmo que
academicamente fora do rol das belas artes, os saberes artesanais são uma im-
portante ferramenta de identificação, representação e manutenção de diferen-
tes povos ao redor do planeta. Trazê-los à tona, estudá-los, escutar e aprender
de seus mestres e registrá-los, para que as próximas gerações possam conhecê
-los e valorizá-los, é praticamente um dever social.

Nas diversas entrevistas de bordadeiras madeirenses coletadas até hoje, é claro o


medo da extinção de seu ofício e a vontade que possuem em mantê-lo respirando:

32 KODJA, 2008, p. 71

14
O grupo, de forma geral, queria falar sobre a sua atuação na comunidade,
o seu papel na cultura local e a influência que exerceram no país que esco-
lheram para morar. Sabem que, como bordadeiras, correm o risco de serem
esquecidas e, por isso, demonstram profundo interesse em deixar um registro
para as próximas gerações (KODJA, 2008, p. 102).

É por meio do exercício da memória que um grupo social qualquer pode refletir
sobre sua trajetória, sobre suas transformações, alargando no tempo e no espaço
a sua compreensão sobre si mesmo. A memória, estruturada coletivamente, pos-
sibilita que se firmem laços capazes de perdurar por gerações.

As últimas bordadeiras que residem


atualmente no Morro São Bento
afirmaram saber que o Bordado
Madeira vai embora com elas e di-
zem que "a vida é assim, que é pre-
ciso andar para a frente" 33.

Porém, "andar para frente" pode-


ria ser interpretado como a não es-
tagnação de um saber tão antigo.
"Andar para frente" junto às pró-
ximas gerações, sendo conhecido,
valorizado, praticado e, até mesmo,
encarado como uma maneira pos-
sível de geração de renda. "Andar
para frente" é a chave da questão, Maria Vieira e Clara Baptista,
afinal, como bem conclui o poeta e bordadeiras madeirenses naturais de
Machico e Camacha, respectivamente,
em atuação com o Grupo de Folclore
33 KODJA, 2008, p.72 e Etnografia em São Paulo, em 2008.
(Acervo Maria Sardinha)
cantor uruguaio, Jorge Drexler,
em sua emocionante canção
Movimiento: "Lo mismo con las
canciones, los pájaros, los al-
fabetos. Si quieres que algo se
muera, déjalo quieto…"

O Bordado Madeira possui


uma história longa, complexa,
interessante, cheia de meandros,
personalidades, reviravoltas e
contextos. Como apresentado
aqui, uma grande parte já foi
registrada por diversos aprecia- Bordado tradicional com cavacas azuis. Usada como jogo de
quarto ou jogo de sala, quando acompanhada da toalha maior.
dores de tempos passados. Ca-
Pertencente a Ana Gaulês, herdada de sua mãe, natural do
bem aos apreciadores do nosso Caniço, bordado na década de 1960. (Acervo Maria Sardinha
tempo continuar seguindo seus
passos, seja de lá tão longe,
quanto aqui ao lado, pois é de
extrema importância para sua
sobrevivência e perpetuação.

Máscara produzida durante a pandemia,


pelo grupo de bordadeiras da Zona Norte de
São Paulo, coordenado por Maria Sardinha.
Essas bordadeiras, que chegaram ao Brasil
ainda crianças, hoje em dia são avós e
detentoras de todo um patrimônio. Se antes
bordavam por necessidade e obrigação, hoje
o fazem por gosto ou recordação.

16
Bibliografia

ALVES, G. Um canto à ilha da Madeira. In: CHAVES, Duarte Nuno (co-


ord). Questões de Identidade Insular na Macaronésia. S. Jorge:
Santa Casa da Misericórdia das Velas &CHAM – Centro de Humanidades.
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ECO, U. Como se faz uma tese. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.

FREITAS, S. M. de. Presença Portuguesa em São Paulo. São Paulo:


Imprensa Oficial, 2006.

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Realização

INSTITUTO

Urdume
Redação: Gabriela Ferreira e Maria Sardinha

Revisão: Paula Melech e Estefania Lima

Diagramação: Nathália Abdalla

Ilustrações: Gustavo Seraphim

Apoio

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