Você está na página 1de 16

\HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - IFG

PROF. DAY ANNA PEREIRA DOS SANTOS


•.• TEXTO 03
© 1995 Gius. Laterza & Figli
Tftulo original em italiano: Storia delta pedagogia.
Os capítulos 2 e 3 e os parágrafos 2, 3 e 4 do Capítulo 4 da
Terceira Parte (A época moderna) do presente volume
foram escritos por Gii.Iseppe Trebisacce.
CAPÍTULO III
© 1999 da tradução brasileira:
Fundação Editora da UNESP (FEU) A EDUCAÇÃO NA GRÉCIA
Praça da Sé, 108 ':<_
01001-900 -São Paulo- SP
'l:'el.: (Oxxll) 3242-7171
Fax: (Oxxll) 3242-7172
www.editoraunesp.com.br
feu@editora.unesp.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cambi, Franco
História êf':.~~~c:>_gi_a./ Franco Cambi; tradução de Álvaro Lorencini. - São Paulo
Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999- (Encyclopaidéia) ' '

Título original: Storia del/a pedagogia 1 A IDADE ARCAICA E O MODELO HOMÉRICO:


Bibliografia.
.AS ARMAS E O DISCURSO
ISBN 85-7139-260-9

I. Educação - Filosofia - História 2. Educação - História 3. Pedagogia - Os gregos não foram um povo unitário, étnica e culturalmente, rrias
História I.. Tftulo. li. Série.
urna mescla de etnias e de cülturas que foram se espalhando em ondas
99-3733 CDD-370.9 slicessivas na Hélade, a península acidentada e pedregosa que, abaixo da
Macedônia, se PTojeta no Mar Egeu, contornada por ilhas e arquipé-
Índices para catálogo sistemático
lagos .. Sobre esse terreno estéril, mas aberto para o mar, tomou corpo -
1. Educação: História 370.9 por volta elo IIl milênio a. C. - a civilização cretense na ilha de Creta,
2. Pedagogia: História 370.9 tecnicamente evoluída (na arquitetura, na escrita), ligada aos cultos reli-
giosos mediterrâneos, governada por reis-sacerdotes; depois·- por volta
de 1600 a. C. -, a esplêndida civilização cretense foi subjugada por Micene,
cidade da Argólida que vinha exercendo uma supremacia sobre a região
.e cujos traços aparecem nos poemas homéricos; a estirpe dos aqueus,
Editora afiliada: ligados a Micene,.foi depois- entre 1200 e 1100 a. C.- superada pelos
frígios e pelos dórios, povos invasores que se instalaram n.a península.
Eltlt8C .(11__, Neste processo, a própria estrutura geográfica da Grécia- como se clis·se,
"topografia montanhosa" e "fracionamento geográfico natural" - favo-
Asoclac16n de Edllorl~le• Unlvcnllartu Aasoclaçjo Braallelra de
de AmtrtCII lal!n1 y d Car1bc Edlloras Unlvcrallérlas
receu a formação de reinos isolados e independentes, que só se aliavam
HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 77

76 FRANCO CAMBI
heróica encontram-se também na Odisséia, em relação ao jovem Telêmaco,
momentaneamente, para depois tornar a separar-se, mas vindo assim ~ embora neste caso, doravante, o ambiente formativo seja a família, com
,. ·nter·c~"lmbios comerciais e culturais, mna profunda um-
·
cons tnnr, p0 •1 ' suas práticas e seus afetos. Outros aspectos da educação, ligada sobl:etu-

do ao povo, encontram-se em He!iodo (S!culo Vlll a. C.J, em Ü! ~a~allWi


·dade espiritual, que deu vida a uma "civilização comum", ligada àmesma
língua, ao mesmo alfabeto, a uma atividade mitopoiética comum.
O testemunho explicito e orgânico dessa unidade espiritual serão os e os dias, onde é exaltado o trabalho e são apontadas práticas de iniciação,
poemas de Homero, a JUada, que narra os eventos. da guerra de Tróia, .a que em todas as culturas arcaicas assumem um papel ci-ucial no cresci-
vitória dos aqueus e a conÚituição, neste povo fracionado e dividido, de mento e na inserção das jovens gerações na sociedade adulta, sancionan-
uma consciência comum, histórico-mítica e étnica, e a Odisséia,· que conta. do uma futura maturidade do indivíduo por meio de provas rituais.
a viagem de Ulisses de Tróia a Ítaca, entremeada de vicissitudes,, de pro- A educação heróica destina-se aos adolescentes aristocráticos, reU-
vas de aventuras e de riscos, exaltando a cap,acidade do indivíduo, sua nidos no palácio do rei, onde são treinados pàra o combate através de
astúcia ( = inteligência) e sua coragem, mas também sua magnanimidade competições e jogos com disco, dardo, arco, carros, que devem favorecer
e aceitação do destino. Os dois poemas são o produto de "séculos de poe- o exercício da força mas também da astúcia e da inteligência. O espírito
1
sia oral, composta, recitada e transmitida por bardos de profissão, os de luta é aqui o critério educativo fundamental, que abrange tanto o
aedos, sem o auxílio da escrita'' (Finley), mas onde se encontra sedimen- aspecto físico-esportivo quanto o cortês-pratório-musical, solicitando exer-
tado também o estilo de vida da Grécia mais arcaica, dividida em reinos cícios com a lira, dança e· canto e remetendo o jovem também a práticas
governados por reis-guerreiros, expressão de uma casta.de dominadores religiosas como "a leitura dos signos, os ritos do sacrifício, o culto dos
I
militares, onde se vive de agricultura e pastoreio,·mas também de comér- deuses e dos heróis". Estamos diante de "uma pedagogia do exempl~",
cio, e onde se organiza uma sociedade hierárquica, na qual o poder está da quai Aquiles encarna a areté (o modelo ideal mais completo de for-
na mão da aristocracia. Nessas páginas estão refletidas as práxis.. econô- mação) ligada à excelência e ao valor. Não só: já a partir da Ilíada "a
micas e sociais, as crenças religiosas e as regras do poder, as próprias prá- música e a ginástica pertencem ao programa educativo" dos gregos e sáo
ticas culturais, ligadas à oralidade e ao papel-chave do.aedo em tal con- indicadas como modelo e programa às jovens gerações justamente pela
texto. histórico-mítico. São retratados os tempos arcaicos, fixados por leitura educativa do poema ho'mérico, que será texto de forrriação - por
escrito entre "o fim do século IX e o início do VIl" e delineado um ocaso séculos - das classes dominantes.
dos costumes mais antigos- as religiões orgiásticas, os aspectos dionisíacos
e báquicos ligados a desregramentos e ritos cruentos- e a afirmação de
múa sociedade menos brutal e mais racional, que se organiza em torno 2 A PÓLIS E A FORMAÇÃO DO CIDADÃO:
dos valores da força e da persuasão, da excelência física e espiritual, das LEIS E RITOS, AGONÍSTICA E TEATRO
armas e da palavra. A educação heróica esboçada na Jliada retoma aspec-
tos da formação de Aquiles e se delineia como uma educação prática, que A. organização política do Estado típica da Grécia arcaica - reinos in-
une "língua" e "mão" e versa sobre o cuidado do corpo, mas não exclui a dependentes e territoriais - tende gradativamente, mas ele modo pro-
oratória, guiada pelo "centauro Quirão", ou seja, organizada por uma fundo, a mudar com a afirmação da pólis: uma cidade-Estado .com forte
relação pessoal entre mestre e aluno, que remete, talvez, à própria prá- unidade espirituál (religiosa e mitopoiética) que organiza um território,
tica dórica· da pederastia; da formação do jovem guerreiro através de uma mas que sobretudo é aberta·para o exterior (comérdo, emigração, colo-
amizade (até carnal) com um guerreiro mais velho que funcionava como nização) e administradapor regime ora monárquico, ora oligárquico, ora
treinador e guia, aspecto que permaneceu durante muito tempo como democrático, ora tirânico, mas no qual o poder é regulado por meio da
elemento característico da educação grega. Elementos dessa fm·maç~o ação dê assembléias e de cargos eletivos. Se a pólis é "um Estado que se

~.í

[ :·
• ~·~ I

HISTÓRJA DA PEDAGOGIA 79
78 FRANCO CAMBI

autogovei"na", .as cidades-Estado gregas eram independentes entre si, vi- oficiais de Estado "no mesmo sentido que generais, tesoureiros ou comis-
viam em luta e davam vigor- dentro da Cidade- a uma intensa vida co- sários de mercado,·es, com a mesma base de família, de riqueza, de expe-
munitária, organizada em torno de valores e de fins comuns, embora se- riência", como ocorria em Atenas (Finley). E são "semelhantes aos ho-
parada por grupos e por funções, e regulada por leis estabelecidas pela mens" cujas histórias ou mitos "explicavam" o ritual e davam uma
própria comunidade; externamente, porém, alimentavam oposições ra- interpretação complexa do mundo. A religião era também "um assunto
dicais e alianças frágeis, que condenaram a Grécia a sofrer a hegemonia do Estado ou da comunidade" cuja vida_ ela regulava, embora se caracte-
primeiro dos persas, depois dos reis da Macedônià, que a subjugaram, rizasse em sentido local, com poucos vínculos com os cultos das outras
extinguindo sua autonomia e criatividade política. cidades, à parte a sacralidade do santuário de Delfos e seu odtculo (além
Se Esparta e Atenas, como veremos, representaran1 os· dois modelos de Elêusis e seus cultos iniciáticos) ou os rituais de Olímpia, os Jogos, inau-
opostos da pólis grega; a florescência das póleis difundiu-se em toda a Grécia gurados em 776 a. C.
(com Corinto, Olímpia, Epidauro etc.), depois desde os limites .da atual Desse modo, os jogos agonísticos - ou ginásticas, masculinos e femi-
Turquia (com Mileto e Pérgamo), até a Magna Grécia, que compreendia ninos - e a atividade teatral, ambos ligados ·a festividades religiosas e
as costas da Puglia (com Brindisi e Taranto), da Calábria (com Crotona); momentos eminentemente comunitários, vinham desenvolver uma iim-
da Sicílià (com Siracusa e Agrigento), da Campânia (com Paestum e Eléia), ção educativa no ftmbito da pólis, acompanhando a ação elas leis e subli-
criando no centro do Mediterrâneo uma civi).ização móvel e unitária, ar- nhando seus fundamentos.ético-antropológicos, como ainda o caráter de
ticulada e comum, madura pelo pluralismo de formas e, de especializações livJ:e vínculo coletivo. Já Túcídides reconhecia que "a cidade é uma em-
e pelas diversas contribuições de etnias, de grupos e de indivíduos, que presa educativa", referindo-se sobretudo a Atenas, uma vez que tende a
pela obra dos reis macedônios e, depois, dos reis romanos foi afirmando- "garantir aquela integração, aquela coesão, aquela homogeneidade de base
se como a cultura-líder do Mediterrâneo e do mundo antigo. Apólis, des- que sr10 requisitos essenciais para a segurança e para a sobrevivência" da
de seus inícios, entre os séculos VIII e VII, "assinala um ponto de partida, cidade. Com tal objetivo, se. desenvolve "uma atividade educativa total e
uma verdadeira invenção", já que nela "a vida social e as relações entre permanente, que faz da pólis inteira uma 'comunidade pedagógica"'
os homens assumiram uma forma nova": temos "uma extraordinária-pre- (Vegetti). Um dos instrumentos fundamentais dessa educação comunitá-
sença da palavra", que se torna "insu-umento político" e alimenta "a dis- ria é o teatro, a u·agédia e a comédia, que é um espelho da comunidade e
cussão" e a "argumentação"; as "manifestações mais importantes da vida que enfrenta seus problemas de le~itimação das normas e de descrição/
social" têm um caráter de plena "publicidade", ligadas que estão a "inte- avaliação dos costumes. Assim, o teatro, em Atenas, é "também e sobre-
resses comuns", assumindo um aspecto democrático, inclusive no que tan- tudo um ·lugar de representação das .contradições que laceram o corpo
ge à cultura; os diversos grupos ou clãs q1,1e compõem a cidade são "'se- da cidade e as consciências de seus membros", referentes a escolhas polí-
melhantes' uns aos outros", são isoi, iguais, até no plano militar (com o ticas, éticas, psicológicas, como ocorre pelo incesto em ÉdijJo Rei ou pelas
nascimento do hoplita: o cidadão dotado de armas que está pronto a com- leis interiores superiores às da cidade naAntígona de Sófocles, como tam-
bater pela cidade) (Vernant). Mas o que faz da pólis uma comunidade de bém pela aceitação do destino na Orést!a ele Ésquilo. No teatro, a comuni-
viela espiritual são sobretudo as leis e ·os ritos, que formam a consciência dade edüca a si mesma; com a comédia que fustiga costumes, ridiculariza
do cidadão e inspiram seus comportamentos por meio de normas que comportamentos, castigat ridendo mores, como dirão os latinos.
fix.am .ações e proibições. Até os deuses são cid.adãos (ainda que depois Os jogos agonísticos também educam: pelo desafio de enfrentar os
todos os deuses do Olimpo fossem cultuados); são deuses que protegem outros nas corridas, pelo uso da inteligência como metis ("razão astuta"),
e inspiram a vida da comunidade, que são exaltados nas grandes festas pela comunicação e pela Imaginação. A areté masculina e feminina en-
m·banas por sacerdotes que não formam uma casta, mas são "leigos'' ou contrava nos jogps agonísticos e nas suas provas um momento de tensfto
80 FRANCO CAMBI HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 81

I
fol'mativa e de apelo à excelência que estabelecia com o corpo e com seu fetn:nilidacle. Na família, a mulher é submissa, primeiro ao pai depois fo
domínio uma precisa e harmoniosa atividade espiritual. Na agonística, · marido, ao qual deve fidelidade e amor absolutos (os vasos de núpcias
escreve·Burckhardt, "manifestam-se a excelência e a raça, e a vitória es- acolhem freqüentemente a imagem mítica de Alceste, a esposa que "acei-
portiva revela-se como a mais antiga expressão da vitória pacífica da lm- tou chegar ao Além no 11:1gar do marido"). Suas funções públicas são ape-
manidade", que ultrapassará os tempos .hei:óicos e pertencerá ao nas para funerais (são suas atribuições a toalete dos mortos e os lamentos
patrimônio espiritual e educativo da cultura grega, até a época clássica e fúnebres), para o retorno ou a pàrtida do guerreiro, para coros e danças
depois também na helenística, embora cqm ênfases diferentes. E é signi- nas festividades, para sacrifícios, quando aparece como canéfora, porta-
ficativo que por longo tempo os jogos agonísticos pertençam também à dorê.. do kanàun ou cesto sacrificial, para festas como as de Adônis e de
areté da mulher, vista nos "seÜs comportamentos não oficiais, mais ín- Á..rtemis ou os ritos dionisíacos. Fora de casa- na vida cotidiana-, os seus
timos e privados, e nos sociais" (Frasca). espaÇos são as fontes; dentro de casa, o lugar onde ela fia e tece. "As
•',
cenas de mulheresfiando são muito numerosas no fim do período arcc\i-
co", na· pintura de vasos; as mulheres são representadas com "conchaJe
3 A EDUCAÇÃO FAMILIAR, A MULHER, A INFÂNCIA cesto", para indicar seu ení.pen,ho no trabalho, enquanto os homens s~o
representados no ócio:
A família, em qualquer sociedade, é 6 primeiro lugar de socialização Existem, porém, já no mito, modelos femininos que se opõem a essa
. I
.do indivíduo, onde ele aprende a reconhecer a si e' aos outros, a comu- domesticidade e submissão da mulher: as An1azonas, mulheres guerreira~.
.
nicar e a falar, onde depois aprende comportamentos, regras, sistemas com características masculinas de coragem e de força; as Mênades, sequa-
de valores, concepções do mundo. A família é o primeiro regulador da zes àe Dioniso, possuídas e selvagens, que rompem toda regra moral n:o
identidade física, psicológica e cultural do. indivíduo e age sobre .ele por transe e se can·egam de viq!ência. Mulheres assassinas que inquietam mh
meio de uma fortíssima ação ideológica. Esse era também o papel da cosmo ordenado segundo os modelos masculinos de autoridade e de suti-
'
família na Antigüidade, na qual se caracterizava ora como família pa- missão. Na sociedade grega existem também figuras de mulheres ~nais livreis
triarcal, ampliada, coincidente com a gens ou genos (estirpe), como a defi- e menos subalternas: as sacerdoti·sas, as "anciãs", as hetairas ou prostituta:s
niram os latinos e os gregos, ora como relação pais-filhos, mas ·sempre de luxo, que vivem ao lado dos homens~ são cultas, participam da vida soei~!
segundo um· modelo autoritário que vê o pai quase como um deus ex (como Aspásia, a favorita de Péricles, em Atenas). Em geral, porém, é no
rnachina da vida familiar·. É da união das famíli.as, portanto, que nasce a àilws que se desenvolve a vida· feminina, entre "casamentos, nascimentos,
comunidade social que dará vida à própria p6lis. mortes", rodeada de "filhos, parentes, criadas"; ali se cria uma comunida~
No interíor do àilws (espaço famili'ar) reina a ~ulher- como esposa e de feminina que trabalha, que organiza a vida da casa, que reza. "O àiho~·
como mãe -, mas socialmente invisível e subalterna, dedicada aos tra- é o domíníà das mulheres: o que acontece nele está sob seu controle", mas
balhos domésticos e à criação dos filhos. Penélope será um modelo signi- cump:e assinalar que nele também é "a lei masculina que reina e que san~
ficativo da condição feminina na Grécia arcaica e também na clássica. cionà por último ~ atividade" (Duby & Perrot). i
Fora da casa, a mulher 'é tentadora (para o homem), desvia-o da sua As crianças vivem a primeira infância em família, assistidas pelas mul
"tarefa", afasta-o de seus deveres: como fazem Circe e Calipso com Ulisses lheres e submetidas à autor~dade do pai, que pode z:econhecê-las ou
na Odisséia. A feminilidade é també.:rn perdição, é mal, é desordem: como abandoná-las, que escolhe seu papel social e é seu tutor legal. A infânciri
deixa entrever o mito de Pandora, uma deusa que é ·símbolo da femini- n~o é valorizada em toda a cultura antiga: é uma idade de passagem}
lidade. Hera, pelo contrário, a "rainha dos deuses'', é esposa e mãe, pro- aÍnea·;adapor doenças, incerta nos seus sucessos; sobre ela, portanto, se
tege o casamento e os partos e indica o modelo da verdadeira(= justa) faz um mínimo investimento afetivo, como salientou Aries para associe-·

..
. 1·
• .l ~ 1!
!.·.• ·~~-· I

.•i_.. l

82 FRANCO CAMBI HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 83

dades tradicionais em geral. A infância cresce em casa, controlada pelo jJerioikoi ou habitantes do campo e os iloti ou grupos subalternos). É go-
"medo do pai", atemorizada por figuras míticas semelhantes às bruxas vernada por um:a assembléia de cidadãos que elege um conselho de 28
(as Lâmias, em Roma), gratificada com brinquedos (pense-se nas bone- membros, e por dois reis com direito hereditário. Foi o mítico Licurgo
cas) e entretida com jogos (bolas, aros, armas rudimentares),' mas sempre quem ditou as reg1cas políticas de Esparta e delineou seu sistema educativo,
colocada à n~argem da vida social. Ou então por esta brutalmen~e cor- conforme o testemunho ele Plutarco. As crianças do sexo masculino, a
romp.ida, submetida a violência, a estupro, a trabalho, até a sacrifícios ri~ partir dos sete ancis, eram retiradas da família e inseridas· em escolas-
tuais. O menino - em toda a Antigüidade e na Grécia também - é um ginásios onde recebiam, até os I6 anos, uma formação ele tipo militar,
"margin'àl" e como tal é violentado e explorado sob vários aspectos, mes- que devia (avorecer a aquisição da força e da coragem. O cidadão-guer-
mo se gradualmente - a partir dos sete anos, em geral - é inserido em reiro é formado pelo adestramento no uso das armas, reunido em equi-
instituições. piíb!icas e sociais que lhe concedem uma identidade, lhe in- pes sob o controle de jovens guerreiros e, depois, de um superintenden-
clicam uma função e exercem sobre ele também uma proteção. te geral (:paidonomos). Levava-se uma vida em comum, favoreci.am-se os
vínculos de amizade, valorizava-se em particular a obecliê~cia. Quanto à
cultura·:.. ler, escrever -, pouco espaço era dado a ela na formação elo
4 ATENAS E ESPARTA: DOIS MODELOS EDUCATIVOS espartano -<:'o estritamente necessário", diz Plutarco -, embora fizessem
aprender de memória Homero e Hesíodo ou o poeta Tirteo.
Entre as jJóleis gregas, duas cidades ocuparam um papel-guia, histó- Tarnbém as mulheres, em Esparta, deviam robustecer o próprio cor-
rica e idealmente, dando vida a modelos políticos, sociais e culturais opos- po com a educação· física - "pm'a suportar bem a gravidez" e para de-
tos entre si e verdadeiramente el{emplares, alimentando depois durante senvolver os "nobres sentimentos da virtude e da glória", nota ainda
séculos e durante milênios o debate historiográfico, mas também cultu- Plutarco. Entrando em conflito com Atenas, na longa guerra elo Pelopo-
ral, já que vieram a representar as duas opções radicais- e radicalmente neso (451-404 a. C.), Esparta saiu enfraquecida e entrou em rápido
alternativas - do espírito grego; o que significa também de toda a histó- declínio. No século V, já outras cidades desenvolveram sua própúa
ria ocidental, reconsiderada nas suas origens. Esparta foi o· modelo de hegemonia sobre a Grécia, a partir de Àtenas. Esparta permaneceu fiel
Estado totalitário; Atenas, de democrático, e de uma democracia muito aos p1'óprios costumes e aos próprios ideais, que, porém, eram agora
avançada. Até seus ideais e modelos educativos se caracterizavam de ma- superados por uma nova civilização - baseada··no intercâmbio e na es-
neira oposta pela perspectiva militar de formação de cidadãos-guerrei- crita -, à qual Esparta tinha permanecido alheia. Reduzida a "medíocre
ros, homogêneos à ideologia de uma sociedade fechada e compacta, ou cidade do império romano", a formação elo guerreiro era agora uma atra-
por um tipo de formação cultural e aberta; q11~ valorizava o indivíduo e ção para os turistas que desejavam "ver o combate ele jovens junto ao
suas capacidades de construção do próprio mundo i,nterior e social. altar de Ártemis" (Mialaret & Via!).
Esparta e Atenas deram vida a dois ideais de· educação: um baseado no A ascensão de Atenas no mundo grego ocorre ;1través ela obra de Sólon
conformismo e· no estatismo, outro na concepção de paidéia, de formação que, em 594 a. C., estava na direção da cidade, enquanto nela fermen-
humana livre e nutrida de experiências diversas, sociais mas também cu!-·· tavam lutas sociais e. econômicas tendentes a limitar os poderes da m·isto-
turais e antropológicas. Os dois ideais, depois, alimentaram durante sé- cracia fundiária. Sólon deu a Atenas uma constituição de tipo democrá-
culos o debate pedagógico, sublinhando a riqueza e fecundidade ora de tico: libertou os camponeses; instituiu o tribunal do povo;·criou o Conselho
um, ora de outro modelo .. elos Quatrocentos (executivo) designado por sorteio pela Assembléia elo
Espárta é uma cidade que vive da agricultura, situada longe do mar, povo. Ainda sob a tirania de Pisfstrato e elo filho Hípias, em seguida sob a
fechada em si mesma e dividida rigidamente em classes (os cidadãos, os democracia ele Clístenes e durante a guerra contra os persas comandada
84 FRANCO CAMBI HISfÓRJA DA PEDAGOGIA H5

por Temístocles, até a vitória de Maratona (490 a. G.) e depois de Salamina grande importância espiritual, ligada ao crescimento da personalidade e
(480 a. C.), Atenas continuou a fazer crescer o comércio e a população e lnummidade do jovem. Estamo~ já no limiar da grande descobe1;ta
a exercer uma função-chave na Grécia inteira. Também a cultura, após educativa ateniense e. também de toda a cultura greg·a: a jJaidt!ia que, da
a adoção do alfabeto iônico, totalmente fonético- (em 403 ), que se tor- época .do~ sofistas em diante, tqrna-se a noção-base da tradição peda~cí-
nou comum a toda a Grécia, teve um esplêndido florescimento em todos gica antiga. '
os campos: da poesia ao teatro, da história à filosofia. No século V, Ate-
nas tinha cerca de 300 mil habitantes e exercia um influxo sobre toda a
Grécia: tinha neébsidade de uma burocracia culta, que conhecesse a es- 5 O NASCIMENTO DA PAIDÉIA
crita. Es.ta difundiu-se a todo o povo e os cidadãos livres adquiriram o
hábito de dedicar-se à oratória, à filosofia, à literatura, desprezando (e No curso dos séculos V-IV a. C., a cultura grega- caracterizada ago)·a
recusando) o trabalho manual e comercial. Todo o povo escrevia, como pelo papel hegemônico de Atenas- entra numa fase de crise e de traris-
atesta a prática do ostracismo; as mulheres também eram admitidas na formação, em paralelo com un1a profunda mudança ela sociedade em seu
cultura. Afirmou-se um ideal de formação mais culto e civil, ligado à elo- coi~unto. Novos grupos sociais, ligados ao comércio e de rique:.m recent~,
qüência e à beleza, desinteressado e universal, capaz de atingir os aspec- reclamam uma presença política e apontam para uma democraciu q~te
tos mais próprios e profundos da humanidade de .cada indivíduo e desti~ ütvoreça a troca de classes na gestão do poder. Ao lado dessa mohilidac,le
nado a educai· justamente este aspecto de humanidade (de hwnanitas, como social e dessa exigência de democracia, çlelin~ia-se tambéni uma cultu\·a
dirão Cícero e os latinos), que em particular a filosofia e as letras conse- mais crítica em relação ao saber religioso e mitopoiético e mais técnidJ-
guem nele fazer emergir e amadurecer. Assim, a educação assumia em científica, que exalta a dimensão livre e o livre exercício da razãu próprio
Atenas um papel-chave e complexo, tornava-se matéria de· debate, ten- de cada indivíduo e disposto a submeter à análise qualqUer crença, .qu:il-
dia a universalizar-se, superando os limites da pólis. Numa primeira fase,
qüer ideal, qualquer princípio da tradiçfto. Esse modelo de C.:ultma essett-
a educação era dada aos rapazes que freqüentavam a escola e a palestra,
cialmente democrática deu lugar àquele período do _"iluininis_mo ·gregk•
onde eram instruídos através da leitura, da escdta, da música e da edu-
que foi interpretado de maneira exemplar pelos sofistas. EsL~s ·eram ·me~­
caçft0 física, sob ;t direção de três instrutores: o grarmnatistes (mestre), o
tres de retcírica (e não mestres da verdade cumo os sapientes desde Tal~s
hitharistes (profes~or de música), o paidotribes (professor de gramática). O
até Demócrito, filósofos-cientistas, cosmólogos etc.) e de sojJh.ia (de sA-
rapaz !pais) era depois acompanhado por um escravo que o controlava e
l)iência técnica, ligada à técnica do discurso) que ensin:ivam mediante p:1t-
guiava: o paidagogos. Depois de aprender o alfàbeto e a escrita, usando
gamentu por quase toda a Grécia, dedicando-se aos grupos sociais ~mef­
tabuinhas de madeira cobertas de cera, liam-se, "versos ricos de ensi-
gentes e iniciando-os na technc da oratória, por meio de discll!:s,Js
namentos, narrativas, discursos, el~gios de homens famosos", depois "os
exemplares e argumentações erísticas (que punham em dilicukiade u ad-
poetas líricos" que eram cantados, como atesta Platão. Central era tam- . I
versá rio). Os sofistas, portanto, indicam uma dupla virada na 'cultura greg<l:
bém o cuidado do corpo, par4 torná-lo sadio, forte e belo,_ realizado nos I
uma atenção quas.e exclusiva para o homem e seus problemas, como tan)-
gyrnnasia. Aos 18 anos, o jovem era "efebo" (no auge da adolescência), ins- . . I
bém para. suas técnicas, a _partir do discurso; além da cultura tradicional,
crevia-se no próprio derno (ou circunscrição), com uma cerimônia entrava
naturalista e religiosa, cosmológica, que é submetida a uma dura crftic:;.
na vida de cidadão e depois prestava serviço militar por dois anos. • I
A posição mais exemplar entre os sofistas foi assumida por Protitgoras d~
A particularidade da educação ateniense é indicada pela idéia har-
~bclera (484-411 a. C.) e por Górgias de Lentini (484-376 '<t. C.): que su-
mônica de formação que inspira o processo educativo e o lugar que nela
blinharam o arnropologismo e o relativismo de todo saber - enquanto o
ocupa a cultura literária e musical, desp1'ovida de valor prático mas de
homem "é medida de todas as coisas" (Protágoras)- e as formas persua-
.;..

f:',, l' ..1·


•.I
.. : ., • :ú~\
-~\~:.1

"j~

BG FRANCO CAMBI HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 87

sivas do discurso, além de desenvolver uma crítica radical ao eleatismo e processo sempre renovado, a fim de atingir a virtude mais própria elo
à sua visão metafísica por ser impossível ao homem (Gótgias). homem, que é o "conhece-te a ti mesmo". Estamosjá no horizonte ela
"Nasce assim uma cultura diferente" em relação ao passado. Feita paidéia, daquele ideal de formação humana, da "formação de uma huma-
"de conhecimentos e de capacidades distintas da sapiência do sacerdote, nidade superior" nutrida de cultura e de civilização, que atribui ao ho-
da produçao teórica do cientista, das habilidades do técnico espec~alista" mem sobretudo uma identidade cultural e histórica. "Ela náo parte elo
e "entendida como a formação moral, retórico-lingüística, histórica do indivíduo, mas ela idéia. Acima do homem-rebanho, e. elo homem
homem político enquanto tal". E "a transmissão desta cultura" torna·-se pretensamente autônomo, está o homem como idéia", ou seja, "como
"a tarefa fundamental da atividade educativa" (Vegetti). De Úma educa- imagem universal e exemplar da espécie" (Jaeger) nutrida de história e
ção pública, re~irada da família e do santuário, que visa à formação do capaz de realizar os princípios da vida contemplativa (bios theoretikos). Esse
cidadão e das suas virtudes (persuasão e capacidade de liderança, sobre- humanismo (ou humanitas) ninguém o possui por natureza, ele é fruto
tudo). É uma educação que se liga à palavra e à escrita e tende à for- apenas da educação, e é o desafio máximo que alimenta todos os proces-
mação do homem como orador, marcado pelo princípio do kaloka$athos sos de fçm;nação.
(elo belo. e do bom) e que visa cultivar os aspectos mais próprios. do Se a noção de paidéia deve ser procurada já nas fases mais remotas ela
humano em cada indivíduo, elevando-o a uma condição de excelência, cultura grega, atingindo a cultura dos médicos, depois a elos td.gicos e
que todavia não se possui por natureza, mas se adquire pelo estudo ·e por fim a dos filósofos, é todavia na época dos sofistas e ele Sócrates que
pelo empenho. ela se afirma de modo orgânico e independente e assinala a passagem -
Mais ainda: essa complexa formaÇão (social, política, cultural e explícita- da educação para a pedagogia, ele uma dimensão pragmática
educativa) coloca em crise o éthos tradicional dapólis grega, que era· aris- da ecluc'!ção para uma dimensão teórica, que se delineia segundo as ca-
tocrático~religioso, transmitido pot meio do exemplo e dos processos de racterfstic<ts universais e necessárias da filosofia. Nasce a pedago.gia como
socialização e vivido como uma pJ;"ofunda - c também natural, imediata - saber·autônomo, sistemático, rigoroso; nasce o pensamento da educação
identidade socia.l. A pólis como organismo também eduçativo entra em como episteme, e não mais como éthos e. como jn-áxis apenas. A guinada
crise; a ela se contrapõe o indivíduo, o sujeito, qu.e vive uma profunda será det~rminante para a cultura ocidental, já que reelabora num nível
. desorientação e é levado a buscar uma nova identidade. Trata-se de fixar mais al~o e complexo os problemas da educação e os enfrenta fora de
modelos de homem, de cultura e de participação -na vida social bem dife- ·qualquer .localismo e determinismo ctiltur(ll e ambiental, num processo
rentes dos ·do pa·ssado, não mais sustentados pelos valores da pólis, .mas, de universaJidade racional; e porá em circulação aquela noç~tO de jJaidéia
aq mesm.o tempo, mais pessoais, mais individualmente escolhidos e que sustentou por milênios a reflexão educativa, reelaborand.o-se como
construídos, e mais universais, mais idôneos·para a formação do homem jJaidéia crÍstã, como paidéia humanística e depois como Bildunf:,:
enquanto tal; sem limite de .etnia, de casta, dt': cidadania: um homem de-
senvolvido de manejra mais geral e mais livre, inais•apto a reconhecei: e
realizar sua própria "livre uiliversalidade humana" ..: . . . 6 OS GRANDES MODELOS TEÓRICOS:
Se o~ sofistas exemplificam bem a guin"ada antropológica. da educação SÓCRATES, PLATÃO, !SÓCRATES, ARISTÓTELES
e de como.·ela se torna techne da formação humana (através da linguagem),
será Spcrates quem irá mostrar a draniaticidade e a universalidade de tal Entre Sócrates e Aristóteles, no breve arco de tempo que vê a filo-
processo, que envqlve o indivíduo ab imis e busca sua identidade pela: sofia afirma'"r-se como "ciência régia" (conexa com a metafísica, aéÜG\ e a
ativação de um daimon que traça seu caminho ~ pelo uso. da dialética qu~ lógica em particular) e que a vê organizar-se em amplos e complexos
pr.oduz a universalização do indivíduo pela discussão raCi~nal e pelo seu sistemas especulativos, oferecendo uma imagem completa e rigorosa elo
,,

~ '
.
:_.
·r.

88 FRANCO CAMBI HISTÓRIA DA PEDAGOGIA: 89

'
cosmo e dos problemas que o animam, mas também do homem e de suas o individual e universal. Estamos diante de um modelo de paidéi~
características éticas e cognitivas, a paidéia recebe um desenvolvirílenteo os mais lineares e densos, já que Sócra:tes bem reconhece o caráter
extremamente complexo, articulando-se numa série de modelos que re- soai da formação, seu processo carregado de tensões, sua tendência
fletem tanto a intensa problemática da noção quanto· as diversas perspec- · autodomínio e autodireção e o fato de ser uma tarefa contínua. A
tivas segundo as quais pode desenvolver-se. O pluralismo dos modelos edagogia da consciência individual" ol'ientada pela filosofia (típicà de
vem enfatizar o papel da paidéia e a riqueza da noção, confirmando-a Sóa-ates) qualifica-se como, taivez, o modelo mais móvel e ori~inal pro-
C()lllO o centro teórico da elaboração pedagógica da Antigüidade, que ··.duzido pela época clássica; características que, por milênios, to1~arão tal
terfi no seu centro a experiência grega, e no centro desta e:stá o período modelo paradigmático e capai de incidir em profundidade sobre toda a
dos séculos V e IV. Estamos diante da jfaidéia dos filósofos que, entre- · tradição pedagógica ocidental.
tanto, não elimina a dos médicos, como antes a dos trágicos, dando lugar · . Platão, o maior filósofo ateniense (427~347 a. C.), discípulo e herdeiro
a um leque bastante complexo e variado de modelos, os quais ·sublinham de Sócrates; elabora um grandioso sistema filosófico de base idealista (quJ
este aspecto de acmé atingido nos dois séculos da maturidade grega. coloca a prioridade da idéia em relação ao ser-experiência e, portanto, q
Com Sócrates (470-399 a. C.)- o filósofo ateniense que se torna mes· desenvolvimento de uma especulação que reco"nquiste a· pureza e a fun~
tre de todos, desinteressado e impelido por uma forte motivação ético· ção teleológica das idéias) e o desenvolve através de belíssimos textos fi~
antropológica, que libera as consciências com seu diálogo e que depois losóficos- os Diálogos- divididos em três fases (da juventude, da maturi-
universaliza e radicaliza seu pensamento, que nesta época de despertar in- · dade e da velhice), que retomam e reabrem os problemas metafísicos;_
terior e de liberação do indivíduo se choca com o poder político ereligioso éticm, políticos e lógico-gnoseológicos do idealismo platônico, levando-o
da pólis, até que esta o condena à morte por corromper as consciências e os a fprmulações cada vez mais críticas e mais profundas. .
jovens, sobretudo (condenação que o filósofo ;~ceita com absoluta. sereni- Pia tão fixa em seu· pensamento dois tipos de jJaidéia, uma - mais:
dade)-, estamos diante de uma paidéia como problematização e como pes- socrática-, ligada à formação da alma individual, outra -mais política -,[
quisa, que visa a um indivíduo em constante amadurecimento de si próprio, ligada aos papéis sociais dos indivíduos, distintos quànto às qualidades:
. . I
acolhendo em seu interior a voz do mestre e fazendo-se ·mestre de si mes- intrínsecas da sua natureza que os destinam a uma ou outra classe social[
mo. A formação humana é para Sócrates maiêutica (operação de trazer para e política. A formação da alma é teorizada, sobretudo, no Fédon, no Fedro,·
fora) e diálogo que se realiza por parte de um mestre (seja ele Sócrates ou e em O banquete (diálogos que estão na encruzilhada entre a juventude e',
um daimon interior), o qual desperta, levanta dúvidas, solicita pesquisa, _ a maturidade), e implica uma hierarquização entre as diversas almas!
(com:upiscível, irascível, 1:acional) sob o controle do auriga-razão (como i
I
dirige, problematiza etc. por meio do diálogo, que abre para a dialética (para
a unificação através da oposição, construindo uma unidade que tende ator- sublinha o mito da biga alada),. tendendo à pura contemplação das idéias.,
nm·-se cada vez mais rica). A ação educativa de SóCrates consiste em favo- Neste itinerário, a alma se eleva através da b.eleza (que parte dos corpos 1
recer tal diálogo e a sua radicalização, em solicitar um aprofundamento cada belos p<!ra chegar à beleza em si, à sua idéia) e assim se espiritualiza por
vez maior dos conceitos para chegar a uma formulação mais universal e inais · meio de uma ascese ao mesmo tempo ética e cognitiva, atribuída à
crítica; desse modo se realiza o" trazer para fora" da personalidade de cada dialética. Já neste primeiro modelo de formação, ligado à condição do
indivíduo que tem como objetivo o "conhece-te a ti mesmo" e a sua reali- homem "aprisionado na caverna" do corpo e da doxa (opinião), sublinha-
zação segundo o princípio da liberdade e da universalidade. se o forte acento individual e dramático da paidéia, cujo obj~tivo é o reco-
A jJaidéia de Sócrates é problemática e aberta; mas fixa o itinerário e nhecimento da espiritualidade da alma e da sua identidade contemplativa.
a estrutura do processo com as escolhas que o suj~ito deve realizar; con- : N'A RejJública e n'As leis, Platão desenvolve sua visão polftica da edu-
signa um modelo de formação dinâmico e dramático, mas ao mesmo cação e rearticula o modelo de fonnação em relação às diversas classes

1·o
f~i· •

o-~
'. 1
.~ ;0-i

90 FRANCO CAMBI HISTÓRJA DA PEDAGOGIA 91

sociais. A "cidade humorosa" (rica e desenvolvida) teorizada por Platão trução utópica, tal modelo pesou, sobretudo, na atribuiçf1o conferida à
vê presentes três classes sociais: os governantes, os guardiães e os produ- matemática e ll filosofia de um alto e fundamental valor formativo, que,
tores, aos quais correspondem tipos humanos e morais bastante dife- se não foi. o modelo dominante na escola antiga e mediev~~l. teve uma
rentes (áureos e racionais; argênteos e corajosos; férreos e ativos, produ- grande importância na tradição do platonismo e, depois, na organização
tivos, obedientes); são classes separadas que desenvolvem diferentes da escola moderna. A jJaidéict de Platão, herdeira de Sócrates, ele um
funções, das· quais a cidade necessita para ser realmente "hun;orosa" lado, e inserida num amplo projeto político, de outro, permanecerá na
(t11ifôsa.). Pela divisão do trabalho, delineiam-se. tronbém três tipos de edu- cultura ocidental como um modelo-máximo marcado por fortes impli-
cação: a dos produtores, que ocorre no local de trabalho como aprendic cações utópicas.
zado técnico; a dos guardiães-guerreiros (phjlakes-polerniiwi), destinada a O modelo alternativo/complementar ao platônico e que resultará do-
favorecer a formação da coragem e da moderação; a dos governantes- minante no mundo antigo foi, todavia, o de Isócrates (436-338 a. C.), de
filósofos, que é formação especulativa através da dialética. Na educação inspiração retórico-oratória e gramático-literária. Aluno dos sofistas, en-
dos guardiães, indivíduos escolhidos pelo seu valor e treinados em insti- trou em contato também com Sócrates, "dedicou-se à profissão de
tutos do Estado, Platão se refere à educação "musaica" (ginástica mais log·ógrafo, escritor ~e discursos pronunciados depois no tribunal pelos
poesia-música) ou uma "educação literária e mu~ic;ll" que exclua, porém, interessados" (Bowen) e fundou em Atenas uma escola de retórica. De
os discursos falsos (como as "fábulas" de deuses e heróis contadas por Isócrates nos restam diversas orações, políticas e forenses, que bem ca-
Homero), favoreça a nar·ração simples, sem imitação, e valorize as har- racterizam sua concepção de oratória, bem próxima à dos solistas. Na sua
monias sóbrias (de guerra e de oração) pela música. Quanto à ginástica, escola, a formação do orador durava quatro anos e compreendia o en-
ela implica simplicidade de vida e preparação para a guerra. Poesia e sino da dicção e do estilo, mas também uma "filosofia da vida prática",
ginástica dão vida a uma alma harmônica, "ao mesmo tempo tem perante elemento este que o distanciava dos sofistas e da su<) técnica de debate. O
e corajosa". Os guardiães são educados em comum, homens e mulheres, aprendizado da oratória ocorria falando e escrevendo sobre qualquer as-
vivendo depois em comunidade com os filhos. sunto e confrontando analiticamente os resultados com os princípios es-
Entre os guardiães, encaminhados depois ele efebos para o estudo tabelecidos pelo mestre. No seu manifesto peda'gógico- Contm os softslas,
das matemáticas, serão escolhidos aqueles que se revelarem mais aptos de 390 a. C. -, ele se opõe à elaboração de manuais para aprender orató-
para o estudo da dialética, que durará cinco ahos, mas podendo prolon- ria, a qual cresce em qualidade com o crescimento do homem inteiro, do
gar-se até os 35 de idade, dando aos futuros administradores e gover- seu conhecimento geral, e nf10 apenas das technai retóricas, do seu cm'áter.
nantes uma visão racional da realidade, guiada pela idéia do Bem, que é Em outro escrito -: Antidosis (Sobre o intercâmbio), de 354 a. C. - sublinha ·
"a fonte da luz intelectual", pensamento puro que deve guiar o governante que a retórica é uma m·te que depende de atitudes naturais, mas também
na sua ação, como reafirmará Platão também no Tirneu. Disciplinas como ela vontade e do empe·nho e que tende a acolhei- como fundamental tan-
a aritmética, a geometria, a estereometria,. a. astronomia e a harmonia to a formação do corpo (ginástica) como a da alma (filosofia), numa sín-
são preparatórias para a dialética, por habituarem a pensar em abstrato . tese orgânica e pessoal. Com Isócrates, outrossim, fixa-se a organização
e a direcionar-se para a unidade, se estudadas no seu aspecto teórico: do discurso em qti.atro partes (proêmio, narração, demonstraçfto, pero-
elevam a alma para os princípios e para a contemplaç~1o. A idéia de uma ração) conhecendo vastíssima fortuna.
sociedade perfeita, ordenada, na qual cada um faz só uma coisa, regu- A jJaidéia isocrática tem seu centro na palavra, é uma jla.idéia. do Lagos
lada pelo conhecimento puro dos filósofos é, na realidade, a de uma como ."palavra criadora de cultura", colocando o st~eito em posiçf10 de
soaiedade .aristocrático-consúvadora que se opõe - também no campo autonomia, mas seml)re como interlocutor da cidade. na qual e pela qual
educativo - a qualquer impulso de tipo democrático. Para além da cons- desenvolve uma subjetividade mais rica de humanidade. Assim, "a orga-
92 FRANCO CAMBI HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 911
.\

nização estética das palavras e das idéias torna-se uma filosofia, um ideal e ao seu :aprendizado). A sua jJaidéia é um pouco a· correção
que coloca, em toda a Antigüidade clássica, no vértice da educação, a cul- do grande e ousado modelo platônico, mas de maneira nenh~1~
tura oratória" (Mialaret & Via!), e o modelo formativo de Isócrates será refutaç_ão e um modelo alternativo. Entre os dois modelos hú
vitorioso no helenismo, chegando a Cícero .e a Quintiliano, e daí se irra- 'continuidade do que oposição ou diferença. Como salientou com
diará para o cristianismo, a Idade Média e até a Modernidade. ''l~t't:dsão Manacorda: "Platão propôs um quadro de vida política e cul-
Com Aristóteles (384-322 a. C.)- nascido em Estagira e formado na· que a Grécia e todo o mundo helenístico, incorporado primeiro no
Academia de Platão, deixou esta escola em 349 por causa de seus senti- éri,o de Alexandre e depois no de Roma; ignora):am, preferindo a .
mentos filomacedõnicos; foi depois pr.eceptqr de Alexandre na corte d~ o retórica; A.Jjstót,des tentou a última racionalização da socie-
Filipe II da Macedônia; voltando a Atenas em 334, fundou o Liceu, uma ~·ade ela pólis, que ·justame~te a ação de seu discípulo Alexandre devia
escola de formação científica e filosófica para a qual escreve suas obras Í~~iegar definitivamente ao quadro da história passada".
mais geniais e complexas, organizando uma verdadeira enciclopédia do 'J: ·. Elaborações ulteriores da jJaidéia tiveram lugar com a reflexão dos

saber que se abre com o Órganon (textos de lógica), articula-se na Mt!tafisica, e


_: rrtédicos e o Corpu.s hyjJpocraticurn ainda com as. posições de outras escolas,
na Física, na Alma, para chegar depois à Política, à Poética, à Ética etc. -, a p'ós-socráticas, cujo expoente no campo pedagógico foi Xenofonte; O:
pedagogia é reconfirmada, seguindo Platão, como disciplina formadora in odeio ele form~ção exaltado pelos médicos- a partir do mítico Hipócrates
da alma e como ação civil, ligada à cidade. Sob o primeiro aspecto, de- (século V a. C.) - está .ligado à dialética e à atividade ginástica, que deve 1

vemos considerar os tratados sobre a Alma e sobre a Ética, nos quais o conservar a saúde do corpo e a valorização de uma inteligência empírica
elemento intelectivo é posto no centro e no vértice da vida psíquica e, e experimental como instrumento de compreensão elos fenômenos: são:
portanto, também da vida moral: o homem deve realizar-se segundo sua aspectos que se opõem nitidamente ao Lagos metafísico e r-emetem mais ;
própria forma ou enteléquià, que é con~tituída pela vida conteniplativa, ao princípio da metis. A formação é um processo naturalista e empírico, que t
pela atividade do naus (intelecto); este é também o escopo final de todo se desenvolve através de crises e retomadas, que não tem em si nenhuma
processo de formação individual: realizar as virtudes dianoéticas (racio- divisão necessária, mas tem aspectos clraniáticos e uma radical precarie-
nais). Mas o homem é também homem social, inscrito numa sociedade ~ dade. Apaidéia é aqui um processo em q1.1e a intervenção do sttieito huma-
num Estado. Nesta vertente, é a Política que ilumina a_posiçfto aristotélica. no- do médico, do m.estre, além do doente ou do próp:rio. discente- pa- 1
A sua concepçfto do Estado não é utópica, mas r~alista: visa não à forma rece determinante e guiada por uma racionalidade sem necessidade.
perfeita, mas à forma melhor aqui e agora. O se~ Estado não é igualitá- Cm'n Xenofonte (4::)5-354 a. C.)- ele também seguidor de Sócrates, a
rio, distingue entre o povo e os nobres ou homens livres, os únicos dos quem retratou nos Ditos memoráveis de Sócrates -. considera-se a educação I

quais a educação se ocupa, já que só eles vivem "com razão no conforto espartana o modelo mais idôneo para fazer Atenas sair da cris~ que atra-
(scholé)". Eles devem ser educados "a viver no ócio" para atingir a virtude vessa: deve-se retornar a mna educação familiar tradicional, çom a mu-
ela sojJhia, que nasce do control-e do corpo e dos apetites, para passar lher ligada aos u·abalhos domésticos, com a valorização de uma inteligência '
depois à instrução, sete anos nas escolas estatais seg·uindo· quatro disci- apenas prática, com· centralidade na disciplina e nas atividades guerrei-
plinas (gramática, ginástica, múska~ desenho), qu,e servem como "prope- ras, opondo-se à identificação platôniCa da virtude com o conhecimento.
dêutica" para a filosofia. No conjunto, o modelo aristotélico não é muito Nas duas obras, Econômico e Ciropédia, Xenofonte teoriza um modelo de
distante do platônico, embora mais realista e pragmático: liga-se a uma formação u-adicional que não ~ra sequer aflorado no grande debate aberto
sociedade regularmente dividida em classes e exalta a virtude do ócio .em torno da noção de prtidéi.a como formação humana por meio de ativi-
(mesmo reconhecendo função e valor, mas inferior, às atividades profis- dades especificamente humana~. justamente as humanitates.

1\~-.
~. ~' '' ' <' .. '·-!'!
... "·! i•
..•.
t\1

9<! FRANCO CAMBI HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 95

7 O HELENISMO E A EDUCAÇÃO: AS TEORIAS EA PRÁXIS tante, procura a felicidade individual pela ascese. Entre Epicuro de Samos
(342-270 a. C.) e Zenão de Cítio (335-294 a. C.), com o epicurismo e o
O helenismo coincide com o período em que se desenvolve a hegemonia estoicismo se fixa como primária e central esta tarefa ético-antropoló-
da cultura grega no Mediterrâneo, em que se chega a. constituir uma ver- gica da filosofia e se indica na atara.xia (indiferença) ou na a.jJa.tia
dadeira e própria koiné grega (tup.a língua comum) e a afirmar um modelo (imperturbabilidade) a virtude mais própria do homem como sábio. Com
de cultura baseado na httmanitas; isto é, na valorização da humanidàde mais Pirro de Élida (365-275 a. C.) e o ceticismo coloca-se em crise também
própria do homem posta em exercício pela assimilação da cultura que exalta toda busca da verdade e se exalta a "stispensão do juízo" e aAfasia. Estamos
seu caráter de universalidade; mas se trata também de uma época em que diante de um novo clima filosófico e cultural: mais individualista, que
s.e delineia uma cultura cada vez mais científica, mais especializada, mais olha' o homem e o mundo com maior desencanto e com comportamen-
articulada em formas diferenciadas entre si tanto pelos objetos quanto pelos tos mais laicos, mas que se interroga com decisão sobre as "vias de sal-
métodos: é a época em que se desenvolve a ciência física em formas quase vação" do homem, reconhecendo-as apenas na r.eqüalificaçao interior.
experimentais, em que se delineiam a filosofia e a historiografia em for- E são temas que da filosofia em sentido estrito penetram no romance,
mas amadurecidas, em que cresce a astronomia tanto quanto. a geometria na poesia, na historiografia; são temas alimentados pelo despertar das
e a matemática, como também a botânica, a zoologia, a gramática, dando religiões de salvação (de Ísis a Mitra, aos mistérios, do hebraísmo ao
vida a uma enciclopédia bastante complexa do saber. Afém disso, o cristianismo, depois ao maniqueísmo). e que percorrem toda a longa e
helenismo é uma época que assiste a um claro declínio da p6lis e ao nasci- compleia época do helenismo: Esta se inícia com a morte de Alexandre
mento de monarquias territoriais burocráticas e, ao mesmo tempo, à afir~ Magno (323 a. C.) e chega, podemos dizer, até a morte de Augusto, até,
mação da individualidade típica de um sttieito que se sente e se reconhece talvez, a grande crise do século IV d. C., que assiste ao choque frontal e
sobretudo como homem e não mais comó cidadão. O helenismo é;portanto, definitivo entre cultura clássica e pensamento crist~to. Um papel decisivo
uma grande época da cultura antiga que chega à maturidade em torno dé nesta unificação espiritual do Mediterrâneo foi exercido por Roma, que,
o
uma crise (da relação entre indivíduo e o Estado) e de um crescimento conquistando o Oriente, foi por sua vez conquistada pela cultura grecn-
(ao mesmo tempo científico e humanístico') da cultura, a qual vem se mo- helenística e a difundiu amplamente por todo o império. Tal cultura
delando segundo a tr:adição grega, de modo que esta se torna patrimônio levava à maturidade a rica tradição da Grécia, desenvolvida em todas as
comum do Mediterrâneo e momento de unific·aç·ão e de maturação de toda suas articulações, construída em formas grandiosas em todos os setores
a civilização antiga. (da arquitetúra à poesia, à filosofia e às ciências), marcada agora de um
Nesta época, ao lado de Atenas, que perde s~a hegemonia já a partir forte individualismo apolítico e orientado para o. "cuidado de si" que
de 404 com a conquista mac~dônica, desenvolvem-se outros centros de implica uma rica elaboração de "exercícios espirituais" ·capazes de favo-
cultura: Rodes, Pérgamo, Alexandria; Alexandria, em particular·- fun- recer a ascese. Se "o homem clássico não acreditava poder viver fora da
dada por Alexandre Magno em 932 a. C. no Egito -, com a biblioteca e o jJólis e ela respectiva estrutura social, o homem helenístico quer demons-
museu, afirma-se como o centro de toda i\ cultura helenística, literária, trar, ao contrário, que o homem pode bastar a si mesmo como indiví-
filosófica e científica. No campo. filosófico, depois dos grandes sistemas duo, pode ser totalmente auto-suficiente"; "é o homem que se conven-
metafísicos, científicos e políticos de Platão e Aristóteles, delineia-se um ceu profundamente de que o verdadeiro bem e o verdadeiro mal não
novo período que el<i.bora um pensamento de fundamento antropoló- derivam das coi,sas mas unicamente da opinião que ele forma das coi-
gico dividido em lógica, física .e ética, mas mais ligado aos problemas da sas"; assim, "a justa avaliação das coisas nos torna invulneráveis" (Reale) .
.ética e da büsca da "vida boa" que é indicada na figura do "sábio": aque- A idéia de Alexandre de uma ecuntene grega realizou-se, portanto, com
le que limita suas próprias necessidades, pr<;\.tica uma· rneditação cons~ Roma, mas mantendo no centro a cultura grega, do modo como vinha se
96 FRANCO CAMBI Hl5rÓRIA DA PEDAGOGIA 97

definindo e se organizando sobretudo em Alexandria: como cultura cien- direta e estreitamente à formação moral, a qual encontra seu próprio
tífica e como cultura da humanitas. De um lado, estavam a erudição e a vértice no "cuidado de si".
. . .
especialização, o aparato organizativo verdadeiramente grandioso e tec- Çom Lucian,o, estamos já no século II (120-180) e se fixa uma crítica ao
nicamente articulado, a presença de doutos de cada disciplina e a estru- g)'mnasion e à oratória: os dois modelos/instrumentos formativos da escoÚt
tura da Biblioteca realmente universal e completa de todo o patrimônio helenística. A sátira de Luciano .é cor.tml.te e;· tanto emAnacarsi ou dos giná-
antigo marcando a cultura alexandrina, com o seu filologismo, seu refi- sios como em O mestre dos oradores, toca nos pontos salientes de uma práxijs
\
namento, seu formalismo também; de outro, estava a forte consciência educativa formalista e corruptora, porquanto insincera e impositiva. .
ética que atravessava tal cultura dando-lhe uma conotação profundamente . Com Plutarco de Queronéia (50-120), estamos numa fase anterimj.
pedagógica, da qual a enkyklios paidéia será o produto mais maduro, tal em que é central a formação do caráter segundo o modelo helenístico d~
como se apresenta nas anotações de um Luciano ou de um Plutarco e equilíbrio e de racionalidade, de autodomínio e de brandura. Em toda~
como se vem realizando na escola helenística. Como revelou Marrou, "a as obras de Plutarco - desde as Obras morais até as Vidas PÇLralelas e o
partir da geração que vem depois de Aristóteles e de Alexandre Magno, texto, que· é pseudop'lutárq~ico, Sobre a. educação das crianças - circula ~
a educação antiga tornou-se realinente ela mesma": atingiti "sua fotma i.nodelo da formação do caráter que faz convergir de modo harmônico
Clássica", unindo o aspecto "eminentemente moral" com características ''natureza", "discurso", "hábito", que valoriza a obra do mestre (que acon~
"mais livrescas" e "escolares"; difunde-se "em toda a parte· oriental do selha e orienta), que sublinha o papel do meio na educação e, por fim, o
mundo mediterrâneo" e prolonga-se depois até Roma e por fim até objetivo ético-filosófico deste processo .. O Pseudo-Plutarco1 sobretudo;
Bizâncio, que acolhem "a tradição clássica à qual a civilização helenística sublinha que "a educação das crianças" é considerada unia ."tarefa da
.
conferiu a sua Forma, e da qual a educação helenística representa
.
a sín- máxima importância" e que o. seu '"resultado é a excelência n~m-al".
tese. e quase o símbolo". Aqui, a paidéia é entendida como construção de Sexto Empírico (entre os séculos II e III) escreve duas obras: Contra o~
"u_m espírito plenamente desenvolvido", como é indicada· na noção de dogmáticos e Contra os docentes, os quais são criticados segundo as perspeci
humanitas, que é o princípio animador da formação helenística, inspirada ·tivas do ceticismo, que favor~ce, exclusivamente, o conhecimento senso~
em valores universais que distingue "o homem do bruto, o heleno do bár- rial. Portanto, os :"dogmáticos". (os lógicos, os metafísicos etc.) erram ao
1

bài·o". A formação visa a um "homem completo", moralmente desenvol- partir .de princípios
.
especulativos, ao passo que . os docentes são comple"I
vido, que não seja só um técnico, mas justamente um homem, nutrido de tamerite inúteis e corruptores, já que se desviam do conhecimento sen-
cultura antes de tudo literária e hábil no uso da palavra, consciente da sível. Mas é talvez com Platina (203-270) que a formação como ascese e
tradiç~o e que se faz "pessoa", sujeito dotado de caráter. passagem da bel~za ao Uno, segundo um processo quase místico, vem a
Tais princípios ideais encontram uma elaboração precisa tanto nos delinear-~e. como um itinerário educativo espiritual, de caráter ético-reli-i
teóricos da pedagogia helenística quanto na escola do helenismo. Mesmo gioso. Nas Eriéadas fixa-se a ascensão da alma até a idéia e a unidade,
sem apresentar autores com modelos comparáveis em riqueza e articula- seguingo o percurso do Platão socrático e o valor religioso desta ascen-
ção aos do período Clássico, a pedagogia helenística encontrou no âmbito são, a qual não é apenas in.terior e ética, mas também metafísica: vínculo
grego algumas vozes representativas: o comediógrafo Luciano, o mora- com aquele Uno qúe constitui. o pdncípio animador e a regra de todo o
lista Plutarco, depois, num período sucessivo, o filósofo Sexto Empírico e real, o seu centro-motor e o seu ponto de aspiração.' Nesse itinerário, é
Plotino, que dão voz àquela desorientação espiritual do homem helenístico atribuído à beleza um papel de unificação e de sublimação educativainente
e o fazem confiar, depois· que "desmoronaram os muros de sua cidade" e bastante significativo.'.
"os deuses os abandonaram", apenas em si mesmo, procurando em si : No centro do itinerário pedagógico helenístico coloca-se a formação
I
próprio salvação e "realização" (Marrou). E são pedagogias que se ligam ética e do caráter, que se realiza como "cuidadó de si", como autocontrole,

~~-·· ,..
..,

98 FRANCO CA!v!BI HISTÓRIA DA ·PEDAGOGIA 99

direção ele si, desenvolvimento auto-regulado, por Uma dosagem harmô- escola pitagórica, a iniciaçf\0 se faz por graus e a vinculação ao secreto se
nica de prazeres e 1'enúncias e de um "exercício espiritual" que visa à dá pelas noções aprendidas, vive-se como numa instituição cultural de
criação de um habitus interior que marque de maneira constante a perso- caráter sacerdotal-religioso.
nalidade do sttieito e a disponha a controlar os eventos, de modo que Características mais laicas terão as escolas de Mileto ou de Eléia, com
não venham perturbar os processos de equilíbrio interior. Como bem Tales e com Parmênides, mas só com os sofistas é que se cheg·ará a um
salientou Foucault em O cuidado de si, todos os problemas da ~ida, at~ ensino no sentido moderno, como transmissão ele um saber técnico atra-
mesmo os da sexualidade, devem fazer parte de um "cosmo" espiritual vés ele um itinerário de aprendizagem provado e programado, pelo qual
individual ordenado e harmônico, do qual o próprio sujeito é o ordenador o docente é pago, sendo reconhecido como um técnico que oferece no
e o fiador. mercado seu próprio produto. As escolas elos sofistas são itinerantes, mas
abarrotadas, voltadas para a formação do orador. Entretanto, com o nas-
cimento elo alfabeto e ela escrita vem se delineando "a carreira educativa
8 A ESCOLA GREGA E A ESCOLA HELENÍSTICA da criança grega", que começa na família e continua na escola. Em casa,
são a ama e a mãe que acompanham o menino, depois é o pedagogo
Na escola do helenismo, com o conceito de enhyldios jJO.idéia, "baseado (com o pai) que ensina o que é bom e o que é justo, que repreende,
na disciplina intelectual resultante do estudo analítico da palavra escrita" ameaça, castiga. Na escola, são os mestres que ensinam o alfabeto, depois
e destinado <Í sublinhar a função formativa antropológico-ética da cultu- os poetas, a música e a ginástica. O alfabeto se aprende dizendo em voz
ra, o modelo dajJaidéia helenística na forma salientada por Marrou (como alta as letras, depois escrevendo-as, compondo-as em sílabas e articulan-
formação lingüístico-literária e como formação do caráter) também é cen- do enfim as palavras. O ensino "musaico~· tende à formação do discurso,
tral. Mas a escola helenística é apenas a última etapa da evolução da da ora.tio (ao lado da ratio e da operatio) e segue itinerários que culminam
escola na Grécia, que inicia seu caminho já desde os tempos pré-sofísticos num exame. Também nas oficinas artesanais se ensina através ela imi-
e se manifesta cada vez mais como uma instituição central em toda a tação e da observação, mas com uma dura disciplina exercida com o "chi-·
cultura grega, enquanto desenvolve seus aspectos científicos e aqueles cote de boi" ou a "cinta de couro", presentes na mesma escola.
que são comuns à transmissão e à síntese pessoal da cultura. Afirma-se como escola estatal na jJólis (pense-se em Esparta e em Ate-
No início,· encontramos escolas como seitas culturais e religiosas - o nas), onde se quer que "todos os filhos dos cidadãos aprendam as letras",
t.hywos -, presentes sobretudo na Jônia, que acolhem homens ou mulhe- enquanto o Estado "provê aos salários elos mestres" (os quais têm, po-
res ligados por uma mesma atividade ou por uma idéia religiosa comum; rém, exíguo prestígio social e provêm em geral de famílias arruinadas) e
aqui se criam vínculos fortes em nível pessoal e se elabora uma cultura dá uma educação "única e igual para todos", "pública", como atestam as
em comum, educando-se em valores coletivos e comunitários. O thyasos "inscrições encontradas em grande número em várias cidades, de Atenas
ele Lesbos, onde operou a poetisa Safo, ou o da escola pitagórica- assim a Esp<\rta, a Mileto, ele Pérgamo a Rodes, a Lampsaco, a Halicarnasso etc.",
chamada porque fundada por Pitágox:as de Crotona (século VI ·a .. C.) - aberta aos "livres" e às mulheres, mas também aos escravos. A forma tí-
são exeri1plares para fazer compreender que tipo de comunidade eram: pica da escola grega nesta época é o ginásio, "centro de cultura física e
C<.ml fortes VÍnculos de grupo, práticas iniciáticas, um saber de tipo intelectuai" e centro "da ~ida citadina", que acolhe como "matérias" as
esotérico e aspectos de seita religiosa. "A escola pitagórica era uma seita vârias especializações olímpicas, porém, ao lado ele "exercícios musaicos".
religiosa, uma espécie de 'mistério'" com seus mitos, órficos de purifica- Entretanto, vão sendo criadas também novas instituições. educativo-cul-
a
ção, suas regras de vida e seu saber 'sagrado: matemática. o número é o turais, como as estolas de alta cultura filosófica que são centros ele cultu-
fundamento do cosmo e está na base da harmonia do mi.mdo (Preti). Na ra superior, como a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles.
100 FRANCO CAMBI HisrÓIUA DA PEDAGOGIA 101,

A Academia, fundada em Atenas em 387 a. C., era tanto um centro , freqüentado por jovens de todo o mundo grego. Ao lado dele
de formação cultural como uma escola de formação política, que seguia cava a biblioteca, que rec~lhia todas as obras da Antigüidade, autentica-
ainda o modelo pitagórico de iniciação e de escolha dqs excelentes (aristoi), e registrava~as, desenvolvendo a filologia, a gramática e a críti~a:
mas organizava um curso de estudos qtie culminava na matemáti{;a e ·na Sobre seu modelo, surgiram outras bibliotecas em Pérgamo,
dialética, dando espaço também às matérias científicas (da medicina à e Rodes. Mas o museu deu também o máximo desenvolvimen-
astronomia). Depois de Platão, a Academia se desenvolveu num sentido . to à·ciência, a partir da astronomia, seguida da medicina, da geografia,·
mais científico que metafísico, acompanhado porém de um forte ca1;áter .·anatomia etc .. Com o modelo alexandrino, "a condição do homem ele
hermético. O Liceu, fundado em 334 a. C. em Atenas por Aristóteles, . ciência assumiu, naquele período, uma fisionomia nova, muito diferente.
pretendi;;l por Sl.la vez ensinar uma enciclopédia do saber, tendo como -,~da que· tinha durante o períod·o grego": este tornou-se um "estudioso
centro a física e a metafísica, além da lógica, e da ética. Depois de dedicado unicamente ao trabalho científico", negligenciando a filosofia e
A.l·istóteles, prevaleceu cada vez mais o aspecto científico, já com o her- a retórica. O objeto da ciência se restringe e se espeCializa: versa sobre "a
deiro direto Teofrasto (século IV a. C.), que desenvolve também os es- 0bservação da natureza" ou sobre a "ciência dos números" .(Dumas).
tudos de psicologia e uma orientação filosófica materialista.
Chega-se assim à época helenística, em que se organiza mais minu-
ciosamente o sistema de estudos, do nível elementar aó superior, em AS ORIGENS DA PEDAGOGIA OCIDENTAL
torno do modelo da enkyklios jJaidéia, passando pela escola d.e gramática e
pela escola de efebo. A escola elementar "permaneceu inaltera~a no cur- A complexa aventura da educação na Grécia assinalou uma fase de
. so dos séculos" e compreendia "leitura e escrita, gramática, 1~úsica, de~ maturação e de decantação da tradição ocidental: um momento de 'vira- •
senho" (Bowen); nela se iniciava aos sete anos de idade. Na escola secün- volta e de aquisição de características que permanecerão indeléveis, re-
dária - ct~o início se dave1 aos doze anos -:-• a gramática era colocada no velando como - também neste campo, como já o dissemos - a experiên-
centro e o docente (gramrnatihos) a ensinava ditando regras e preparando .cia grega talvez constitua amatriz fundamental de uma identidade cultural
exercícios; depois eram dados algÚns princípios da retórica e ·da lógica, .complexa relativa aos problemas da eç!ucação/formação. Estamo.s diante
aplicados aos estudos da literatura. "Examinavam-s.e trechos escolhidos da experiência que fixa teorias e modelos de educar, ora mais históricos e
palavra por palavra, precisando sua classificação,~ etimologia, flexão, uso pragmáticos ora mais teóricos e universais, mas que constituíram durante
literário, referências clássicas, explicações de formas raras"; depois "acom- milênios pontos de referência dos debates e das elaborações em matéria
panhava-se a prática da composição ou minzesis" compondo orações se- educativa; cria uma linguagem para a pedagogia/educação e a provê .de
gundo os modelos literários. Um espaço central era atribuído também à termos técnicos (a começar de paidéia);funda instituições que deixai-ão it
matemática, seguindo os Elementos de Euclides. Depois, passa-se ~t ephebeia, marca em toda a tradição educativa ocidental (co~1~as esco_l_a1__de_Jp;anl_ú:pb,y-(l-;.
1
período de "dois ou três anos em que não se fazia mais preparação mili- · tica e de_ retórica, q}le são o l'§:'~t~n.~?~Iq'; de alguns métodos -da própria fY'J~:.;_
tar, mas se formava o caráter, atividade. desenvolvida no gyrnnasion e cttio ·escola moderna: por exemplo, o liceu); chega a constituir uma tradição.
centro era a palestra descoberta, com seus banhos quentes e frios, com as de modelos, léxicos·, instituições, e ainda autores, textos, experiências,
suas exedras para a discussão, de tal modo que se tornava também um na qual ainda hoje os problemas educativos são colocados, para um con-
centro de intercâmbio cultural. A formação superior-científica encontrava, tínuo acerto de contas.
por sua vez, seu próprio modelo nas escolas filosóficas, sobretudo nas de Existem, porém, três aspectos que pesaram de modo muito particular
Alexandria. O museu (ou casa das musas) foi ao mesmo tempo um gran- . sobi·e a tradiç~o ~ducativa ocidental e que são: I. a noção ele paidéia, que
de centro cultural e "o instituto máximo de instrução do mundo hele- universalizou e toi·nou socialmente mais independente e finalizado para

------- -- -----·-
:,•-.

102 FMNCO CAMBI

o sttieito-pessoa o processo de formação, entendidq· como um formar-se


universalizando-se e desenvolvendo ·a própri~humaiút~or meio ele um
e
comércio estreito, constante e pessoal com a 'ã.!rt\.il-a sua história; 2. a
pedagogia como teoria, tornada autônoma por referentes históricos con-
tingentes e destinada a universalizar e tornar rigoroso (no sentido' racio- CAPÍTULO IV

nal) o tratado dos problemas educativos: nasce um saber da educ~ção no


ROMA EA EDUCAÇÃO
sentido próprio, com todos os riscos de abstração, de teorismo, de norma-
tivismo que isto comporta; 3. a problematização da relação educativa, que
supera o nexo pedagogo-pais e docente-discente, relaÇão autoritária e
formalista, abstrata e geralmente impessoal, para, ao contrário, delinear
essa relação como eminentemente espiritual, quase um segundo nasci-
mento, que faz do "mestre" o interlocutor fundamental de um processo
de formação, enquanto o torna íntimo e envolvido em primeira pesso'a
nesse processo, como foi su~linhado por Sócrates; retomado por Platão e
recolocado no centro das escolas filosóficas helenísticas que vêem no "·sá-
bio" um mestre de vida e, portanto, um educador dotado de excepcional
carisma e de uma exemplaridade que induz à imitação. São todos esses
aspectos que colocam a experiência grega no acmé da cultura pedagógica A ROMA ARCAICA ENTRE ETRUSCOS
antiga e que evidenciam bem o papel de insp~ãdora que por tãO' longo E MAGNA GRÉCIA: MODELOS EDUCATIVOS
tempo ela assumirá dentro do Ocidente -romano, depois cristão e medie-
val, e por fim também moderno. Não é por acaso, de fato, que - também Comprimida entre duas realidades sociopolíticas .e culturais bastante
no campo educativo -a "idade nova" entre os séculos XV e XVI se realize diversas entre si, mas ambas difusas, orgânicas e poderosas, como a etrusca
pela reconquista e assimilação da tradição dos clássicos antigos, sobretu- (ao norte) e a da Magna Grécia (ao sul), Roma- embora mantendo com
a
do gregos, começar por Platão. as duas fronteiras relações bastante estreitas e dinâmicas - veio elabo-
rando um modelo próprio de civilizaçf10, de economia, de Estado e de
cultura, com características originais e dotado de grande capacidade ex-
pansiva. s·e o mundo etrusco era um mundo culturalmente refinado (pen-
se-se nas artes, da pintura à escultura, na ourivesaria), marcado por um
profundo sentido da viela (os banquetes e o amor são temas recorrentes
nas pinturas de vasos e outras) e por um igualmente profundo sentido
ela morte (pense-se nos cuidados dedicados às suas "cidades. elos mor-
'·\·"'
tos", que sobreviveram a milênios), como também por uma religiosidade
arcaica, feita ela leitura dos signos celestes (por parte dos adivinhos ou
videntes), e por uma organização política centrada sobre os sacerdotes-
reis, o mundo. grego, ao contráriO, era um mundo em viva expansão e
forte transformação, carregado ele tensões sociais e culturais, aberto a
f
I

Você também pode gostar