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Neto (2011)
Neto (2011)
A reforma universitária de
Córdoba (1918): um manifesto
por uma universidade
latino-americana
Por José Alves de Freitas Neto
Professor do Departamento de História da Unicamp desde 2004. Possui graduação e mestrado
em Filosofia e doutorado em História Social pela USP (2002). Foi coordenador de graduação em
História (2006-2010) e coordena o Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem
P
ensar e construir uma universidade a par- espanholas deveriam ter seus núcleos para os co-
tir da América Latina era um dos desafios nhecimentos importantes da época, como teolo-
que o movimento estudantil de Córdoba, na gia, filosofia e normas jurídicas.
Argentina, defendeu em seu Manifesto de 21 de A título de comparação, nas colônias inglesas te-
junho de 1918[1]. A história das instituições eu- mos a fundação de Harvard em 1636 e de mais seis
ropeias que fincaram raízes em solo americano, instituições de ensino superior até 1764. No âmbito
ainda durante o período colonial, é marcada por da formação, os saberes não se distanciavam da-
polêmicas relacionadas à existência de especifici- queles apresentados nas universidades católicas e
dades em tais instituições, em um lugar diferente também estavam atrelados à religião, a ponto dos
de suas origens. A chamada Reforma de Córdoba estatutos da Universidade de Yale, de 1745, exigi-
é considerada um marco na história das universi- rem na admissão de estudantes o domínio de tre-
dades latino-americanas por ser pioneira na cons- chos da Bíblia em grego (KARNAL, 2007). Na área
trução de um modelo institucional que atribuiu colonial da América portuguesa as universidades
uma identidade e um modelo de atuação renova- eram proibidas e alguns poucos colégios jesuítas
do no ensino superior. funcionavam. Cursos superiores tiveram seu início
A presença de universidades no mundo his- apenas depois da independência do Brasil, com a
pano-americano remonta às origens do domínio abertura dos cursos de Direito em São Paulo e Olin-
colonial e é um registro das heranças culturais eu- da, em 1827, e as faculdades de Medicina da Bahia
ropeias no Novo Mundo. A Real Pontifícia Univer- e do Rio de Janeiro, em 1832 (PRADO, 1999).
sidade do México e a Universidade de São Marcos Um longo processo se passou desde as uni-
em Lima, fundadas em 1551, e a Universidade de versidades coloniais até a Reforma de Córdoba,
Córdoba, em 1621, são algumas das mais antigas no início do século XX, que é o objeto de nossa
instituições de ensino que as Américas conhece- análise. A concepção de universidade, o papel
ram. Mesmo que o sentido de universidade esteja da educação e da instrução, as transformações
muito distante da forma como as pensamos atual- científicas e a mudança das próprias sociedades
mente, sua existência revela, ao menos, a preocu- servem como indícios para se pensar as estreitas
pação de que saberes e ensinamentos tinham um vinculações entre a formação de uma elite intelec-
lugar próprio e que as principais áreas coloniais tual e os processos políticos de cada país.
1829 é monacal e escolástico; nos salões, a con- Segundo o pesquisador Carlos Tünnermann
versação gira sempre em torno das procissões, Bernheim, o sistema universitário argentino, às
das festas dos santos, dos exames universitários, vésperas do movimento de 1918, era composto
da profissão das monjas, da recepção das borlas por três universidades nacionais (Córdoba, Bue-
de doutor.” (SARMIENTO, 2010: 205-206) nos Aires e La Plata) e duas provinciais (Santa Fe
e Tucumán). Em Córdoba, o movimento reformista
Córdoba, no seu momento mais estruturado KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das
e politizado, denunciou uma situação e empre- origens ao século XXI. S. Paulo: Contexto, 2007;
endeu esforços para mudar. Olhar para 1918 LUNA, Félix. Los conflictos en la Argentina próspera
em busca de lições a serem extraídas é negar a (1890-1937). Buenos Aires: Planeta, 2003.
própria dinâmica que propuseram seus integran- PRADO, Maria Lígia Coelho. América Latina: tramas, te-
tes: é quase um exercício de monumentalização las e textos. São Paulo/Bauru: Edusp/Edusc, 1999.
que enaltece um passado vibrante enquanto se REVISTA PUNTO DE VISTA. Ano XXIII, número 68. Bue-
vivencia um presente pouco desafiador. Ignorar nos Aires: dezembro de 2000.
os eventos de 1918, por outro lado, é perpetuar SADER, Emir; GENTILI, Pablo; ABOITES, Hugo. (orgs.)
o desconhecimento da história das universidades La reforma universitaria: desafíos y perspectivas
latino-americanas e seus esforços para adquirir noventa años después. Buenos Aires: CLACSO,
um caminho próprio e legítimo. Entre uma e ou- 2008.
tra postura, há que seguir questionando e proje- SARMIENTO, Domingo F. Facundo, ou civilização e bar-
tando uma universidade que esteja conectada a bárie. S. Paulo: Cosac Naif, 2010. [1845].
seu tempo, expresse suas pluralidades e contra- TERÁN, Oscar (org.). Ideas en el siglo: intelectuales y
dições, nem tema pelo futuro que seus próprios cultura en el siglo XX latinoamericano. Buenos Ai-
agentes já estejam construindo. res: Siglo XXI, 1998.
TÜNNERMANN BERNHEIM, Carlos. “La reforma uni-
FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultu- versitária de Córdoba”. In: Educación Superior y
ra y política em los años veinte latinoamericanos. Sociedad. Caracas: Unesco, vol. 9, no.1, 1998. p.
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. 103-127.