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Acesso ao Direito e a justiça oficial em Mocambique

O acesso ao direito e à justiça abrange realidades e conceitos com significados e


significâncias diversos, o uso dos conceitos acesso ao direito, acesso à justiça, acesso ao
direito e à justiça, assistência jurídica, assistência judiciária, apoio judiciário, proteção
jurídica, informação jurídica, consulta jurídica, patrocínio oficioso, defesa oficiosa,
advogado nomeado defensor. Esta “prolixia” conceitual é facilmente resolvida com o
recurso ao conceito de direito de Santos (2000: 269), o qual consiste num “corpo de
procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justiçáveis num dado
grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução
através de um discurso argumentativo, articulado com a ameaça de força”.
Este conceito tem a enorme potencialidade de incluir, em si, todas as realidades do direito e
da justiça, ou seja, de acesso às normas jurídicas, aos procedimentos e à resolução de
conflitos, em sentido amplo, pelo que bastaria recorrer ao conceito de “acesso ao direito”
para abranger as realidades jurídicas, sociojurídicas e sociais objeto do nosso estudo. No
entanto, embora com esse mesmo sentido, escolhemos usar o conceito “acesso ao direito e à
justiça”, dado que nos parece ser, por razões de comunicação e compreensão em língua
portuguesa, aquele que mais facilmente permite abranger todo o significado do meu objeto
de estudo para as pré-compreensões de todos os cidadãos. Em princípio, todos
compreenderão que se pretende abarcar, com este conceito, desde o conhecimento e
consciência do(s) direito(s), à facilitação do seu uso, à representação jurídica e judiciária
por profissionais, designadamente advogados, bem como a resolução judicial e não judicial
de conflitos, ou seja, o acesso à pluralidade de ordenamentos jurídicos e de meios de
resolução de litígios existentes na sociedade.
Este estudo não se limitará ao sentido mais restrito de acesso ao direito e à justiça, ou seja,
a capacidade para conhecer o direito e aceder aos tribunais e obter deles uma resolução de
litígios. Mas alargaremos a análise, a todos os meios de informação e consciencialização
sobre o direito da família e das crianças existente na nossa sociedade, em sentido amplo
(informação e consulta jurídica), bem como de resolução de conflitos decorrentes de
iniciativas supraestaduais, do Estado (legislativo, executivo e poder judicial) – central ou
local (autárquico) – da comunidade ou de mercado ou, ainda, de parcerias entre o Estado e
a comunidade (ex.: Comissões de proteção de crianças e jovens) e Estado e o mercado (ex.:
Estado e a Ordem dos Advogados).
Acesso à justiça em Moçambique

Ainda que Portugal tenha estado presente em Moçambique desde o século XVI, só nos últimos
anos do século XIX veio a ocupar e administrar efectivamente o território. O regime do Indigenato,
introduzido formalmente nos anos 1920’, caracterizava-se pela divisão entre cidadãos e indígenas
e assentava em dois modelos administrativos e em duas formas de direito e de justiça: o dos
colonos, que seguia o modelo administrativo e o direito da metrópole; e as zonas indígenas,
divididas em regedorias ou chefaturas, supostamente a reencarnação das tribos pré-coloniais,
regidas pelo direito costumeiro administrado pelas autoridades tradicionais, os chamados régulos.
Os assimilados, uma pequena minoria de cidadãos de estatuto inferior, possuíam cartões de
identificação que os distinguiam da população indígena e lhes conferiam acesso a determinados
espaços e direitos vedados àqueles (Gentili, 1996; Meneses, 2003 e 2005; Araújo e José, 2007)

Em 1975, estabelecida a independência do país, o projecto socialista moçambicano passava pelo


«escangalhamento» de todos os vestígios coloniais e pela construção de uma nova sociedade. O
Estado procurou pôr fim à justiça dualista e às autoridades tradicionais, vistas como aliadas do
poder colonial, e criar um sistema de justiça que se pretendia indígena, mas não tribal. Assim, em
1978, foi aprovada a Lei Orgânica dos Tribunais Populares, que previa a criação de tribunais
populares em diferentes escalões territoriais, onde juízes profissionais trabalhavam ao lado de
juízes eleitos pela população. Na base da pirâmide, os tribunais de localidade ou de bairro
funcionavam exclusivamente com juízes eleitos, desprofissionalizados, que conheciam das
infracções de pequena gravidade e decidiam de acordo com o bom senso e a justiça e tendo em
conta os princípios que presidiam à construção da sociedade socialista (Sachs e Welch, 1990;
Gundersen, 1992; Trindade, 2003; Gomes et. al., 2003; Araújo e José, 2007). Os tribunais
populares de base deveriam substituir as autoridades tradicionais ao nível das funções judiciais.
Contudo, a estas cabiam, ainda, funções administrativas, que, na estrutura estabelecida pelo
Estado moçambicano, passariam a ser desempenhadas pelos Grupos Dinamizadores (GDs). Ora,
isto não significa que as autoridades tradicionais tenham desaparecido, de facto, do mapa da
administração e da justiça moçambicano. A realidade nem sempre correspondeu à retórica do
Estado e em diversos contextos (sobretudo rurais), as ATs sobreviveram, mantiveram a
legitimidade e vieram a colmatar um vazio tantas vezes deixado pelo Estado (Dinnerman, 1999;
José, 2005).

Ainda na década de 1980’, a FRELIMO viu-se obrigada a reconhecer fracasso económico do seu
projecto socialista. Em 1984, o governo aderiu às Instituições de Breton Woods (IBWs),
nomeadamente ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional. A Constituição de 1990,
no contexto da democracia liberal, consagrou os princípios da separação de poderes, da
independência, da imparcialidade, da irresponsabilidade e da legalidade, lançando bases para a
produção de alterações substanciais na organização judiciária. Assim, a Lei dos Tribunais Populares
foi substituída pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1992. Os tribunais de base foram
excluídos da organização judiciária e, no mesmo ano, foram criados, por lei própria, os tribunais
comunitários (TCs). Estes, fora da organização judiciária, deviam continuar a funcionar com juízes
eleitos pela comunidade e a desempenhar o papel que cabia aos tribunais populares d
Boaventura de Sousa Santos (2003) classifica os tribunais comunitários como o híbrido jurídico por
excelência, por se encontrarem num limbo institucional, na medida em que são reconhecidos por
lei, mas estão fora do sistema judicial e não estão, até hoje, regulamentados. e localidade e de
bairro. No entanto, não chegaram a ser regulamentados.

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