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MARCOS ALCYR BRITO DE OLIVEIRA

Sujeito de direito e marxismo:


da crítica humanista à crítica anti-humanista

Tese de Doutorado

Orientador: Prof. Associado Alysson Leandro Barbate Mascaro

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE DIREITO
São Paulo – SP
2016
MARCOS ALCYR BRITO DE OLIVEIRA

Sujeito de direito e marxismo:


da crítica humanista à crítica anti-humanista

Tese apresentada à Banca Examinadora do


Programa de Pós-Graduação em Direito, da
Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Direito, na área de
concentração Filosofia e Teoria Geral do
Direito, sob orientação do Prof. Alysson
Leandro Barbate Mascaro.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE DIREITO
São Paulo – SP
2016
Oliveira, Marcos Alcyr Brito de

Sujeito de direito e marxismo: da crítica humanista à crítica anti-humanista /


Marcos Alcyr Brito de Oliveira: orientador Alysson Leandro Barbate Mascaro -- São
Paulo, 2016.

234 p.

Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Teoria Geral do


Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2016.

1. Sujeito de direito. 2. Humanismo. 3. Anti-humanismo. 4. Karl Marx. 5. Evgeni


Pachukanis. 6. Herbert Marcuse. 7. Louis Althusser. 8. Sigmund Freud. 9. Jacques Lacan.
I. Mascaro, Alysson Leandro Barbate, orientador. II. Título.
BANCA EXAMINADORA

Prof. Associado Alysson Leandro Barbate Mascaro


Instituição: _______________________________________________________________
Julgamento: _______________ Assinatura: _____________________________________

Prof. ____________________________________________________________________
Instituição: _______________________________________________________________
Julgamento: _______________ Assinatura: _____________________________________

Prof. ____________________________________________________________________
Instituição: _______________________________________________________________
Julgamento: _______________ Assinatura: _____________________________________

Prof. ____________________________________________________________________
Instituição: _______________________________________________________________
Julgamento: _______________ Assinatura: _____________________________________

Prof. ____________________________________________________________________
Instituição: _______________________________________________________________
Julgamento: _______________ Assinatura: _____________________________________

Data:_________________
Um instante lacaniano

A vida, um sopro!

Pessoas em confronto com a realidade: a real idade.

Ventania, furacão ou brisa: insatisfação inerte frente a um movimento estático!

O conjunto configura dores e amores, e,

Na fenda, no vão que se abre, a vida salta e sobressalta,

Como um relâmpago em um vácuo ou no vácuo de uma sessão relâmpago!

Não foi em vão,

Apenas foi!
Agradecimentos

Aos companheiros do “Grupo de estudos althusserianos” do Cemarx, Celso,


Pedro,Vinícius, Mariana, Leandro, Diego, Juliana, Antoin.

Ao Professor Márcio Bilharinho, timoneiro brilhante e persistente de um caminho justo e


fraterno.

Ao Prof. Alysson Mascaro, meu orientador, gênio e iluminado, porta-voz e artífice de um


mundo melhor, sempre atento às minhas dificuldades e anseios no decorrer deste trabalho.
RESUMO

OLIVEIRA, Marcos Alcyr Brito de. Sujeito de direito e marxismo: da crítica humanista à
crítica anti-humanista. 2016. 234 p. Doutorado – Faculdade de Direito, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2016.

A partir do Humanismo, o indivíduo passou a ser considerado como um sujeito de direito,


conceito elaborado pelo Iluminismo, no momento em que a burguesia se consolidava como
classe, lutando contra os privilégios da nobreza fundamentados na origem divina. O
indivíduo é universalizado, todos os indivíduos são considerados como compostos dos
mesmos elementos e de maneira idêntica, prevalecendo a razão como promotora da
igualdade, liberdade e fraternidade, bandeiras da Revolução Francesa. Com Kant,
aperfeiçoando-se com Hegel, o conceito de sujeito de direito é construído de forma abstrata
sem a consideração das desigualdades reais. Marx e Engels, com intuito de desmontar o
mito do “sujeito de direito”, elaboraram estudos que apontam como determinante do modo
de vida dos indivíduos em uma dada sociedade o modo de produção dessa sociedade e que
o sujeito de direito nada mais era que o papel dos agentes proprietários. Evgeni
Bronislávovich Pachukanis, eminente jurista russo, elabora uma contundente e original
crítica do sujeito de direito, apontando que a análise da forma sujeito, em Marx, em
especial na obra O capital, decorre da análise da forma mercadoria, uma vez que a
sociedade capitalista é uma sociedade de proprietários de mercadorias. Tendo como
parâmetro Pachukanis, analisamos a questão da subjetividade jurídica em dois autores:
Herbert Marcuse, que se baseia nos escritos do Marx da juventude, humanista, em especial
a obra Manuscritos econômicos filosóficos de 1844, e em Louis Althusser, que tem como
base de suas análises as obras do Marx da maturidade, em especial a obra O capital.

Palavras-chave: Sujeito de direito. Humanismo. Anti-humanismo. Karl Marx. Evgeni


Pachukanis. Herbert Marcuse. Louis Althusser. Sigmund Freud. Jacques Lacan.
RIASSUNTO

OLIVEIRA, Marcos Alcyr Brito de. Soggetto di diritto e marxismo: dalla critica
umanistica alla critica anti-umanistica. 2016. 234 p. Doutorado – Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

A partire dall’umanesimo, l’individuo comincia ad essere considerato un soggetto di


diritto, concetto elaborato dall’Illuminismo nel momento in cui la borghesia si consolidava
come classe che lottava contro i privilegi della nobiltà fondati sull’origine divina.
L’individuo diventa universalizzato, tutti passano ad essere considerati come composti dei
medesimi elementi e in maniera identica, prevalendo la ragione quale promotrice
dell’uguaglianza, della libertà e della fraternità, le bandiere della rivoluzione francese. Con
Kant, poi perfezionandosi con Hegel, il concetto di soggetto di diritto è costruito in modo
astratto, senza considerare le disuguaglianze reali. Marx e Engels, con l’intuito di
smontare il mito del “soggetto di diritto”, elaborarono studi che indicano il modo di
produzione quale determinante del modo di vita degli individui in una determinata società
e che il soggetto di diritto non è nient’altro che il ruolo degli agenti proprietari. Evgeni
Bronislávovich Pachukanis, eminente giurista russo, elabora una critica contundente e
originale al soggetto di diritto, segnalando che l’analisi della forma del soggetto, per Marx,
specialmente ne “Il Capitale”, proviene dall’analisi della forma merce, poiché la società
capitalista è una società di proprietari di merci. Avendo come parametro Pachukanis,
analizzeremo la questione della soggettività giuridica in due autori: Herbert Marcuse, il
quale si basa sugli scritti di Marx della gioventù, umanista, in particolare dei Manoscritti
Economico-Filosofici del 1844, e Louis Althusser, che si basa sulle analisi delle opere di
Marx della maturità, specialmente su “Il Capitale”.

Parole Chiave: Soggeto di diritto. Umanesimo. Antiumanesimo. Karl Marx. Evgeni


Pachukanis. Herbert Marcuse. Louis Althusser. Sigmund Freud. Jacques Lacan.
RÉSUMÉ

OLIVEIRA, Marcos Alcyr Brito de. Sujet de droit et marxisme: de la critique humaniste à
la critique anti-humanist. 2015. 234 p. Doutorado – Faculdade de Direito, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2016.

À partir de l’humanisme, l’individu a commencé à être considéré comme un sujet de droit,


concept élaboré par l’Illuminisme au moment où la bourgeoisie se consolidait en tant que
classe en luttant contre les privilèges de la noblesse, qui se basaient sur l’origine divine.
L’individu est donc universalisé, tous les individus sont considérés comme étant constitués
des mêmes éléments et de manière identique, la raison prédominant pour promouvoir
l’égalité, la liberté et la fraternité, les bannières de la Révolution Française. Chez Kant, et
se perfectionnant chez Hegel, le concept de sujet de droit est construit de forme abstraite,
sans considérer les inégalités réelles. Marx et Engels, dans le but de démonter le mythe du
« sujet de droit », ont élaboré des études qui signalent le mode de production d’une société
comme déterminant du mode de vie des individus de cette société, et que le sujet de droit
ne serait que le rôle des agents propriétaires. Evgeni Pachukanis, éminent juriste russe,
élabore une critique originale et aigüe du sujet de droit, signalant que l’analyse de la
forme-sujet, chez Marx, en particulier dans son oeuvre le Capital, découle de l’analyse de
la forme-marchandise, vu que la société capitaliste est une société de propriétaires de
marchandises. Ayant Pachukanis pour paramètre, nous analysons la question de la
subjectivité juridique chez deux auteurs : Herbert Marcuse, qui s’appuie sur les écrits du
jeune Marx, humaniste, en particulier l’oeuvre Manuscrits économiques philosophiques de
1844, et chez Louis Althusser, qui a pour base de son analyse les oeuvres de la maturité de
Marx, en particulier son oeuvre le Capital.

Mots-clé: Sujet de droit. Humanisme. Anti-humanisme. Karl Marx. Evgeni Pachukanis.


Herbert Marcuse. Louis Althusser. Sigmund Freud. Jacques Lacan.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10

CAPÍTULO 1. DO SUJEITO DE DIREITO DOS JURISTAS AO SUJEITO DE


DIREITO DA CRÍTICA MARXISTA.............................................................................16

1.1. Desenvolvimento histórico da noção de sujeito ........................................................... 16


1.2. Do sujeito de direito dos juristas................................................................................... 22
1.3. Crítica marxista ao sujeito de direito ............................................................................ 31
1.3.1. Estado/Forma jurídica ................................................................................................ 37

CAPÍTULO 2. DA CRÍTICA HUMANISTA AO SUJEITO DE DIREITO:


HERBERT MARCUSE ..................................................................................................... 42

2.1. Subjetividade fenomenológica ...................................................................................... 44


2.1.1. A subjetividade em Heidegger/Dasein ...................................................................... 47
2.1.2. Subjetividade fenomenológica dialética/Ato radical ................................................. 50
2.1.3. Materialismo histórico ............................................................................................... 54
2.2. Fase crítico/filosófica .................................................................................................. 59
2.2.1. A subjetividade em Cultura e Sociedade .................................................................. 59
2.2.2. Sujeito em Hegel reinterpretado ................................................................................ 68
2.3. Teoria crítica da sociedade ........................................................................................... 75
2.3.1. Subjetividade e psicanálise ........................................................................................ 76
2.3.2. Racionalidade tecnológica ......................................................................................... 93

CAPÍTULO 3. DA CRÍTICA ANTI-HUMANISTA AO SUJEITO DE DIREITO:


LOUIS ALTHUSSER ...................................................................................................... 107

3.1 - Corte epistemológico ................................................................................................. 110


3.1.1. Retorno ao Jovem Marx/Marx ideológico ............................................................... 122
3.1.2. Marx científico/Continente história ......................................................................... 132
3.2 – Ideologia ................................................................................................................... 145
3.2.1. Aparelhos Ideológicos de Estado ............................................................................. 150
3.2.2. Direito ...................................................................................................................... 155
3.2.3. A subjetividade para Lacan ...................................................................................... 161
3.2.4. A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos (Psicanálise) ............................. 171

CAPÍTULO 4. NOVAMENTE PACHUKANIS: FORMAS SOCIAIS,


SUBJETIVIDADE E PSICANÁLISE ........................................................................... 184

4.1. Subjetividade em Pachukanis .................................................................................... 186


4.2. Marcuse e Pachukanis ................................................................................................. 190
4.3. Althusser e Pachukanis ............................................................................................... 193
4.4. Psicanálise: Marcuse e Althusser ............................................................................... 195
4.4.1. Marcuse .................................................................................................................... 196
4.4.2. Althusser .................................................................................................................. 197
4.4.3 – Marcuse vs Althusser ............................................................................................. 200

CONCLUSÃO .................................................................................................................. 211

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 220


10

INTRODUÇÃO

A elaboração de um conceito ou categoria geral que englobaria os indivíduos e


grupos humanos é recente na história da humanidade. Na Antiguidade, o indivíduo
estranho ao grupo era tido como de outra espécie, como não humano, e os que viviam nos
agrupamentos ou cidades eram identificados conforme suas posições na formação social
que integravam - desde coisas a soberanos.

Com o advento do cristianismo, cria-se a noção de um sujeito universal, porém


ainda no campo do mundo espiritual. Somente com o Iluminismo, após um processo
revolucionário dirigido pela burguesia, o conceito de indivíduo como sujeito abstrato,
universal, portador de direitos foi delineado - o sujeito de direito.

A burguesia conquistou o poder político pondo em questão os privilégios da


nobreza fundamentados na origem divina. O Iluminismo proclamou o poder da razão; a
Revolução Francesa anunciou a igualdade, a liberdade e a fraternidade como ideais a serem
alcançados pela humanidade, utilizando-se da razão como farol guia.

No entanto, ainda hoje tais premissas estão longe de serem realizadas em sua
plenitude: permanece em nossa sociedade a desigualdade entre os homens, onde poucos
exploram o trabalho de muitos, prevalecendo uma lógica instrumental justificadora da
dominação.

O ideal da igualdade a ser alcançado pela razão, proclamado como um farol para
iluminar a humanidade em seu caminho para sua emancipação, na verdade tem-na
conduzido a caminhos opostos, impossibilitando o alcance desta igualdade, conforme
pondera o professor Aloysio Ferraz Pereira:

Mas a própria razão, que faz a dignidade do homem, leva-o à perdição e à


vaidade que inspira. A causa é que a razão, como os demais bens, inerentes ou
adquiridos, concorre para estabelecer a desigualdade entre os homens. Sem
nunca poder libertá-los de sua miserável condição natural, onde se igualam, a
razão, ela só, é impotente para realizar a igualdade, apesar da ilusão, que
alimenta, de captar e dominar o mundo [...].1

1
PEREIRA, Aloysio Ferraz. Estado e direito na perspectiva da libertação (Uma crítica segundo Martin
Heidegger). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 119.
11

Quanto à liberdade, Jean-Paul Sartre observa que é o homem que a escolhe: a sua
liberdade é incondicional e ele pode mudar seu projeto original ou inicial a qualquer
momento. O homem e só o homem é o ser para o qual todos os valores existem.
Condenado a ser livre, o homem carrega nos ombros a responsabilidade pelo mundo:

A consequência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem,


estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é
responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a
palavra “responsabilidade” em seu sentido corriqueiro de “consciência (de) ser o
autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto”. 2

Mas, de qual liberdade se fala? A liberdade realizada hoje se dá no plano das ideias,
nos interesses da dominação capitalista, não no sentido marxista de emancipação em uma
sociedade sem a exploração do trabalho em favor de uma determinada classe.

Dessa forma, a igualdade e a liberdade humanas não passam, até hoje, dos limites
formais delimitados por uma esfera legal abstrata, do conteúdo de uma ideologia jurídica.
A fraternidade, por sua vez, depende da realização efetiva da liberdade e da igualdade, ou
seja, apresenta-se como uma possibilidade ainda não realizada.

Seriam, então, os valores proclamados pela Revolução Francesa nada mais que
idealizações, de forma que para se atingir a emancipação humana se faz necessário superar
tais abstrações? Ou, mesmo sendo idealizações, deve-se seguir adiante de forma a realizá-
los em concreto ou demonstrar a incoerência do enunciado com o sistema econômico
vigente e, saindo da esfera da filosofia realizada ideologicamente, partir-se para a
construção de uma utopia possível?

Partindo-se das premissas postas pelo Iluminismo, o ser humano teria o compromisso
de realizar os valores proclamados pela Revolução Francesa: alcançar a emancipação
humana a partir da razão. Mas, quais seriam as condições objetivas e subjetivas para que
tal emancipação ocorresse? Seria pela atuação do ser humano realmente existente, por
meio de um ato radical que se conseguiria a esperada emancipação?

Ou, por outra ótica, os indivíduos seriam agentes-sujeitos na história, que agiriam
sob a determinação das formas de existência das relações de produção e de reprodução? Ou
seja, para que possamos caminhar na direção da emancipação da humanidade devemos nos

2
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada, ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 678.
12

centrar em condições objetivas, adotando uma teoria científica para uma maior
compreensão da história?

Seria necessário afastar o conceito idealista de um sujeito do processo histórico, de


maneira a visualizarmos melhor as estruturas dadas no modo de produção em que está
enraizada a luta de classes, de forma que uma sociedade de transição para o socialismo
nada teria a ver com a extensão ou alargamento da liberdade e da igualdade, meros
conceitos da ideologia jurídica?

Para enfrentarmos estas questões, focamos nossa análise do sujeito de direito com
base na dicotomia existente entre um ponto de partida que tem o homem como centro das
análises e outro ponto que parte das estruturas vigentes (modo de produção) que
determinam a ação dos indivíduos.

Os clássicos vislumbraram em um indivíduo isolado, o agente portador dos direitos


anunciados pela revolução burguesa, constituindo-o em sujeito de direito que, guiado pela
razão, alcançaria a liberdade e a igualdade. Sujeito este esboçado inicialmente por Kant,
com base no dever, e melhor definido em Hegel, que trabalhou a universalidade do sujeito,
considerado, na verdade, um reflexo da universalização da forma mercadoria.

Do ponto de vista marxista, questões subjetivas e objetivas estão relacionadas ao


modo de produção vigente, à história e à sociabilidade humana, de forma que não se pode
analisar a dinâmica das relações sociais reduzindo-as a um indivíduo que conquistou
direitos, considerado na forma abstrata de um sujeito de direito.

Mas como se poderia situar estas ações de forma precisa diante do materialismo
histórico/dialético desenvolvido por Karl Marx?

Com intuito de desmontar o mito criado pelo Iluminismo de uma sociedade


composta por indivíduos isolados portadores de direitos formais que, por um acordo para
saírem da barbárie, estabeleceram um “contrato social”, Karl Marx e Friedrich Engels
empreenderam uma jornada intelectual no sentido de apontar como determinante do modo
de vida dos indivíduos em uma dada sociedade o modo de produção dessa sociedade.

A sociedade capitalista sofreu uma forte crítica de Marx, que evidenciou a


verdadeira natureza do sujeito de direito: constituído de modo a ter a capacidade de se
relacionar com os outros por meio do mercado, no qual prevalece a liberdade e igualdade
13

formais para firmar contratos, ou seja, os homens devem, como sujeitos livres, colocar a si
mesmos como mercadorias a serviço do capital.

Partindo-se da crítica marxista do conceito de sujeito de direito, que teve por


expoente Evgeni Bronislávovich Pachukanis, eminente jurista russo, podemos identificar
duas óticas no trato deste assunto.

1ª) Um aprofundamento da concepção iluminista de sujeito de direito, no sentido da


real efetivação da liberdade, igualdade e fraternidade a serem conquistadas pelo sujeito
histórico, em uma ótica humanista, cuja concepção é identificada nos escritos da
juventude de Marx, sendo Herbert Marcuse um autor representativo desta vertente a ser
analisado neste trabalho.

2ª) Uma análise não subjetivista da história, em que se faz necessária a desconstrução
do sujeito de direito, em que há o deslocamento do foco no desenvolvimento social
para o motor da história, a luta de classes, com enfoque mais anti-humanista, cujo
representante mais destacado é Louis Althusser,

No capítulo 1, confrontamos a noção de sujeito de direito elaborada pelos modernos,


que se utilizaram da razão para fundamentar o direito e o Estado, com a crítica elaborada
por Marx e Engels, criadores de uma teoria revolucionária, desmistificando as noções até
então vigentes de direito e Estado.

Com base na Razão, pensadores modernos como Emmanuel Kant e Georg Wilhelm
Friedrich Hegel elaboraram a construção da figura do sujeito do direito, com intuito de
representarem o ser humano de forma genérica, a humanidade representada em um
indivíduo que detém a liberdade e condições de igualdade com outros indivíduos.

A razão liberal, baseada no direito, com a sanção do Estado, na verdade assegura os


direitos de uma classe, a dos proprietários, para que estes tenham a liberdade de realizarem
seus negócios, em condições de “igualdade” com outros proprietários.

Marx e Engels desmistificam a concepção de direito e do Estado vigente entre os


modernos, com eles a razão desce dos céus e finca seu caminho na prática humana - sob
uma ótica materialista, o homem passa a ser compreendido a partir de sua prática, das
condições materiais de sua existência.
14

O marxismo demonstra que a universalização da personalidade jurídica, o sujeito de


direito, é uma construção vinculada ao movimento da circulação e produção de
mercadorias inerentes ao modo de produção capitalista.

Na verdade, o sujeito de direito desmistificado representa nada mais que um conjunto


de relações sociais de produção nas quais os homens se colocam como sujeitos livres,
proprietários de mercadorias, que podem ser seu próprio trabalho, a serviço do capital.

Em uma trajetória inicialmente influenciada por Hegel e por Ludwig Andreas


Feuerbach, Marx parte de uma postura racionalista liberal (Gazeta Renana), passa por uma
posição humanista individualista (quando considera que os sujeitos da história são os
homens concretos reais), até chegar à colocação da luta de classes no centro de suas
análises, posicionando-se pela classe proletária, rompendo, desta forma, com as
concepções ideológicas da história até então vigentes.

Como veremos no capítulo 2, Marcuse, em suas posições humanistas, procura


encontrar o verdadeiro ser humano desvinculado das mistificações burguesas,
vislumbrando inicialmente este ser concreto no Dasein, apresentado por Heidegger e
agregando, posteriormente, críticas feitas pelas primeiras posições humanistas de Marx, em
especial nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, até atingir a crítica da sociedade
industrial, utilizando-se de critérios psicanalíticos, para melhor entender o papel do
“sujeito revolucionário”, responsável pela emancipação da humanidade.

No capítulo 3, demonstraremos as posições anti-humanistas de Althusser, que


considera a figura do sujeito de direito uma exteriorização ideológica, um reflexo do modo
de produção vigente em determinada sociedade. Portanto, para este autor a análise do
sujeito deve levar em conta a estrutura social, o modo de produção e sua ideologia
exteriorizada por meio dos aparelhos ideológicos do Estado.

Para tal investida intelectual, Althusser propõe a utilização do método marxista, mas
sob o crivo de um corte epistemológico que separa o jovem Marx, humanista, do Marx da
maturidade, anti-humanista, que adota uma posição científica, afastando a figura do sujeito
universal abstrato, influenciado por Hegel, para atingir uma análise concreta da sociedade
burguesa em sua obra máxima O Capital, na qual elimina o sujeito da história, colocando a
luta de classes no centro de suas análises.
15

Finalmente, no capítulo 4, retornamos a um marxista russo, Evgeni Bronislávovich


Pachukanis, por sua posição original sobre a questão do sujeito de direito, uma vez que
considera a própria forma do direito como sendo um reflexo das relações de produção, da
troca entre proprietários, regulando essa troca sob a categoria constitutiva universal do
sujeito: o sujeito de direito.

Cotejamos o pensamento dos dois filósofos tratados nos capítulos anteriores com as
contribuições do autor russo, além de confrontarmos seus estudos entre si, em especial no
que se refere à utilização que fazem da psicanálise para tratarem da questão da
subjetividade.
16

CAPÍTULO 1. DO SUJEITO DE DIREITO DOS JURISTAS AO


SUJEITO DE DIREITO DA CRÍTICA MARXISTA

1.1. Desenvolvimento histórico da noção de sujeito

O conceito de sujeito de direito, como representação abstrata do ser humano


portador de direitos, foi construído recentemente, a partir do Iluminismo, com a noção de
universalidade. O indivíduo foi “constituído” como sujeito social e ator jurídico que
culminará na ideia do indivíduo-pessoa como categoria ético-jurídica, dotado de direitos
subjetivos.

Nas sociedades primitivas, o indivíduo era totalmente identificado por sua inserção
na sociedade humana a que pertencia. As coletividades humanas primitivas eram
assentadas sobre a propriedade comum da terra e unidas por laços de sangue, não havia
hierarquia rígida e sim uma divisão do trabalho que ocorria por conta das diferenças entre
os sexos, mas as mulheres não eram submetidas aos homens como propriedades:

Coletividade pequena, assentada sobre a propriedade comum da terra e unida por


laços de sangue, os seus membros eram indivíduos livres, com direitos iguais,
que ajustaram as suas vidas às resoluções de um conselho formado
democraticamente por todos os adultos, homens e mulheres, da tribo. O que era
produzido era repartido com todos, e imediatamente consumido. 3

O pequeno desenvolvimento dos instrumentos de trabalho e a falta de


conhecimento de técnicas mais avançadas impediam que se produzisse mais do que o
necessário para a vida cotidiana e que se acumulassem bens, de modo que nas guerras
travadas com as tribos vizinhas, os prisioneiros eram mortos, pois não havia alimento para
todos.

Com as modificações ocorridas na técnica, como a domesticação de animais e seu


emprego na agricultura, a produção começou a ser maior que o necessário para o próprio
sustento, o trabalho adquiriu valor, de forma que nas guerras já não se matavam os
prisioneiros, que passavam a ser aproveitados como escravos; surgem as diferenças de
classes:

Com o aumento do seu rendimento, o trabalho do homem adquiriu certo valor.


Em outros tempos, quando a produção era exígua, e o cultivo consistia, por

3
PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. São Paulo: Cortez Editora, 2005, p. 17.
17

exemplo, apenas em semear alguns grãos depois de arranhar o solo entre troncos
cortados, o aumento da natalidade era severamente reprimido. A comunidade se
mostrava tão incapaz de assegurar a alimentação de indivíduos além de certo
número que, quando uma tribo vencia outra, ela se apoderava das riquezas desta,
mas também matava todos os seus membros, porque recebê-los no seu seio seria
catastrófico. Mas, tão cedo o bem-estar da tribo aumentou, por causa das novas
técnicas de produção, os prisioneiros de guerra passaram a ser desejados, e o
inimigo vencido passou a ter a sua vida garantida com a condição de
transformar-se em escravo. 4

Na Antiguidade clássica, em especial na Grécia e em Roma, que constituem a base


do pensamento jurídico, político e filosófico do ocidente, o direito dos seres humanos
dependia da sua posição na sociedade, não eram todos os seres humanos considerados
como pessoas e sujeitos de direito.

Além do mais, diferentemente da Modernidade, a dominação era exercida de forma


direta, não havia um direito que camuflava a dominação:

A estrutura social da antiguidade faz com que o seu direito seja, na verdade, uma
forma de dominação direta. A escravidão é um vínculo de domínio direto do
senhor em relação ao escravo. Se pensarmos no poder do paterfamilias, ele tem a
característica de um poder absoluto. Vale dizer, o paterfamilias não tem regras
estatais que limitam seu poder sobre seus subordinados. Nas mais antigas
sociedades, os vínculos de parentesco ou de comunidade excluem o diverso, o
estranho, o estrangeiro, o mais fraco, subjugando-o, escravizando-os. Essa
relação é de domínio físico, envolve a brutalidade e não regras jurídicas, sendo
determinadas muitas vezes pela posse da terra ou pela capacidade de guerrear. 5

Os gregos principiam sua reflexão filosófica pela cosmologia, isto é, o estudo das
origens das coisas e do próprio mundo, mas sem se limitar as coisas da natureza, atrelando
esta compreensão às questões sociais, a uma compreensão do homem no mundo.

Para os gregos, o homem não é considerado como algo diferente do mundo e muito
menos tomado como uma unidade isolada do todo da polis: o homem somente se
compreende como parte do todo social e político, que por sua vez está mergulhado na
natureza:

Para os gregos, o homem não é considerado como algo diferente do mundo. Ele
está mergulhado indissociavelmente no mundo. Assim, a cosmologia não é uma
reflexão somente da natureza física, mas também uma preocupação sobre os
arranjos e princípios políticos e sociais dos homens. O homem, por sua vez, não
é tomado, como na tradição cristã, como categoria distinta, individualizada. O
homem somente se compreende enquanto parte do todo social e político, que, por
sua vez, está mergulhado e imbricado no todo da natureza. 6

4
PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. São Paulo: Cortez Editora, 2005, p. 25.
5
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2015, p. 17-18.
6
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 30.
18

O homem só existia de forma plena como cidadão, fazendo parte de uma


comunidade política. O indivíduo era visto como parte do órgão coletivo, do corpo social:
o que importava para o ateniense era a vida em comunidade, o público superava o privado.

Apesar da democracia existente, na Grécia antiga não havia uma real igualdade
entre os homens. Em Atenas, principal centro político da época, somente aqueles
considerados cidadãos é que poderiam participar da vida política na polis, ou seja, apenas
os homens atenienses livres possuíam a cidadania ativa:

Os cidadãos da pólis ateniense não eram em número quantitativamente elevado,


já que excluídos de tal condição estavam as mulheres, as crianças, os velhos, os
escravos, os estrangeiros. Por isso, aqueles proprietários e homens livres que
reuniam a condição de cidadania agiam em deliberação coletiva e direta para
resolver os problemas e questões pertinentes à pólis. Assim sendo, ao contrário
da nossa contemporânea democracia representativa, na qual os cidadãos
escolhem os líderes que deliberarão em seu nome, e após isso não mais se
sentem obrigados a partilhar os destinos da sociedade, em Atenas os cidadãos
discutiam diretamente, em praça pública, e seu interesse se fazia garantido por
meio de sua própria expressão verbal. 7

Dessa forma, o número de cidadãos gregos era pequeno, uma vez que do conceito
de cidadania estavam excluídos os homens ocupados (comerciante e artesãos), as
mulheres, os escravos, crianças e os estrangeiros – praticamente somente os proprietários
eram livres para ter o direito de decidir sobre o governo da polis e que tinham condições de
se preparar para poderem defender seus direitos em praça pública.

Aristóteles justificava a escravidão, pois essa seria necessária para a manutenção da


família, os escravos teriam a utilidade semelhante aos animais domésticos, sendo que a
condição de escravo seria imposta por obra da própria natureza:

A utilidade dos escravos é mais ou menos a mesma dos animais domésticos:


ajudam-nos com sua força física em nossas necessidades quotidianas. A própria
natureza parece querer dotar de características diferentes os corpos dos homens
livres e dos escravos. [...]. É claro que se essa diferença entre homens, puramente
exterior, fosse tão grande como é em relação às estátuas dos deuses, todos
concordariam em dizer que aqueles que demonstram inferioridade devem ser
escravos dos outros. [...]. Assim, entre os homens, uns são livres e outros
escravos e, para estes, é justo viver na servidão. 8

A agricultura grega utilizava escravos amplamente, mas estava confinada em


pequenas áreas, com população escassa. Roma também se utilizou do escravo na produção
agrícola, mas utilizando-o em um novo tipo de propriedade, o latifundium:

7
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 37-38.
8
ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Ícone Editora, 2007, p. 20.
19

Foi a República Romana quem primeiro uniu a grande propriedade agrícola com
a escravidão em grupos no interior em maior escala. O advento da escravidão
como modo de produção organizado inaugurou – como na Grécia – a fase
clássica que distinguia a civilização romana, o apogeu de seu poder e de sua
cultura. Mas enquanto na Grécia isto havia coincidido com a estabilização da
pequena agricultura e de um compacto corpo de cidadãos, em Roma, foi
sistematizado por uma aristocracia urbana a qual gozava de um domínio social e
econômico sobre a cidade. O resultado foi a nova instituição rural do latifundium
escravo e extensivo.9

Em Roma, no que se refere ao conceito de igualdade, não há muitas diferenças em


relação à situação que ocorria na Grécia Antiga, pois, também, não havia uma efetiva
igualdade entre os membros da sociedade. A desigualdade era um dos fundamentos da
Roma Antiga, os direitos existentes eram distribuídos de forma diferenciada entre patrícios
e plebeus.

As conquistas romanas foram acompanhadas por um desenvolvimento sem


precedentes na superestrutura, emerge como componente principal dessa superestrutura a
legislação civil romana com toda sua força, procurando regulamentar as relações informais
de contrato e permuta entre os cidadãos.

Desta forma, pode-se dizer que os gregos especulavam sobre o que seria o justo,
produzindo uma filosofia sobre o tema, já os romanos possuíam um ideário expansionista
prático e não muito filosófico - dividi et impera:

Os gregos antigos já especulavam, racionalmente, a respeito do que seria o justo,


produzindo então uma filosofia sobre o tema. Os romanos, que nem tanto
especulavam sobre o que seria justo, buscaram diretrizes jurídicas para a decisão
dos problemas práticos que se lhes apresentavam. Daí um caráter mais concreto e
menos especulativo do direito romano, que buscava se adaptar às necessidades
dos conflitos na prática.10

O conceito de igualdade sofreu uma forte influência com o advento do cristianismo,


não só no período romano, mas também em outros períodos da história da humanidade. A
doutrina Cristã consagra a igualdade de todos os homens perante Deus, não havendo
qualquer diferença entre as pessoas.

Paulo de Tarso, por meio do cristianismo, desmonta o discurso da valorização do


indivíduo por conta de sua origem, indicando a insignificância dos lugares. Para Paulo
“não há distinção entre o judeu e o grego”, desqualificando, desta forma, predicados como
a genealogia, a origem, o território, os ritos, etc.:

9
ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 58.
10
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2015, p.18.
20

Declarar a não diferença entre o judeu e o grego estabelece a universidade


potencial do cristianismo; fundar o sujeito como divisão, e não como
manutenção de uma tradição, adéqua o elemento subjetivo a essa universalidade,
rescindindo o particularismo predicativo desses sujeitos culturais. 11

Mas, o que predominou na prática foi uma igualdade universal somente válida no
plano espiritual, pois na Terra a igreja admitiu durante muitos séculos a legitimidade da
escravidão, a inferioridade natural da mulher em relação ao homem, bem como a
inferioridade dos povos americanos, africanos e asiáticos.

No entanto, o cristianismo deixou uma semente do conceito de sujeito de direito,


que propiciou a liberdade do indivíduo, mas tornou-se o germe do individualismo:

É com o cristianismo que surge uma nova concepção, semente primeira do futuro
conceito de sujeito de direito. Para o cristianismo, a sorte do indivíduo não é a
mesma de seu grupo. Pela fé em Deus ou em Jesus, poderia uma pessoa ir aos
céus, embora não seus pais nem seus filhos nem seu povo, caso todos estes não
compartilhassem dessa fé. O cristianismo, em termos teológicos, está isolando
uma parte do todo, e criando, pois, teoricamente, o conceito de pessoa. O uso
desse conceito serviu para garantir um espaço soberano para a fé de cada um,
mas, também, para divorciar as ações de cada um em relação aos demais. O
efeito positivo dessa visão do cristianismo foi o de postular a liberdade do
indivíduo perante a maioria; mas, em sentido contrário, essa teoria é também o
germe do individualismo, da falta de cuidados com o todo, que depois se tornou
a grande característica da modernidade capitalista.12

O modo de produção feudal, que dominou esse período, conjugado com as invasões
bárbaras, provocou a fragmentação de toda a Europa em diversos centros de poder político,
com uma variedade de reinos e feudos.

A desigualdade, a imobilidade social e os laços de servidão e vassalagem, foram


marcas essenciais da sociedade estamental feudal, que era rigorosamente dividida entre
nobres, clérigos e servos.

Vigorava uma rede que identificava o lugar de cada membro de acordo com o seu
“assujeitamento” a um conjunto de deveres. O estatuto jurídico do feudalismo sujeitava
todos os indivíduos a papéis definidos pelo sistema em vigor: servo da terra, súdito do
príncipe e servo de Deus.

Prevalecia no mundo medieval a vontade dos senhores feudais, cuja dominação


direta era legitimada pela religião:

11
BADIOU, Alain. São Paulo, a fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009, p. 69.
12
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2015, p. 95.
21

No mundo medieval também não houve uma organização jurídica autônoma e


relativamente independente do próprio mando do senhor feudal. A sociedade
feudal muito pouco dependeu de tipos jurídicos para a sua organização. A
dominação dos senhores feudais dava-se, muito mais, com base na pura vontade
senhorial que se impunha em face da vassalagem, na tradição, no domínio
exclusivo e hereditário da terra. O vínculo de exploração feudal se valia, ainda,
de argumentos religiosos, como o da vontade de Deus de que o senhor e o servo
assim se mantivessem, e, num plano geral, o que se queira chamar direito
medieval acabava por ser, então, uma forma de raciocínio religioso em benefício
dessa dominação.13

O fim da Idade Média foi marcado pelo ressurgimento do comércio, pela migração
do homem para as cidades, pelo impulso das grandes navegações e pela emergência dos
valores individuais. Todos estes novos fatores proporcionaram a derrocada do feudalismo e
o enfraquecimento do poder da Igreja Católica com a consequente formação dos Estados
Nacionais na Europa Ocidental e o surgimento de um novo conceito de igualdade que pôde
romper com as tradições e com os valores feudais não mais condizentes aos anseios do
homem moderno.

Há a queda de Deus com o advento da modernidade, o indivíduo é liberto, pela


força da lei, de qualquer servidão para com os seus semelhantes e de todos os tipos de
obrigações de deveres para com o seu suserano.

Os filósofos burgueses, com intuito de combaterem os privilégios da nobreza, criam


uma concepção de direito natural: o direito não teria fundamento mais em Deus e sim em
direitos “naturais” como a “igualdade”, a “liberdade” e a propriedade.

A Idade Moderna foi um período de profundas transformações e de rupturas. Tais


transformações, seja na ordem jurídica, política, econômica e social, foram fundamentais
para o desenvolvimento de um novo conceito de igualdade e liberdade, os quais constituem
um dos pilares da democracia:

A dominação de classe pôde pressupor, por muito tempo, a existência de


vínculos de subordinação pessoal, tornando o homem dependente de outro
homem, não sendo ele livre para dispor de si próprio, não podendo oferecer a sua
própria capacidade de trabalho como mercadoria, no mercado. A liberdade e a
igualdade não eram então reconhecidas, nem percebidas como “necessárias” à
condição humana. Esse vínculo essencial que pode ser estabelecido entre a
emergência da relação de capital e o surgimento das categorias da liberdade e
igualdade aparece tão somente em um momento preciso da história, sob uma
estrita determinação social, exatamente quando as relações de produção
capitalista vão se constituindo, e a liberdade e a igualdade se confundem com a

13
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2015, p.19.
22

própria natureza do homem. Essas categorias, ignoradas por tanto tempo, agora
se tornam imprescindíveis para a própria identificação da humanidade do
homem. 14

Os modernos combateram os privilégios feudais e procuraram a universalidade e a


implementação de direitos formais no humanismo, que se caracterizou por um
antropocentrismo filosófico e religioso – o súdito é transformado em sujeito de direito.

O sujeito adquiriu importância no meio social, diferentemente do que ocorria na


Antiguidade e na Idade Média, onde predominavam os valores coletivos. Na Modernidade
o privado supera o público e o indivíduo prevalece sobre o corpo social.

Segundo a concepção moderna, o sujeito de direito surge para resguardar os


interesses do ser humano, no entanto, tal concepção não leva em consideração a causa do
surgimento do conceito de sujeito de direito – as relações capitalistas:

Percebe-se que, pois, que é falso o reputado humanismo do direito, que diz que,
porque o ser humano é importante, ele é resguardado juridicamente. Na história,
foi só por causa das relações capitalistas que surgiu o conceito de sujeito de
direito. Deve-se entender, pois, que nesse tema, a teoria do direito opera de
maneira normativista, reconhecendo como sujeito quem queira, isto se dá não
porque as necessidades intrínsecas e humanitárias dos seres humanos devem ser
atendidas, mas porque interesses jurídicos genericamente universais –
capitalistas – assim se impõem. 15

Eis o porquê da necessidade de um estudo crítico da verdadeira natureza do “sujeito


de direito” - desfazer as ilusões jurídicas de que o direito é uma forma necessária para
realizar os interesses do ser humano:

Daí a necessidade de estudo crítico do tema do sujeito do direito, rompendo com


toda a ideologia que faz pensar que o direito é uma forma necessária surgida da
defesa dos interesses do ser humano. O conceito de sujeito de direito se põe
historicamente por razões estruturais da reprodução capitalista, o que obriga o
jurista a redimensionar, inclusive, a imediata e simples associação entre sujeito
de direito e dignidade humana, reputada bastante e suficiente.16

1.2. Do sujeito de direito dos juristas

Após um processo revolucionário, a burguesia conquistou o poder político pondo


em questão os privilégios da nobreza fundamentados na origem divina. O Iluminismo

14
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras expressões e Dobra
Universitária, 2014, p. 49-50.
15
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2015, p. 99.
16
Idem, ibidem, p. 99.
23

proclamou o poder da razão: a Revolução Francesa anunciou a igualdade, a liberdade e a


fraternidade como ideais a serem alcançados pela humanidade, utilizando-se da razão
como o farol guia.

Com o Iluminismo, a ordem do real não depende mais dos desígnios de Deus, como
era considerada no feudalismo, passando a ser pensada a partir de uma estrutura imanente
aos indivíduos humanos. O indivíduo é universalizado, todos os indivíduos são
considerados como compostos dos mesmos elementos e de maneira idêntica; todos dotados
da mesma racionalidade, racionalidade esta que passa a ser o princípio da construção da
subjetividade filosófica da modernidade, criando-se uma igualdade imaginária em um
mundo cindido:

O universal é essencialmente o burguês. A burguesia é uma classe universal, e


um direito universal esconde no fundo a sua grande perversão: a luta por dizer
que todos são iguais perante a lei acaba com o antigo privilégio absolutista, mas
esconde as diferenças de fundo que são os eixos de estrutura da sociedade
moderna. Ao tratar igualmente um mundo cindido, a filosofia do direito moderno
determina o império da lógica burguesa. A diferença entre exploradores e
explorados, o conflito de classes e a desarmonia latente da sociedade somem
perante a concórdia promovida pelo direito. A instância política e jurídica da
vida social apaga as diferenças profundas da própria vida produtiva. Inauguram-
se, numa superfície político-jurídica de iguais, a cidadania formal e os direitos
civis, e enterram-se longe das vistas da sociedade as desigualdades da vida
econômica do homem. 17

Rousseau, em uma tentativa de conformar a razão com a igualdade humanitária,


afirmou que não se deve deteriorar o homem da natureza ao adaptado à sociedade, sendo
que a consciência originária confere ao indivíduo a liberdade. Como solução, propõe uma
associação que defenda e proteja toda a força comum, a pessoa e os bens de cada
associado, de forma que todos os homens unidos não obedeçam senão a si próprio,
permanecendo livre como antes: o contrato social, que traduz a vontade geral:

As cláusulas desse contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato,
que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito, de modo que,
embora talvez jamais enunciadas de maneira formal, são as mesmas em toda
parte, e tacitamente mantidas e reconhecidas em todos os lugares, até quando,
violando-se o pacto social, cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua
liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciou àquela.
Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só, a
saber: a alienação total de cada associado, com todos os seus bens, à comunidade
toda, porque, em primeiro lugar, cada um se dando-se completamente, a
condição é igual para todos, e, sendo igual a condição para todos, ninguém se
interessa por torná-la onerosa para os demais. Ademais, fazendo-se a alienação
sem reservas, a união é tão perfeita quanto pode ser, e a nenhum associado

17
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito e filosofia política. A justiça é possível. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 34.
24

restará algo a reclamar; pois, se restassem alguns direitos aos particulares, como
não haveria nesse caso um superior comum que pudesse decidir entre eles e o
público, cada qual, sendo de certo modo seu próprio juiz, logo pretenderia sê-lo
de todos; o estado de natureza subsistiria e a associação se tornaria
18
necessariamente tirânica ou vã.

Rousseau distingue dois tipos de desigualdade; uma que ele chama de natural ou
física, porque estabelecida pela natureza, como as diferenças de idade, saúde etc.; e a outra
desigualdade que ele chama de moral ou política, que depende de uma convenção que é
estabelecida ou pelo menos autorizada pelos homens.

No entanto, a busca da razão como promotora da igualdade, da liberdade e da


fraternidade, promovida inicialmente pela Revolução Francesa, com base nos ideais de
Rousseau, em contraposição às explicações fundamentadas pela fé, desembocou em uma
“fé na razão”, com os pensadores modernos, em especial Kant e Hegel, interpretando os
direitos do ser humano em abstrações formais, projetando-os em um sujeito de direito
constituído abstratamente sem a consideração das desigualdades reais.

Assim, tão logo as conquistas do Iluminismo são realizadas, são elas liquidadas.
Tudo deve enquadrar-se no modelo definido de forma limitada e ambígua, do
“homem Racional”. Somente são reconhecidos os aspectos da alienação que
podem ser classificados como “alheios à razão”, com toda a arbitrariedade real e
potencial envolvida nesse critério abstrato. A historicidade chega apenas até o
ponto compatível com a posição social que exige esses critérios vagos e abstratos
como sua base de crítica, pois o reconhecimento da igualdade humana é, no todo,
limitado à esfera legal abstrata.19

O sujeito de direito começa a ser construído a partir das relações de produção


incipiente capitalistas, sendo que Kant inicia esta tarefa a partir de um sujeito de direito
correspondente a uma circulação mercantil ainda restrita, que em Hegel atinge o ápice da
universalidade, em uma sociedade capitalista que também atingiu o seu ápice:

A concepção do portador universal de direitos e deveres como fundamento


primordial do jurídico ainda não se encontra, no tempo de Kant, perfeitamente
desenvolvida. O seu desenvolvimento pleno, cujo reflexo é a elevação do sujeito
de direito à categoria fundamental do pensar jurídico, só pode ocorrer em
correspondência com o desenvolvimento pleno da forma sujeito de direito na
realidade. O desenvolvimento, como realidade e como categoria – como
abstração real, para usar o termo mais adequado -, do sujeito de direito é, por
sua vez, determinado pelo desenvolvimento pleno da produção capitalista. O seu
registro teórico será, não por acaso, a obra de Hegel. Mas o momento histórico
de Kant é ainda um outro. Kant vive a transição, a ascensão da produção
capitalista, não a sua plenitude. O momento histórico da filosofia kantiana é

18
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. In Os Pensadores - Rousseau. São Paulo: Nova Cultural,
1999, p. 70, v. I.
19
MÉSZÁROS, Istvan. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 49.
25

aquele situado entre o entusiasmo pelo advento do mundo burguês e a agonia do


mundo feudal. 20|

Kant formula o conceito de personalidade humana como sendo o homem sujeito de


uma razão prática, que considera o mundo exterior como matéria indiferente sempre à
disposição dos sujeitos providos de razão e como consequência de liberdade.

Ora, a liberdade em Kant, direito inato do sujeito, está vinculada à posse; tomar
posse do mundo exterior é a primeira forma de manifestação dessa liberdade, que é
garantida pela coerção do Estado (coerção justificada para a garantia da propriedade da
liberdade individual).

Assim, fica clara a limitação da liberdade e igualdade humana à esfera legal


abstrata vinculando o sujeito de direito à propriedade, aquele que tem a posse e que se
relaciona com outros proprietários: este seria o cidadão ativo.

O cidadão em sua plenitude, o cidadão ativo, seria somente aquele que tem sua
independência, que dependa somente de sua vontade, diferentemente do cidadão passivo,
que é mandado e protegido por outros indivíduos, não gozando de nenhuma independência
civil, situação, no entanto, que não seria oposta à liberdade e igualdade:

Esta dependência com respeito à vontade de outro, esta dificuldade, não é,


todavia, oposta à liberdade e à igualdade daqueles que, como homens, formam
juntos um mesmo povo. E mais: é muito favorável à formação da cidade à
constituição civil. Porém, nem todos podem gozar igualmente, nesta
constituição, do sujeito do sufrágio, isto é, ser cidadãos e não simplesmente
associados civis. Porque pelo fato de poderem pedir que sejam tratados por todos
os demais segundo as leis da liberdade e igualdade natural, como partes passivas
do Estado, não lhes resulta o direito de agir também na cidade como membros
ativos, isto é, o direito de organizar o Estado, ou de concorrer para a formação de
certas leis: seu direito consiste em que as leis positivas que votam, qualquer que
seja o seu objeto, não sejam jamais contrárias à liberdade natural e a essa
igualdade proporcional de todos no povo que permite a cada um trabalhador para
elevar-se da condição passiva à condição ativa. 21

Kant afirma, desta forma, que a dependência de algumas pessoas em relação a


outras, como é o caso dos trabalhadores que não possuem a propriedade para gerar suas
rendas, justifica o respectivo tratamento dessas pessoas como sendo membros passivos da
sociedade, sendo natural, nesse caso, a restrição “momentânea” de seus direitos, o que se
traduz, resumidamente, nas palavras de Galvano Della Volpe:

20
KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões e Dobra
Universitário, 2014, p. 18.
21
KANT, Emmanuel. Doutrina do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1993, p. 154.
26

Numa palavra: o cidadão-trabalhador, Kantianamente falando, é reconhecido


cidadão com todos os direitos – com todas as prerrogativas humanas próprias,
isto é, a independência e dignidade, o ser-fim-em-si-mesmo e o ter personalidade
também civil – apenas em potência, pela sua possibilidade de “elevação” de
trabalhador a burguês. Ou seja, o cidadão trabalhador é uma larva de homem que
se desenvolve em plenitude – quando se desenvolve – naquele ginásio de
promoção de classe que é a sociedade civil, burguesa, que criou para si uma lei
no Estado de “direito” ou liberal “na sua abstrata pureza, entende-se, porque a
trabalhosa, quando na dramática, história real do Estado de direito encarregou-se
depois de contaminar aquela pureza com enxertos igualitários e democráticos
genuínos como o sufrágio universal, neste caso concreto”. De outro modo, o
trabalhador está destinado a permanecer como larva de homem. 22

Ou seja, o homem burguês para Kant é o único que é pessoa em todos os sentidos,
faltando, desta forma, a universalidade da igualdade, que é resolvida por convenção, por
meio do contrato social, pelo direito formal.

Apesar da proposta burguesa da liberdade e igualdade na universalidade dos livres


proprietários, ainda persistem as determinações de submissão da sociedade feudal que se
procurou superar, como o caso da submissão do trabalhador ao proprietário e sua exclusão
da cidadania – é um sujeito livre que perante o senhor é uma coisa:

Na redução de si mesmo à coisa, o sujeito de direito concebido por Kant, ao


invés de realizar-se, nega a si próprio. Ao invés de externar a sua liberdade,
priva-se dela. Ao invés de pôr-se como sujeito, perde-se como coisa. Nesse
sentido, quando Kant desenvolve o ius realiter personale como posse de uma
pessoa como se fosse coisa, em relação à qual já não é pouco salvar uma
liberdade meramente ideal ou meramente nominal por meio de um artifício como
se fosse.23

Não há ainda, na concepção de sujeito de direito em Kant, uma solução definitiva


para o conflito entre a liberdade e igualdade para todos os homens providos de razão e o
tratamento como objeto dado ao trabalhador fruto do contrato de trabalho.

Na produção capitalista avançada tornou-se necessária uma personificação jurídica


universal e abstrata que externe uma liberdade, uma mediação jurídica que permita a
realização plena da servidão pela igualdade e do despotismo pela liberdade e não relações
entre pessoas como se fossem coisas, tarefa essa que Hegel desenvolveu com maestria.

Hegel, para uma adequada dissimulação da dominação capitalista, aperfeiçoa o


conceito de sujeito de direito, que passa a ser o ponto de partida de sua Filosofia do direito,

22
DELLA VOLPE, Galvano. Rosseau e Marx, a Liberdade Igualitária. Lisboa: Edições 70, 1964, p. 64-65.
23
KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões e Dobra
Universitário, 2014, p. 85.
27

de forma que a vontade do sujeito torna-se a primeira determinação concreta do e para o


Espírito objetivo:

35 – [...].
Nota - A personalidade só começa quando o sujeito tem consciência de si, não só
como de um eu concreto e de algum modo determinado, como também de um eu
puramente abstrato no qual toda a limitação e valor concretos são negados e
invalidados. Por isso, na personalidade existe o conhecimento de si como objeto
exterior elevado pelo pensamento à infinitude simples e, assim, idêntico a ela. Os
indivíduos e os povos não possuem ainda personalidade enquanto não alcançam
este pensamento e este puro saber de si mesmos. O espírito que é em si e para si
distingue-se do espírito fenomênico na determinação em que este é só
consciência de si segundo a vontade natural e suas posições extrínsecas. O
primeiro tem como objeto e fim a si mesmo, como eu abstrato, isto é, livre,
portanto, uma pessoa.
36 - 1) A personalidade contém, em geral, a capacidade do direito e constitui o
conceito e fundamento (também abstrato) do direito abstrato, e portanto formal.
O imperativo do direito é, portanto: seja uma pessoa e respeite os demais como
tal. 24

O sujeito de direito é então visto como parte de um processo histórico em que a


razão percorre o seu caminho em direção à totalidade. A pessoa, o sujeito do direito, não é
mais um puro dever-ser, uma mera exigência filosófica, e sim uma universalidade fruto de
um recente e específico tempo histórico.

Dá um tratamento especial para a razão, o ser foi considerado igual ao pensar, criou
uma lógica especulativa na qual ocorre a plena elevação do ser no pensamento do espírito
como realidade absoluta.

Fiel ao historicismo, Hegel concebe a realidade como vir-a-ser, como


desenvolvimento do ser elevado a processo dialético – a ideia se manifesta como processo
histórico, sendo a história a manifestação da razão.

“O que é racional é real e o que é real é racional”, essa afirmação, que está contida
no prefácio da Filosofia do direito de Hegel, demonstra a perspectiva hegeliana de
identificação entre a razão e realidade:

É a convicção de toda a consciência livre de prevenção, e a filosofia toma este


ponto de partida quando considera o universo espiritual bem como o universo
natural. Assim que a reflexão, o sentimento e, em geral, a consciência subjetiva
sob uma forma qualquer consideram o presente como vão, ultrapassam-no e
pretendem saber melhor, encontram-se no vazio e, como não tem realidade a não
ser no presente, tornam-se vazios. Relativamente ao ponto de vista inverso, de
que a ideia tem valia apenas, no sentido restrito, de representar a opinião, a
filosofia lhe opõe esta visão mais verdadeira de que nada é real a não ser a Ideia

24
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1997, p.
69-70.
28

e, então, trata-se de reconhecer, na aparência do temporal e efêmero, a substância


imanente e o eterno que é presente.

Efetivamente, o racional que é sinônimo da Ideia, ao entrar com sua realidade na


existência exterior, adquire, assim, uma riqueza infinita de formas, de aparências,
de manifestações e se envolve com uma casca como se fora um caroço no qual a
consciência habita inicialmente, mas que o conceito penetra enfim para descobrir
a pulsão interior e para senti-la bater mesmo sob a aparência exterior.25

Ao entrar com sua realidade na existência exterior, o Ser adquire, assim, uma
riqueza infinita de formas, de aparências, de manifestações. A realidade somente torna-se
racional com a atuação do Ser como sujeito do processo histórico, não sob o império de
uma razão pura:

Para Hegel, contudo, a razão não pode governar a realidade, a não ser que a
realidade se tenha tornado racional em si mesma. Esta racionalidade é possível
pela irrupção do sujeito no próprio conteúdo da natureza e da história. É esta
concepção que Hegel resume na mais fundamental de suas sentenças, a saber,
que o Ser é, na sua substância, um “sujeito”.26

“A razão não pode governar a realidade, a não ser que a realidade se tenha tornado
racional em si mesma”, significa que o ser é, na sua substância, um “sujeito”.

A ideia de “substância como sujeito” concebe a realidade como um processo


dentro do qual todo o ser é a unificação de forças contraditórias. “Sujeito”
designa não somente o eu ou a consciência epistemológica, mas um modo de
existência, a saber, aquela de uma unidade que se autodesenvolve em um
processo contraditório. Tudo o que existe só é “real” na medida em que atua
como algo que é “o mesmo” através de todas as relações contraditórias que
constituem sua existência; deve, pois, ser considerado como uma espécie de
“sujeito” que se autodesenvolve pela revelação de suas intrínsecas
contradições.27

O homem realiza o seu vir-a-ser, somente ele tem entendimento de suas


potencialidades e a existência é o processo de atualização de suas potencialidades e
adaptação de sua vida às ideias da razão.

Diferentemente de Kant, não há em Hegel uma dicotomia entre o mundo da


racionalidade e o mundo da ideia e sim uma interligação entre esses mundos: o mundo do
sujeito se interage com o mundo dos objetos em um processo de assenhoramento, o que se
dá pela dialética.

A filosofia hegeliana, ao elevar ao mesmo patamar realidade e racionalidade, faz


cair por terra toda a dicotomia que o mundo moderno havia elevado às últimas

25
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1997, p.
35.
26
MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 21.
27
Idem, ibidem, p. 21-22.
29

consequências, entre sujeito e objeto. A separação abismal entre o mundo do


sujeito de um lado e o mundo dos objetos de outro não havia conseguido fazer
nenhuma construção teórica amplamente satisfatória na filosofia moderna. Se os
empiristas, como Hume, negavam qualquer essencialidade intrínseca ao sujeito,
mantinham, no entanto, a dicotomia como válida ao apoiarem-se nas percepções
do mundo objetivo. Mesmo Kant, apoiando-se numa filosofia que reconhecia a
experiência, mantinha a filosofia dividida, à medida que o mundo objetivo não
era dado por si ao conhecimento, tratando-se de um mundo de fenômenos e não
de coisas em si, e inapreensível em si mesmo porque só apreensível
fenomenologicamente. Contra Kant, Hegel, pela primeira vez, passa por cima do
abismo moderno entre sujeito e objeto. Para ele, são o mesmo o real e o
racional. 28

A dialética proposta por Hegel repudia o princípio da contradição da forma que era
concebida por Aristóteles e Platão, em que uma coisa não pode ser e ao mesmo tempo não
ser, nele o pensamento não é considerado somente de forma estática, ele procede por meio
de contradições superadas, da tese à antítese e, daí à síntese.

Hegel aponta como evidência da racionalidade a relação entre proprietários, sendo a


personalidade abstrata do possuidor indicadora da liberdade:

49 – O racional na relação com as coisas exteriores está no fato de eu possuir


uma propriedade; o aspecto particular abrange os fins subjetivos, as
necessidades, o arbítrio, as circunstâncias exteriores (§ 45). Só disso é que
depende a posse. Mas este aspecto particular ainda é, na esfera da personalidade
abstrata, idêntico à liberdade. É, por conseguinte, do ponto de vista jurídico, a
natureza e quantidade do que possuo.
Nota - Na personalidade, as múltiplas pessoas são equivalentes (se se quer falar
de multiplicidade aqui onde não tem lugar uma tal distinção). Isso não passa,
porém, de um princípio tautológico vazio, pois a pessoa, enquanto abstrata, é
precisamente o que é domínio da desigualdade, permanecendo à margem da
pessoa abstrata.29

Reconhece a desigualdade existente na sociedade civil não como uma contradição e


sim como desigualdade na distribuição, na participação da riqueza social - os sujeitos de
direito são iguais na qualidade de capazes para a propriedade:

A reinvindicação de igualdade algumas vezes apresentada na divisão, e também


de toda a riqueza existente, é uma concepção vaga e superficial, tanto mais se se
pensar que, neste caso, intervém não só a contingência exterior da Natureza, mas
também todo o domínio da natureza espiritual com o que ela tem de particular,
de diversidade infinita e de sistematização racional. Não se pode falar de uma
injustiça da Natureza a propósito da repartição desigual da riqueza e da fortuna,
pois ela não é livre; em consequência, não é justa ou injusta. Desejar que todos
os homens disponham de proventos para satisfazer suas exigências não é mais
que um desejo da moralidade subjetiva, apresentado nessa vaga expressão de
uma ideia muito corrente e bem intencionada. Mas, por isso mesmo, carece de

28
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 240.
29
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1997, p.
77-78.
30

objetividade. Aliás, os proventos são coisas diferentes da posse e serão estudados


posteriormente quando nos ocuparmos da sociedade civil. 30

As desigualdades existentes na sociedade civil são racionalizadas e superadas de


forma idealista no Estado, que é a consubstanciação do justo e do racional: a família (tese)
e a sociedade civil (antítese) são superadas pelo Estado (síntese).

A partir dessa superação, Deus foi deposto de seu papel de assujeitamento do


indivíduo, ele não governa mais a conduta humana, não serve mais como parâmetro de
sustentação da dominação, o Estado ocupa seu lugar:

O aparelho religioso não é mais capaz de, por si mesmo, enquadrar o sujeito (o
que nós condensamos com a expressão “determinação religiosa”): o Estado,
diante da situação nova que se oferece a ele, deve tentar, no contexto dos
nacionalistas burgueses, estabelecer formas novas de controle do sujeito.31

Mais recentemente, o jurista e filósofo austríaco, Hans Kelsen, autor de a Teoria


Pura do Direito, publicada em 1934, na qual propõe uma teoria jurídica pura pautada na
neutralidade científica, afirma que conceito de sujeito de direito provém da norma, não da
pessoa a quem se refere, e está vinculado à propriedade e ao valor ético da liberdade
individual e da personalidade autônoma, quando esta liberdade também se acha sempre
ligada à propriedade:

A ideia de um direito diferente do direito objetivo e independente dele em sua


existência, mas que não é menos, até mais “direito” que aquele, deve proteger a
instituição da propriedade privada de uma revogação pelo ordenamento jurídico.
Não é difícil de entender por que a ideologia dos direitos subjetivos se une ao
valor ético da liberdade individual e da personalidade autônoma quando essa
liberdade também se acha sempre ligada à propriedade. Um ordenamento que
não reconhece a personalidade livre do homem significa um ordenamento que
não garante o direito subjetivo e não deve ser considerado absolutamente como
ordenamento jurídico.32

No Brasil, o jurista Tércio Sampaio Ferraz Jr, inspirado na teoria de Kelsen, afirma
que o sujeito de direito não é apenas pessoa física ou jurídica, sendo definido por normas e
não ao contrário:

Segundo o uso doutrinário mais tradicional, o sujeito jurídico enquanto ser


humano é aquele que é sujeito de um direito ou de um dever correspondente.
Nesses termos, fala-se em pessoa, conceito que provém do Cristianismo e que
aponta para a dignidade do homem insusceptível de ser mero objeto. A

30
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1997, p.
77.
31
HAROCHE, Claudine. Fazer Dizer, Querer Dizer. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 182.
32
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, versão condensada pelo próprio autor. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003, p. 82-83.
31

personificação do homem foi uma resposta cristã à distinção, na Antiguidade,


entre cidadãos e escravos. Coma expressão pessoa obteve-se a extensão moral do
caráter de ser humano a todos os homens, considerados iguais perante Deus. No
direito, assim, o homem é para o homem sempre pessoa, nunca objeto, vai dizer
Kant. Pessoa, obviamente, significa o indivíduo físico, a chamada pessoa física
ou natural. Como, porém, não apenas o homem, mas também as sociedades, as
associações, uma empresa mercantil, o próprio Estado são portadores de direitos
e deveres, a doutrina estende o conceito de pessoa a esses entes, falando então
também em pessoa jurídica ou moral.33

Desta forma, com a substituição de paradigma para sustentação da dominação, a


construção de um sujeito baseado na ilusão de autonomia, com sua liberdade e igualdade
abstratas é aperfeiçoada.

Somente em Marx a sociedade capitalista encontrará uma crítica radical, onde o


sujeito de direito terá revelada a sua determinação histórica real: um conjunto de relações
sociais de produção nas quais os homens devem, como sujeitos livres, colocar a si mesmos,
como mercadorias, a serviço do capital.

1.3. Crítica marxista ao sujeito de direito

Marx, nos tempos de estudante em Berlim, frequentava os círculos dos jovens


hegelianos, que interpretavam o pensamento do filósofo idealista alemão, Georg W. F.
Hegel (1770-1831).

Na época em que trabalhava na Gazeta Renana, 1842-1843, Marx defendia o


jusnaturalismo, adotando uma série de reivindicações políticas democráticas radicais
contra o Estado prussiano com uma teoria racionalista do Estado que considera a
realização da liberdade como sendo sua finalidade. Uma lei que não obedecesse aos
princípios do direito natural (da liberdade e da igualdade) seria uma mentira legal e não
uma lei verdadeira.

Partindo de Hegel, Marx trabalha com os conceitos de liberdade e alienação, antes


de traçar seu próprio caminho, uma vez que Hegel representava uma superação crítica de
toda a filosofia burguesa clássica relativa ao sujeito, fosse ela racionalista, empirista ou
transcendental, conforme pondera Althusser:

33
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão, dominação. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 155.
32

Sim, Marx esteve perto de Hegel, embora de início por razões não enunciadas,
razões anteriores à dialética, provenientes da posição crítica de Hegel frente aos
pressupostos teóricos da filosofia burguesa clássica, de Descartes a Kant.
Resumindo, Marx estava próximo de Hegel por sua insistência em recusar toda a
filosofia da Origem e do Sujeito, quer fosse ela racionalista, empirista ou
transcendental: ou sua crítica ao cogito, do sujeito sensualista empirista, e do
sujeito transcendental, logo por sua crítica da ideia de uma teoria de
conhecimento. Marx estava perto de Hegel por sua crítica do sujeito jurídico do
contrato social, por sua crítica do sujeito moral, em suma de toda ideologia
filosófica do Sujeito, que, quaisquer que fossem suas variações, permitia à
filosofia burguesa clássica o meio de garantir seus conhecimentos, suas práticas
e seus fins, não simplesmente ao reproduzi-las, mas ao elaborar filosoficamente
as noções da ideologia jurídica dominante.34

Em seus primeiros escritos, Marx faz uma análise humanista marcada por Hegel e
Feuerbach. Em Manuscritos Econômicos e Filosóficos dá um novo enfoque ao ser humano,
como um ser existente para si mesmo, não restrito à natureza, mas como sendo de sua
natureza a historicidade:

Mas o homem não é apenas ser natural, é ser natural humano, isto é, ser existente
para si mesmo (für sich selbst seiendes Wesen), por isso, ser genérico, que,
enquanto tal, tem de aturar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber.
Consequentemente, nem os objetos humanos são os objetos naturais assim como
estes se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e
objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. A natureza não
está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente disponível ao ser humano
de modo adequado. E como tudo o que é natural tem de começar, assim também
o homem tem como seu ato de gênese a história, que é, porém, para ele, uma
[história] sabida e, por isso, enquanto ato de gênese com consciência, é ato de
gênese que se supra-sume (sich aufhebender Entstehungasakt). A história é a
verdadeira história do homem. 35

A natureza humana, portanto, conforme este enunciado, é um conceito construído


historicamente, não é algo dado a priori, que sempre existiu. O homem provém da
natureza, mas não é determinado por ela, transforma-se constantemente pela práxis,
conforme aponta Istvan Mészáros:

Nada é, portanto, “enraizado na natureza humana”. A natureza humana não é


algo fixado pela natureza, mas, pelo contrário, uma “natureza” que é feita pelo
homem em seus atos de “autotranscendência” como ser natural. É desnecessário
dizer que os seres humanos – devido à sua constituição biológica natural – têm
apetites e várias propensões naturais. Mas no “ato autotranscendente consciente
de vir–a-ser” eles se transformam em apetites e propensões humanos,
modificando fundamentalmente o seu caráter, passando a ser algo inerentemente
histórico.36

34
ALTHUSSER, Louis. Sustentação de Tese em Amiens. In ______. Posições - I. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1978, p. 142.
35
MARX, Karl. Manuscritos econômico –filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, p. 128.
36
MÉSZÁROS, Istvan. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 156. Esta
posição de Istvan Meszáros corresponde à perspectiva teleológica humanista centrada no trabalho de Lukács,
para quem o trabalho promove uma dupla transformação: o ser humano que trabalha é transformado por seu
trabalho sujeitando as forças da natureza e por outro lado, as forças da natureza são transformadas em meios
33

Nesta fase, Marx valorizou a liberdade baseada na razão, sendo o Estado a


totalidade ética que exprime os interesses de toda a sociedade, de tal forma que o interesse
particular aparecerá como estranho à natureza do Estado.

A liberdade, para Marx, foi considerada em seus primeiros trabalhos como sendo
um direito natural da razão humana, um direito inalienável do homem, de tal forma que o
Estado que não estabelecesse suas leis de acordo com este direito natural não teria
legitimidade – a lei positiva deveria ser o reconhecimento de uma liberdade que preexiste a
ela, ou seja, uma lei somente é verdadeira quando ela é a “essência positiva da liberdade”,
como ensina o professor Marcio Bilharinho Naves:

A liberdade, para Marx, possui uma existência natural que independe de


qualquer regulamentação positiva, ela é um direito natural cuja existência
perdura mesmo se uma lei procura negá-la. Um estado que reconheça a liberdade
e igualdade, que se fundamente no respeito ao princípio da legalidade e na
independência do judiciário, que vede a existência de jurisdições específicas, que
garanta a liberdade de consciência e a liberdade de expressão do pensamento,
enfim um Estado de direito, é a realização desse programa de reformas políticas
e jurídicas reclamadas nas intervenções jornalísticas de Marx contra aqueles que
se recusam a considerar a liberdade como “um dom especial da aurora universal
da razão”.37

No entanto, a liberdade humana estaria comprometida com a alienação do homem


em relação ao seu trabalho. Marx identifica, em seus escritos da juventude, um
estranhamento do homem em relação à sua práxis, um “ocultamento” que teria como causa
a propriedade privada, sendo que a supressão desta propiciaria o retorno do homem à sua
existência (Dasein) humana, isto é, social:

A propriedade privada material, imediatamente sensível (sinnliche), é a


expressão material-sensível da vida humana estranhada. Seu movimento – a
produção e o consumo – é a manifestação (Offenbarung) sensível do movimento
de toda a produção até aqui, isto é, realização ou efetividade do homem.
Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc., são apenas formas
particulares da produção e caem sob sua lei geral. A suprassunção (Aufhebung)
positiva da propriedade privada, enquanto apropriação da vida humana é, por
conseguinte, a suprassunção positiva de todo estranhamento (Entfremdung),
portanto o retorno do homem da religião, família, Estado etc., à sua existência
(Dasein) humana, isto é, social.38

A noção de alienação do jovem Marx é proveniente diretamente da filosofia de


Feuerbach - para que se supere esta condição de estranhamento, não basta a arma da crítica

de trabalho, em matérias primas. Do ponto de vista de Mészáros, a tese da “cesura epistemológica” defendida
por Althusser não procede, uma vez que não vê oposição entre os conceitos “ideológicos” e os conceitos
“científicos” que separaram escritos da juventude daqueles do Marx maduro, adere, portanto, a tese da
totalidade do sistema de Marx.
37
NAVES, Márcio Bilharinho. Marx, ciência e revolução. São Paulo: Moderna, 2003, p. 23.
38
MARX, Karl. Manuscritos econômico –filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, p. 106.
34

é necessária a crítica das armas, isto é, a teoria tem de se transformar em uma força
material e isto ocorre quando ela penetra as massas.

Que classe teria condições de se investir desta tarefa e emancipar toda a


humanidade? A partir do modelo proposto por Feuerbach de homem alienado, Marx
constrói a figura do proletário e identifica-o como agente da emancipação humana.

Em Ideologia Alemã, Marx livra-se das influências de Hegel e de Feuerbach,


procura superar a sua consciência filosófica anterior. Baseado na sua luta com a “filosofia
alemã”, Marx busca a compreensão materialista da sociedade, saindo do terreno ilusório
construído por Hegel, evitando cair na armadilha de dar respostas mistificadas às questões
apresentadas por Hegel, pois as próprias questões apresentadas seriam mistificadas:

Para Marx, trata-se então de mudar de terreno. Ao invés de oferecer respostas


diversas às mesmas questões da ideologia filosófica – considerando, por
exemplo, a religião como algo negativo -, Marx recusa essas próprias questões,
a problemática filosófica mesma, procurando inaugurar um novo campo teórico.
Marx, ao abandonar o terreno ideológico comum do par espírito-matéria, pode
agora começa a elaborar os conceitos teóricos que vão abrir para o conhecimento
o domínio antes incógnito da sociedade e da história, mesmo que ainda possa
permanecer em grande medida inserido no campo do qual procura se livrar. 39

O modo de produção, o modo como os homens produzem suas vidas, passa a ser o
elemento decisivo da análise marxista: o materialismo de Marx são os indivíduos reais, as
ações que eles desenvolvem e suas condições de vida.

A produção depende do intercâmbio entre os indivíduos, de relações de produção e


essas relações dependem do grau de desenvolvimento das forças produtivas.

No entanto, mesmo com a sua ruptura com a “consciência anterior”, há ainda em


Marx uma contradição. Quando cria o conceito de modo de produção realiza uma ruptura
com as diversas formas de representação idealizadas, mas ao mesmo tempo pensa o seu
objeto como constituído pelo indivíduo, pelo homem, não focando ainda o objeto real da
história que são as relações entre as classes: a luta de classes.

Assim, apesar de Marx fundamentar os processos históricos e sociais em uma base


materialista, ele permanece no terreno humanista quando afirma que a produção passa a ser
o resultado da atividade dos homens, uma criação do sujeito, e não o resultado objetivo de

39
NAVES, Márcio Bilharinho. Marx, ciência e revolução. São Paulo: Moderna, 2003, p. 30-31.
35

um processo que coloca duas classes sociais em confronto, como é o caso da burguesia e a
classe operária na sociedade capitalista.

Na Ideologia Alemã, Marx começa sua mudança de terreno, rompendo com as teses
humanistas contidas nas obras anteriores, mas ainda defende posições que retificaria
posteriormente como o primado das forças produtivas sobre as relações de produção, ou
seja, o desenvolvimento histórico dependeria principalmente das inovações técnicas que
dão origem aos meios de produção mais avançados e não na luta de classes na produção.

Para Marx, a produção de ideias, de representações, está de início diretamente


entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio espiritual dos homens, como a
linguagem da vida real, de forma que a ideologia aparecerá como um processo no qual os
homens e suas relações surgem invertidos como numa câmara escura, de modo que um
conjunto de ideias e representações que parecem fundar a realidade são, na verdade,
emanações de relações sociais determinadas:

Bem ao contrário do que acontece com a filosofia alemã, que desce do céu para a
terra, aqui se sobe da terra para o céu. Que dizer, não se parte daquilo que os
homens dizem, imaginam ou engendram mentalmente, tampouco do homem
dito, pensado ou engendrado mentalmente para daí chegar ao homem em carne e
osso; parte-se dos homens realmente ativos e de seu processo de vida real para
daí chegar ao desenvolvimento dos reflexos ideológicos e aos ecos desse
processo de vida. 40

Desta forma, discurso da liberdade é desnudado, os interesses da classe dominante


são apresentados como sendo valores gerais da sociedade, a liberdade, na sociedade
burguesa, não passa da liberdade que o capital tem de explorar o trabalhador.

A liberdade, conjuntamente com a igualdade, são os princípios jurídicos que


fundamentam o modo de produção capitalista e as relações de produção baseadas na
exploração do trabalho assalariado. A antiga luta dos trabalhadores, tal qual como era
levada pela liga dos justos (organização dos trabalhadores na época de Marx), realçando a
fraternidade, igualdade e boa vontade entre os homens, estava presa dentro do campo da
ideologia jurídica burguesa.

Não há como levantar a bandeira da liberdade e igualdade jurídicas para se atingir a


emancipação humana, pois o direito e a ideologia jurídica são elementos que funcionam
para a reprodução das relações de produção capitalista.
40
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 48-
49.
36

O reino do amor e da fraternidade encontrara já a sua antecipação ideológica no


programa e na atividade política da Liga dos Justos, que, à espera de sua
efetivação prática, sustentava que o objetivo dos trabalhadores em sua luta contra
a sociedade burguesa era a realização dos princípios contidos na declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. Ora, esses princípios eram,
fundamentalmente, a liberdade e a igualdade, justamente os princípios jurídicos
que organizam o espaço da sociabilidade burguesa em sua existência imediata,
ao mesmo tempo em que obscurecem o seu fundamento último, as relações de
produção fundadas na exploração do trabalho assalariado. São essas categorias
jurídicas que permitem a circulação mercantil e, sobretudo, a circulação de uma
mercadoria essencial à valorização do capital, a força do trabalho, ao criarem as
condições de existência da subjetividade jurídica, ao dar ao indivíduo uma
capacidade que o habilita a praticar atos de compra e venda como operações em
que a sua vontade se manifesta livre e plenamente. 41

A partir d’O Capital, Marx modifica sua posição inicial sobre o primado das forças
produtivas, saindo de uma ótica economicista dando enfoque às relações de produção,
considerando as forças produtivas como o conteúdo material das relações de produção, não
havendo qualquer desenvolvimento das forças produtivas que ocorra fora de determinadas
relações de produção.

O rompimento com o economicismo propicia a compreensão da forma jurídica, o


que ocasiona um rompimento com as figuras do homem e manifestações de humanismos,
uma vez que a sociedade não se compõe de indivíduos, mas eles exprimem relações sociais
- a relação da subjetividade jurídica está, então, claramente ligada ao modo de produção
capitalista, à forma mercadoria:

As mercadorias não podem, por si próprias, irem ao mercado e trocar-se umas


pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para os seus guardiões, os
possuidores de mercadoria. Elas são coisas e, por isso, não podem impor
resistência ao homem. Se não se mostrarem solícitas, ele pode recorrer à
violência; em outras palavras, pode tomá-la à força. Para relacionar essas coisas
umas com as outras como mercadoria, seus guardiões têm de estabelecer relações
uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e alienar a sua
própria mercadoria em concordância do outro, portanto, por meio de um ato de
vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como
proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela
legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a
relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica é dado pela própria relação
econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como
representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de
mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento, veremos que as máscaras
econômicas das pessoas não passam de personificação das relações econômicas,
como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras.42

O homem é deslocado do centro da cena social, passando a ser visto sob uma
determinação ideológica, como suporte de relações sociais.

41
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras expressões e Dobra
Universitária, 2014, p. 28-29.
42
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 159, livro I.
37

1.3.1. Estado/Forma jurídica

Apesar de Marx não ter desenvolvido propriamente uma teoria do Estado, pode-se
identificar o ponto de partida para uma teoria materialista do Estado, conforme apontado
na Ideologia Alemã, nas relações materiais de produção e como estas relações se
comportam entre si no processo de produção.

Segundo Marx, como a determinadas relações de produção dominantes deve


corresponder certa forma política de domínio de classe, o Estado seria uma forma de
domínio pela qual a classe dominante faz prevalecer os seus interesses comuns de classe.

Esses interesses comuns seriam: defesa dos interesses do conjunto da classe


dominante, mesmo que possa ocorrer o sacrifício individual ou de facções desta classe, e a
defesa dos interesses da classe dominante, que seriam representados como os interesses do
conjunto da sociedade.

Como para Marx a produção de ideias e de representações está de início


diretamente entrelaçada com a atividade material, de tal forma que um conjunto de ideias e
representações que parecem fundar a realidade são, na verdade, emanações de relações
sociais determinadas, uma abordagem materialista do Estado deve levar em consideração
não somente as estruturas da produção social, mas também as relações de domínio e de
exploração, bem como os conflitos e as lutas delas resultantes, que são inerentes e este
Estado:

O Estado não é simplesmente definido como ligação orgânica dada e funcional,


mas como expressão de uma relação de sociabilização antagônica e contraditória.
A abordagem materialista-histórica leva em conta não apenas o fato de que as
relações de dominação política têm bases e condições materiais, fundadas nas
estruturas da produção social. Isso é o que deveria fazer qualquer teoria social e
do Estado. O seu ponto decisivo é mais o fato de que elas não são “fetichizadas”.
Trata-se, portanto, de entender as instituições e os processos políticos como
expressão de relações de domínio e de exploração, bem como os conflitos e as
lutas delas resultantes, e que lhe são opacas. Esse é o entendimento marxiano
sobre ciência como crítica. Por isso, não se trata apenas de explicar como o
Estado funciona ou deve funcionar, mas que relação social ele apresenta e como
ela pode se superada. 43

Os antagonismos de classe são escamoteados com a construção de uma “identidade


nacional”, a luta de classes é neutralizada. Os indivíduos são tidos pela ideologia burguesa
como cidadãos soberanos, mas na realidade são submissos a estruturas pré-existentes,

43
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 20.
38

necessitando que o Estado garanta suas atuações como sujeitos livres e iguais, de modo a
ocultar a real situação de submissão.

Portanto, as relações entre indivíduos são objetivadas, aparecendo a eles como uma
coisa fora de seu alcance, ocultando o processo de valoração do Capital, caracterizando,
segundo Joachim Hirsch, adepto da teoria da regulação, as duas formas fundamentais de
coesão social:

Formas sociais caracterizam relações objetivas exteriores e reificadas face aos


indivíduos, em que a sua ligação social manifesta-se disfarçada, não
transparente. Sob as condições capitalistas, a sociabilidade não pode ser gerada
de outro modo. As relações entre indivíduos devem assumir o aspecto das
relações objetivadas, ou seja, a própria existência social aparece para o indivíduo
como coisa, “fetiche” difícil de ser visualizado, ocultando aquilo que o engendra
e move (MARX, 1971; HOLLOWAY, 1991, p. 225). As duas formas sociais
fundamentais que objetivam a ligação social no capitalismo são a forma valor,
expressa em dinheiro, e a forma política, manifesta na existência de um Estado
separado da sociedade.44

Ou seja, o Estado não seria um aparelho genérico de dominação de classes, um


mero instrumento da classe dominante, e sim uma derivação das relações de produção
capitalistas:

O caminho adotado pela teoria da derivação partia da premissa de que era


insuficiente relacionar o conteúdo da atividade estatal e do Direito com os
interesses da classe dominante, ou ainda explicar as funções do Estado apenas a
partir da luta de classes e predomínio de uma delas. Assim, o derivacionismo –
rejeitando a concepção de Estado como aparelho genérico de dominação de
classes – partia da análise da natureza das relações de produção capitalistas, mais
precisamente, do estudo das categorias econômicas de Marx – utilizadas para
explicar o capitalismo – derivando destas o Estado, e explicando sua forma
política particular, ou seja, existente apenas nesse modo de produção.45

Na verdade, a forma jurídica, o sujeito de direito, não advém do Estado, uma vez
que a dinâmica histórica que propicia o seu surgimento tem vínculo direto com as relações
de produção capitalista:

Historicamente, se Estado e direito surgem como derivas necessárias e


específicas do mesmo fenômeno do circuito pleno da forma mercantil, serão as
revoluções liberais burguesas que constituirão o Estado e o direito como formas
acopladas tecnicamente uma à outra. O Estado conforma o direito num processo
de específica aparição estrutural: a forma jurídica já se instituiu como dado social
presente e bruto quando o Estado lhe dará trato. Os agentes da produção já se
apresentam na estrutura social capitalista como sujeitos de direito, operando
relações sociais concretas, quando os Estados os definem formalmente como tais
e lhes dão seus contornos peculiares, como as atribuições da capacidade. São as

44
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 30.
45
CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões e
Dobra Universitária, 2015, p. 84.
39

normas estatais que conformam o sujeito de direito a poder realizar vínculos


contratuais livremente a partir de uma idade mínima estabelecida, mas esse
sujeito já se impunha na estrutura social por derivação direta da forma
mercadoria. A manifestação social do sujeito de direito advém estruturalmente
da própria dinâmica social da reprodução capitalista. A troca de mercadorias e o
trabalho feito mercadoria são os dados que talham a forma-sujeito de direito. A
normatividade estatal opera essa forma já dada, conformando-a.46

Do Estado advém a máscara do “cidadão”, que é uma construção ideológica que


“filtra” os interesses privados de modo que passe ao Estado apenas o interesse público:

Como cidadão, o indivíduo que, na sociedade civil, como sujeito de direito,


preocupa-se apenas com seu interesse privado, transmuta-se, em si mesmo, num
“outro” que se volta apenas para o interesse coletivo. A cidadania revela que a
rachadura que separa, na sociedade capitalista, público e privado tem lugar
inclusive no homem mesmo, que é dividido em homem privado, sujeito
econômico egoísta, e homem público, sujeito político altruísta, de outro. Não é o
sujeito de direito da sociedade civil que nas eleições, por exemplo, vota e
eventualmente é votado, mas o cidadão – ainda que se trate do mesmo homem.
Assim, o Estado barra o acesso dos interesses de classe à esfera do poder
político, barra o transparecimento da própria existência das classes. 47

O Estado seria, então, um fenômeno especificamente capitalista que assegura a


troca das mercadorias e a exploração da força de trabalho. As instituições jurídicas
possibilitam a existência de mecanismos apartados dos exploradores por meio do sujeito de
direito, garantia do contrato e autonomia da vontade.

Passa a ser terceiro necessário à reprodução capitalista, sem ele, o domínio do


capital sobre o trabalho seria domínio direto: escravidão ou servidão. Ele, na condição de
instituição apartada dos indivíduos, é a garantia da mercadoria, da propriedade privada e
dos vínculos jurídicos de exploração que jungem o capital e o trabalho:

Devido à circulação mercantil e à posterior estruturação de toda a sociedade


sobre parâmetros de troca, exsurge o Estado como um terceiro em relação à
dinâmica entre capital e trabalho. Este terceiro não é um adendo nem um
complemento, mas parte necessária da própria reprodução capitalista. Sem ele, o
domínio do capital sobre o trabalho assalariado seria domínio direto – portanto,
escravidão ou servidão. A reprodução da exploração assalariada e mercantil
fortalece necessariamente uma instituição política apartada dos indivíduos. 48

Não sendo um poder neutro, o Estado é um derivado necessário da própria


reprodução capitalista - estas relações ensejam sua constituição ou sua formação. Sendo
estranho a cada burguês e a cada trabalhador explorados, individualmente tomados, é, ao

46
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Jurídica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 41.
47
KASHIURA JUNIOR, Celso Naoto. Crítica da Igualdade Jurídica. Contribuições ao Pensamento Jurídico
Marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.114.
48
MASCARO, Alysson Leandro. Op. cit., p. 18.
40

mesmo tempo, elemento necessário de sua constituição e da reprodução de suas relações


sociais:

Nesse sentido, deve-se entender o Estado não como um aparato neutro à


disposição da burguesia, para que, nele, ela exerça o poder. É preciso
compreender na dinâmica das próprias relações capitalistas a razão de ser
estrutural do Estado. Somente é possível a pulverização de sujeitos de direito
com um aparato político, que lhes seja imediatamente estranho, garantindo e
sustentando sua dinâmica.49

O Estado, desta forma, dá amalgama ao capitalismo, contribuindo por meio do


sujeito de direito para que se explore sob um único regime político e um território
unificado normativamente.

Na sociedade capitalista, a relação de troca entre sujeitos de direito se estabelece


como circuito pleno, todas as coisas tornam-se bens passíveis de troca. Em especial, o
trabalho passa a ser assalariado, estruturado a partir de seu valor como mercadoria e as
relações de produção assumindo forma mercantil, o circuito das trocas ergue-se como
forma social específica e plena: a forma-valor.

Nesse sistema, ocorre a chamada equivalência, em que intercâmbios de mercadorias


estabelecem uma igualdade entre coisas distintas. Os trabalhos produzem coisas distintas
que se equivalem nas trocas, estas coisas não valem por si e sim valem na troca - trabalho e
mercadoria se constituem sob uma forma valor:

No capitalismo, estabelece-se a separação dos produtores direitos em face dos


meios de produção. A produção passa a ser empreendida no regaço de uma
esfera privada. Mas se os produtores das mercadorias parecem a princípio
agentes privados e suficientes, cuja produção independe de terceiros, a
mercadoria, no entanto, assim só se constitui porque é trocada. De tal modo,
também o trabalho que está na base da produção das mercadorias é conectado a
um circuito de trocas. Tais intercâmbios de mercadorias estabelecem uma
igualdade entre coisas distintas. Trata-se da equivalência. 50

O ponto de igualdade genérica de todas as coisas é o valor, que assume a forma de


valor de troca, e que gira em torno do trabalho abstrato. O dinheiro opera como núcleo
central de uma forma de equivalência universal:

Se os trabalhos que produzem as mercadorias distintas terminam por se equivaler


na troca, eles se apresentam, então, como trabalho abstrato, que se generaliza e
impessoaliza por conta da sua condição de mercadoria trocada por dinheiro.
Assim, nesse circuito generalizado, não se especula sobre a qualidade intrínseca
de cada trabalhador, de cada trabalho ou de cada coisa produzida ou trocada. Em

49
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Jurídica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 19
50
Idem, ibidem, p. 23.
41

vez de valerem por si, valem na troca. Trabalho e mercadoria se constituem sob o
dístico de uma forma-valor.51

O Estado garante a universalidade nas generalizações, com um poder de coerção


física alheia à burguesia, o que propicia a este tipo de reprodução social – as formas valor,
capital e mercadoria transbordam, necessariamente, em forma estatal e forma jurídica.

A separação entre o político e econômico permite a valorização do valor, forjando


suas formas, em um processo contraditório, atravessado pelas pressões e conflitos sociais.
Não se pode dizer que há um sujeito coletivo dirigente talhando a ereção das formas
sociais.

A coerção das formas sociais se dá por mecanismos fetichizados, que são basilares
e configuram as próprias interações:

O valor, o capital, a mercadoria, o poder político e a subjetividade jurídica se


apresentam como mundo já dado aos indivíduos, grupos e classes, e suas formas
não são dependentes da vontade ou da total consciência dos indivíduos. As
práticas materiais, pelo contrário, operam a partir delas por meio da
inconsciência de seus agentes. É justamente por isso que as formas jungem uma
coerção para além dos interesses imediatos e individuais. Elas corroboram
diretamente para talhar as possibilidades de interação social. 52

A subjetividade jurídica é a forma necessária para que os indivíduos portadores de


mercadorias se apresentem no mercado, funda-se na vontade. Com ela se dá a constituição
da personalidade, a configuração psíquica dos indivíduos:

A subjetividade jurídica, além disso, dá a configuração psíquica das


individualidades no capitalismo. A condição econômica do ter e do circular – e
do fazer-se circular no trabalho assalariado - é grau constituinte da
personalidade. A possibilidade de relacionar-se por vínculo contratual é o que dá
ao dispositivo psíquico a percepção de portar-se a si próprio e não ter,
necessariamente, laço orgânico de solidariedade com o outro ou com os grupos e
as classes, portanto bastando-se ou se tendo apenas a si mesmo. [...]. No
fundamental, como a forma sujeito de direito é o espelho da forma mercadoria e
condição social necessária desta – porque aí reside o nível do dispositivo
psíquico de vinculação por meio da vontade -, ela é então o elemento central da
própria forma sujeito.53

Abordagens sobre a formação da subjetividade a partir inconsciência dos indivíduos


em uma sociedade marcada por formas sociais como valor, mercadoria e subjetividade
jurídica foram realizadas, com auxílio dos estudos realizados por Freud e Lacan, pelos
autores Herbert Marcuse e Louis Althusser, que serão analisadas a seguir.
51
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Jurídica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 23.
52
Idem, ibidem, p. 24.
53
MASCARO, Alysson Leandro. Direito, capitalismo e Estado: da leitura marxista do direito. In ______.
Para a crítica do direito. São Paulo: Outras Expressões e Dobra Universitária, 2015, p. 52-53.
42

CAPÍTULO 2. DA CRÍTICA HUMANISTA AO SUJEITO DE


DIREITO: HERBERT MARCUSE

Herbert Marcuse nasceu em Berlim, Alemanha, em 1898. Foi membro do Partido


Socialdemocrata Alemão entre 1917 e 1918, tendo participado de um Conselho de
Soldados durante a revolução berlinense de 1919, na sequência da qual deixou o partido.

Estudou filosofia, primeiro em Berlim e depois em Freiburg, onde estudou


literatura alemã contemporânea e complementarmente filosofia e economia política. Em
1922 defendeu sua tese O romance de arte alemão, inspirada na obra do Lukács pré-
marxista e na obra de Hegel.

Fez doutorado na Universidade de Freiburg, sob a orientação de Martin Heidegger,


apresentando, em 1927, uma tese sobre a historicidade em Hegel, autor que exerceu grande
influência filosófica em seu pensamento, que se transformaria, em 1932, no livro A
Ontologia de Hegel e o Fundamento de uma teoria da historicidade.

Inicialmente influenciado por Heidegger, principalmente por Ser e Tempo, obra que
considerou como sendo porta-voz de uma filosofia verdadeiramente concreta em
contraposição ao neokantismo e ao neo-hegeleanismo, posteriormente reformula suas
posições em busca de uma teoria da revolução, com ajuda de Marx, passando a considerar
Heidegger por demais retórico e a sua filosofia como não concreta.

Como um intelectual de esquerda, ingressou, em 1933, no Instituto de Pesquisa


Social, fundado em 1923, vinculado à Universidade de Frankfurt, considerado o primeiro
Instituto de orientação marxista na Europa, composto por marxistas não ortodoxos, como
Max Horkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamin e Jürgen Habermas.

O Instituto tinha como objetivo precípuo desenvolver uma teoria social crítica, de
análise e interpretação da realidade social existente a partir do de Hegel e de Marx, com
isso rumaram para um humanismo marxiano e libertário.

Entre 1942 e 1951, Marcuse exilou-se nos Estados Unidos da América, em razão da
perseguição nazista aos judeus, prestando serviços ao governo americano, em especial aos
órgãos de informação relacionados à Segunda Guerra Mundial e ao Departamento de
Estado.
43

Foi um período histórico conturbado, pois marcado pela ascensão e derrocada do


nazismo na Alemanha e pelo surgimento da Guerra Fria, que provocou a divisão do mundo
entre duas superpotências: Estados Unidos da América e União Soviética.

A partir de um humanismo radical, Marcuse busca a superação da lógica capitalista


de dominação que se estabeleceu na estrutura objetiva da produção e na subjetividade dos
comportamentos individuais:

O humanismo radical de Marcuse se constrói sob a perspectiva da ultrapassagem


da lógica capitalista de dominação que se incrustou na estrutura objetiva das
relações de produção e na subjetividade dos comportamentos individuais e
coletivos, como forma de reprodução do “princípio de realidade” como primado
do desempenho e da competição.54

Pode-se dizer, com base em divisão proposta por Wolfgand Leo Maar, na
Introdução do livro Cultura e Sociedade55, que Marcuse passou pelas seguintes fases:

1 – Fenomenológica: fase sob a influência de Hegel e de Heidegger, que vai até a


descoberta dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx, o que lhe alterou a leitura do
próprio Marx, conforme se posicionou em Novas Fontes para fundamentação do
materialismo histórico de 1932. Esta fase é definitivamente superada por meio de um
acerto de conta com o Dasein heideggeriano, em Sobre os Fundamentos filosóficos do
conceito econômico científico de trabalho, de 1933, do volume dois de Cultura e
Sociedade.

2 – Crítico/Filosófica: período frankfurtiano, de 1934 a 1955, período em que migra


de uma análise meramente historicista para uma análise mais concreta da realidade,
contrapondo a razão crítica à razão instrumental, prevalecente no capitalismo, que se inicia
com os quatro ensaios do volume um de Cultura e Sociedade56, desembocando na
reinterpretando Hegel, em Razão e Revolução, (1955) em que aborda a questão do trabalho
em Hegel e aponta o tratamento que este dá à razão de forma divorciada com a realidade,
preparando o campo para uma psicanálise do sujeito histórico, efetuada em Eros e

54
BOCAYUVA, Pedro Cláudio Cunca. Capitalismo tardio e esfera cultural em Marcuse. Physis, revista de
saúde coletiva, Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social do Estado do Rio de Janeiro, v. 8, p. 33, 1998.
55
MAAR, Wolfgang Leo. Introdução, Marcuse: Em busca de uma ética materialista. In MARCUSE,
Herbert. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 16, v. 1.
56
No segundo volume da coletânea Cultura e sociedade constam seis artigos relativos às três fases de
Marcuse: Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho da ciência econômica (1933) - final da
primeira fase; O existencialismo (1949) – segunda fase e A obsolescência da psicanálise (1963);
Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber (1964); Ética e revolução (1964) e Comentários para
uma redefinição de cultura (1965) – terceira fase.
44

Civilização. Fazem parte desse período também Sobre o conceito de Essência (1936), Uma
introdução à filosofia de Hegel (1939) e Algumas implicações sociais da tecnologia
moderna (1941).

3 – Teoria Crítica da Sociedade: Nesse período analisa criticamente a sociedade


tecnológica introduzindo a psicanálise para analisar o assujeitamento do indivíduo nesta
sociedade. Trata-se de crítica às sociedades existentes, a partir da análise inicial realizada
do homem, em Eros e Civilização, começando pela sociedade soviética, em Marxismo
Soviético, Uma Análise Crítica, e abarcando também a sociedade capitalista, por meio de
uma crítica à sociedade de consumo, One-Dimensional Man, cujo título da tradução para
língua portuguesa é Ideologia da Sociedade Industrial.

2.1. Subjetividade fenomenológica

Marcuse considerou Heidegger o primeiro dos pensadores modernos a explorar e


aprofundar a concepção marxista da práxis humana, para ele a filosofia de Heidegger
encarnava o ponto em que a filosofia burguesa é transcendida de dentro de si própria em
direção a uma nova filosofia, a filosofia concreta.

Nos seus primeiros artigos Herbert Marcuse procura formar uma síntese de
Heidegger com o marxismo, aplicando a fenomenologia ao marxismo via Heidegger - para
ele o conceito da própria existência histórica foi cunhado por Marx e por Heidegger
novamente interpretado, sendo que a análise fenomenológica comprovara a existência
humana como ente histórico, reconhecendo a práxis como seu comportamento originário.

Dessa forma, para o materialismo histórico fornecer a interpretação concreta da


situação realmente existente deve considerar o ser social (o concreto convivente ser-no-
mundo), conforme argumenta em sua obra Contribuições para a compreensão de uma
fenomenologia do materialismo histórico.

Nessa obra publicada em 1928, na revista Philosophie Hefte, Marcuse indaga sobre
o que seria propriamente existência, sobre a possibilidade de uma existência em geral e, a
partir da possibilidade do existir autêntico, a manutenção de uma filosofia significando
uma ciência prática autêntica:
45

O que é propriamente existência e como é possível a existência em geral? Após


longos desvios viu-se, de novo, que sentido e essência do homem estão
resolvidos no seu concreto ser humano situado: “A substância do homem é a
existência”. [...]. Conceitos como conhecimento, verdade, ciência, compreensão,
realidade, mundo exterior, etc., vêm a ser esclarecidos, no que os seus objetos
vêm a ser liberados enquanto originários modos de comportamento da existência
humana, ou enquanto básicos fenômenos naturais da existência diária de novo
vier a ser trazido diante da possibilidade do próprio existir autêntico, então
mantém esta filosofia seu mais alto sentido enquanto ciência prática autêntica:
enquanto ciência das possibilidades do próprio ser e da plenificação no próprio
ato.57

Tais indagações revelam sua principal preocupação sobre o problema da


necessidade da transformação radical da sociedade capitalista, a necessidade histórica de se
modificar a existência.

Para Marcuse, a obra Ser e Tempo representou uma reviravolta na história da


filosofia, seria para ele o ponto em que a filosofia burguesa se dissolve por dentro de si
mesma e se abre para uma nova ciência concreta. A fenomenologia abriria um caminho
para o materialismo histórico, uma nova compreensão da realidade que possibilitaria um
ato radical modificado:

A agora esboçada circunstância do seu objeto anuncia seu caminho à


fenomenologia do materialismo histórico. Ela principia com o desvelamento da
básica situação marxista, na qual uma nova postura fundamental revolucionária
adquire uma nova perspectiva sobre o conjunto do ser social, a partir do
conhecimento da sua historicidade, cuja perspectiva culmina na descoberta da
historicidade enquanto determinação fundamental do ser situado, adquirindo a
possibilidade de um ato radicalmente modificado, com a nova compreensão da
realidade. – Então vem a buscar-se uma interpretação fenomenológica da
historicidade, pela qual foram estabelecidas as fundamentais análises de
Heidegger, no seu livro O Ser e o Tempo (1927).58

Em Heidegger, a investigação da questão fundamental da metafísica é uma


investigação inteiramente histórica, mas história não significa meramente o passado, pois
este já não acontece mais, nem simplesmente o presente, mas é o agir e sofrer pelo
presente, determinado pelo futuro e que assume o pretérito vigente – é o desdobrar da
existência humana em suas referências essenciais, dentro de suas possibilidades.

Já não seria o “sum ergo cogito” de Descartes o primeiro enunciado com o qual o
eu se estabelece, e sim o sum no sentido de eu sou no mundo:

57
MARCUSE, Herbert. Contribuições para a compreensão de uma Fenomenologia do Materialismo
histórico. In ______. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968,
p. 73.
58
Idem, ibidem, p. 58.
46

A existência tem, em primeiro lugar, a constituição essencial de “ser no mundo”.


Enquanto tal, já está o mundo com seu ser atualmente lá. Os problemas de
transcendência, realidade, comprovabilidade do mundo no seu tradicional ponto
de partida, desvendam-se enquanto problemas aparentes, porque a existência em
geral só está enquanto “ser-no-mundo”, o mundo é dado originalmente já com
sua existência e, aliás, numa determinada perceptibilidade e abertura. O primeiro
enunciado não é o cogito, com o qual um eu se estabelece, e sim: sum no sentido
de “eu-sou-num-mundo”. 59

A existência e o mundo relacionam-se de modo originário segundo seu ser, como


partes de uma indestrutível totalidade concreta. As coisas estão dispostas no mundo como
possibilidade de serem alcançadas – a circunstância objetiva encontra a existência num
mundo de significações.

O ser no mundo existe como ser-com, em um mundo compartilhado com os outros


– o sujeito médio da existência é o ser (reflexivo). A historicidade apresenta-se como
determinante da existência, uma vez que lançado no impessoal, em um impróprio existir,
como modo de ser da existência surge a preocupação da busca de seu verdadeiro ser, e com
a compreensão de sua real situação, partindo-se da impropriedade, por meio de uma
decisão torna-se possível a apreensão do ser próprio:

No lançamento do ser-no-mundo adquire a existência humana suas


possibilidades a partir da exteriorização transferida, herdada, do homem. Porém
na decisão pode-se apelar ao seu próprio ser, pode o “ente, que ele mesmo é,
apreender-se plenamente no seu lançamento”. (p.283). Também na decisão
permanece a lançada existência humana, na qual se constitui o próprio ser da
existência humana. Sua liberdade consiste apenas na posse da herança, pronta
para a morte, em cumprimento autoimposto pela necessidade. 60

A “herança” continua essencialmente determinante, extingue a constitutiva


historicidade da existência humana. Na decidida transmissão à herança histórica, a
existência apreende o seu “destino”. Ele se transporta no perecimento da imprópria
existência na existência própria, na qual se torna histórico: sua própria existência histórica,
transmitida e determinada, opta e daí “repete” sua existência.

59
MARCUSE, Herbert. Contribuições para a compreensão de uma Fenomenologia do Materialismo
histórico. In ______. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968,
p. 69.
60
Idem, ibidem, p. 71-72.
47

2.1.1. A subjetividade em Heidegger/Dasein

Para Heidegger, o desenvolvimento do conceito de sujeito desde Descarte contém


um erro fundamental, uma vez que nele o ego, o eu, é de tal forma empobrecido que não é
mais nenhum sujeito, o ser-um-com-o-outro é desconsiderado:

O ego sum em Descartes é sem o ser junto a..., ser-um-com-o-outro. Pois


Descartes não chega nem mesmo a colocar a pergunta fundamental, digo, ele não
chega mesmo a questionar como esse ego é, o que significa esse sum no ego sum
em contraposição ao ser, por exemplo, da res extensa.61

O ser deve ser visto em seu sentido, sua totalidade, como presença em um mundo
em que se ocupa, em que com ele se relaciona, não se pode considerar um sujeito separado
do objeto como um ser desconectado:

A expressão “sou” se conecta a “junto”; “eu sou” diz, por sua vez: eu moro, me
detenho junto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é
familiar. O ser, entendido como infinito de “eu sou”, isto é, como existencial,
significa morar junto a, ser familiar com... O ser-em é, pois, a expressão formal e
existencial do ser da presença que possui a constituição essencial de ser-no-
62
mundo.

Já não é mais possível abarcar a totalidade caso tomemos como ponto de partida a
relação sujeito-objeto. Partindo-se somente dessa relação sem levar em conta o mundo
circundante, o ser no mundo e o ser com o outro, seria reduzir a teoria do conhecimento do
ser.

Sujeito e objeto não coincidem com presença e mundo, apesar do conhecimento


pertencer ao ente que conhece, este conhecimento não é dado simplesmente nesse ente, o
homem, leva-se em consideração outro ente, a natureza, como aquilo que primeiro se
conhece, desta forma colocam-se as questões:

Como este sujeito que conhece sai de sua “esfera” interna e chega a uma “outra”
esfera, a “externa”? Como o conhecimento pode ter um objeto? Como se deve
pensar o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhecê-lo,
sem precisar arriscar o salto numa outra esfera?63

Os entes dentro do mundo são as coisas, as coisas naturais e as coisas dotadas de


valor e a demonstração fenomenológica dos entes que se encontram mais próximos se faz
pelo ser-no-mundo cotidiano, também chamado modo de lidar com o mundo e com o ente
intramundano.

61
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 124.
62
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 92, parte 1.
63
Idem, ibidem, p. 99.
48

A presença não apenas é e está no mundo, mas também se relaciona com o mundo
segundo um modo de ser predominante, em sua cotidianidade, de modo que precisamos
investigar também o ser-um-com-o-outro.

O mundo é também presença e os outros que vêm ao encontro não são algo
acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada – são entes que se
distinguem dos instrumentos e das coisas e que são e estão no mundo de acordo com o
modo de ser de suas presenças, sendo que o encontro com os outros não se dá em uma
apresentação prévia em que um sujeito dado se distingue dos demais sujeitos em uma visão
primeira de si:

A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo a


própria presença. Será que essa caracterização não provém de uma distinção e
isolamento do “eu”? Sendo assim, não se deveria passar do sujeito isolado para
os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso atentar em que sentido se
fala aqui dos “outros”. Os “outros” não significa todo o resto dos demais além de
mim, do qual o eu se isolaria. Os “outros”, ao contrário, são aqueles dos quais, na
maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais
também se está. Esse estar também com os outros não possui o caráter
ontológico de um ser simplesmente dado “em conjunto” (N35) dentro de um
mundo. O “com” é uma determinação da presença. O “também” significa a
igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma
circunvisão. “Com” e “também” devem ser entendidos existencialmente e não
categoricamente. Na base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é
sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença é mundo
compartilhado. O ser-em é ser-com os outros e o ser-em-si intramundano destes
outros é co-pre-sença.64

Portanto, no lugar da consciência pura aparece a existência humana concreta,


lançada no mundo, podendo ter uma vida autêntica ou inautêntica, dependendo do cuidado
que tenha com o outro.

Enquanto lida com os instrumentos dados, com a manualidade, o ser se ocupa já na


constituição ontológica da presença na condição de ser-com, temos, desta forma, a
preocupação, com seus modos possíveis: ser por um outro, contra um outro, sem os outros,
o passar ao lado um do outro e o não sentir-se tocado pelos outros.

Mesmo quando a presença não se volta para os outros, quando acredita não precisar
deles, ela é ainda um modo de ser com. O cuidado, portanto, é um modo de ser essencial
do ser, é a maneira desse ser se estruturar, dar-se a conhecer.

64
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 169-170, parte 1.
49

Nos modos positivos, a preocupação possui duas possibilidades: retirar o cuidado


do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o, ou antepondo-se na
possibilidade existenciária de ser do outro, não para lhe retirar o cuidado e sim para
devolvê-lo como tal:

No tocante aos seus modos positivos, a preocupação possui duas possibilidades


extremas. Ela pode, por assim dizer, retirar o “cuidado” do outro e tomar-lhe o
lugar nas ocupações, substituindo-o. (N39) Essa preocupação assume a ocupação
que o outro deve realizar. Este é deslocado de sua posição, retraindo-se, para
posteriormente assumir a ocupação como algo disponível e já pronto ou então se
dispensar totalmente dela. Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente
e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para
o dominado. Essa preocupação substitutiva, que retira do outro o “cuidado”,
determina a convivência recíproca em larga escala e, na maior parte das vezes,
diz respeito à ocupação do manual. 65

No primeiro modo de preocupação, o outro se torna dependente, no segundo, que


em sua essência é a cura propriamente dita, ajuda o outro a tornar-se, em sua cura,
transparente a si mesmo e livre para ela.

Na forma negativa, no descuido com os outros, que ocorre na decadência no mundo


das ocupações, o ser se dispersa de sua essência, isto é, afasta-se de seu existir próprio.

Nas ocupações com o mundo circundante, os outros nos vêm ao encontro naquilo
que são – eles são o que empreendem – e nessas ocupações do que se faz com, contra ou a
favor dos outros sempre se cuida de uma diferença com os outros, que a presença ou
procura nivelar ou estando aquém se esforça para chegar até eles ou na precedência sobre
os outros procura subjugá-los.

A partir do domínio dos outros, da tutela dos outros, assumidos sem que a presença
se dê conta disso, temos o impessoal que é um existencial e, como fenômeno originário
pertence à constituição positiva da pré-sença. A pré-sença possui em si própria diversas
possibilidades de concretizar-se. As imposições e expressões de seu domínio podem variar
historicamente.

A passagem do impessoal, ou seja, a modificação existenciária do próprio


impessoal para o ser-si-mesmo em sentido próprio deve-se cumprir como
recuperação de uma escolha, decidir-se por um poder ser a partir de seu próprio
si-mesmo. Apenas escolhendo a escolha é que a pré-sença possibilita para si
66
mesma o seu próprio poder-ser.

65
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 173-174, parte 1.
66
Idem, ibidem, p. 53, parte 2.
50

Desta forma, Heidegger, partindo do comportamento humano baseado em suas


preocupações práticas, em um mundo herdado, afirma que o homem poderia chegar ao ser
autêntico, levando ao máximo onde a filosofia burguesa poderia chegar: confirmando,
segundo Marcuse, a necessidade da práxis como campo das decisões.

Nesse ponto, Marcuse busca o socorro do marxismo para suas análises, uma vez
que Heidegger tornou-se insuficiente, por suas considerações por demais abstratas da
sociedade em Ser e Tempo e por sua concepção de historicidade muito generalizada, o que
não permite adequada compreensão dos fatos históricos verdadeiros que restringem a ação
humana.

2.1.2. Subjetividade fenomenológica dialética/Ato radical

Marcuse chega à conclusão que o marxismo vai além de Heidegger quando analisa
a divisão da sociedade em classes, uma vez que abre a análise para a realidade daquele
momento histórico em que apenas uma classe seria capaz de se engajar em uma ação
radical, o proletariado, que pelo seu papel chave no processo de produção seria o
verdadeiro sujeito histórico,

Além do mais, o marxismo refere-se ao total dos conhecimentos que dizem respeito
à historicidade: à estrutura, à mobilidade do acontecer e ao ser. Uma nova postura
revolucionária dá ao conjunto do ser social uma nova perspectiva a partir da historicidade,
como determinação fundamental do ser situado, estudada por Heidegger em seu livro O
Ser e Tempo.

Pensa a necessidade da fenomenologia da historicidade, mas com uma correção


desta no sentido do método dialético:

Então vem a buscar-se uma interpretação fenomenológica da historicidade, pela


qual foram estabelecidas as fundamentais análises de Heidegger, no seu livro O
Ser e o Tempo (1927). – Antes da constatação da questão, se as premissas do
materialismo histórico mantêm em vista o fenômeno da historicidade, exigir-se-á
a própria metodologia da interpretação, enquanto problema. A historicidade da
existência requer uma correção da fenomenologia, no sentido do método
dialético, o qual se comprova como conveniente acesso a todos os objetos
históricos. Por isto deve também a dialética experimentar um preliminar
esclarecimento, no seu metódico manuseio. – Só então vem a ser posta em
questão a fenomenologia do materialismo histórico, no qual as premissas do
51

marxismo, às quais dizem respeito à estrutura da historicidade, vêm interpretadas


em referência ao fenômeno da historicidade. 67

Uma síntese de ambos os métodos, dialético e fenomenológico, permitiria à


historicidade da existência humana tornar-se adequada. A mais extrema decisão que brota
do conhecimento da historicidade é a luta pela necessidade reconhecida, contra a própria
existência superada ou persistência em forma existências em perecimento.

A existência teria sua estrutura determinada pela historicidade: o ser do mundo da


existência significa o lançamento numa concreta-histórica circunstância com-o-mundo e
em-torno-do-mundo, de modo que a existência se determina e se desenvolve atualmente a
partir deste mundo.

O espaço vital da existência é o espaço onde a existência se lança no mundo, onde


cria primeiramente as suas possibilidades de sua própria existência, como possibilidades da
produção e reprodução.

Quando o espaço vital se torna impróprio para comportar a produção e reprodução


da sociedade a ser provida, deve ser melhorado e ampliado. A essência do homem é a sua
experiência, uma vez que a primeira preocupação do homem dirige-se à sua existência,
como um autoimpulso de manutenção em favor de sua subsistência, formação e
prosseguimento do seu ser lançado no mundo.

No entanto, como a existência humana apreendeu atualmente sua circunstância


pessoal como “ser lançado no mundo” e esse mundo se enraizou como atual significante
numa existência humana que o preocupa diante da concreta conexão com os outros, esta
existência não deve ter enfoque meramente individual e sim ser compartilhada dentro de
uma situação histórica material.

A questão da decisão na história conforme a leitura de Heidegger se interrompe,


pois não leva à resolução, a uma modificação da realidade atual, ao contrário, ela traz de
volta essa resolução do ato à solitária existência humana, em vez de levá-la adiante.

Seguindo as palavras de Marx, declaradas na Crítica à Filosofia do Direito em


Hegel, deve-se procurar tomar as coisas pela raiz e, no caso do homem, é o próprio
67
MARCUSE, Herbert. Contribuições para a compreensão de uma Fenomenologia do Materialismo
histórico. In ______. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968,
p. 58.
52

homem, ou seja, a salvação do homem não deve ser buscada fora do homem e sim no
homem e o homem está inserido na história.

A possibilidade fundamental da existência em Marx é a possibilidade histórica do


ato radical, ato esse que irá liberar uma nova realidade necessária para o surgimento do
homem total:

Tracemos agora, em largas linhas, a situação fundamental segundo o marxismo:


na situação fundamental marxista trata-se da possibilidade histórica do ato
radical, a qual deve liberar uma nova realidade necessária enquanto realização do
homem total. Seu portador é o homem histórico consciente, seu peculiar campo
de ação a história, a qual vem a ser então descoberta enquanto categoria
fundamental da existência humana. Assim se comprova o ato radical enquanto
ato revolucionário de “classe”, enquanto unidade histórica. 68

Marcuse entende que a questão do ato radical somente tem sentido quando esse ato
promover, frente a uma situação concreta, a realização do ente humano, mesmo que essa
realização apareça como impossibilidade fática.

O ato deve ser apreendido existencialmente, isto é, como modo essencial de


comportamento da existência e emergente do Ser. Cada ato pode corresponder a uma
mudança das circunstâncias, mas somente o ato radical, que necessariamente é decorrente
da necessidade, modifica também a existência humana:

O ato radical é assim conformemente necessário, tanto para o autor, quanto para
a circunstância, na qual ele age. Através do seu acontecer se dirige a necessidade,
modifica, com alguma simplicidade, o insuportável acontecido e coloca, no seu
lugar, a própria necessidade, que, só ela, pode liberar a insuportabilidade. Cada
ato, que não têm este específico caráter de necessidade, não é radical, poderia
também não acontecer, e, mais tarde por um outro vir a ser efetuado. Isto conduz
ao último significado decisivo da necessidade: o ato radical é a sua própria
necessidade imanente. Que já agora precisa acontecer, já aqui e já a partir dele,
mencionado, que nunca pode ser trazido de fora para o autor, desde que o autor
precisa efetuá-lo no sentido de dever – ser imanente, o que já é outorgado pela
sua própria existência. Somente assim tornar-se-á, com efeito, necessário o ato,
pelo que ele não se deixa outorgar, e sim irrompe de dentro de si mesmo. 69

Por sua vez, o ato radical só tem necessidade imanente se for historicamente
necessário, uma vez que a existência humana se realiza essencialmente na história e através
da história se vê determinada. O homem histórico aparece, desde seu início, não como
indivíduo isolado, e sim como homem entre homens.

68
MARCUSE, Herbert. Contribuições para a compreensão de uma Fenomenologia do Materialismo
histórico. In ______. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968,
p. 60.
69
Idem, ibidem, p. 62.
53

Em primeiro lugar, o homem tem a necessidade constante de manter a sua


existência, tendo por seu primeiro ato histórico a produção de sua vida material. Como a
vida material reproduz também a ideal, a produção das ideias está imediatamente
relacionada na atividade material dos homens, nas relações materiais da sociedade.

Portanto, o direito, a moral, a arte e a ciência, não se apresentam abstratamente a


uma visão histórica, adiante do ser histórico, e sim como emergidos e enraizados em um
ser concreto de uma sociedade concreta:

Existência humana, enquanto historicamente seu ser, não necessita de impulso


transcendente e de meta, para acontecer, pois só pode existir enquanto acontecer:
“Não é algo como a ‘história’, de que o homem necessita para meio, a fim de
elaborar seus objetivos – como se fosse uma pessoa à parte – e sim que ela, a
história, não passa da atividade do homem em busca do seu objetivo”. (Santa
Família, p. 195). Todo desenvolvimento histórico persevera na iminência da
própria história, ele representa o desencadeamento das sociedades, enquanto de
unidades históricas concretas sob o impulso da sua reprodução, condicionada
através da circunstância natural. A posterior representação do desenvolvimento
histórico, por intermédio de Marx, deve vir a ser pressuposta enquanto
conhecida, deve a partir dela, só ainda ser mencionado que é necessário para o
esclarecimento básico da historicidade.70

A nova geração herda, através de sua história, a forma material da existência


humana: as forças de produção, bem como os modos de produção, porém as recebe em
uma situação modificada, uma vez que a história como atividade humana é modificada em
cada momento.

Cabe, portanto, às novas gerações modificar ou destruir a herança recebida quando


esta não corresponder às reais necessidades provocadas pelas mudanças históricas:

Enquanto histórica, é a existência humana a “sucessão das gerações” (Ideologia


alemã, p. 254). Cada geração fundou-se, na sua reprodução, em predecessoras.
Ela toma, enquanto herança, os “materiais” remetidos pelas predecessoras: as
forças de produção, bem como os modos de produção. Porém ela, a geração, as
recebe “sob circunstâncias totalmente modificadas”, pois a história, enquanto
atividade humana em transcurso, é modificação em cada momento. Assim
precisa a nova geração desenvolver a herança a ela transmitida, modificá-la ou
destruí-la, quando não mais corresponda às “modificadas circunstâncias”. Quais
destas possibilidades ela apreende, e o que ela situa em lugar do derrubado, é
concedido através da sua história. A geração só pode tornar-se sujeito da história,
se se reconhece e se percebe enquanto objeto da história, quando ela saca do
conhecimento sua peculiar situação histórica. 71

70
MARCUSE, Herbert. Contribuições para a compreensão de uma Fenomenologia do Materialismo
histórico. In ______. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968,
p. 65.
71
Idem, ibidem, p. 65.
54

Existência histórica realiza-se apenas no conhecimento desta existência, no


conhecimento de sua situação, de suas possibilidades e de sua missão, de forma a
corresponder ao conhecimento da real situação histórica.

Porém, no que se refere à existência histórica, há uma divergência fundamental


entre Marcuse e Heidegger. Para Marcuse, o desenvolvimento das forças produtivas e
respectiva divisão do trabalho, transformando-se de nacional em internacional, torna
visível o caráter universal da classe operária de forma que:

Através do desenvolvimento das forças produtivas projeta-se a divisão do


trabalho, de nacional em internacional, por sobre todos os condicionamentos, de
povo e espaço, tornando-se visível o caráter universal da classe. Na elaboração
do moderno mercado mundial este desenvolvimento alcançou o seu ápice. A
“universal dependência” dos indivíduos, na sua reprodução, torna sua existência
histórica em histórica-mundial, efetuando assim a “conversão da história em
história mundial”.. 72

O portador do ato radical é a classe universal, ser concreto histórico, cuja meta está
assinalada por sua própria situação. O ato radical é, portanto, o gesto revolucionário pelo
qual o proletário atinge a essência da natureza humana, que é a sua desalienação, a
conquista do homem autêntico, a conquista da felicidade, já para Heidegger o homem tem
sua essência descoberta pela angústia e essa essência se mostra como o “nada”.

O conhecimento torna-se, assim, consciente de sua historicidade, e, portanto,


revolucionário, e a verdade de toda a realidade autêntica efetua-se na ação, sendo o papel
da filosofia não só o de interpretar o mundo, mas o de transformá-lo.

2.1.3. Materialismo histórico

Foi nos Manuscritos Econômico-Filosóficos do jovem Marx, publicado em 1932,


que Marcuse encontrou a resposta que procurava sobre a possibilidade da emancipação do
ser humano. O comunismo a que Marx se referia nos Manuscritos não significava apenas a
transformação radical das bases materiais da sociedade, mas também a emancipação
completa do ser humano, o que, na interpretação de Marcuse, representava a emancipação
dos sentidos e a transformação radical da consciência e do inconsciente.

72
MARCUSE, Herbert. Contribuições para a compreensão de uma Fenomenologia do Materialismo
histórico. In ______. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968,
p. 66.
55

Os Manuscritos econômico-filosóficos anunciavam, com a transformação da


consciência do homem, em termos políticos, o que mais tarde Freud viria a fazer em
termos psicológicos, conforme estudos aprofundados por Marcuse do pós-guerra, quando
se preocupa com uma nova teoria de um sujeito histórico, sujeito este que colocaria a
sociedade em direção ao comunismo. O comunismo prescrito nos Manuscritos seria:

Este comunismo é [...] a autêntica solução da contradição entre o homem e a


natureza e entre o homem e o homem, a verdadeira solução da contenda entre
existência e essência, entre objetivação e autoafirmação, entre liberdade e
necessidade, entre indivíduos e espécie. Constitui o resolvido dilema da história
e se e reconhece enquanto esta solução.73

Marcuse procura nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx elementos


que possibilitem a discussão das categorias fundamentais da teoria marxista, a saber:
trabalho, objetivação, alienação, superação, propriedade.

A partir da alienação do trabalhador e do trabalho surge uma total desconcretização,


ou seja, o mundo objetivo não é mais uma autêntica propriedade humana e sim um mundo
de coisas possuídas, ocorre o domínio da matéria morta sobre os homens, o homem torna-
se submisso:

Partindo desta “alienação” do trabalhador e do trabalho, surgiu uma total


“desconcretização” de todas as “forças essenciais”; o mundo objetivo não é mais
“autêntica propriedade humana”, apropriada em “livre atividade” e campo da
livre afirmação e afirmação de toda natureza humana, e sim um mundo de coisas
possuídas, utilizáveis e trocáveis na propriedade privada, a cujas próprias leis
inalteráveis o homem está submisso – em poucas palavras: um universal
“domínio da matéria morta sobre os homens” (p.77).74

A “economia política tradicional” oculta a realidade social, alienando e


desvalorizando o homem, já a “economia política socialista” é a única capaz de desvendar
as “leis aparentemente inalteráveis” da sociedade, tornando perceptível o “alheamento” e
alienação do homem.

Marx divide inicialmente sua análise no terreno da economia política tradicional


em: “salário do trabalho”, “lucro do capital” e “renda da terra”. Tal análise foi
“violentamente dissolvida”, segundo Marcuse, por Marx, que apresenta um novo conceito -
o de trabalho alienado:

73
MARCUSE, Herbert. Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico. In______.
Materialismo Histórico e Existência. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1968, p 107-108.
74
Idem, ibidem, p.108.
56

Objeto da crítica é a economia política enquanto justificação científica, a saber,


cobertura de uma “alienação” total e “desvalorização” da realidade humana,
como a representa a sociedade capitalista – enquanto uma ciência que faz do
homem o seu objeto, enquanto um ser desnaturado (p. 109), cuja existência total
é determinada através da “divisão entra trabalho, capital e terra”, através de uma
desumana divisão do trabalho, através da concorrência privada, etc. (p. 81). 75

Marcuse, ao analisar a “caracterização do trabalho alienado”, percebe que Marx


refere-se à alienação como alienação materialista do trabalho e não de forma idealista
como alienação da consciência, uma vez que este autor afirma que o objeto da crítica deve
ser a economia política, tendo em vista que essa ciência faz do homem o seu objeto, sendo
que a maior parte da humanidade, nesse mundo de mercadorias, só existe na condição de
trabalhadores abstratos:

Esta economia política é a sanção científica da intervenção do mundo humano,


histórico-social, num mundo estranho ao homem enquanto poder hostil do
antagônico mundo da mercadoria e do dinheiro, no qual a maior parte da
humanidade só existe ainda enquanto trabalhadores “abstratos” (cindidos da
completa realidade da existência humana), separada do objeto de seu trabalho,
coagida a vender-se a si própria enquanto mercadoria, para poder manter apenas
sua existência física em geral. 76

Tal trabalho refere-se a uma alienação e desvalorização da vida humana, que leva a
uma “distorção” de fatos da existência humana. Neste contexto, a análise de Marcuse tenta
resgatar a importância de se tomar o homem como tal e não como mero “sujeito
econômico”, o que implicaria em superar a propriedade privada, pois nela o homem é
tomado como objeto.

O trabalho é o espaço da realização autêntica do homem, mas não o trabalho


alienado que é uma determinada relação do trabalhador com o objeto de seu trabalho,
relação esta que funda o fato da alienação e coisificação:

Tentamos mostrar que o trabalho alienado e a propriedade privada – conceitos


básicos da crítica – são tomados e criticados desde o começo, não só mesmo
enquanto conceitos econômicos-políticos, e sim também enquanto conceitos para
um acontecimento decisivo na história do ser humano e que, correspondendo a
“positiva superação” da propriedade privada à autêntica apropriação da realidade
humana, revoluciona toda a história substancial do homem. Já porque a
economia política burguesa não tem em vista a substância humana e sua história
não é, pois, “ciência do homem” no sentido mais profundo, e sim no desumano e
do seu desumanizado mundo de coisas e mercadorias, pois, exatamente por ela
não se apercebe mais seu peculiar conteúdo, o homem. 77

75
MARCUSE, Herbert. Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico. In______.
Materialismo Histórico e Existência. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1968, p. 108.
76
Idem, ibidem, p. 108.
77
Idem, ibidem, p. 111.
57

Desta forma, o trabalho em Novas fontes para fundamentação do materialismo


histórico, ensaio de 1932, passa a ser apreendido como processo de autoformação dos
homens na elaboração de sua história, representando a mediação concreta entre indivíduo e
razão universal.

Marcuse prossegue essa análise em Sobre os fundamentos filosóficos do conceito


econômico-científico de trabalho, publicado em 1933, obra que faz parte do segundo
volume de Kultur und Gesellsschaft, traduzida em português, em dois volumes, como
Cultura e Sociedade, ocorrendo um ajuste de contas com Heidegger:

Em 1932, Marcuse dedicaria ao assunto um primeiro ensaio, Novas fontes para a


fundamentação do materialismo histórico. Em 1933 publicaria, por fim: Sobre
os Fundamentos filosóficos do conceito econômico-científico de trabalho, que
consta do segundo volume de Cultura e Sociedade. O trabalho seria apreendido
por Marcuse principalmente como processo de autoformação dos homens na
elaboração de sua história, e representava por essa via a mediação concreta entre
indivíduo e razão universal que procurava. Agora essa relação dialética seria a
essência do Dasein heideggeriano, que, por assim dizer, se mostraria um
supérfluo equívoco. Todo o seu esforço de análise nesse período se centraria na
tentativa de elaboração teórica de um trabalho formativo no contraste com uma
situação vigente hostil ao trabalho autoconstituinte da humanidade e, pelo
contrário, engajado num progressivo e complexo processo de alienação. O
trabalho social se vincularia assim à negatividade da razão em face da realidade
efetivada, possibilitando se constituir em base de um projeto de uma ontologia
do ser social. Não se deriva já uma teoria social, mas o ajuste de contas com
Heidegger se resolve ainda nos termos ainda filosóficos do conflito de uma tal
ontologia de cunhagem histórico-materialista com a fenomenologia existencial. 78

Começa a ficar claro para Marcuse que os conceitos aparentemente concretos em


Heidegger, como o conceito de existência, eram novamente dissolvidos em conceitos
abstratos, diferentemente dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que tratava os conceitos
de forma efetivamente concreta, indo, inclusive, além do Marx “enrijecido” que os partidos
pregavam: começa a ruptura com o Dasein de Heidegger:

O que parecera a dissolução interna da filosofia burguesa acabaria revelando-se,


com efeito, como sendo mais apropriadamente o limite da filosofia burguesa; o
máximo ponto a que nesta se poderia chegar em termos de concretude, sem
passar a se converter efetivamente em momento da práxis transformadora da
realidade efetiva material-sensível, e realizadora, por essa via, dos ideais da
razão, propostos pela filosofia clássica alemã. Dito de outro modo: a realização
da filosofia não era possível por meios filosóficos; caberia à práxis, nos termos
propostos pelo materialismo histórico. 79

Este ensaio de 1932 é um ajuste de contas com Heidegger, apesar de manter ainda
muito das expressões deste, como Dasein, estar com o outro, etc.
78
MARCUSE, Herbert. Introdução. Marcuse: em busca de uma ética materialista. Cultura e sociedade. São
Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 17-18, v. 1.
79
Idem, ibidem, p. 19.
58

Este ajuste, no entanto, não se traduziria ainda em uma teoria social, pois é
colocado no terreno filosófico do conflito de uma ontologia de aspecto histórico-
materialista com a fenomenologia existencial. Além do mais, Marcuse ainda partilha com
Heidegger um olhar a-histórico quando aborda o trabalho como uma realização existencial,
não analisando a forma social do trabalho sob o modo de produção capitalista – o trabalho
como forma de mascarar a exploração capitalista.

Para apontar a dominação existente, utiliza-se da formula (a-histórica) de Hegel:


dominação e servidão, tendo como sujeito histórico constituído a comunidade, na medida
em que for garantida a reprodução de um modo de produção:

Os conceitos de dominação e servidão, utilizados por Hegel como categorias da


existência histórica, pretendem designar aqui uma situação histórica geral:
servidão significa a vinculação permanente e continuada da práxis do todo
existencial à produção e reprodução material, a serviço e sob a direção de uma
outra existência (justamente a “dominante”) e de suas demandas. – A
comunidade histórica só se constitui como “sujeito” do acontecer quando a
dominação é permanente e garantida e quando em correspondência a servidão
adquiriu continuidade e permanência de todo um modo de existência. 80

A continuidade, a permanência e a plenitude da existência é sempre determinada


por uma divisão do trabalho, de delimitar sua totalidade por meio de um ordenamento:

A comunidade histórica se consuma em seu sentido e em seu fim somente


mediante um ordenamento delimitando a totalidade da existência, de antemão
dividindo e atendendo à sua demanda. Esse ordenamento sempre é uma
determinada divisão do trabalho, pois justamente no trabalho se realizam
efetivamente e se asseguram a continuidade, a permanência e a plenitude da
existência.81

Conclui afirmando que o verdadeiro “reino da liberdade” somente pode ser


alcançado pela humanidade quando o trabalho for liberado da alienação e coisificação e se
torne aquilo que é em sua essência: “a realização efetiva plena e livre do homem como um
todo em seu mundo histórico”:

A superação da divisão, socioeconomicamente fixada, do todo existencial em


modos de existência opostos, a transformação da produção e reprodução
material, tornada independente, inefetiva e separada das dimensões que a
plenificam, em uma práxis dominada, limitada e consumada a partir dessas
dimensões, constitui a condição da possibilidade para que seja devolvida à
existência seu trabalho próprio e para que o trabalho libertado da alienação e da

80
MARCUSE, Herbert. Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho na ciência econômica. In
______. Cultura e Sociedade, São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 41-42, v. 2.
81
Idem, ibidem, p. 42.
59

coisificação se torne novamente aquilo que é conforme sua essência: a realização


efetiva e livre do homem como um todo em seu mundo histórico. 82

2.2. Fase crítico/filosófica

Seguindo a classificação já apontada de Wolfgang, Marcuse passou por uma fase


filosófico-crítica, referente ao período de 1934 a 1955, que pode ser subdividida em dois
períodos, sendo o primeiro deles abrangendo principalmente os primeiros tempos no exílio,
quando escreveu vários artigos com conotação teórico/crítica, publicados entre 1934 e
1938, reunidos no primeiro volume da coletânea Kultur und Gesellschaft, traduzida em
português, em dois volumes, como Cultura e Sociedade.

O segundo período refere-se a uma revisão da obra de Hegel, de forma a dar-lhe


uma conotação mais progressista, em Razão e Revolução, na qual expõe o desenlace da
filosofia clássica para a práxis transformadora da realidade, nos termos do materialismo
histórico.

2.2.1. A subjetividade em Cultura e Sociedade

O início desta 2ª fase se dá com a publicação de quatro ensaios escritos entre 1934 a
1938, para a Revista de Pesquisa Social de do Instituto de Frankfurt, que foram reunidos
no primeiro volume de Cultura e Sociedade, são eles: O combate ao liberalismo na
concepção totalitária do Estado, Sobre o caráter afirmativo da cultura, Filosofia e teoria
crítica e Para a crítica do hedonismo.

Esses primeiros textos, que têm como proposta metodológica a apreensão dialética
e materialista da história das ideias, são centrados em torno de uma temática comum
ocorrida no plano da formação do sujeito, considerado de uma forma ampla: no plano da
cultura, ética etc.

Coloca-se o problema do destino do movimento operário uma vez que a formação


da classe operária como sujeito da emancipação política estaria em questão, já que este

82
MARCUSE, Herbert. Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho na ciência econômica. In
______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 44, v. 2.
60

mais se integrava ao sistema que lutava para se emancipar e a resposta do capitalismo


posicionando-se em direção a uma ordem totalitária:

O pano de fundo para a análise dessa crise formativa do destino do movimento


operário – que se integra em vez de se emancipar – reside justamente nos
mecanismos desenvolvidos no plano das mudanças então em curso na sociedade
capitalista. [...]. Como uma resposta às crises e ao avanço operário sustentados
nas contradições do capitalismo, a transição da economia liberal de mercado à
economia de intervenção oligopólica ou estatal seria apreendida não somente no
plano estritamente econômico, mas em todos os âmbitos da formação social. Por
esse prisma, a lógica interna da sociedade capitalista conduziria à ordem
totalitária. Sustentando explicitamente esse enfoque, Marcuse conduz esse viés
econômico ao âmbito das ideias, cuja lógica interna implicaria um trajeto
análogo. Cabia assim expor o parentesco interno entre a teoria social liberal e a
concepção totalitária do Estado.83

No primeiro texto, O combate ao liberalismo na concepção totalitária do Estado,


questiona a filosofia da existência heideggeriana – a vida como projeto – aventando a
hipótese dessa filosofia ser, na verdade, uma preparação para o Estado totalitário, uma vez
que a liberdade do existencialismo estaria cumprindo uma função social já prevista no
idealismo clássico alemão a de conservação do capitalismo.

O sujeito nessa concepção “antropológica existencial” age, mas não sabe para que
age, não decide por si próprio para que ele age, sendo secundário o porquê do agir:

A antropologia existencial acredita ser secundário o conhecimento do porquê da


decisão, do para que da intervenção, necessário para qualquer ação humana
adquirir sentido e valor. Essencial é apenas que se toma uma direção, que se
toma um partido. “As assustadoras diferenças de ponto de vista não estão no que
é estritamente objetivo-material (sachlich)”, mas sim “na força sintética de
questionamentos existencialmente enraizados”. Somente nessa tonalidade
irracional a antropologia existencial se capacita a realizar sua função social a
serviço de um sistema de dominação ao qual nada pode ser menos oportuno do
que uma justificativa “objetivo-material” da ação por ele requerida.84

O sujeito é transformado e passa a participar do processo imediato de produção por


força da dominação que usa a racionalidade tecnológica para efetivar tal dominação, ou
seja, a sociedade totalitária submete o reino da necessidade à sua administração,
adaptando-o a sua imagem, dessa forma, romper com a “consciência administrada”
constituiria uma pré-condição da libertação.

Assim haveria a necessidade de se retornar ao passado com vistas ao futuro,


reexaminando as posições dos filósofos como Platão, Aristóteles, Kant e em especial
83
MAAR, Wolfgang Leo. Introdução, Marcuse: Em busca de uma ética materialista. In MARCUSE, Herbert.
Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra,1997, p. 21, v. 1.
84
MARCUSE, Herbert. O combate ao liberalismo na concepção totalitária do Estado. In ______. Cultura e
Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 75, v. 1.
61

Hegel. Os textos seguintes de Marcuse dão suporte na sua “missão” de “reescrever” a


história da filosofia, em Razão e Revolução, de forma a evitar a apropriação de Hegel pela
ideologia totalitária:

A liberdade do existencialismo seria a liberdade apresentada no idealismo


clássico alemão passado a limpo como função social de conservação do
capitalismo, do mesmo modo que a transição do Estado liberal ao Estado
totalitário se destina a essa meta. Por isso se impunha um retorno ao passado
com vistas ao futuro, examinando essa apropriação de Platão, Aristóteles, Kant,
Hegel, recolocando-os em seu devido lugar como razão crítica. Assim os textos
seguintes constituíram uma espécie de versão inicial da obra que encerraria essa
fase: Razão e Revolução, onde se reescreve a história da filosofia procurando
evitar a sua apropriação pela ideologia totalitária, em que se fizera grandes
estragos sobretudo na recepção de Hegel.85

No segundo texto, Sobre o caráter afirmativo da cultura, de 1937, Marcuse


focaliza a função ideológica da cultura na formação do sujeito. Questiona o caráter
emancipatório da cultura, uma vez que em vez de conferir um sentido humano à vida
integra os indivíduos às necessidades do sistema, de forma que estes possam sentir-se
felizes, ainda que efetivamente não o sejam.

Diferentemente da Antiguidade, quando alguns poderiam se dedicar ao


conhecimento, à fruição do verdadeiro, do bom e do belo em detrimento da imensa maioria
dos que tinham de trabalhar, no capitalismo o indivíduo foi sacrificado tornando-se força
de trabalho ou fator de produção (poder-se-ia dizer, conforme conceituação elaborada por
E. Pachukanis, que todos os indivíduos foram constituídos em sujeitos de direito):

A competição livre confronta os indivíduos entre si como compradores e


vendedores de força de trabalho. A abstração pura a que os homens são
reduzidos em suas relações sociais se estende ao relacionamento com os bens
ideais. Já não seria verdade que alguns são de nascença destinados para o
trabalho, e outros, para o ócio, alguns para o necessário, outros, para o belo.
Assim como a relação de cada indivíduo com o mercado é imediata (sem que
suas qualidades e necessidades pessoais adquiram relevância a não ser como
mercadorias), também é imediata em relação a Deus, imediata em relação à
beleza, bondade e verdade. 86

Marcuse destaca que o indivíduo abstrato, que no início da época burguesa se


apresentava como sujeito da práxis, delegado de universalidades superiores, em luta com o
sistema feudal, quando no poder, passou a se apresentar como uma individualidade por si

85
MAAR, Wolfgang Leo. Introdução, Marcuse: Em busca de uma ética materialista. In MARCUSE, Herbert.
Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra,1997, p. 23, v. 1. .
86
MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo:
Paz e Terra, 1997, p. 94, v. 1,
62

própria, sem mediações, em busca de sua felicidade que passa a ser suprida pela produção
capitalista, sendo desnecessária a igualdade efetiva, bastando a igualdade abstrata.

Constitui-se pela cultura afirmativa uma aparência de satisfação, uma aparência de


liberdade que torna mais difícil a falta de liberdade manifesta que é promovida, os ideais
libertadores da burguesia foram modificados, a cultura passou a se referir não a um mundo
melhor, mas a um mundo mais nobre, que não teria a necessidade de transformação do
mundo, mas sim de um acontecimento na alma do indivíduo:

O caráter humano se converte num estado interior; liberdade, bondade, beleza se


tornam qualidades da alma: compreensão para tudo que é humano, conhecimento
das grandezas de todos os tempos, valorização de tudo que é difícil e sublime,
respeito em face da história em que tudo isto ocorreu. A ação que fluiria a partir
de um tal estado não deveria ser dirigida contra a ordem estabelecida. Cultura
não tem quem compreender as verdades da humanidade como grito de
combatente, mas como postura. Essa postura implica um saber se comportar:
revelar harmonia e equilíbrio até na rotina do cotidiano. A cultura deve perpassar
o dado enobrecendo-o, e não o substituindo por algo novo. Dessa maneira, eleva
o indivíduo sem libertá-lo de sua subordinação efetiva. Ela fala da dignidade
“do” homem sem se preocupar com um estado efetivamente mais digno dos
homens. A beleza da cultura é sobretudo uma beleza interior e pode alcançar o
exterior apenas partindo do interior. Seu reino é essencialmente um reino da
alma (Seele).87

A liberdade do indivíduo foi construída de forma abstrata baseada em sua


independência como uma mônada, sob as leis cegas da produção de mercadoria e do
mercado, sendo que para Marcuse sua superação somente se daria com a produção de uma
solidariedade efetiva.

Na sociedade capitalista, o princípio da individualização reside no conflito de


interesses, onde esses indivíduos são “livres” sob o controle da sociedade burguesa e com a
ajuda da cultura são constituídos em personalidades fechadas em si mesmas, ou seja, o
indivíduo persiste como pessoa enquanto não perturba o processo de trabalho, deixando as
forças econômicas cuidar da integração social dos homens:

A libertação do indivíduo se efetivou numa sociedade erigida sobre a oposição


de interesses dos indivíduos, e não sobre a solidariedade. O indivíduo é
considerado uma mônada independente e autossuficiente. Sua relação com o
mundo (humano e extra-humano) é, ou abstrata e imediata – o indivíduo
constitui o mundo já em si mesmo (como um eu dotado de conhecimento,
sentidos e vontade) – ou abstrata e mediata – é determinada pelas leis cegas da
produção de mercadorias e do mercado. Em ambos os casos, o isolamento do
indivíduo enquanto mônada não seria superado. Sua superação representaria a

87
MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo:
Paz e Terra, 1997, p. 103, v. 1.
63

produção de uma solidariedade efetiva; ela pressupõe a superação da sociedade


individualista em uma forma superior de existência social. 88

Conclui que a eliminação da cultura afirmativa deve aparecer utópica, pois a cultura
se apresentou no pensamento ocidental apenas como cultura afirmativa, sendo que sua
eliminação parecerá como sendo eliminação da cultura como um todo, além do mais, a
superação dessa cultura significará a realização efetiva da individualidade.

Em Filosofia e teoria crítica, terceiro texto da coletânea, Marcuse aponta a


vinculação entre a teoria crítica da sociedade com o materialismo, apesar de a teoria da
sociedade ser um sistema econômico e não filosófico:

Segundo a convicção de seus fundadores, a teoria crítica da sociedade está


essencialmente vinculada ao materialismo. Isto não significa que ela se apresente
como um sistema filosófico contra outro sistema filosófico. Há, sobretudo, dois
momentos que vinculam o materialismo à correta teoria da sociedade: a
preocupação em torno da felicidade dos homens, e a convicção de que esta
felicidade seja conseguida somente com uma transformação das relações
materiais de existência. 89

Defende que caberia à teoria crítica resgatar as possibilidades atribuídas à razão no


século XIX, como a liberdade, igualdade e fraternidade, de forma que a felicidade dos
homens fosse efetivada com o “encontro entre o indivíduo e a humanidade como uma
totalidade, na efetivação da solidariedade”, uma vez que o indivíduo na sociedade burguesa
foi sacrificado, transformando-se em força de trabalho, fator de produção:

Aquela cultura do encontro entre indivíduo e humanidade é coberta agora por


uma facticidade em que o indivíduo foi sacrificado, tornando-se força de
trabalho, fator de produção; a herança da filosofia clássica do idealismo se
alterou e aquela cultura desapareceu ao se formalizar. Por isso a teoria crítica
precisa se referir ao passado, justamente na medida em que precisa se ocupar do
futuro, Nos conceitos da teoria crítica se conservam as possibilidades que outrora
a razão apontava. “A verdade do futuro se reflete na filosofia do passado”,
revelando situações que impelem para além da atual situação anacrônica. A
razão do idealismo burguês recorda à teoria crítica a necessidade de
transformação das relações sociais do trabalho social para construir uma nova
relação entre indivíduo e universo nos moldes daquela confluência entre
sensibilidade e ética.90

A razão, segundo a filosofia, seria o pressuposto da ideia de um ser autêntico, em


que as antíteses entre sujeito e objeto, essência e aparência e pensamento e ser fossem
reconciliadas.
88
MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo:
Paz e Terra, 1997, p. 110, v. 1,
89
MARCUSE, Herbert. Filosofia e Teoria Crítica. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra,
1997, p. 138, v. 1. .
90
MAAR, Wolfgang Leo. Introdução, Marcuse: Em busca de uma ética materialista. In MARCUSE, Herbert.
Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra,1997, p. 30, v. 1.
64

No entanto, a razão existente na sociedade burguesa é apenas uma aparência da


racionalidade em um mundo sem razão, sendo a liberdade também apenas a aparência do
ser livre e não a liberdade universal, desta forma apenas ideologicamente foi superado o
antagonismo entre liberdade e necessidade:

A filosofia idealista da razão superou, assim, o antagonismo dado entre liberdade


e necessidade, de modo que a liberdade jamais pode ir além da necessidade, mas
sim instalar-se modestamente na necessidade. Hegel disse uma vez que essa
superação (Aufhebung) da necessidade seria “a transfiguração da necessidade
sobre a liberdade”.91

As relações econômicas burguesa determinam o pensamento filosófico de tal modo


que o indivíduo somente pensa em si mesmo sob a abstração de sua completa humanidade,
de suas reais possibilidades:

Como ele, entretanto, não conta na realidade efetiva na concretização de suas


possibilidades e necessidades, mas sim – sob a abstração de sua individualidade
– apenas como portador de sua força de trabalho, de funções úteis no processo de
valorização do capital, ele aparece, desse modo, na filosofia apenas como sujeito
abstrato: sob a abstração de sua completa humanidade. Se ele procura obter a
ideia dos homens, precisa pensar em oposição à facticidade; se quer pensá-la em
sua pureza e universalidade filosófica, precisa abstraí-la do status existente.92

Assim, a filosofia da razão é um protesto idealista que não atinge as relações


materiais de existência. O domínio da sociedade burguesa sobre o indivíduo determina sua
consciência, como ser isolado, mas que não domina a ordem social que lhe é externa.

Essa abstratividade, esse radical subtrair-se do dado lhe abre, na sociedade


burguesa, porém, um caminho de busca tranquila da verdade, de apegar-se ao
conhecimento. O sujeito pensante deixa com o concreto, com a facticidade, sem
dúvida, também sua miserabilidade “de fora”. Com certeza, ele não pode saltar
para fora de si. Desde o início de seu pensamento, ele incorporou o isolamento
monádico do indivíduo burguês e pensa dentro daquele horizonte de não-
93
verdade, que lhe fecha a saída efetiva.

No quarto ensaio desse primeiro volume, Para a crítica do hedonismo, é colocada a


necessidade da uma realização objetiva da felicidade em contrapartida à concepção
subjetiva, privada, da sua realização.

As necessidades dos indivíduos e da sociedade não podem mais serem vistas como
separadas, é preciso romper com a reificação com que a cultura afirmativa tem até então
trabalhado, pois a ética da felicidade individual constitui também base para o controle

91
MARCUSE, Herbert. Filosofia e Teoria Crítica. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra,
1997, p. 140, v. 1.
92
Idem, ibidem, p. 152.
93
Idem, ibidem, p. 152.
65

social, uma vez que as satisfações das necessidades individuais são determinadas conforme
as relações de produção:

A crítica ao hedonismo é a crítica à efetivação individualizada da felicidade,


como realização de necessidades individuais que se convertem em ponto de
apoio do totalitarismo. Nesses termos, a questão moral resultante da
contraposição entre o individual e o universal – como conflito, tal como agora,
na perda da liberdade, ou como realização conjunta efetiva, de um encontro do
indivíduo com o universal nos termos de uma felicidade objetiva – ultrapassa o
nível de qualquer antropologia filosófica que pretenda emitir proposições sobre a
essência, para se tornar um registro de situação histórica, material, efetiva. As
necessidades individuais são socialmente formadas nos termos da imposição de
condições gerais; em outras palavras: nos termos de determinadas “relações de
produção material”, a satisfação dos interesses individuais, longe de significar a
expressão da liberdade, representa a expressão do contrário, da reafirmação do
geral social, da perpetuação dessas relações sociais de produção.94

As relações humanas têm por formação típica o contrato de trabalho, sendo,


portanto, relações de classes. Esse caráter contratual se estende para toda a vida social,
funcionando como relações reificadas, deixando de fora relações em que os indivíduos se
encontram como “pessoas”,

O hedonismo consequente não esconde o inconciliável, não pode ser usado como
justificação da opressão da liberdade e nem como sacrifício do indivíduo, tal como é usado
o conceito de razão universal:

O hedonismo reivindica a felicidade para todos os indivíduos igualmente; não hipostasia


nenhuma universalidade, em que, sem consideração pelos indivíduos, a felicidade fosse
conservada. Tem sentido falar em progresso da razão universal, que se impõe apesar da
infelicidade dos indivíduos, mas a felicidade universal separada da felicidade dos
indivíduos é uma frase sem sentido. 95

Onde a relação social é a relação entre homens possuidores de mercadorias e o


valor de cada mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho abstrato, a fruição em si, o
prazer, não tem valor. Um sentimento social de culpa é inculcado pela educação no
indivíduo que opta pelo prazer em detrimento a dedicar o seu tempo ao trabalho:

A construção do sentimento social de culpa é um empreendimento decisivo na


educação. A lei dominante do valor reflete-se na convicção continuamente
renovada de que cada um, inteiramente deixado a si mesmo, precisa ganhar a
vida numa luta de concorrência generalizada, mesmo que seja só para poder
continuar a ganhá-la, e que cada um receberá segundo a força de trabalho gasta.
Assim não se pode ganhar a felicidade. O fim do trabalho não é a felicidade, nem

94
MARCUSE, Herbert. Para a crítica do hedonismo. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e
Terra, 1997, p. 31-32, v. 1.
95
Idem, ibidem, p. 167.
66

sua recompensa a fruição, mas o lucro ou o salário, isto é, a possibilidade de


continuar trabalhando.96

A felicidade da humanidade como um todo depende da universalidade da liberdade,


uma vez que a liberdade individual efetiva só pode existir quando harmonizada à efetiva
liberdade universal. Para tanto, há a necessidade de se mudar as relações sociais de
produção vigentes, de forma que o sujeito se liberte de seu “casulo” e participe ativamente
da autoadministração do todo:

O sujeito já não está isolado no seu interesse contra os outros, sua vida pode ser
feliz para além da contingência do momento, porque suas condições de
existência já não são determinadas por um processo de trabalho que só cria
riqueza mediante a manutenção da miséria e da privação, mas mediante a
autoadministração racional do todo, na qual o sujeito participa ativamente. O
indivíduo pode comportar-se em relação aos outros como se fossem seus iguais e
em relação ao mundo como se fosse seu mundo, pois esse já não lhe será
estranho. A compreensão recíproca já não será dominada pela infelicidade, pois a
intelecção (Einsicht) e a paixão não entrarão mais em conflito com a forma
reificada das relações humanas.97

Marcuse relaciona a liberdade à felicidade, entendendo que uma sociedade pode se


tornar verdadeiramente livre quando a perpetuação da vida material passa a ser uma função
das capacidades e da felicidade de indivíduos associados, ou seja, somente uma nova
sociedade tecnológica de abundância e riqueza poderia permitir a completa realização dos
potenciais individuais e produzir um novo reino da liberdade e felicidade.

A felicidade, portanto, seria a realidade da liberdade como autodeterminação da


humanidade emancipada na sua luta comum com a natureza, e não em sua forma posta pela
sociedade capitalista em que as necessidades não são supridas verdadeiramente com o
direito reinante, onde há restrição à plenitude das possibilidades objetivas e subjetivas do
indivíduo, ou seja, a subjetividade construída pelo sistema capitalista não permite a plena
realização da felicidade.

Fazem parte dessa fase também dois textos do volume 2 de Cultura e Sociedade: o
ensaio Sobre os fundamentos filosóficos do conceito do trabalho da ciência econômica, já
comentado acima, e o texto O existencialismo, Comentários a O Ser e Nada, em que
Marcuse faz uma dura crítica às posições de Sartre, classificando-as como idealista e
burguesa, os demais textos deste volume pertencem a outras fases do autor.

96
MARCUSE, Herbert. Para a crítica do hedonismo. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e
Terra, 1997, p. 187, v. 1. .
97
Idem, ibidem, p. 193.
67

Em um período de negação da razão, Marcuse procura ainda mais intensamente


uma filosofia concreta e, por conta disso, passa a ter certa simpatia com o pensamento de
Sartre. No entanto, distancia-se deste quando se trata da questão da liberdade humana, do
sujeito livre, uma vez que Sartre, em O Ser e o Nada, afirmava ser a liberdade parte da
própria estrutura do Ser, nada podendo destruí-la:

Para Sartre – segundo a ótica de Marcuse – a saída era “desenvolver” esta nova
experiência histórica/existencial numa filosofia da existência humana concreta.
Marcuse segue a trilha de sua interpretação e nega a atração que sente pela
originalidade e pela força do pensamento de Sartre. Manteve, porém, uma
posição cautelosa em relação à concepção de “liberdade humana” que Sartre
desenvolvia, sobre a qual se apoia L’Être et le Néant. Sartre afirmava a
liberdade como parte da própria estrutura do ser do homem, nada podendo, desta
forma, destruí-la. 98

Tal posição Marcuse considerou semelhante à mensagem de consolação luterana a


respeito da liberdade do cristão, o que caracterizaria, desta forma, o radicalismo do
existencialismo como ilusório:

Na medida em que o existencialismo é uma doutrina filosófica, é uma doutrina


idealista: hipostasia as específicas condições históricas da existência humana em
características metafísicas e ontológicas. O existencialismo torna-se, assim, uma
parte da ideologia que ataca, e seu radicalismo é ilusório. O Ser e o Nada (L’Être
et le Néant), de Sartre, fundamento filosófico do existencialismo, é um tratado
ontológico-fenomenológico sobre a liberdade humana, e como tal pode aparecer
durante a ocupação alemã em 1943. A liberdade essencial do homem, como
Sartre a vê, permanece a mesma antes, durante e depois da escravidão totalitária
do homem. Pois a liberdade é, para ele, a estrutura mesma do ser humano e não
pode ser aniquilada mesmo sob as circunstâncias mais adversas: o homem é livre
mesmo nas mãos do carrasco. Esta não é a consoladora mensagem de Lutero da
liberdade cristã? O livro de Sartre refere-se em alto grau à filosofia do idealismo
alemão, na qual o protestantismo de Lutero se consolidou transcendentalmente. 99

Para Marcuse, Sartre entende a liberdade como uma decisão individual, um plano
estritamente individual e um resultado do próprio “fazer” do “para-si”, subsumindo os
diferentes sujeitos históricos, como o empresário, o trabalhador, o intelectual, o servo o
senhor dentro de um mesmo parâmetro, reduzindo esse “para-si” ao denominador abstrato
de uma existência universal, contrariando a tese de que a “existência cria a essência”.

No entanto, em um post-scriptum acrescido em 1965, já sob o impacto de Crítica


da Razão Dialética, Marcuse aponta que, em duas décadas, os escritos e as posições de
Sartre sofreram uma total conversão, de modo que sua ontologia pura e fenomenológica
recuou ante a penetração da história e a concepção existencialista fundamental foi salva

98
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse, uma trajetória. Londrina: UEL, 1999, p. 82.
99
MARCUSE, Herbert. O existencialismo, comentários a O Ser e o Nada. In ______. Cultura e Sociedade.
São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 54, v.1.
68

por uma consciência que declara guerra à realidade, atendendo a uma “moral da
libertação”.

Foi dito, numa nota a O Ser e o Nada, que a moral da libertação e da redenção
era possível, mas exigiria uma “conversão radical”. Os escritos e as posições de
Sartre nas duas últimas décadas são uma tal conversão. Ontologia pura e
fenomenologia recuam ante a efetiva invasão da história nos conceitos de Sartre,
da discussão com o marxismo e da aceitação da dialética. A filosofia torna-se
política porque nenhum conceito filosófico pode mais ser pensado fora nem
desenvolvido sem compreender dentro de si mesmo a inumanidade que é
organizada hoje pelos governantes e aceita pelos governados. Nessa filosofia
politizada, a concepção existencialista fundamental é salva pela consciência que
declara guerra a essa realidade (Realität) – no conhecimento de que a realidade
permanece vitoriosa.100

2.2.2. Sujeito em Hegel reinterpretado

Em Razão e Revolução, livro publicado em 1941, Marcuse busca reexaminar a


significação teórica e política da obra de Hegel, procurando demonstrar que seus conceitos
básicos não poderiam fornecer nenhum tipo de respaldo, quer à teoria fascista, quer às suas
práticas autoritárias, exercidas em boa parte do mundo, uma vez que:

Para ele, qualquer apropriação interpretativa da obra de Hegel, por qualquer


sistema totalitário e antidemocrático – que incluía também os ideólogos
stalinistas, prenunciando reflexões posteriores a serem desenvolvidas no
Marxismo Soviético – era falsa e ideologicamente distorcida. Para Marcuse, os
princípios básicos de Hegel eram hostis, por excelência, a todas as tendências
fascistas e antidemocráticas. “O núcleo da filosofia de Hegel é uma estrutura
formada por conceitos – liberdade, sujeito, espírito, conceito – derivados da ideia
de razão” (1978, p.19). A razão, então, é vista como tendo o poder de governar a
realidade. Isto justifica o título que Marcuse deu a seu livro: Razão e Revolução.
Da razão vista como “essencialmente como uma força histórica”, deriva a
possibilidade de ser livre porque a razão “desemboca na liberdade e a liberdade é
a existência do sujeito”. O sistema de Hegel era assim, para Marcuse, a última
grande tentativa do idealismo de “fazer do pensamento o refúgio da razão e da
liberdade”.101

O sujeito, na leitura de Hegel por Marcuse, é concebido como substância, em uma


concepção de realidade como um processo no qual todo o ser é a unificação de forças
contraditórias:

A ideia de “substância como sujeito” concebe a realidade como um processo


dentro do qual todo o ser é a unificação de forças contraditórias. “Sujeito”
designa não somente o eu ou a consciência epistemológica, mas um modo de
existência, a saber, aquela de uma unidade que se autodesenvolve em um

100
MARCUSE, Herbert. O existencialismo, comentários a O Ser e o Nada. In ______. Cultura e Sociedade.
São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 82-83, v. 1.
101
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse, uma trajetória. Londrina: UEL, 1999, p. 71.
69

processo contraditório. Tudo o que existe só é “real” na medida em que atua


como algo que é “o mesmo” através de todas as relações contraditórias que
constituem sua existência; deve, pois, ser considerado como uma espécie de
“sujeito” que se autodesenvolve pela revelação de suas intrínsecas
contradições.102

A possibilidade de ser livre deriva da razão, uma força histórica, sendo a existência
do sujeito vinculado à liberdade. O sujeito, conforme exposto no processo dialético de
Hegel, é elaborado com o intuito de resgatar as premissas iluministas de liberdade e
igualdade. Quem opera o processo dialético é o Ser como sujeito que realiza seu próprio
desenvolvimento, racionalizando suas próprias potencialidades até o estado de ser, o
verdadeiro sujeito:

Tal ‘realização’ é um processo do verdadeiro sujeito, e só é atingida pela


existência do homem. Só o homem tem o poder de autorrealização, o poder de
ser um sujeito que se autodetermina em todos os processos do vir-a-ser, pois só
ele tem entendimento do que sejam potencialidades, e conhecimento de
‘conceitos’. Sua própria existência é o processo de atualização de suas
potencialidades, de adaptação da sua vida às ideias da razão.103

A liberdade, como a mais importante categoria da razão, é vinculada com a


possibilidade de o homem desenvolver suas potencialidades:

Encontramos aqui a mais importante categoria da razão, a saber, a liberdade. A


razão pressupõe a liberdade, o poder de agir de acordo com o conhecimento da
verdade, o poder de ajustar a realidades às potencialidades. A realização destes
fins pertence apenas ao sujeito que é o senhor de seu próprio desenvolvimento e
que compreende suas próprias potencialidades e das coisas a sua volta. A
liberdade, em troca, pressupõe a razão, pois só o conhecimento compreensivo
capacita o sujeito a conquistar e a exercer esse poder. A pedra não o possui; nem
a planta. Falta a ambas o conhecimento compreensivo e, portanto, a
subjetividade real. ‘O homem, porém, sabe que ele é, e só por isso é real. Razão
e liberdade nada são sem esse conhecimento’. 104

O homem é parte da natureza, sendo, desta forma, limitado às condições


particulares: nasceu neste ou naquele lugar, pertence a este ou aquele partido, etc. Contudo,
o homem é essencialmente um sujeito pensante, o que constitui a universalidade, que
conduz os homens para além das determinações particulares que lhe são próprias e torna a
multiplicidade de coisas exteriores o meio de desenvolvimento do sujeito, sendo esta dupla
universidade, subjetiva e objetiva, caracterizadora do mundo histórico dentro do qual o
homem vive.

102
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 21.
103
Idem, ibidem, p. 22.
104
Idem, ibidem, p. 22.
70

Para Hegel, a essência do universal é o espírito e a essência do Espírito é a


liberdade, nada mais sendo a história do mundo que o progresso da consciência da
liberdade:

O verdadeiro sujeito da história é o universal, e não o indivíduo; o conteúdo


verdadeiro é a realização da autoconsciência da liberdade, e não os interesses,
necessidades e ações do indivíduo. “A história do mundo nada mais é que o
progresso da consciência da liberdade”. Contudo, “um primeiro olhar para a
história nos convence de que as ações dos homens procedem de suas
necessidades, paixões, características e talentos; e nos dá a certeza de que tais
necessidades, paixões e interesses são a única fonte de ação – os agentes
eficientes neste palco de atividade”. 105

A dialética entre o particular e o universal ocorre quando os indivíduos, ao seguir


seus próprios interesses, promovem o progresso do espírito, ou seja, realizam uma tarefa
universal que favorece a liberdade.

Desta forma, a história referente ao sujeito pensante é universal, pois pertence ao


reino do espírito. A essência do universal é o espírito, a essência do espírito é a liberdade.

Em Hegel, mundo racional implica que:

1) O mundo possa ser compreendido e transformado pela ação intencional do


homem;
2) As aptidões se desenvolveram ao longo da história e ele pode empregá-las de
modos diversos visando à satisfação máxima dos seus desejos;
3) A razão implica universalidade;
4) O pensamento não só unifica a diversidade do mundo natural, mas também a
do mundo sócio histórico. A ideia da razão implica a liberdade de agir de
acordo com a razão;
5) O racionalismo moderno, em resultado, tendia a construir a vida individual e a
vida social segundo o modelo da natureza, por leis objetivas.

As leis só funcionam como leis na medida em que são adotadas pela vontade do
sujeito e influenciam seus atos, uma vez que a lei universal da história não é apenas
progresso em direção à liberdade, mas progresso na autoconsciência da liberdade, cada
obstáculo no caminho da liberdade é superável pelos esforços de uma humanidade
autoconsciente:
105
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 211.
71

A prática autoconsciente se torna parte do conteúdo mesmo das leis, de modo


que estas só funcionam como leis na medida em que são adotadas pela vontade
do sujeito e influenciam seus atos. Segundo a formulação de Hegel, a lei
universal da história não é, simplesmente, progresso em direção à liberdade, mas
progresso “na autoconsciência da liberdade”. Um conjunto de tendências
históricas só se torna uma lei se o homem as compreender e sobre elas atuar. Em
outras palavras, as leis históricas se criam e se realizam unicamente pela prática
consciente do homem, de modo que se existe, por exemplo, uma lei que
determina o progresso em direção a formas cada vez mais altas de liberdade, tal
lei deixa de cumprir-se se o homem não a consegue reconhecer e executar.106

A filosofia de Hegel se apoia numa relação sujeito-objeto específica. O objeto


aparece primeiro como um objeto de desejo, algo a ser trabalhado e conquistado para a
satisfação de uma necessidade humana – o processo que leva à superação deste momento
da relação entre consciência e o mundo objetivo é o processo social.

No entanto, o homem é inteiramente esmagado pelas coisas que ele mesmo


produziu – a realização da razão implica a superação deste alheamento, o estabelecimento
de uma condição na qual o sujeito conheça e possua a si mesmo em todos os objetos.

Hegel coloca esta superação no Estado, as contradições são superadas na esfera do


pensamento ou no espírito absoluto, de forma que um fato que não pudesse ser incluído
neste sistema, no processo da razão, destrói a verdade do todo:

No curso de apropriação o objeto se manifesta como o “ser outro” do homem. O


homem não está “consigo” quando lida com os objetos do seu desejo e trabalho,
mas depende de um poder externo. Ele tem de enfrentar a natureza, o acaso, e os
interesses de outros proprietários. O processo que leva à superação deste
momento da relação entre a consciência e o mundo objetivo é um processo
social. Tal processo, de início, conduz ao completo “alheamento” da consciência;
o homem é inteiramente esmagado pelas coisas que ele mesmo produziu. A
realização da razão, por conseguinte, implica a superação deste alheamento, o
estabelecimento de uma condição na qual o sujeito conheça e possua a si mesmo
em todos seus objetos.107

Assim como Hegel, Ludwig Andreas Feuerbach entende que a humanidade atingiu
a maturidade e que a Terra estaria pronta para ser transformada pela prática coletiva e
consciente dos homens, em um domínio de razão e liberdade. Feuerbach propõe uma
filosofia não idealista, que vise à emancipação concreta dos homens; para isso a nova
filosofia deveria negar a filosofia hegeliana para realizá-la.

Feuerbach concorda com Hegel em que a humanidade atingiu a maturidade. A


Terra está pronta para ser transformada, pela prática consciente e coletiva dos
homens, em um domínio da razão e liberdade. Por isso ele esboça uma “Filosofia

106
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 213.
107
Idem, ibidem, p. 240-241.
72

do Futuro”, por ele considerada a efetivação lógica e histórica da filosofia de


Hegel. “A nova filosofia é a realização da filosofia hegeliana, e mais, de toda a
filosofia anterior”. A negação da religião começara com a transformação
hegeliana da teologia em lógica: e se completa com a transformação, feita por
Feuerbach, da lógica em antropologia. A antropologia, para Feuerbach, é uma
filosofia que visa à emancipação concreta do homem, para tanto evidenciando as
condições e qualidades de uma existência humana efetivamente livre. O grande
erro de Hegel foi o de se amarrar ao idealismo, num tempo em que estava à mão
uma solução materialista para o problema. Então, a nova filosofia só realizaria a
filosofia hegeliana como a sua negação.108

Feuerbach procura uma base material para interpretação da liberdade, a filosofia


deve começar com o ser concreto e não com o ser abstrato, uma vez que o pensamento
nasce do ser, mas o ser não nasce do pensamento:

A filosofia deve começar com o ser, não com o ser-como-tal abstrato, de Hegel,
mas com o ser em concreto, isto é, com a natureza. “A essência do Ser qua Ser é
a essência da natureza”. A nova filosofia, entretanto, não deve ser uma filosofia
da natureza no sentido tradicional. A natureza só se torna relevante enquanto
condiciona a existência humana; o homem deve ser o conteúdo e o interesse
propriamente dito. A libertação do homem requer a libertação da natureza, e a
libertação da natureza, a libertação da existência natural do homem.109

No entanto, o materialismo de Feuerbach baseia-se nas sensações, desprezando o


papel do processo do trabalho, percebendo, desta forma, somente os indivíduos isolados na
sociedade burguesa. Para Marcuse, Marx supera Feuerbach neste ponto, uma vez que este
que dá razão a Hegel, que nega que a certeza sensível fosse o critério último da verdade:

A ideia de Hegel era que o trabalho trouxesse a certeza sensível e a natureza para
dentro do processo histórico. Feuerbach desprezava inteiramente esta função
material do trabalho, porque concebia a existência do homem em termos de
sensação. “Não satisfeito com o pensamento abstrato, Feuerbach recorre à
percepção-sensível (Anschauung); mas ele não compreende a sensibilidade como
atividade prática, humano-sensível”.110

Para Marx, a realidade da razão, do direito e da liberdade se transforma na realidade


da mentira, da injustiça e da servidão. A existência do proletariado dá testemunho vivo de
que a verdade não foi realizada.

A realização da liberdade e da razão exige uma alteração total dessa situação. A


alienação do trabalho cria uma sociedade dividida em classes que se opõem. Não é
possível um modo de produção social que utilize uma divisão de trabalho sem levar em
conta as aptidões e necessidades dos indivíduos quando lhes atribuem funções.

108
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 247-248.
109
Idem, ibidem, p. 249.
110
Idem, ibidem, p. 251.
73

A existência de classes contradiz a liberdade, ou, antes, transforma-a numa ideia


abstrata. A classe contradiz o indivíduo - as condições de trabalho modelam os indivíduos
em grupos ou classes, e são condições de classe que convergem para divisão fundamental
entre capital e trabalho assalariado:

A apropriação é, portanto, determinada pelas pessoas que se apropriam. A


alienação do trabalho cria uma sociedade dividida em classes que se opõem.
Qualquer esquema social que leve a cabo uma divisão de trabalho, sem levar em
conta as aptidões e necessidades dos indivíduos ao lhes assinalar as funções
tende a acorrentar a atividade do indivíduo a forças econômicas exteriores. O
modo de produção social (o modo como é mantida a vida do todo) circunscreve a
vida do indivíduo e atrela toda a sua existência a relações prescritas pela
economia, sem considerar suas aptidões e carências. 111

A vida do indivíduo é atrelada às forças econômicas exteriores, iludido por uma


igualdade imposta pela forma mercadoria, ele não escolhe o seu trabalho, este é imposto
por sua posição no processo social de produção:

As mercadorias distribuídas ao indivíduo para a satisfação das suas necessidades


são tidas como equivalentes ao seu trabalho. A igualdade parece estar garantida,
pelo menos a este respeito. O indivíduo, porém, não pode escolher o seu
trabalho. Este lhe foi prescrito por sua posição no processo social de produção,
posição que, por sua vez, lhe foi imposta pela distribuição dominante de poder e
riqueza. 112

O interesse último do trabalhador, portanto, seria a abolição do trabalho (acabar


com a sujeição à divisão do trabalho). A universalidade do proletário é uma universalidade
negativa, indicando que a alienação do trabalho se intensificou ao ponto da total destruição
do proletário.

A abolição da organização negativa do trabalho, do trabalho alienado, é, ao mesmo


tempo, a abolição do proletário. Uma associação de indivíduos livres, para Marx, é uma
sociedade na qual o processo material de produção não mais determina a configuração total
de vida humana, na qual predomina o princípio de que a sociedade deve dar a cada um
conforme suas necessidades:

Uma “associação de indivíduos livres”, para Marx, é uma sociedade na qual o


processo material de produção não mais determina a configuração total da vida
humana. A ideia de Marx de uma sociedade racional implica a existência de uma
ordem em que o princípio da organização social não seja a universalidade do
trabalho mas a satisfação universal de todas as potencialidades individuais que
constituem o princípio da organização social. Ele contempla uma sociedade que
dá a cada um, não segundo seu trabalho, mas segundo suas necessidades. A

111
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 265.
112
Idem, ibidem, p. 265.
74

humanidade só se torna livre quando a perpetuação material da vida é função das


aptidões e da felicidade de indivíduos associados.113

A totalidade da existência humana é determinada pelo processo de trabalho. A


exploração se dá pelo contrato de trabalho que condensa a liberdade, igualdade e justiça da
sociedade civil como premissas para a essa exploração, ou seja, a liberdade produz e
eterniza seu próprio oposto, o que faz com que a sociedade capitalista seja uma união de
contradições:

A sociedade capitalista é uma união de contradições. Ela atinge a liberdade pela


exploração, a riqueza pela pobreza, o crescimento da produção pela restrição do
consumo. A estrutura verdadeira do capitalismo é uma estrutura dialética: toda a
forma e instituição do progresso econômico cria sua negação determinada, e a
crise é a forma extrema pela qual as contradições se expressam. A estrutura
verdadeira do capitalismo é uma estrutura dialética: toda a forma e instituição do
progresso econômico cria sua negação determinada, e a crise é a forma extrema
pela qual as contradições se expressam. 114

Há a necessidade de se negar o caráter negativo da sociedade, isto é a negação da


negação, que é a libertação das possibilidades de um dado estado de coisas. Tal liberdade,
fruto da negação, somente pode ser liberada por uma ação autônoma dos homens.

O homem tornando-se sujeito consciente do seu desenvolvimento superaria a pré-


história, sendo que tal movimento é dialético, uma vez que as leis dialéticas são o
conhecimento desenvolvido pelas leis naturais da sociedade, sendo um passo na direção de
sua anulação. A necessidade é o conceito que liga a história da sociedade de classes com a
dialética marxista:

O conceito que liga definitivamente a dialética de Marx à história da sociedade


de classes é o conceito de necessidade. As leis da dialética são leis necessárias;
as várias formas de sociedades de classes necessariamente morrem por força de
suas contradições internas. As leis do capitalismo são leis necessárias; as várias
formas de sociedades de classes necessariamente morrem por força de suas
contradições internas. Esta necessidade, porém, não se aplica à transformação
positiva da sociedade capitalista.115

Desta forma, a efetiva realização da liberdade e da felicidade torna necessária uma


ordem na qual os indivíduos em conjunto determinarão a organização de suas vidas. Há a
necessidade de certo nível de cultura intelectual e material em uma escala internacional e
uma aguda luta de classes, condições estas que somente se tornam revolucionárias se
dirigidas por uma atividade consciente que vise a meta socialista.

113
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 269.
114
Idem, ibidem, p. 284.
115
Idem, ibidem, p. 289.
75

A revolução depende da totalidade das condições objetivas; ela exige que tenha
sido alcançado certo nível de cultura intelectual e material numa escala internacional, que
haja aguda luta de classes. Estas condições tornam-se revolucionárias, porém, somente se
apreendidas e dirigidas por uma atividade consciente que vise à meta socialista.

Não há mínima necessidade natural ou inevitabilidade automática que assegure a


transição do capitalismo ao socialismo:

A revolução exige o amadurecimento de muitas forças, mas a maior delas é a


força subjetiva, isto é, a própria classe revolucionária. A realização da liberdade
e da razão exige a racionalidade livre de quem a perfaz. A teoria de Marx é, pois,
incompatível com o determinismo fetichístico. O materialismo histórico envolve,
é verdade, o princípio determinístico pelo qual a consciência é condicionada pela
existência social. Procuramos mostrar, porém, que a dependência necessária
enunciada por este princípio se aplica à vida “pré-histórica”, isto é, à vida da
sociedade de classes. As relações de produção, que restringem e deformam as
potencialidades humanas, determinam inevitavelmente a consciência do homem,
precisamente porque a sociedade não é um sujeito livre e consciente.116

Desta forma, enquanto o homem não for capaz de dominar as relações de produção
vigentes e usá-las para suprir suas necessidades, sua consciência continuará dominada por
estas relações de forma que se torna necessariamente ideológica:

Enquanto o homem for incapaz de dominar estas relações, e de usá-las para a satisfação das
necessidades e desejos do todo, elas tomarão a forma de uma entidade objetiva,
independente. A consciência, presa e dominada por essas relações torna-se,
necessariamente, ideológica.117

O comunismo seria a apropriação real da essência do homem, pelo homem e para o


homem, sendo, portanto, o retorno consciente do homem a si mesmo como um ser social,
como um ser humano.

2.3. Teoria crítica da sociedade

Nesta fase, Marcuse elabora estudos que servirão de guia para a sua crítica à
sociedade no livro Eros e a Civilização, uma interpretação filosófica do pensamento de
Freud, baseado nas análises de Freud.

Posteriormente analisa a lógica interna da sociedade soviética em Marxismo


soviético, denunciando-a como um projeto totalitário, passando à crítica da sociedade

116
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 290.
117
Idem, ibidem, p. 291.
76

capitalista em One-Dimensional Man, traduzido para o português como Ideologia da


Sociedade Industrial, no qual a subjetividade é explicada sob à ótica da razão instrumental,
com a dominação garantida pela internalização desta razão na psique dos “sujeitos”,
passando por Contrarrevolução e revolta e finalizando em análises que apontam a arte
como tendo um papel “subversivo”, como um caminho privilegiado para desafiar o
monopólio da realidade estabelecida, como a obra A dimensão estética (1977).

Utilizaremos como referência para analisarmos este período as seguintes obras:


Eros e a Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial , livro este que complementamos
com Algumas implicações sociais da tecnologia, artigo que inicia suas críticas à sociedade,
do livro de coletâneas: Tecnologia, Guerra e Fascismo, de 1941.

2.3.1. Subjetividade e psicanálise

A partir do pós-guerra, Marcuse preocupa-se com uma teoria do sujeito (um novo
sujeito histórico, pois o velho sujeito revolucionário, a classe trabalhadora, estava
integrado à sociedade de consumo), desta forma procura o auxílio da psicanálise, com base
nos estudos de Freud, para compreender o contexto da alienação ocorrida, o motivo desta
“servidão voluntária”, quais são os obstáculos psicológicos às mudanças sociais:

Entretanto, Marcuse só começou a ler Freud seriamente depois das implicações


perturbadoras da Guerra Civil Espanhola e dos expurgos de Moscou. A
insatisfação crescente com o marxismo, até mesmo em sua forma hegelianizada,
levou-o a examinar os obstáculos psicológicos às mudanças sociais
significativas, um caminho que já havia sido trilhado por Horkheimer e Adorno.
No caso dos dois últimos, isso reforçou o pessimismo e ajudou a fomentar um
recuo na militância política. No caso de Marcuse, isso levou a uma reafirmação
da dimensão utópica do radicalismo. 118

Marcuse baseou-se no Freud da metapsicologia, termo empregado por Freud em


seus estudos posteriores à da sua teoria neurofisiológica, em que analisa as relações entre o
inconsciente e a consciência, considerando as dimensões tópica, dinâmica e econômica do
psiquismo, que se mostram nessas relações.

118
JAY, Martin. A imaginação dialética. História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais,
1923-1950. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 156.
77

a) Freud

Inicialmente, Freud explica o inconsciente em termos neurofisiológicos,


distinguindo três classes de neurônios: neurônios agentes da percepção que permitem a
passagem dos impulsos excitatórios; neurônios agentes da memória, permanentemente
afetados pelo que passe por eles; e, os neurônios necessários para que as memórias retidas,
ou as percepções impressas, tornem-se conscientes.

Posteriormente, substituiu a teoria neurofisiológica por uma forma mais acabada


denominada de metapsicologia:

Essa teoria neurofisiológica do inconsciente foi posteriormente substituída por


Freud. Em sua forma mais acabada (denominada metapsicologia), a teoria
psicanalítica passou a estudar o inconsciente sobre quatro pontos de vista: o
tópico, o estrutural, o econômico e o dinâmico.119

Nesta fase, ataca os “revisionistas”, destacando a impossibilidade da constituição de


uma personalidade integrada, de um individualismo autêntico, na sociedade
contemporânea.

Freud começou suas análises sobre a subjetividade a partir do estudo das neuroses e
dos sintomas – foi em resposta ao sintoma histérico que as suas investigações o levaram a
descobrir o inconsciente, foi ouvindo o discurso do neurótico que Freud pôde descobrir que
o sintoma tem um sentido inconsciente, que diz algo mesmo que o sujeito nada saiba disso:

Devemos reconhecer, entretanto, que esses sintomas de neurose obsessiva, essas


ideias e impulsos que emergem não se sabe de onde, que provam ser resistentes a
toda influência de uma mente sob outros aspectos normal, que dão ao paciente a
impressão de se tratar de convidados todo-poderosos de um outro mundo, seres
imortais imiscuindo-se no turbilhão da vida mortal - esses sintomas oferecem a
mais clara indicação de que existe uma região da mente, por completo isolada do
resto. Conduzem, por uma via que não se pode perder, a uma convicção da
existência do inconsciente na mente; e é precisamente por esta razão que a
psiquiatria clínica, que está familiarizada apenas com uma psicologia da
consciência, não consegue abordar esses sintomas de nenhuma outra forma que
não seja qualificando-os como sinais de um tipo especial de degeneração. Ideias
obsessivas e impulsos obsessivos naturalmente não são, em si mesmos,
inconscientes, algo mais do que a realização de atos obsessivos escapa à
percepção consciente. Não se teriam tornado sintomas, se não tivessem forçado o
caminho até a consciência. Mas seus motivos predeterminantes, que inferimos,
pela interpretação, são inconscientes, pelo menos enquanto não os tivermos
tornado conscientes para o paciente, através do trabalho da análise. 120

119
FREUD, Sigmund. Vida e Obra. In Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. x.
120
FREUD, Sigmund. Conferência XVIII, Fixação em traumas – o inconsciente. Conferências introdutórias
sobre psicanálise, Volume XVI. Rio de Janeiro: Imago Editora, p. 328-329.
78

A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não


aconteceu. O sintoma emerge a partir de processos interrompidos que de alguma forma
foram perturbados tornando-se recalcados, inconscientes. O sintoma foi concebido
inicialmente como a expressão do recalcado, sendo o trauma a base real do sintoma e o real
derradeiro é a castração.

Já sabemos que os sintomas neuróticos são resultado de um conflito, e que este


surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido. As duas forças que
entraram em luta encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por
assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado. É por essa
razão, também, que o sintoma é tão resistente: é apoiado por ambas as partes em
luta. Também sabemos que um dos componentes do conflito é a libido
insatisfeita, que foi repelida pela realidade e agora deve procurar outras vias para
satisfazer-se. Se a realidade se mantiver intransigente, ainda que a libido esteja
pronta a assumir um outro objeto em lugar daquele que lhe foi recusado, então a
mesma libido, finalmente, será compelida a tomar o caminho da regressão e a
tentar encontrar satisfação, seja em uma das organizações que já havia deixado
para trás, seja em um dos objetos que havia anteriormente abandonado. A libido
é induzida a tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou após si
nesses pontos do seu desenvolvimento. O caminho que leva à perversão se
destaca nitidamente daquele que leva à neurose. Se essas regressões não suscitam
objeção por parte do ego, não surgirá neurose alguma; e a libido chegará a
alguma satisfação real, embora não mais uma satisfação normal. 121

A partir dos dados da experiência clínica, Freud concluiu que o trauma é, de forma
geral, suposto ou inferido, abandonando, assim, a teoria do trauma, criando a teoria da
fantasia, em que o trauma é tido como parte da realidade psíquica do sujeito e fundamento
da fantasia.

O sintoma, então, passa a ser definido como a realização de uma fantasia de


conteúdo sexual, ou seja, representa, na totalidade ou em parte, a atividade sexual do
sujeito provinda das fontes das pulsões parciais, normais ou perversas.

Todos os objetos e tendências que a libido abandonou, ainda não foram


abandonados em todos os sentidos. Tais objetos e tendências, ou seus derivados,
ainda são mantidos, com alguma intensidade, nas fantasias. Assim, a libido
necessita apenas retirar-se para as fantasias, a fim de encontrar aberto o caminho
que conduz a todas as fixações reprimidas. Essas fantasias gozaram de
determinado grau de tolerância: não entraram em conflito com o ego, por mais
fortes que possam ter sido os contrastes entre ele, desde que seja observada uma
certa condição. Essa condição é de natureza quantitativa e é agora perturbada
pelo deslocamento da libido para trás, em direção às fantasias. 122

Em Além do princípio do prazer (1920), Freud avança em suas concepções acerca


do funcionamento do aparelho psíquico apontando para uma pulsão de destruição que age

121
FREUD, Sigmund. Conferência XXIII, Os caminhos das formações dos sintomas. Conferências
introdutórias sobre psicanálise, Volume XVI. Rio de Janeiro: Imago Editora, p. 419-420.
122
Idem, ibidem, p. 435-436.
79

no indivíduo, além das que estariam guardando a harmonia - princípio de realidade e


princípio do prazer.

O inanimado existe antes do vivo, sendo que a meta de toda vida é a morte, uma
vez que a vida procura o repouso, fruto de seu estado anterior, a ausência de conflitos –
ocorre uma luta, nasce a primeira pulsão, a de se retornar ao inanimado.

Ou seja, há uma tendência inercial da vida psíquica, de o aparelho mental manter o


mínimo de excitação possível:

Os fatos que nos fizeram acreditar na dominância do princípio do prazer na vida


mental encontram também expressão na hipótese de que o aparelho mental se
esforça por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto
possível, ou, pelo menos, por mantê-lo constante. Esta última hipótese constitui
apenas outra maneira de enunciar o princípio de prazer, porque, se o trabalho do
aparelho mental se dirige no sentido de manter baixa a quantidade de excitação,
então qualquer coisa que seja calculada para aumentar essa quantidade esta
destinada a ser sentida como adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja,
como desagradável. 123

O sintoma seria então uma solução que visa restabelecer uma suposta homeostase
que teria sido quebrada pelo conflito psíquico, e chega a cumprir sua função, no sentido de
resolver o conflito, ao mesmo tempo em que tem como produto uma satisfação que
perturba.

Assim, o sintoma é o trabalho de todo sujeito para dar conta do real, ao mesmo
tempo em que esse sujeito é determinado pela incidência da pulsão, tornando-se, em última
instância, um efeito desse real.

Ora, sabemos que a descoberta da raiz pulsional do sintoma levou Freud a


admitir que a formação sintomática é uma solução de compromisso, o produto de
uma transação entre a satisfação pulsional e os caminhos que o recalque permite
e tolera. Por tais motivos o sintoma é uma formação cuidadosamente elaborada
para dar curso – com um espantoso realismo e um pragmatismo acachapante – a
uma exigência de satisfação. Um traço que, além do mais, vem demonstrar que a
neurose é uma estratégia. A estratégia do que é materialmente possível quanto à
busca da satisfação e à realização do gozo.124

Em sentido estrito, Freud praticamente não se referiu à subjetividade utilizando-se


do termo “sujeito”, exceção feita quando aborda a questão da pulsão, do movimento
pulsional:

123
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2003, p. 11.
124
CABAS, Antonio Godino. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan, da questão do sujeito ao sujeito em
questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 61.
80

Ao analisar os avatares da pulsão, Freud toma como exemplo as vicissitudes da


satisfação no masoquismo. E aí constata que, a partir do momento em que o
masoquista se faz alva da pulsão, o imperativo da satisfação pulsional exige a
presença de algo ou alguém que encarne o papel de agente do tormento. Uma
evidência diante do qual Freud se vê obrigado a concluir que o movimento
pulsional necessita instituir algo ou alguém (digamos: lá fora) que assuma o ônus
da função subjetiva.125

Quando se diz que há novas formas de subjetividade, um “novo sujeito”, não se


pode referir a esse “novo sujeito” como causa de “novos sintomas”, até por que um sujeito
não é causa, quando muito ele é causado. As subjetividades têm conteúdos próprios, de
forma que é possível situá-las em épocas bem delimitadas, variando conforme a cultura
predominante.

As teorias que definem as instâncias do aparelho psíquico: a teoria das pulsões, o


recalcamento e a interpretação dos sonhos, entre outros processos, foram denominadas por
Freud pelo termo metapsicologia (termo criado por Freud em 1896 numa carta a seu amigo
Fliess), em que distingue as concepções teóricas psicanalíticas das perspectivas da
psicologia clássica:

Termo criado por Freud em 1896 numa carta a seu amigo Fliess, a
metapsicologia distingue as concepções teóricas psicanalíticas das perspectivas
da psicologia clássica. Os modelos propostos na metapsicologia estão para além
do observável e referem-se a um conjunto de teorias que define as instâncias do
aparelho psíquico: a teoria das pulsões, o recalcamento e a interpretação dos
sonhos, entre outros processos. Divide-se nas perspectivas “dinâmica”, relativa
ao conflito psíquico e à composição das forças de origem pulsional; “tópica”,
relativa à diferenciação da psique em sistemas ou instâncias com diferentes
funções; “econômica”, relativa à distribuição e circulação da energia psíquica ou
pulsional. Os principais textos em que Freud trabalha numa perspectiva
metapsicológica são: o Projeto de uma Psicologia (1895); A Interpretação dos
Sonhos (1900), em especial o Capítulo VII; Formulações sobre os Dois Tipos do
Acontecer Psíquico (1911); À Guisa de Introdução ao Narcisismo (1914); O
Inconsciente (1915); Para Além do Princípio do Prazer (1920); O Eu e o Isso
126
(1923) e Esboço da Psicanálise (1938), entre outros.

Há uma articulação teórica entre a metapsicologia freudiana e seus textos sociais,


em especial no que se refere à relação entre a pulsão de morte e O mal-estar na civilização
(1930), obra na qual Freud demonstra seu pessimismo para com o futuro da civilização.

Freud elaborou seis ensaios que abordam temas ligados à constituição da cultura e
da sociedade. São eles: A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno, de 1908, Totem

125
CABAS, Antonio Godino. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan, da questão do sujeito ao sujeito em
questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 22.
126
RAFFAELLI, Rafael. (2007). Nota sobre a Metapsicologia Freudiana. Artigo da Revista Internacional
Interdisciplinar. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/download/.../10848>
81

e tabu, de 1913, Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, O futuro de uma ilusão,
de 1927, O mal-estar na civilização/cultura, de 1930, e Moisés e o monoteísmo, de 1939.

Freud destaca três fontes de sofrimento que ameaçam o ser humano: o poder
devastador e implacável das forças da natureza, a ameaça de deterioração e decadência que
vem de nosso próprio corpo, e o sofrimento advindo das relações entre os humanos
(possivelmente o mais penoso de todos):

Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou muita coisa que
já não fosse conhecida. E se lhe dermos prosseguimento, perguntando por que é
tão difícil para os homens serem felizes, a perspectiva de aprender algo novo
também não parece grande. Já demos a resposta, ao indicar as três fontes de onde
vem o nosso sofrer: a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a
insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado
e na sociedade.127

O trabalho da civilização requer uma energia que é basicamente Eros, extraída da


sexualidade. A repressão da energia pulsional agressiva, repressão necessária para que haja
civilização tende a aumentar a infelicidade através de uma intensificação do sentimento de
culpa, podendo levá-lo a atingir proporções difíceis de serem toleradas pelo indivíduo.

Para Freud, a civilização é fundada na base de uma renúncia à satisfação pulsional,


ocorrendo uma constante repressão das pulsões, sendo que a civilização deve ser defendida
contra o indivíduo, pois os seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa
tarefa.

O ponto de vista estrutural da psicanálise foi exposto por Freud no ensaio O Ego e
o Id (1923), em que se pode afirmar que a subjetividade em Freud é baseada em uma
divisão da estrutura mental em camadas: id, ego e superego. Na formação de sua
subjetividade, o homem busca uma gratificação instintiva prazerosa (id, o inconsciente), no
entanto, tal satisfação não é permitida pela sociedade, pois existe o risco de destruição do
próprio indivíduo:

As principais camadas da estrutura mental são agora designadas como Id, ego e
superego. A camada fundamental, mais antiga e maior, é o id, o domínio do
inconsciente, dos instintos primários. O id está isento das formas e princípios que
constituem o indivíduo consciente e social. Não é afetado pelo tempo nem
perturbado por contradições; ignora “valores, bem e mal, moralidade”. Não visa

127
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997, p. 37.
82

à autopreservação: esforça-se unicamente pela satisfação de suas necessidades


instintivas, de acordo com o princípio de prazer.128

Com influência do meio externo, uma parte do id sofreu um desenvolvimento


tornando-se o ego, que é a camada intermediaria entre o id e o mundo externo, a
consciência. O ego retira o princípio de prazer do controle e coloca o princípio de realidade
que promete maior segurança e êxito.

Os processos do ego são chamados de processo secundários, e os do id, que se


relaciona com o instinto e prazer, de primários:

Apesar de suas funções de suma importância, que garantem a gratificação


instintiva a um organismo que, de outro modo, seria quase certamente destruído
ou destruir-se-ia, o ego retém, entretanto, o sinal de origem, como uma
“excrescência” do id. Em relação ao id, os processos do ego mantêm-se como
processos secundários. 129

A luta pela repressão dos instintos estaria relacionada com a luta constante pela
existência, de forma que o indivíduo redireciona sua energia instintiva imediata para a
mediação adiada, direcionando o indivíduo ao trabalho – o “eterno” antagonismo entre o
princípio do prazer e princípio da realidade.

O “aparelho mental” sob o domínio do princípio de realidade forma o sujeito


consciente, pela subjugação do princípio primário ao secundário é que se torna possível a
formação de um ego organizado.

O ego como mediador é auxiliado pelo superego que surge inicialmente na


constituição das regras a partir da família pela relação de dependência e imposição dos pais
nas fases iniciais da vida do indivíduo. Posteriormente, essas regras são impostas pela
realidade sociocultural, onde são “introjetadas” na consciência de forma a disciplinar as
relações entre os indivíduos.

Decorre daí a necessidade de se regular as relações sociais, uma vez que os


relacionamentos não podem ficar submetidos à vontade arbitrária do indivíduo, pois desta
forma o indivíduo mais forte predominaria. A comunidade, portanto, deve ser mais forte
que o indivíduo, estipulando seu poder como direito, em oposição ao poder do indivíduo:

128
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 47.
129
Idem, ibidem, p. 48.
83

A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia


de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Isso
não acarreta nada quanto ao valor ético de tal lei. O curso ulterior do
desenvolvimento cultural parece tender no sentido de tornar a lei não mais
expressão da vontade de uma pequena comunidade – uma casta ou camada de
uma população ou grupo racial – que, por sua vez, se comporta como um
indivíduo violento frente aos outros agrupamentos de pessoas, talvez mais
numerosos. O resultado seria um estatuto legal para qual todos – exceto os
incapazes de ingressar numa comunidade – contribuíssem com um sacrifício de
seus instintos, que não deixa ninguém – novamente com a mesma exceção – à
mercê da força bruta.130

O “sentimento de culpa” gerado pela realização do ato proibido (instinto primário)


ou apenas o desejo de realizá-lo impede que as transgressões destas normas sejam
efetuadas - sob “ordens” do superego o ego reprime tais atos. Esta dinâmica repressiva
torna-se inconsciente e automaticamente os sujeitos se relacionam por meio de tais regras.

Fica a questão sobre a possibilidade ou não de se conciliar as reivindicações


individuais de felicidade e as exigências contidas no processo de desenvolvimento em
curso.

Em seu livro Eros e Civilização (1955), complementado pelo ensaio A


obsolescência da psicanálise (1963) publicada no segundo volume de Cultura e Sociedade,
Marcuse irá trabalhar com algumas das categorias básicas da psicanálise como a repressão,
o princípio do prazer e o princípio de realidade.

b) Eros e civilização

Partindo das análises de Freud, que defende que a civilização se baseia na


permanente subjugação dos instintos humanos, Marcuse, em Eros e Civilização, escrito em
1955, aponta que esse sacrifício foi compensador, ocorrendo avanços tecnológicos, sendo
que em alguns pontos a conquista da natureza está praticamente concluída, com mais
necessidades de um maior número de pessoas sendo satisfeitas numa escala nunca
anteriormente vista:

O sacrifício compensou bastante: nas áreas tecnicamente avançadas da


civilização, a conquista da natureza está praticamente concluída, e mais
necessidades de um maior número de pessoas são satisfeitas numa escala nunca
anteriormente vista. Nem a mecanização e padronização da vida, nem o
empobrecimento mental, nem a crescente destrutividade do atual progresso,
fornecem bases suficientes para por em dúvida o “princípio” que tem governado

130
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997, p. 49.
84

o progresso da civilização ocidental. O contínuo incremento da produtividade


torna cada vez mais realista, de um modo constante, a promessa de uma vida
melhor para todos.131

No entanto, analisa que o progresso intensificado estaria vinculado a uma


igualmente intensificada ausência de liberdade, ocorrendo, por todo o mundo da
civilização industrial, o domínio do homem pelo homem.

Marcuse aponta a dominação na sociedade de consumo como um processo de


apropriação da própria base instintiva dos homens, na qual falsas necessidades criaram
condições propícias para a dominação (aprofundará esta análise mais adiante em One-
dimensional Man, ou, Ideologia da Sociedade Industria):

A administração científica das necessidades instintivas converteu-se, desde há


muito tempo, em fator vital na reprodução do sistema: a mercadoria que tem de
ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o Inimigo nacional, que
tem de ser combatido e odiado, é distorcido e inflado a tal ponto que pode ativar
e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente. A democracia
de massa fornece os apetrechos políticos para efetuar-se essa introjeção do
Princípio de Realidade; não só permite às pessoas (até um certo ponto)
escolherem seus próprios senhores e amos, e participarem (até um certo ponto)
do Governo que as governa, como também permite aos senhores e amos
desaparecerem por trás do véu tecnológico do aparelho produtivo que eles
controlam, e esconderem o preço humano (e material) dos benefícios e conforto
concebidos àqueles que colaboram. O povo, eficientemente manipulado e
organizado, é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o
preço de sua liberdade. 132

A base instintiva dos homens provém do animal que se converte em ser humano
transformando sua natureza, afetando não só os anseios instintivos, mas também os valores
instintivos, isto é, os princípios que governam a consecução dos anseios.

A transformação no sistema dominante de valores pode ser assim definida, de um


modo probatório: a satisfação imediata transforma-se em satisfação adiada, o prazer em
restrição do prazer, o júbilo (atividade lúdica) em esforço (trabalho), a receptividade em
produtividade e a ausência de repressão em repressão/segurança.

Ocorre uma substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade, que é o


grande acontecimento traumático no desenvolvimento no homem no desenvolvimento do
gênero (filogênese), tanto quanto do indivíduo (ontogênese):

131
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 27.
132
Idem, ibidem, p. 14.
85

A análise de Freud do desenvolvimento do aparelho mental repressivo é levado a


efeito em dois planos:
a) Ontogenético: a evolução do indivíduo reprimido, desde a mais remota
infância até a sua existência social consciente.
b) Filogenético: a evolução da civilização repressiva, desde a horda
primordial até o estado civilizado plenamente constituído.133

Do ponto de vista da filogênese, ocorre primeiro na horda primordial quando o pai


primordial monopoliza o poder e o prazer e impõe a renúncia por parte dos filhos, já do
ponto de vista da ontogênese, ocorre durante o período inicial da infância, na qual a
submissão ao princípio de realidade é imposta pelos pais e outros educadores.

Os rebeldes, ao derrubarem o velho poder, identificam-se com ele e por isso tornam
a instituir um novo poder tão ou mais opressivo que o anterior. Ou seja, a dominação é
interiorizada, o que explica as sucessivas derrotas em termos psicológicos – o indivíduo
autorreprimido apoia os senhores e suas instituições.

Segundo Freud, a história do homem é a história de sua repressão, sendo esta


coação para ele precondição do progresso. É a repressão das pulsões de vida (Eros) que
cria indivíduos aptos a aceitarem uma sociedade repressiva e a temerem sua própria
libertação, não há mais a necessidade de reprimir explicitamente os indivíduos para que
trabalhem - a repressão está interiorizada.

A civilização é ainda determinada por sua herança arcaica, com vestígios de


memórias das experiências de gerações anteriores, sendo que o indivíduo ainda se encontra
em identidade arcaica com a espécie, anulando a brecha entre psicologia individual e
psicologia de massas.

Assim sendo, sob esta ótica desfaz-se a concepção burguesa de indivíduo isolado,
autônomo:

Na medida em que a Psicologia rasga o véu ideológico e descreve a construção


da personalidade, é levada a dissolver o indivíduo: sua personalidade autônoma
surge-nos como a manifestação congelada da repressão social da humanidade. A
autoconsciência e a razão, que conquistaram e deram forma ao mundo histórico,
fizeram-no à imagem e semelhança da repressão, interna e externa. Atuaram
como agentes de dominação; as liberdades acarretaram (e que foram
consideráveis) cresceram no solo da escravidão e conservaram essa marca de
origem. São estas as perturbadoras implicações da teoria freudiana da
personalidade. Ao “dissolver” a ideia da personalidade do ego em seus
componentes primários, a Psicologia desvenda agora os fatores subindividuais
que (em grande parte inconscientes para o ego) fazem realmente o indivíduo:

133
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 39.
86

revela o poder do universal sobre os indivíduos e neles próprios. Essa revelação


abala os alicerces de uma das mais sólidas fortificações ideológicas da moderna
cultura: a noção de um indivíduo autônomo.134

Marcuse, desdobrando a análise de Freud para o campo filosófico, buscou a


compreensão da ligação do indivíduo com a sociedade:

A interpretação filosófica da psicanálise feita por Marcuse se encaminha para a


compreensão do liame entre o indivíduo e a sociedade. Os mecanismos da
repressão do indivíduo se dão, historicamente, na própria constituição da
sociedade repressora. Assim sendo, Marcuse resgata e reinterpreta as noções
freudianas de princípio de realidade, próximas, por sua vez, da mitologia de
Thanatos e Eros, instintos de morte e vida. 135

Há uma ascendente da repressão na sociedade, que se traduz com a fórmula


“dominação-rebelião-dominação”, sendo que a segunda dominação é um progresso em
relação à primeira. A dominação torna-se cada vez mais impessoal, objetiva, universal e
também cada vez mais racional, eficaz e produtiva.

É um processo em que há a despersonalização da repressão, a restrição e


arregimentação do prazer passam a ser uma função, resultado natural da divisão social do
trabalho. O indivíduo passa a ser integrado nos mecanismos já estruturados da sociedade,
como um sujeito objeto do trabalho, sujeitando, desta forma, o princípio do prazer ao
princípio da realidade.

Tanto no nível genérico como no individual, a submissão é continuamente


reproduzida. Freud cria uma explicação para tal situação que seria a seguinte: após a
primeira rebelião dos filhos ao domínio do pai primordial, esses passam a dominar
desenvolvendo um domínio social e político institucionalizado, de forma que o princípio
de realidade materializa-se num sistema de instituições, que vão evoluindo com o tempo:

Desde o pai primordial, através do clã fraterno, até o sistema de autoridade


institucionalizada que é característico da civilização madura, a dominação torna-
se cada vez mais impessoal, objetiva, universal, e também cada vez mais
racional, eficaz e produtiva. Por fim, sob o domínio do princípio de desempenho
plenamente desenvolvido, a subordinação apresenta-se como que efetivada
através da divisão social do próprio trabalho (embora a força física e pessoal
continue sendo uma instrumentalidade indispensável). A sociedade emerge como
um sistema duradouro e em expansão de desempenhos úteis; a hierarquia de
funções e relações adquire a forma de razão objetiva: a lei e a ordem identificam-
se com a própria vida da sociedade. No mesmo processo, também a repressão é

134
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 67-68.
135
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 522.
87

despersonalizada: a restrição e arregimentação do prazer passam agora a ser uma


função (e resultado natural) da divisão social do trabalho. 136

O indivíduo, evoluindo dentro de tal sistema, aprende que os requisitos do princípio


de realidade são os da lei e da ordem, e transmite-os à geração seguinte. Para Freud, a luta
primordial pela existência é eterna, portanto, acredita que o princípio de prazer e o
princípio de realidade são eternamente antagônicos não sendo possível uma civilização não
repressiva – são as pulsões sublimadas que dão origem à cultura.

Marcuse, diferentemente de Freud, entende ser possível uma sociedade não


repressiva, uma vez que os conceitos freudianos não correspondem ao contexto histórico
contemporâneo (os conceitos históricos não podem ser tratados como biológicos, pois eles
mudam com o tempo), desta forma reformula os conceitos de repressão e princípio de
realidade de Freud:

À alegação de que é o princípio da realidade que exige a repressão, Marcuse


replica que nós confundimos as exigências do princípio da realidade com as
exigências que alguma forma particular de dominação social nos procura impor
em nome da realidade. Que realizássemos nossas tarefas sociais em alguma
ordem ou hierarquia determinadas não constitui uma prescrição da realidade
como tal; o princípio encarnado nessa prescrição é o que Marcuse chama de
princípio de desempenho.137

Assim, Marcuse divide a história da humanidade em duas etapas: na primeira, há a


necessidade real da dominação social, por meio da repressão e, na segunda, após a
humanidade ter superado a escassez, prevalece a desnecessidade da repressão:

Marcuse utiliza esses dois conceitos de mais-repressão e de princípio de


desempenho para argumentar que a história da humanidade pode ser dividida em
duas etapas. Na primeira, que perdurou até a idade média, a dominação social foi
realmente necessária a fim de suplantar a escassez e lançar as bases tecnológicas
da abundância; mas agora a repressão das energias da libido sexual e a sua
expressão apenas em formas controladas de trabalho e de limitada sexualidade
monogâmica da família socialmente aceita é desnecessária e repressiva. A
liberação humana exige que a sexualidade não tenha mais de expressar-se sob a
forma de uma ordem social que ela não pode reconhecer como sua própria, isto
é, da qual está alienada, e deve libertar-se dessa renúncia e desse ascetismo
errôneos. A sexualidade, pois é, para Marcuse, algo que deve ser libertado para
que o homem se liberte.138

A hierarquia e a exploração do trabalho, a maneira de divisão de recursos e a


repressão mediante a imposição dessas condições em que vivemos na contemporaneidade

136
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 91.
137
MACINTYRE, Alasdair. As ideias de Marcuse. São Paulo: Cultrix Ltda, 1970, p. 53-54.
138
Idem, ibidem, p. 53-54.
88

representam um excesso de repressão em relação ao que seria necessário para a existência


da civilização.

Esse excesso de repressão, que se manifesta como uma ampliação daquelas


restrições efetivamente necessárias para manter os interesses da dominação social, é
denominado por Marcuse como mais-repressão - diferente da repressão básica, que seriam
as modificações dos instintos necessários à perpetuação da raça humana em civilização.

Dessa forma, Marcuse entende que há possibilidade de uma mudança qualitativa


nas relações humanas, baseado em alternativas históricas. As verdadeiras necessidades
humanas poderão ser despertadas, de forma que o ser humano possa viver uma vida
autêntica e de qualidade, mas para isto seria necessária uma revolução na base instintiva do
homem, uma vez que sem uma transformação radical da consciência e do inconsciente, das
necessidades e aspirações humanas, as revoluções estariam para sempre voltadas ao
fracasso.

Assim, a hipótese de uma civilização não-repressiva tem de ser teoricamente


validada, primeiro, demonstrando-se a possibilidade de um desenvolvimento
não-repressivo da libido, nas condições de civilização amadurecida. A direção de
tal desenvolvimento é indicada por aquelas forças mentais que, de acordo com
Freud, conservam-se essencialmente livres do princípio de realidade e
transmitem essa liberdade ao mundo de consciência madura.139

A repressão pode variar de acordo com a relação que cada princípio de realidade
possui com o trabalho - uma sociedade que trabalha para o consumo próprio é diferente
daquela que pretende gerar lucro. Esta e outras diferenças são apontadas por Marcuse
como fundamentais para a caracterização de um princípio de realidade que pode ser
também modificado de acordo com as relações sociais, leis e as instituições.

Assim, seria mais adequado utilizar o termo princípio de desempenho que princípio
da realidade, que é a uma modalidade de repressão sobre as pulsões que ajusta os homens
ao aparato técnico, político e econômico de dominação – por meio da hierarquia do
trabalho na sociedade industrial efetiva-se a imposição de todos os requisitos adicionais de
repressão institucional que são necessários a esse aparato.

Marcuse conclui que, como houve outros princípios de realidade, por ser histórico o
princípio atual de desempenho, este poderá mudar a partir do momento em que a sociedade
139
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 131.
89

mudar o seu “corpo” social, ou seja, quando ela não for mais estratificada de acordo com
os desempenhos econômicos dos seus membros.

Em uma situação de repressão normal, o princípio de realidade surge com base na


luta pela existência num mundo demasiado pobre, de forma que para satisfazer qualquer
necessidade é imperativo o trabalho penoso, ocupando praticamente todo o tempo da vida
do indivíduo, já a carência na sociedade contemporânea, conforme Marcuse, já não é mais
produto dessa realidade, mas de uma organização.

Entretanto, há uma certa validade no argumento de que, apesar de todo o


progresso, a escassez e a imaturidade continuam sendo suficientemente grandes
para impedir a realização do princípio: a cada um de acordo com as
necessidades. Os recursos materiais e mentais da civilização ainda são tão
limitados que terá de haver um padrão de vida substancialmente inferior se se
pretender que a produtividade social seja reorientada para a gratificação
universal das necessidades individuais: muitos teriam de renunciar a seu conforto
manipulado, para que todos vivessem uma vida humana. Além disso, a estrutura
internacional predominante da civilização industrial parece condenar ao ridículo
semelhante ideia. Isso não invalida a insistência teórica em que o princípio de
desempenho se tornou obsoleto. A reconciliação entre o princípio de prazer e o
de realidade não depende da existência da abundância para todos. A única
questão pertinente é se um estado de civilização pode ser razoavelmente
preconizado, no qual as necessidades humanas sejam cumpridas de modo tal e
em tal medida que a mais-repressão possa ser eliminada. 140

A regressão para um nível de vida inferior, que o colapso do princípio de


desempenho provocaria, não milita contra o progresso em liberdade. A escassez, ou seja, a
condição de dependência humana frente ao poder da natureza, deixou de ser justificativa
para a mais-repressão, uma vez que o grau de domínio dos homens sobre a natureza no
mundo contemporâneo proporciona a possibilidade concreta de realização das
necessidades humanas fundamentais - o argumento que condiciona a libertação a um nível
de vida superior serve para justificar a perpetuação da dominação.

No entanto, no Prefácio Político, de 1966, em Eros e Civilização, escrito após sua


obra One-Dimensional Man, Marcuse reconhece que foi otimista quando apostou que as
realizações da sociedade industrial avançada habilitariam o homem a inverter o rumo do
progresso, a romper a união fatal de produtividade e destruição, de liberdade e repressão.

140
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 140.
90

Na verdade, ponderou que houve negligência de sua parte ao não considerar que o
fundamento lógico do princípio do desempenho ter sido amplamente reforçado (se não
substituído) por formas ainda mais eficientes de controle social:

A ideia de um novo Princípio de Realidade baseou-se no pressuposto de que as


precondições materiais (técnicas) para o seu desenvolvimento estavam
estabelecidas ou podiam ser estabelecidas nas sociedades industriais mais
avançadas do nosso tempo. Entendia-se implicitamente que a tradução das
capacidades técnicas em realidade significava revolução. Mas o próprio escopo e
eficácia da introjeção democrática suprimiu o sujeito histórico, o agente de
revolução: as pessoas livres não necessitam de libertação e as oprimidas não são
suficientemente fortes para libertarem-se. Essas condições redefinem o conceito
de Utopia: a libertação é a mais realista, a mais concreta de todas as
possibilidades históricas e, ao mesmo tempo, a mais racionalmente, mais
eficazmente reprimida a possibilidade mais abstrata e remota. Nenhuma
filosofia, nenhuma teoria pode desfazer a introjeção democrática dos senhores
em seus súditos. Quando, nas sociedades mais ou menos afluentes, a
produtividade atingiu um nível em que as massas participam de seus benefícios,
e em que a oposição é eficaz e democraticamente contida, então o conflito entre
senhores e escravos também é eficientemente contido.141

Como tem sido contido o trabalhismo, a mão-de-obra sindicalizada, justamente o


sujeito histórico indicado pelo marxismo como ator das mudanças sociais, que passa a
atuar em defesa do status quo e na medida em que a quota-parte de trabalho humano no
processo material de produção declina. Desta forma, novos sujeitos são convocados para a
ação de transformação, uma vez que atualmente a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta
política.

Vislumbra a ação destes novos sujeitos na recusa organizada dos cientistas,


matemáticos, técnicos, psicólogos, industriais e pesquisadores de opinião pública, assim
como na juventude que protesta (uma vez que o protesto dos jovens é uma necessidade
biológica e por natureza, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam por
Eros contra a Morte e contra uma civilização que se esforça por encurtar o atalho para a
morte). Trata-se do começo da reversão, a preparação do terreno para a ação política:

Na medida em que o trabalhismo, a mão-de-obra sindicalizada, atua em defesa


do status quo, e na medida em que a quota-parte de trabalho humano no
processo material de produção declina, as aptidões e capacidades intelectuais
tornam-se fatores sociais e econômicos. Hoje, a recusa organizada dos cientistas,
matemáticos, técnicos, psicólogos, industriais e pesquisadores de opinião pública
poderá muito bem consumar o que uma greve, mesmo que uma greve em grande
escala, já não pode conseguir, mas conseguia noutros tempos, isto é, o começo
da reversão, a preparação do terreno para a ação política. 142

141
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 16.
142
Idem, ibidem, p. 23.
91

c) A obsolescência da psicanálise

O objeto da psicanálise, o indivíduo como encarnação do id, ego e superego,


tornou-se obsoleto, segundo Marcuse, tendo em vista o desenvolvimento da sociedade.
Com a mudança de objeto, aprofundou-se a distância entre teoria e terapia, de forma que a
terapia parece mais ajudar a ordem estabelecida que ao indivíduo.

Entende, no entanto, que a verdade da psicanálise não está comprometida e que a


obsolescência do objeto só vem a confirmar a que ponto o progresso foi, na realidade,
repressão.

A psicanálise sobreviveu nas suas diferentes escolas e se fundiu em amplos


domínios da sociedade; mas com a transformação do seu objeto aprofundou-se o
abismo entre teoria e terapia, e a terapia se vê numa situação em que parece
ajudar mais a ordem estabelecida que o indivíduo. A verdade da psicanálise nem
por isso se enfraquece; pelo contrário, a obsolescência de seu objeto manifesta a
que ponto o progresso foi, na realidade, repressão. A psicanálise lança assim uma
nova luz sobre a política da sociedade industrial avançada. 143

Freud desenvolveu sua teoria psicanalítica baseado em uma estrutura psíquica


dinâmica: a luta de vida e morte entre forças antagônicas – id e ego, ego e superego,
princípio de prazer e princípio de realidade e Eros e Thánatos. Como fruto dessa luta, o
indivíduo consegue um equilíbrio precário entre Eros e Thánatos e submete-se ao princípio
da realidade, mas ao custo da renúncia do princípio de prazer.

O Superego apresenta-se como o princípio de realidade impondo-se ao indivíduo de


forma repressiva (necessária e mínima para que exista a vida orgânica). Este princípio de
realidade é apresentado como o “pai” que subjuga os filhos, impondo-lhes a abstinência
sexual (devido ao desejo incestuoso para com a mãe) e determinando os padrões a serem
seguidos.

Porém, o princípio de prazer ou a energia erótica destes “filhos” não admitem, num
primeiro momento, a autoridade e a imposição paterna, e então, ocorre o parricídio (ação
que já busca a liberdade – fruição das pulsões). Mas sem orientação, porque lhes falta
autonomia suficiente (a necessidade do “pai”), os filhos assassinos reestabelecem a moral
paterna.

143
MARCUSE, Herbert. A obsolescência da Psicanálise. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e ,
Terra, 1997, p. 91, v. 2.
92

[...] Segundo Freud, o conflito funesto entre o indivíduo e a sociedade é vivido e


decidido em primeiro lugar e sobretudo na confrontação com o pai: é aqui que
explode a luta abrangente entre Eros e Thánatos, determinante para o
desenvolvimento do indivíduo. E é o pai que impõe a subordinação do princípio
do prazer ao princípio da realidade; a rebelião e o acesso à maturidade são
estágios da luta com o pai. Consequentemente, a primeira “socialização” do
indivíduo é obra da família e, qualquer que seja a autonomia que a criança possa
alcançar, seu ego desenvolve-se em primeiro lugar na esfera e no refúgio do
privado; ela torna-se um eu (self) com o outro, mas também contra ele. O
“indivíduo” mesmo é um processo vivo de mediação em que toda a repressão e
toda a liberdade são “interiorizados”, tornando-se o comportamento próprio do
indivíduo.144

Freud considerava universal a sua teoria, válida para qualquer época, apesar de esta
teoria ter surgindo em determinada época e local, desenvolvida para explicar os processos
psíquicos que caracterizavam os padrões de comportamento do indivíduo inserido em uma
sociedade em que prevaleciam os valores burgueses consolidados.

Ocorre que novas formas de vida surgem nas sociedades industriais avançadas,
provocando a obsolescência dessa teoria: o pai (ou a família dominada por ele) já não é
mais o núcleo transmissor do princípio de realidade que antes submetia, sob coação física,
o sujeito, tornando-o obediente:

Ora, essa situação, em que ego e superego se formavam na luta com o pai como
representante paradigmático do princípio da realidade, é uma situação histórica:
ela deixou de existir com as transformações da sociedade industrial que se
produziram no período do entreguerras.145

A estrutura psíquica nas sociedades industriais passa a se formar levando em conta


as seguintes tendências: 1) a substituição do pai pela atuação da mídia, dos agrupamentos
escolares e esportivos, etc., e 2) a independência do filho, em relação ao pai, na procura de
um posto de trabalho, de uma maneira de ganhar a vida, de forma que o ideal do ego é
levado a agir mais diretamente e de fora sobre o ego, antes ainda que este ego se tenha
constituído de fato como sujeito autônomo na mediação entre o próprio eu e os outros.

Com essas transformações o espaço vital e a autonomia do ego são reduzidos, de


forma a se preparar o terreno para a formação das massas:

Na estrutura da sociedade contemporânea, o indivíduo torna-se um objeto


administrado, consciente e inconsciente, e obtém liberdade e satisfação em seu
papel como um tal objeto; na estrutura psíquica o ego se contrai de tal maneira
que já não parece capaz de se manter como um eu distinto do id e do superego. A
dinâmica pluridimensional, em virtude da qual o indivíduo alcançava e mantinha

144
MARCUSE, Herbert. A obsolescência da Psicanálise. In______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e
Terra, 1997, p. 93-94, v. 2.
145
Idem, ibidem, p. 94.
93

seu equilíbrio entre a autonomia e heteronímia, a liberdade e a repressão, o


prazer e a dor, deu lugar a uma dinâmica unidimensional, a uma identificação
estática do indivíduo com seus semelhantes e com o princípio da realidade
administrado.146

Nas sociedades de massas, o sujeito histórico foi substituído pela produtividade,


que passa a ser a verdadeira fonte de dominação, uma vez visa além das necessidades
básicas, também necessidades supérfluas – não há, portanto, sujeito histórico dominante e
sim uma massa que necessita de líderes e oscila entre produtos supérfluos.

2.3.2. Racionalidade tecnológica

Inicia propriamente sua análise crítica da racionalidade tecnológica no fim dos anos
50, tendo por escopo a lógica interna da sociedade soviética em marxismo soviético,
denunciando-a como um projeto totalitário, apropriado pela burocracia, que necessita cada
vez mais do desenvolvimento acelerado de suas forças produtivas para a sobrevivência do
Estado soviético:

No caso da sociedade soviética, o desenvolvimento acelerado de suas forças


produtivas é considerado um pré-requisito para a sobrevivência e para a força
competitiva do Estado soviético, dentro das circunstâncias da “coexistência”.
Dessa forma, a posição depende da expansão do aparelho econômico. E, dentro
da burocracia, os interesses da tecnologia e da força, da diplomacia e da política
do poder, por esse interesse social comum. Assim, a burocracia soviética
representa o interesse social de uma forma hipostatizada, na qual os interesses
individuais são subtraídos aos indivíduos, e o Estado a eles se arroga.147

No entanto, defende que a racionalidade tecnológica pode se transformar em um


poderoso instrumento para a libertação: livre da política que visa a impedir que os
indivíduos “exerçam o controle coletivo da técnica e de seu uso para a gratificação
individual, a racionalidade tecnológica pode se transformar num poderoso instrumento
para a libertação”.148

Só que não basta o desenvolvimento tecnológico per se, há a necessidade de uma


mudança social:

Qualquer reorganização do aparato técnico, com vistas a uma possível satisfação


das necessidades individuais, pressupõe uma re-definição da necessidade social

146
MARCUSE, Herbert. A obsolescência da Psicanálise. In ______. Cultura e Sociedade. São Paulo: Paz e
Terra, 1997, p. 94-95, v. 2.
147
MARCUSE, Herbert. Marxismo soviético, uma análise crítica. Rio de Janeiro: Saga, 1969, p. 111.
148
Idem, ibidem, p. 229.
94

que determina a tecnologia. Em outras palavras, os efeitos verdadeiramente


libertadores da tecnologia não estão implícitos no progresso tecnológico per se;
eles pressupõem uma mudança social básica, atingindo as instituições e relações
econômicas básicas.149

Na verdade, primeiros esboços críticos sobre o papel da tecnologia moderna estão


em Algumas implicações sociais da tecnologia moderna da coletânea de artigos de Herbert
Marcuse: Tecnologia, Guerra e Fascismo, de 1941, antecipando a sua análise posterior em
One-Dimensional Man ou Ideologia da Sociedade Industrial, escrita em 1964, em que faz
uma crítica à sociedade capitalista, à sociedade de bem-estar-social como instrumento de
dominação, obras que destacamos a seguir.

a) Algumas implicações sociais da tecnologia moderna

Nesse texto, Marcuse estabelece uma distinção entre “técnica”, entendida como
conjunto de instrumentos que podem servir tanto ao controle quanto à libertação, e
“tecnologia”, definida como um modo de produção específico que utiliza a técnica como
instrumento de controle.

A aplicação da tecnologia passa a ser feita como forma de organizar e perpetuar as


relações sociais vigentes. Os grupos sociais dominantes utilizam a racionalização
tecnológica para controlar a massa de indivíduos, sendo que a massa abstrai qualquer
indício de pensamento crítico e não questiona a utilização da tecnologia.

Foi o que ocorreu com a massa alemã no Terceiro Reich, em que a população
alemã, fragilizada pela 1ª Guerra Mundial, recebeu o nacional-socialismo como uma
salvação. O reino de horror na Alemanha nacional-socialista não se deu apenas pela força
bruta, a racionalização tecnológica utilizada por Hitler para o bem-estar do povo alemão
arrebatou-os de maneira que nenhuma questão era levantada a respeito de seus métodos,
não questionavam o método de horror lá aplicado:

A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto


a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho
árduo. O nacional-socialismo é um exemplo marcante dos modos pelos quais
uma economia altamente racionalizada e mecanizada, com a máxima eficiência
na produção, também pode operar o interesse da opressão totalitária e da
escassez continuada. 150

149
MARCUSE, Herbert. Marxismo soviético, uma análise crítica. Rio de Janeiro: Saga, 1969, p. 230.
150
MARCUSE, Herbert. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In ______. Tecnologia,
Guerra e Fascismo. São Paulo: Unesp, p. 74.
95

O indivíduo humano, a mônade que busca a plena liberdade, que segundo os


expoentes da Revolução Francesa consideravam a unidade fundamental, bem como a
finalidade da sociedade, apoiavam valores diferentes desta sociedade administrada. O
dever da sociedade era conceder ao indivíduo a liberdade de pensamento para transformá-
la e eliminar todas as restrições à sua linha de ação racional.

A sociedade liberal era considerada o ambiente adequado à racionalidade


individualista. No entanto, o processo de produção de mercadorias solapou a base
econômica sobre a qual a racionalidade individualista se construiu:

Para racionalizar esta racionalidade pressupunha-se um ambiente social e


econômico adequado, um ambiente que atraísse indivíduos cuja conduta social
fosse, pelo menos em grande medida, seu próprio trabalho. A sociedade liberal
era considerada o ambiente adequado à racionalidade individualista. Na esfera da
livre concorrência, os efeitos tangíveis do indivíduo que transformava seus
produtos e ações em parte das necessidades da sociedade eram marcas de sua
individualidade. No decorrer do tempo, no entanto, o processo de produção de
mercadorias solapou a base econômica sobre a qual a racionalidade
individualista se construiu. A mecanização e a racionalização forçaram o
competidor mais fraco a submeter-se ao domínio das grandes empresas da
indústria mecanizada que, ao estabelecer o domínio da sociedade sobre a
natureza, aboliu o sujeito econômico livre.151

A competitividade pela busca do lucro acaba criando uma concentração de poder


econômico nas mãos de algumas empresas, que se utilizam, cada vez mais, da tecnologia,
de novas ferramentas, novos processos e produtos.

Desta forma, submetida a esta lógica, a racionalidade individualista se viu


transformada em racionalidade tecnológica, que estabelece padrões de julgamento e
fomenta atitudes que predispõem os homens a aceitar e introjetar os ditames do aparato.

O sujeito econômico livre tornou-se objeto de organização e coordenação em larga


escala, e o avanço individual passa a ser motivado, guiado e medido por padrões externos
ao indivíduo, padrões que dizem respeito a tarefas e funções predeterminadas.

A ação e os pensamentos dos homens não são mais guiados pelo controle da
natureza, pela superação da necessidade para se atingir um patamar de emancipação do
potencial humano. Passam a prevalecer os fatos do processo da máquina, que por si só
aparecem como a personificação da racionalidade e da eficiência:

151
MARCUSE, Herbert. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In ______. Tecnologia,
Guerra e Fascismo. São Paulo: Unesp, p. 76.
96

O comércio, a técnica, as necessidades humanas e a natureza se unem em


mecanismo racional e conveniente. Aquele que seguir as instruções será mais
bem-sucedido, subordinando a sua espontaneidade à sabedoria anônima que
ordenou tudo para ele. O ponto decisivo é que esta atitude – que dissolve todas as
ações em uma sequência de reações semiespontâneas a normas mecânicas
prescritas – não é apenas perfeitamente racional, mas também perfeitamente
razoável. 152

As organizações econômicas e sociais não medem o poder pela força e sim por
meio da identificação das crenças e lealdade do povo. O comportamento humano passa a
ter como parâmetro a racionalidade do processo da máquina, sendo que este desempenho
determinados pelas máquinas passa a governar também o comportamento na ordem social,
nas escolas, escritórios, na esfera do descanso etc.

Por conta dessa racionalidade das máquinas, os indivíduos são despidos de sua
individualidade. O indivíduo tem de se ajustar a um aparato que detém o monopólio da
racionalidade, de tal forma que quaisquer tentativas de protesto e libertação individual
parecem, além de inúteis, absolutamente irracionais:

Todo protesto é insensato e o indivíduo que persiste em sua liberdade de ação


seria considerado excêntrico. Não há saída pessoal do aparato que mecanizou e
padronizou o mundo. É um aparato racional, combinando a máxima eficiência
com a máxima conveniência, economizando tempo e energia, eliminando o
desperdício, adaptando todos os meios a um fim, antecipando as consequências,
sustentando a calculabilidade e a segurança.153

O esforço científico visa eliminar o desperdício, intensificando a produção,


padronizar o produto, de forma que a realização final do indivíduo centra-se no aumento da
eficiência lucrativa.

Os mecanismos de coerção são interiorizados pelos homens que, seguindo a própria


razão, agem de acordo com aqueles que fazem uso lucrativo da razão. Agrega-se à força do
aparato, à impotência social do pensamento, pois este está impregnado pela racionalidade
tecnológica, - ideias como liberdade, indústria produtiva, economia planejada, satisfação
das necessidades estão fundidas com os interesses de controle e competição.

Como membro de uma multidão, o homem se tornou o sujeito padronizado da


autopreservação bruta. A multidão é composta por indivíduos, mas de indivíduos que
deixam de pensar – a multidão é a antítese da comunidade e a realização pervertida da
individualidade.
152
MARCUSE, Herbert. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In ______. Tecnologia,
Guerra e Fascismo. São Paulo: Unesp, p. 80.
153
Idem, ibidem, p. 80.
97

O princípio individualista burguês teve seu papel alterado na sociedade


administrada, o desempenho social tornou-se antagônico ao seu “verdadeiro interesse”. A
racionalidade crítica na forma mais acentuada é o pré-requisito para sua função libertadora
– mesmo para Marx, não são as massas que promovem a emancipação humana e sim a
classe trabalhadora, pela maturidade de sua “consciência”:

O processo tecnológico parecia levar à conquista da escassez e assim à lenta


transformação da competição em cooperação. A filosofia do individualismo via
este processo como a diferenciação gradual e a liberação das potencialidades
humanas, como a abolição da “multidão”. Mesmo na concepção marxista, as
massas não são ponta-de-lança da liberdade. O proletariado marxista não é uma
multidão, mas uma classe, definida por sua posição determinada no processo
produtivo, pela maturidade de sua “consciência” e pela racionalidade de seu
interesse comum. A racionalidade crítica, na forma mais acentuada, é o pré-
requisito para a sua função libertadora. Em um aspecto, pelo menos, esta
concepção se alinha com a filosofia do individualismo: visualiza a forma
racional da associação humana como algo surgido da e sustentado pela decisão e
ação autônomas do ser humano livre.154

b) Ideologia da Sociedade Industrial

O aprofundamento das premissas colocadas pelos iluministas - liberdade, igualdade


e fraternidade - significaria colocar a razão em busca do “progresso”, em direção à
emancipação humana, com o domínio do homem sobre a natureza que teria como
consequência sua saída do reino da necessidade para o reino da liberdade.

No entanto, a sociedade atual é irracional, promotora de uma produtividade


destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas, dependente
da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência.

A liberdade existente nas sociedades industriais é a liberdade de trabalhar ou morrer


de fome, na verdade é uma liberdade que escraviza. Esta liberdade apresenta-se no
mercado na figura de um sujeito econômico livre, que caso fosse suprimido teríamos uma
das maiores conquistas da civilização, pois este indivíduo ficaria livre para exercer
autonomia sobre uma vida que seria sua – poderia atingir uma liberdade ainda
desconhecida, para além da necessidade:

A liberdade de empreendimento não foi de modo algum, desde o início, uma


vantagem. Quanto à liberdade de trabalhar ou morrer à mingua, significou labuta,
insegurança e temor para a grande maioria da população. Se o indivíduo não

154
MARCUSE, Herbert. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In ______. Tecnologia,
Guerra e Fascismo. São Paulo: Unesp, p. 91.
98

mais fosse compelido a se demonstrar no mercado como um sujeito econômico


livre, o desaparecimento desse tipo de liberdade seria uma das maiores
conquistas da civilização. Os processo tecnológicos de mecanização e
padronização podem liberar energia individual para um domínio de liberdade
ainda desconhecido, para além da necessidade. A própria estrutura da existência
humana seria alterada; o indivíduo seria libertado da imposição, pelo mundo do
trabalho, de necessidades e possibilidades alheias a ele; ficaria livre para exercer
autonomia sobre uma vida que seria sua. Se o aparato produtivo pudesse ser
organizado e orientado para a satisfação das necessidades vitais, seu controle
bem poderia ser centralizado; tal controle não impediria a autonomia individual,
antes tornando-a possível. 155

A análise de Marcuse em Ideologia da Sociedade Industrial é focada nas tendências


contemporâneas existentes nas sociedades mais altamente desenvolvidas, com enfoque nas
subjetividades constituídas a partir das relações de produção vigente nessas sociedades.

Por se tratar da construção das subjetividades a partir de um novo modelo de


sociedade, o titulo original, One-Dimensional Man – Studies in the Ideology of Advanced
Industrial Society, quando traduzido para o português comprometeu o centro da análise
deste livro contido na ideia de unidimensionalidade:

Na tradução deste título para o português – Ideologia da Sociedade Industrial –


se esvai dele o caráter essencial contido na ideia de “unidimensionalidade” que
era o centro da análise deste livro; ideia que aponta na direção de todo um
processo complexo de produção de uma nova forma de subjetivação.
Subjetivação cujas características estão imersas na historicidade do homem das
grandes sociedades industriais avançadas, constituindo-se num modelo de
sociedade sem similar no passado da humanidade. 156

Tendo em vista o modo como a sociedade industrial moderna organizou sua base
tecnológica, ela tende a tornar-se totalitária, uma vez que opera por meio da manipulação
das necessidades humanas, dominando o indivíduo de forma a impedir uma oposição
eficaz ao todo.

Os corpos e as consciências são submetidos, por meio de mecanismos internos


repressivos, à ideologia destas sociedades, tornando-se “unidimensionais”, para tanto, estas
sociedades utilizam-se das “ciências”, principalmente aquelas relacionadas ao homem e a
sociedade, como “instrumento de poder”, dentro de uma lógica.

Marcuse aponta que a mais eficaz e resistente forma de guerra contra a libertação é
a implantação das necessidades materiais e intelectuais que perpetuam formas obsoletas da
luta pela existência.

155
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 24.
156
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse, uma trajetória. Londrina: UEL, 1999, p. 129.
99

Diferencia as necessidades verídicas das necessidades falsas, que são aquelas


“superimpostas” ao indivíduo por interesses sociais particulares para reprimi-lo: as
necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça:

Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas como as falsas necessidades.


“Falsas” são aquelas superimpostas ao indivíduo por interesses sociais
particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a
agressividade, a miséria e a injustiça. Sua satisfação pode ser assaz agradável ao
indivíduo, mas a felicidade deste não é uma condição que tem de ser mantida e
protegida caso sirva para coibir o desenvolvimento da aptidão (dele e de outros)
para reconhecer a moléstia do todo e aproveitar as oportunidades de cura. A
maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e
consumir de acordo com os anúncios e odiar o que os outros amam e odeiam,
pertence a essa categoria de falsas necessidades. 157

Como poderiam pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva
criarem, elas próprias, as condições de liberdade? Seria necessária a percepção e
consciência do indivíduo de qual seriam suas reais necessidades, não aceitando a
imposição de falsas necessidades, conforme pondera Marcuse:

Toda libertação depende da consciência de servidão e o surgimento dessa


consciência é sempre impedido pela predominância de necessidades e satisfações
que se tornaram, em grande proporção, do próprio indivíduo. O processo
substitui sempre um sistema de precondicionamento por outro; o objetivo ótimo
é substituição de falsas necessidades por outras verdadeiras, o abandono da
satisfação repressiva. 158

O homem é alienado por um sistema que proclama a liberdade que é utilizada como
dominação. A eleição livre dos senhores não abole os senhores nem os escravos, assim
como a livre escolha entre a ampla variedade de mercadorias e serviços não significa
liberdade se estes serviços e mercadorias sustêm os controles sociais sobre uma vida de
labuta e temor.

Apesar de alienados, os indivíduos se identificam com a existência que lhes é


imposta, são tragados por sua existência alienada, que é alimentada pela ideologia – a
ideologia está no próprio processo de produção. Os produtos dominam a existência,
manipulam-na promovendo uma falsa consciência, de forma a surgir um pensamento
unidimensional.

Na sociedade capitalista, com seus avanços tecnológicos, prevalece um sistema


totalitário de dominação, na qual vigora a ideologia de uma racionalidade institucional ou
tecnológica em relação à racionalidade individual, submetendo o homem a uma completa
157
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 26.
158
Idem, ibidem, p. 28.
100

alienação. Os indivíduos alienados se identificam com a existência que lhes é imposta,


encontrando nessa existência seus próprios desenvolvimentos e satisfações – a sociedade
industrial desenvolveu uma ideologia que é inerente ao próprio processo de produção.

O indivíduo perde sua autonomia, vive uma vida pré-determinada, uniforme, o que
faz com que a produção em massa preencha estas vidas e alimente a dominação em um
mundo globalizado. A racionalidade tecnológica causa uma "mecânica do conformismo",
que nega qualquer tipo de manifestação individual revolucionária dentro de uma sociedade
totalmente planejada.

É certo, para Marcuse, que a sociedade deve, em primeiro lugar, criar as riquezas
que possibilitariam a liberdade humana, de forma que essa dependeria da superação das
necessidades que dependeria da industrialização, que dependeria das técnicas aplicadas, no
entanto, o desenvolvimento técnico e o progresso científico são transformados pela razão
instrumental em instrumentos de dominação, não são isentos:

“Progresso” não é um termo neutro; encaminha-se para fins específicos, e esses


fins são definidos pelas possibilidades de melhorar a condição humana. A
sociedade industrial desenvolvida se aproxima da fase em que o progresso
contínuo exigiria a subversão radical da direção e organização do progresso
predominante. Essa fase seria atingida quando a produção material (incluindo os
serviços necessários) se tornasse automatizada a ponto de todas as necessidades
vitais pudessem ser atendidas enquanto o tempo de trabalho necessário fosse
reduzido a um tempo marginal. Daí por diante, o progresso técnico transcenderia
ao reino da necessidade no qual servira de instrumento de dominação e
exploração, que desse modo limitava sua racionalidade; a tecnologia ficaria
sujeita à livre atuação das faculdades na luta pela pacificação da natureza e da
sociedade. 159

“A vida como um fim é qualitativamente diferente da vida como um meio”, para


que tal ocorra não bastaria a transformação econômica e política, se faz necessário uma
transformação na base técnica em que repousa a sociedade para que ela se modifique
qualitativamente também:

A transformação qualitativa também compreende uma transformação na base


técnica em que repousa essa sociedade – a que sustenta as instituições
econômicas e políticas pelas quais a “segunda natureza” do homem como objeto
agressivo de administração é estabilizada. As técnicas de industrialização são
técnicas políticas, como tal, prejulgam as possibilidades da Razão e da
Liberdade.160

159
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 35.
160
Idem, ibidem, p. 37.
101

Em uma primeira análise, chega-se ao entendimento de que há a necessidade de se


superar o atraso histórico no que se refere à industrialização; de se criar os requisitos de
liberdade para todos os membros de uma sociedade e de se criar primeiro a riqueza antes
de poder distribuí-la.

Sob este argumento, chega-se à conclusão de que a libertação dos escravos viria de
fora e de cima; eles teriam de ser “forçados a ser livres”:

A libertação dos escravos parece vir de fora e de cima, no mesmo grau em que
eles foram pré-condicionados para viver como escravos e sentir-se contentes
nessa condição. Eles têm de ser “forçados a ser livres”, a “ver os objetos como
estes são e algumas vezes como deviam parecer”, devendo ser-lhes mostrado o
“bom caminho” que buscam. 161

Desta forma, mesmo os indivíduos que não têm a consciência da servidão deveriam
ser obrigados a serem livres? O socialismo deveria ser o primeiro ato da revolução, uma
vez que a consciência da servidão existente na sociedade capitalista já estaria na
consciência dos que a realizaram - pela lógica dialética, os escravos devem estar “livres”
para sua libertação, antes de poderem tornar-se livres e o fim deve estar operante nos meios
para atingi-lo.

A sociedade soviética foi um exemplo do esforço de se superar o “reino da


necessidade”, procurou-se desenvolver a industrialização de forma a se atingir
quantitativos de produção que permitissem a “emancipação humana”. Teve que primeiro
possibilitar a seus “escravos” a aprender, ver e pensar, apostando na possibilidade de eles
“despertarem” de forma a poderem ver o que se passa e saberem o que fazer para as coisas
mudarem.

No entanto, a racionalidade tecnológica revela seu caráter político e um grande


veículo de dominação – os meios podem comprometer os fins. Quanto mais os dirigentes
forem capazes de entregar os bens de consumo, tanto mais firmemente a população estará
atada às diversas burocracias dirigentes.

A tese de que as contradições entre as “relações de produção retardadas e o caráter


das forças produtivas” podem se resolver de forma gradativa, sendo, no caso soviético,
resolvidas pelo fato de que as camadas dirigentes são, elas próprias, separáveis do processo

161
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 55.
102

de produção, podendo ser substituídas sem fazer explodirem as instituições básicas da


sociedade, é questionada por Marcuse:

Essa é a meia-verdade contida na tese marxista soviética de que as contradições


existentes entre as “relações de produção retardadas e o caráter das forças
produtoras” podem ser resolvidas sem explosão e que a “conformidade” entre os
dois fatos pode ocorrer por meio de “mudança gradativa”. A outra metade da
verdade é que a mudança quantitativa ainda teria de se transformar em mudança
qualitativa, no desaparecimento do Estado, do partido, do plano etc., como
poderes independentes superimpostos ao indivíduo. Considerando que essa
mudança deixaria intacta a base material da sociedade (o processo de produção
nacionalizado), ela se limitaria a uma revolução política. Se pudesse conduzir à
autodeterminação na própria base da existência humana, a saber, na dimensão do
trabalho necessário, seria a mais completa e radical revolução da história. 162

A distribuição dos benefícios da sociedade sem a vinculação ao princípio do


desempenho ainda pode ser fruto de uma administração imposta, mas já seria também o
fim dessa administração.

Mesmo havendo funções de direção e supervisão, estas funções, em uma sociedade


livre e industrialmente madura, continuariam a existir, mas sem o privilégio de dirigir a
vida dos demais para algum interesse específico - desigualdades continuariam a existir,
mas como uma necessidade às exigências técnicas e diferenças físicas e mentais entre os
indivíduos. A transição para uma sociedade deste tipo seria mais um processo
revolucionário que evolutivo, mesmo que ele ocorra em uma sociedade com economia
planificada.

Tanto as sociedades capitalistas quanto as comunistas tem “razões” idênticas, em


última análise, quando se trata da luta contra uma forma de vida que dissolveria as bases da
dominação.

A transgressão aos conceitos de “liberdade”, “igualdade”, democracia e paz são


disseminados por meio da linguagem tanto no ocidente (livre empreendimento, iniciativa,
eleições, indivíduos), como no oriente (operários, camponeses, construir o socialismo, ou
socialismo, abolição de classes hostis), ou seja, não há contradição entre o dito e a
realidade:

Assim, o fato de a forma existente de liberdade ser servidão e de a forma


existente de igualdade ser desigualdade sobreposta é impedido de ser expressado
pela definição fechada desses conceitos em termos dos poderes que moldam o
respectivo universo da locução. O resultado é a linguagem orwelliana familiar

162
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 58.
103

(“paz é guerra”, “guerra é paz” etc.), que não é, de modo algum, somente do
totalitarismo terrorista. Tampouco é menos orwelliana se a contradição se a
contradição não está explícita na sentença, mas contida no substantivo. O ser um
partido político que trabalha na defesa e o crescimento do capitalismo chamado
“socialista”, um Governo déspota chamado “democrata” e uma eleição
manobrada fraudulentamente chamada “livre” são características linguísticas - e
políticas – familiares que em muito se antecederam a Orwell. 163

A linguagem da política confunde-se com a linguagem da propaganda comercial, os


símbolos da política são também os dos negócios – dominação e a administração deixaram
de ser uma função separada e independente na sociedade tecnológica.

No universo totalitário da racionalidade tecnológica, ocorre uma transmutação da


ideia de razão, no qual sua lógica se tornou a lógica da dominação em que há uma
harmonia entre liberdade e opressão, produtividade e destruição e crescimento e regressão.

Marcuse indaga sobre quem seria, na concepção clássica, o sujeito que compreende
a condição ontológica de verdade e inverdade. Chega à conclusão que a verdade é fechada
a todo aquele que tem de passar a vida buscando necessidades da vida, e que essa verdade
seria universal em sentido estrito e real caso não houvesse mais o domínio da necessidade
para o homem.

A filosofia visualiza a igualdade entre os homens, mas se submete à negação real da


igualdade uma vez que a divisão de classes proporciona a liberdade da labuta apenas para
um grupo minoritário privilegiado. A dominação do homem pelo homem faz parte da razão
tanto pré-tecnológica, como tecnológica, sendo “a ordem objetiva das coisas”:

Na realidade social, a dominação do homem pelo homem ainda é, a despeito de


toda transformação, o contínuo histórico que une Razão pré-tecnológica e Razão
tecnológica. Contudo a sociedade que projeta e empreende a transformação
tecnológica da natureza altera a base da dominação pela substituição gradativa da
dependência pessoal (o escravo, do senhor; o servo, do senhor da herdade; o
senhor do doador do feudo etc.) pela dependência da “ordem objetiva das coisas”
(das leis econômicas, do mercado etc.). Sem dúvida, a “ordem objetiva das
coisas” é, ela própria, o resultado da dominação, mas é, não obstante, verdade
que a dominação agora gera mais elevada racionalidade – a de uma sociedade
que mantém sua estrutura hierárquica enquanto explora com eficiência cada vez
maior os recursos naturais e mentais e distribui os benefícios dessa exploração
em escala cada vez maior. Os limites dessa racionalização e sua força sinistra
aparecem na escravidão progressiva do homem por um aparato produtor que
perpetua a luta pela existência, estendendo-o a uma luta total internacional que
arruína a vida dos que constroem e usam esse aparato.164

163
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 96.
164
Idem, ibidem, p. 142.
104

O controle social é realizado pela racionalidade e manipulação técnico-científicas,


de forma que a repressão torna-se perfeitamente racional. A dominação hoje se perpetua
não somente por meio da tecnologia, mas como tecnologia:

Nesse universo, a tecnologia também garante a grande racionalização da não-


liberdade do homem e demonstra a impossibilidade “técnica” de a criatura se
autônoma, de determinar a sua própria vida. Isso porque essa não-liberdade não
parece irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato técnico que
amplia as comodidades da vida e aumenta a produtividade do trabalho. A
racionalidade tecnológica protege, assim, em vez de cancelar, a legitimidade da
dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre sobre uma sociedade
racionalmente totalitária [...].165

A ciência, em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, promoveu um


universo no qual a dominação da natureza ficou ligada à dominação do homem, em outras
palavras, a tecnologia se tornou o grande veículo de espoliação.

A não liberdade do homem é garantida pela racionalidade técnica, uma vez que esta
demonstra a impossibilidade técnica de o indivíduo ser autônomo e determinar sua própria
vida. Os meios tecnológicos são maciçamente utilizados para produzirem necessidades
repressivas sobre as quais se fundamenta a dominação:

A criação de necessidades repressivas tornou-se, de há muito, parte do trabalho


socialmente necessário – necessário no sentido de que, sem ele, o modo de
produção estabelecido não poderia ser mantido. Não estão em jogo problemas de
psicologia nem de estética, mas a base material da dominação. 166

Acredita na possibilidade de uma sociedade racional e livre, desde que seja


organizada, mantida e reproduzida por um novo sujeito, liberto de toda a propaganda,
doutrinação:

A autodeterminação será real desde que as massas tenham sido dissolvidas em


indivíduos libertos de toda a propaganda, doutrinação e manipulação, capazes de
conhecer e compreender os fatos e de avaliar as alternativas. Em outras palavras,
a sociedade seria mais racional e livre desde que fosse organizada, mantida e
reproduzida por um Sujeito histórico essencialmente novo.167

No entanto, a emersão deste sujeito é impedida por conta da atual fase de


desenvolvimento das sociedades industriais:

Na fase atual de desenvolvimento das sociedades industriais avançadas, tanto o


sistema material como o cultural negam essa exigência. O poder e a eficiência
desse sistema, a completa assimilação da mente com o fato, do pensamento com

165
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 154.
166
Idem, ibidem, p. 226.
167
Idem, ibidem, p. 231.
105

o comportamento exigido, das aspirações com a realidade, militam contra o


surgimento de um novo Sujeito.168

Em resumo: a sociedade industrial avançada possibilita o desenvolvimento das


forças produtivas em escala ampliada e a satisfação crescente das necessidades de um
número cada vez maior de pessoas, além da criação de necessidades e faculdades novas,
mas essas possibilidades são realizadas por meios e instituições que anulam seu potencial
libertador.

Do ponto de vista político e ideológico, o processo de unidimensionalização da


sociedade torna-se bem visível com a integração da classe operária, que se dá no plano da
psique, na medida em que o proletariado do capitalismo avançado introjetou os valores do
sistema econômico e político, e também no plano de uma integração objetiva, na medida
em que a classe trabalhadora se beneficia crescentemente, de fato e não apenas
ideologicamente, da prosperidade geral.

Até as formas tradicionais de protestos são cooptadas pela lógica tecnológica


totalitária criando uma ilusão de que a soberania popular está sendo exercida:

As tendências totalitárias da sociedade unidimensional tornam ineficaz o


processo tradicional de protesto – torna-o talvez até mesmo perigoso porque
preservam a ilusão de soberania popular. Essa ilusão contém alguma verdade: “o
povo”, anteriormente o fermento da transformação social, “mudou” para se
tornar o fermento da coesão social. 169

No entanto, Marcuse acredita no potencial revolucionário de grupos que estão fora


do conjunto de operários cooptados pelo sistema capitalista:

Contudo, por baixo da base conservadora popular está o substrato dos párias e
estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças, outras cores, os
desempregados e os não-empregáveis. Eles existem fora do processo
democrático, sua existência é a mais imediata e a mais real necessidade de por
fim as condições e instituições intoleráveis. Assim, sua oposição é revolucionária
ainda que sua consciência não seja. Sua oposição atinge o sistema de fora para
dentro, não sendo, portanto, desviada pelo sistema, é uma força elementar que
viola as regras do jogo e, ao fazê-lo, revela-o como um jogo trapaceado. Quando
eles se reúnem e saem às ruas, sem armas, sem proteção, para reivindicar os mais
primitivos direitos civis, sabem que enfrentam cães, pedras e bombas, cadeia,
campos de concentração e até morte. Sua força está por trás de toda manifestação
política para as vítimas da lei e da ordem. O fato de eles começarem a recusar a
jogar o jogo pode ser o fato que marca o começo do fim de um período. 170

168
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 231.
169
Idem, ibidem, p. 234.
170
Idem, ibidem, p. 235.
106

Marcuse se voltou cada vez mais para análise dos fatores subjetivos envolvidos na
transformação do capitalismo, fator decisivo para seu interesse na obra inicial de Marx, de
caráter humanista.
107

CAPÍTULO 3. DA CRÍTICA ANTI-HUMANISTA AO SUJEITO DE


DIREITO: LOUIS ALTHUSSER

Althusser (1918-1990), filósofo francês de origem argelina, elaborou uma leitura de


Marx original e consistente, tornando-se o mais importante pensador marxista anti-
humanista.

Considerado como um dos principais nomes do estruturalismo francês dos anos


1960, juntamente com Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Michel Foucault ou Jacques
Derrida, Althusser nega tal classificação, uma vez que, segundo ele, sendo marxista não
poderia ser estruturalista, já que no marxismo há o conceito de tendência, não existente no
estruturalismo:

No conceito de tendência, aflora de fato não somente a contradição interna ao


processo (marxismo não é um estruturalismo, não porque ele afirma o primado
do processo sobre a estrutura, mas porque afirma o primado da contradição sobre
o processo; no entanto, isso não é suficiente), mais ainda outra coisa, que política
e filosoficamente é muito mais importante, a saber, o estatuto singular, e sem
exemplo que faz da ciência marxista uma ciência revolucionária. Não somente
uma ciência de que os revolucionários podem se servir para a revolução, mas
uma ciência de que eles podem se servir porque ela está, no dispositivo teórico
de seus conceitos, sobre posições teóricas de classe revolucionárias. 171

Althusser teve uma educação católica, militando em organizações cristãs durante a


juventude, convertendo-se em militante comunista após o cativeiro que sofreu durante a II
Guerra Mundial, quando entrou em contato com vários militantes comunistas.

Marxista, filiou-se ao partido comunista francês em 1948 e no mesmo ano tornou-


se professor da École Normale Supérieure, onde lecionou até 1981. Foi o autor de várias
obras como Ler o Capital (1965), Análise Crítica da Teoria Marxista (Pour Marx - 1965)
ou Posições (1976).

Seu interesse pela filosofia foi motivado pelo materialismo e sua função crítica: “o
conhecimento científico contra todas as mistificações do ‘conhecimento’ ideológico”, o
que o levou a criticar o humanismo e o economicismo, interpretações que, segundo ele,
“contaminavam” as leituras de Marx.

171
ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In ______. Posições – 1. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978, p.101.
108

Condenou ideias como o "potencial humano" e o "ser-da-espécie", apresentadas por


alguns marxistas como uma superação da ideologia burguesa de humanidade. Defendeu o
anti-humanismo teórico, que consiste em afirmar a primazia da luta de classes e criticar a
individualidade, por ser produto da ideologia burguesa, e rejeitou o determinismo
econômico.

Realizou uma leitura não humanista da obra de Marx, desenvolvendo suas análises
em dois grandes momentos: o primeiro momento sob a acusação de teoricismo (ou
formalista), anos 1960, e posteriormente sob uma fase de autocrítica.

O primeiro momento refere-se às suas obras de 1965, Pour Marx e Lire le Capital,
em que a filosofia é compreendida como uma teoria científica da “prática teórica”,
apresentando como proposta uma ruptura com a ideologia:

On sait que le travail d’Althusser a été scandé, à grands traits, au moins par
deux grands moments discontinus, du théoricisme des années 1960 au tournant
“politiste”, chacun engageant une conception diferente de la philosophie e du
rapport à Marx e à la politique. Le premier, correspondant aux deux ouvrages
de 1965, compreende la philosophie comme théorie (scientifique) de “pratique
théorique”, supposant um raport de ruptura avec l’idéologie. Ils s’appuie sur um
exercice de “lecture” de la pensée de Marx, théorise dans Pour Marx et Lire le
Capital principalement.172

A ideologia foi tratada por Althusser, por um lado como pré-história da ciência, por
outro como prática, sendo necessária em toda e qualquer sociedade para manter a coesão
social, e não somente como erro ou engano que o Iluminismo eliminaria.

A ideologia, em contraposição com a ciência, refere-se à epistemologia, recurso que


Althusser utiliza para identificar um corte epistemológico na obra de Marx e o segundo
aspecto refere-se ao papel da ideologia como coesão social, com um papel de dominação
nas sociedades de classes e atuando por meio do imaginário e por estruturas reais.

O segundo momento refere-se a uma fase denominada de autocrítica, iniciada em


1968 com o texto de Lênin e a filosofia, seguido de Ideologia e aparelhos ideológicos de

172
BOURDIN, Jean-Claude (coord). Présentation, in Althusser: une lecture de Marx. Paris: Presses
Universitaires de France, 2008, p. 17. Sabe-se que o trabalho de Althusser foi dividido, em linhas gerais, em
pelo menos dois grandes momentos descontínuos: do teorismo dos anos 1960 a uma virada “politicista”, cada
um marcado por uma concepção diferente da filosofia e da relação com Marx e com a política. O primeiro,
correspondente às duas obras de 1965, compreende a filosofia como teoria (científica) da "prática teórica",
assumindo uma relação de ruptura com a ideologia. Eles se apoiam sobre um exercício de “leitura” do
pensamento de Marx, teorizado em Por Marx e Ler o Capital, principalmente (tradução livre).
109

Estado, de 1970 e Posições – 1, com os artigos Resposta a John Lewis e Elementos de


autocrítica, ambos de 1972 e Sustentação em Amiens, de 1975.

Althusser faz uma autocrítica de seus trabalhos anteriores, denunciando um desvio


teoricista e passa a defender a ideia de que a filosofia é luta de classe na teoria e dando
ênfase ao conceito de aparelhos de Estado e na tese da interpelação ideológicas dos
indivíduos em sujeitos:

Le second moment, signalé par une “autocritique”, dénonçant une déviation


“théiriciste”, défend l’idée que la philosophie est “lute de classe dans la
théorie”. On a pu parler d’um tournat “politist” dans la pensée d’Althusser.
Dans une conférence célébre devant la Societé francaise de philosophie, em
1968, il met spectaculairement em lumiére l’aport de Lénine dont il tire l’idée
que le marxisme n’est pas “une (nouvelle) philosophie de la práxis, mais une
pratique (nouvelle) de la philosophie” dont les propositions spécifiques, visant
non la vérité, mais la “justesse”, son appéles “thèses (ou positions: une position,
qui est posée, prend donc position, em occupant une position sur et contre
d’aoutrs positions)”. La lecture de Marx cesse dès lors d’être essentielle:
Althusser travaille la question de la reproduction des repports de production,
d’ou il faut distinguer la percée remarquable sur les appareils ideológiques
d’État e la surprenante, alors, thèse de l’interpellation idéologique des individus
em sujets que semblait mettre pour la primière fois em avant la question de la
subjetivité.173

Segundo Luiz Eduardo Motta, há ainda mais duas fases pela quais passou
Althusser. Uma terceira fase que teria sido uma extensão da segunda, com traços leninistas
mais acentuados, com a incorporação mais abertamente do maoísmo no aspecto político,
representado pelas obras: O 22º Congresso, de 1976, Enfim, a crise do marxismo, de 1977,
Marxismo como teoria finita, O marxismo hoje, de 1978, e O que não pode haver no
Partido Comunista, de 1978, além de Marx dentro dos seus limites, também de 1978.

A terceira fase de Althusser foi uma extensão da segunda, na qual acentuou mais
ainda os traços leninistas da segunda e incorporou mais abertamente o maoísmo
no aspecto político, além de demarcar uma posição completamente crítica às

173
BOURDIN, Jean-Claude (coord). Présentation, in Althusser: une lecture de Marx. Paris: Presses
Universitaires de France, 2008, p. 18-19. O segundo momento, movido por uma "autocrítica", denuncia um
desvio "teoricista", com a defesa de que a filosofia é “luta de classes na teoria." Pode-se falar de uma virada
“politicista” no pensamento de Althusser. Em uma palestra ilustre na Sociedade Francesa de Filosofia, em
1968, ele expõe uma abordagem de Lênin, de onde a ideia de que o marxismo não é "uma (nova) filosofia da
práxis, mas uma prática (nova) da filosofia", com proposições específicas, que visam não à verdade, mas à
“justeza”, chamadas “teses (ou posições: uma posição que é tomada, assumida enquanto posição, ocupando-
se uma posição sobre e contra outras posições)”. A leitura de Marx deixa de ser essencial: Althusser trabalha
a questão da reprodução das relações de produção, de onde se destacam os avanços sobre os aparelhos
ideológicos de Estado e a então inusitada tese da interpelação ideológica dos indivíduos como sujeitos, que
apareceu pela primeira vez diante da questão da subjetividade (tradução livre).
110

posições do PCF. [...]. É também nessa fase que Althusser começa a destacar a
questão da aleatoriedade que será central na fase seguinte. 174

Uma quarta fase seria o período em que ocorreu sua tragédia pessoal, quando
escreveu no manicômio sua autobiografia O futuro dura muito tempo, começando a
desenvolver o que ele denominou de materialismo aleatório ou do encontro, tendo
continuidade nos textos As correntes subterrâneas do materialismo do encontro, de 1982 e
no livro Filosofia e marxismo, de 1988:

Para Althusser, trata-se de uma filosofia do vazio, pois é uma filosofia que, em
vez de partir dos famosos “problemas filosóficos”, começa por eliminá-los e por
recusar a dar-se sobre si mesma um “objeto” (a filosofia não tem um objeto) para
partir do nada. Dá-se, pois, o primado da ausência (não há origem) sobre a
presença (cf. Althusser; Navarro, 1988:33). Há de fato uma aproximação com as
posições pós-estruturalistas de Deleuze e Derrida, mas não considero que tenha
havido uma “ruptura epistemológica” em sua obra como defende Armando Boito
Jr. (2007: 42). Ruptura haveria sim se Althusser desconsiderasse as suas posições
contra a filosofia do sujeito e renegasse os seus conceitos como aparelhos
ideológicos de Estado. Diferentemente disso, Althusser se manteve fiel a essas
posições iniciais, embora tenha se afastado de muitas de suas questões centrais
dos anos 1960 e que se mantiveram nos anos 1970.175

Trataremos a seguir, com intuito de buscarmos a caracterização da subjetividade


jurídica nesse autor, suas duas primeiras fases (incluindo a considerada por Motta como 3ª,
na verdade extensão da 2ª), com a abordagem do “corte epistemológico” – análise dos dois
momentos de Marx (juventude e maturidade) - e dos efeitos da ideologia (tanto na prática
quanto na teoria).

3.1 - Corte epistemológico

Com a denúncia do “culto à personalidade” feita no XX Congresso do Partido


Comunista da URSS, relativo ao período “stalinista”, ocorreu uma reação ideológica de
tendência liberal em que temas como “liberdade”, “o homem”, “pessoa humana” e
“alienação” foram colocadas em pauta. Estas tendências encontraram ressonância teórica
nas obras de juventude de Marx, que se utilizam destes argumentos: filosofia do homem,
de sua alienação e sua libertação:

A crítica do “dogmatismo” stalinista foi geralmente “vivida” pelos intelectuais


comunistas como uma “libertação”. Essa “libertação” fez nascer a uma profunda

174
MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na Teoria Marxista. Rio de Janeiro:
FAPERJ e Gramma Livraria e Editora, 2014, p. 15.
175
Idem, ibidem, p. 16.
111

reação ideológica de tendência “liberal ”-“moral” que espontaneamente


reencontrou os velhos temas filosóficos da “liberdade”, do “homem”, da “pessoa
humana” e da “alienação”. Essa tendência ideológica procurou seus títulos
teóricos nas obras da juventude de Marx, que contém efetivamente todos os
argumentos de uma filosofia do homem, de sua alienação e de sua libertação.176

Diante disso, Althusser impõe-se a tarefa de recuperar o carácter científico do


marxismo, colocando como eixo do seu pensamento o combate à penetração da ideologia
burguesa no seio do marxismo, para recuperá-lo como ciência revolucionária.

Frente às estas tendências, Althusser traça uma linha de demarcação, que ele
chamou de corte epistemológico (expressão que tomou emprestada de Gaston Bachelard),
entre o que ele considera como “verdadeiros fundamentos teóricos da ciência marxista da
História e da Filosofia marxista”, de uma parte, e das “noções idealistas pré-marxistas”,
sobre a quais repousam as interpretações do marxismo como filosofia do homem ou como
humanismo, de outra.

Estudando as obras de juventude de Marx, Althusser procurou identificar se


realmente existia essa linha divisória no desenvolvimento intelectual deste autor que
diferencia a filosofia marxista propriamente dita das concepções filosóficas anteriores e em
que momento tal corte epistemológico ocorreu:

Foi o estudo das obras de juventude de Marx que me levou inicialmente à leitura
de Feuerbach e à publicação dos seus textos teóricos mais importantes do
período 39-45 (cf. meus considerandos, pp. 33-38). Foi essa mesma razão que
devia naturalmente conduzir-me a estudar, no detalhe de seus respectivos
conceitos, a natureza das relações da filosofia de Hegel com a filosofia de Marx.
A questão da diferença específica da filosofia marxista tomou assim a forma da
questão de saber se existia ou não, no desenvolvimento intelectual de Marx, um
corte epistemológico marcando o surgimento de uma nova concepção da
filosofia – e a questão correlativa do lugar preciso desse corte. Foi no campo
dessa questão que o estudo das obras de Juventude de Marx toma uma
importância teórica (existência do corte?) e histórica (lugar do corte?)
decisiva.177

Conclui que se trata de uma linha de demarcação entre a teoria marxista


propriamente dita e as formas de subjetivismo filosófico provenientes do pensamento
burguês, fundamentalmente o empirismo (que englobaria o historicismo e o pragmatismo).

Expõe uma oposição entre o jovem Marx idealista marcado por noções humanistas
provenientes de uma filosofia idealista e o Marx maduro materialista que criou a ciência da
História.

176
ALTHUSSER, Louis. Aos leitores. In______. Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 210.
177
ALTHUSSER, Louis. Prefácio: Hoje. In ______. Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 21-22.
112

Estas duas frentes seriam dois aspectos do problema filosófico básico a que
Althusser se submeteu: a oposição entre ciência e ideologia.

Identifica o “corte epistemológico” a partir de determinado momento em que Marx,


ao fundar a teoria da história (materialismo histórico), em um só movimento rompe com a
consciência filosófica anterior e funda uma nova filosofia, o materialismo dialético:

Esse corte epistemológico refere-se conjuntamente a duas disciplinas teóricas


distintas. Foi fundando a teoria da história (materialismo histórico) que Marx,
num único e mesmo movimento, rompeu com sua consciência filosófica
ideológica anterior e fundou uma nova filosofia (materialismo dialético). Retomo
expressamente a terminologia consagrada pelo uso (materialismo histórico,
materialismo dialético), para designar essa dupla fundação num único corte.178

O corte estabelece uma clara distinção entre a ideologia e a ciência, criando-se um


cenário na qual se apresenta uma dicotomia que é representada por um lado pela
apropriação imaginária da realidade, manifestada através da ideologia, e por outro pelo
efetivo conhecimento da realidade através da ciência, estabelecendo-se a partir dessa noção
o anti-humanismo teórico:

Do ponto de vista epistemológico – o qual vai dominar boa parte de Pour Marx,
e constituir o núcleo de Lire Le capital -, Althusser caracteriza a ideologia como
pré-história da ciência. A ideologia, no plano teórico – não nos esqueçamos –
cobre o espaço vazio que a ciência preencherá, pensando o seu objeto, ainda que
em termos imaginários, sem produzir o efeito de conhecimento, trabalho de que
se encarregará a ciência. Assim, a ideologia deve ser pensada: “[...] como a pré-
história real cujo confronte real com outras práticas técnicas, e outras aquisições
ideológicas ou científicas, pôde produzir, numa conjuntura técnica específica, o
advento de uma ciência não como seu fim, mas como sua surpresa”. 179

O corte significa a separação radical entre ciência e ideologia, questionando-se as


contaminações e os resíduos ideológicos que estão presentes na constituição de toda
ciência e no revisionismo que as impregna, de tempos em tempos.

Mesmo contendo algumas verdades afirmadas nas teses do Jovem Marx, não se
pode ficar prisioneiro do que se decidiu na esfera das ideias, nem do que se efetuou em
virtude de uma reflexão sobre as ideias propostas por Hegel, Feurbach e outros.

178
ALTHUSSER, Louis. Prefácio: Hoje. In______. Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 24.
179
SAMPEDRO, Francisco. A teoria da ideologia em Althusser. In ______; NAVES, Marcio Bilharinho
(org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 32-33.
113

Desta forma, a ruptura do Marx maduro com seus escritos da Juventude se deve por
estarem estes escritos baseados em uma concepção positivista - historicista - que retira a
noção da determinação econômica.

Isso significa que o nascimento da ciência implica a exclusão da ideologia, mas, ao


mesmo tempo, ela, a ideologia, ainda acompanha a ciência até ser eliminada, sendo sua
“companheira surda”:

Poderia nos embaraçar que, ao ensejo do estudo deste problema, fossemos


convidados a pensar de modo inteiramente novo a relação da ciência com a
ideologia de que ela nasce, e que continua de certo modo a acompanhá-la
surdamente em sua história; que essa pesquisa nos pudesse diante dessa
verificação de que toda a ciência só pode ser pensada como “ciência da
ideologia”, em relação com a ideologia de que ela sai; mas isso se não
estivéssemos advertidos da natureza do objeto do conhecimento, que só pode
existir na forma da ideologia quando se constitui a ciência que vai produzir seu
conhecimento, no modo específico que define. 180

A ciência nasce da ideologia e se desenvolve excluindo-a, de forma que os


conceitos com os quais a ciência trabalha provém da ideologia. Assim, não se pode falar
em um conhecimento puro, uma vez que todo conhecimento carrega uma ideologia com a
qual luta:

Por outro lado, Althusser faz referência – no texto citado – à companhia surda da
ideologia junto à ciência. Como podemos compreender isso? Antes de mais
nada, e reiterando ainda uma vez, que nos encontramos no interior de um espaço
epistemológico, tendo presente que a ciência se articula em parceria, embora
contraditória e processual, com a ideologia. De modo que a contradição entre
ciência e ideologia (no estrito sentido teórico) resultaria insuperável porque na
prática não há conhecimentos “puros”, já que imediatamente qualquer
conhecimento científico carrega uma ideologia ao mesmo tempo em que a
desestabiliza. 181

Toda ciência nasce, tem uma pré-história da qual ela se liberta, podendo se libertar
em dois sentidos, em um sentido comum e em outro que a distingui antes de tudo da
filosofia que a acompanha na teoria.

Em sentido comum, a ciência vem de um processo de gestação, partindo de


elementos ideológicos, científicos (dependendo de outras ciências) ou filosóficos:

Ela se liberta no sentido comum: entendamos que ela não nasce do nada, mas de
todo um trabalho de gestação, complexo, múltiplo, atingido às vezes por clarões,
mas ainda assim obscuro e cego, pois “ele” não sabe onde tende, nem se jamais

180
ALTHUSSER, Louis; RANCIÉRI, Jacques; MACHEREY, Pierre. De “O capital” à filosofia de Marx. In
ALTHUSSER, Louis. Ler o capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 47-48. v. I.
181
SAMPEDRO, Francisco. A teoria da ideologia em Althusser. In ______; NAVES, Marcio Bilharinho
(org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 34.
114

atingirá a saída. Ela nasce do concurso imprevisível, incrivelmente complexo e


paradoxal, mas necessário em sua contingência, de “elementos” ideológicos,
políticos, científicos (dependendo de outras ciências), filosóficos, etc. que em um
momento “descobrem”, mas demasiado tarde, que se procuravam, pois se
encontravam sem se reconhecer na figura teórica de uma ciência nascente. 182

No entanto, uma ciência pode também se libertar de sua pré-história por si mesma,
rejeitando toda ou parte de sua pré-história qualificando-a como erro, criando-se uma nova
perspectiva, uma nova ciência, como o nascimento de uma criança sem pai.

Mas uma ciência se liberta também de sua pré-história por si mesma: de uma
forma totalmente diversa daquela que, pelo menos na teoria, lhe pertence
propriamente, pois ela a distingue, entre outras, de maneira como a Filosofia “se
liberta” de sua história. Neste sentido, pode-se quase dizer que uma ciência se
liberta de sua pré-história, como Marx, que saiu do quarto do comunista
Weitling, batendo a porta, com a célebre apóstrofe: “A ignorância jamais será um
argumento!” Rejeitando toda ou parte de sua pré-história, qualificando-a de
erro. 183

Portanto, uma ciência nasce quando rompe com sua pré-história, elaborando o
“conceito do seu objeto”, isto é, o conjunto de conceitos mais ajeitados para o
conhecimento do objeto que se propõe a estudar.

As ciências, segundo Althusser, são instaladas em “continentes” teóricos que são o


seu campo de investigação. No decorrer da história, três grandes continentes teóricos
abriram-se para o conhecimento científico: o das matemáticas, da física e por fim, o
continente da história.

O continente das matemáticas começou na Antiga Grécia, talvez por Tales de


Mileto, o continente da Física e das ciências naturais surgiu com Galileu Galilei, sendo o
continente da história aberto por Marx (Althusser considerava que estes “continentes”
teriam “subcontinentes”, de modo que, por exemplo, Lavoisier abriria o “subcontinente”
Química pertencente ao continente Física):

Com efeito, em conformidade à tradição constantemente retomada pelos


clássicos do marxismo, podemos afirmar que Marx fundou uma nova ciência: a
ciência da história das “formações sociais”. Para ser mais preciso, eu diria que
Marx “abriu” ao conhecimento científico um novo “continente”, o da história –
como Tales abriria ao conhecimento científico o “continente” da matemática,
como Galileu abriria ao conhecimento científico o “continente” da natureza
física. Eu acrescentaria que, assim como a fundação das matemáticas por Tales
“provocou” o nascimento da filosofia platônica, assim como a fundação da física
por Galileu “provocou” o nascimento da filosofia cartesiana etc., a fundação da

182
ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In ______. Posições – 1. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978, p. 85-86.
183
Idem, ibidem, p. 86.
115

história por Marx “provocou” o nascimento de uma nova filosofia teórica e


praticamente revolucionária: a filosofia marxista ou materialismo dialético. 184

Além dos continentes acima citados, teríamos também um novo continente relativo
aos fenômenos psíquicos - a psicanálise de Freud - que inicialmente teve de pensar sua
descoberta e prática por meio de conceitos importados de outras ciências, como a biologia,
economia política etc. Freud criou seus conceitos, como o inconsciente (objeto de uma
nova ciência), a partir de conceitos emprestados das ciências existentes, conceitos estes
banhados em um mundo ideológico.

Marxismo e psicanálise são exemplos de ciências sem pai, no entanto, a tendência é


a de se atribuir um pai a uma nova ciência, de forma a descaracterizar o aspecto
revolucionário do novo e conservar a carga ideológica dos conceitos anteriores. No caso de
Marx, a tentativa de se esvaziar sua descoberta científica é intensa e permanente:

A procura de uma “genealogia” é, portanto, a procura do Pai, mais precisamente,


a procura de uma linha que permita colocar a criança na continuidade de sua
“raça”. A criança é apenas na e pela interpelação do Pai, isto é, da lei que a faz
ser o que ela é. Ela desaparece sob o Nome do Pai que a nomeia (dando seu
nome), a coloca no seu lugar (o lugar do pai), lhe designa sua função: conservar
(continuar) seu poder (econômico/ideológico), reproduzir o patrimônio
(ideológico/econômico/político) comum. 185

Desta forma, com intuito de se manter o status quo, procura-se minimizar a


grandeza revolucionária de uma ciência, que coloca a nu a dominação existente na
reprodução do modo de produção burguês, colocando-a como mera continuidade das
ciências anteriores, ou, reduzindo-a ao discurso do Pai:

É por isso que os ideólogos burgueses fiadores da continuação da Ordem social


tentam esvaziar Marx, esvaziar sua descoberta científica, sua descoberta de uma
ciência que os ameaça, reduzindo-a ao discurso do Pai (Ricardo ou Hegel),
negando assim o materialismo histórico como ciência que se desenvolve sobre a
sua própria base, que tem seu próprio objeto. A filiação é, portanto, sempre
suspeita, suspeita de querer sufocar a criança nos braços do Pai. Para Althusser,
consequentemente, a ciência marxista é uma criança sem pai “único-
identificável”. Reportemo-nos a Lenin, diz ele: para Lenin, “o marxismo tinha
nada menos que ‘três fontes’, forma que quase não foi entendida de mandar às
favas a questão DO pai”.186

Segundo Lenin, a pré-história da ciência da História provém das chamadas “três


fontes do marxismo”: a filosofia clássica alemã de Hegel e Feuerbach, a economia política

184
ALTHUSSER, Louis. Aos leitores. In______. Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 213.
185
THÉVENIN, Nicole-Édith. O itinerário de Althusser. In SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio
Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 11.
186
THÉVENIN, Nicole-Édith. O itinerário de Althusser. In SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio
Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 11-12.
116

clássica de Smith e Ricardo; e o socialismo utópico francês de Saint-Simon, Proudhon etc.


Tais fontes constituem a “matéria prima” que Marx transformou mediante o seu dispositivo
conceitual:

Os mestres do marxismo (Marx primeiramente, Engels e depois Lênin) sentiram


bem que não era suficiente constatar o surgimento de uma ciência nova, mas que
era necessário fornecer uma análise, de acordo com os princípios da ciência
marxista, das condições desse surgimento. Encontram-se os primeiros elementos
dessa análise em Engels e Lênin, sob a forma da teoria das “Três fontes” do
marxismo: a Filosofia alemã, a Economia Política inglesa e o Socialismo
francês. 187

No entanto, não se pode deter na constatação da existência dessas fontes, a questão


é a de como o marxismo se desprendeu dessas fontes e como elas puderam produzir uma
conjunção científica, uma ruptura:

Não é de fato suficiente comprovar que a conjunção desses três elementos


teóricos produziu o surgimento da ciência marxista. É ainda necessário se
perguntar como essa conjunção pode produzir uma conjunção científica, e esse
encontro uma “ruptura”. Em outros termos, é necessário se perguntar como e por
que, na ocasião dessa conjuntura, o pensamento marxista pode sair da ideologia;
ou ainda qual é o deslocamento que produziu essa prodigiosa transformação,
qual é a mudança de ponto de vista que colocou em dia o que estava mascarado,
transformou o sentido do que fora adquirido, e descobriu nos fatos uma
necessidade desconhecida.188

O Jovem Marx em sua “evolução” do pensamento muda o objeto de reflexão,


passando do direito ao Estado e depois à economia política; muda de posição filosófica,
passando de Hegel a Feuerbach e depois ao materialismo revolucionário; e muda também
de posição política, passando do liberalismo radical burguês para o humanismo pequeno-
burguês e depois para o comunismo.

Althusser interpreta a teoria das três fontes destacando o deslocamento do jovem


Marx a posições políticas e teóricas de classe proletárias:

Desta forma, tomarei a liberdade de interpretar a teoria das “Três fontes”. A


conjunção dos três elementos teóricos (Filosofia alemã, Economia Política
inglesa, Socialismo francês) só pode produzir seu efeito (a descoberta científica
de Marx) por um deslocamento que conduziu o jovem Marx não somente a
posições políticas, mas também a posições teóricas de classe proletárias. Sem a
política nada se teria passado, mas sem a Filosofia, a política não teria

187
ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In ______. Posições – 1. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978, p. 124.
188
Idem, ibidem, p. 124-123.
117

encontrado sua expressão teórica, indispensável para o conhecimento científico


de seu objeto.189

Apesar de estas fontes terem um carácter predominantemente ideológico, não


científico, tiveram também elementos científicos, como Marx reconheceria tanto em
Ricardo como em Hegel (de quem dizia que aproveitara o “núcleo racional” da sua
doutrina separando da sua “cortina mística”). Assim, Hegel seria para Marx, no que se
refere ao conhecimento da História, o que Aristóteles foi para Galilei, no que se refere ao
conhecimento da Natureza.

O corte significa ultrapassar o inultrapassável, ficar fora do campo comum, em


oposição a, em contradição com, em luta contra. No caso de Marx, a luta contra as
contradições políticas/ideológicas de seu tempo nunca cessará e quando há um retorno,
esse se dá com intuito de correção.

Em suas primeiras obras, Marx comenta suas “fontes”, desenvolvendo a teoria dos
seus predecessores, atenuando suas falhas, cobrindo as suas insuficiências etc., mas faz
tudo isto sem sair da terminologia que usavam ditas fontes, ainda não há originalidade no
pensamento de Marx, ele ainda não é marxista, segundo Althusser.

A partir de 1845, com o surgimento de duas obras (que foram publicadas muito
despois de suas criações) “A ideologia alemã” e as “Teses sobre Feuerbach”, Marx já não
se reduz aos comentários das suas fontes (sobretudo a filosofia de Feuerbach), mas começa
a utilizar sua própria terminologia, utilizando conceitos não encontrados em Hegel, nem
em Feuerbach, nem em Ricardo, como: modo de produção, forças produtivas, relações de
produção, formação social, infraestrutura, superestrutura, ideologias, classes e lutas de
classes etc.:

1 - Um corte epistemológico inequívoco intervém, sem nenhum equívoco, na


obra de Marx, no ponto onde o próprio Marx o situa, na obra não publicada em
vida, que constitui a crítica de sua antiga consciência filosófica (ideológica): a
ideologia alemã. As “Teses sobre Feuerbach”, que são apenas algumas frases,
marcam a borda anterior extrema desse corte, o ponto onde, na antiga
consciência e na antiga linguagem, portanto em fórmulas e conceitos
necessariamente desiquilibrados e equívocos, já aponta a nova consciência
teórica. 190

189
ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In ______. Posições – 1. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978, p. 127.
190
ALTHUSSER, Louis. Prefácio: Hoje. In Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 23-24.
118

Marx rompe com a terminologia das suas fontes porque que tal terminologia torna-
se insuficiente para dar conta do que descobre em 1845: a exploração capitalista, e por
extensão, o da “exploração do homem pelo homem”, ou melhor, o descobrimento da luta
de classes como motor da história que tem uma base material que se desenvolve
independentemente da consciência que dela se tenha, uma base material que faz com que
os conflitos da classe sejam objetivamente irreconciliáveis, dado que estão baseados na
exploração econômica, Marx descobre a primazia da luta de classes em relação às classes
sociais.

Fundou-se um novo continente do conhecimento, a ciência da história, da


construção do materialismo histórico como método e da eliminação do conceito de homem
como conceito central das formações sociais e da história. Com esta “cesura
epistemológica”, Marx criou duas disciplinas ao mesmo tempo, o materialismo histórico e
o materialismo dialético:

Esse corte epistemológico refere-se conjuntamente a duas disciplinas teóricas


distintas. Foi fundando a teoria da história (materialismo histórico) que Marx,
num único e mesmo movimento, rompeu com sua consciência ideológica
anterior e fundou uma nova filosofia (materialismo dialético).191

A princípio, o corte epistemológico proposto por Althusser é exposto como uma


ruptura abrupta, com uma tendência definida pelo próprio Althusser como “desvios
teoricistas”. Por conta destes “desvios”, o corte foi objeto de várias críticas que o levaram a
elaborar uma autocrítica, reapresentando o corte como um processo de longa duração
(Marx, mesmo após o corte, retorna a Hegel para “corrigi-lo”) e corrigindo sua
interpretação meramente racionalista especulativa do corte.

Desta forma, Althusser revisita sua própria obra para retificá-la, eliminar os
“desvios teoricistas” que, para ele, seriam a prioridade da teoria sobre a prática, a
insistência unilateral sobre a teoria, ou seja, a utilização de um racionalismo especulativo:

Nunca reneguei meus ensaios: não tive motivos para fazê-lo. Mas em 1967,
portanto dois anos depois de seu aparecimento em uma edição italiana de Lire le
Capital (assim como em ouras edições estrangeiras), reconheci que eles estavam
afetados por uma tendência errônea. Indiquei a existência desse erro e lhe dei um
nome: teoricismo. Hoje, creio poder ir além: precisar o “objeto” de eleição desse
erro, suas formas essenciais e seus efeitos de ressonância. E acrescento: mais que
de erro, é preciso falar de desvio. Desvio teoricista. Veremos ainda por que me

191
ALTHUSSER, Louis. Prefácio: Hoje. In Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 24.
119

sinto induzido a mudar de termo – isto é, em espécie de categoria – e qual a


jogada filosófica e política dessa nuança.192

Estas retificações, que começaram em 1967, em um prefácio da edição italiana de


Lire le Capital, prosseguem nos textos A querela do humanismo, escrito em 1967, e
Elementos de autocrítica, de 1972.

Althusser aponta como seu desvio teoricista uma interpretação racionalista do corte,
com a oposição entre erro e verdade, colocando a ideologia como erro e Ciência como a
verdade (redução que consta também na Ideologia Alemã, da qual, no entanto, Marx se
libertou), reduzindo o corte a um fato teórico limitado:

Mas, em lugar de dar a esse fato histórico toda a sua dimensão social, política,
ideológica e teórica, eu o reduzi à medida de um fato teórico limitado: o “corte”
epistemológico, observável nas obras de Marx a partir de 1845. Assim, fui
conduzido a uma interpretação racionalista do “corte” opondo a verdade ao erro
sob as formas da oposição especulativa “da” ciência e “da” ideologia em geral,
cujo antagonismo do marxismo e da ideologia burguesa tornava-se então um
caso particular. Redução + interpretação: dessa cena racionalista-especulativa, a
luta de classes estava praticamente ausente.193

Assim, para Althusser, a ruptura com a ideologia burguesa foi reduzida ao “corte” e
o antagonismo do marxismo à ideologia burguesa ao antagonismo da ciência e da
ideologia. Na verdade, a ruptura promovida por Marx em relação à ideologia burguesa não
foi somente teórica, mas também política e ideológica, levando em consideração o ponto
de vista de classe, da classe operária:

Essa ruptura era a ruptura de Marx não com a ideologia em geral e não somente
com as concepções ideológicas da história existentes, mas com a ideologia
burguesa, com as concepções do mundo burguês, dominante no poder, e que
reinava sobre as práticas sociais, mas também nas ideologias práticas e teóricas,
na Filosofia e até nas obras da Economia Política e do socialismo utópico. É
também um fato decisivo para compreender a posição de Marx que esse reino
não fosse sem divisão, mas o resultado de uma luta contra as sobrevivências da
concepção do mundo feudal e contra as premissas frágeis de uma nova
concepção proletária do mundo. Porque ele só podia romper com a ideologia
burguesa no seu conjunto, com a condição de se inspirar em premissas da
ideologia proletária, e nas primeiras lutas de classes do proletariado, onde essa
ideologia tomava corpo e consistência. 194

Na verdade, Althusser, diante de críticas recebidas por conta de sua concepção de


corte epistemológico, sentiu a necessidade de esclarecer que o ponto de vista da classe
operária foi fundamental na elaboração da ruptura de Marx com a ideologia burguesa, o

192
ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In ______. Posições – 1. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978, p. 79.
193
Idem, ibidem, p. 80.
194
Idem, ibidem, p. 92-93.
120

que talvez não tivesse ficado claro quando tratou do “corte”, fazendo, com isso, um retorno
ao que escreveu para “corrigir-se”, sendo fiel a seu método utilizado em sua “releitura” de
Marx.

No entanto, já há nos textos de Por Marx, o reconhecimento da importância da


teoria marxista para a luta de classes revolucionária, uma distinção das diferentes práticas,
com destaque da prática teórica. Esta obra contém uma dupla intervenção ou intervém em
duas frentes, sendo que na primeira intervenção destaca o papel da teoria marxista para a
luta de classes:

A primeira intervenção tem por objetivo “traçar uma linha de demarcação” entre
a teoria marxista e as formas de subjetivismo filosófico (e político) que se
comprometem ou a ameaçam: antes de tudo, o empirismo e suas variantes,
clássicas ou modernas – pragmatismo, voluntarismo, historicismo etc. Os
momentos essenciais dessa primeira intervenção são: reconhecimento da
importância da teoria marxista para a luta de classe revolucionária, distinção das
diferenças práticas, destaque da especificidade da “prática teórica”, pesquisa
inicial sobre a especificidade da teoria marxista (distinção nítida entre a dialética
idealista e a dialética materialista) etc. Esta primeira intervenção situa-se
essencialmente no terreno da confrontação entre Marx e Hegel. 195

Já a segunda intervenção traça uma linha de demarcação entre os fundamentos da


ciência marxista da História e da filosofia marxista e das noções ideológicas pré-marxistas
– seria a confrontação entre as obras de juventude de Marx e O Capital:

A segunda intervenção tem por objeto “traçar uma linha de demarcação” entre os
fundamentos teóricos verdadeiros da ciência marxista da história e da filosofia
marxista, por um lado, e as noções idealistas pré-marxistas nas quais repousam
as interpretações atuais do marxismo como “filosofia do homem” ou como
“humanismo”, por outro.196

Para Nicole-Édith Thévenin, professora da Universidade de Paris VIII, Vincennes-


Saint-Denis, Althusser caiu em uma armadilha ao tentar estabelecer a cientificidade da
teoria marxista subestimando o papel da luta de classes na teoria na utilização da leitura
sintomal:

Leitura, é preciso que se diga, que provou a sua produtividade, mas que
escamoteia ao mesmo tempo o papel da luta de classes, o modo de intervenção
da ideologia na teoria, o ponto de vista de classe no próprio Marx em sua
teorização do processo do capital. Tratava-se ainda de reduzir o marxismo a um
“retorno à história real, econômica/histórica, sem dar o sentido
ideológico/político da tese do corte. Era, como ele próprio disse, fazer da
ciênciac marxista uma “ciência como as outras” sem ver claramente (embora
tenha pressentido) que ela era uma ciência revolucionária, que, ao contrário das
outras ciências, não provocava apenas consequências científicas, mas

195
ALTHUSSER, Louis. Aos leitores. In______. Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 212.
196
Idem, ibidem, p. 212-213.
121

consequências diretamente políticas. Que ela servia não apenas à ciência, mas à
prática revolucionária das massas, que, como ele escreveu, “reconheceram a
teoria científica de Marx ‘sua’ própria verdade”, porque ela repousa sobre
“posições teóricas proletárias”. 197

Partindo da noção de “corte epistemológico”, Althusser propõe a divisão do


pensamento de Marx em dois grandes períodos essenciais: o período ainda “ideológico”,
anterior à cesura de 1945, e o período “científico”, posterior à cesura de 1845, sendo que
este segundo período seria dividido em dois momentos, o momento da maturação teórica e
o momento da maturidade teórica de Marx.

Especificando melhor estas duas facetas principais na obra de Marx, Althusser


propõe a seguinte classificação:

1ª) 1840-1844: Obras da Juventude, que vão de sua dissertação de doutorado -


Diferença da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro aos Manuscritos de 1844,
incluindo A sagrada família;

2ª) 1845: Obras da Cesura - Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã;

3ª) 1845-1857: Obras da maturação - O manifesto do partido comunista, a Miséria


da Filosofia etc., e

4ª) 1857-1883: Obras da maturidade - Grundrisse , O capital, etc.

Em Por Marx Althusser pensa Marx a partir do materialismo histórico, mas nos
termos da juventude de Marx e em Ler o capital Althusser se instala no terreno “científico”
da obra O Capital, quando procura diferenciar a realidade histórica analisada por Marx da
história ideológica analisada pelos filósofos anteriores:

Em Pour Marx, Althusser sem dúvida pensa Marx a partir do materialismo


histórico, mas nos termos ainda da juventude de Marx (“história real”, “ilusão”
para qualificar a ideologia, “volta para trás”...), ele pensa Marx nos esforços de
Marx para sair de sua própria ideologia, Lire Le capital (assim como O capital)
rompe com todo o começo (filosófico) para se instalar diretamente no terreno
científico, o terreno do Capital. Não é mais simplesmente m retorno à história
real, mas a teorização científica dessa história para mostrar em que a “realidade”

197
THÉVENIN, Nicole-Édith. O itinerário de Althusser. In SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio
Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 19-20.
122

da história descoberta por Marx não tinha nada a ver com a realidade da história
vista pelos filósofos.198

Analisaremos, a seguir, os dois principais momentos de Marx sob a ótica de


Althusser: antes do corte, o Marx ideológico e após o corte, o Marx científico.

3.1.1. Retorno ao Jovem Marx/Marx ideológico

Althusser busca identificar o processo de mudança que ocorre em Marx, que partiu
de um humanismo antropológico, centrado em um sujeito de direito, chegando a uma
posição materialista anti-humanista, em que não há um sujeito e sim um enfoque dado ao
modo de produção e à luta de classes.

Faz esse retorno de forma rigorosamente científica, com intuito de reverter uma
tendência que passou a influenciar vários pensadores, depois da abertura do regime
soviético, de uma busca pela “liberdade individual” e reabilitação da obra de juventude de
Marx:

A missão althusseriana, assim, é afastar o marxismo dos fantasmas de seu


passado, principalmente de um suposto humanismo teórico, faceta feuerbachiana
que teria sido revelada em suas obras de juventude e com a qual Marx romperia a
partir de A ideologia alemã. A relevância de tal discussão encontra-se justamente
no fato de que, para Althusser, o humanismo teórico de Feuerbach, com
conceitos que tem como cerne a ideia de homem, articulada com sua essência
que é objetivada, de forma alienada e mantendo com o homem uma relação
especular, nos objetos por ele produzidos, sejam objetos materiais ou criações
subjetivas como a religião. Althusser busca defender o marxismo do humanismo
teórico de forma tão radical que pretende livrá-lo de todos os conceitos que
compõem o humanismo, identificando, na gênese do pensamento marxiano e em
sua relação com o pensamento hegeliano, os motivos pelos quais não é possível
identificar um sujeito em Hegel e, ainda que seja possível, este sujeito encontra-
se exatamente no ponto em que Marx supera Hegel, de modo que, em Marx, o tal
sujeito não seria encontrado em hipótese alguma. 199

Althusser inicia seu retorno a Marx em Por Marx, no qual faz um confronto com a
pré-história desse autor para uma melhor compreensão do corte epistemológico, do
mecanismo da ruptura ocorrido com a ideologia burguesa e o caminho em direção à ciência
marxista – o Continente-História:

198
THÉVENIN, Nicole-Édith. O itinerário de Althusser. In SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio
Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 18.
199
BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da Tecnologia dos direitos sociais. São Paulo: Outras Expressões e
Dobra Universitária, 2014, p. 92-93.
123

Em Pour Marx a questão se põe assim: de Feuerbach ao Capital, passando pela


Ideologia Alemã, como se deu a evolução de Marx, sua liberação de uma
problemática antiga, o surgimento de uma nova problemática e
consequentemente de uma nova ciência, de um novo objeto: o Continente-
História. Como, tendo um primeiro momento “esposado” a problemática
feuerbachiana, identificando-se tanto com ela, como escreve Althusser, a ponto
de criticar Hegel nos termos de uma problemática antropológica, Marx pôde, “ao
preço de um prodigioso afastamento das suas origens”, ao preço de esforços
extraordinários para remover, atravessar a camada ideológica da ideologia alemã,
liquidar” a sua consciência anterior, abrir as portas a uma concepção nova da
filosofia.200

A leitura de Marx que Althusser inicia em Por Marx se dá a partir do materialismo


histórico, mas ainda nos termos da juventude de Marx, nos esforços de Marx para sair de
sua própria ideologia.

A questão do ponto de vista político sobre o jovem Marx seria pesquisar sobre ele
ser por completo, ou não, marxista:

Eis, portanto, o lugar do debate: o Jovem Marx. O que está em jogo no debate: o
marxismo. Os termos do debate: se o Jovem Marx é já Marx e todo o Marx.
Assim começado o debate, parece que, na ordem ideal da combinatória tática, os
marxistas tenham escolha entre duas defesas.201

Outra questão seria do ponto de vista teórico, como ler os textos do jovem Marx
sem cair na tentação de considerar as influências por ele recebidas como partes integrantes
de suas categorias desenvolvidas em sua maturidade. Tal tentação ocorre por conta da
aplicação do método eclético:

Quando se escava abaixo da superfície do ecletismo, encontra-se, a menos que se


trate de formas absolutamente desprovidas de pensamento, sempre essa
teleologia teórica e essa autointeligibilidade da ideologia como tal. Ora, não se
pode deixar de pensar, ao ler alguns artigos da coletânea, que eles ainda
permanecem contaminados, mesmo em seus esforços para se libertarem dela,
pela lógica implícita dessa concepção. Tudo acontece como se a história do
desenvolvimento teórico do jovem Marx exigisse a redução do seu pensamento a
seus “elementos”, agrupados em geral sob duas rubricas: os elementos
materialistas, os elementos idealistas; e como se a comparação desses elementos,
a confrontação de peso, devesse decidir no sentido do texto examinado.202

Resumindo, há a necessidade de se considerar o campo ideológico em que se


desenvolve um pensamento de modo a se tornar evidente a sua problemática:

A compreensão de um desenvolvimento ideológico implica, no nível da


própria ideologia, o conhecimento conjunto e simultâneo do campo

200
THÉVENIN, Nicole-Édith. O itinerário de Althusser. In SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio
Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 14-15.
201
ALTHUSSER, Louis. “Sobre o jovem Marx” (questões de teoria). In______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, p. 40.
202
Idem, ibidem, p. 43.
124

ideológico no qual surge e se desenvolve um pensamento, e a atualização


da unidade interna desse pensamento: sua problemática. O conhecimento
do campo ideológico supõe o conhecimento das problemáticas que aí se
compõem ou se opõem. 203

O problema histórico refere-se à seguinte pressuposição do método eclético: em


toda história ideológica se passa a ideologia. Trata-se do problema do “caminho de Marx”,
sua evolução e seu “motor”: como a mutação e maturação de Marx foram possíveis?

As fórmulas utilizadas para solucionar este problema estão presas na ilusão de que
a evolução do jovem Marx ocorreu no campo das ideias, sendo reflexo das ideias propostas
por Hegel, Feuerbach, etc.:

Mesmo quando contêm certo grau de verdade, essas fórmulas permanecem,


tomadas ao pé da letra, prisioneiras da ilusão de que a evolução do Jovem Marx
transcorreu e se decidiu na esfera das ideias, e de que ela se efetuou em virtude
de uma reflexão sobre as ideias propostas por Hegel, Feuerbach ou outros. Tudo
ocorre então como se se admitisse que as ideias herdadas de Hegel pelos jovens
intelectuais alemães de 1840 contivessem em si mesmas, contra as suas próprias
aparências, uma determinada verdade, velada, mascarada, desviada, que o poder
crítico de Marx conseguiu enfim, após anos de esforços intelectuais, arrancar
delas, fazer-lhes confessar e reconhecer. É essa lógica que, no fundo, está
implicada no famoso tema da “inversão”, do “recolocar de pé” a filosofia (ou a
dialética) hegeliana, pois se trata verdadeiramente apenas de uma inversão, de
repor do direito o que estava do avesso, é claro que virar um objeto inteiro não
muda sua natureza nem seu conteúdo pela virtude de uma simples rotação! O
homem de ponta cabeça, quando finalmente anda com seus pés, é o mesmo
homem! E uma filosofia assim invertida não pode ser considerada como
diferente da filosofia que se inverteu, a não ser por uma metáfora teórica: na
verdade, sua estrutura, seus problemas, o sentido de seus problemas continuam
perturbados pela mesma problemática. 204

O jovem Marx ainda é prisioneiro da ideologia burguesa, estaria ancorado em um


vago humanismo, na noção de homem e de seus "predicados", que remete ao direito
burguês e à circulação mercantil, e que sustenta, portanto, os "valores" da própria ideologia
burguesa dominante:

O que Marx detinha era uma crítica radical da filosofia do homem, que lhe serviu
de fundamento teórico durante os anos de juventude. A centralização no “homem” como
sujeito da história, que busca sua liberdade apoiado na razão, é característica do período da
juventude de Marx, que Althusser divide em duas etapas, que são analisadas no texto
Marxismo e humanismo do livro Por Marx.

203
ALTHUSSER, Louis. “Sobre o jovem Marx” (questões de teoria). In______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, p. 53.
204
Idem, ibidem, p. 56.
125

A primeira etapa seria o humanismo racional-liberal (1840/41), período em que


Marx combate a censura, as leis feudais renanas, o despotismo da Prússia, etc., estando
mais próximo de Kant e Fichte que de Hegel, uma vez que compartilha com esses dois
autores que a liberdade humana é autonomia e obediência à lei interior da razão.

A essência do homem é liberdade e razão, que existia como a razão do Estado,


grande organismo que assegura liberdade jurídica, moral e política, de forma que o cidadão
quando obedece ao Estado, não obedece mais que as leis naturais da razão humana.

Quando Marx combate a censura, as leis feudais renanas, o despotismo da


Prússia, ele funda teoricamente o seu combate político, e a teoria da história que
o sustenta, numa filosofia do homem. A história só é inteligível por meio da
essência do homem, que é liberdade e razão. Liberdade: ela é a essência do
homem como o peso é a essência dos corpos. O homem está voltado à liberdade,
seu ser mesmo. Ainda que ele a recuse ou a negue, permanece nela para sempre:
“A liberdade constitui tanto a essência do Homem que mesmo seus adversários a
realizam ao combater-lhe a realidade [...]. Logo, a liberdade sempre existiu, ora
como um privilégio particular, ora como um direito geral”. 205

O Estado é filosoficamente considerado um grande organismo onde a liberdade


jurídica, moral e política tem a sua realização e onde os cidadãos, obedecendo as leis que
dele emanam, obedecem à lei natural da razão humana: a filosofia exige que o Estado seja
o Estado da natureza humana.

Predomina em Marx, neste período, a crítica teórica pública, isto é, a crítica pública
por meio da imprensa, que tem como condição absoluta a imprensa livre. Marx, nesse
período, distancia-se cada vez maior de Hegel, tendo um último retorno a este autor nos
Manuscritos econômicos filosóficos, de 1844, no qual faz uma síntese de Feuerbach e de
Hegel.

A segunda etapa seria o humanismo comunitário (1842 – 1845), que ocorre a partir
do momento em que Marx percebe que o Estado prussiano não se reformou, ocorrendo
uma desilusão em relação ao humanismo racional. Há a percepção de que existe uma
contradição real entre a essência do Estado (razão) e sua existência (desrazão), apontada
por Feuerbach como causa da alienação do homem de sua essência, em sua antropologia
filosófica humanista que muda a definição do homem pela razão e liberdade, de forma que
este se torna, no seu próprio princípio comunitário, a intersubjetividade concreta, amor,
fraternidade, “ser genérico”.

205
ALTHUSSER, Louis. Marxismo e Humanismo. In ______. Por Marx. Unicamp: Unicamp, 2015, p. 185-
186.
126

Baseado nesta concepção, Marx afirma que ser radical é tomar as coisas pela raiz e
para a o homem, a raiz é o próprio homem - a essência do homem funda a história e a
política, de forma que o homem só é liberdade-razão porque de início é ser comunitário,
um ser que só se realiza teoricamente (ciência) e praticamente (política) nas relações
humanas universais.

A história é a alienação e a produção da razão na desrazão, do homem verdadeiro


no homem alienado. Nos produtos alienados do seu trabalho (mercadoria,
Estado, religião), o homem sem o saber, realiza a essência do homem. Essa perda
do homem, que produz a história e o homem, supõe antes uma essência
preexistente definida. No fim da história, esse homem, que se tornou
objetividade inumana, terá apenas de rever, como sujeito, sua própria essência
alienada na propriedade, na religião e no Estado, para se tornar homem total,
206
homem verdadeiro.

Sendo a história a produção do homem pelo homem e a essência do homem o seu


trabalho, a base da revolução, segundo a interpretação humanista, passa a ser a luta pela
desalienação do trabalho humano, sendo o comunismo o reino da liberdade:

Segundo Althusser, a interpretação humanista do materialismo histórico afirma


que a história é a produção do homem pelo homem e a essência do homem é o
trabalho; assim sendo, o conceito do trabalho é o conceito base do humanismo
histórico, e a história é a história da alienação do trabalho humano. A revolução é
a luta pela desalienação do trabalho humano e do mundo humano, e o
comunismo é o reino da liberdade, da comunidade, da fraternidade. Já em
relação ao materialismo dialético, a concepção humanista afirma, do mesmo
modo, que o sujeito humano (consciência) é a fonte e o centro de todo o
conhecimento, portanto, a relação sujeito-objeto se encontra no centro da
filosofia marxista; o homem cria os seus conhecimentos do mesmo modo que
cria a sua história, e o conhecimento é o reino onde sua liberdade se exerce sob a
forma de “hipótese” e de “modelo” submetidos à verificação dos fatos; o fulcro
do conhecimento é o ato do sujeito humano virado para o futuro, procurando
“transcender” a sua situação, etc. Desse modo, “a base teórica do materialismo
histórico e do materialismo dialético seria assim constituída por um mesmo
“sujeito criador”, definido pela consciência do futuro inscrito nos seus ‘projetos’,
tendendo para uma transcendência que é uma realização de ‘valores humanos’
que o homem traz em si (liberdade, comunidade, fraternidade, subjetividade,
amor, etc.)” (ALTHUSSER, s/d: 191).207

A filosofia penetra no proletário, como uma revolta consciente da afirmação contra


sua própria negação, como uma revolta do homem contra suas condições inumanas – tal
aliança revolucionária do proletário e da filosofia estaria selada na “essência do homem”.

a) Hegel

206
ALTHUSSER, Louis. Marxismo e Humanismo. In ______. Por Marx. Unicamp: Unicamp, 2015, p.187.
207
MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na Teoria Marxista. Rio de Janeiro:
FAPERJ e Gramma Livraria e Editora, 2014, p. 22.
127

O Marx da Juventude volta a Hegel e às suas fontes, às suas últimas leituras, não
para confirmá-lo, mas para descobrir a realidade dos objetos apossados por Hegel, para lhe
impor o sentido de sua própria ideologia. Por este método, de retorno para aquém Hegel,
Marx supera Hegel não como um Aufhebung, o sentido da verdade contido em Hegel, não
como uma superação do erro para a verdade, mas como uma superação da ilusão para a
realidade, uma dissipação da ilusão.

Entre Marx e Hegel há um deslocamento do ponto de vista, há uma mudança de


terreno. Segundo Althusser, o jovem Marx teve todo um trabalho de recuo para dissipar a
rede de ilusões criada por Hegel:

Espero que se tenha compreendido que é preciso, se se quer verdadeiramente


pensar essa gênese dramática do pensamento de Marx, renunciar a pensá-la em
termos de “superação” para pensá-la em termos de descobertas, renunciar ao
espírito da lógica hegeliana implicado no inocente, mas astucioso, conceito de
superação (Aufhebung), que nada é senão a antecipação vazia do seu fim na
ilusão de uma imanência da verdade, para adotar uma lógica da experiência
efetiva e da emergência real, que ponha precisamente um termo às ilusões da
imanência lógica; em suma, para adotar uma lógica de irrupção da história real
na própria ideologia e para atribuir assim um sentido efetivo, absolutamente
indispensável à perspectiva marxista, e, além do mais, exigida por ela, ao estilo
pessoal da experiência de Marx, a essa sensibilização ao concreto, tão
extraordinária nele, que dava a cada um dos seus encontros com o real tanta
força de convicção e de revelação.208

Por conta de ser uma questão de mudança de terreno e não uma simples retomada
às ideias de Hegel, depurando-as do que está errado e preservando o certo, que não se pode
falar no conceito de inversão, como colocou Feuerbach, de colocar a filosofia especulativa
sobre os seus próprios pés, de por direito o que estava do avesso, pois o homem de cabeça
para baixo, quando anda sobre os próprios pés, é o mesmo homem.

Para Hegel a vida material dos homens, a história concreta dos povos, é explicada
pela dialética da consciência (sua consciência, pela sua ideologia), já para Marx é ao
contrário, é a vida material dos homens que define sua consciência, sua ideologia. Mas há
de se ter cuidado com essa aparente mera inversão, uma vez que em Hegel a dialética da
consciência implica na divisão entre sociedade civil e sociedade política (Estado) e se caso
em Marx houvesse simplesmente uma inversão dessa relação, teríamos, em vez do político
ideológico ser a essência do econômico, o econômico é que seria toda essência do político

208
ALTHUSSER, Louis. “Sobre o jovem Marx” (questões de teoria). In______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, p. 62.
128

ideológico – o que faz com que apareçam na história do marxismo o economismo e mesmo
o tecnologismo.

Na verdade, Marx não conservou nem inverteu os termos hegelianos e sim os


substitui por outros, subverteu a relação que dominava esses termos – esses termos não
significam em Marx a mesma coisa que em Hegel, pois quando Marx fala em sociedade
civil, trata-se de uma alusão ao passado, para designar o lugar de suas descobertas e não
para retomar o conceito:

Desse modo, em Hegel o Estado é a “verdade da” sociedade civil, a qual não é,
graças ao jogo da Astúcia da Razão, mais do que o seu próprio fenômeno,
realizado nele. Ora, em um Marx, que se rebaixaria assim ao estatuto de um
Hobbes ou de um Locke, a sociedade civil poderia ser também apenas a “verdade
do” Estado, seu fenômeno, uma Astúcia que a Razão Econômica poria então a
serviço de uma classe: a classe dominante. Infelizmente para esse esquema
demasiado, isso não ocorre. Em Marx a identidade tática (fenômeno-essência-
verdade-de...) do econômico e do político desaparece em benefício de uma
concepção nova da relação das instâncias determinantes no complexo estrutura-
superestrutura que constitui a essência de toda a formação social. Não há dúvida
de que essas relações específicas entre a estrutura e superestrutura merecem
ainda uma elaboração e pesquisas teóricas. No entanto, Marx nos dá muito bem
as “duas pontas da cadeia”, e nos diz que entre elas é que é preciso procurar: de
um lado a determinação em última instância pelo modo de produção
(econômica); por outro, a autonomia relativa das superestruturas e sua eficácia
específica. Por aí ele rompe claramente com o princípio hegeliano da explicação
pela consciência de si (a ideologia), mas também com o tema hegeliano
fenômeno-essência-verdade-de... Realmente estamos em contato com uma nova
relação entre termos novos.209

Mesmo abandonando qualquer influência de Hegel, Althusser aponta em sua


Advertência aos leitores do Livro I d’ O capital que Marx reconhecia a concepção da
história como um “processo sem sujeito” uma dívida com Hegel:

Marx reconhecia uma dívida importante com ele: a de ter concedido pela
primeira vez a história como um “processo sem sujeito”. É levando em conta
essa tendência que podemos apreciar como vestígios prestes a desaparecer os
traços de influência hegeliana que subsistem no Livro I. Já identifiquei tais
vestígios no problema tipicamente hegeliano do “difícil começo” de toda ciência,
do qual a seção I do Livro I é a manifestação clara. Mais precisamente, essa
influência hegeliana pode ser localizada no vocabulário que Marx emprega nessa
seção I: no fato de que ele fala de duas coisas completamente diferentes, a
utilidade social dos produtos e o valor de troca desses mesmos produtos, em
termos que só têm uma palavra em comum, a palavra valor: de um lado, valor de
uso, de outro valor de troca. [...] O fato é que Marx não tomou cuidado de
eliminar a palavra valor da expressão “valor de uso” e falar simplesmente, como
deveria, de utilidade social dos produtos.210

209
ALTHUSSER, Louis. Contradição e Sobredeterminação (Notas para uma pesquisa). In ______. Por
Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 87.
210
ALTHUSSER, Louis. Advertência aos leitores do Livro I d’O capital. In ______. O capital. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2013, p. 54, livro I.
129

b) Feuerbach

Como Marx teve grande influência de Feuerbach, Althusser elabora uma análise
dos “manifestos” deste autor, os mais importantes publicados entre 1839 e 1845, em texto
denominado Os manifestos filosóficos de Feuerbach, em Por Marx.

Althusser trata os textos de Feuerbach como manifestos porque são verdadeiras


proclamações, anúncios apaixonados de uma revelação teórica que vai libertar o homem de
suas cadeias. Essas proclamações – “já é chegado o tempo”, “a humanidade está prenhe de
uma revolução iniciante” etc., - influenciaram os jovens hegelianos, entre os quais Marx,
que acreditavam que a história tem um fim: o reino da razão e da liberdade:

Leiam-se os textos sobre a Reforma da Filosofia e o prefácio dos Princípios. São


verdadeiras proclamações, o anúncio apaixonado dessa revelação teórica que vai
libertar o homem de seus grilhões. Feuerbach dirige-se à humanidade. Rasga os
véus da história universal, destrói os mitos e as mentiras, descobre e entrega ao
homem sua verdade. O tempo chegou. A humanidade está prenhe de uma
revolução iminente, que lhe dará a posse de seu ser. Que os homens tomem
enfim consciência disso, e serão na realidade o que são na verdade: seres livres,
iguais e fraternos.211

Para esses jovens filósofos, Feuerbach representou uma nova filosofia que
repensava Hegel por inteiro e sua filosofia especulativa – que repunha sobre os pés o
mundo que a filosofia fazia marchar sobre a cabeça, denunciando todas as alienações e
desrazões, de forma a evidenciar a necessidade da libertação de um mundo em contradição.

No entanto, Feuerbach não sai da problemática colocada por Hegel, o que ele
questiona está dentro de um campo idealista, dentro do próprio seio da filosofia hegeliana,
uma vez que inverteu o corpo do edifício hegeliano, mas conservou suas estruturas e
preposições teóricas:

Aos olhos de Marx, Feuerbach ficara na terra hegeliana, permanecia prisioneiro


dela embora fizesse sua crítica, não fazia mais que voltar contra Hegel os
princípios do próprio Hegel. Não trocara de “elemento”. A verdadeira crítica de
Hegel supõe justamente que se tenha trocado de elemento, ou seja, que se tenha
abandonado essa problemática filosófica da qual Feuerbach permaneceria
prisioneiro rebelde. 212

211
ALTHUSSER, Louis. Os “manifestos filosóficos” de Feuerbach. In ______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2014, p. 33-34.
212
Idem, ibidem, p. 38.
130

Marx, durante um tempo, esposou a problemática antropológica de Feuerbach,


sendo um feuerbachiano de vanguarda, utilizando termos impregnados desse humanismo
como alienação, homem genérico, o homem total, a “conversão” do sujeito em predicado
etc., em artigos como A questão judaica, Crítica da filosofia do Estado de Hegel e mesmo
em A sagrada família:

Feuerbach é a testemunha e o agente da crise do desenvolvimento teórico do


movimento jovem hegeliano. É preciso ler Feuerbach para compreender os
textos dos jovens hegelianos entre 1841 e 1845. Pode-se ver, em particular, a que
ponto as obras de juventude de Marx estão impregnadas do pensamento de
Feuerbach. Não só a terminologia marxista dos anos 1842-1844 é feuerbachiana
(a alienação, o homem genérico, o homem total, a “inversão” do sujeito em
predicado etc.) mas, o que é sem dúvida mais importante, o fundo da
problemática filosófica é feuerbachiana. Artigos como A questão judaica ou a
Crítica da filosofia do direito de Hegel são inteligíveis apenas no contexto da
problemática feuerbachiana. Certamente os temas da reflexão de Marx
ultrapassam as preocupações imediatas de Feuerbach, mas a problemática e os
esquemas teóricos são os mesmos.213

Althusser considera que mesmo adotando uma crítica política e não religiosa como
Feuerbach, conforme Marx expõe em Crítica da filosofia de Hegel 214, o essencial continua
a ser uma problemática antropológica:

Assim a antropologia de Feuerbach pode tornar-se a problemática não só da


religião (A essência do cristianismo), mas também da política (A questão
judaica, o Manuscrito de 1843), até mesmo da história e da economia (os
Manuscritos de 1844), sem deixar, no essencial, de ser uma problemática
antropológica, mesmo quando a “letra” em si de Feuerbach é abandonada e
superada. Pode-se, certamente, considerar que é politicamente importante passar
de uma antropologia religiosa para uma antropologia política e enfim a uma
econômica, e até que em 1843, na Alemanha, a antropologia representava uma
forma ideológica avançada, estou inteiramente de acordo. Mas esse julgamento
supõe que se esteja primeiro a par da natureza da ideologia considerada, ou seja,
que se tenha definido sua problemática efetiva.215

Nos manuscritos de 1844, Marx, com base ainda na antropologia de Feuerbach,


retorna a Hegel para dele se afastar ainda mais. Faz uma síntese dos dois autores,

213
ALTHUSSER, Louis. Os “manifestos filosóficos” de Feuerbach. In ______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2014, p. 35.
214
“A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos
de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche. A crítica da religião
desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua realidade como um homem desenganado,
que chegou à razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A religião é
apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em torno de si mesmo. Portanto, a
tarefa da história, depois de desaparecido o além da verdade, é estabelecer a verdade do aquém. A tarefa
imediata da filosofia, que está a serviço da história, é, depois de desmascarada a forma sagrada da
autoalienação [Selbstentfremdung] humana, desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas. A
crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da
teologia, na crítica da política.” (Boitempo Editorial, reimpressão 2011, p. 146).
215
ALTHUSSER, Louis. “Sobre o jovem Marx” (questões de teoria). In______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, p. 52.
131

mantendo as categorias filosóficas utilizadas por Feuerbach (que ainda considera como um
grande filósofo que permitiu uma crítica da economia política) como essência humana,
liberdade e alienação, etc.

Mantêm também as categorias econômicas, como capital, acumulação,


competência, divisão do Trabalho, salário, benefício, etc., tal como as deixara a economia
clássica sem modificações, promovendo um encontro da economia política com a filosofia,
no campo filosófico, pensando-a:

[...] De todo o modo, ainda uma filosofia, profundamente marcada pela


problemática feuerbachiana (Bottigelli, p. XXXIX) e tentada pela hesitação a
voltar trás, de Feuerbach a Hegel. É essa filosofia que resolve a contradição da
economia política, pensando-a, e, por meio dela, pensando toda a economia
política, todas as suas categorias, a partir de um conceito-chave: o conceito de
trabalho alienado.216

Althusser prossegue sua análise afirmando que há uma tentação de se identificar


nos Manuscritos a propriedade privada, o capital, o dinheiro, a divisão do trabalho, a
alienação do trabalhador, a sua emancipação e o humanismo que seria o seu futuro
prometido, sendo que todas essas categorias ou quase todas se poderia aceitar como
antecipações do Capital ou até como o Capital em projeto ou mesmo como o Capital em
esboço.

Mas, os conceitos contidos nos Manuscritos ainda são posições filosóficas,


refletindo o estado em que se encontra a economia política. Marx, nessa economia
“encontrada”, constata e registra a pauperização crescente dos trabalhadores frente à
riqueza celebrada no mundo moderno pela economia política, mas restrito a um encontro
da filosofia com essa economia política.

Há uma leitura política e uma leitura teórica dos textos da juventude de Marx:

Um texto como A questão judaica, por exemplo, é um texto politicamente


engajado na luta pelo comunismo. Mas é um texto profundamente “ideológico”:
não é, portanto, um texto teoricamente comparável com os textos ulteriores, que
definirão o materialismo histórico e que poderão esclarecer até o fundo esse
movimento comunista real de 1843, nascido antes deles, independentemente
deles, ao lado do qual o Jovem Marx se colocou então. Aliás, mesmo a nossa
própria experiência pode lembrar-nos de que se pode ser “comunista” sem ser
“marxista”. Tal distinção é requerida para evitar cair na tentação política de

216
ALTHUSSER, Louis. Os “Manuscritos de 1844” (economia política e filosófica). In ______. Por Marx.
Rio de Janeiro: Unicamp Editores, 2015, p. 52.
132

confundir as tomadas de posição teóricas de Marx com suas tomadas de posição


política, legitimando as primeiras mediante as segundas.217

Marx recepcionou a problemática feuerbachiana como um todo, não apenas


utilizando-se de alguns conceitos. Posteriormente, a partir de 1845, com a Ideologia
Alemã, adota uma nova problemática, que ainda pode conter certo número de conceitos da
problemática anterior, mas com uma significação completamente nova, que rompe com a
tese de que a história e a política estão fundadas em uma essência do homem.

3.1.2. Marx científico/Continente história

A fórmula Marxista, tão cara para Marcuse e Sartre, que “prevê” que o reino da
liberdade sucederá o reino da necessidade, para Althusser não passa de uma fórmula
idealista:

Geralmente a questão permanece limitada a algumas fórmulas idealistas, como


aquelas de Marx sobre o "reino da liberdade" que sucederia ao "reino da
necessidade" (!), sobre o "livre desenvolvimento dos indivíduos" ou de sua "livre
associação". Admito que o comunismo seja o advento do indivíduo finalmente
libertado da carga ideológica e ética que faz dele "uma pessoa". Mas não estou
tão seguro de que Marx entendesse assim essa questão, como o atesta a constante
vinculação que ele estabelece entre o livre desenvolvimento do indivíduo e a
"transparência" das relações sociais finalmente livres da opacidade do
fetichismo. Não é por acaso que o comunismo aparece como o contrário do
fetichismo, o contrário de todas as formas reais nas quais aparece o fetichismo:
na figura do comunismo como o inverso do fetichismo, o que aparece é a livre
atividade do indivíduo, o fim da sua "alienação", de todas as formas da sua
alienação: o fim do Estado, o fim da ideologia, o fim da própria política. No
limite, uma sociedade de indivíduos sem relações sociais. 218

A filosofia marxista fez passar a filosofia do estado de ideologia ao estado de


disciplina científica. Entrando no período da maturidade, Marx estabelece a teoria do
materialismo histórico fundada em bases científicas rigorosas, como modo de produção,
relações de produção, forças produtivas, ideologia, luta de classes, infraestrutura,
superestrutura, etc.

217
ALTHUSSER, Louis. Os “Manuscritos de 1844” (economia política e filosófica). In ______. Por Marx.
Rio de Janeiro: Unicamp Editores, 2015, p. 131-132.
218
ALTHUSSER, Louis. O Marxismo como teoria finita. Revista de Outubro, Campinas, n. 2, p. 63-73,
1998.
133

Esta visão da maturidade contrapõe-se à interpretação humanista do marxismo, que


é baseada na noção de homem e de seus "predicados", que remete ao direito burguês e à
circulação mercantil, fundamentando os "valores" da ideologia dominante burguesa.

Portanto, uma volta à Marx proposta por Althusser é realizada descartando-se o que
é ideológico no início do “caminhar” de Marx e dando-se ênfase ao seu aspecto científico
na maturidade. Esta volta a Marx não se resume em seguir ao pé-da-letra os seus textos e o
desenvolvimento de seu pensamento, mas sim de se buscar os princípios teóricos que
permitirão dominar os problemas reais que a história apresenta ao movimento comunista
internacional, uma forma de se compreender o presente para a construção do futuro:

Não se pode dominar tais problemas práticos a menos que se compreenda os seus
mecanismos: só se pode compreender esses mecanismos produzindo o seu
conhecimento científico. A crítica à "abstração doutrinária", à exaltação do
"concreto", à denúncia do "neo-dogmatismo" não são apenas os argumentos de
uma vulgar demagogia, ideológica e política. Eles são também, quando não
simples acidentes estilísticos individuais, os sempiternos sintomas do
revisionismo teórico no próprio marxismo." Se voltamos a Marx e colocamos
conscientemente, na conjuntura atual, a ênfase sobre os problemas teóricos, e,
antes de tudo, sobre o "elo decisivo" da teoria marxista, a saber a "filosofia", é
para defender a teoria marxista das tendências do revisionismo teórico que a
ameaçam; é para desprender e precisar o domínio onde a teoria marxista deve a
qualquer preço se desenvolver para produzir os conhecimentos de que os
partidos revolucionários precisam urgentemente para confrontar os problemas
políticos cruciais do nosso presente e do nosso futuro. Não pode haver nesse
ponto nenhum equívoco. O passado de Marx, que será abordado, é, quer se
queira ou não, uma via direta ao nosso presente: é o nosso próprio presente, e
também o nosso futuro.219

O corte ocorre em 1845, abarcando as Teses sobre Feuerbach e Ideologia Alemã,


quando Marx apresenta uma nova problemática em relação à antropologia de Feuerbach e
em relação a Hegel. Em Ideologia Alemã, segundo as palavras do próprio Marx, ocorre um
ajuste de contas com sua consciência filosófica anterior, possibilitando um conhecimento
científico do processo histórico, criando-se um ponto de não retorno em relação à
problemática anterior.

Na Ideologia Alemã, Marx funda o continente-história partindo da problemática


anterior, criando um novo campo conceitual a ser formulado. Desta forma, a filosofia
anterior ainda perseguirá Marx por um bom tempo, em uma luta contra as representações
imaginárias para se atingir o real:

219
ALTHUSSER, Louis. A querela do humanismo. In ______. Crítica Marxista, nº 9. São Paulo: Xamã,
1999, p. 14-15.
134

É então na luta contra a “filosofia alemã” que nasce esse primeiro esforço de
compreensão materialista da sociedade. Para os filósofos “críticos” alemães,
somente a supressão das representações imaginárias que oprimem os homens,
desses “produtos de sua cabeça”, levaria à supressão da realidade nelas
sustentadas. Nisso consistiria toda a proclamada natureza revolucionária dessa
“crítica filosófica” a que Marx vai opor “as sombras da realidade”. 220

A doutrina cientifica marxista, este novo campo conceitual, é constituída por duas
disciplinas científicas: o materialismo histórico e o materialismo dialético.

O materialismo histórico é a ciência da história, a ciência dos modos de produção


aprimorada em O Capital, que na realidade se trata da teoria científica do modo de
produção capitalista, em que há a prevalência das relações sociais sobre o
homem/indivíduo, conforme já apontado nos Grundisse:

No conjunto da sociedade burguesa existente, esse pôr como preços e sua


circulação etc. aparece como processo superficial sob o qual, no entanto, na
profundidade, sucedem processos inteiramente diferentes, nos quais desaparece
essa aparente igualdade e liberdade dos indivíduos. Por um lado, se esquece que,
desde logo, o pressuposto do valor de troca, como fundamento objetivo da
totalidade do sistema de produção, já encerra em si a coação sobre o indivíduo de
que seu produto imediato não é um produto para ele, mas só devem para ele no
processo social e tem de assumir essa forma universal e, todavia, exterior; que o
indivíduo só tem existência social como produtor de valor de troca e que,
portanto, já está envolvida a negação total de sua existência natural; que, por
conseguinte, está totalmente determinado pela sociedade; que isso pressupõe,
ademais, a divisão do trabalho etc., na qual o indivíduo já é posto em outras
relações distintas daquelas de simples trocador et.221

O que existe na teoria, na verdade, é a noção de homem e não o homem concreto,


em carne e osso. Para Althusser, essas noções do humanismo teórico precisam ser
eliminadas radicalmente da teoria científica de Marx, pois elas são obstáculos
epistemológicos ao conhecimento, no entanto, não significa que em Marx os homens e sua
subjetividade tenham sido eliminados:

Não há mais o “homem concreto” em Marx como observa Althusser a partir de


1845, pois Marx parte do abstrato. Isso não significa que, para Marx, os homens,
os indivíduos e sua subjetividade tenham sido eliminados da história real. E
tampouco Marx tenha eliminado de sua linguagem teórica os termos “homem”
ou “indivíduo”, embora não possuam a mesma acepção da sua fase de juventude
(“a essência alienada do homem pelo trabalho”).222

O materialismo dialético, ou filosofia marxista, refere-se à história do pensamento,


à teoria do conhecimento, pois estuda as condições reais do processo de produção do

220
NAVES, Márcio Bilharinho. Marx, ciência e revolução. São Paulo: Moderna, 2003, p. 29.
221
MARX, Karl. Grundisse. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 190.
222
MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na Teoria Marxista. Rio de Janeiro:
FAPERJ e Gramma Livraria e Editora, 2014, p. 24.
135

conhecimento, diferenciando-se das filosofias que a precedem, pois é baseada nas práticas
científicas e não ideológicas.

Marx nos fornece, pela primeira vez, os conceitos científicos capazes de nos dar a
compreensão do que são as sociedades humanas e sua história, a compreensão de sua
estrutura, de sua subsistência, de seu desenvolvimento, etc.

Com esta compreensão, podemos melhor examinar as transformações de que as


sociedades constituem o objeto, buscando uma noção científica que as fundamentam, em
um sistema teórico de conceitos, completamente estranho ao sistema de noções ideológicas
ao qual se refere à noção idealista de sociedade a começar pelo conceito de formação
social, passando pelo conceito de modo de produção:

Digamos simplesmente, para sermos compreendidos por todos e por cada um,
que uma formação social designa toda “sociedade concreta” historicamente
existente, e que é individualizada, portanto, distinta de suas contemporâneas e de
seu próprio passado, pelo modo de produção que domina aí. É assim que se pode
falar das transformações sociais ditas “primitivas”, da formação social romana
escravista, da formação social francesa de servidão (“feudal”), da formação
social francesa capitalista, de tal formação social “socialista” (em vias de
transição para o socialismo), etc.223

Toda a formação social tem como finalidade produzir e reproduzir as condições de


sua produção, por um modo de produção dominante que se utiliza das forças produtivas e
das relações de produção existentes. As forças produtivas são formadas pelos meios de
produção, de um lado, e pela força de trabalho, de outro e as relações de produção são, em
última instância, relações de exploração, garantidas pelos aparelhos repressivos do Estado:

O que constitui um modo de produção? É a unidade entre o que Marx chama, por
um lado, de Forças Produtivas e, por outro, de Relações de Produção. Cada
modo de produção, seja dominante ou dominado, possui, portanto, em sua
unidade, suas Forças Produtivas e suas Relações de Produção. Como pensar essa
unidade? Marx falou de “correspondência” entre forças Produtivas e as Relações
de Produção. Trata-se de um termo que permanece descritivo. Ainda não foi
elaborada a teoria da “natureza” muito particular da unidade entre as Forças
Produtivas e as Relações de produção de determinado modo de produção.224

As forças produtivas são constituídas por: objeto de trabalho, instrumentos de


produção e pelos agentes de produção (ou força de trabalho). O objeto de trabalho mais os
instrumentos de trabalho (ou produção) são os meios de produção.

223
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 42.
224
Idem, ibidem, p. 43.
136

Os meios de produção são recursos produtivos físicos: ferramentas, maquinaria,


matéria-prima, espaço físico etc. Estes bens se esgotam e precisam ser repostos -
determinado capitalista repõe sua materia prima comprando-a de outro capitalista, que por
sua vez repõe a sua matéria-prima comprando de outro, sendo que no mercado nacional
e/ou no mercado mundial a demanda de meios de produção (para a reprodução) possa a ser
satisfeita pela oferta.

As relações de produção capitalista são as relações da exploração capitalista que


determinam todas as relações aparentemente técnicas da divisão e organização do trabalho.
A divisão social é a realidade da divisão “técnica” do trabalho:

A tese que defenderemos é absolutamente clássica e podem-se encontrar seus


fundamentos, por toda a parte, em O capital de Marx e na obra de Lenin e dos
continuadores destes dois autores.
1) As relações de produção determinam radicalmente todas as relações
aparentemente “técnicas” da divisão e da organização do trabalho.
2) Em virtude do que foi dito precedentemente – ou seja, que as relações de
produção são as relações da exploração capitalista – estas determinam
radicalmente, não em geral e indistintamente, mas sob formas específicas, todas
as relações permanentemente “técnicas” que intervém na própria produção
material.
Dito em outras palavras, as relações de exploração não se traduzem somente pela
extorsão da mais-valia, consagrada pelo salário e por todos os efeitos da
economia de mercado. É no salário que a exploração exerce o seu efeito nº 1,
mas ela exerce outros efeitos específicos na prática da própria produção, sob as
espécies da divisão do trabalho.225

Assim sendo, não se pode cair nas confusões ideológicas de que as relações de
produção são relações meramente técnicas, uma vez que são relações da exploração
capitalista inscritas como tais na vida concreta da produção, nem que são relações
meramente jurídicas, mas luta de classes no próprio seio da produção.

A reprodução da força de trabalho é garantida pelo salário, que representa somente


a parte do valor produzida pelo dispêndio da força de trabalho, que é indispensável à sua
reprodução. A força de trabalho inclui não apenas a força física dos produtores, mas
também suas habilidades e seu conhecimento técnico, aplicados quando trabalham.

No entanto, para que a reprodução desta força ocorra, há a necessidade de o


trabalhador aprender as regras de respeito à divisão social-técnica do trabalho e seguir as
regras da ordem estabelecida pela dominação de classe, ou seja, a reprodução da força de

225
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 57-58.
137

trabalho não exige apenas a reprodução de sua qualificação, mas também a reprodução de
sua submissão às normas da ordem vigente:

Com efeito, não basta garantir à força de trabalho as condições materiais de sua
reprodução para que ela seja reproduzida como força de trabalho. Dissemos que
a força de trabalho disponível deveria ser “competente”, isto é, apta a ser
utilizada no sistema complexo do processo de produção: nos postos de trabalho e
nas formas de cooperação definidas. O desenvolvimento das forças produtivas e
o tipo de unidade historicamente constitutivo das forças produtivas em
determinado momento produzem o seguinte resultado: a força de trabalho deve
ser (diversamente) qualificada. Diversamente: segundo as exigências da divisão
social-técnica do trabalho, em seus diferentes “postos” e “empregos”. 226

A escola participa na produção de “conhecimentos” que servem para ditar as regras


da “ordem estabelecida” pela dominação, o respeito à divisão social-técnica do trabalho,
enfim, as regras da ordem estabelecida pela dominação de classe.

Portanto, a reprodução da força de trabalho é garantida pela sua submissão à


ideologia dominante, desta forma, segundo Althusser, enfrentamos a presença de uma nova
realidade - a ideologia:

A reprodução da força de trabalho faz, assim, aparecer como sua condição sine
qua non, não só a reprodução de sua “qualificação”, mas também a reprodução
de sua sujeição à ideologia dominante, ou da “prática” dessa ideologia.
Indiquemos com toda a clareza que é necessário dizer: “não só, mas também”
porque a reprodução da qualificação da força de trabalho é garantida na
formas e sob as formas do submetimento ideológico. Desse modo, descobrimos
uma nova realidade: a ideologia.227

a) O capital

É com a obra O capital que Marx sedimenta a sua nova descoberta, seu novo
enfoque científico. Nesta obra, Marx elaborou uma análise de uma sociedade e não
meramente de um sistema econômico, não foi uma refundação da ciência em bases
históricas e sim a fundação de uma teoria científica da sociedade.

Althusser propõe uma releitura filosófica d’O capital de forma que se identifique o
seu objeto diferenciado não somente do objeto da economia clássica, mas também do
objeto das obras de juventude em especial o objeto dos Manuscritos de 44.

226
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 74.
227
Idem, ibidem, p. 76.
138

Alega que uma releitura filosófica traz à tona questões como: O Capital distingue-
se da economia clássica não pelo objeto e sim pelo método? Ou então, pelo contrário, O
Capital seria uma verdadeira mutação epistemológica em seu objeto, em sua teoria e em
seu método?

Ler O Capital como filósofo é precisamente questionar o objeto específico de um


discurso específico, e a relação específica desse discurso com o seu objeto; é,
portanto, propor à unidade discurso-objeto a questão dos títulos epistemológicos,
que distinguem essa unidade precisa de outras formas de unidade discurso-
objeto. Somente uma leitura como essa pode esclarecer quanto à resposta à
questão referente ao lugar que O Capital ocupa na história do saber.228

No entanto, Althusser não faz simplesmente uma releitura de Marx ou uma leitura
literal e sim uma leitura sintomal, como a leitura que Althusser atribui ao próprio Marx em
sua abordagem dos economistas clássicos.

Este tipo de leitura sintomal proposta por Althusser foi inspirada em Lacan, que
anunciou Marx como inventor do sintoma, inicialmente em seu texto Do sujeito enfim em
questão, in Escritos:

É difícil não ver introduzida, desde antes da psicanálise, uma dimensão que
poderíamos dizer do sintoma, que se articula por representar o retorno da
verdade como tal na falha de uma saber. Não se trata do problema clássico do
erro, mas de uma manifestação concreta a ser “clinicamente” apreciada, onde se
revela, não uma falha de representação, mas uma verdade de uma referência
diferente daquilo, representação ou não, pelo qual ela vem perturbar a boa
ordem... Nesse sentido, podemos dizer que essa dimensão, mesmo não
229
explicitada, é altamente diferenciada na crítica de Marx.

Lacan afirma, em sua aula de 11 de fevereiro de 1975230, que a origem da noção de


sintoma não se deve buscar em Hipócrates, mas em Marx. Trata-se de uma leitura que
destaca as descontinuidades, os saltos e os embaraços do texto.

Tal leitura é notada quando Marx coloca a questão não enunciada no enunciado ―
tal como Freud pretende preencher as lacunas da memória no tratamento da histérica
lendo o texto dos sonhos ― restabelecendo no enunciado o conceito de força de trabalho:
“o valor da força de trabalho é igual ao valor dos meios de subsistência necessários à
manutenção e à reprodução da força de trabalho”.

228
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 13, v. 1.
229
LACAN, Jacques. Do sujeito enfim em questão, in Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 234-
235.
230
LACAN, Jacques. Aula de 11 de fevereiro de 1975, in R.S.I.. Seminário 22. p. 120. Chercher l'origine de
la notion de symptôme… qui n'est pas du tout à chercher dans HIPPOCRATE …qui est a chercher dans
MARX, qui le premier dans la liaison qu'il fait entre le capitalisme et - quoi ? – le bon vieux temps, ce qu'on
appelle quand on veut tâcher de l'appeler autrement, le temps féodal.
139

Em um primeiro momento, elaborando o levantamento dos pontos de concordância


e discordância no campo das ideias, apontando lacunas e equívocos dentro de um quadro
referencial do leitor que lê o discurso do outro, mas, indo além dessa primeira leitura,
Marx, segundo Althusser, pratica uma abordagem intratextual que permite ver o não visto,
as lacunas existentes que quem escreveu “não viu”, ou não quis ver:

É preciso uma leitura “sintomal” para tornar essas lacunas perceptíveis, e para
identificar, sob as palavras enunciadas, o discurso do silêncio que, emergindo do
discurso verbal, provoca nele esses brancos, que são as folhas do rigor, ou os
limites extremos de seu esforço: sua ausência, uma vez atingidos esse limites,
nos espaços que, não obstante, ele abre.231

Como exemplo, temos o enunciado: “o valor do trabalho é igual ao valor dos meios
de subsistência necessários à manutenção e à reprodução de trabalho”, tomado de Adam
Smith e lido por Marx, que nos permite ver “o que o próprio texto clássico diz não dizendo
e o que não diz ao dizer”, na medida em que nos faz ver, nos interstícios do texto, que “seu
silêncio são suas próprias palavras”.

Marx demonstra vazios existentes na frase de Adam Smith, “o valor de (...) trabalho
é igual ao valor dos meios de subsistência necessários à manutenção e à reprodução de (...)
trabalho”, modificando o enunciado, substituindo a referência ao trabalho, na segunda
parte da frase, por trabalhador, ressaltando o equívoco e o desacordo: “o valor do trabalho
é igual ao valor dos meios de subsistência necessários à manutenção e à reprodução do
trabalhador”.

O que se esconde aí é o mais-valor. Ali mesmo onde Adam Smith pretende


responder à questão do “valor do trabalho”, Marx nos faz ver que “essa falta localizada,
pela resposta, na própria resposta, na proximidade da palavra trabalho, nada mais é que a
presença, na resposta, da ausência de sua questão, nada mais é que a falta de sua questão”.

A problemática antiga dos economistas clássicos produziu, a sua revelia, um novo


terreno que não escapou ao olhar atento de Marx, diferentemente do conhecimento
empírico: o conceito da eficácia de uma estrutura sobre seus elementos:

E somos tentados a insinuar que, se há sem dúvida em Marx uma resposta


importante a uma questão que não foi formulada em parte alguma, essa resposta
que Marx não chega a formular, a não ser sob a condição de multiplicar as
imagens próprias para dá-la, a resposta da Darstellung e de seus avatares, é sem
dúvida porque Marx não dispunha, na época em que vivia, e não se dispôs a isso

231
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, p. 23, v. 2.
140

enquanto viveu, do conceito adequado para pensar aquilo que produzia: o


conceito da eficácia de uma estrutura sobre seus elementos.232

A concepção empirista do conhecimento trata de um processo que se passa entre


um objeto dado e um sujeito dado, residindo em uma operação do sujeito denominada
abstração, ou seja, conhecer é abstrair a essência do objeto real, cuja posse pelo sujeito
chama-se conhecimento:

Com efeito, todo o processo empirista do conhecimento reside na operação do


sujeito denominada abstração. Conhecer é abstrair a essência do objeto real, cuja
posse pelo sujeito chama-se então conhecimento. Quaisquer que sejam as
variações particulares de que esse conceito de abstração possa ser afetado, ele
define uma estrutura invariante, que constitui o índice específico do empirismo.
A abstração empirista, que extrai a essência do objeto real dado, é uma
abstração real, que põe o sujeito na posse da essência real. 233

Portanto, para o empirismo, o conhecimento tem por função extrair do objeto real
uma parte que é essencial separando-a da parte que não é essencial, pouco importando o
processo utilizado para extração desse essencial:

Pouco importa o processo que permite essa extração (seja, por exemplo, a
comparação entre objetos, sua fricção uns contra os outros para desbastar a
ganga etc.); pouco importa a figura do real, seja ele composto por indivíduos
contínuos que contém cada qual, sob sua diversidade, uma mesma essência – ou
de um indivíduo único. Em todos os casos, essa separação, no próprio real, da
essência real da canga que encerra a essência, impõe-nos, como a própria
condição dessa operação, uma representação muito particular tanto do real como
do seu conhecimento.234

Acrescenta-se ao conhecimento uma operação muito particular, uma nova


existência que é o considerar a existência de seu conhecimento, ou seja, o discurso
conceitual verbal ou escrito que enuncia esse conhecimento na forma de uma mensagem –
que se dá fora do objeto, inscrita em um sujeito ativo.

Marx sai dessa confusão idealista de identificação do objeto real com o objeto do
conhecimento defendendo a distinção entre o objeto real e o objeto do conhecimento,
produto do pensamento que o produz em si mesmo como concreto-de-pensamento, como
objeto de pensamento totalmente distinto do objeto real. Marx vai mais adiante afirmando
que a distinção não se refere apenas a estes dois objetos (objeto real e objeto do
conhecimento), mas atinge também os seus próprios processos de produção:

232
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 28-29. v. 1.
233
Idem, ibidem, p. 36.
234
Idem, ibidem, p. 36.
141

Ao passo que o processo de produção de determinado objeto real, de certa


totalidade concreto-real (por exemplo, uma nação histórica dada), se passa
inteiramente no real, e se efetua segundo a ordem real da gênese real (a ordem de
sucessão dos momentos da gênese histórica), o processo de produção do objeto
do conhecimento se passa inteiramente no conhecimento, e se efetua segundo
uma outra ordem, em que as categorias pensadas que “reproduzem” as categorias
“reais” não ocupam o mesmo lugar que ocupam na ordem da gênese histórica
real, mas lugares inteiramente diversos que lhes são atribuídos por sua função no
processo de produção do objeto do conhecimento.235

O processo de produção de conhecimento, para Marx, não ocorre na cabeça de um


sujeito pensante, transcendental ou psicológico, e sim fruto de um sistema historicamente
constituído de um aparelho de pensamento, fundado e articulado na realidade natural e
social, ou seja, em um “modo de produção” determinado de conhecimentos.

No lugar de sujeito do conhecimento é esse “modo de produção”, esse sistema


determinado das condições da prática teórica que atribui a este ou aquele sujeito
(indivíduo) pensante o seu lugar e a sua função na produção dos conhecimentos:

É essa realidade determinada que define os papéis e funções do “pensamento”


dos indivíduos singulares, que só podem “pensar” os “problemas” já
apresentados ou em condições de ser apresentados; que, pois, põe em
funcionamento a sua “força de pensamento”, assim como a estrutura de um modo
de produção econômica põe em funcionamento a força de trabalho dos
produtores imediatos, mas no seu modo próprio. Longe de ser uma essência
contraposta ao mundo material (faculdade de um sujeito transcendental “puro”,
ou de uma “consciência absoluta”, isto é, esse mito que o idealismo produz como
mito para nele se reconhecer e se assentar), o “pensamento” é um sistema real
próprio, assentado e articulado no mundo real de uma sociedade histórica dada,
que mantém relações determinadas com a natureza, um sistema específico,
definido de sua existência e de sua prática, isto é, por sua estrutura própria, um
tipo de “combinação” (Verbindung) determinada, existente entre sua matéria-
prima própria (objeto da prática teórica), seus meios de produção próprios e suas
relações com as demais estruturas da sociedade. 236

Portanto, é uma ilusão a história de uma razão vitoriosa, a existência de uma


teleologia da razão, sendo necessário concatenar a relação histórica de um resultado com as
suas condições como uma relação de produção – verificarmos a lógica das condições da
produção dos conhecimentos.

O mito da razão determinante da história identifica o conhecimento como a relação


entre um sujeito e um objeto, que seriam responsáveis por uma “missão”, como salvar a
“fé”, a “moral”, ou a “liberdade”, isto é valores sociais. Na verdade, esta colocação trata-se
de uma ilusão “retrospectiva de um resultado histórico dado”:

235
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 42, v. 1.
236
Idem, ibidem, p. 43.
142

Começamos a suspeitar, e mesmo a poder demonstrar com base em certo número


de exemplos já estudados, que a história da razão nem é uma história linear de
desenvolvimento contínuo, nem, em sua continuidade, a história da manifestação
o da tomada de consciência progressiva de uma Razão, totalmente presente no
germe de suas origens e que sua história revela a céu aberto. Sabemos que esse
tipo de história da manifestação o da tomada de consciência não passam do
efeito da ilusão retrospectiva de um resultado histórico dado, que escreve sua
história no “futuro anterior”, que pensa, pois, sua origem como previsão do seu
fim. 237

As teorias do conhecimento tradicionais tornaram a filosofia uma instância jurídica


que legisla para as ciências como um direito que ela a si mesma arroga, que nada mais é
que: [...] o fato consumado da atuação do reconhecimento especular, que garante à
ideologia filosófica o reconhecimento jurídico do fato consumado dos interesses
“superiores” que ela atende.238

Para sairmos da ideologia inserida nesse circulo vicioso que é a relação sujeito
objeto, precisamos substituir a questão ideológica das garantias da possibilidade do
conhecimento pela questão do mecanismo da apropriação cognitiva do objeto real por meio
do objeto do conhecimento.

Em uma resposta imediata, poder-se-ia dizer que o mecanismo pela qual a


produção do objeto do conhecimento produz a apropriação cognitiva do objeto real é a
prática, mas esta prática, em sua luta contra a ideologia, não deve estar submetida às leis e
vontades do adversário, ou seja, sob o domínio da ideologia, ela deve ser objeto de uma
teoria, caso contrário, tornar-nos-íamos sujeitos da ideologia que temos de combater:

Mas essa prática, e o modo de emprego de argumentos ideológicos adaptados a


essa luta, deve constituir objeto de uma teoria, para que a luta ideológica no
domínio da ideologia não seja uma luta submetida às leis e vontades do
adversário, para que ela não seja uma luta submetida às leis e vontades do
adversário, para que ela não se transforme em puros sujeitos da ideologia que
temos de combater.239

Althusser, em suma, propõe a questão do mecanismo através do qual o objeto do


conhecimento produz a apropriação cognitiva do objeto real, que é diferente da questão das
condições da produção do conhecimento, que depende de uma teoria da história da prática
teórica. A nova questão proposta por Althusser refere-se ao efeito de conhecimento, que
Marx chamava de modo de apropriação do mundo próprio do conhecimento, ele busca
elucidar os mecanismos que produz esse efeito de conhecimento.

237
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 46, v. 1.
238
Idem, ibidem, p. 59.
239
Idem, ibidem, p. 60, v. 1.
143

O que Marx estuda em O Capital é o mecanismo que faz existir como sociedade o
resultado da produção da história, estuda a propriedade de produzir o efeito de sociedade, o
que faz existir esse resultado como sociedade e não como outra coisa qualquer – Marx
procura explicar o mecanismo que produz o efeito de sociedade próprio do modo de
produção capitalista:

O mecanismo da produção desse “efeito de sociedade” só atinge sua culminação


quando todos os efeitos do mecanismo são expostos até o ponto em que se
produzem sob a forma dos próprios efeitos que constituem a relação concreta,
consciente ou inconsciente, dos indivíduos com a sociedade como sociedade, isto
é, até os efeitos do fetichismo da ideologia (ou “formas da consciência social” –
Prefácio da Contribuição) nos quais os homens vivem como sociais os seus
projetos, ideias, ações, comportamentos e funções, consciente ou
inconscientemente. Sob essa perspectiva, O Capital deve ser considerado como a
teoria do mecanismo de produção do efeito de sociedade no mundo de produção
capitalista.240

Marx inicia suas análises partindo dos estudos dos economistas clássicos, mas não
há uma continuidade de objeto e sim uma ruptura, a criação de um novo objeto que
somente é possível identificar por meio de uma leitura “sintomal” que permite a
visualização do que não foi dito, como, por exemplo, o capítulo III da Introdução de 1857
que pode ser tomado como o Discurso sobre o Método da nova filosofia fundada por Marx,
em que é possível distinguir corretamente a filosofia marxista de toda a filosofia
especulativa ou empirista.

Há, nas análises de Marx, o princípio de distinção do real e do pensamento, o que


implica em duas teses essenciais: 1) a tese materialista do primado do real sobre o
pensamento e 2) a tese materialista da especificidade do pensamento e do processo de
pensamento em relação ao real e ao processo real. Já no idealismo especulativo, confunde-
se o pensamento com o real, reduzindo o real ao pensamento e no idealismo empirista
confunde-se o pensamento com o real reduzindo o pensamento do real ao próprio real.

Marx percebe nos economistas clássicos os equívocos das abstrações idealistas


empiristas de suas análises, mas silencia. No entanto, elabora seu pensamento científico
para produzir, ao final de seu trabalho, abstrações novas, radicalmente diferentes das
abstrações propostas pelos economistas clássicos.

240
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 70, v. 1.
144

Nos clássicos há uma identidade do trabalho útil, criador de valores de uso e do


trabalho criador de valores de troca, do trabalho concreto com o trabalho abstrato – há uma
causa ausente: as relações sociais de produção.

Descobre o termo ausente em Ricardo que apesar de afirmar que a substância do


valor é o trabalho e a magnitude do valor é medida pelo tempo de trabalho, não considerou
a determinação particular do trabalho que cria valor de troca ou se representa em valor de
troca - o mais valor:

Na análise do valor que é o ponto de partida científico de Ricardo, há, pois um


termo ausente. Marx, no primeiro capítulo de O Capital, restabelece o termo
ausente:

[...]. É o trabalho que Ricardo não fez. Ele se contentou com o retorno à
unidade. A dissolução (Auflösung) da formas determinadas da riqueza é para ele
a solução (Lösung) do problema do valor. O procedimento de Marx, ao contrário,
como indica Engels no prefácio do livro II, consiste em ver nessa solução um
problema. Marx coloca a questão que podemos chamar de questão crítica:
porque o conteúdo do valor assume a forma do valor?241

Marx afirma que a substância do valor e a sua magnitude estão determinados,


restando analisar a forma do valor. Desta forma, os produtos do trabalho assumem a forma
mercadoria, convertem-se em mercadorias, isto é, em formas sensíveis, suprassensíveis ou
coisas sociais, sendo que estas mercadorias não possuem uma objetividade de valor senão
como expressões da mesma unidade social, o trabalho humano.

Resumindo, os conceitos que trazem as descobertas fundamentais ocorridas n’


Capital, segundo o próprio Marx, são: valor e valor de uso, trabalho abstrato e trabalho
concreto e mais-valia:

A questão crítica é a problematização da relação conteúdo/forma. Para Ricardo,


o valor é trabalho. Importa pouco a forma na qual aparece essa substância. Para
Marx, o trabalho se representa no valor, se reveste na forma do valor das
mercadorias. Seja a equação: x mercadorias A= y mercadorias B. Ricardo a
resolve simplesmente declarando que a substância do valor de A é igual à
substância do valor de B. Por sua vez, Marx mostra que essa equação é posta em
termos completamente particulares. Um dos termos figura apenas como valor de
uso, o outro como valor de troca ou forma do valor.242

Do ponto de vista do indivíduo, O Capital coloca adequadamente o problema


definindo para o modo de produção capitalista as diferentes formas da individualidade,
segundo as funções que os indivíduos são portadores na divisão do trabalho.

241
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 104, v. 1.
242
Idem, ibidem, p. 104, v. 1.
145

Diferentemente dos Manuscritos, no qual o par fundamental era sujeito-objeto (ou


pessoa-coisa), em O Capital é a posição nas relações de produção que determina o lugar do
sujeito e do objeto – o sujeito é apenas o suporte das relações de produção constitutivas da
objetividade econômica:

Não mais podemos ter, portanto, um par sujeito-objeto semelhante àquele dos
Manuscritos. Neste texto, o termo Gegenstand era tomado num sentido
sensualista. Aqui não passa de um fantasma, a manifestação de uma
característica da estrutura. O que assume a forma de uma coisa não é o trabalho
como atividade de um sujeito, mas o caráter social do trabalho. E o trabalho
humano de que se trata aqui não é trabalho de nenhuma subjetividade
constitutiva. Ele traz a marca de uma estrutura social determinada:

[...].

É, pois uma “época historicamente determinada”, isto é, um modo de produção


determinado que efetua a Darstellung do trabalho na objetividade fantasmática
da mercadoria.243

O conceito de sujeito não mais intervém, os fenômenos não mais se centram em um


sujeito constituinte e sim se apresentam como forma de aparecimento do objeto ausente,
que na verdade não é propriamente um objeto e sim uma relação social.

A constituição dos objetos não mais pertence a uma subjetividade, o que pertence a
esta é a percepção, sendo que a diferença entra a constituição dos objetos e as condições de
percepção deles é que determina a aparência:

O que caracteriza a aparência é que essa coisa nela aparece como coisa
simplesmente sensível, e que suas propriedades aparecem como propriedades
naturais. Assim, a constituição dos objetos não pertence a uma subjetividade. O
que pertence à subjetividade é a percepção. A diferença entre a constituição dos
objetos e as condições da percepção deles é que determina a aparência. 244

3.2 – Ideologia

Marx somente atingiu seu objeto de estudo da maturidade após longa luta contra as
posições ideológicas burguesas:

Partindo de Hegel e de Feuerbach, em quem acreditou encontrar a crítica de Hegel, Marx só


chegou a alcançar posições filosóficas, a partir das quais lhe foi possível descobrir o seu
objeto, através de uma longa luta política e filosófica, interna e externa. E só chegou a
ocupar essas posições quando rompeu com a ideologia burguesa dominante, depois de
haver experimentado, política e intelectualmente, o caráter antagônico que tem o mundo da
ideologia burguesa dominante e as posições filosóficas que lhe permitam descobrir o que o
imenso edifício da ideologia burguesa e suas formações teóricas (Filosofia, Economia

243
ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 108, v. 1.
244
Idem, ibidem, p. 113, v. 1.
146

Política, etc.) tinham como missão dissimular, a fim de perpetuar a exploração e o domínio
da classe burguesa. 245

Somente com posições filosóficas materialistas e dialéticas existe a possibilidade de


se “ver” o que oculta a ideologia burguesa: a estrutura de classe e a exploração de classe de
uma formação social. É a partir de uma tomada de posição de classe, colocando-se a partir
de uma ótica da classe operária que é possível compreender O Capital – no qual Marx
deixa claro que a economia política existente não é uma ciência, e sim uma formação
teórica ideológica que desempenha um papel na luta de classes: o de dissimular as relações
entre as classes e a luta de classes, que tem por missão ideológica ocultar.

Em sua própria leitura “sintomal” de Marx, elaborada em Pour Marx e Ler o


Capital, Althusser considera que escamoteou o papel da luta de classes, o modo de
intervenção da ideologia na teoria, o ponto de vista de classe utilizada pelo próprio Marx n’
O Capital.

Em Elementos de autocrítica reconhece uma tendência teoricista de sua leitura do


Capital, em que a filosofia ainda é mais pensada como um “discurso sobre” ou como um
“pensamento de” que como uma intervenção política na teoria, ou melhor, como luta de
classes na teoria.

Pode-se dizer que toda a problemática tratada por Althusser em sua obra, como sua
concepção da filosofia, a crítica ao humanismo e ruptura epistemológica, está baseada em
sua teoria da ideologia, motivo do destaque dado a este tema por Francisco Sampedro:

O ponto nuclear, ou se preferirmos, a preocupação máxima do pensamento de


Althusser, a sua motivação, finalidade e o que, de um modo não desprovido de
grande importância, constituirá a base filosófica de sua obra, é, sem dúvida
alguma, a construção de uma teoria da ideologia. Por isso, nos estendemos sobre
este ponto muito mais amplamente do que fizemos em relação aos anteriores. A
principal justificativa é clara: nessa teoria da ideologia estabelecida por
Althusser, encontra-se mergulhada toda a problemática tratada anteriormente:
desde a sua concepção da filosofia até a crítica ao humanismo, passando, de um
modo crucial, pela noção de ruptura epistemológica.246

Todavia, a distinção entre ideologia e ciência, ou filosofia, não é assegurada em


definitivo pela "ruptura epistemológica", uma vez que esta ruptura não é um evento
determinado cronologicamente, mas sim um processo: há uma luta contínua contra a

245
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan. In ______. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2000, p. 79.
246
SAMPEDRO, Francisco. A teoria da ideologia em Althusser. In ______; NAVES, Marcio Bilharinho
(org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 31.
147

ideologia, neste sentido "a ideologia não tem história", pois se trata da ideologia em geral e
não da característica de uma ideologia em particular:

Em primeiro lugar, algumas palavras para expor a razão de princípio que me


parece servir de fundamento ou, pelo menos, autorizar o projeto de uma teoria da
ideologia em geral e não de uma teoria das ideologias particulares, as quais
exprimem sempre posições de classe, independentemente da forma que venham
a revestir (religiosa, moral, jurídica ou política). Com toda a evidência, será
necessário desenvolver uma teoria das ideologias, sob a dupla relação que acaba
de ser indicada. Veremos, então, que uma teoria das ideologias repousa, em
última instância, sobre a história das formações sociais, portanto, dos modos de
produção combinados em tais formações, e das lutas de classes que aí se
desenvolvem. Nesse sentido, é claro que não se trata de uma teoria das
ideologias em geral, uma vez que as ideologias (definidas sob a dupla relação
indicada mais acima: domínio específico e de classe) têm uma história, cuja
determinação, em última instância, encontra-se, evidentemente, situada fora das
ideologias, embora lhes diga respeito. Em compensação, se posso propor o
projeto de uma teoria da ideologia em geral e se essa teoria é realmente um dos
elementos do qual dependem as teorias das ideologias, isso implica uma
proposição aparentemente paradoxal que enunciarei nos seguintes termos: a
ideologia não tem história. 247

No capitalismo, caracterizado por uma sociedade de classes, as relações de


produção são relações de exploração capitalista, deste modo, para se manter a coesão
social e gerar a aceitabilidade desta exploração, a ideologia se faz presente.

Relações de produção são relações entre os agentes da produção, quando todos os


membros de uma formação social são agentes da produção ou, em uma sociedade de
classes, entre os agentes de produção e outros personagens que não são agentes da
produção, mas intervém nesta produção.

O capital não tem como finalidade principal a produção de objetos de utilidade


social, na verdade, aproveita-se deste momento da produção, arrumando uma forma de
subtrair aos trabalhadores a mais-valia - o objetivo principal dos capitalistas é a produção
de mais-valia e a produção do próprio capital:

É o que exprime a expressão corrente: o motor do regime capitalista é a “procura


do lucro”. Deve-se dizer mais rigorosamente: o motor do capitalismo é a
produção da mais-valia por meio da produção dos objetos de utilidade social, é o
crescimento ininterrupto, portanto, ampliado da exploração por meio da
produção. No modo de produção capitalista, a produção dos objetos de utilidade
social é inteiramente subordinada à “produção” da mais-valia, isto é, à produção
ampliada do capital, ao que Marx chama de “a valorização do valor”. Os bens de
utilidade social (os “valores de uso”) são realmente produzidos pelo modo de
produção capitalista, mas este não os produz enquanto objetos de utilidade
social, destinados a esse “fim” aparentemente primordial: satisfazer as
necessidades sociais. São produzidos enquanto mercadorias, produzidas pela

247
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (Notas para uma pesquisa). In ______.
Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 275.
148

compra dessa mercadoria que é a força de trabalho, com um só e único fim:


“produzir”, isto é, extorquir mais-valia aos operários pelo jogo desigual entre
estes dois valores; o valor do sobre produto e o valor do salário.248

A divisão social é a realidade da divisão técnica do trabalho: produção, exploração


e luta de classe na produção. As relações de exploração se traduzem em primeiro lugar pela
extorsão da mais-valia mediante o salário, mas também sob as espécies da divisão do
trabalho.

Propaga-se a ilusão da natureza puramente técnica da divisão, organização e


direção do trabalho, no entanto, ocorre uma luta de classes em que a classe capitalista
procura manter os operários em suas condições de explorados, situação denunciada por
Marx em sua obra:

Ora, toda a obra de Marx é o comentário, e toda a experiência prática, a rude e


impiedosa experiência cotidiana feita pelos operários das relações reais que
dominam e regulamentam a divisão e a organização “técnicas” do trabalho, é a
prova de tal situação: essas “evidências” da divisão, organização e direção
puramente técnicas do trabalho são uma pura e simples ilusão, pior, uma pura e
simples impostura, utilizada a fundo pela luta de classe capitalista contra a luta
de classe operária para manter os operários em sua condição de explorados. 249

Portanto, as relações de produção capitalista são as relações da exploração


capitalista, sendo que no interior da produção capitalista ocorre uma dominação irredutível
da divisão social sobre a pseudo divisão puramente técnica do trabalho, resultado da luta
de classes, os operários passaram de fornecedores de “mão-de-obra” para simples
apêndices automáticos da máquina.

Assim como as relações de produção capitalistas não são relações puramente


técnicas, mas relações de exploração; não são também relações meramente jurídicas, como
propriedade nem uma melhor organização técnica do processo de trabalho, desta forma, a
construção do socialismo deve se pautar na criação de novas relações de produção que
eliminem os efeitos de exploração e de classe.

Compreende-se também que o destino de qualquer luta de classes, inclusive o


destino de uma luta de classe revolucionária vitoriosa, dependa, no final das
contas de uma justa concepção das relações de produção. Para “construir o
socialismo”, é necessário criar novas relações de produção que eliminem
realmente os efeitos de exploração das antigas relações de produção e todos os
seus efeitos de classe. A construção do socialismo não pode, portanto, se pautar
por fórmulas puramente jurídicas: propriedade dos meios de produção + melhor
organização técnica do processo de trabalho. No limite, são fórmulas que, se não
forem seriamente criticadas e retificadas, e muito rapidamente, correm o risco de

248
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 56-57.
249
Idem, ibidem, p. 59.
149

permanecer presas na ideologia economicista-tecnicista-jurídica-humanista-


burguesa do trabalho.250

Segundo Marx, a estrutura de toda a sociedade é constituída por níveis ou instâncias


articuladas da seguinte forma: infraestrutura ou base econômica (forças produtivas e
relações de produção) e a superestrutura, que por sua vez comporta dois níveis, o jurídico-
político (o direito e o Estado) e o ideológico (as diferentes ideologias: religiosa, moral,
jurídica, política etc.).

Por esta metáfora espacial de um edifício (base e superestrutura) é possível


visualizar que as questões de determinação são capitais e que é a base que determina em
última instância todo o edifício. Mas, segundo Althusser, esta representação é metaforica e,
portanto, descritiva, o que faz com que ele procure uma representação diferente da lógica
da metáfora discritiva do edifício as relações existentes entre direito-Estado e por outro
lado, as ideologias:

Levemos até o fim nosso pensamento: devemos também representar, de uma


forma diferente daquela que utilizamos, o que diz respeito ao par singular,
designado por nossa expressão de superestrutura jurídico-política; devemos
explicar esse traço de união que une o Direito e o Estado na expressão jurídico-
política e nos perguntar exatamente o que podemos e devemos pensar para
justificar (ou colocar em questão) esse traço de união; devemos também nos
perguntar a razão pela qual empregamos (e se é legítimo empregar) uma
expressão que coloca o Direito antes do Estado e se não conviria, pelo contrário
colocar o Direito depois do Estado, ou se essas questões de antes ou depois,
longe de ser uma solução, não são somente o indício de um problema que, nesse
caso, deveria ser colocado em termos completamente diferentes. 251

O indivíduo dentro desta estrutura posta é constituído em sujeito. Para elaborar esse
processo, Althusser se utiliza dos conceitos de inconsciente (Freud) e dos ensinamentos de
Lacan, em especial o estádio do espelho, descrevendo as estruturas e sistemas que
possibilitam identificar o “assujeitamento” do indivíduo.

O indivíduo tanto é determinado do ponto de vista da carga ideológica que define


sua estrutura psicológica, como pela ideologia que reproduz o modo de produção
(hegemonia) e as relações de exploração capitalista, que é promovida pelos Aparelhos
Ideológicos de Estado – AIE.

A ideologia existe pelo sujeito e para os sujeitos – o sujeito concreto:

250
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 69.
251
Idem, ibidem, p. 81-82.
150

Essa tese tem por finalidade simplesmente explicitar nossa última proposição:
toda ideologia existe pelo sujeito e para os sujeitos. Entendamo-nos: a ideologia
só existe para sujeitos concretos (como você e eu) e esse destino da ideologia não
é possível a não ser pelo sujeito: entendamo-nos, pela categoria de sujeito e seu
funcionamento. Pretendemos dizer com isso que a categoria de sujeito (que pode
funcionar sob outras denominações: por exemplo, em Platão, a alma, Deus, etc.)
- embora não apareça sob essa denominação (o sujeito) antes do advento da
ideologia burguesa, sobretudo do advento da ideologia jurídica - é a categoria
constitutiva de toda ideologia, seja qual for a determinação (relativa a um
domínio específico ou de classe) e seja qual for o momento histórico, uma vez
que a ideologia não tem história. 252

Ou seja, a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos, ou seja, a função da


ideologia é constituir indivíduos concretos em sujeitos:

Nós dizemos: a categoria de sujeito é constitutiva de toda a ideologia, mas, ao


mesmo tempo e imediatamente, acrescentamos que a categoria de sujeito só é
constitutiva de toda a ideologia enquanto esta tem por função (que a define)
“constituir” indivíduos concretos como sujeitos. É nesse jogo de dupla
constituição que se efetua o funcionamento de toda a ideologia, sendo que esta
nada é além de seu funcionamento através das formas materiais da existência
desse funcionamento. Para tornar mais claro o sentido do que se segue, é
necessário levar em consideração que tanto aquele que escreve estas linhas,
quanto o leitor que as lê, são eles mesmos sujeitos, portanto, sujeitos ideológicos
(proposição em si mesma tautológica), isto é, o autor como o leitor destas linhas
vivem "espontaneamente" ou "naturalmente" na ideologia, no sentido de que
dissemos que "o homem é, por natureza, um animal ideológico”.253

Em outros termos, a questão, no que se refere à constituição do sujeito de direito,


seria identificar como a ideologia opera por meio do Estado (aparelhos ideológicos), do
direito, e qual conteúdo agregaria a psicanálise nesse processo.

3.2.1. Aparelhos Ideológicos de Estado

O Estado na teoria marxista tem sido definido como uma força, um aparelho
repressor a serviço das classes dominantes, que nas mãos da burguesia é utilizado para
manter a dominação sobre o proletariado:

A tradição marxista é formal: desde o Manifesto e o 18 Brumário (e em todos os


textos clássicos ulteriores, antes de tudo, o de Marx sobre a Comuna de Paris e o
de Lenin em O estado e a revolução), o Estado é concebido explicitamente como
aparelho repressor. O Estado é uma espécie de “máquina” de repressão que
permite às classes dominantes (no século XIX, à classe burguesa e à “classe” dos
grandes proprietários rurais) garantir sua dominação sobre a classe operária para
submetê-la ao processo da mais-valia (isto é, à exploração capitalista).254

252
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. In ______. Sobre a Reprodução.
Petrópolis: Vozes, 2008, p. 283-284.
253
Idem, ibidem, p. 283-284.
254
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 97.
151

Althusser entende que esta definição é ainda descritiva, ou seja, precisa ser
desenvolvida para tornar-se realmente uma teoria propriamente dita:

No entanto, como já tinhamos observado a propósito da metáfora do edifício


(infraestrutura e superestrutura), essa apresentação da natureza do Estado
continua sendo descritiva. Como teremos a ocasião de empregar, muitas vezes,
esse adjetivo (descritivo), é necessária uma explicação para evitar qualquer
equívoco. Quando dizemos, referindo-nos à metáfora do edifício ou à “teoria”
marxista do Estado, que se trata de concepções ou representações descritivas do
objeto ds mesmas, não somos movidos por qualquer segunda intenção pejorativa.
Pelo contrário, temos todos os motivos pora pensar que as grandes descobertas
científicas não podem deixar de passar, em primeiro lugar, por uma fase que
designamos por teoria descritiva. Esta seria a primeira fase de qualquer teoria,
pelo menos, no campo que nos ocupa (o da ciência das formações sociais). Como
tal, poder-se-ia – e, em nossa opinião, deve-se – encarar essa fase como
transitória e necessária para o desenvolvimento da teoria. 255

Há de se reconhecer que, de fato, o Estado é um aparelho repressor, mas ele não


deve ser considerado apenas como um puro instrumento de dominação e repressão a
serviço dos objetivos, ou da “vontade consciente da classe dominante”, pois tal definição
cairia em uma concepção idealista (humanista) burguesa ao considerar as classes sociais
como “sujeitos”.

Há necessidade de se acrescentar algo à teoria descritiva do Estado, indicando-se


com precisão que, em primeiro lugar, o Estado não tem sentido a não ser em função do
Poder do Estado.

Há uma distinção entre o Poder do Estado e o Aparelho do Estado. Deve-se


distinguir o poder do Estado (conservação ou tomada do poder) objetivo da luta de classes
do aparelho de Estado:

O que é necessário acrescentar ou, pelo menos, indicar com toda a precisão, é,
em primeiro lugar, que o Estado (e sua existência no respectivo aparelho) não
tem sentido a não ser em função do Poder de Estado. Toda a luta política de
classes gira em torno do Estado: entendamo-nos, em torno da posse, isto é, da
tomada ou conservação do poder de Estado, por determinada classe, ou um
“grupo no poder”, isto é, uma aliança de classes ou de frações de classes. Esse
primeiro esclarecimento obriga-nos, portanto, a estabelecer a distinção entre o
Poder do Estado (conservação ou tomada do poder de Estado), objetivo da luta
de classes política, e o Aparelho de Estado.256

Mesmo ocorrendo uma revolução, mudando-se a classe dominante, o aparelho de


Estado pode se manter o mesmo, desta forma, o proletariado tomando o poder de Estado

255
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 98.
256
Idem, ibidem, p. 100.
152

deve inicialmente substituí-lo por um aparelho de Estado totalmente diferente e, em fases


posteriores, instalar um processo radical de destruição deste Estado.

Avançando um pouco mais para constituir uma teoria de Estado, Althusser


acrescentou outra realidade, não bastando a distinção entre poder do Estado e Aparelho
Repressor de Estado, afirma que o Estado é composto também por Aparelhos Ideológicos
de Estado – AIE:

Para poder construir uma teoria do Estado, é indispensável levar em


consideração não só a distinção entre Poder de Estado (e seus detentores) e
Aparelho de Estado, mas também uma outra “realidade” que se encontra,
manifestamente, do lado do Aparelho repressor do Estado, mas não se confunde
com ele; corremos o risco teórico de designá-la por Aparelhos ideológicos de
Estado. O ponto preciso de intervenção teórica diz respeito, portanto, a esses
Aparelhos ideológicos de Estado na sua diferença em relação ao Aparelho de
Estado, no sentido de Aparelho repressor de Estado.257

Os Aparelhos Ideológicos de Estado, AIE, representam a materialidade da ideologia


em determinada sociedade, a estrutura social em que um indivíduo se inscreve no sistema
produtivo.

A sociedade para existir deve produzir e reproduzir as condições de sua produção,


sendo este papel assegurado pelos AIE, de tal forma que no capitalismo estes aparelhos
garantem a reprodução da divisão do trabalho e sustentam a submissão dos dominados aos
dominantes.

Os Aparelhos Ideológicos de Estado não se confundem com o Aparelho


(repressivo) de Estado, que compreende o governo, a administração, o exército, a polícia,
os tribunais, a prisões, etc. Repressivo porque o Aparelho de Estado em questão funciona
pela violência (física ou não, como a violência administrativa), pelo menos em situações
limite.

Os Aparelhos Ideológicos de Estado - AIE designam realidades que se apresentam


na forma de instituições distintas e especializadas. São eles: AIE religiosos (o sistema das
diferentes Igrejas); AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e privadas); AIE
familiar; AIE jurídico; AIE político (o sistema político, os diferentes Partidos); AIE

257
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 102.
153

sindical; AIE cultural (letras, belas artes, esportes, etc.) e AIE de informação (a imprensa,
o rádio, a televisão, etc.). 258

Cada AIE corresponde a Instituições ou organizações, que formam um sistema e


estas instituições e organizações tem um suporte real e material e são ancoradas em
realidades não ideológicas, desta forma, coloca-se em destaque a “realidade” (a saber, a
ideologia) que unifica as diferentes instituições ou organizações e práticas, presentes no
interior de cas AIE, possibilitando a Althusser enunciar “provisoriamente” que:

Um aparelho de Estado é um sistema de instituições, organizações e práticas


correspondentes, definitivas. Nas instituições, organizações e práticas desse
sistema é realizada toda a ideologia de Estado ou uma parte dessa ideologia (em
geral, uma combinação típica de certos elementos). A ideologia realizada em um
AIE garante sua unidade de sistema “ancorada” em funções materiais, próprias
de cada AIE, que não são redutíveis a essa ideologia, mas lhe servem de
“suporte”.259

Portanto, enquanto o aparelho repressor do Estado usa indireta ou diretamente da


violência física, os AIE não se utilizam da violência necessariamente, pois funcionam por
meio da ideologia. Apesar destas diferenças, estes dois tipos de aparelhos de Estado são
utilizados pela classe dominante para manter sua hegemonia, que unifica por sua ideologia
(AIE), além de deter o poder do Estado e, consequentemente, dispor do aparelho
(repressivo) de Estado:

É “livremente” que se vai à Igreja, à Escola, embora esta seja “obrigatória”...,


que se adere a um partido político e se obedece a ele, que se compra um jornal,
que se liga a TV, que se vai ao cinema ou ao estádio e que se compram e
“consomem” discos, quadros ou “Posters”, obras literárias, históricas, políticas,
religiosas e científicas. Portanto, equivale dizer que os aparelhos ideológicos de
Estado distinguem-se do Aparelho de Estado no sentido de que funcionam não
“por meio da violência”, mas “por meio da ideologia”. Já pronunciamos essa
frase a propósito do “funcionamento” do Direito “por meio da ideologia
jurídico-moral” e sabemos o que isso significa: esses aparelhos funcionam
aparentemente “sozinhos”, sem se recorrerem à violência, mas na realidade por
meios diferentes da violência, a saber, pela ideologia, ou antes pela
ideologização. Assim, marcamos muito nitidamento a distinção entre o Aparelho
de Estado e os Aparelhos ideológicos de Estado.260

A base, a infraestrutura do Estado de classe, é a exploração, pois em uma formação


social capitalista, tudo repousa sobre a infraestrutura das relações de produção, com a
superestrutura garantindo as condições de exercício dessa exploração (aparelho repressor

258
Esta classificação foi elaborada na Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, ensaio extraído do
manuscrito Sobre a Reprodução dos aparelhos de produção, que não previa o AIE jurídico e separava do
AIE da Informação o AIE da Edição-Difusão.
259
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p.104.
260
Idem, ibidem, p. 105-106.
154

de Estado) e a reprodução das relações de produção, isto é, de exploração (aparelhos


ideológicos de Estado).

Desta forma, mesmo com o domínio do poder do Estado pelos proletários, caso a
antiga ideologia não seja extirpada, será com base nela que serão reproduzidas as relações
de produção, apesar das aparências de “Estado proletário”, pois a duração de uma
formação social dominada por determinado modo de produção depende da duração da
superestrutura que garante as condições dessa reprodução e da própria reprodução, isto é,
da duração do Estado de classe.

Porém, há de se destacar, na análise de Althusser sobre a possibilidade de


superação do modo de produção capitalista, o enfoque dado à luta de classes. A tomada do
poder do Estado pelo proletariado é apenas uma etapa revolucionária (a ditadura do
proletariado) uma vez que o prosseguimento da luta de classes é de longa duração e
continuam nos AIE:

Como eles realizam a existência da Ideologia de Estado, mas de forma


desordenada (sendo cada um, relativamente, autônomo), como funcionam por
meio da ideologia, é no âmago deles e em suas formas que se desenrola uma boa
parte da guerra de longa duração como é a luta de classe que pode chegar a
derrubar as classes dominantes, isto é, desapossar as classes dominantes do poder
de Estado que elas detêm. Todos nós sabemos que a luta de classes no Aparelho
repressor do Estado, na polícia, nas forças armadas e, até mesmo, na
administração constitui, em tempo “normal”, senão uma causa praticamente
perdida, pelo menos uma operação muito limitada. Em compensação, a luta de
classes nos Aparelhos ideológicos de Estado é uma coisa possível, séria e pode ir
muito longe porque é nos aparelhos ideológicos de Estado que os militantes e,
em seguida, as massas adquirem a experiência política antes de “levá-la até o
fim”. Não é por acaso que Marx dizia que é na ideologia que os homens tomam
consciência de seus interesses e travam sua luta de classe até o fim. Até aqui,
limitamo-nos a exprimir, em uma linguagem um pouco mais precisa, essa
intuição genial do fundador do socialismo científico.261

As práticas dos indivíduos, suas ideias e opiniões, incluindo aquelas que lhes são
atribuídas pela divisão do trabalho, compõem conjuntamente com a ideologia o objeto e
objetivos dos AIE, que reproduzem as relações de produção, de forma a serem aceitas
pelos indivíduos na sua consciência mais íntima e conduta mais privada ou pública.

Althusser, em sua análise dos aparelhos ideológicos de Estado, afirma que estes são
formados por sistema complexo que compreende e combina várias instituições e
organizações e respectivas práticas, sendo que até este sistema não deveria nada ao direito,
mas a uma realidade diferente que ele denomina Ideologia de Estado:

261
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 176.
155

O que faz um aparelho ideológico de Estado é um sistema complexo que


compreende e combina várias instituições e organizações, e respectivas práticas.
Que sejam todas públicas ou todas privadas, ou que umas sejam públicas e outras
privadas, trata-se de um detalhe subordinado, já que o que nos interessa é o
sistema que constituem. Ora, esse sistema, sua existência e sua natureza não
devem nada ao Direito, mas a uma realidade completamente diferente que
designamos por Ideologia de Estado.262

No entanto, aprofundando seus estudos, em especial nos livros Resposta a John


Lewis e Elementos de autocrítica, o direito para Althusser, mais precisamente a ideologia
jurídica, passa a ter uma importância fundamental como discurso de toda a ideologia.

3.2.2. Direito

O direito seria, segundo uma análise somente descritiva, um sistema de regras


codificadas que são aplicadas na prática cotidiana. A base jurídica a partir da qual os outros
setores do direito tentam sistematizar e harmonizar suas próprias noções e suas próprias
regras é o direito privado, que, sob uma forma sistemática, enuncia regras que regem as
trocas mercantis (compra e venda), as quais repousam sobre o direito de propriedade:

Trata-se de um sistema de regras codificadas (cf Código Civil, código de Direito


penal, de Direito Público, de Direito comercial, etc.), que são aplicadas, isto é,
respeitadas e contornadas na prática cotidiana. Para a implificação da exposição,
consideramos, antes de tudo, o Direito privado (contido no Código Civil) que,
aliás, constitui a base jurídica a partir da qual os outros setores do Direito tentam
sistematizar e harmonizar suas próprias nocões e suas próprias regras. 263

O direito assume um sistema que tende a não ter contradição interna, de forma que
abarque todos os casos possíveis apresentados pela realidade. É formal, pois incide sobre a
forma dos contratos de troca, por pessoas formalmente livres e iguais perante o direito,
sendo deste modo, universal:

O direito é necessariamente formal no sentido de que incide não sobre o


conteúdo do que é trocado pelas pessoas jurídicas nos contratos de compra-
venda, mas sobre a forma desses contratos de troca, forma definida pelos atos
(formais) das pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o Direito. É
na medida em que o Direito é formal que ele pode ser sistematizado, como
tendencialmente não contraditório e saturado. A formalidade do Direito e sua
sistematicidade correlativa constituem sua universalidade formal: o Direito é
válido para – e pode ser invocado por – toda a pessoa juridicamente definida e
reconhecida como pessoa jurídica. 264

262
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 108.
263
Idem, ibidem, p. 83.
264
Idem, ibidem, p. 84-85.
156

O conteúdo do direito está ausente de suas formas, mas ocorre que o formalismo do
direito somente tem sentido enquanto se aplica a conteúdos definidos: as relações de
produção e seus efeitos.

Ou seja, o direito não existe a não ser em função de um conteúdo do qual faz em si
mesmo total abstração (as relações de produção), um conteúdo que ele escamoteia. Não faz
sentido, portanto, falar-se em direito socialista, uma vez que não existe direito além das
relações mercantis, sendo, por conta disso, um direito burguês:

De fato, sabemos que Marx sempre definiu as relações de produção que


constituem o modo de produção socialista não pela propriedade coletiva
(socialista) dos meios de produção, mas por sua apropriação coletiva ou comum
pelos homens livremente “associados”. Portanto, recusa de uma definição pelo
Direito do que não pode ser definido pelo Direito, até mesmo dito socialista. Em
Marx, essa recusa vai muito longe já que, manifestamente a seu ver, todo Direito,
sendo em última instância o Direito das relações mercantis, permanece
definitivamente marcado por esta tara burguesa: portanto, todo o Direito é, por
essência, em última instância, desigualitário e burguês. A esse respeito, ver as
admiráveis, embora por demais sucintas, observações da Crítica do Programa de
Gotha.265

A fase de transição para o socialismo é uma fase em que o direito dito socialista
permanece ainda pela sua forma um direito desigualitário, portanto burguês. Marx na fase
de transição pensava no enfraquecimento do direito concomitantemente com o
enfrequecimento do Estado, o que significa o enfraquecimento das trocas do tipo mercantil,
das trocas de bens como mercadorias.

Na URSS esperava-se, com a planificação da economia, criar, de certa forma, as


relações de produção socialistas com a organização de maneira mais racional das forças
produtivas, ou seja, optou-se pelo primado das forças produtivas sobre as relações de
produção.

Althusser entende que tal opção, o primado das forças produtivas, foi equivocada,
oposta, inclusive, à afirmação de Lenin: “O socialismo é os sovietes + a eletrificação”, que
seria o primado dos sovietes sobre a eletrificação, ou seja, o primado político do problema
das relações de produção sobre as forças produtivas:

Para tocar o fundo dessa questão e, para além de todas as discussões teórico-
técnicas sobre os meios capazes de garantir a Planificação, é necessário, segundo
me parece, fazer a seguinte observação. Pensa-se no fundo, ou antes espera-se,
que a Planificação tenha por objeto essencial efetuar, constituir, em suma, criar
as relações de produção socialistas, as famosas relações de apropriação real. De

265
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 87.
157

fato, na medida em que ela tem a tendência de tomar o encargo, por si só ou de


maneira predominante, desse gigantesco problema, existe um equívoco em
relação a sua função real que é não tanto criar as Relações de Produção
socialistas, como organizer, de maneira mais “racional”, as Forças produtivas,
existentes, e na prática somente elas. Encontramos aqui uma política a respeito
da qual já falei no Anexo: a do primado das Forças produtivas sobre as Relações
de produção. Política falsa em seu princípio, política oposta à célebre palavra de
ordem de Lenin: “O Socialismo é os Sovietes + a eletrificação”. Nessa afirmação
lacônica, Lenin exprime uma tese justa, fundamental, e cuja negligência não
perdoa: afirma aí o primado dos Sovietes sobre a eletrificação e, por intermédio
desse primado dos Sovietes, o primado político do problema das relações de
Produção sobre as Forças Produtivas.266

O direito é necessariamento repressor, há necessidade de sanção, por exemplo, pelo


não respeito a um contrato. Para que exista sanção é preciso a existência de um aparelho
repressor de Estado no sentido estrito do termo (polícia, tribunais, multas e prisões), por
isso podemos dizer que o direito faz corpo com o Estado.

Mas, além do aspecto repressor do direito burguês (uma parte do aparelho de


Estado), há também a ideologia jurídica e por complemento a ideologia moral, que fazem
com que as pessoas jurídicas respeitem os contratos que subscreveram sem a necessidade
da ameaça preventiva do aparelho repressor, cumprem os contratos por “honestidade”, em
respeito ao direito, de forma que a prática jurídica aja sozinha, sem a necessidade de
repressão.

O direito não se cofunde com a ideologia jurídica. A liberdade e a igualdade são


asseguradas pelo direito, que diz que os indivíduos são pessoas juridicamente livres, iguais
e com obrigações como pessoas jurídicas, já a ideologia jurídica diz que os homens são
livres e iguais por natureza e não que é o direito que “fundamenta” esta liberdade e
igualdade dos “homens” (não pessoas jurídicas):

O direito diz: os indivíduos são pessoas jurídicas juridicamente livres, iguais e


com obrigações enquanto pessoas jurídicas. Dito por outras palavras, o Direito
não sai do Direito, ele reduz, “honestamente”, tudo ao Direito. Quanto à
ideologia jurídica, faz um discurso aparentemente semelhante, mas de fato
completamente diferente. Ela diz: os homens são livres e iguais por natureza. Na
ideologia jurídica, é, portanto, a “natureza” e não o Direito que “fundamenta” a
liberdade e a igualdade dos “homens” (e não das pessoas jurídicas). Existe uma
diferença... Resta, evidentemente, a obrigação. A ideologia jurídica não diz que
os homens têm obrigações “por natureza”: nesse ponto, ela tem necessidade de
um pequeno suplemento, muito precisamente de um pequeno suplemento moral,
o que significa que a ideologia jurídica só se mantém de pé apoiando-se na
ideologia moral da “Consciência” e do “Dever”. 267

266
ALTHUSSER, Louis. Nota 48. In ______. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 89.
267
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 94.
158

A moral suplementa o direito, dá suporte a ele, com a ideologia moral da


“consciência” e do “dever”.

Após uma análise definida por Althusser como sendo uma “teoria descritiva” do
direito, este autor passa para uma análise do limiar de uma teoria do direito no sentido
estrito do termo, nas formações sociais capitalistas, apresentando as seguintes “razões
reais” dos caracteres do direito - o direito é abstrato (formal), universal e vinculado a um
aparelho repressor e a uma ideologia jurídico-moral burguesa.

É formal e abstrato por definir a forma das relações de produção capitalista, criando
uma ilusão de que o direito é igual para todos os sujeitos declarados iguais e livres:

1 – O Direito regula formalmente o jogo das relações de produção capitalista, já


que define os proprietários, sua propriedade (bens), seu direito de “usar” e de
“abusar” da respectiva propriedade, seu direito de aliená-la com toda a liberdade,
o direito recíproco de adquirir uma propriedade. Nesse aspecto, o direito tem,
como objeto concreto, as relações de produção capitalistas enquanto faz
especialmente abstrações das mesmas. Cuidado: uma abstração é sempre, assim
como uma negação, determinada. O Direito burguês faz abstração não de
qualquer coisa, mas do objeto concreto, determinado do qual tem o “encargo” de
regulamentar o funcionamento, a saber, as relações de produção capitalistas.
Sobre esse ponto, não se deve, evidentemente, cair na ilusão ideológica que
permite aos magistrados ou juristas serem, com toda a boa “consciência
profissional” ou “moral”, os servidores do Estado capitalista – a ilusão de que o
Direito sendo igual para todos os sujeitos declarados iguais e livres, o Direito
sendo o Direito da Liberdade e da Igualdade, os magistrados e juristas seriam os
268
servidores da Liberdade e da Igualdade e não do Estado capitalista.

O direito é universal, no sentido de que por meio dele se realiza a igualdade por
meio da constituição dos indivíduos em sujeitos de direito e tudo em mercadoria:

2 – O Direito burguês é universal, por uma boa e simples razão: em regime


capitalista, o jogo das relações de produção é o jogo de um direito mercantil
efetivamente universal já que, em um regime capitalista, todos os indivíduos
(maiores, etc.) são sujeitos de direito e que tudo é mercadoria. Tudo, isto é, não
só os produtos socialmente necessários que se vendem e se compram, mas
também o uso da força de trabalho (fato sem precedentes na história humana,
que se baseia na realidade de que ele faz abstração, a pretensão do direito à
universalidade). Em Roma o escravo era uma mercadoria – portanto, uma coisa –
e não um sujeito de direito. É a razão pela qual as relações de produção
capitalistas obrigam os indivíduos despossuídos de qualquer meio de produção,
portanto “livres” de qualquer meio de produção, a vender “livremente” o uso de
sua força de trabalho como trabalhadores assalariados, que os proletários são,
perante o direito burguês, dotado dos mesmos atributos jurídicos dos capitalistas:
iguais, livres para alienar (vender) sua “propriedade” (neste caso, o uso de sua
força de trabalho já que não “possuem” mais nada) e livres para comprar (o

268
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 189-190.
159

necessário à vida para reproduzir sua existência, como “possuidores” de sua


força de trabalho).269

O direito está ligado a um aparelho repressor de Estado, assim como a uma


ideologia jurídico-moral burguesa:

3 – Mas, vimos, igualmente, que o direito está necessariamente vinculado, por


um lado, a um aparelho repressor especializado que faz parte do Aparelho
repressor do Estado, e, por outro, à ideologia jurídico-moral burguesa. Nesse
ponto, o direito que está em relação de abstração determinada (na verdade, uma
modalidade de abstração completamente diferente) com essa outra realidade
concreta que é o aparelho de Estado, sob um duplo aspecto, repressor e
ideológico. 270

Portando, segundo esta análise de Althusser, direito é um aparelho ideológico de


Estado que exerce uma função específica nas formações sociais capitalistas: a de assegurar
diretamente o funcionamento das relações de produção capitalista, o que se dá com a
constituição do sujeito de direito, de forma a garantir as trocas mercantins, por meio da
liberdade e igualdade entre os “proprietários”.

Para Nicole-Édith Thérvenin, se o desenvolimento da teoria jurídica em Althusser


passa por Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, foi em Resposta a John Lewis e
Elementos de autocrítica que Althusser chega a uma verdadeira teorização da metáfora que
representa o direito - a ideologia jurídica é constitutiva do discurso de toda a ideologia:

Se, como já observei, em Freud et Lacan, a metáfora permanece ainda uma


simples metáfora (não sem consequência sobre a teoria do nascimento de uma
ciência) essa realidade vai se desenvolver, passando por “Idéologie et appareils
idéologiques d’État”, para chegar em Réponse à John Lewis e Eléments
d’autocritique, no sentido de uma verdadeira teorização da metáfora: a ideologia
judídica como constitutiva do discurso de toda ideologia, ao mesmo tempo a
circunscrição de um terreno de pesquisa da relação Ideologia/inconsciente.271

Não se trata mais de refletir somente sobre a relação ideológica/ciência e sim


demarcar o científico do ideológico, que é tornado possível por meio da luta de classes na
teoria, análise que começa a partir de Lenin e a filosofia:

A partir de Lenine et la philosophie, uma via se abre, a análise mais precisa


(inquieta), melhor “ajustada”, dessa luta da filosofia na teoria, a questão
ideológica/política dessa luta. Já não se trata mais de refletir somente sobre a
relação filosofia/ciência dessa, porquanto a filosofia teria por função demarcar
“o” científico “do” ideológico. Mas qualquer coisa irrompe a luta de classes na

269
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 190.
270
Idem, ibidem, p. 190-191.
271
THÉVENIN, Nicole-Édith. O itinerário de Althusser. In SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio
Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 22-23.
160

teoria que torna possível essa função, a passagem para a relação


filosofia/política, que ele teorizará em Réponse à John Lewis. 272

Ainda há um ponto de estrangulamento, papel fundamental do direito, que é a


ideologia jurídica. Um ponto cego, uma análise que fica desprovida de sua base: as
categorias jurídicas, que apesar de não ausente nas análises, estão “recalcadas”, sendo
“desnudadas” por um livro que permitiu que se passasse a um “verdadeiro estabelecimento
teórico do funcionamento e da função ideológica do direito”:

Vimos o conceito de direito se constituir “em categoria ideológica/jurídica tendo


uma ‘história’ própria e estruturando verdadeiramente todo o discurso da
ideologia (em todos os níveis)”, e a recuperação de um conceito fundamental, o
conceito de “Forma sujeito de direito” e de “Forma-sujeito”. É certo então que a
“forma-sujeito”, que se encontra também em Résponse à John Lewis, só pode ser
compreendida sob a “Forma sujeito de direito”. Desse modo, todos os “sujeitos”
em ação nas ideologias da ideologia dominante são apenas formas diversas de
um mesmo sujeito, o sujeito jurídico. Que a ideologia jurídica assim apareça
como a “base” da ideologia burguesa, como afirma Elements d’autocritique, é o
que Le droit saisi par la photographie nos permite, não apenas comprender, mas
também teorizar a partir de seu “terreno comum”, a circulação, isto é, o terreno
comum do valor de troca e de suas determinações”, ele próprio regulado pelo
direito.273

Mesmo na experiência soviética, com um forte intervencionismo e criação de


propriedades estatais, o direito burguês não foi superado, foi mantida a subjetividade
jurídica:

A tomar de um nível primeiro, no que tange à propriedade privada, a apropriação


das coisas do mundo sob a forma de direito subjetivos erga omnes é capitalista,
ainda que matizada por variadas modulações de intervencionismo. Mesmo a
propriedade estatal – caso havido na experiência soviética - e um arranjo de
subjetividade jurídica. Mas, mais que isso, a disposição das necessidades e das
possibilidades, do trabalho e do controle dos meios e processos de produção
mediante vínculos contratuais é o elemento central que deve ser superado se se
quiser alcançar um modo de produção pós-capitalista. A forma de subjetividade
jurídica, jogando papel estrutural no capitalismo, é justamente fator a ser
extinto.274

Para uma análise mais aprofundada da constituição dos indivíduos em sujeitos de


direito, forma que ajusta tais indivíduos a se reconhecerem e posicionarem de acordo com
a exploração do modo de produção, Althusser utiliza-se da psicanálise de Freud
interpretada por Lacan.

272
THÉVENIN, Nicole-Édith. O itinerário de Althusser. In SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio
Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: Unicamp/IFCH, 2010, p. 26.
273
Idem, ibidem, p. 27.
274
MASCARO, Alysson Leandro. Direito, capitalismo e Estado: da leitura marxista do direito. In ______.
Para a crítica do direito. São Paulo: Outras Expressões e Dobra Universitária, 2015, p. 50.
161

3.2.3. A subjetividade para Lacan

O ensino lacaniano baseia-se principalmente na leitura adequada, no aprender a ler


e não na simples leitura histórica do nascimento de determinada concepção científica. Foi o
que Lacan fez com os ensinamentos de Freud, voltou a eles para depurar a ciência lá
contida separando-a do idealismo, retornando para a maturidade de Freud, para além do
infantilismo teórico:

O retorno a Freud não é um retorno ao nascimento de Freud: mas um retorno à


sua maturidade. A juventude de Freud, essa comovente passagem da ainda-não
ciência à ciência (o período das relações com Charcot, Bernheim, Breuer, até os
Estudos sobre a histeria – 1895) pode, é claro, interessar-nos, mas de uma
maneira totalmente diferente: a título de um exemplo de arqueologia de uma
ciência, ou como índice negativo de não maturidade, servindo então para datar
com maior precisão a própria maturidade e sua chegada. A juventude de uma
ciência é a sua idade madura: antes dessa idade, ela é velha, tendo a idade dos
preconceitos em que vive, como uma criança vive os preconceitos e, portanto, a
idade de seus pais.275

Lacan retorna a Freud munido de uma linguística estrutural, recolocando em termos


simbólicos os conceitos da teoria freudiana como: recalcamento, pulsão, libido, trauma,
fixação, regressão, fantasia, desejo, objeto, falo, gozo; operando uma significantização
destes conceitos.

Para Lacan, portanto, o inconsciente está estruturado como uma linguagem, um


sistema semiótico, uma sequência de signos que podem ser postos juntos, formando um
significado. Lacan também utilizou a topologia para demonstrar como esses processos de
metáfora e metonímia, juntamente com a dinâmica dos significantes, acontecem no
inconsciente:

Freud já dissera que tudo dependia da linguagem; Lacan precisa: “o discurso do


inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Na sua primeira grande obra,
a Ciência dos sonhos, que não é anedótica ou superficial como se acredita
frequentemente, mas fundamental, Freud estudara os “mecanismos”, ou “leis” do
sonho, reduzindo suas variantes a duas: o deslocamento e a condensação. Lacan
nelas reconheceu duas figuras essenciais designadas pela Linguística: a
metonímia e a metáfora. Daí resulta que o lapso, o ato falho, a piada e o sintoma
se tornavam, como elementos do próprio sonho: Significantes, inscritos na cadeia
de um discurso inconsciente, dublando em silêncio, ou seja, em voz
ensurdecedora, no desconhecimento do “recalcamento”, a cadeia de um discurso
verbal do sujeito humano. Com isso, éramos introduzidos ao paradoxo,
formalmente familiar à Linguística, de um discurso duplo e uno, inconsciente e
verbal, só tendo como campo duplo um campo único sem nenhum além a não ser
em si mesmo: o campo da “cadeia significante”. 276

275
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 56.
276
Idem, ibidem, p. 63.
162

Há um descompasso entre o significante e o significado o que permite o surgimento


do inconsciente nos tropeços da fala ou nas intenções conscientes. Essa arbitrariedade na
articulação significante mostra que o inconsciente segue regras lógicas, não cartesianas, a
serem identificadas na escuta, pelo analista, da lógica da dinâmica do significante.

Parte da primazia do simbólico, fundada na fórmula do “inconsciente estruturado


como linguagem”, privilegiando a revelação do simbólico, numa tentativa de dar conta do
que é decifrável do inconsciente na experiência analítica.

O simbólico, para Lacan, é o registro ou ordem de existência caracterizado pelo


campo da linguagem e pela função da fala. Ordem ou sistema de trocas regido por uma Lei
que sobredetermina as escolhas dos indivíduos, de modo que o inconsciente se estrutura
como uma linguagem na medida em que pertence ao domínio do Simbólico.

No debates nos círculos psicanalíticos dos anos 1950, havia uma tendência de se
considerar arcaicos os ensinamentos de Freud, em especial no que se refere aos
pressupostos da subjetivação, pois havia o entendimento da necessidade de se partir para
uma objetivação deste saber. Desta forma,

Conforme vimos, os “marxistas franceses”, em 1949, condenavam


inapelavelmente a Psicanálise. “No seu conjunto, diziam eles, ela é uma
ideologia reacionária”. Reacionária por ter uma forma de irracionalismo. Um
inconsciente em si resulta de um misticismo obscurantista. Em inconsciente em
si resulta de um misticismo obscurantista. Reacionária, também, por ser
individualista. O homem é, para Marx, algo essencialmente social: sua essência
“... é o conjunto das relações sociais”. Logo, uma teoria que se centra no
indivíduo, uma técnica que trabalha com o indivíduo só pode ser uma formação
particular da ideologia geral dominante, que é burguesa e individualista. Em
“Marx e Freud”, Althusser ataca esse problema de frente desfazendo equívocos.
Como acabamos de observar, o chamado “irracionalismo” da psicanálise faz
parte integrante e fundamental das condições de produção da nova ciência.
Vejamos, agora, como o seu chamado “individualismo” é, igualmente, uma
estrutura essencial da sua cientificidade. Percebemos, assim, como o que parecia,
aos olhos dos “marxistas franceses de 48”, características da ideologia
constituem, para Althusser, na verdade, estruturas essenciais de cientificidade, ou
condições para a sua produção.277

Lacan critica a tendência de objetivação existente nos meios psicanalíticos,


valorizando a subjetivação na descoberta freudiana. Retornando a Freud, Lacan luta pela
reintrodução da função do sujeito na elaboração analítica.

277
ALTHUSSER, Louis. Introdução, Althusser e a psicanálise. In ______. Freud e Lacan, Marx e Freud.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 34-35.
163

O sujeito lacaniano não é o sujeito de Descartes, que é baseado em um ponto de


certeza, no saber, a certeza pelo fato de pensar: penso, logo existo! A existência do Sujeito
lacaniano acontece a partir do advento do inconsciente que é o resultado da castração.

Por isso que Penso, logo existo contradiz toda a teoria psicanalítica, pois implica
que o Sujeito é o que ele constrói de si, baseado nas racionalizações de sua trama familiar,
quando a sua existência ocorre no lugar onde não há racionalização de seus pensamentos:

Este jogo significante da metonímia e da metáfora, incluindo sua ponta ativa que
fixa meu desejo numa recusa do significante ou numa falta do ser e ata a minha
sorte à questão de meu destino, esse jogo é jogado, até que a partida seja
suspensa, em seu inexorável requinte, ali onde não estou, porque não me posso
situar. Isto é, poucas foram as palavras com que, por um momento, desconcertei
meus ouvintes: penso onde não sou, logo sou onde não penso. Palavras que, para
qualquer ouvido atento, deixam claro com que ambiguidade de jogo-do-anel
escapa de nossas garras o anel no sentido do fio verbal. O que cumpre dizer é: eu
não sou joguete de meu pensamento: penso naquilo que sou lá onde não penso
pensar.278

Nas relações de poder, o sujeito não é mais que um efeito, é sempre deduzido de
uma premissa que reside no Outro – nesse sentido o sujeito é o produto de uma
sobredeterminação, uma cristalização. Na psicanálise, o conceito de sujeito vai além, não
trata apenas de deduzir sua posição no simbólico, mas também há de se considerar sua
estrutura fundada no inconsciente.

Apesar de que a linguagem, como uma dimensão simbólica pré-existe ao sujeito,


uma vez que desde o seu nascimento já é marcado por uma inscrição simbólica, “é
homem”, “tem um nome”, etc., o discurso do inconsciente é que funda a estrutura do
sujeito. O ser humano faz uma passagem de uma existência meramente biológica para
uma existência humana, estabelecida pela cultura:

Essa passagem da existência (no puro limite) biológica à existência humana


(filho de homem), Lacan mostrou que ela se operava sob a Lei da Ordem que eu
chamarei Lei de Cultura, e que essa Lei da Ordem se confundia em sua essência
formal, com a ordem da linguagem. Que devemos entender por essa fórmula
enigmática, à primeira vista? Primeiramente, que a totalidade dessa passagem só
pode ser apreendida sob a forma de uma linguagem recorrente, só pode ser
designada pela linguagem do adulto ou da criança em situação de cura,
designada, determinada, localizada, sob a lei da linguagem, em que se fixa e se
dá toda a ordem humana, portanto, todo o papel humano. 279

278
LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente. In ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,
p. 521.
279
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 64.
164

A formação do inconsciente é ocasionada quando um primeiro significante, que


representa uma situação insustentável para a criança, sofre repressão, o que cria um sujeito
desejante.

A repressão se faz necessária para a constituição do indivíduo, como o primeiro


momento da passagem para a existência humana, quando ocorre a diferenciação em
relação ao corpo de sua mãe, que lhe dá prazer, criando para si uma dimensão subjetiva da
realidade:

1) O momento da relação dual, pré-edipiana, em que a criança, deparando-se


apenas com um alter ego, a mãe, que escande sua vida com sua presença (da!) e
com sua ausência (fort!) vive essa relação dual no modo do fascínio imaginário
do ego, sendo ela própria este outro, tal outro, qualquer outro, todos os outros da
identificação narcisista primária, sem jamais poder tomar, face ao outro ou a si
mesmo, a distância objetivante do terceiro.280

O discurso do inconsciente, a verdade lógica sobre o desejo do Sujeito, instaura-se


a partir da metáfora paterna, também conhecida como O Nome do Pai, permitindo que a
criança tenha acesso à ordem simbólica, ou seja, às regras e à estrutura da sociedade.

2) o momento do Édipo, no qual surge uma estrutura ternária no fundo da


estrutura dual, quando o terceiro (o pai) se imiscui, como um intruso, na
satisfação imaginária do fascínio dual, perturba a sua economia, quebra seus
fascínios, e introduz a criança nisso a que Lacan chama a Ordem Simbólica, a da
linguagem objetivante, que lhe permitirá dizer finalmente: eu, tu, ele ou ela, que
permitirá, pois, ao serzinho situar-se como criança humana num mundo de
terceiros adultos.281

O nome do pai, para Lacan, é o principal operador da filiação de um sujeito, o que


não significa nome próprio do genitor, mas a uma função que, na neurose e na perversão,
designa arbitrariamente a localização da falta e da causa do desejo (falo) no campo do
Outro, indicando assim a localização indireta do sujeito no universo Simbólico:

O Nome-do-Pai é uma designação que se remete ao reconhecimento de uma


função simbólica e que é produto de uma metáfora, na medida em que, como
novo significante, substitui o significante do desejo da mãe. Este último
significante (SI) é objeto de um recalque, o recalque originário que vai tornar-se
inconsciente. Ao recalcar o objeto fundamental do seu desejo, o significante
desse desejo persiste no inconsciente e insiste em se representar.282

280
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 64-65.
281
Idem, ibidem, p. 65
282
BASTOS, Alice Beatriz B. Izique. A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em
Lacan. Petrópolis: Vozes, p. 110.
165

Resumindo, a metáfora paterna se dá pela repressão do significante primordial, o


falo imaginário que a criança tenta ser para sua mãe, ocorrendo a substituição desse
significante, criando-se, desta forma, o inconsciente ou o Sujeito desejante.

A subjetividade é fundada no inconsciente formado a partir da divisão do Sujeito,


uma vez que este é inserido na ordem simbólica, tornando-se dividido ou barrado, ou seja,
parte dele é reprimida por causa da interdição do seu desejo primordial.

A criança é interditada de ser o objeto de desejo da mãe através da lei simbólica que
a metáfora paterna substancia - esta lei é ativada pela substituição do primeiro significante,
o significante do desejo da mãe (falo), pela metáfora paterna.

Desde o início da vida a criança precisa da prevenção do outro para obter


satisfação. O outro intervém para obter satisfação. O outro intervém para
responder a algo que ele supõe ser uma demanda da criança, colocando-a assim
num universo de comunicação. Já não se trata apenas de uma demanda de
necessidade alimentar, mas de uma demanda já mediada e endereçada ao Outro,
àquele com quem passa a ter uma comunicação simbólica. Para Lacan, a
demanda testemunha a entrada da criança no universo do desejo que está além da
necessidade. Para poder se fazer ouvir em seu desejo, é preciso demandar, buscar
significar o que se deseja.283

Esta perda do desejo do primeiro objeto de desejo da criança é simbolizado pela


linguagem, metaforicamente, porém, para Lacan, este o desejo perdido sempre tentará um
retorno por ter sido transformado simbolicamente em linguagem, no entanto, por conta
dessa transformação, o significante não toma forma de significado e portanto o desejo é
impossível de ser satisfeito.

Na medida em que a necessidade se separa do desejo, que a própria demanda vai


confrontar a criança com a perda, que o desejo está inscrito na falta, o sujeito
passa a constituir-se como objeto potencial do desejo do Outro pela identificação
do objeto fálico. Nesse sentido, ao recusar a falta nele como no Outro, passa a
apresentar-se como o objeto dessa falta. Bem, essas questões serão desenvolvidas
no momento específico do complexo de Édipo, que selará, ou não, o abandono
do desejo do Outro. De objeto de desejo o Outro, o sujeito passa a assumir o
lugar de sujeito, e de sujeito desejante.284

É na demanda endereçada ao Outro que circula o desejo, escondido, disfarçado na


enunciação e nos intervalos do enunciado, nas pausas, nas exclamações e reticências - é na
modulação da fala do sujeito que cabe avalizar a presença do desejo e a verdade que ele

283
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 98.
284
BASTOS, Alice Beatriz B. Izique. A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em
Lacan. Petrópolis: Vozes, p. 98.
166

oculta. A fala do sujeito deixa entrever, além do vazio do dizer, o apelo do sujeito à
verdade que está inscrita em algum lugar do inconsciente.

A constituição do sujeito se dá quando o indivíduo entra no logo da linguagem,


encaminha uma demanda para alguém, de forma que, quando consegue este
encaminhamento, surge o Outro.

Lacan descobre que quando o sujeito fala ao Outro, geralmente ele fala como se o
outro fosse ele (o outro da semelhança) e não o Outro da diferença. Esse processo Freud
denominava narcisismo – estar apaixonado pela própria imagem.

A partir dos estudos sobre a relação da criança diante do espelho iniciada por Henri
Paul Hyacinthe Wallon, filósofo, médico, psicólogo, político francês, e marxista convicto,
Lacan explica a formação do eu e a disposição imaginária de certos fenômenos que lhe são
associados: agressividade, fascínio, transitivismo, negativismo.

Para Wallon, a descrição do estádio do espelho se apresenta como uma gênese do


sujeito psicológico, com a noção do próprio corpo gerando uma tomada de consciência da
realidade. Há uma compreensão simbólica, por parte da criança, em relação ao espaço
imaginário em que constitui sua unidade corporal. Assim “prova do espelho” demonstraria
a passagem do especular para o imaginário e do imaginário para o simbólico.

Já para Lacan não há uma tomada de consciência da criança e sim efeitos de um


fenômeno especular produzido na estruturação do sujeito, a conquista da identidade é
sustentada pela dimensão imaginária e no fato de a criança se identificar a partir de algo
que não é ela mesma (seu reflexo no espelho), mas sim algo virtual:

Na psicogenética walloniana a criança, ao mesmo tempo em que vai se


diferenciando do outro e construindo sua consciência corporal, vai
gradualmente construindo sua pessoa e tomando consciência de si. Já
Lacan concede outra explicação para esse processo, além da unificação da
imagem e da representação corporal. Em Lacan, o que vai ser projetado e
introjetado pela criança é a imagem que refletirá o olhar do outro, o
desejo e as expectativas dos pais em torno dessa criança. Portanto, o que
ela verá é uma imagem especular falsa e não sua própria imagem, como
afirma Wallon. 285

Neste fenômeno especular reside o imaginário para Lacan, que é a relação do


sujeito consigo mesmo como um outro. A observação da criança diante do espelho

285
BASTOS, Alice Beatriz B. Izique. A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em
Lacan. Petrópolis: Vozes, p. 131-132.
167

redistribui as relações entre o interior e exterior: o sujeito é anterior a este mundo das
formas, ele se constitui em primeiro lugar por elas e nelas.

O imaginário para Lacan, portanto, é o registro, ou ordem de existência,


caracterizado pelo antropomorfismo, pela projeção e pela identificação. Corresponde ao
domínio das imagens desde que consideradas segundo um tipo de reatividade,
desconhecimento ou fascinação que são próprias.

O Eu é o lugar do registro do imaginário, isto é, das emoções e das imagens – é a


fonte da alienação do sujeito. A verdade do sujeito não está no eu ou na consciência, e sim
no sujeito do inconsciente.

Dessa forma, para investigar a trajetória do desejo do Sujeito se faz necessário


procurar as diversas expressões do inconsciente na articulação do discurso e na lógica do
significante, assim, esse inconsciente revela-se por meio de diferentes formas nas
elaborações do discurso do Sujeito na experiência analítica, como, por exemplo, por meio
da narrativa dos sonhos, dos relatos dos sintomas, como também através dos chistes e atos
falhos.

No sonho, no ato falho, no chiste – o que é que chama a atenção primeiro? É o


modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura.
Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado
por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma coisa
quer se realizar – algo como aparece como intencional, certamente, mas de uma
estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do
termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim, de começo, que a
exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente. 286

Freud começou a elaboração do conceito de inconsciente inicialmente baseado nos


estudos dos sintomas das histéricas e mais adiante através da interpretação dos sonhos,
assim como o fez Lacan, envolvendo os processos de metáfora e metonímia na cadeia
significante do discurso.

Para Freud, os sintomas têm um sentido, que pode ser decifrado como as demais
formações do inconsciente Já para Lacan, utilizando-se da linguística estrutural, conclui
que se o sintoma é uma mensagem que pode ser decifrada é porque mantém a latência
significante que sustenta seu sentido e sua significação.

286
LACAN, Jacques. O seminário, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
2008, p. 32, livro 11.
168

Lacan define o sintoma como: o significante de um significado recalcado da


consciência do sujeito, um sem-sentido, uma opacidade no discurso do sujeito, por
representar alguma irrupção da verdade. Desta forma, diferentemente do cogito cartesiano,
penso, logo existo, o ser está fora do saber, fora da consciência: sou onde não penso:

Na fórmula do cogito cartesiano, a certeza da existência liga-se à capacidade do


pensamento, para pensar é preciso existir e pensar é duvidar da verdade das
coisas, menos do pensamento. Na leitura de Lacan, a separação operada entre o
ser e o pensar é a possibilidade de ruptura e a condição epistemológica do
surgimento do conceito de inconsciente freudiano. Ele virá inverter o cogito
cartesiano “Penso, logo existo”, em: “Penso onde não sou, sou onde não penso”.
A ruptura entre o saber e a verdade já estava colocada no cogito cartesiano,
sendo que na Psicanálise a verdade é recalcada pelo recalque originário que
retorna ao inconsciente. Verdade e saber são distintos, pois o saber não garante a
verdade, ele é evanescente e pontual. O saber da Psicanálise não é um saber total,
absoluto, é singular, incompleto e produzido pelo próprio sujeito. 287

O sintoma revela não a verdade da doença, mas a verdade do sujeito do


inconsciente, pois busca apreender no sintoma o desejo inconsciente indestrutível, do qual
fala Freud em “A interpretação de sonhos”. Para Lacan, o registro da verdade deve ser
tomado ao pé da letra, isto é, a determinação simbólica, a sobredeterminação, deve ser
considerada, antes de mais nada, um fato de sintaxe, cujos efeitos se exercem do texto para
o sentido.

Avança na dimensão real do sintoma introduzindo a teoria dos discursos 288, como
tentativa de formalização do laço social, do ponto de vista da psicanálise. O discurso seria
uma organização coletiva de gestão do gozo para nele instaurar um limite, para canalizá-lo.

Lacan considera Marx como inventor da noção de sintoma antes de Freud 289, uma
vez que a crítica de Marx ao ardil da razão é, pois, a marca de um retorno da verdade -
Marx critica os clássicos que pensam a história como realização da razão, defendendo sim
a crítica à ideologia.

Em outra leitura de Marx, considerado os protestos gerais de 1968, Lacan dá ênfase


não apenas à crítica da ideologia como também à dimensão de uma economia do gozo.

A relação com o gozo se acentua subitamente por essa função ainda virtual que
se chama função do desejo. É também por esta razão que articulo mais-de-gozar
o que aqui aparece, e não articulo como um forçamento ou uma transgressão. [...]

287
BASTOS, Alice Beatriz B. Izique. A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em
Lacan. Petrópolis: Vozes, p. 113-114.
288
Lacan propõe uma relação entre a ciência e quatro discursos: do Mestre, da Histérica, do Analista e do
Universitário, em estudo desenvolvido no O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise.
289
Vide nota 218.
169

Teremos ocasião de retomar o que estou introduzindo, não se trata de


transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do
gozo – um bônus. 290

A relação do gozo se relaciona com a função do desejo (a) que se articula com o
conceito de mais valia:

Pois bem, mesmo isto, talvez seja isto que se tenha que pagar. Foi por esta razão
que lhes disse o ano passado que, em Marx, o a que ali está é reconhecido como
funcionando em um nível que se articula – a partir do discurso analítico, não de
outro – como mais-de-gozar. Eis o que Marx descobre como o que
verdadeiramente se passa no nível da mais-valia. Não foi Marx, obviamente,
quem inventou a mais-valia. Só que antes dele ninguém sabia o seu lugar. Era o
mesmo lugar ambíguo que o que acabo de dizer, do trabalho a mais, do mais-
trabalho. O que quero é que isso paga, pergunta ele – senão justa, ente o gozo, o
qual é preciso que vá para algum lugar. O que há de perturbador é que, se
pagamos, o temos, e depois, a partir do momento em que temos, é urgente gastá-
lo. Se não se o gasta, isso traz todo o tipo de consequências. 291

A mais valia realizada é a renúncia ao gozo frente ao mercado. Ocorre uma seleção
de opções para o indivíduo dentro de uma estrutura produzida pelo modo de produção
capitalista, pelo mercado, que se dá face ao Outro dentro de um discurso articulado (a
organização do capitalismo visa uma produção constante de objetos que são o objeto do
desejo do sujeito do mundo moderno):

Assim como o trabalho não era novo na produção da mercadoria, a renúncia ao


gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é
nova. Desde o começo, com efeito, e ao contrário do que diz ou parece dizer
Hegel, é ela que constitui o senhor, o qual pretende fazer dela o princípio de seu
poder. O que há de novo é existir um discurso que articula esta renúncia, e que
faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa a
essência do discurso analítico. Essa função aparece em decorrência do discurso.
Ela demonstra, na renúncia ao gozo, um efeito próprio do discurso. Para marcar
bem as coisas, de fato, é preciso supor que no campo do Outro existe o mercado,
que totaliza os méritos, os valores, que garante a organização das escolhas, das
preferências, e que implica uma estrutura ordinal, ou até cardinal. O discurso
detém os meios de gozar, na medida em que implica o sujeito. Não haveria
nenhuma razão de sujeito, no sentido em que falamos em razão de Estado, se não
houvesse, no mercado do Outro, o correlato de que se estabelece um mais-de-
gozar que é captado por alguns.292

O Sintoma seria o discurso da histeria que traz esse o sujeito (S) para a posição de
protagonista, instigado pelo objeto do desejo (a). O que significa que o sintoma neurótico
aparece como um protesto, uma recusa diante do que as forças sociais exigem como
renúncia ao gozo.

290
LACAN, Jacques. O seminário: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 17,
livro 17.
291
Idem, ibidem, p. 17.
292
LACAN, Jacques. O seminário: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 17-
18, livro 16.
170

Portanto, a categoria de sujeito proposta por Lacan se baseia em uma teoria sobre a
estrutura da subjetividade humana, o falta-a-ser. Quando nasce uma criança, ocorre a
inscrição do simbólico no seu corpo (campo do Outro como lugar dos significantes),
produzindo o surgimento de um sujeito e de sua dependência (alienação) à ordem do
significante, inaugurando o desejo do homem como desejo do desejo do Outro:

Na medida em que a necessidade se separa do desejo, que a própria demanda vai


confrontar a criança com a perda, que o desejo está inscrito na falta, o sujeito
passa a constituir-se como objeto potencial do desejo do Outro pela identificação
ao objeto fálico. Nesse sentido, ao recusar a falta nele como no Outro, passa a
apresentar-se como o objeto dessa falta. 293

Apoiado na linguística, mas também a subvertendo, Lacan parte da constatação de


que um significante representa o sujeito para outro significante, para compreender a lógica
do inconsciente, rompendo desta forma com o modelo clássico de uma mensagem (signos)
entre dois ou mais sujeitos; o sujeito encontra-se aqui situado (perdido) entre dois
significantes, e é só neles que esse sujeito pode se apoiar: “o inconsciente é estruturado
como linguagem” e “o inconsciente é o discurso do Outro”.

Desta forma, para a psicanálise só há inconsciente porque há um lugar, o lugar do


Outro, como um campo onde se articulam os significantes que preexistem à constituição de
cada sujeito.

São efeitos do inconsciente estruturado como linguagem o que se diz sem querer
dizer, a produção de um saber que não se sabe:

Esse corte da cadeia significante é único para verificar a estrutura do sujeito


como descontinuidade no real. Se a linguística nos promove o significante, ao
ver nele o determinante do significado, a análise revela a verdade dessa relação,
ao fazer dos furos do sentido os determinantes de seu discurso. 294

O sujeito constituído pelo inconsciente como ordem do não sabido apresenta como
singularidade a impossibilidade de ter acesso ao significante que lhe deu origem - há um
corte no discurso, que serve de barra entre o significante e o significado. Este hiato entre o
significante primordial, que é do sujeito, e os outros significantes, que irão representá-lo
para outros significantes produz os lapsos e os atos falhos no discurso.

293
BASTOS, Alice Beatriz B. Izique. A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em
Lacan. Petrópolis: Vozes, p. 98.
294
LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo. In______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,
1998, p. 815.
171

Não há, no indivíduo, a figura de um ego centrado, pois o sujeito humano é


descentrado, se reconhece em um centro baseado em formações ideológicas:

Freud nos revela, por sua vez, que o sujeito real, o indivíduo em sua essência
singular, não tem a figura de um ego, centrado no “eu” (“moi”), na “consciência”
ou na “existência” – quer esta seja a existência do para si, do corpo-próprio, ou
do “comportamento”. Que o sujeito humano é descentrado, constituído por uma
estrutura que também tem um “centro” apenas no desconhecimento imaginário
do “eu”, ou seja, nas formações ideológicas em que ele se “reconhece”. 295

3.2.4. A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos (Psicanálise)

Para Althusser, o estudo da estrutura psicológica do indivíduo pode mostrar o


porquê de reações diversas de diversos indivíduos frente a uma mesma situação, mas
poderia levar também para os caminhos trilhados, em que se deve considerar a relação que
existe entre os seus pensamentos e a história real e o sujeito seria o homem concreto e a
história real. Ele nos dá um exemplo em relação a um esboço de análise da personalidade
do próprio Marx:

[...] Um estudo da estrutura da personalidade psicológica de Marx, das suas


origens e história, certamente nos esclareceria sobre esse estilo de intervenção,
de concepção e de investigação tão impressionante nos próprios textos de
juventude. Discerniríamos aí, se não uma origem radical de sua obra, no sentido
em que a entende Sartre (o “projeto fundamental” de um autor), pelo menos as
origens de uma exigência muito profunda e muito longínqua de apreensão da
realidade, que daria um primeiro sentido a essa continuidade efetiva do
desenvolvimento de Marx, àquilo que Lapine tenta, em parte, pensar sob o termo
de “tendência”. Sem esse estudo, correríamos o risco de não discernir o que,
justamente, distinguiu Marx do destino da maioria de seus contemporâneos,
oriundos do mesmo meio social, confrontados com os mesmos temas ideológicos
e os mesmos problemas históricos que ele: os jovens hegelianos. Mehering e
August Cornu deram-nos a matéria desse trabalho, que mereceria ser acabado,
para nos permitir compreender como um filho da burguesia renana pôde tornar-
se o teórico e o dirigente do movimento operário da Europa dos caminhos das
ferrovias. Mas, ao mesmo tempo que à psicologia de Marx, esse estudo nos
conduziria à história real e à sua apreensão direta pelo próprio Marx. Deter-me-
ei aqui um instante para levantar o problema do sentido da evolução de Marx e
do seu “motor”.296

Na verdade, os indivíduos concretos são sínteses de múltiplas determinações que


promovem a diferenciação dos indivíduos e de grupos de indivíduos. O indivíduo da
sociedade escravista difere radicalmente de uma sociedade feudal, mas no interior da

295
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 71.
296
ALTHUSSER, Louis. “Sobre o jovem Marx” (questões de teoria). In______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, p. 54-55.
172

sociedade feudal, os indivíduos diferem entre si, dependendo da classe social a qual
pertencem, a região em que habita etc.

A passagem do estado biológico para o cultural é um processo pela qual passa o ser
humano, que é constituído como sujeito humano pela ação da cultura, que se reflete em
uma ideologia, em uma ordem do simbólico:

Au lieu d’avoir affaire à ce vecteur “biologie – culture”, nous avons affaire à


une structure três différente, où la culture produit ce movement de procession:
nous avons affaire à une inversion de la determination. C’est par l’action de la
culture sur le petit être humain biologique que se produit son insertion dans la
culture. Ce n’est donc pas au devenir humain du petit être humain que nous
avons affaire, c’est à l’action de la culture, constamment, sur um petit être autre
qu’elle-même, qu’elle tranforme en être humanin. C’est-à-dire que nous avons
affaire em réalité à um phénomène d’investissement donc le vecteur est
apparemment orienté vers l aculture, alors qu’en fait c’est la culture qui se
précède ele-même constamment, aborbant qui va devenir um sujet humain. La
deuxième conséquence de la réflexion de Lacan, c’est que ce qui va au-devant du
devenir humain du petit être humain, ce n’est pas la psychologie, ce n’est pas le
sujet psychologique, mais ce qu’il apele “l’ordre du symbolique”, ou que
j’appelerai, se vous voulez, la loi de la culture.297

Um dos efeitos da “aventura humana”, desde o nascimento do “serzinho biológico


saído do parto humano”, recebe o nome de inconsciente. É passando por esta jornada que o
“serzinho biológico” sobrevivente se constitui como sujeito, objeto de ocupação da
Psicanálise:

A psicanálise se ocupa, apenas nos seus sobreviventes, com uma outra luta, a
única guerra sem memórias nem memoriais que a humanidade finge nunca haver
travado, aquela que ela pensa ter sempre ganho de antemão, pura e simplesmente
porque ela só existe pelo fato de lhe haver sobrevivido, de viver e de gerar-se
como cultura humana: guerra que se trava, a cada instante, em cada um de seus
rebentos que devem percorrer, cada um por si, projetados, expulsos, rejeitados,
na solidão e contra a morte, a longa marcha forçada que, de larvas mamíferas,
298
faz crianças humanas, sujeitos.

O campo do inconsciente ainda deve ser bem explorado – há a necessidade da


compreensão desta estrutura do “desconhecimento”. Segundo Althusser, Freud nos revela
297
ALTHUSSER, Louis. Seconde conférence, Psychanalyse e Psychologie. In ______. Psychanalyse et
sciences humaines. Paris: Le Livre de Poche, 1996, p. 91-92. Em vez de lidar com o vetor "biologia -
cultura", estamos lidando com uma estrutura muito diferente, na qual a cultura produz esse movimento de
desfile: estamos lidando com uma inversão da determinação. É através da ação da cultura sobre o pequeno
ser biológico humano que a sua inserção na cultura é produzida. Não é com o tornar-se humano do pequeno
ser humano que estamos lidando, e sim com a ação da cultura, constante, sobre um pequeno ser diferente de
si mesmo, que ela transforma em ser humano. Isso quer dizer que estamos lidando de fato com um fenômeno
de investidura cujo vetor é aparentemente orientado em direção à cultura, quando na verdade é a cultura que
constantemente o precede a si mesma, absorvendo o que irá tornar-se um ser humano. A segunda
consequência da reflexão de Lacan é que o que está na chave do pequeno ser humano tornar-se humano, não
é a psicologia, não é o sujeito psicológico, mas aquilo que ele chama de "ordem do simbólico", ou que eu
chamaria, se me permitir, a lei da cultura (tradução livre).
298
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 61-62.
173

que o sujeito real, o indivíduo em sua essência singular não tem a figura de um ego,
centrado na existência do para-si, sendo o sujeito humano descentralizado, constituído por
uma estrutura que também tem um centro apenas no desconhecimento imaginário do “eu”,
ou seja, nas formações ideológicas em que ele se reconhece.

A ideologia é um arcabouço estrutural da sociedade, ela se revela como


inconsciente, não como um processo de escolha do sujeito:

Para Althusser, a ideologia não é um processo de consciência dos sujeitos. Não é


uma visão de mundo consolidada a partir de escolhas subjetivas. Pelo contrário,
manifestações sociais concretas e estruturais, como a reprodução econômica
capitalista, a divisão de classes que lhe acompanha e o local específico dos
indivíduos em tal relação, a questão sexual, valores de submissão à ordem, tudo
isso se constrói como materialidade e como estrutura geral inconsciente. Não
depende da consciência do indivíduo sua visão de mundo. O indivíduo se perfaz
já mergulhado em tais arcabouços. O sujeito se constitui como tal a partir de um
quadro ideológico geral, que nele é inconsciente, tal qual a instâncias do
inconsciente propugnadas por Freud – como o superego -, que não se devem a
mera individualidade. 299

O Freud que Althusser busca é aquele revisitado por Lacan, sem as imaturidades de
sua juventude. Tal qual o corte epistemológico efetuado em Marx por Althusser, em que há
o Marx da juventude e o Marx maduro, Lacan trata a psicanálise sem o que seria
considerado o infantilismo teórico desta, separando a juventude de Freud, a ainda não
ciência, de sua maturidade:

Que uma teoria jovem, portanto madura, possa recair na infância, ou seja, nos
preconceitos de seus antepassados e de sua descendência: toda a história da
psicanálise o prova. É aí que reside o sentido profundo do retorno a Freud,
proclamado por Lacan. Temos de retornar a Freud para retornar a maturidade da
teoria freudiana, não à sua infância, mas à sua idade madura, que é sua
verdadeira juventude – nós temos de retornar a Freud para além do infantilismo
teórico, da recaída na infância, na qual boa parte da Psicanálise contemporânea,
sobretudo americana, saboreia as vantagens de suas concessões. 300

O conceito de ideologia para Althusser, portanto, se deriva dos conceitos de


inconsciente (Freud) e dos ensinamentos de Lacan, em especial o estádio do espelho, e
descreve as estruturas e sistemas que possibilitam identificar o “Assujeitamento” do
indivíduo.

O indivíduo tanto é determinado do ponto de vista da carga ideológica que define


sua estrutura psicológica, como pela ideologia que reproduz o modo de produção

299
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 562.
300
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 56.
174

(hegemonia) e as relações de exploração capitalista, que é promovida pelos Aparelhos


Ideológicos de Estado – AIE.

O sujeito no Marx de O capital perde sua centralidade para as relações de


produção, estas sim determinantes das estruturas econômicas, que dotam o sujeito da
“liberdade” para contratar.

A liberdade e igualdade do “sujeito” somente existem em função do mercado, desta


forma, a propriedade dá significado ao homem, pois este existe para o direito somente
como proprietário:

A propriedade então dá significado ao homem, e o homem não pode se definir,


não pode existir para o direito, a não ser como proprietário. Sua existência
jurídica passa necessariamente pela definição de seus “poderes”, de sua
“capacidade”, que são os poderes, a capacidade de um proprietário: aqueles de
vender e de comprar, portanto também de se vender. Não há mais uma “alma” do
sujeito, nos diz Edelman, ou melhor, a alma do sujeito é a propriedade, a
liberdade do sujeito é a de um comerciante cuja única escolha é a de se vender
pela melhor oferta.301

No entanto, estas ideias de liberdade e igualdade são interiorizadas pelo


inconsciente - a dimensão ideológica aparece, assim, encarnada nesse trabalhador que
vende sua força de trabalho: o sujeito-mercadoria. A mercadoria força de trabalho faz essa
costura; o trabalhador se encontra estruturalmente identificado à condição de mercadoria,
lugar este que promove o apagamento do sujeito.

O sujeito referido por Althusser tem uma forte influência da psicanálise lacaniana,
principalmente em relação à tese do O estádio do espelho como formador da função do eu.
O estádio de espelho indicaria, para Lacan, o momento do advento histórico em cujo curso
se organizaria a estrutura do sujeito. É neste processo inconsciente que se constitui a
especificidade da relação do sujeito com o mundo:

O estádio do espelho pode ser sintetizado em três momentos distintos. A imagem


corporal é uma conquista gradativa que se inicia com uma confusão entre si e o
outro. É no outro que a criança vivencia e se orienta até formar a imagem de seu
próprio corpo. Esse primeiro momento marca o assujeitamento ao registro
imaginário e é caracterizado pela apreensão da imagem como se fosse um outro
real. Já no segundo momento a discriminação da imagem é estabelecida, o que
possibilita perceber e diferenciar o outro real de sua imagem no espelho. Essa é
uma etapa fundamental no processo identificatório. No terceiro momento, além

301
THÉVENIN, Nicol–Edith. Ideologia Jurídica e Ideologia Burguesa (Ideologia e Práticas Artísticas). In
SAMPEDRO, Francisco; NAVES, Marcio Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas:
Unicamp/IFCH, 2010, p. 58.
175

de diferenciar a imagem, passa a reconhecer que é a sua imagem, ou seja, de seu


próprio corpo.302

O sujeito é o sujeito da ação como também, ao mesmo tempo, o sujeito sujeitado a


outro Sujeito que vem a ser uma ideologia, as crenças políticas, culturais, religiosas,
esportivas etc., que todos os sujeitos individuais possuem.

A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos, significa que, para Althusser não
há indivíduo, noção ideológica constituída pela modernidade capitalista, mas sim sujeitos:
o indivíduo é sempre um sujeito desde o seu nascimento quando lhe é conferido um
significado (um nome), e não é dotado de uma consciência autônoma já que é sempre
sujeitado a algo (um Sujeito) que o interpela cotidianamente, sem que perceba a existência
desse mecanismo de sujeição que, em última instância, reproduz as relações de poder.

Afirmamos: a categoria de sujeito é constitutiva de toda a ideologia, mas ao


mesmo tempo e imediatamente acrescentamos que a categoria de sujeitos
apenas é constitutiva de toda ideologia enquanto esta tem por função (que a
define) ‘constituir’ indivíduos concretos em sujeitos. É este o jogo de dupla
constituição que se realiza e esgota o funcionamento de qualquer ideologia, não
sendo esta nada mais além do seu funcionamento, nas formas materiais de
existência deste próprio funcionamento.303

O mecanismo de reconhecimento/desconhecimento na constituição dos sujeitos


pelas interpelações: o sujeito se reconhece num discurso, mas desconhece esses
mecanismos interpelatórios dos quais reproduz (ou transforma) as relações de poder da
sociedade.

Para Althusser a noção de sujeito é uma manifestação da ideologia. Introduz o


conceito de assujeitamento, que é coroado pelo mecanismo da interpelação:

Ele aprofunda em seguida a estrutura de toda a ideologia, introduzindo o


conceito de assujeitamento, que aparece como coroamento da operação da
interpelação. O assujeitamento, ligado à ambiguidade do termo sujeito (este com
efeito significava tanto livre, responsável, quanto passivo e submisso), exprime
bem esta “ficção” de liberdade e de vontade do sujeito: o indivíduo é
determinado, mas, para agir, ele deve ter a ilusão de ser livre mesmo quando se
submete.304

Ocorre a substituição a subordinação do homem ao discurso religioso por uma


substituição a uma ideologia que cria a ilusão de liberdade, senhor de suas escolhas. Desta

302
BASTOS, Alice Beatriz B. Izique. A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em
Lacan. Petrópolis: Vozes, p. 103-104.
303
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. In______. Posições. Lisboa: Livros
Horizonte, 1975, p. 115.
304
HAROCHE, Claudine. Fazer Dizer, Querer Dizer. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 178.
176

forma, procura-se fundamentar as decisões “livres” individuais por meio de critérios


“matemáticos”, racionais, de uma ciência psicológica:

O objetivo que consiste, então, em explicar, mesmo em determinar, a decisão


individual pela matemática, fundamenta a própria ideia de uma “ciência
psicológica”. Descobrimo-lo, assim, com uma clareza particular nos
pressupostos que, desde seus inícios, a psicologia subentende: de um lado, a
ideia de que só o comportamento visível, exterior, concreto, “logo” real, é
mensurável, matematizável, de outro, a ideia de que a subjetividade, o
comportamento “interior” do indivíduo, se bem que fundamentalmente livre, está
submetido, em última análise (sendo racional ainda que inefável) às regras da
matemática. A psicologia desenvolver-se-á então e torno desta contradição
liberdade/assujeitamento que os autores, apoiando-se uns e outros sobre uma
teoria do sujeito livre, aplicar-se-ão em resolver de forma diferente: - seja
reduzindo a subjetividade a um núcleo racional submetido às regras da lógica e
da matemática; - seja esvaziando pura e simplesmente a questão da subjetividade
para privilegiar a noção de comportamento.305

Assim, não há subjetivação possível sem assujeitamento, sendo o ser sujeito


produzido pela interpelação “assujeitante” da lei, não sendo um ponto de partida. Não há
em Marx uma construção semelhante, no entanto, a interpelação é profundamente
marxista, conforme observa Franck Fischbach:

La scène de l’interperllation est une construction propre à Althusser, ele n’a


aucun antécédent chez Marx lui-même. Et pourtant, cette figure de
l’interpellation me paraît profundément marxienne. D’abord, fondamentalement,
em ce qu’elle suppose que le sujet ne soit ni um fondement ni um point de départ,
mais um résultat, le produit d’um processos de constitution, et don um point
d’arrivée. Ensuit, em ce que ce processos de constitution du sujet est un
processus que part de quelque chose de “concret” (l’individu) pour arriver à
qualque chose de “concret” (le sujet), mais em passant par et au moyen d’une
catégorie abstraite (la catégorie de sujet): le sujet est ainsi le résultat lui-même
concret d’un processos passant par um moment d’abstration. 306

Toda a ideologia interpelando os indivíduos como sujeitos em nome de um Sujeito


Único e Absoluto é especular, isto é atua como um espelho: tem um centro e o “Senhor
absoluto” ocupa o lugar do centro, interpelando a sua volta a infinidade dos indivíduos
como sujeitos em uma dupla constituição que se realiza:

A estrutura duplamente espetacular da ideologia garante simultaneamente:


1) a interpelação dos “indivíduos” como sujeitos;

305
HAROCHE, Claudine. Fazer Dizer, Querer Dizer. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 183-184.
306
FISCHBACH, Franck. Les Sujets marchent tout seuls…”, Althusser e l’interpellation. In______.;
BOURDIN, Jean-Claude (coord). Althusser: une lecture de Marx. Paris: Presses Universitaires de France,
2008, p. 116. A cena da interpelação é uma construção própria de Althusser, não tem antecedentes no próprio
Marx. No entanto, esta figura da interpelação me parece profundamente marxiana. Em primeiro lugar,
fundamentalmente, no que ela supõe que o sujeito não é nem fundamento, nem ponto de partida, mas um
resultado, o produto de um processo de constituição, e um ponto de chegada. Por conseguinte, o processo de
constituição do sujeito é um processo que parte de algo "concreto" (o indivíduo) para chegar em algo
“concreto” (o sujeito), mas por meio de de uma categoria abstrata (a categoria do sujeito): o sujeito é, assim,
o próprio resultado concreto de um processo que passa por um momento de abstração (tradução livre).
177

2) seu submetimento ao Sujeito;


3) o reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, e entre os próprios
sujeitos, e, enfim, o reconhecimento do sujeito por si mesmo; e
4) a garantia absoluta de que tudo está bem assim e de que, com a condição de
os sujeitos reconhecerem o que são e se comportarem como convém, tudo
decorrerá da melhor forma: “Assim seja!”307

Portanto, o sujeito é descentrado, já os sujeitos são constituídos por vários e


diferentes sujeitos. Cada sujeito está submetido a diversas (quando não, adversas)
ideologias relativamente independentes. Cada sujeito vive, então, simultaneamente, em e
sob várias ideologias cujos efeitos de submetimentos se “combinam” em seus próprios
atos, inscritos em práticas, regulamentados por rituais.

As interpelações discursivas constituem em cada “indivíduo” uma pluralidade de


sujeitos, e se reconhecem em distintos Sujeitos.

Segundo Althusser, é a natureza imaginária da relação entre os homens e as suas


condições reais de vida que fundamenta toda a deformação imaginária que se pode
observar em toda ideologia.

A partir dessa leitura de Althusser, Michel Pêcheux, filosofo francês iniciador da


Escola Francesa de Análise de Discurso, pensa as relações entre discurso e ideologias.
Partindo do materialismo histórico, no que diz respeito à superestrutura ideológica em sua
ligação com o modo de produção e realizando um novo deslocamento, Pêcheux propõe o
conceito de “condições ideológicas de reprodução/transformação das relações de
produção”, mostrando que o discurso é efeito de sentidos entre os interlocutores:

Na realidade, a reprodução, bem como a transformação, das relações de


produção é um processo objetivo cujo mistério é preciso desvendar, e não um
simples estado de fato que bastaria ser constatado. Já fizemos, várias vezes,
alusão à tese central adiantada por L. Althusser: A ideologia interpela os
indivíduos em sujeitos. Chega agora o momento de examinar como essa tese
“desvenda” o mistério em questão, e, especificamente, examinar como a maneira
pela qual ela desvenda esse mistério se abre diretamente para a problemática de
uma teoria materialista dos processos discursivos, articulada com a problemática
das condições de reprodução/transformação das relações de produção. 308

307
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. In ______. Sobre a Reprodução.
Petrópolis: Vozes, 2008, p. 291.
308
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: UNICAMP,
2010, p. 134-135.
178

O indivíduo não estaria livre para escolher deliberadamente, numa determinada


situação, o que falar, pois o seu dizer estará sendo afetado por este “todo complexo com
dominante” das formações discursivas, denominado de interdiscurso.

Esse interdiscurso são sentidos que foram se construindo historicamente a partir da


constelação das relações de poder, que podem ser assumidos ou não pelo sujeito, a
depender das posições discursivas que este poderá ou não ocupar em função do
funcionamento da ideologia.

A partir da ideológica ocorre o assujeitamento ideológico que conduz cada pessoa


a acreditar, a partir de “sua livre vontade”, que pode se colocar, sob a forma discursiva, no
lugar de uma ou outra classe social, antagonistas no modo de produção.

Como coloca Pêcheux, essa interpelação do sujeito em sujeito ideológico, ou


sujeito do discurso, se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que
o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito). Essa identificação, fundadora de
unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que elementos do interdiscurso são
reinscritos no discurso do próprio sujeito:

Compreende-se, pois, que o idealismo não é, de início, uma posição


epistemológica, mas, sobretudo, o funcionamento espontâneo da forma-sujeito,
por meio do qual se dá como essência do real daquilo que constitui seu efeito
representado por um sujeito. Somos, assim, levados a examinar as propriedades
discursivas da forma-sujeito, do “Ego-imaginário”, como “sujeito do discurso”.
Já observamos que o sujeito se constitui pelo “esquecimento” daquilo que o
determina. Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de
seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva
que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação,
fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os
elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto
“pré-construído” e “processo de sustentação”) que constituem, no discurso do
sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio
sujeito.309

A formação discursiva, que na articulação com o sujeito o constitui, é uma


formação específica, que se relaciona com a posição possível para o sujeito ocupar, e que
por sua vez, relaciona-se com a forma-sujeito, que é a forma de existência histórica de
qualquer indivíduo, agente das práticas sociais.

Para a consolidação deste sujeito ocupante de seu papel na circulação de


mercadorias, foi necessária a consolidação das categorias da liberdade e igualdade. O
309
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: UNICAMP,
2010, p. 150.
179

indivíduo passa a ser obrigado a ser livre e igual para que possa desempenhar o seu papel,
sendo inicialmente, na chamada acumulação primitiva, instituídas leis rígidas para que os
camponeses se inserissem no mercado de trabalho, mas, após este período inicial, este
sujeito constituído pelo Capital tem sua subordinação garantida pelo direito, assim como
suas possibilidades de revolta pré-fixadas por este direito:

A subordinação ao capital está agora “interiorizada” na forma pela qual o direito


organiza a subjetividade humana, fazendo o homem viver na aquiescência e no
conformismo com a sua própria subalternidade, mas também o fazendo
experimentar a sua revolta para com ela, em ambos os casos como expressões do
direito.310

Desta forma, a liberdade e a igualdade não são mais esferas exteriores ao homem,
algo que deva ser introjetado nele, e sim a própria condição natural de sua vida. Assim, a
ideologia jurídica apropria-se do discurso da apropriação privada:

A liberdade do homem realiza-se pela apropriação “privada” de qualquer objeto.


É este postulado “inatacável” que funciona simultaneamente na prática jurídica
e, na sua expressão abstrata, nas filosofias idealistas do direito. Toda a
extraordinária tentativa hegeliana dos Princípios de filosofia do direito se resolve
neste dado muito simples: a propriedade é uma determinação do sujeito.311

A forma sujeito de direito, para Bernard Edelman, filósofo e jurista francês, oculta
o funcionamento da ideologia jurídica que tem por finalidade escamotear as relações de
produção:

O que está oculto é o próprio funcionamento da ideologia jurídica. Com isso


pretendo dizer que este funcionamento bastando-se a si próprio, esta suficiência é
ocultação do próprio funcionamento da sua suficiência. [...]. Basta ao direito
dizer que o Homem tem um poder, que este Poder protege seu Interesse, e que a
sua vontade livre é uma vontade que quer o seu Interesse para “por em
andamento” a ideologia jurídica. A tautologia é o processo último que permite
agir sobre o real sem o denunciar, tanto na “consciência comum (...) como entre
os políticos e os juristas que, encarregados pela divisão do trabalho, do culto
deste conceito, veem nele e não nas relações de produção, o verdadeiro
fundamento de todas as relações de propriedade reais”. 312

As relações de produção são tornadas eficazes por meio do direito com a utilização
do constrangimento e pela categoria sujeito de direito, que revela as relações imaginárias
dos indivíduos com estas relações de produção:

A relação do que é dito e do que está oculto é a própria prática que a designa.
Foi o que já antecipei. O direito ocupa este lugar donde pode sancionar pelo

310
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras expressões e Dobra
Universitária, 2014, p. 48.
311
EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia (elementos para uma teoria marxista do direito).
Coimbra: Centelha, 1976, p. 25, nota 1 do capítulo 2.
312
Idem, ibidem, p. 35-36, nota 1 do capítulo 2.
180

constrangimento a sua própria ideologia; isto é, tornar também diretamente


eficazes as relações de produção. Que estas relações de produção sejam tornadas
juridicamente eficazes pela categoria primeira do sujeito de direito, revela bem a
ligação imaginária dos indivíduos nas relações de produção; e a prática jurídica
remete para a ideologia a sua própria prática; a do Código Civil, a do Código
Penal, a dos Tribunais. 313

Edelman adotou posições marxistas para a compreensão do direito nas décadas de


60 e 70, do século XX, apoiando seus estudos na teoria althusseriana da ideologia, com
uma crítica contundente à figura do sujeito de direito:

Althusser, ao rechaçar os aspectos humanistas da obra de Marx, elabora sua


filosofia de modo a compreender a história enquanto instância movida pela luta
de classes e, não pelo homem, em sua individualidade. Disso resulta a crítica à
figura do sujeito, na qual Edelman parece apoiar seus estudos.314

O indivíduo é constituído em sujeito de direito independentemente de sua vontade e


é como sujeito que o indivíduo tem a legitimidade do poder fora de si, um poder concreto,
que é dado ao direito e pelo direito, que seria “o poder (a propriedade) no Poder (o
Estado)”, assegurando a ideologia jurídica:

Os “indivíduos” são interpelados como sujeitos pelo direito. Esta interpelação é


constitutiva do seu próprio ser jurídico, no sentido de que é esta interpretação “tu
és um sujeito de direito”, que lhes dá o poder concreto, que lhes permite uma
prática concreta. [...] A sujeição do sujeito de direito ao Sujeito permite-lhe
simultaneamente legitimar o seu poder fora de si, e operar o regresso ao poder.
Esta dupla “estrutura especular da ideologia”, isto é, esta estrutura de espelho
duplo, assegura o funcionamento da ideologia jurídica de um lado, o sujeito de
direito existe em nome do direito, isto é, o Direito dá-lhe o seu poder; ainda
melhor: ele dá ao direito o poder de lhe dar um poder; por outro lado, o poder
que ele deu ao direito regressa a ele: o poder do direito não é senão o poder dos
sujeitos de direito: o Sujeito reconhece-se a si próprio nos sujeitos. O poder (a
propriedade) no Poder (o Estado). O Estado ocupa, ideologicamente, este lugar,
atribuído na Idade Média à Igreja. A Constituição de um Estado sujeito de direito
assegura o funcionamento da ideologia jurídica. 315

Portanto, a forma sujeito de direito na ciência jurídica burguesa é tanto o ponto de


partida como o ponto de chegada, a teleologia do sujeito é a teleologia da propriedade
privada ou a sua realização:

A apropriação da natureza pelo homem é uma apropriação do sujeito de direito:


assim, em Hegel, a humanização da natureza passa necessariamente pelas
determinações da propriedade; assim a totalidade da Forma Sujeito pode
confessar as suas determinações: elas nunca serão mais que a realização da
propriedade privada. O ponto de partida da ciência burguesa do direito é o
homem constituído em sujeito de direito. O ponto de chegada da ciência

313
EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia (elementos para uma teoria marxista do direito).
Coimbra: Centelha, 1976, p. 36, nota 1 do capítulo 2.
314
TISESCU, Alessandra Devulsky. Edelman, althusserianismo, direito e política. São Paulo: Alfa-Omega,
2011, p. 123.
315
EDELMAN, Bernard. Op. cit., p. 34-35, nota 1 do capítulo 2.
181

burguesa do direito é o homem. O movimento desta ciência burguesa é imóvel:


parte-se do sujeito para reencontrar sujeito. Do mesmo modo o método
exegético: parte-se da lei para regressar a lei. A teleologia do sujeito é a
teleologia da propriedade privada, que produz a teleologia do método.316

Desta forma, sendo o indivíduo “assujeitado” pelas condições postas por


determinado modo de produção, é possível a este sujeito fazer história, ser um sujeito da
história?

Para Althusser, os homens concretos são necessariamente sujeitos na história, pois


atuam na história como sujeitos, entendendo que não há sujeito da história. Os indivíduos
humanos atuam em e sob determinadas formas de existência histórica das relações sociais
de produção e reprodução como agentes constituídos em sujeitos:

A “forma-sujeito”, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer


indivíduo, agente das práticas sociais: pois as relações sociais de produção e de
reprodução compreendem necessariamente, como parte integrante, aquilo que
Lênin chama de relações sociais jurídico – ideológicas, as quais, para funcionar,
impõem a todo indivíduo-agente a forma de sujeito. Os indivíduos-agentes,
portanto, agem sempre na forma de sujeitos, enquanto sujeitos. Mas o fato de que
sejam necessariamente sujeitos não faz dos agentes das práticas sociais-históricas
o nem os sujeito(s) da história (no sentido filosófico do termo: sujeito de). Os
agentes-sujeitos só são ativos na história sob a determinação das relações de
produção e de reprodução, e em suas formas. 317

“O homem que faz a história” - esta afirmativa para Althusser somente tem sentido
para a ideologia burguesa. Quando a burguesia lutava contra o feudalismo que a dominava,
a alusão ao indivíduo, ao “homem” abstrato, fazia sentido, uma vez que se contrapunha à
seguinte afirmação: é Deus que faz a história.

A burguesia fora do poder (século VVII) é crítica e revolucionária e como tal


apresenta uma explicação “geral” para a história, uma explicação de massa afirmando que
a história é movida pela razão e obedece a leis, isto é, aos desígnios da verdade, da razão e
da liberdade, para tanto cria a categoria do sujeito da história:

Foi com finalidades ideológicas precisas que a filosofia burguesa apoderou-se da


noção jurídico-ideológica de sujeito, para fazer dela uma categoria filosófica, sua
categoria filosófica nº 1, e para por a questão do Sujeito do conhecimento (o ego
cogito, o sujeito transcendental kantiano ou husserliano, etc.), da moral, etc. e do
Sujeito da história. Essa questão ilusória, certamente, implica determinados
objetivos; mas, em sua posição e em sua forma, ela não tem nenhum sentido para

316
EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia (elementos para uma teoria marxista do direito).
Coimbra: Centelha, 1976, p.150, nota 1 do capítulo 2.
317
ALTHUSSER, Louis. Resposta a John Lewis. In ______. Posições - 1. Rio de Janeiro: Graal, 1968, p. 67.
182

o materialismo dialético, que pura e simplesmente a rejeita, como rejeita (por


exemplo) a questão da existência de Deus. 318

No entanto, na história como na natureza, o homem conhece apenas o que é, não o


que ele faz, e o que é muda somente sob o efeito da dialética material da luta de classes.

Apenas conhecer o que é nada altera o fundo das coisas, pode-se conhecer na
condição de transformação, mas esta transformação está inserida na luta de classes, não em
algum sujeito.

Pode-se dizer que a história da produção do conhecimento, assim como a história, é


também um processo sem sujeito e que os conhecimentos científicos surgem como o
resultado de um processo histórico, de um processo dialético sem sujeito nem fim.

A filosófica do ponto de vista marxista é a luta de classes na teoria, resultando


efeitos na prática política, prática científica e em todas as práticas sociais. A tese marxista
de processo sem sujeito rompe com a categoria idealista do sujeito como centro absoluto,
como origem radical, como causa única.

O idealismo que aponta a essência do homem como origem, causa e fim da história
é encontrado na antropologia comunitária de Feuerbach, antropologia esta que foi
respeitada por Marx nos Manuscritos de 1844.

Propondo a categoria de “processo sem Sujeito nem fim(s)”, Althusser traça uma
linha de demarcação entre as posições materialistas-dialéticas e as posições burguesas e
pequeno-burguesas. Não existe para Althusser, portanto, um sujeito da história, sendo a
luta de classes o motor das transformações históricas:

Portanto, é preciso ler os autores de perto. A história é certamente um “processo


sem sujeito nem Fim(s)”, cujas circunstâncias dadas, nas quais “os homens”
agem como sujeitos sob a determinação de relações sociais, são o produto da
luta de classes. Portanto, a história não tem, no sentido filosófico do termo, um
Sujeito, mas um motor: a luta de classes.319

Para a desmitificação do sujeito fim, fruto da mistificação da dialética hegeliana,


Althusser utilizou-se das teses de Spinoza, que identificou como imaginária toda a ilusão
ideológica, como a religião e a interiorização do Telos no processo sem sujeito de Hegel:

318
ALTHUSSER, Louis. Resposta a John Lewis. In ______. Posições - 1. Rio de Janeiro: Graal, 1968, p. 68.
319
Idem, ibidem, p. 70-71.
183

Mas essa teoria do imaginário ia ainda mais além. Criticando radicalmente no


Sujeito a categoria central da ilusão imaginária, ela atingia o coração da Filosofia
burguesa, que se construía desde o século XIV sobre a base da ideologia jurídica
do Sujeito. O anticartesianismo resoluto de Spinoza desempenha-se
conscientemente nesse ponto, e a famosa tradição “crítica” aí não se enganou.
Ainda sobre esse ponto, Spinoza antecipava Hegel, mas ia mais além. Pois
Hegel, que criticou todas as teses de subjetividade, não reservou seu lugar ao
Sujeito, não somente ao “tornar-Sujeito da Substância” (pelo que ele reprovava”
em Spinoza o “erro” de permanecer na substância), mas na interiorização do
Telos do processo sem Sujeito, que realiza, pela virtude da negação da negação
da negação, os esboços e o destino da ideia. Daí, Spinoza nos descobria, entre o
Sujeito e o Fim, a aliança secreta que “mistifica” a dialética hegeliana. 320

Portanto, para Althusser os indivíduos são constituídos desde sempre pela ideologia
em sujeitos, sujeitos de direito, de forma que a reprodução do modo de produção capitalista
seja garantida, sendo a história um processo sem Sujeito e nem fim.

320
ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In ______. Posições – 1. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978, p. 106.
184

CAPÍTULO 4. NOVAMENTE PACHUKANIS: FORMAS SOCIAIS,


SUBJETIVIDADE E PSICANÁLISE

Retornamos a Pachukanis, pelo fato de ser este o primeiro autor a tratar da forma
sujeito de direito sob uma ótica marxista bastante original, após as análises da sociedade e
das possibilidades de emancipação humana sob a ótica humanista de Marcuse e sob a ótica
anti-humanista de Althusser, com intuito de verificarmos o grau de afirmação ou o nível de
completude destas análises em relação à figura do sujeito de direito identificada na
sociedade capitalista por este autor.

Evgeny Bronislavovich Pachukanis nasceu em 1891, em Staritsa, atualmente


Kalinine, filho de camponeses lituanos, foi vice-presidente da Academia Comunista e
diretor do Instituto da Construção Soviética e do Direito. Vice-Comissário do Povo para a
justiça da URSS, em 1936, perseguido pelo regime sob o comando de Stalin desapareceu
em 1937.

Sua obra principal foi Teoria Geral do Direito e Marxismo, publicada em 1924, na
qual propõe a caracterização de um ensaio metodológico pelo qual enfoca o Estado e o
direito sob o ângulo da dialética e do materialismo histórico. Demonstra, nesta obra, que a
economia capitalista conduz o Estado e o direito a assumirem uma forma própria, estando
associados à forma mercantil:

A principal obra de Pachukanis é intitulada Teoria Geral do Direito, publicada em 1924.


Nesse livro, o jurista soviético apresenta uma explicação que se confronta com as
tradicionais ideias marxistas que descreviam o Estado e a normatividade dele decorrente,
como instrumentos de uma classe voltados para permitir a dominação e exploração de
outra. Pachukanis se opunha assim a duas ideias correntes, que seriam mantidas pelo
stalinismo: a concepção do Estado como um aparelho de dominação de classe e a ideia do
Estado como algo livremente manipulável pelo interesse ou vontade da classe dominante.
Pachukanis pretendia, diferentemente, mostrar que os elementos da economia capitalista
conduzem o Estado e o Direito a assumirem uma forma própria e distinta historicamente e
que ambos estão associados à forma mercantil. 321

Segundo professor Márcio Bilharinho Naves, voltar a Pachukanis significa superar,


no interior do marxismo, as representações vulgares que apresentam o direito como um
instrumento de classe, dando-se prioridade ao conteúdo.

O que se deve observar na análise jurídica é a exigência metodológica de Marx, que


dá destaque a certa relação social, no caso a capitalista, que adquire uma determinada
321
CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões e
Dobra Universitária, 2015, p. 109.
185

forma jurídica e não outra. Deste modo, a crítica direciona-se às formas de dominação de
classe que se realizam pelo direito:

Essa crítica do direito permite apreender a natureza real do fenômeno jurídico na


circulação mercantil, evitando-se reduzir o direito, de qualquer modo, a um
conjunto de normas e, ao mesmo tempo, permitindo compreender o momento
normativo do direito como uma expressão desse mesmo processo de trocas de
mercadorias. Por outro lado, voltar a Pachukanis significa também explorar as
possibilidades uma crítica às formas de dominação de classe que se realizam por
meio do direito, particularmente a crítica a certa representação jurídica do
Estado.322

As abstrações que o capitalismo produz e opera são abstrações reais, não estão na
cabeça das pessoas, mas na materialidade do tecido social, nas relações entre os sujeitos,
atuando em determinada época como produtoras do espaço e do tempo. No entanto, por
serem históricas não são perenes, podem ser mudadas.

Pachukanis, analisando as forças produtivas para explicar o funcionamento da


sociedade capitalista e suas relações de produção, manteve-se fiel ao Marx maduro, o Marx
da crítica da economia política, que opera de forma científica em sua obra máxima: O
Capital.

Marx, em O capital, demonstra, em várias passagens, que a especificidade das


categorias econômicas depende da forma social de que se revestem. Partindo do princípio
metodológico criado por Marx, que parte de dois movimentos: “do abstrato ao concreto, do
simples ao complexo”, Pachukanis vislumbra o direito como forma que se constitui a partir
das relações sociais capitalistas:

O critério que orienta a démarche de Pachukanis é a possibilidade de a teoria ser


capaz de analisar a forma jurídica como forma histórica, permitindo
compreender o direito como fenômeno real. Pachukanis introduz, por essa via,
no campo da análise do direito, o princípio metodológico desenvolvido por Karl
Marx na Introdução à crítica da economia política, que se exprime em dois
“movimentos”: o que vai do abstrato ao concreto, e o que vai do simples ao
complexo.323

Pachukanis desenvolve seus estudos no sentido de relacionar a forma mercadoria


com a forma jurídica, sendo o direito determinado pelo processo de trocas mercantis, em
que predomina as relações entre os proprietários de mercadorias, gerando a noção de
equivalência:

322
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito, um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2000, p. 20.
323
Idem, ibidem, p. 40-41.
186

A forma jurídica nasce somente em uma sociedade na qual impera o princípio da


divisão do trabalho, ou seja, em uma sociedade na qual os trabalhos privados só
se tornam trabalho social mediante a intervenção de um equivalente geral. Em tal
sociedade mercantil, o circuito das trocas exige a mediação jurídica, pois o valor
de troca das mercadorias só se realiza se uma operação jurídica – o acordo de
vontades equivalentes – for introduzida. Ao estabelecer um vínculo entre a forma
do direito e a forma mercadoria, Pachukanis mostra que o direito é uma forma
que reproduz a equivalência, essa “primeira ideia puramente jurídica” a que ele
se refere.324

A concepção teórica de Pachukanis gira em torno da noção de sujeito de direito,


sendo este sujeito o elemento mais simples de onde deve se iniciar a análise jurídica
marxista, tal qual na análise de O Capital o ponto de partida é a mercadoria.

Para que se verifiquem as condições de existência da liberdade e igualdade há


necessidade de os indivíduos revestirem a forma sujeito, em uma esfera geral de trocas
mercantis, como proprietários de mercadorias. Desta forma, a categoria sujeito de direito é
constituída pelo ato de vontade que possibilita as trocas mercantis de forma a propiciar o
modo de produção capitalista.

Os atributos da personalidade do indivíduo, portanto, estão adstritos a sua qualidade


de proprietário no mercado, sob a forma de uma subjetividade jurídica e não por nenhuma
qualidade intrínseca à “natureza humana” ou a qualquer outra especificidade inerente ao
“bem estar social”.

4.1. Subjetividade em Pachukanis

As teorias idealistas firmam o conceito de sujeito a partir de ideias gerais,


puramente especulativas, como liberdade, igualdade, determinação da vontade, etc. A
dogmática jurídica parte da relação jurídica como uma forma acabada, dada a priori, não
coloca a questão de como o homem se transformou de indivíduo zoológico em sujeito de
direito:

As teorias idealistas do direito desenvolvem o conceito de sujeito a partir desta


ou daquela ideia geral, isto é, de uma maneira puramente especulativa: “o
conceito fundamental do direito é a liberdade. (...) O conceito abstrato de
liberdade é a possibilidade de se determinar a qualquer coisa. (...) O Homem é o

324
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito, um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2000, p. 57.
187

sujeito de direito porque possui a possibilidade de determinar-se, porque possui


uma vontade”. [...]325

A oposição entre a coisa e o sujeito oferece a chave para compreender a forma


jurídica, enquanto que a dogmática jurídica utiliza-se apenas deste conceito em seu aspecto
formal, coloca a relação jurídica como uma forma acabada, dada a priori:

Para ela, o sujeito não é nada mais que “um meio de qualificação jurídica dos
fenômenos, do ponto de vista de sua capacidade ou incapacidade em particular
das relações jurídicas”. A dogmática jurídica, por conseguinte, não coloca de
forma alguma a questão de porque o homem se transformou de indivíduo
zoológico em sujeito de direito. Ela parte da relação jurídica como uma forma
acabada, dada a priori.326

A análise da forma sujeito, em Marx, decorre da análise da forma mercadoria, uma


vez que a sociedade capitalista é uma sociedade de proprietários de mercadorias. Os bens
econômicos contém trabalho, sendo outra propriedade inerente a estes bens, o fato de eles
poderem ser trocados por seus proprietários:

A sociedade capitalista é, antes de tudo, uma sociedade de proprietários de


mercadorias. Isto significa que as relações sociais dos homens no processo de
produção possuem uma forma coisificada nos produtos do trabalho que se
apresentam, uns em relação aos outros como valores. A mercadoria é um objeto
no qual a diversidade concreta das propriedades úteis torna-se, simplesmente, o
invólucro coisificado da propriedade abstrata do valor, que se exprime como
capacidade de ser trocada em uma proporção determinada em relação a outras
mercadorias. Esta propriedade se exprime como uma qualidade inerente às
próprias coisas, em virtude de um tipo de lei natural que age independente dos
homens, de maneira totalmente indiferente às suas vontades. 327

Segundo Marx, o modo de produção capitalista estabelece uma dominação oculta


por meio do discurso da liberdade de contratação e igualdade. Esta base econômica
(infraestrutura) é o alicerce de toda a atividade social de produção, ou seja, forças
produtivas mais relações de produção, influenciando a superestrutura, sendo eles: o Estado,
o direito, a moral, a religião, a filosofia, a arte, linguagem e todas as ideologias.

Direito e moral são, deste modo, ideologias, construções que encerram um juízo de
valor que reproduzem e são reproduzidos pela infraestrutura econômica e que se
intercomunicam pelos seus aspectos de: conceito de direito, conceito de moral e conceito
de homem (sob a forma de sujeito de direito).

325
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 82-83.
326
Idem, ibidem, p. 83.
327
Idem, ibidem, p. 84.
188

Conforme Pachukanis, o homem, como sujeito de direito, ou seja, na condição de


proprietário, nada mais é do que a condição prévia da troca com base na liberdade do valor,
sendo que o sujeito egoísta, o sujeito jurídico e o sujeito moral são as três máscaras
fundamentais utilizadas pelo homem da sociedade de produção mercantil.

O agente da troca de ser egoísta deve ater-se ao puro cálculo econômico, ao


contrário, a relação de valor não pode manifestar-se como uma relação social
necessária. O agente da troca deve ser portador de direitos, isto é, deve ser a
possibilidade de tomar uma decisão autônoma, pois sua vontade deve, com
efeito, “habitar as coisas”. Finalmente, o agente da troca encarna o princípio da
igualdade fundamental das pessoas humanas, pois as trocas de todas as
variedades de trabalho são assimiladas umas às outras e reduzidas ao trabalho
humano abstrato. Assim, os três momentos acima mencionados, ou como antes
se gostaria de dizer, os três princípios do egoísmo, da liberdade e do valor
supremo da pessoa, são indissoluvelmente ligados uns aos outros e representam,
em sua totalidade, a expressão racional de uma só e mesma relação social. O
sujeito egoísta, o sujeito de direito e a pessoa moral são as três principais
máscaras sob as quais surge o homem na sociedade de produção mercantil. 328

A forma do sujeito de direito, portanto, está ligada à análise da forma mercadoria,


sendo Pachukanis o primeiro marxista que levou às últimas consequências este raciocínio
em seu livro Teoria Geral do Direito e o Marxismo: a análise da forma sujeito, em Marx,
decorre imediatamente da análise da forma mercadoria.

A tarefa que Pachukanis se propôs a realizar foi desvendar a verdadeira natureza da


forma jurídica que, segundo ele, reflete o modo de produção da sociedade burguesa. A
categoria sujeito de direito é elaborada com intuito de se estabelecer a igualdade jurídica,
de forma que a desigualdade entre o produtor direto (proletário) e o produtor indireto
(proprietário dos meios de produção) deva ser transformada juridicamente em igualdade
entre vendedor e comprador:

Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito encontra-se situado no


mercado como um agente econômico, isto é, como comprador e vendedor de
mercadorias. É a repetição destes atos de compra e venda que constitui a
circulação capitalista de mercadorias. Pasukanis parte deste ato simples de
compra e venda e da circulação para ao longo dos capítulos de A Teoria Geral do
Direito e o Marxismo demonstrar quão importante é o direito para assegurar a
reprodução perpétua destes mecanismos fundamentais do capitalismo. O Direito
e o Estado são, aos olhos de Pasukanis, constituídos com o intuito de dar uma
normatização a estas relações econômicas e de arbitrar os conflitos entre os
diversos sujeitos econômicos que, no instante em que passam a ser motivo das
preocupações do Direito, transformam-se em sujeito de Direito.329

328
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 128-129.
329
BESSA, Paulo. Apresentação. In ______. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p.
XIV.
189

Nesse sentido, é ao redor do sujeito de direito que circulam todas as categorias


jurídicas desse sujeito que se encontra no mercado como agente econômico, como
vendedor e comprador de mercadorias.

O conceito de sujeito de direito para as teorias idealistas parte desta ou daquela


ideia geral, são ideias especulativas, como “o conceito fundamental do direito é a
liberdade”, “o homem é sujeito de direito porque possui uma vontade”, “todos são iguais
perante a lei”, etc.

Na verdade, a liberdade para o proletário está limitada na liberdade de vender sua


força de trabalho e a igualdade para ele é a igualdade formal como parte no contrato de
trabalho. A análise da forma mercantil revela o sentido histórico concreto da categoria
sujeito de direito, desvendando os fundamentos dos esquemas abstratos da ideologia
jurídica burguesa, sendo a base principal da propriedade privada.

O proletário vende sua força de trabalho em troca de salário, mediante um


“acordo de vontades”. O capitalista somente tem por interesse assegurar a
reprodução desta mesma força de trabalho, sem ter qualquer compromisso com o
proletário que vá além de garantir a relativa incolumidade de seu parceiro
contratual. A liberdade dos estandartes burgueses resume-se, para o proletário,
em poder vender a sua força de trabalho. A igualdade burguesa, para o proletário,
é a igualdade, como parte, no contrato de trabalho. 330

Foi com o desenvolvimento das relações burguesas que o direito assumiu um


caráter abstrato em que cada indivíduo torna-se um sujeito de direito abstrato e, ao mesmo
tempo, a norma assume a forma lógica acabada de lei geral abstrata:

O sujeito de direito é, em consequência, um proprietário abstrato e transposto


para as nuvens. Sua vontade, em sentido jurídico, possui seu fundamento real no
desejo de alienar na aquisição e de adquirir na alienação. Para que esse desejo se
realize é necessário que os desejos dos proprietários de mercadorias concordem
reciprocamente. Juridicamente esta relação exprime-se como contrato, ou como
acordo entre vontades independentes. É por isso que o contrato é um conceito
central no direito.331

Portanto, segundo Pachukanis, é preciso desconstruir a teoria geral do direito como


tradicionalmente é tratada para compreendermos o seu real alcance, pois apesar de essa
teoria trabalhar com abstrações, por detrás destas abstrações existem relações concretas
que lhe deram origem, é preciso trazer à tona essa realidade:

330
BESSA, Paulo. Apresentação. In ______. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p.
XVI.
331
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 94.
190

Não se pode objetar à teoria geral do direito, como a concebemos, que esta
disciplina trate unicamente de definições formais, convencionais e de
construções artificiais. Ninguém duvida de que a economia política estuda uma
realidade efetivamente concreta, ainda que Marx tenha chamado a atenção a que
fatos como o Valor, o Capital, o Lucro, a Renda, etc. não podem ser descobertos
“com a ajuda de microscópios e de análise química”. A teoria do direito opera
com abstrações que não são menos “artificiais”: a “relação jurídica” ou o “sujeito
de direito” não podem ser igualmente descobertos pelos métodos de investigação
das ciências naturais, embora por detrás dessas abstrações escondam-se forças
332
sociais extremamente reais.

Deve-se criticar a ciência do direito burguês, do ponto de vista socialista, tal qual
Marx criticou a ciência da economia política burguesa, ou seja, não se deve descartar as
generalizações e abstrações que foram elaboradas pelos juristas burgueses:

A crítica da ciência do direito burguês, do ponto de vista do socialismo, deve


mirar-se no exemplo de crítica da economia política burguesa, tal qual Marx nos
legou. Desta forma, tal crítica deve se colocar, antes de tudo, no terreno do
inimigo, isto é, ela não deve descartar as generalizações e abstrações que foram
elaboradas pelos juristas burgueses, partindo das necessidades de seu tempo e de
sua classe, mas analisar estas categorias abstratas e por em evidência o seu
verdadeiro significado, em outros termos, descobrir os condicionamentos
históricos da forma jurídica. 333

É nas relações de direito privado que se encontra a encarnação mais acabada do


sujeito de direito, na personalidade concreta do sujeito econômico egoísta, do proprietário,
titular de interesses privados:

Com efeito, o núcleo mais sólido de universo jurídico (se assim posso exprimir-
me) situa-se, precisamente, no domínio das relações de direito privado. É lá,
precisamente, que o sujeito de direto, “a pessoa”, encontra uma encarnação
totalmente adequada na personalidade concreta do sujeito econômico egoísta, do
proprietário, do titular de interesses privados. É precisamente no direito privado
que o pensamento jurídico move-se com mais segurança e liberdade, e que suas
construções assumem formas mais acabadas e mais harmoniosas. 334

Portando, para Pachukanis, somente no modo de produção capitalista os indivíduos


adquirem o estatuto universal de sujeitos, forma esta condição de existência da liberdade e
igualdade para que estes indivíduos atuem na esfera da circulação de mercadorias.

4.2. Marcuse e Pachukanis

Marcuse, diferentemente de Pachukanis, que tem como guia para suas análises O
Capital, baseia sua análise da sociedade no Marx da juventude, em especial nos

332
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 23-24.
333
Idem, ibidem, p. 29.
334
Idem, ibidem, p. 49.
191

Manuscritos Econômicos e Filosóficos, no qual a liberdade está ligada à desalienação e a


realização da plenitude da natureza humana dar-se-ia pela consciência do indivíduo, de sua
alienação em relação ao que produz.

Marcuse procura nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx elementos


que possibilitem a discussão das categorias fundamentais da teoria marxista, a saber:
trabalho, objetivação, alienação, superação, propriedade.

É uma ótica humanista, impregnada pela antropologia de Feuerbach, centrada no


homem como agente da emancipação. Este homem alienado é dominado por uma razão
instrumental, que seria uma forma de dominação.

O comunismo seria a transformação radical das bases materiais da sociedade,


conjuntamente com a emancipação dos sentidos e transformação radical da consciência e
do inconsciente. Para que o homem saia do reino da necessidade e atinja o reino da
liberdade, deve superar o estado de alienação em que se encontra, no qual não se reconhece
em sua obra, no seu trabalho.

No entanto, na luta para a superação do estado de natureza, o homem desenvolveu


uma tecnologia que mais serve para aprisioná-lo que para libertá-lo. Considerando-se a
distinção entre “técnica”, entendida como conjunto de instrumentos que podem servir tanto
ao controle quanto à libertação, e “tecnologia”, definida como um modo de produção
específico que utiliza a técnica como instrumento de controle, tanto a sociedade capitalista,
como a “soviética”, utilizaram-se da tecnologia como instrumento de dominação.

Considerou que as relações sociais vigentes organizadas pela tecnologia perpetuam


grupos sociais dominantes, que dela se utilizam para controlar as massas de indivíduos,
que sem pensamento crítico não questionam a utilização da desta tecnologia. Destaca
também os meios de comunicação de massa (mídia), que, por seus poderes de doutrinação,
são utilizados por esta classe dominante como instrumentos importantíssimos para a
dominação.

Em um ponto, o pensamento de Marcuse em relação ao modo de produção


capitalista coincide com o ponto de vista de Pachukanis: quando ele diz que a identificação
dos indivíduos com as mercadorias não é ilusória, é uma realidade e aponta que o próprio
processo de produção carrega sua ideologia, de forma que o indivíduo inconscientemente
192

identifica-se com o social, submetendo-se integralmente ao status quo – o que ele consome
indica o seu “modo de vida”, seu comportamento.

Há uma identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade e, por meio dela,
com a sociedade como um todo, de modo que se tem a impressão que a “falsa consciência”
de sua racionalidade se torna a verdadeira consciência:

Essa absorção da ideologia pela realidade não significa, contudo, o “fim da


ideologia”. Pelo contrário, em sentido específico, a cultura industrial avançada é
mais ideológica do que sua predecessora, visto que, atualmente, a ideologia está
no próprio processo de produção. Esta proposição revela, de forma provocadora,
os aspectos políticos da racionalidade tecnológica prevalecente. O aparato
produtivo e as mercadorias e serviços que ele produz “vendem” ou impõem o
sistema social como um todo. Os meios de transporte e comunicação em massa,
as mercadorias casa, alimento e roupa, a produção irresistível da indústria de
diversões e informação trazem consigo atitudes e hábitos prescritos, certas
reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos
agradavelmente aos produtores e, através destes, ao todo. Os produtos doutrinam
e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E,
ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos
e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade;
torna-se um estilo de vida.335

A racionalidade tecnológica tem criado uma sociedade repressora em que


predomina uma dominação, imposta por um modo de produção, sobre a vontade livre dos
indivíduos. O processo tecnológico reduziu a variedade das qualidades individuais a uma
individualização ligada à propriedade privada, passando-se a compreender este tipo de
comportamento como sendo próprio da “natureza” do homem.

No entanto, esta mesma base tecnológica que serve para modelar os homens como
competidores entre si, pode servir como guia para que a produção e distribuição dos
recursos sejam disponíveis para todos - seria a racionalidade tecnológica despida de suas
particularidades exploradoras.

Desta forma, para Marcuse, a autodeterminação na produção e distribuição seria


real no momento em que as massas tenham sido dissolvidas em indivíduos libertos de toda
propaganda, doutrinação e manipulação e que estes indivíduos tornassem capazes de
compreender os fatos e de avaliar as alternativas.

A sociedade seria de fato racional e livre desde que fosse organizada, mantida e
reproduzida por um sujeito histórico essencialmente novo. No entanto, para Pachukanis, há

335
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 31-32.
193

necessidade de mudar o modo de produção primeiro para que o indivíduo deixe de se


“assujeitar” à estrutura já posta, propaga o fim do direito, da forma jurídica que constitui os
sujeitos de direito, pois sua forma é determinante deste “assujeitamento”, o sujeito de
direito é uma condição necessária para que ocorram as trocas mercantis de forma que
ocorra a reprodução das condições de produção capitalista.

4.3. Althusser e Pachukanis

A análise da sociedade elaborada por Althusser é pautada nos escritos do Marx


maduro, em especial n’ O Capital, tal qual a análise elaborada por Pachukanis, utilizando-
se para suas análises o materialismo histórico e o materialismo científico.

Toda formação social depende de um modo de produção dominante e, como


consequência, o processo de produção utiliza as forças produtivas existentes em e sob-
relações de produções definidas. Como demonstrado no livro II de O capital, não existe
produção possível sem a garantia da reprodução das condições materiais da produção: a
reprodução das forças produtivas e a reprodução das relações de produção.

Para explicar o funcionamento de tais reproduções, Althusser utiliza-se de uma


metáfora em que a estrutura de toda a sociedade é representada como um edifício
composto por uma base econômica (infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois
"andares" da superestrutura: a jurídica-política (o direito e o Estado) e a ideológica (as
distintas ideologias, religiosa, moral, jurídica, política, etc...).

Os andares da superestrutura não são determinantes em última instância, mas são


determinados pela eficácia da base econômica, esta sim determinante em última instância:

Todos nós podemos facilmente nos convencer de que essa representação da


estrutura de toda a sociedade como um edifício que comporta uma base
(infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois “patamares” da superestrutura, é
uma metáfora, mais precisamente, uma metáfora espacial: uma tópica. Como
toda metáfora, esta sugere, faz ver alguma coisa. O que? Justamente o seguinte:
os andares superiores não poderiam “manter-se” (no ar) por si sós, se não
repousassem precisamente sobre sua base e seus alicerces. Nesse caso, a
metáfora do edifício tem por objeto representar, antes de tudo, a “determinação
em última instancia” pela base econômica. Essa metáfora espacial tem, portanto,
como efeito dotar a base de um índice de eficácia conhecido pela célebre
194

afirmação: em última instância do que se passa nos “patamares” da


superestrutura, pelo que se passa na base econômica.336

A reprodução das relações de produção é, em grande parte, assegurada pela


superestrutura jurídico-política e ideológica. Na verdade, ela é, em grande parte,
assegurada pelo exercício do poder do Estado nos Aparelhos de Estado, o Aparelho
(repressivo) do Estado, por um lado, e os Aparelhos Ideológicos do Estado por outro.

A classe dominante utiliza os aparelhos ideológicos e repressivos do Estado para


manter sua hegemonia, que unifica por sua ideologia os Aparelhos Ideológicos de Estado,
além de deter o poder do Estado e, consequentemente, dispor do Aparelho (repressivo) de
Estado, não há uma dominação direta de uma classe pela outra, o que diferencia a
sociedade capitalista de outros modos de produção. Tal posição explica perfeitamente a
indagação feita por Pachukanis sobre a forma apresentada pela dominação de classe:

Por detrás de todas estas controvérsias se esconde uma questão fundamental: por
que a dominação de classe não se apresenta tal qual ela é, a saber, a sujeição de
uma parte da população à outra? Por que assume a forma de uma dominação
estatal oficial, o que vem a ser o mesmo, por que o aparelho de coação estatal
não se constitui como aparelho privado das classes dominantes, por que ele se
destaca destas últimas e assume a forma de um aparelho de poder público
impessoal, distante da sociedade?337

O direito regula formalmente as relações de produção capitalista, define as relações


de propriedade, faz parte dos Aparelhos Ideológicos do Estado. Todos os indivíduos são
sujeitos de direito e tudo é mercadoria, isto é, não só os produtos socialmente necessários
que se vendem e compram, mas também o uso da força de trabalho.

Do exposto por Althusser podemos depreender que a existência do direito é


fundamentada nas relações sociais e não pelo seu conteúdo, tal qual afirmado por
Pachukanis:

Para afirmar a existência objetiva do direito não é suficiente conhecer o seu


conteúdo normativo, mas é necessário saber se este conteúdo normativo é
realizado na vida pelas relações sociais. A fonte habitual de erros, neste caso, é o
modo de pensar dogmático que confere, ao conceito de norma vigente, uma
significação específica que não coincidem com aquilo que o sociólogo ou o
historiador compreendem por existência objetiva do direito. Quando o jurista
dogmático deve decidir se uma forma jurídica determinada está em vigor ou não,
ele não busca estabelecer genericamente a existência ou não de um fenômeno
social objetivo determinado, mas, unicamente, a presença ou não de um vínculo

336
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 79-78.
337
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 115.
195

lógico entre a proposição normativa dada e as premissas normativas mais


gerais. 338

Para Pachukanis, há uma relação de determinação imediata entre forma jurídica e


forma da mercadoria, mas a rigor esta determinação é uma sobredeterminação, conceito de
origem freudiana usado por Althusser, uma vez que para ele a esfera da circulação, que
determina diretamente as formas do direito é, por sua vez, determinada pela esfera da
produção.

4.4. Psicanálise: Marcuse e Althusser

Pachukanis consegue desmistificar a criação do sujeito de direito como sendo uma


construção meramente da norma jurídica, ele prega que a existência de uma economia
mercantil e monetária é a condição fundamental da existência das normas e que o substrato
material do sujeito de direito é o sujeito econômico egoísta, que a lei não cria, mas
encontra diante de si este sujeito.

Pachukanis, apesar de ter feito um “retrato” do assujeitamento do indivíduo na


sociedade capitalista e dos mecanismos políticos e jurídicos (Estado e direito) que o
legitimam, que fazem com que a dominação ocorra com a aparência de normalidade, não
se aprofundou na psique dos indivíduos que se submetem à estrutura social capitalista, dos
motivos que levam à aceitação da dominação por parte dos dominados como sendo uma
decorrência natural da sociedade em que vivem.

Pachukanis antecipou alguns conceitos utilizados tanto por Marcuse como


Althusser, mas foram estes autores que inovaram ao trazerem a psicanálise em auxílio da
análise marxista da sociedade, tanto para estudo da sujeição do indivíduo ao status quo,
quanto para o estudo das possibilidades emancipatórias da humanidade.

338
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 57.
196

4.4.1. Marcuse

Marcuse, conjuntamente com os integrantes da chamada “Escola de Frankfurt”,


adeptos da teoria crítica, com uma ótica humanista partindo do “homem”, passa a utilizar a
psicanálise para tentar entender a submissão do proletariado, que seria o sujeito histórico
das transformações sociais, à ideologia nazista, o porquê de esta classe deixar-se seduzir
pelo nazismo.

Utiliza-se da tese de que o homem na sociedade capitalista é normalmente alienado,


salienta a ideia de uma sociedade doente, retomando a temática da alienação do trabalho
humano desenvolvida por Marx nas suas obras de juventude.

Por conta de uma sociedade repressora, voltada para a produção de mercadorias, o


homem acaba sendo refém de uma razão instrumental, em que substantivos como
liberdade, igualdade, democracia e paz acabam perdendo seu sentido real para fundamentar
as relações mercantis existentes na sociedade capitalista, prevalecendo o conceito de
eficácia e produtividade, do homem inserido em seu papel social já definido pela produção:
o princípio do prazer é absorvido pelo princípio da realidade.

O direito legitima a razão instrumental garantindo os valores da liberdade,


igualdade, democracia e paz. Pachukanis denunciava estas falácias, alertando que a crítica
deve ser feita de tal modo que se coloque em evidência o real significado das abstrações
elaboradas pelos juristas burgueses:

A crítica da ciência do direito burguês do ponto de vista do socialismo deve mirar-se no


exemplo de crítica da economia política burguesa, tal qual Marx nos legou. Desta forma, tal
crítica deve se colocar, antes de tudo, no terreno do inimigo, isto é, ela não deve descartar
as generalizações e abstrações que foram elaboradas pelos juristas burgueses, partindo das
necessidades do seu tempo e de sua classe, mas analisar estas categorias abstratas e por em
evidência o seu verdadeiro significado, em outros termos, descobrir os condicionantes
históricos da forma jurídica. 339

Marcuse, em Eros e a Civilização, destaca que, segundo Freud, a história do


homem é a história da sua repressão, constata que a civilização humana funciona por meio
da repressão das pulsões, de modo a garantir o primado do princípio de realidade sobre o
princípio de prazer. Conforme Freud de O Mal-estar na Civilização, felicidade e
civilização são inconciliáveis: o progresso da civilização exige o sacrifício da felicidade,
isto é, a vitória de Tânatos (princípio de morte) sobre Eros (princípio de vida).

339
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 29.
197

Para Marcuse, a sociedade ocidental moderna é dominada pela mais-repressão


imposta pelas forças e relações sociais de produção capitalistas, discordando de Freud por
este não ter vislumbrado uma sociedade menos repressiva.

Entende que, com a superação do estado de necessidade, um novo princípio da


realidade, com menos repressão, poderia ser estabelecido, de forma que “o homem” seria
libertado de seu estado de alienação.

4.4.2. Althusser

Althusser, apesar dos preconceitos ideológicos existentes na sua época, utilizou-se


da teoria criada por Freud, sob a releitura de Lacan, a psicanálise, para suas análises da
sociedade, demonstrando a importância de se utilizar desta nova ciência conjuntamente
com a nova ciência criada por Marx, o materialismo histórico.

Ensina, em Freud e Lacan, que as duas formações teóricas que descentraram o


sujeito e o político, a saber, a psicanálise e o materialismo histórico, se entrecruzam em um
domínio chamado de “estrutura do desconhecimento”, pensado, sobretudo, a partir da
relação entre duas estruturas a-históricas muito bem delimitadas: o inconsciente e a
ideologia:

Não foi em vão que Freud, por vezes, comparou a repercussão crítica de sua
descoberta com a subversão da revolução coperniciana. Desde Copérnico,
sabemos que a Terra não é o “centro” do Universo. Desde Marx, sabemos que o
sujeito humano, o ego econômico, político ou filosófico, não é o “centro” da
História – sabemos até mesmo, contra o que pensavam os filósofos iluministas e
contra Hegel, que a História não tem “centro”, mas possui uma estrutura que tem
um “centro” necessário apenas no desconhecimento ideológico. Freud nos
revela, por sua vez, que o sujeito real, o indivíduo em sua essência singular, não
tem a figura de um ego, centrado no “eu” (“moi”), na “consciência” ou na
“existência” – que esta seja a existência do para-se, do corpo-próprio, ou do
“comportamento” -, que o sujeito humano é descentrado, constituído por uma
estrutura que também tem um “centro” apenas no desconhecimento imaginário
do “eu”, ou seja, nas formações ideológicas em que ele se “reconhece”. Deste
modo, ter-se-á notado para nós, sem dúvida, uma das vias pelas quais
chegaremos, talvez, a uma melhor compreensão da estrutura do
desconhecimento, que interessa, em primeiro lugar, a qualquer pesquisa sobre
ideologia. 340

340
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan. In ______. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2000, p. 70-71.
198

Utiliza-se de conceitos freudianos e lacanianos importantes, em especial Lacan, que


demonstrou a passagem da existência meramente biológica à existência humana, operada
sob a Lei da Ordem, que Althusser denominou de Lei de Cultura, lei essa que se confundia,
em sua essência formal, com a ordem da linguagem: a ideologia representa a relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência.

Althusser afirma que o objeto da ideologia não é o mundo, mas a relação do sujeito
com o mundo, mais precisamente, com as condições reais de existência, fazendo parte
orgânica de uma totalidade social. Para tanto, seguem as análises de Lacan, que situa a
percepção de mundo dos sujeitos no inconsciente e não no consciente:

Convencionou-se dizer que a ideologia pertence à região “consciência”. Que não


haja engano sobre essa denominação, que permanece contaminado pela
problemática idealista anterior a Marx. Na verdade, a ideologia tem muito pouco
a ver com a “consciência”, supondo que esse termo tenha sentido unívoco. Ela é
profundamente inconsciente, mesmo quando se apresenta (como na “filosofia”
pré-marxista) sob uma forma refletida. A ideologia é efetivamente um sistema de
representações, mas essas representações não têm, no mais das vezes, nada a
ver com a “consciência”: elas são, no mais das vezes, imagens, eventualmente
conceitos, mas é antes de tudo como estruturas que elas se impõem à imensa
maioria dos homens, sem passar para a sua “consciência”. São objetos culturais
percebidos-aceitos-suportados, que atuam funcionalmente sobre os homens por
um processo que lhes escapa. Os homens “vivem” a sua ideologia como o
cartesiano “via” ou não via – se ele não a fixava – a Lua a duzentos passos: de
maneira nenhuma como uma forma de consciência, mas como um objeto do seu
“mundo” – como o seu próprio “mundo”.341

Pachukanis, de certa forma já tinha antecipado esta apreensão da realidade pelo


imaginário do sujeito quando aponta que a natureza ideológica de um conceito não
desobriga o estudo da realidade objetiva, da realidade existente no mundo exterior e não
apenas na consciência e cita o Estado como exemplo:

Mas o que é o Estado do ponto de vista de sua unidade econômica? Poderíamos


formular diversas questões similares, mas todas estas questões alcançariam o
mesmo ponto. O Estado não é apenas uma forma ideológica, mas também, e
simultaneamente, uma forma de ser social. A natureza ideológica de um conceito
não suprime a realidade e a materialidade das relações das quais ele é
expressão.342

Tal qual o Estado, o direito igualmente não existe apenas como formulação teórica
dos juristas, ele decorre de uma história real:

O direito igualmente, em suas determinações gerais, o direito enquanto forma,


não existe apenas no cérebro e nas teorias dos juristas especializados. Ele possui
uma história real, paralela, que não se desenvolve como um sistema de

341
ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015, p. 193.
342
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 44.
199

pensamento, mas como um sistema particular que os homens realizam não como
uma escolha consciente, mas sob a pressão das relações de produção. O homem
torna-se sujeito de direito com a mesma necessidade que transforma o produto
natural em uma mercadoria dotada das propriedades enigmáticas do valor.343

O sujeito de Althusser é influenciado principalmente pela obra lacaniana: O estádio


do espelho como formador da função do eu, sendo tanto o sujeito da ação como também,
ao mesmo tempo, o sujeito sujeitado a outro Sujeito (com s maiúsculo) que vem a ser uma
ideologia - as crenças políticas, culturais, religiosas, esportivas, etc. - que todos os sujeitos
individuais possuem.

Constatamos que a estrutura de toda ideologia, interpelando indivíduos como


sujeitos em nome de um Sujeito Único e Absoluto é especular, isto é, funciona
como um espelho e duplamente especular, e que essa reduplicação especular é
constitutiva da ideologia e garante seu funcionamento. Isso significa que toda
ideologia tem um centro, que o Sujeito Absoluto ocupa o lugar único do centro e
interpela à sua volta, a infinidade dos indivíduos como sujeitos, em uma dupla
relação especular tal que ela submete os sujeitos ao Sujeito, ao mesmo tempo que
lhes dá, pelo Sujeito no qual todo sujeito pode contemplar a sua própria imagem
(presente e futuro), a garantia de que se trata realmente deles e Dele e de que,
passando-se tudo em família (a Sagrada Família: a Família é, por essência,
sagrada), “Deus reconhecerá os seus”, isto é, os que tiverem reconhecido nele;
esses serão salvos e sentar-se-ão à Direita de Deus (o lugar do Morto nos nossos
países em que se dirige pela esquerda), incorporada no Corpo místico do
Cristo.344

Não há o indivíduo, noção ideológica constituída pela modernidade capitalista, mas


sim sujeitos: o indivíduo é sempre um sujeito desde o seu nascimento quando lhe é
conferido um significado (um nome), e não é dotado de uma consciência autônoma já que
é sempre sujeitado a algo (um Sujeito) que o interpela cotidianamente, sem que perceba a
existência desse mecanismo de sujeição que, em última instância, reproduz as relações de
poder.

Existe um mecanismo de reconhecimento/desconhecimento na constituição dos


sujeitos pelas interpelações: o sujeito se reconhece num discurso, mas desconhece esses
mecanismos interpelatórios dos quais reproduz (ou transforma) as relações de poder da
sociedade.

Há, portanto, uma dupla relação especular entre os sujeitos promovido pela
ideologia, que garante simultaneamente: 1) a interpelação dos indivíduos como sujeitos; 2)
o reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, e entre os próprios sujeitos, e o

343
PASUKANIS, E.B. Teoria geral do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 35.
344
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 218.
200

reconhecimento do sujeito por si mesmo; 3) a garantia absoluta de que tudo está bem
assim, e sob a condição de que tudo está bem assim (Deus é realmente Deus, Althusser é
realmente Althusser) e, se a submissão dos sujeitos ao Sujeito for realmente respeitada,
tudo decorrerá da melhor forma para eles: serão recompensados.

Desta forma, os homens só aparecem na teoria marxista sob a forma de suporte das
relações implicadas na estrutura, e as formas de sua individualidade como efeitos
determinados da estrutura.

4.4.3 – Marcuse vs Althusser

Tanto Marcuse quanto Althusser desenvolveram seus estudos tendo por base Marx
e Freud, no entanto, a forma da leitura destes autores e suas respectivas fontes foram
radicalmente diferentes.

A leitura elaborada por Marcuse destes autores e das fontes por estes utilizadas
(como Hegel e Feuerbach) foi no sentido de resgatar subsídios para se trabalhar com o
“homem concreto”, elaborar uma “filosofia concreta”, tendo como fonte principal para tal
empreitada o jovem Marx:

Marcuse, por sua vez, acreditava na força revolucionária da Filosofia e via na


mesma um manancial fértil e inesgotável de reflexão para dar conta do homem
no mundo, a partir do qual sempre acreditou poder elaborar uma Filosofia
Concreta como instrumento de luta e libertação.345

Althusser efetuou uma leitura que ele denominou de sintomal, ou seja, uma leitura
em que se caminha com os autores desde o começo de suas pesquisas, retomando suas
fontes, como o próprio Marx fez, tornando as lacunas dos enunciados destes autores
perceptíveis, procurando “o discurso do silêncio”, daquilo que não foi dito, mas está
contido no discurso. Nestas leituras de retorno não se pretende apenas uma leitura literal,
mas extrair o que há de verdadeiro e extirpar o que é ilusório:

Quando, anteriormente, afirmei que se impunha dar a essa existência prática da


filosofia marxista, que existe em pessoa, em estado prático, na prática científica
da análise do modo de produção capitalista que é O Capital, e na prática
econômica e política da histórica do movimento operário, sua forma de
existência teórica indispensável às suas necessidades e às nossas necessidades,
nada propus além de um trabalho de investigação e de elucidação crítica

345
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse, uma trajetória. Londrina: UEL, 1999, p. 29.
201

indispensável às suas necessidades e às nossas necessidades, nada propus além


de um trabalho de investigação e de elucidação crítica, que analisasse uns pelos
outros, segundo a natureza de sua modalidade própria, os diferentes graus dessa
existência, isto é, essas diferentes obras que são a matéria-prima de nossas
reflexões. Nada sugeri além da leitura “sintomal” das obras de Marx e do
marxismo umas pelas outras, isto é, a produção sistemática progressiva dessa
reflexão da problemática sobre os seus objetos que os torna visíveis, e a
atualização, a produção da problemática mais profunda que permite ver o que só
tem ainda existência alusiva ou prática. 346

Marcuse, partindo inicialmente de Heidegger, elabora sua teoria sobre o sujeito


com os pés na fenomenologia (ser aí, ser no mundo, ser com os outros) até conhecer os
Manuscritos Econômicos e Filosóficos, escritos do jovem Marx que contém elementos
humanistas, como a essência do homem, trabalho e alienação.

O homem (genericamente considerado) é alijado do fruto do seu trabalho -


alienado, não reconhece sua essência em seu trabalho – a emancipação passa pela
desalienação, o que se dá a partir da consciência, o que possibilitaria o reino da liberdade,
em uma sociedade comunista:

Marcuse saiu pioneiramente em campo, centrando sua análise em torno do


conceito de trabalho como atividade libertadora fáustica: alienado no trabalho a
serviço de terceiros que o exploram e embrutecem, o Homem também se liberta
pelo trabalho, ao assenhorar-se do seu produto, pois nele estão o seu sangue e o
seu Espírito: alienação significa coisificação, e não mera desconscientização,
conforme pretendem muitos idealistas disfarçados de objetivos dialéticos,
inclusive, e principalmente, na América Latina dos últimos tempos.347

O trabalho alienado é uma alienação e desvalorização da vida humana, que leva a


uma “distorção” de fatos da existência humana, devendo o homem ser resgatado como ser
humano e não como mero “sujeito econômico”, o que implicaria em superar a propriedade
privada, pois nela o homem é tomado como objeto. Assim, ao libertar-se, o trabalhador
libertaria toda a humanidade:

E, ao libertar-se, o trabalhador liberta igualmente seu opressor, desvirtuado ao


desvirtuar o oprimido, desde que o trabalhador oprimido constitui o ente-espécie
por excelência, ao resumir em si as dores do Mundo e seu anseio de
autossuperação. Assim o trabalhador se apresenta como redentor da
Humanidade, enquanto encarnação do próprio trabalho demiúrgico.348

Althusser elabora sua concepção de sujeito a partir do Marx da maturidade, em


especial d’O Capital, trabalhando com conceitos como: modo de produção, forças

346
ALTHUSSER, Louis. De O Capital à Filosofia de Marx, in ______. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979, p. 32, v. 1.
347
CHACON, Vamireh. A fenomenologia do materialismo histórico. In______. Materialismo histórico e
existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968, p. 22.
348
Idem, ibidem, p. 22.
202

produtivas, relações de produção, formação social, infraestrutura, superestrutura,


ideologias, classes e lutas de classes etc.

O sujeito é contextualizado sob uma ótica anti-humanista, na qual a constituição


dos objetos não pertence a uma subjetividade, pois o que pertence à subjetividade é a
percepção. O conceito humanista de trabalho alienado é substituído pelo conceito científico
de trabalho assalariado: o trabalho é um criador de valor, ele não tem valor - o valor da
força de trabalho é dissimulado pela categoria valor do trabalho, sendo esta dissimulação
um caráter determinante das relações de produção capitalista, sendo o sujeito apenas o
suporte destas relações:

[...], Marx iniciou uma nova linguagem conceitual em sua obra a partir de 1845
que inexistia na sua fase filosófica. Nesse aspecto, os conceitos de modo de
produção e de lutas de classes tornaram-se centrais para a análise do capitalismo
e no estabelecimento de uma nova prática constituída a partir de uma estratégia
revolucionária. Em relação ao materialismo dialético, Althusser aponta que o seu
desenvolvimento é posterior ao da ciência da história, mas, mesmo assim, Marx
desenvolveu categorias filosóficas que esboçam o seu projeto filosófico. Isso fica
perceptível em relação ao materialismo, ou primado da matéria sobre o
pensamento, do objeto real sobre o seu conhecimento, efeito de conhecimento
dialético, distinção da ciência da filosofia. Como destaca Althusser na sua carta
ao Comitê Central do PCF em 1966, o conceito humanista de trabalho alienado
é substituído pelo conceito científico de trabalho assalariado.349

O conceito de humanismo não deve ser tomado como meta, nem como projeto,
mas como objeto de crítica e como sintoma da exploração burguesa que ocorre na
sociedade capitalista.

Marcuse critica o existencialismo, que se baseia no sentimento de absurdidade


predominante no mundo, assim como também o faz Althusser. Questiona o eventual
potencial libertador desta corrente, apesar de ele próprio ter sofrido fortes influências de
Heidegger, fonte do existencialismo:

A absurdidade histórica, que reside no fato de o mundo não ter sucumbido após a
derrota do fascismo, mas sim retornado a suas forças anteriores, de não ter
empreendido o salto para o reino da liberdade, mas sim restaurado com honras a
disposição anterior – essa absurdidade vive na concepção existencialista. Mas
vive nela como um fato metafísico, não como um fato histórico.350

Considera o existencialismo uma doutrina idealista, uma vez que hipostasia as


específicas condições históricas da existência humana, tornando-se, desta forma, uma parte

349
MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na Teoria Marxista. Rio de Janeiro:
FAPERJ e Gramma Livraria e Editora, 2014, p. 23.
350
MARCUSE, Herbert. O existencialismo. In______. Cultura e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, p. 53, v.
2, 1998.
203

da ideologia que ataca - critica em especial a obra de Sartre, que coloca a liberdade
essencial do homem existente em quaisquer situações, mesmo em uma masmorra nazista.

No entanto, mais adiante, em 1965, considera que as posições de Sartre foram


“salvas” uma vez que sofreram uma total conversão, apontando para uma “consciência”
que declara guerra à realidade, atendendo a uma “moral da libertação”:

Em seu famoso prefácio a Os condenados da terra (Les Damnés de la Terre), de


Fanon, em suas declarações contra as guerras colonialistas no Vietnã e em São
Domingos, Sartre cumpriu sua promessa de uma “moral da libertação”. Se, como
teme, tornou-se uma “instituição”, então seria uma instituição na qual a
consciência (Gewissen) e a verdade encontraram refúgio.351

Adota também a noção de projeto como fim a ser seguido pelo homem para sua
libertação, mas centrando este projeto em um ato radical a ser defendido por uma classe
universal - o ser concreto, cuja meta estaria assinalada por sua própria situação: o
proletário como o sujeito histórico que adquire a consciência de si e com essa consciência
e por meio da razão conquista sua emancipação.

Althusser dirige sua crítica à Sartre em Resposta a John Lewis, como sendo o
filósofo da “liberdade-humana” que trabalhou a transcendência com o homem-que-se-
projeta-para-o-futuro, que supera sua situação pelo projeto do futuro. Aponta que a tese de
Sartre que afirma que é o homem que faz a história nada contribuiu para ciência, ao
contrário, “entravam” o conhecimento:

Os engenhosos desenvolvimentos das posições sartrianas permitiram, no final


das contas, produzir alguns conhecimentos científicos sobre a economia, a luta
de classes, o Estado, o proletário, as ideologias, etc. – para compreender a
história e agir na história? Infelizmente, temos motivos para desconfiar que não.
Mas, nesse caso, dirão: esse é precisamente um exemplo que prova o contrário
de sua Tese sobre os efeitos da filosofia, já que você reconhece que essa filosofia
“humanista” não teve nenhum efeito sobre o conhecimento científico. Perdão! Eu
creio que Teses como a de J. Lewis e de Sartre têm certamente um efeito, mas
negativo, pois elas “entravam” – como dizia Lênin das filosofias idealistas de seu
tempo – o desenvolvimento do conhecimento.352

Considera que Sartre, embora possa ser pessoalmente um espírito honesto, não
importa suas intenções, o fato é que este filósofo é um ideólogo pré-marxista e pré-
freudiano:

351
MARCUSE, Herbert. O existencialismo. In______. Cultura e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, p. 83, v.
2, 1998.
352
ALTHUSSER, Louis. Resposta a John Lewis. In ______. Posições - 1. Rio de Janeiro: Graal, 1968, p. 36.
204

Podem ser pessoalmente espíritos honestos, podendo inclusive (como é o caso de


Sartre) quere “prestar serviços” ao marxismo e à psicanálise. Não estão em jogo
as suas intenções, mas sim os efeitos reais de sua filosofia nessas ciências. O fato
é este: embora ele pense depois de Marx e Freud, Sartre é paradoxalmente, sob
muitos aspectos, filosoficamente falando, um ideólogo pré-marxista e pré-
freudeano.353

Em Althusser, não há a concepção de um fim da história em que prevalecerá uma


razão vitoriosa, uma teleologia da razão – há sim a necessidade de concatenar a relação
histórica de um resultado com as suas condições como uma relação de produção.
Desmonta mito de um sujeito histórico que teria como missão emancipar e salvar a
“liberdade” da humanidade:

Com isso nos é imposta a obrigação de renunciar a toda a teologia da razão, e de


conceber a relação histórica de um resultado com suas condições como uma
relação de produção, e não de expressão, portanto o que poderíamos chamar de a
necessidade de sua contingência, termo que destoa do sistema das categorias
clássicas, e exige a substituição delas. Para penetrar essa necessidade, devemos
penetrar a lógica muito particular e muito paradoxal que culmina nessa
produção, isto é, a lógica das condições de produção dos conhecimentos, seja
que eles pertençam à história de um dos ramos do conhecimento ainda
ideológico, seja que pertençam a um ramo do conhecimento que procura
constituir-se com ciência, ou que esteja já estabelecido como ciência. 354

Quanto à releitura de Hegel, a de Marcuse foi no sentido de resgatar este autor para
que não fosse utilizado como fundamento de ideologias fascista. Destaca a força da razão,
examinada por Hegel, como uma força histórica, vinculada com a liberdade - o homem tem
o poder de autorrealização, pois realiza dialeticamente o seu próprio desenvolvimento, suas
potencialidades – há uma ênfase para o sujeito histórico que promoverá a emancipação
humana.

Era intolerável para Marcuse, constatar que o pensamento de Hegel tinha sido
apropriado como “um dos seus”, por aqueles que representando o obscurantismo
e a desrazão alegavam vem em Hegel um percursor dos ideais fascistas. Era
preciso, urgentemente, esclarecer o equívoco, eliminar as falsas interpretações e
iluminar a obra de Hegel. A isto se dedicou Marcuse em Razão e Revolução.355

É um retorno no sentido de se resgatar o que Hegel produziu de emancipador: as


propostas de igualdade e liberdade perseguidas pelo sujeito da práxis, delegado de
universalidades superiores.

353
ALTHUSSER, Louis. Resposta a John Lewis. In ______. Posições - 1. Rio de Janeiro: Graal, 1968, p. 36-
37.
354
ALTHUSSER, Louis; RANCIÉRI, Jacques; MACHEREY, Pierre. De “O capital” à filosofia de Marx. In
ALTHUSSER, Louis. Ler o capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 46, v. I.
355
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse, uma trajetória. Londrina: UEL, 1999, p. 70-71.
205

Acredita, no entanto, que a percepção e consciência do indivíduo de qual seriam


suas reais necessidades poderia libertar este indivíduo de seu estado de alienação, de forma
que um novo princípio da realidade, com menos repressão, poderia ser estabelecido.

Já a leitura elaborada por Althusser sobre o retorno de Marx a Hegel é no sentido de


renegar este autor, por conta de suas análises idealistas. Destaca que Marx, no período de
sua juventude, retornou a Hegel não para confirmá-lo, ou para superá-lo em uma
continuidade de pensamento, mas para negá-lo, dissolver o que há de ideológico neste
autor, dissipar a rede de ilusões criada por ele:

A superação de Hegel não é absolutamente uma “Aufhebung” no sentido


hegeliano, ou seja, o enunciado da verdade do que está contido em Hegel; não é
uma superação do erro rumo à realidade; ou melhor, mais do que uma
“superação” da ilusão rumo à realidade, é uma dissipação da ilusão e uma
volta para trás, da ilusão dissipada, rumo à realidade: o termo “superação” não
tem, portanto, mais nenhum sentido.356

Marx atravessou uma longa trajetória para superar os termos hegelianos, o conteúdo
do evolucionismo contido neste autor, o que teria provocado grandes estragos na história
do movimento operário marxista, no entanto, Althusser entende que Marx teria uma dívida
para com Hegel: a concepção da história como um processo sem sujeito357.

A emancipação da humanidade não seria uma questão de consciência, pois os


sujeitos são constituídos sob a forma de suportes das relações implicadas na estrutura, e as
formas de sua individualidade como efeitos determinados do modo de produção capitalista:
não há a questão do sujeito, a história é um processo sem sujeito e sem fim.

Na leitura de Marcuse, Feuerbach concorda com Hegel quanto à concepção de que


a humanidade atingiu a maturidade para que ocorra uma transformação por meio da razão e
consciência dos homens, só que procura uma base materialista para a realização da razão
diferentemente de Hegel que tem por base o pensamento – parte de um ser concreto,
introduzindo a natureza como base e instrumento para a libertação da humanidade.

No entanto, o materialismo de Feuerbach baseia-se nas sensações, despreza o papel


do trabalho, só observa os indivíduos isoladamente na sociedade, levando Marx a repudiar
este ponto de vista concordando com Hegel quando este autor nega que a certeza sensível
fosse o critério último da verdade:
356
ALTHUSSER, Louis. “Sobre o jovem Marx” (questões de teoria). In______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, p. 59.
357
Vide nota 209.
206

A ideia de Hegel era que o trabalho trouxesse a certeza sensível e a natureza para
dentro do processo histórico. Feuerbach recorre à percepção-sensível
(Anschauung); mas ele não compreende a sensibilidade como atividade prática
humano-sensível. O trabalho transforma em condições sociais as condições da
existência humana. Ao omitir da sua filosofia da liberdade o processo do
trabalho, Feuerbach omite o fator decisivo pelo qual a natureza podia vir a ser o
instrumento da liberdade. Sua interpretação do desenvolvimento livre do homem
como um desenvolvimento “natural”, deixava de lado as condições históricas da
libertação, e fazia da liberdade um acontecimento interior ao arcabouço da ordem
estabelecida. Seu “materialismo perceptivo” só percebe “indivíduos isolados na
sociedade burguesa”. 358

Para Althusser, Feuerbach não sai da problemática colocada por Hegel, uma vez
que apesar de ter invertido o edifício hegeliano mantém sua estrutura, ainda se mantém no
campo idealista da filosofia hegeliana. Mantém uma problemática antropológica como
essência humana, liberdade e alienação, que é utilizado por Marx nos manuscritos de 1844.

Marx de início acompanhou a crítica de Hegel por meio de Feuerbach até


determinado ponto em que percebeu que esta crítica ainda estava no “seio mesmo da
filosofia hegeliana”:

Com efeito, se Marx rompeu com Feuerbach, ao menos em seus pressupostos


filosóficos últimos, a crítica de Hegel que se encontra na maior parte dos escritos
de juventude de Marx como uma crítica insuficiente, até mesmo falseada, na
medida em que é feita de um ponto de vista feuerbachiano, ou seja, um ponto de
vista que Marx rejeitou ulteriormente. Ora, por razões às vezes de comodidade,
tende-se constantemente e inocentemente a considerar que, embora Marx tenha
modificado ulteriormente seu ponto de vista, a crítica de Hegel que se pode
encontrar nas obras de juventude permanece, em todo o caso, justificada e que
ela pode ser “retomada”, Mas, isso é negligenciar o fato fundamental de que
Marx se separou de Feuerbach quando tomou consciência de que a crítica
feuerbachiana de Hegel era uma crítica “do seio mesmo da filosofia hegeliana”,
que Feuerbach era ainda um “filósofo”, que “invertera”, é certo, o corpo do
edifício hegeliano, porém conservara sua estrutura e seus fundamentos últimos
ou seja, seus pressupostos teóricos.359

Quanto à análise das estruturas sociais, tanto Marcuse quanto Althusser possuem
posições aparentemente semelhantes, uma vez que ambos destacam a importância do papel
da superestrutura na manutenção e reprodução do sistema, mesmo que, em última
instância, a determinação venha da infraestrutura, da base econômica.

A conformação da classe operária ao status quo, em uma sociedade de consumo em


que a razão instrumental escraviza em vez de emancipar (Marcuse), equivale à submissão
do indivíduo à ideologia reproduzida pelos aparelhos ideológicos do Estado, que, conforme

358
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978, p. 251.
359
ALTHUSSER, Louis. Os “manifestos filosóficos” de Feuerbach. In ______. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, p. 37-38.
207

Althusser, no plano teórico pode comprometer a ciência levando o “cientista” a dissimular


a exploração em nome de pretensas necessidades técnicas e racionais.

Quando Marcuse faz uma análise da sociedade industrial, denuncia a lógica


essencialmente tecnicista e consumista, destacando que a tecnologia organiza e perpetua as
relações sociais vigentes, permitindo que grupos sociais dominantes utilizem esta
racionalização tecnológica para controlar a massa de indivíduos, no entanto, não se refere à
exploração das classes.

O indivíduo burguês, para Marcuse, passa a aceitar a liberdade e igualdade, porém


formalmente, como interiorização, sendo que a busca da felicidade passa a ser suprida pela
produção. O princípio da individualização baseia-se no conflito de interesses de
personalidades fechadas em si mesmas, dominados por uma lógica instrumental.

Forma-se um sujeito econômico “livre” que é submetido à lógica do Capital, de


uma sociedade instrumental, de forma que se submete a necessidades falsas, criadas para
que o sistema se reproduza.

Acredita que a autodeterminação na produção como padrão e guia do planejamento


e do desenvolvimento dos recursos disponíveis dará origem a um novo sujeito histórico
que seria formado a partir de indivíduos livres e autodeterminados, livres de toda
propaganda, doutrinação e manipulação:

A autodeterminação será real desde que as massas tenham sido dissolvidas em


indivíduos libertos de toda a propaganda, doutrinação e manipulação, capazes de
conhecer e compreender os fatos e de avaliar as alternativas. Em outras palavras,
a sociedade seria mais racional e livre desde que fosse organizada, mantida e
reproduzida por um sujeito histórico essencialmente novo.360

Para Althusser, no entanto, a dominação ocorre não somente pelo domínio técnico,
nem por relações meramente jurídicas, o que poderia ser alterado por uma eventual
mudança subjetiva da propriedade, ou mesmo pela realização de uma melhor organização
técnica do processo de trabalho, mas pela ocultação da exploração do trabalho (extorsão da
mais-valia mediante o salário, divisão do trabalho, tec.), por meio da ideologia jurídica e
pelos aparelhos ideológicos do Estado.

360
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 231.
208

Por outro lado, Marcuse aborda a questão da cooptação da classe trabalhadora pela
sociedade de consumo, de forma que o operário perdeu sua motivação revolucionária,
passando a ser mesmo um defensor do sistema.

Na verdade, sob a ótica de Marcuse, há um assujeitamento dos indivíduos que se dá


“de fora” para “dentro”, por ação de uma classe exploradora. Determinado grupo
dominante explora outros indivíduos por meio de uma lógica instrumental, que funciona a
serviço da lógica do Capital, em que o indivíduo assume como sua a necessidade da
produção da sociedade tecnológica.

Os homens formam uma representação imaginária ou alienada de suas condições de


existência, porque essas condições de existência são em si mesmas alienantes: na
sociedade capitalista as condições alienadas referem-se ao trabalho alienado.

Mas, de qualquer modo, ocorre uma despersonalização da repressão, de forma que


a dominação torna-se cada vez mais impessoal, objetiva, universal e também cada vez mais
racional, eficaz e produtiva. – o indivíduo se objetiva como um sujeito objeto do trabalho,
devido à divisão social do trabalho, e não como um sujeito produtor.

Há um excesso de repressão em relação ao que seria necessário para a existência da


civilização, de forma que uma mudança qualitativa nas relações humanas poderá despertar
as verdadeiras necessidades humanas, ocorrendo uma revolução na base instintiva do
homem, com a transformação radical da consciência e do inconsciente.

Marcuse aproximou-se da psicanálise freudiana para entender o porquê da


submissão da classe oprimida à ideologia da classe dominante, de tal forma que pode ser
considerado como um crítico da ideologia, apontando a sociedade industrial como
produtora de subjetividades unidimensionadas e criadora de “consciências felizes”.

Entende que o homem somente no trabalho e nos objetos de seu trabalho pode
atingir o conhecimento real de si mesmo, dos outros e do mundo objetivo e somente uma
teoria prática, baseada na práxis, propiciaria sua libertação:

À teoria prática, a qual cumpre esta missão, chama Marx de ‘humanismo real’,
na medida em que ela coloca o homem no centro da concreção da sua essência
histórica-social, e identifica-o com ‘naturalismo’ na medida em que apreenda a
unidade de homem e natureza na sua realização: a ‘naturalidade do homem’ e a
‘humanidade da natureza’. Quando esta unidade não corresponde ao real
humanismo aqui esboçado, enquanto fundamento da sua teoria, no que se
209

entende comumente por ‘materialismo’ de Marx, assim se encontra tal


contradição com certeza no sentido tomado por Marx: ‘Vemos aqui como o
realizado naturalismo ou humanismo, tanto se distingue do idealismo quanto do
materialismo e constitui sua simultânea unificante verdade de ambos.361

Althusser não faz análise de um comportamento da classe trabalhadora como um


todo diante das suas condições objetivas, e sim dos aparelhos de Estado existentes que
assujeitam o indivíduo e estruturam as relações sociais.

Para Althusser, o assujeitamento se dá “por dentro”, o individuo é constituído como


sujeito para um papel já definido pelo modo de produção capitalista, incluindo a classe
dominante. Tanto o capitalista como o trabalhador assumem posições estruturais já
definidas para o “bom funcionamento” do sistema, posições estas que são reforçadas pelos
aparelhos ideológicos e repressores de Estado – em especial pela ideologia jurídica que é
garantida pelo Estado, que tem o papel de terceiro nas relações de mercado - de forma a se
possibilitar a contínua reprodução desse sistema.

Os homens representam não suas condições de existência reais, seu mundo real,
mas sua relação com essas condições de existência reais:

Para utilizar uma linguagem marxista, se é verdade que a representação das


condições de existência reais dos indivíduos que ocupam postos de agentes da
produção, da exploração, da repressão, da ideologização e da prática científica,
depende em última instância das relações de produção e das relações delas
derivadas, nós diremos o seguinte: em sua deformação necessariamente
imaginária, toda a ideologia representa não as relações de produção existentes (e
as outras relações que dela derivam), mas antes de tudo a relação (imaginária)
dos indivíduos com as relações de produção e com as relações que delas
derivam. Portanto, na ideologia, não está representando o sistema das relações
reais que governam a existência dos indivíduos, mas sim a relação imaginária
desses indivíduos com as relações reais sob as quais vivem. 362

A categoria de sujeito é a categoria constitutiva de toda a ideologia, sendo que a


adoção da denominação sujeito apareceu sob a ideologia jurídica, transformando-se em
uma noção ideológica: o homem é, por natureza, um sujeito.

Resumindo, podemos dizer que Marcuse considera sujeito o indivíduo assujeitado


por uma lógica instrumental, ditada por uma sociedade industrial que busca
incessantemente sua reprodução, de forma que este indivíduo se aliena de sua verdadeira

361
MARCUSE, Herbert. Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico. In______.
Materialismo Histórico e Existência. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1968, p. 143.
362
ALTHUSSER, Louis. A propósito da ideologia. In ______. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes,
2008, p. 205.
210

essência, que é a liberdade e igualdade, sendo que a consciência de sua situação propiciaria
a emancipação da classe operária, que tem como projeto a ruptura da exploração do
homem pelo homem.

Já o assujeitamento para Althusser passa pela conformação do indivíduo a posições


nas estruturas sociais já pré-existentes – a subjetividade é constituída por estruturas sociais
externas ao sujeito, e essa constituição se faz por meio de práticas materiais - não existindo
um sujeito historicamente constituído com um projeto de ruptura. As categorias da
liberdade e igualdade fazem parte da ideologia jurídica que se apoiam no direito para
organizar a subjetividade humana de forma que seja possibilitada a circulação de
mercadorias de forma geral.
211

CONCLUSÃO

A noção de indivíduos pertencentes à espécie humana e, portanto, considerados


como iguais, surge com o cristianismo, que pregou uma igualdade universal, que, no
entanto, era válida somente no plano espiritual, não no mundo material, onde prevalecia
uma rígida hierarquia característica do feudalismo então vigente.

O conceito de indivíduo como portador de direitos universais foi elaborado pelos


filósofos do Iluminismo, que vislumbraram em um indivíduo isolado o agente portador dos
direitos anunciados pela revolução burguesa, constituindo-o em sujeito de direito que,
guiado pela razão, alcançaria a liberdade e a igualdade.

O Direito sob a ótica dos modernos, ótica que ainda hoje vigora, é tido com um
conjunto de regras que rege os homens em sociedade. O embasamento dessa noção é o
comando de uma razão racionalizante, de tal forma que as leis retratem o ideal, o dever ser,
o considerado possível para que uma sociedade possa viver em harmonia.

Para justificar as leis sob o domínio da razão foram criadas ficções como o contrato
social de Rousseau, o sujeito de direito, desenvolvido inicialmente por Kant, e o Estado
como a síntese da família e sociedade na dialética de Hegel.

Em Kant iniciou-se a construção do sujeito, ainda reflexo de uma circulação


mercantil restrita, já em Hegel, o sujeito de direito alcançou o seu ápice, reflexo das trocas
universais, com o capitalismo já desenvolvido em suas formas.

No entanto, estes autores fundamentam-se em abstrações como liberdade e


igualdade, para construir um direito universal, apoiado por um Estado, que, segundo
Hegel, seria a síntese entre a sociedade e o indivíduo, o estágio máximo atingido pelo
espírito humano na terra.

Com intuito de desmontar o mito criado pelo Iluminismo de uma sociedade


composta por indivíduos isolados portadores de direitos formais, que por um acordo para
saírem da barbárie estabeleceram um “contrato social”, Marx e Engels empreenderam uma
jornada intelectual no sentido de apontar como determinante do modo de vida dos
indivíduos em uma dada sociedade o modo de produção desta sociedade.
212

A sociedade capitalista sofreu uma forte crítica de Marx, que colocou à amostra a
verdadeira natureza do sujeito de direito: constituído de modo a ter a capacidade de se
relacionar com os outros por meio do mercado, no qual prevalece a liberdade e igualdade
formais para firmar contratos, ou seja, os homens devem, como sujeitos livres, colocar a si
mesmo como mercadorias a serviço do capital.

Marx e Engels saem da visão idealista dos modernos e focam suas análises no
modo de produção vigente, denunciando a universalidade formal do direito e de seu
garantidor, o Estado. Liberdade, igualdade e fraternidade não são efetivamente realizadas,
apenas formal e abstratamente tais direitos são enunciados como forma de assegurar o
funcionamento do mercado: liberdade para vender sua mercadoria, inclusive sua própria
força de trabalho e igualdade formal entre os proprietários destas mercadorias.

Apoiando-se inicialmente em Hegel, por um humanismo racionalismo-liberal, que


busca a essência do homem, por meio da razão e liberdade e em Feuerbach, por um
humanismo comunitário, Marx fundamenta seus estudos no homem concreto, na
possibilidade de emancipação da humanidade a partir da superação da alienação no
trabalho, quando o homem, como sujeito, toma sua própria essência alienada para se tornar
um homem total.

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, obra de sua juventude somente


publicada em 1932, Marx denúncia a perda da consciência do homem sobre as condições
em que trabalha, sobre a condução de sua própria vida, que está entregue a um processo de
alienação e de estranhamento que lhe é imposto pelos meios de produção capitalista.

Com esta obra, inicia-se uma nova proposta filosófica de renovação da sociedade
pela identidade entre sujeito e objeto, em que a motivação para uma possível emancipação
da humanidade estaria na possibilidade da consciência dos homens em relação à sua
atividade produtiva. Esta obra influenciou vários autores, que a consideraram como uma
espécie de elo perdido para uma compreensão menos dogmática do marxismo, como foi o
caso de Herbert Marcuse, sendo, no entanto, repudiada por outros, como Louis Althusser,
por ser ainda uma análise idealista, presa ao humanismo ideológico de Hegel e ao
humanismo antropológico de Feuerbach.

A partir de seus escritos de maturidade, Marx passa a focar seus estudos no modo
de produção capitalista, inicialmente ainda no terreno humanista, quando a produção seria
213

o resultado da atividade dos homens e uma criação do sujeito, mudando esta ótica em O
Capital, sua obra máxima, quando indica a produção como um resultado objetivo da luta
de classes.

Dois autores, Herbert Marcuse e Louis Althusser, humanista e anti-humanista,


respectivamente, destacam-se por analisarem a sociedade capitalista de forma crítica,
deixando claro que nenhuma sociedade antes foi tão sistematicamente organizada segundo
os interesses da produção como a capitalista, e por estudarem a posição dos indivíduos
constituídos em sujeitos a partir da psicanálise, como uma tentativa de identificar os
motivos que os levaram a tal assujeitamento.

No entanto, no que se refere à abordagem do indivíduo como sujeito de uma ação


transformadora eles divergem quanto à fonte marxista que lhes serve de inspiração, uma
vez que Marcuse baseou-se no Marx da juventude, em especial nos Manuscritos
econômicos e filosóficos, e Althusser partiu do Marx maduro, tendo por referência sua
principal obra, O capital.

Marcuse, inicialmente influenciado por Martin Heidegger, mergulha em uma


ontologia fenomenológica, destacando o Dasein como sendo o ser realmente existente no
mundo com o outro, considerando esta teoria de cunho materialista um avanço em relação
às concepções de sujeito abstrato universal criado pelos clássicos.

Aponta para uma interpretação fenomenológica da historicidade, com fundamento


nas análises de Heidegger elaboradas no livro Ser e Tempo (1927), mas com a utilização do
método dialético.

Heidegger fala do ser autêntico, como ser não alienado, no entanto este ser teria sua
essência descoberta pela angústia. Neste ponto, Marcuse diverge de Heidegger, uma vez
que interpreta no ser concreto a possibilidade de um gesto revolucionário, este gesto que
permitiria ao homem alcançar o seu ser autêntico, seria denominado por ele de “ato
radical”.

Após a descoberta dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, em 1932, Marcuse


vislumbra uma verdadeira “filosofia concreta”, encontrando uma resposta sobre a
possibilidade da emancipação do ser humano. Encontra um comunismo em que prevê não
214

só a transformação das bases materiais, mas também a emancipação completa do ser


humano, tanto consciente como inconscientemente.

Passa a considerar o trabalho como realização do homem autêntico e critica o


trabalho alienado que promove uma alienação e desvalorização da vida humana, procura
resgatar a importância de se tomar o homem como tal e não como mero “sujeito
econômico”, o que implicaria em superar a propriedade privada, pois nela o homem é
tomado como objeto.

Considera como possibilidade de libertação o homem visualizar seu alheamento e a


alienação que sofre em uma economia capitalista, o que permitiria a substituição desta por
uma economia política socialista.

Em uma fase posterior, Marcuse trabalha com uma proposta metodológica, a


apreensão dialética e materialista da história, centrados em torno de uma temática comum
ocorrida no plano da formação do sujeito, considerado de uma forma ampla: no plano da
cultura, ética etc.

Faz um ajuste de contas com Heidegger, ainda em moldes filosóficos, colocando o


trabalho como processo de autoformação dos homens na elaboração de sua história, pois o
Dasein de Heidegger, aparentemente concreto, se desfaz em abstrações. Em Razão e
Revolução, supera a crítica meramente filosófica, chegando à conclusão que para tal
superação seria necessária a promoção de uma práxis transformadora, nos termos do
materialismo histórico de Marx.

Marcuse passa a focar seus estudos na busca dos motivos de o movimento operário
se integrar ao status quo em vez de se emancipar, por que o suporte do sujeito
revolucionário pelo proletariado estaria comprometido, escrevendo vários artigos nesse
sentido, analisando vários aspectos, como a função ideológica da cultura, entre outros.

Buscou, também, o auxílio da psicanálise para compreender o contexto da


alienação ocorrida, o motivo do que ele chamou de “servidão voluntária”. Foi em Eros e
Civilização, escrito em 1955, que aponta como ocorre a dominação em uma sociedade de
consumo, com ajuda dos estudos de Freud sobre o inconsciente, aponta como as estruturas
criadas pelo modo de produção reprimem o indivíduo remetendo-o a falsas necessidades
215

que geram sua dependência em relação ao consumo e com isso a dominação de uma classe
sobre a outra é facilitada.

A dominação que se desenvolve em torno de “necessidades repressivas”, apontada


em Eros e Civilização, dá-se em uma sociedade de consumo que Marcuse analisa com uma
crítica afiada em One-dimensional Man, ou, Ideologia da Sociedade Industrial, conforme
tradução para o português.

Nesta análise, em que a racionalidade tecnológica coloca-se a serviço da


dominação, conclui que somente é possível a construção de uma sociedade não repressiva,
racional e livre, com o surgimento de um novo sujeito histórico, que não estaria submetido
às propagandas, doutrinação e manipulação de qualquer espécie, que sejam capazes de
compreender os fatos e avaliar as alternativas existentes.

Na outra vertente marxista, a anti-humanista, Althusser propõe uma leitura


inovadora do marxismo, em que se utiliza da cisão entre ideologia e ciência para separar o
Marx humanista da juventude do Marx científico de O Capital, que ele denomina de corte
epistemológico.

A fase humanista de Marx, em especial a dos Manuscritos Econômicos e


Filosóficos, influenciou vários autores marxistas, que tomaram o sujeito como agente da
emancipação humana, o “homem” como sujeito da história, que busca sua liberdade
apoiado na razão, utilizando-se de conceitos como: “essência humana”, “liberdade”,
“pessoa humana” e “alienação” - a esta ótica humanista, Althusser denominou de reação
ideológica de tendência liberal, contra o dogmatismo stalinista.

Althusser aponta o lado científico do Marx da maturidade, sua fase anti-humanista,


em especial em sua obra máxima O Capital, na qual o marxismo sedimenta-se como uma
ciência constituída por duas disciplinas: o materialismo histórico e o materialismo
dialético.

A ideologia para Althusser, além de representar uma pré-ciência, tem uma função
prática de Assujeitamento, cumprindo um papel do vivido, como imaginário necessário
para submissão e percepção da realidade.

Em sua materialização, a ideologia funciona por meio dos Aparelhos Ideológicos de


Estado – AIE, isto é, as ideias são inseparáveis das práticas materiais, os indivíduos são
216

sempre já sujeitos, isto é, sempre assujeitados à ideologia. Portanto, os sujeitos são


interpelados pela ideologia e constituídos em sujeitos, em uma estrutura de identificação já
pré-existente.

As necessidades repressivas criadas pela produção, que acabam tornando mais


agradável a aceitação por parte dos dominados da ideologia dominante (Marcuse), são
viabilizadas pelos Aparelhos Ideológicos de Estado – AIE (Althusser) que fazem com que
a adesão à ideologia dominante ocorra sem que haja necessidade de utilização dos
aparelhos repressores, sendo os indivíduos interpelados como sujeitos.

No entanto, o fato de Marcuse usar como base os primeiros escritos de Marx, o


marxismo humanista, e Althusser ter como referência o Marx da maturidade, o marxismo
científico, evidenciam diferenças que ficam bem evidentes quando se pensa uma
alternativa para uma possível emancipação da humanidade.

Marcuse centra seus estudos na figura de um sujeito da história, trabalha suas


análises sob uma ótica subjetivista, o que faz com que suas propostas de emancipação
sejam carregadas de um teor idealista, a começar pela própria dominação da classe
dominante.

Marcuse parte do princípio que as classes dominantes manipulam as necessidades


das pessoas, de forma que estas pessoas realizam suas necessidades dentro mesmo do
sistema, como se as classes dominantes pudessem manipular a ideologia ao seu bel prazer.

Em Althusser, em uma sociedade de classes, a ideologia é ativa sobre a própria


classe dominante, que é modelada por ela para que exerça seu papel de dominação, pois a
ideologia é matricial, estrutural.

Mesmo quando Marcuse fala sobre a doutrinação exercida pelos meios de


comunicação de massa (mídia), como instrumento importante para a dominação, esta
dominação dar-se-ia, utilizando-se a terminologia de Althusser, por conta de uma rede de
determinações, que trabalha em prol da dominação de uma classe, mas não pela vontade
direta desta classe dominante.

Marcuse aponta a falta de liberdade de pensamento, de pensamento crítico, sendo


necessária uma conscientização dos sujeitos para que possa ocorrer uma libertação da
dominação.
217

Para Althusser, a dominação também se dá no inconsciente, mas mediante um


processo que lhes escapa, ocorrendo um cruzamento entre relações reais e imaginárias.
Não prevê que a conscientização do sujeito, considerado singularmente, como homem
alienado, poderia ser a solução para uma possível emancipação da humanidade, uma vez
que centra suas análises na luta de classes, em que não há um sujeito da história.

O primeiro autor que mais profundamente interpretou a forma sujeito de direito,


partindo de Marx da maturidade, foi Pachukanis, que analisou a forma jurídica como forma
histórica, da mesma maneira em que foi analisada no campo da economia a forma valor em
que se parte do abstrato ao concreto e do simples ao complexo.

Para ele, o sujeito de direito é o elemento mais simples da relação jurídica, que não
pode ser mais decomposto. Assim como um produto natural se transforma em uma
mercadoria dotada de valor, o homem transforma-se em sujeito de direito.

Pachukanis afirma que o desenvolvimento dialético dos conceitos não oferece


apenas a forma jurídica em seu máximo desenvolvimento, mas, também, reflete o processo
de desenvolvimento da sociedade capitalista.

A forma jurídica nasce somente em uma sociedade na qual impera o princípio da


divisão do trabalho, sendo prevalecentes as relações de interesses privados, em que o
sujeito de direito, “a pessoa”, encontra uma encarnação adequada na personalidade
concreta do sujeito econômico egoísta, do proprietário.

No mercado ocorrem antagonismos subjetivos que são regulados pelo direito, que
surge para dar legitimidade a estas relações antagônicas, que coloca os agentes como
igualmente proprietários e com sua vontade livre para transacionar, legitimando o domínio
de uma classe sobre a outra, do capital sobre o trabalho. No entanto, a dominação de uma
classe pela outra não é direta e sim feita por um organismo aparentemente equidistante,
que representa a “vontade geral” da qual emanam os determinações normativas: o Estado.

Retornando a Pachukanis, podemos constatar a semelhança das análises estruturais


de Marcuse e Althusser com este autor, em especial as análises de Althusser.

Marcuse entende que as pessoas se reconhecem em suas mercadorias e há uma


mimese ou imediata identificação entre o indivíduo e sua sociedade. Para Althusser, como
218

para Pachukanis, a forma jurídica é o reflexo da forma mercantil, na mercadoria reside o


cerne da reprodução social capitalista, que constitui e permeia o fenômeno jurídico.

Neste ponto, podemos dizer que Pachukanis e Althusser consideram a forma sujeito
de direito reflexo direto da forma mercadoria, com base nos estudos de Marx de O Capital,
nos quais o conteúdo da relação jurídica é dado pela própria relação econômica, pois “as
mercadorias não podem por si próprias irem ao mercado e trocar-se umas pelas outras”, ou
seja, “as máscara econômicas das pessoas não passam de personificação das relações
econômicas”.

O homem se traveste de sujeito de direito, cuja vontade determinante habita nas


próprias coisas, as variedades concretas do trabalho humano se dissolvem no trabalho
humano abstrato e todas as particularidades concretas que distinguem um homem do outro
se dissolvem na abstração do homem em geral, do homem como sujeito de direito.

A leitura inicial de Marx sobre a identificação da forma sujeito de direito com a


forma mercadoria foi feita por Pachukanis e reforçada posteriormente por Althusser,
principalmente quando este se refere à determinação entre estas formas como uma
sobredeterminação, pois a esfera da circulação, que determina diretamente as formas do
direito é, por sua vez, determinada pela esfera da produção.

Marcuse acompanha de certa forma este diagnóstico, porém aposta na ótica


humanista de que com a consciência da dominação existe a possibilidade de liberdade e
com a superação da razão instrumental a serviço de um desenvolvimento alheio às
verdadeiras necessidades humanas, o sujeito pode assumir seu papel histórico de
transformador da realidade, de emancipar a humanidade, originando uma sociedade
socialista baseada em uma razão que tenha por fim o bem-estar de todos.

Althusser, analisando o processo social como fenômeno objetivo e não como o


resultado da vontade de um sujeito, entende que o sujeito de direito é apenas uma ficção
criada pelo modo de produção e que a ideologia desempenha um papel fundamental na
coesão social e, no caso de uma sociedade de classes, na dominação, com a sua
materialização nos Aparelhos Ideológicos de Estado.

Os indivíduos humanos não são nem livres, nem constituintes, mas indivíduos
humanos sociais que só atuam em e sob relações sociais determinadas numa sociedade de
219

classes agindo não como agentes da emancipação humana, mas como agentes que
perpetuam, atualizam e modificam as estruturas de dominação existentes nessa sociedade.

Portando, para Althusser a história é sem sujeito, sendo que a ideologia interpela os
indivíduos como sujeitos, uma vez que os agentes sujeitos só são ativos na história sob a
determinação das relações de produção e de reprodução, e em suas formas, estando o foco
das transformações sociais em um motor que é a luta de classes.
220

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