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APOSTILA
GRÉCIA ANTIGA
UNIDADE I
Civilizações Egeias ou Período Palaciano.
QUADRO 1 – 2º milênio:
CRETA
Diferença relativamente ao Egito e Mesopotâmia: classe dominante são os comerciantes e sua visão
aristocrática do mundo reflete sobre as produções artísticas originais: naturalismo, temas frugais,
certa liberdade estética; relação com o mar.
Acentuada urbanização, com modelo urbano original (Gournia, Haghia Triada, Malia).
Ausência de belicismo acentuado (diferentemente dos aqueus, em que o componente bélico é
pronunciado).
Modelo de vida hedonista (HATZFELD História da Grécia p. 21).
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE HISTÓRIA
DISCIPLINA: História da Antiguidade Ocidental
PROFESSOR: Fábio Vergara Cerqueira
CIVILIZAÇÃO MICÊNICA
Desenvolve-se sobre uma forma de relação e de fusão entre o elemento recém-chegado (indo-
europeu) e o já estabelecido (egeu). A mitologia guarda a lembrança dessa fusão no casamento entre
Zeus (indo-europeu) e Hera (peloponésica).
Desta relação, surge a complexidade particular (caráter misto) da chamada civilização micênica
(FINLEY O mundo de Ulisses p. 14-5)
Funda-se numa relação entre as tradições locais herdadas dos desenvolvimentos autóctones que
remontam ao terceiro milênio, que caracterizavam os povos chamados de “mínios” ou “pelasgos”, a
assimilação do elemento cretense (artes, escrita, modelo político-administrativo palaciano) e a
afirmação do elemento indo-europeu (belicismo, arquitetura, fortificações, polaridade social indo-
europeia entre a comunidade aldeã e a ordem guerreira).
2. POLARIDADE SOCIAL: 2 mundos e seus diversos níveis (segundo PALMER, oposição tipicamente
indo-europeia).
PALÁCIO (sociedade guerreira) Comunidade aldeã
Centro administrativo; concentração de riquezas. Economia rural aldeã autônoma.
PODER: PODER:
ANÁX (Linear B: WA-NA-KA): BASILEUS ((Linear B: BA-SI-REU):
Poder e soberania sobre todos domínios. Senhor dono do domínio rural.
Sustentado sobre classe sacerdotal. Vassalo do ánax.
Fiscal de tributação.
LA-WA-GE-TAS (Linear B): GEROUSIA ((Linear B: KE-RO-SIJA): Conselho
Chefe do LAOS (povo em armas) de Anciãos.
Chefe de unidades militares. Assembleia com chefes de famílias mais
Media relação entre rei e poderes locais. influentes.
SOCIEDADE: SOCIEDADE
Anáx Basileus
Telestai (barões) Gerontes (“anciãos”)
Kakoi (desclassificados que vivem ao redor da Damos (“povo”)
fortificação).
SISTEMA FUNDIÁRIO SISTEMA FUNDIÁRIOS
Propriedade real Damos – possui KE-KE-ME-NA KO-TO-NA
Temenos Gerontes – possuem KI-TI-ME-NA KO-TO-
Ambos constituem KI-TI-ME-NA KO-TO-NA NA
Público: “Num mundo em que a escrita viera a desaparecer, (os poetas-cantores) faziam-no para nobres que,
muito embora igualmente iletrados, não deixavam por isso de ser os detentores do poder e da riqueza”. (MOSSÉ
Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo p. 21)
Assim, há um engajamento social do aedos na estrutura de poder aristocrático. Conforme Detienne (Os
Mestres da Verdade), o bardo estava a serviço de guerreiros e reis, celebrava os imortais e as façanhas dos homens
corajosos, determinava o valor do guerreiro, concedendo-lhe memória e tirando-lhe do esquecimento. Constróem
para este público, a realidade passada, para assim subsidiar a dominação vigente e a moral correspondente.
Percepção da veracidade do canto do poeta: O mito era considerado histórico no contexto do pensamento arcaico e
no universo do pensamento mítico.
A atuação do bardo é eficiente dentro da estrutura de pensamento arcaico marcada pela oralidade e
veracidade do mito, contexto em que devemos inserir Homero. FINLEY chama a atenção sobre o caráter sócio-
histórico da produção literária homérica:
Homero não era precisamente um poeta, era um contador de mito e de lendas. A elaboração de
uma mitologia tinha começado muito mais cedo entre os gregos e, onde quer que os houvesse,
sempre prosseguira oralmente e de modo solene. Tratava-se de uma atividade ao nível social
mais elevado, e não do devaneio fortuito de um poeta ou do excesso de imaginação de um
camponês. O tema essencial do mito era a ação e não as ideias, as convicções ou as
representações simbólicas; mas os acontecimentos, os fatos – guerras, dilúvios, aventuras em
terra, mar e ar, querelas familiares, nascimentos, casamentos e mortes. Escutando as narrativas,
nos rituais, nas cerimônias dos concursos, ou noutras ocasiões sociais, passava-se pela
experiência de outrem. Acreditavam implicitamente na narrativa.
Conforme o filósofo Ernst CASSIRER, “a imaginação mítica implica sempre um ato de crença. Sem a
crença na realidade dos objetos, o mito perderia a razão de ser.” Pierre GRIMAL nos lembra que “os
acontecimentos (tirados) da lenda histórica (contados pelos poetas épicos) têm para nós um caráter lendário, mas
para os gregos eram história.” (A tragédia antiga p. 45)
O pensamento arcaico: Marcel Detienne, em Os Mestres da Verdade, aborda esse tema. A palavra do aedos
(poeta-cantor) era legitimada como verdade enquanto uma palavra cantada inspirada pelas Musas.
Encontrava-se, portanto, ancorada na ordem do divino – o aedos diz, então, a verdade. Assim, a palavra
poética (mítica) é aletheia (verdade). É por isso que, como lembra FINLEY, “os poemas, tais como eram
recitados, constituíam simultaneamente a verdade autêntica e a evidência para a sua própria verdade.” A
palavra, no pensamento arcaico, situa-se antes da palavra filosófica, antes da ruptura entre logos e mythos que
se processaria posteriormente pelos pré-socráticos (séc. VI e V a.C.).
No pensamento arcaico, a palavra (mythos) é a realidade (vista como a diversidade do mundo aparente); no
pensamento filosófico (logos) a realidade é a unidade não aparente que fundamenta a diversidade do mundo
sensível (aquele percebido pelos sentidos). A palavra arcaica, mítica, do mundo homérico, é ação e verdade: é
justiça, é mântica (advinhação), é poder. Está sempre acompanhada da persuasão (peithó), confiança (pistés) e
sedução (cháris).
Universo do pensamento mítico: No mundo do mito, o que entendemos como memória ‘histórica’ é dado pelo
mito.
O antropólogo, quando lhe é dado estudar ‘um mito vivo’ e não ‘mumificado, não considerado
no repertório indestrutível e sem vida das religiões mortas’, descobre que o mito ‘não é na sua
natureza uma ficção ...mas uma realidade viva, que se crê ter acontecido outrora’. (Malinowiski)
(...) o azedume de Xenófanes no século VI e de Platão no IV mostram precisamente que, no que
respeita ao mito, um grande número dos seus concidadãos partilhava a maneira de ser dos
Trobriandeses (de Malinowiski), ou pelo menos estava mais próximo desta do que das
interpretações simbolistas. O próprio Platão não duvida da veracidade da história em Homero;
recusava nela a filosofia e a moral, as concepções de justiça, dos deuses, do bem e do mal, mas
aceitava a história de Tróia. (...) A recusa radical do mito tradicional, tal como se encontra em
Xenófanes, poucos gregos a alcançaram.
(FINLEY O mundo de Ulisses p. 20)
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PROFESSOR: Fábio Vergara Cerqueira
2. Homero, o best seller: o mais lido do mundo antigo. Sua influência cultural sobre o mundo grego.
É preciso ter entendido o conteúdo de verdade do mito no pensamento arcaico, para entender a importância dos
dois grandes poemas épicos homéricos. Podemos averiguar, por métodos quantitativos, o quanto os gregos
conferiam importância à obra homérica. O primeiro dado a ser considerado é a própria sobrevivência das letras:
As obras de Homero, Platão e Euclides eram escritas à mão sobre rolos, feitos geralmente de
caule de papiro. Destes originais, foram feitas cópias, sempre à mão, sobre papiros e mais tarde
sobre pergaminhos. Nenhum destes materiais era indestrutível. O que sobreviveu foi, além de
exceções acidentais, o que tinha sido julgado digno de ser copiado e recopiado durante séculos
de história grega [e posteriormente cristã e muçulmana].
(FINLEY Mundo de Ulisses p. 17-8)
Os papiros gregos encontrados na biblioteca de Oxirrhynchos, cidade grega no Egito romano (séc. II
d.C.), atestam a importância de Homero:
Do conjunto dos papiros encontrados no Egito (...) conta-se com um total de 1233 obras cujos
autores são identificados. Esta cifra corresponde ao total de cópias e não de títulos. Quase
metade – precisamente 555 – destes 1233 volumes eram cópias da Ilíada e da Odisséia ou
comentários acerca delas. A Ilíada ultrapassa a Odisseia em 380 contra 113. O autor mais
‘popular’ após Homero era o orador Demóstenes, com 74 papiros, Eurípides com 55 (...)
Hesíodo com 40 (...). Certamente, são cópias estabelecidas pelos Gregos do Egito após o
reinado de Alexandre, mas tudo indica que possam ser consideradas como absolutamente típicas
do conjunto do mundo grego. Se um grego possui alguns livros – quer dizer, rolos de papiros –
havia uma possibilidade em duas de que se tratasse da Ilíada e da Odisseia, no conjunto de toda
a literatura grega.
(FINLEY Mundo de Ulisses p. 19)
O aspecto quantitativo aponta para a importância sobre a cultura grega em geral, sobretudo sobre a
paideia (a formação do espírito). Platão, criticando, afirmava, na obra A República, que muitos gregos
acreditavam que Homero educara a Hélade – e que uma pessoa deveria regular toda a sua conduta seguindo o
poeta. Nenhuma obra escrita teve um impacto tão grande sobre a história de uma nação, equiparando-se somente
à Bíblia.
3. Registro do imaginário grego: Deve-se levar em conta o processo de criação literária e o papel na educação.
Um dos aspectos principais, reflexo da cosmovisão grega, é o antropomorfismo divino nos poemas. Nunca
antes ou depois os deuses foram tão iguais aos homens. Esse aspecto está na base da “revolução intelectual” que
ocorreu na Grécia. Os deuses homéricos sendo feitos à imagem do homem, está assim colocado o fundamento da
invenção grega, a política, a filosofia, a história, a ciência. No fundo, uma profunda afirmação do princípio de
vida leva o grego a inventar o homem, no sentido do humanismo, face à prevalência da religião e do autocratismo
antigo-oriental: nesse contexto, o grego compreende o indivíduo como sujeito ativo da sociedade política e
jurídica; afirmam-se os direitos do cidadão contra a usurpação política oligárquica; o homem afirma-se como
capaz de entender a natureza e sua história não com base na inspiração divina, mas com base no logos, na
capacidade racional. A semente de tudo isso está colocada no antropomorfismo divino homérico,
antropomorfismo não só da forma, do corpo, mas fundamentalmente do caráter, dos desejos, das fraquezas. No
lugar de confiar a um deus a tarefa de indicar-lhe o que é certo ou errado, o bem ou o mal, a um deus que seja
exemplo de serenidade e perfeição, o imaginário grego cria os seus próprios deuses à sua imagem. Se os deuses
vivem uma vida igual à nossa, está justificada a vida humana.
Em Homero, bem como em Hesíodo, estão evidenciadas uma autoconsciência e uma autoconfiança humanas
sem precedentes; lá estão colocadas virtualidades ilimitadas, entre cujos desdobramentos podemos citar a pólis e
suas instituições humanizadas, dessacralizadas e democráticas; a razão, instrumento da filosofia, da história e da
medicina; o modelo estético baseado na proporção, no meio termo, na simetria, no equilíbrio; os ideais de kalos-
kagathia (“bom-e-belo”) e da sophrosyne (“temperança”, ideal do meio termo, de comedimento). Esses
fundamentos da visão de mundo grega, presentes em Homero, não são obra de um homem só; trata-se, outrossim,
do reflexo de um imaginário em construção.
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DISCIPLINA: História da Antiguidade Ocidental
PROFESSOR: Fábio Vergara Cerqueira
Um homem só, Homero, não teria levado a cabo tal revolução intelectual, é óbvio, e não existem
provas (...) para decidir se os aedos teriam sequer noção de estarem a participar numa.
(FINLEY O mundo de Ulisses p. 24)
Pierre VIDAL-NAQUET, na sua obra O caçador negro. Formas de pensamento e sociedade na Grécia
Antiga (p. 41-60), analisou, utilizando-se da metodologia estruturalista lévi-strausseana, um conjunto de oposições
presentes em Homero que demarcam a cultura grega. Lendo Homero do ponto de vista da Antropologia, percebe
como, na Ilíada e na Odisseia, está colocada a concepção grega de humanidade, como o homem via-se enquanto
homem em oposição ao animal, ao monstruoso e ao divino. Do mesmo modo, Homero coloca os marcos
antropológicos pelos quais o grego se define como civilização em oposição ao bárbaro; e o adulto se define como
o apogeu da espécie humana em oposição à criança e ao velho; e o indivíduo masculino se afirma em oposição à
mulher. Assim, ele mostra como a obra de Homero, completada pela de Hesíodo, fornecem os alicerces culturais
da Grécia antiga, sendo assim não somente um registro do imaginário grego, mas o próprio suporte de sustentação
desse.
4. Homero como fonte histórica.
Até meados do século XIX, havia uma total recusa à aceitação das informações contidas nos poemas
homéricos como históricas. Eram tidas como mitos, entendidos como fabulação, fantasia, produzidas por mentes
ainda não guiadas pela razão – era o entendimento do Renascimento e do Iluminismo. Durante o século XIX,
alguns estudiosos tomaram para si o desafio de comprovar a historicidade dos relatos homéricos. Como resultado
disso, Arthur Evans descobriu as ruínas de Cnossos e Schliemann as de Micenas e Tróia. Utilizaram como base
para suas investigações a toponímia e a descrição topográfica de Homero, bem como outras obras antigas,
sobretudo a Viagem a Grécia de Pausânias, autor grego do séc. II d.C..
Hoje aceita-se que “nos poemas, resta um núcleo micênico genuíno e histórico (...), mas muito pouco, e
mesmo isso, distorcido, de modo geral.” (FINLEY Os gregos antigos p. 18). Os poemas, cantados nas cortes
homéricas, eram para os homens de então a fonte de informações que alimentava o interesse pelo passado. A
memória desse passado era reconstituída, por esses poetas, de forma mitológica. Não dispunham porém de fontes
exatas, faltava-lhes informações suficientes sobre acontecimentos sucedidos há três ou quatro séculos.
De qualquer forma, quando os gregos desenvolvem a narrativa histórica, dois a três séculos mais tarde, os
poemas homéricos continuarão sendo o principal registro do passado distante que originou o mundo grego. “Tudo
se perdera do passado mais distante: como relatos, só existiam os poucos poemas que se tinham escrito e a
enorme tradição e indigesta quantidade de mitos transmitidos oralmente.” (FINLEY Os gregos antigos p. 21)
Com as revelações da Arqueologia, pôde-se constatar a defasagem entre o mundo micênico do século XIII e o
mundo relatado por Homero. Até aproximadamente 1950, Homero continuava sub judice enquanto fonte histórica.
Os estudos antropológicos de Milman Perry com os bardos iugoslavos, publicados postumamente em 1953,
demonstraram que a poesia épica não é pura ficção. Através da narrativa épica, por meio dos mitos, ocorre um
fenômeno que eu chamaria de condensação justapositiva estético-imaginativa da memória do passado.
Mas os trabalhos de Milmann Perry (...) ao porem o acento tônico nos longos séculos de
transmissão oral que se teriam sucedido, permitiram a historiadores como M. I. Finley retomar o
problema da ‘sociedade homérica’, do ‘mundo de Ulisses’ e desmistificar (...), descobrir que a
realidade histórica aflorou por detrás das aventuras dos heróis aqueus, qual o sistema de
valores de que estes eram portadores.
(MOSSÉ A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo p. 22)
A Ilíada e a Odisseia não são mera ficção poética. A sociedade retratada e o pensamento são
históricos, e isso acrescenta uma importante dimensão aos mudos resquícios materiais.
(FINLEY Os Gregos antigos)
Uma marca dos poemas homéricos é uma voluntária arcaização, rumo aos inícios da Idade Média. Isso está
averiguado na defasagem entre o aspecto rudimentar da comunidade descrita nos poemas e o mundo em ebulição
da época em que Homero viveu.
Sistematizando a questão da utilização de Homero como fonte histórica, devemos destacar que a obra evoca
distintos momentos do passado grego, misturados em níveis que nem sempre podem ser distinguidos.
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PROFESSOR: Fábio Vergara Cerqueira
A mulher no oikos:
“Com efeito, se o senhor superintende sobre os trabalhos dos campos, a senhora, quanto a si, reina
sobre a casa e as suas servas. É ela quem acolhe os visitantes, quem lhes manda preparar um banho
relaxante e leitos para pararem à noite. É também ela quem preside à preparação das refeições.
Durante o resto do tempo, fia e tece rodeada pelas suas servas.” São exemplos disso Helena, Arete,
Penélope, Andrômaca. “Finalmente, é a senhora da casa quem guarda a chave do tesouro, onde se
acumulam as provisões alimentares, as reservas de metais preciosos e os belos tecidos oferecidos ao
senhor – ou à senhora – pelos hóspedes de passagem, assim como o produto do saque de múltiplas
expedições de pilhagem” (MOSSÉ Grécia Arcaica...).
O mundo do homem é o da guerra, da palavra e da superintendência da produção; o da mulher é o da
casa, dos aposentos, das aias. A condição feminina é favorável dentro de limites determinados, por uma
sociedade de heróis dedicados à guerra. Algumas passagens de Homero demonstram os limites impostos
à mulher, tais como o cerceamento à palavra, feito por Heitor a Andrômaca (Ilíada VI 490 sq.) ou por
Telêmaco a sua mãe Penélope. Quando, no meio do banquete, Penélope pretende intervir a fim de
proibir o aedo de cantar o regresso dos gregos após a queda de Tróia, Telêmaco fá-la sentir isso mesmo
com toda a clareza:
Volte, pois, a subir aos teus aposentos, regressa às tuas ocupações, à roca e ao tear, e
dá ordem às tuas aias para deitarem mãos ao trabalho. A palavra é assunto de homens
e, antes de mais, assunto meu, pois aqui a força pertence-me.
(Odisseia I 356 sq.)
A dúvida que fica é qual seria, pois, o verdadeiro poder de Penélope, afinal, na ausência de Ulisses:
a condição da basileus não é transmitida diretamente ao seu filho, mas seria conquistada por um dos
pretendentes que conquistasse Penélope – a linhagem do poder passaria pela esposa?
Os grupos sociais inferiores:
Servos (origem da escravidão?): Qualidade de quem trabalha sob dependência. Recebem várias
designações: oikeus, dmôs, drester, amphípolos.
Parece não haver dúvida de que estes termos se aplicam tanto a escravos propriamente
ditos, a saber, indivíduos que fazem parte dos bens, quanto a pessoas livres, muito
embora dependentes do oikos: tal é, em especial, o caso do oikeus, que, na Ilíada, pode
inclusive designar membros da família da senhor.
(MOSSÉ A Grécia Arcaica ... p. 65)
Possuíam um estatuto jurídico indefinido, contrariamente ao escravo-mercadoria do período
clássico. Entre os servos destacam-se as cativas, aprisionadas com o espólio de pilhagens: podiam
tornar-se concubina do herói, dedicar-se ao trabalho doméstico ao lado do senhor da casa, podendo
desempenhar uma atividade penosa ou uma função privilegiada, como uma governanta ou ama (é o
caso de Euricléia, no oikos de Ulisses). Os cativos eram incorporados aos bens.
Muitos servos desempenhavam o trabalho do campo, como o boieiro Filélio, o cabreiro Melanto e o
porqueiro Eumeu, este último tratado como escravo. Havia o comércio de escravos, feito por
fenícios e os táfios (piratas, que vendiam homens livres aprisionados). Pagava-se bem por estes
escravos, calculados em cabeças de boi.
Havia um patriarcalismo, por parte do senhor, relativamente ao seu escravo fiel – é o que nos
revelam as promessas de Ulisses ao porqueiro Eumeu:
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Alguns haveres, uma casa, um domínio, uma mulher de bom preço, enfim, tudo quanto
um senhor generoso dá ao servo, quando este trabalhou arduamente para ele e
abençoou os seus campos.
(Odisséia XIV, 62)
Não há uma barreira definida que separe o escravo do homem livre.
O trabalho no campo era feito tanto por servos como por homens livres.
Trabalhadores livres:
Therapontes (“que serve à mesa”): Homens livres, de fino trato, que trabalham sob o
pagamento de um salário. Nessa sociedade senhorial, há sempre o risco do não pagamento
do ordenado (Ilíada XXI 445 sq.).
Tetas: Grupo de condição incerta. Constituem a população despossuída, porém livre, que
vive à margem da estrutura do oikos. Para a sobrevivência, são obrigados a vender seu
trabalho, sem o garante da remuneração. Fazem parte do demos, a comunidade aldeã.
Demiourgoi: Trabalhadores que conhecem uma técnica especializada, gozando de um
tratamento privilegiado. Contava-se entre eles metalúrgicos, aedoi (poetas-cantores),
médicos, curandeiros, carpinteiros e advinhos. Os senhores que recorressem aos serviços de
ferreiros ou ourives deveriam fornecer a matéria-prima. Eles deambulavam de um oikos a
outro, de um vilarejo a outro, buscando quem comprasse seu trabalho. Eram uma espécie de
trabalhador free-lance.
O caráter autárquico da economia do oikos:
Artesanato:
As mulheres fiam, tecem e cosem todo o vestuário para as pessoas da casa ou os
hóspedes de passagem (...) É também no próprio domínio que, sem sombra de dúvida,
se fabricam as sandálias que cada um traz calçadas (...) devem-se confeccionar aí
também os vasos de barro de uso corrente ou restantes utensílios necessários à vida
cotidiana.
(MOSSÉ A Grécia Arcaica ... p. 69)
Pastoreio e plantio: Os mantimentos obtidos a partir das atividades agrárias são, na sua
totalidade, produzidos no domínio.
Guerra e troca de presentes – completam as deficiências do regime de autarquia:
No interior do oikos, não eram obtidos uma série de bens e matérias-primas, que o senhor do
oikos precisava obter de outras formas. Podemos citar metais, como o ouro e o ferro, tecidos e artigos de
luxo. Esses bens, uma vez obtidos, eram armazenados no tesouro do oikos, como garantia para o
suprimento das necessidades futuras. Havia três formas de completar as deficiências do regime
autárquico: a troca de presentes, as guerras e pilhagens e, por fim, o comércio, mesmo que incipiente.
Dom e contra-dom: Havia um rígido conjunto de regras que regulavam a troca de presentes
entre os senhores de oikos, seus hóspedes, guerreiros e heróis. Não era qualquer um que
podia presentear qualquer coisa a qualquer um. A Ilíada e a Odisseia nos trazem inúmeros
exemplos dessas trocas de presentes.
Políbio oferecera duas banheiras a Menelau, todas em prata, dez talentos de ouro e
trípodes. A mulher dele oferecera a Helena (...) uma roca de ouro e uma cesta com
rodas, toda em prata à exceção dos rebordos dourados.
(Odisseia IV 128 sq.)
O divino Eneu recebeu outrora na sua mansão o irrepreensível Belerofonte. Aí acolheu
durante vinte dias, tendo ambos ofertado um ao outro magníficos presentes. Eneu
brindou-o com um cinto de púrpura deslumbrante, enquanto Belerofonte lhe fez dádiva
de uma taça de ouro de duas asas, que deixei no meu palácio no dia em que dele parti.
(Ilíada VI 216 sq.)
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alimentava-se temor, suspeitas, desconfianças; era desprovido de direitos e sem parentes para vingá-lo.
Ora, nessa situação, qualquer indivíduo, rei, guerreiro ou demiourgos, que precisasse viajar, enfrentava
sérios riscos a sua segurança pessoal. Valorizava-se a hospitalidade (xenia), exigida pelo sentimento de
justiça (themis) pelo qual Zeus zelava: “Estranhos ou mendigos, todos são enviados de Zeus.”
Criavam-se, assim, os laços de hospitalidade, dos quais decorriam obrigações mútuas de
proteção e respeito entre diferentes famílias e oikoi.
Hóspedes e vínculos de hospitalidade eram bem mais que a expressão sentimental de
afeição humana. No mundo de Ulisses, tratava-se de termos técnicos (xenos) que
serviam para designar relações muito concretas, implicando direitos e deveres tão
formais como o casamento.
(FINLEY O mundo de Ulisses p. 95)
A hospitalidade garantia vínculos diplomáticos, se assim podemos dizer, entre diferentes
famílias e comunidades, substituindo a falta do laço sangüíneo:
O vínculo de hospitalidade era de outra natureza e relevava de uma concepção
inteiramente diferente. O indivíduo que tinha um xenos numa terra estrangeira – e toda
a comunidade além da sua era solo estrangeiro – possuía um substituto efetivo dos
parentes, um protetor, um representante e um aliado. Dispunha de um refúgio se lhe
fosse necessário fugir de casa, um armazém onde se abastecer quando era obrigado a
viajar e uma reserva de homens e de armas em caso de combate. Todas estas relações
eram pessoais, mas, entre os senhores poderosos, o pessoal fundia-se com o político, e
as relações de hospitalidade eram a versão homérica, ou as precursoras, das alianças
militares e políticas.”
(FINLEY O mundo de Ulisses p. 98)
Vassalagem:
Constituía-se dos deveres que um senhor de oikos menor devia a outro mais poderoso, que lhe
garantia proteção. Esse vassalo (therapon) era um homem livre, que devia, porém, assistência ao palácio,
ao oikos real, sob forma de serviços e apoio militar. A relação de vassalagem, constituindo um laço
político, não se funda num compromisso público, não emana da comunidade; no mundo homérico, os
compromissos interpessoais que organizam essa sociedade aristocrática são sempre questão de honra
familiar.
aristoi x kakoi:
A característica fundamental da sociedade homérica, vista como um todo, é a organização de um
mundo aristocrático com a total exclusão do vulgo: para além do espírito agonístico que rege as relações
entre os pares (todos autodenominando-se basileus), está a fronteira intransponível entre os aristoi (em
grego, “os melhores”, idealizados como heróis guerreiros, belos) e os kakoi (“os ruins”, tratados como
“gentalha feia”). Tersites é um dos únicos representantes dos kakoi que Homero nomeia. Por via de regra
ficam no anonimato. Sua caracterização é emblemática: de traços rudes, feios (“o homem mais feio entre
todos que vieram a Ílion.” – Ilíada II 216) e voz desagradável, seu direito à palavra é coibido na
Assembleia de guerreiros como um atentado às regras estabelecidas.
Themis:
Para além da autoridade do basileus e dos senhores do oikos, da gerousia e da Assembleia,
governa a themis, o direito consuetudinário:
Mas havia a themis – o costume, a tradição, os hábitos populares, os usos – quer dizer,
seja qual for o nome que lhe demos, o enorme poder do ‘é assim que se faz (ou não se
faz)’. O mundo de Ulisses possuía um sentido muito desenvolvido das conveniências e
do decoro.
(FINLEY O mundo de Ulisses p. 78)
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A vida urbana:
Ésquéria e Ítaca são exemplos de cidades, presentes na narrativa homérica, que mesclam
elementos do tempo de Homero e dos tempos da realeza homérica (basileia):
Temos, portanto, aqui todos os elementos fundamentais de uma cidade, semelhantes
àqueles que, por exemplo, as escavações de certas cidades-Estados coloniais vieram a
revelar: o território afeto às terras de cultura dividido em lotes parcelares, a muralha
no interior da qual se situam as casas de habitação, de que a morada do rei apenas se
distingue pela sua magnificência, a praça pública com o santuário dedicado a
Poseidon, as portas onde as naus se acham alinhadas, e em cuja vizinhança vivem os
artesãos, fabricantes de velas, de peças de mastreação, gente cujos motejos Nausícaa
receia. Se Esquéria não pertence ao mundo real, somos mais uma vez forçados a
verificar que denota possuir todos os seus traços característicos.
(MOSSÉ A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo p. 83)
De Ítaca já não temos uma descrição comparável. No entanto, o poeta canta por
diversas vezes a ágora, a grande praça onde as assembleias do demos se realizam. Do
mesmo modo, o aglomerado urbano onde o rei e os nobres possuem sua morada
distingue-se claramente dos campos circundantes: assim, depois de renunciar à
realeza, Laertes abandonou a cidade para viver no campo (...). Tendo igualmente por
fim o abastecimento de água do centro urbano, construiu-se uma fonte de pedra, de
belas águas cristalinas (...) da qual a gente de cidade costumava servir-se.
(MOSSÉ A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo p. 83)
2. O poder no mundo de Ulisses:
O poder no mundo homérico estruturava-se sobre um tripé, a basileia (realeza), a gerousia (conselho de
anciãos) e ecclesia (Assembléia).
Realeza homérica:
Fundamentos: supremacia militar; promoção da unidade; atribuições de terras; benignidade para
com o povo; preocupação em fazer triunfar a justiça. A riqueza do oikos real garante sua
supremacia sobre os demais.
Fraqueza do poder real: O basileus era um primus inter pares; os demais senhores de oikos,
igualmente chamados de basileus, rivalizavam constantemente com ele. A realeza, numa
sociedade aristocrática como a homérica, está limitada pelos próprios pares, diferentemente do
anax micênico, cuja autoridade inspira-se nas monarquias orientais. O rei vai buscar apoio na
comunidade, para enfrentar o desafio que os demais senhores de oikos colocam ao seu poder. É
assim que Ulisses é amado pelos humildes, que temem a arrogância dos pretendentes de
Penélope, os pares do basielus, os quais, autodenominando-se basileus, ambicionam o trono de
Ítaca.
Segundo a imagem que os poemas dela nos dão, a realeza homérica surge, pois, como
sendo uma função que os deuses atribuem aos melhores, aos mais bem nascidos; nada
há nela porém que faça lembrar o poder absoluto do wanax micênico. Primus inter
pares [“primeiro entre os iguais”], o rei homérico distingue-se pela sua riqueza,
sabedoria e sentido de dike [“justiça”], fatores constitutivos do conjunto das qualidades
“reais”, que podem ser apanágio de uma certa família, permitindo desse modo
justificar o princípio hereditário de transmissão, mas que também podem passar de
uma dada família a outra caso as circunstâncias assim exijam.
(MOSSÉ A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo p. 87)
A terminologia basileus, designando ora rei, ora o chefe da casa aristocrática, é um indicativo do
poder aristocrático:
Por detrás desta terminologia, pode sentir-se todo o peso que a aristocracia exercia
para reduzir a realeza ao mínimo. A aristocracia era anterior à realeza lógica,
histórica e socialmente. Ao mesmo tempo que reconheciam a monarquia, os nobres
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O ancião aparece no texto homérico como símbolo da sabedoria a serviço da comunidade, o que se
reflete politicamente no papel da instituição da gerousia, que revela o caráter gerontocrático do mundo
homérico.
Esta dualidade ancião-jovem, sábio-belo, manter-se-á na cultura grega clássica, como constatamos
no ideal filosófico da relação mestre-discípulo, a qual envolve vários aspectos além dos didático-
pedagógicos, desdobrando-se no ideal político e educativo da pederastia.
Na obra homérica, encontramos trechos que nos remetem ao universo de valores da época em que o
texto foi escrito, anunciando a crise do modelo aristocrático e a formação de uma nova moral, aquela do
camponês-soldado, da cidade-Estado nascente. No trecho abaixo, ofusca-se a imagem do guerreiro
aristocrático, no lugar do qual encontramos o hoplita ou o gérmen do cidadão-proprietário.
Eurímaco, gostaria que fôssemos postos à prova num pequeno prado, no início da
primavera, quando os dias se tornam mais longos. Eu usaria então uma bela foice
recurva e outra igual, a fim de competirmos sem nada comer até chegar a noite, e isto
enquanto houvesse era para segar; ou então gostaria de ter uma junta de bois para
conduzir, os mais belos dentre todos, grandes animais de pelo ruivo, ambos bem
saciados de erva, com a mesma idade e o mesmo rigor, revelado numa indefectível
energia. Quanto a nós, disporíamos de dois hectares de terra dócil à relha do arado
(...) Ou, numa outra hipótese, se Zeus quisesse mesmo suscitar uma guerra, desde que
tivesse o meu escudo e minhas duas lanças, assim como o meu capacete todo em
bronze, bem adaptado às têmporas, pois ver-me-ia ser o primeiro, a postar-me nas
primeiras linhas.
(Odisseia XVIII 366 sq.)
Muitos exegetas da obra homérica consideram o livro XVIII uma introdução posterior, por essa
razão teria várias características anacrônica, se pensarmos nos tempos do próprio Homero ou os tempos
que lhe antecedem. Ao mencionar as primeiras fileiras e a panóplia do guerreiro, o trecho se reporta a
uma realidade que se configura entre os últimos anos do séc. VIII e a primeira metade do séc. VII, que
alguns autores nomearam “revolução hoplítica”.
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Cronologia
1. O desenvolvimento da pólis:
A pólis caracteriza-se, antes de tudo, como um lugar de decisões coletivas. Na inscrição de Dreros,
pouco anterior a Drácon, remontando a meados do século VII, lemos: “Assim decidiu a pólis”. A pólis
se apresenta como sociedade organizada identificada com o grupo dos cidadãos; não se fala de Atenas,
mas dos Atenienses; não se fala de Esparta, mas dos Espartanos. Nessa sociedade, aqueles que compõem
o círculo dos cidadãos constituem o grupo dirigente. O grau de alargamento desse círculo e a forma
como o poder se distribui no interior desse, são os dois aspectos que vão variar conforme as
constituições adotadas pelas diferentes cidades, variando da oligarquia à democracia, passando pela
tirania e pela timocracia.
O processo de codificação das leis foi o principal instrumento pelo qual a comunidade políade se
impôs face aos interesses privados, aos anseios da “família” (aqui entendido o genos, o clã aristocrático)
– criam-se assim mecanismos institucionais para controlar a usurpação dos direito dos mais fracos pelos
aristocratas terratenentes. Ocorre a transição do pré-direito ao direito, na terminologia de Louis
GERNET, afirmando-se um direito homogêneo.
A reforma hoplítica marca uma mudança fundamental no campo militar: a estratégia bélica passa a
se basear não mais na bravura pessoal, mas na coesão do grupo, no espírito comunitário; o homem
médio participando da defesa da cidade, vê-se no direito de interferir nos destinos políticos dessa.
Finalmente, o mapeamento conceptual da pólis conclui-se quando se define o conceito de cidadão
em oposição ao de escravo-mercadoria, impedindo-se assim a escravização por dívidas dos conterrâneos,
dos concidadãos. Cada modelo de cidade organizará a seu modo as relações jurídicas entre os diferentes
grupos: cidadãos; metecos ou periecos; hilotas ou escravos.
endividamento que culmina na perda das liberdades individuais: escravizado, muitas vezes é vendido
como mercadoria.
O cenário da stasis tem como marca a polarização social entre os aristocratas terratenentes e a
mão-de-obra dependente. Hesíodo, poeta épico da segunda metade do séc. VIII, retrata o contexto das
reivindicações sociais por uma partilha mais justa da terra e por uma justiça universal, igual para todos.
Sólon, no início do séc. VI, absolveu as dívidas e proibiu a escravização por dívidas de cidadãos
atenienses, comprando a liberdade de cidadãos que haviam sido vendidos. Não sabemos por que esta
situação deixou de ser suportável em Atenas no final do século VII e início do século VI.
3. As soluções para a crise social e política que se apresentara ao longo do processo de desenvolvimento
da pólis:
3.1. Revolução hoplítica:
A guerra heróica, marcada pela bravura individual, era a expressão militar de um mundo
aristocrático em que a idéia de comum praticamente inexistia diante da força da família, dos gené,
do interesse privado. Com o fortalecimento da comunidade de cidadãos, acompanhado do
crescimento demográfico e da diversificação econômica, num momento de recrudescimento da
atividade agrícola, a cidade não podia mais se defender baseada exclusivamente na aristocracia; ela
precisou armar os grupos médios emergentes deste novo contexto sócio-econômico.
Uma parcela significativa de médios e pequenos proprietários foi incorporada ao exército: a
dispendiosa cavalaria permanecia como uma categoria especial, reservada aos ricos terratenentes; os
grupos médios entram na infantaria, agora remodelada. Constitui-se uma nova técnica militar: a
formação em falange, pela qual os soldados organizam-se em linhas e avançam em conjunto, um
protegendo o outro, de forma coesa. Armados com elmo, lança e escudo, o escudo de um protege o
corpo do outro. Essa coesão da falange hoplítica traduz o espírito comunitário que se forma na pólis,
em que todo o conjunto de cidadãos vê-se solidariamente responsável pelos destinos da cidade.
A revolução hoplítica reflete a afirmação da comunidade, ao mesmo tempo que induz ao
fortalecimento do domínio político, do comum, uma vez que os setores médios responsáveis pela
defesa da pólis passam a reivindicar o exercício da cidadania, não apenas passiva, mas ativa – isso
será, porém, um longo processo, que culminou, em algumas cidades, na isonomia (nome que os
gregos davam de início à democracia).
3.2. Colonização:
Como forma de reverter em benefício o excesso de população, muitas cidades gregas partem, a
partir do século VIII, para a aventura da colonização. Não somente remedeiam parcialmente o
problema demográfico, como estabelecem um parceiro comercial. As colônias são criadas seguindo
modelos ideais de organização comunitária. Havia dois tipos de colônias: as apoikiai e os emporia.
A apoikia é uma colônia agrária, moldada como uma pólis à imagem da metrópole, com o objetivo
de solucionar o sobrepovoamento continental e jônico. O emporion é um enclave comercial, como
Náucratis no Egito, que visa a suprir as “metrópoles” (cidades fundadoras) com riquezas.
3.3. Política de importação de trigo:
A alimentação constituía um sério problema, sobretudo o fornecimento de trigo. Visto que a fome
gerava crise social, a cidade passou a se preocupar com a importação de alimentos. Náucratis
assegurava o acesso do comércio grego ao trigo egípcio. Colocando o interesse coletivo acima do
particular, Sólon proibiu a exportação de qualquer alimento in natura, salvo o azeite, que já se
constituía um importante produto de exportação, que contrabalançava os gastos com a importação
do trigo, e o vinho.
3.4. Partilha das terras e estatuto dos camponeses:
Reivindicação presente nas manifestações populares, motivadas pela condição aviltante vivida pelos
camponeses que se viam sem terras, ou endividados como arrendatários, ou por fim, mais grave,
como vítimas da escravidão por dívidas. Reivindicava-se a partilha das terras, o que não foi atendido
pelos legisladores reformistas. O máximo que conseguiam, em termos de revisão do estatuto dos
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camponeses, foi a absolvição das dívidas, e, talvez a maior conquista, a proibição de que fossem
escravizados quando não conseguissem pagar futuras dívidas, pois consolida seu estatuto de cidadão
livre. Muitos destes camponeses participam de empreendimentos colonizadores, integrando como
apoikistai o grupo de cidadãos que abandona a cidade de origem e funda uma nova. Interessante
observar que a partilha de terras, não realizada na pólis de origem, é realizada na nova fundação
colonial, em seu início, quando todos fundadores recebem lotes cultiváveis iguais.
3.5. Crise da soberania e a afirmação do espaço público:
As transformações sociais que ocorrem durante o período arcaico são acompanhadas por mudanças
nos esquemas de pensamento. O intelecto busca na sophia soluções mentais para a stasis, para a anomia.
Busca-se uma nova fundamentação para o poder, não no mythos nem nos theoi (deuses), não kosmos
nem na physis, mas no mundo dos homens. Constroem-se conceitos novos, que embasem uma ordem
humana da cidade: diante da queda política da realeza e da ascendência da aristocracia, o poder não mais
se concentrará nas mãos de um só (o basileus), mas será dividido entre os iguais e controlado por eles, os
aristoi (os ricos cidadãos detentores de terras). Apesar deste controle aristocrático neste primeiro passo,
é uma mudança muito significativa. O poder se especializa, sai da pessoa do rei, que concentrava em si
as funções políticas, jurídicas e militares, e, despersonalizado, se encontrará nas funções públicas, as
magistraturas (os cargos, cujos ocupantes são escolhidos nas assembleias). A arché, princípio do poder,
anteriormente transmitida por hereditariedade com legitimidade na lei divina e do costume, agora
pertence ao conjunto de aristocratas que mandam na cidade: eles, pelo voto, depositarão essa arché em
indivíduos incumbidos da função pública por um determinado período. Na cidade aristocrática, a arché
ficou dividida entre a função religiosa (exercida pela figura do arconte basileus), militar (exercida pelo
polemarca) e jurídica (exercida pelos arcontes, eleitos inicialmente para um mandato de 10 anos e,
posteriormente, de 1 ano). Assim:
a noção de arché – comando – se separa da basileia, conquista independência e vai
definir o domínio de uma realidade propriamente política.
(VERNANT Origens do pensamento grego p.28)
As eleições implicam um novo universo de poder:
O sistema de eleição, mesmo se conserva ou se transpõe certos traços de um processo
religioso, implica uma concepção nova de poder: a arché é todos os anos delegada por
uma decisão humana, por uma escolha que supõe confronto e discussão.
(VERNANT Origens do pensamento grego p.28-9)
Uma vez que o poder foi transferido do domínio do rei para funções especializadas, impondo-se a
comunidade, coloca-se o problema do equilíbrio do poder: não há personagem único que domine a vida
social, mas uma multiplicidade de funções, disputadas por diferentes grupos no seio do setor social
aristocrático. Abre-se campo para a discórdia, para o debate, para o agon. A questão que se coloca,
intelectual e institucional, é como se colocar a ordem. Conforme VERNANT, o conflito entre Eris
(Rivalidade) e Philia (Amizade) simboliza a situação de conflito entre desordem e ordem. A arché está
nas mãos de um grupo de iguais – a comunidade cidadã - que a disputa entre si, praticando o conflito, o
debate, o agon:
A política toma por sua vez a forma de ágon: uma disputa oratória, um combate de
argumentos cujo teatro é a ágora, praça pública, lugar de reunião antes de ser um
mercado. Os que se medem pela palavra, que se opõem discurso a discurso, formam
nessa sociedade hierarquizada um grupo de iguais.
(VERNANT Origens do pensamento grego p.32)
Assim a cidade se afirmava aos poucos como pólis, como cidade-Estado organizada por instituições
públicas, onde o espírito do privado estará progressivamente submetido à ordem pública, no que toca as
relações sociais políticas, jurídicas e econômicas.
A arché não poderia mais ser a propriedade exclusiva de quem quer que seja; o Estado
é, precisamente, o que se despojou de todo caráter privado, particular, o que,
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escapando da alçada dos gené (clãs, famílias nobres), já aparece como a questão de
todos.
(VERNANT Origens do pensamento grego p.32)
As decisões são tomadas (em comum, pela comunidade); a arché é colocada
(literalmente, “no meio”)A noção de “comum” se impõe aos poucos como necessária para
ordenar a vida na pólis. Reflete-se assim a consciência que o grupo humano toma de si próprio como
unidade política. Temos o advento de um espaço social novo: a urbanização reflete a afirmação do
homem – a cidade centraliza-se na ágora, sede da (“altar-lareira” comum, onde o fogo
precisava ser mantido sempre aceso), ao mesmo tempo que ponto de encontro, de comércio, de debate.
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