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História

A reforma universitária de
Córdoba (1918): um manifesto
por uma universidade
latino-americana
Por José Alves de Freitas Neto
Professor do Departamento de História da Unicamp desde 2004. Possui graduação e mestrado
em Filosofia e doutorado em História Social pela USP (2002). Foi coordenador de graduação em
História (2006-2010) e coordena o Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem

P
ensar e construir uma universidade a par- espanholas deveriam ter seus núcleos para os co-
tir da América Latina era um dos desafios nhecimentos importantes da época, como teolo-
que o movimento estudantil de Córdoba, na gia, filosofia e normas jurídicas.
Argentina, defendeu em seu Manifesto de 21 de A título de comparação, nas colônias inglesas te-
junho de 1918[1]. A história das instituições eu- mos a fundação de Harvard em 1636 e de mais seis
ropeias que fincaram raízes em solo americano, instituições de ensino superior até 1764. No âmbito
ainda durante o período colonial, é marcada por da formação, os saberes não se distanciavam da-
polêmicas relacionadas à existência de especifici- queles apresentados nas universidades católicas e
dades em tais instituições, em um lugar diferente também estavam atrelados à religião, a ponto dos
de suas origens. A chamada Reforma de Córdoba estatutos da Universidade de Yale, de 1745, exigi-
é considerada um marco na história das universi- rem na admissão de estudantes o domínio de tre-
dades latino-americanas por ser pioneira na cons- chos da Bíblia em grego (KARNAL, 2007). Na área
trução de um modelo institucional que atribuiu colonial da América portuguesa as universidades
uma identidade e um modelo de atuação renova- eram proibidas e alguns poucos colégios jesuítas
do no ensino superior. funcionavam. Cursos superiores tiveram seu início
A presença de universidades no mundo his- apenas depois da independência do Brasil, com a
pano-americano remonta às origens do domínio abertura dos cursos de Direito em São Paulo e Olin-
colonial e é um registro das heranças culturais eu- da, em 1827, e as faculdades de Medicina da Bahia
ropeias no Novo Mundo. A Real Pontifícia Univer- e do Rio de Janeiro, em 1832 (PRADO, 1999).
sidade do México e a Universidade de São Marcos Um longo processo se passou desde as uni-
em Lima, fundadas em 1551, e a Universidade de versidades coloniais até a Reforma de Córdoba,
Córdoba, em 1621, são algumas das mais antigas no início do século XX, que é o objeto de nossa
instituições de ensino que as Américas conhece- análise. A concepção de universidade, o papel
ram. Mesmo que o sentido de universidade esteja da educação e da instrução, as transformações
muito distante da forma como as pensamos atual- científicas e a mudança das próprias sociedades
mente, sua existência revela, ao menos, a preocu- servem como indícios para se pensar as estreitas
pação de que saberes e ensinamentos tinham um vinculações entre a formação de uma elite intelec-
lugar próprio e que as principais áreas coloniais tual e os processos políticos de cada país.

[1] Leia a íntegra nas páginas 71 a 73; texto extraído de http://www.reformadel18.unc.edu.ar/manifiesto.htm

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A Universidade de Córdoba no Novo Mundo, bastava visitar a cidade argentina
e seus significados com seus claustros e sua mentalidade marcada
Um processo de reforma universitária com al- pela religiosidade católica.
cance continental, como foi o de Córdoba, exige Devemos considerar que o texto de Sarmiento,
uma abordagem que não cometa dois equívo- no clássico Facundo (1845), inseria-se no debate
cos. O primeiro é que ele não pode ser analisado em torno dos discursos civilizatórios do século XIX
de forma restritiva, em que apenas os aspectos e na oposição entre a capital e o interior. Sarmiento
acadêmicos mais imediatos possam ser lista- identificou Buenos Aires, como sendo o exemplo
dos como bandeira estudantil, desencadeando da civilização, e Córdoba, da barbárie que impedia
mudanças na secular universidade argentina. O a consolidação da nação. Essas dicotomias não
outro seria, no extremo oposto, pensar a greve devem ser levadas ao extremo. Entretanto, fixou-
universitária como uma reação às questões in- -se entre os leitores da obra do futuro presidente
ternacionais do pós-Primeira Guerra Mundial, a da Argentina (1868-1874) uma descrição depre-
crítica ao imperialismo e a situação política da ciativa sobre Córdoba e suas instituições.
Argentina que absorvia um grande número de
imigrantes e que ampliava os direitos políticos Avançando mais na nossa visita, encontra-se
por meio de uma reforma na legislação eleitoral. a célebre Universidade de Córdoba, (...) e em
Entre os dois pontos há demandas imbricadas cujos claustros sombrios oito gerações de dou-
que se apresentavam antes de 1918 e que tive- tores em ambos os direitos, ergotistas insignes,
ram desdobramentos posteriores. Por isso, nossa comentadores e casuístas passaram a sua juven-
opção é buscar na história universitária argenti- tude. Ouçamos o célebre deão Funes descrever
na os pontos que nos parecem mais relevantes e o ensinamento e o espírito dessa famosa univer-
contextualizados para compreender os alcances sidade, que durante dois séculos proveu uma
do movimento cordovês. grande parte da América de teólogos e doutores:
A Universidade de Córdoba preservava ainda “O curso teológico durava cinco anos e meio. A
no início do século XX algumas das características Teologia participava da corrupção dos estudos fi-
do período colonial. A ligação com os jesuítas e losóficos. Aplicava-se a filosofia de Aristóteles à
a resistência a mudanças de procedimentos du- Teologia formando uma mistura entre o profano
rante o período das lutas pela independência fez e o espiritual. Argumentos puramente humanos,
com que o conservadorismo fosse uma das mar- sutilezas e sofismas enganosos, questões frívolas
cas principais da Universidade e da cidade. Sobre e impertinentes: foi isso o que veio a formar o
o tema, o principal escritor argentino do século gosto dominante dessas escolas.” (...)
XIX, Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), Essa cidade douta não teve até hoje um teatro
de forma anacrônica, registrou que Córdoba era público, não conheceu a ópera, ainda não tem
uma típica cidade medieval. Se alguém quisesse jornais, e a imprensa é uma indústria que não
conhecer algum monumento do período, estando pôde se enraizar ali. O espírito de Córdoba até

O bispo de Córdoba chegou a emitir


uma Carta Pastoral condenando a
mobilização estudantil que ganhava
adeptos externos à Universidade
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1829 é monacal e escolástico; nos salões, a con- Segundo o pesquisador Carlos Tünnermann
versação gira sempre em torno das procissões, Bernheim, o sistema universitário argentino, às
das festas dos santos, dos exames universitários, vésperas do movimento de 1918, era composto
da profissão das monjas, da recepção das borlas por três universidades nacionais (Córdoba, Bue-
de doutor.” (SARMIENTO, 2010: 205-206) nos Aires e La Plata) e duas provinciais (Santa Fe
e Tucumán). Em Córdoba, o movimento reformista

S egundo Sarmiento, até 1816 a Universidade


desprezara conhecimentos importantes como
as matemáticas, os idiomas, a Física, o direito
ganhou corpo exatamente por contrapor-se a uma
instituição mais tradicional e distante dos ideais
defendidos pelos estudantes.
público e a música. As mudanças deveram-se à
atuação do deão Gregório Funes (1749-1829), As reivindicações e a
reitor de Córdoba e partidário do movimento de Reforma
independência iniciado em 1810. O que Sarmien- A inquietação estudantil pode ser verificada
to considerava um atraso oferecido pela Univer- antes da eclosão do movimento de 1918. Inter-
sidade tinha seu reflexo na pequena adesão dos ferências do clero em atividades acadêmicas que
cordoveses às lutas pela independência. expunham visões diferentes das preconizadas
Durante o estabelecimento da República, as pela Igreja, por exemplo, passaram a ser vistas
ações que pretenderam modernizar a Universi- como impensáveis em uma sociedade republi-
dade e afastá-la de suas características coloniais cana. Os estudantes manifestaram, reforçando a
tiveram impactos reduzidos. Em nome da tradi- descrição sarmientina sobre o conservadorismo
ção da mais antiga instituição superior argentina e do interior em contraposição à vanguarda porte-
com receios políticos que respingassem na frágil nha, que o espírito das lutas pela independência
República, as mudanças eram mais formais e não política, protagonizado pelos líderes de Maio de
abalavam as estruturas vigentes, nem os métodos 1810, chegara a Córdoba apenas em 1918. Era
de ensino e de organização política. Em pleno sé- como se Córdoba tivesse permanecido à margem
culo XIX, sob a influência de liberais ilustrados, dos intensos processos de transformação e con-
Córdoba preservava sua tradição e resistia a gran- solidação da República argentina que duraram
des transformações. aproximadamente cinco décadas.
Uma prática que permanecia era a cátedra vi- Questões pontuais como o protesto dos estudan-
talícia. Se, por um lado, a cátedra era uma garan- tes de Medicina contra o fechamento do internato
tia para que a docência pudesse ser exercida sem expunham aspectos imediatos que desencadea-
pressões externas à questão acadêmica, por outro, ram os atos contra a administração universitária,
ela significava a perpetuação de nomes ligados à que alegava falta de recursos e questões “morais”.
oligarquia local, sem o debate intelectual e o mé- Na Faculdade de Engenharia, por ordem dos ca-
rito ao qual deveria estar relacionada. As cátedras tedráticos, aumentaram as exigências para que os
eram quase “hereditárias” e preenchidas por “ilus- alunos pudessem assistir às aulas, restringindo a
tres” que se enraizavam na estrutura universitária presença de jovens de classe média. A proposta
em busca de prestígio político na principal cidade de mudança no sistema de cátedras reuniu os es-
do interior argentino. No ensino também não se viu tudantes das três faculdades existentes: Medicina,
maiores alterações, pois os métodos preservavam Engenharia e Direito. Sem serem atendidos, inicia-
aspectos dogmáticos em aulas ditadas pelos do- ram uma greve geral no dia 31 de março e lançaram
centes e na repetição dos cursos oferecidos (TUN- um manifesto à juventude argentina.
NERMANN BERNHEIM, 1998: 111-112). A administração fechou a Universidade no dia

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O fim da concepção da universidade
como um claustro levava à liberdade
para que um público amplo pudesse
frequentar as aulas
2 de abril sem contemplar nenhuma demanda do uma disputa dias depois. Três candidatos, num
corpo discente, como a reabertura do internato e restrito colégio eleitoral, disputaram a Reitoria no
a mudança no sistema de cátedras. Os estudantes dia 15 de junho. O resultado foi desastroso para
tomaram as ruas da cidade em frequentes pro- os estudantes, que viram seu candidato Martínez
testos. Em Buenos Aires foi criada a Federação Paz terminar em último lugar e assistiram à vitória
Universitária Argentina (FUA), agregando os es- do mais conservador entre os concorrentes, An-
tudantes de todo país em torno das demandas tonio Nores. Muitos docentes, que não participa-
expostas em Córdoba. O presidente Hipólito Yri- vam dos conselhos, simpatizavam com a causa
goyen decretou a intervenção na Universidade no estudantil, mesmo que não atuassem de forma
dia 11 de abril de 1918. aberta por causa da rigidez hierárquica existente.
A intervenção presidencial ocorreu, além da Para os estudantes, estava claro que as mudan-
pressão estudantil, pela simpatia que o governo ças recentes não estabeleceram uma democracia
eleito em 1916 tinha entre as classes médias ar- universitária e nem uma mudança em relação às
gentinas e como forma de romper o conservado- estruturas internas de poder.
rismo atribuído às oligarquias agrárias que assis- Os estudantes decretaram greve por tempo
tiam à perda de poder político, após a criação da indeterminado. O movimento se expandiu e ob-
Lei Sáens Peña (1912), que estabelecia o sufrágio teve apoio de sindicatos, políticos de esquerda e
universal e secreto. Os estudantes da FUA en- intelectuais de diferentes posições como José In-
contraram o presidente para apresentar suas rei- genieros e Manuel Ugarte.
vindicações e receberam o apoio do mandatário Em 21 de junho de 1918, os estudantes
que afirmou, na ocasião, que a Argentina vivia um aprovam o importante Manifesto Liminar ou La
“tempo novo” e a “Universidade deveria nivelar- juventud argentina de Córdoba a los hombres
-se com o estado de consciência alcançado pela libres de Sudamérica. Redigido por Deodoro
República” (LUNA, 2003: 95). Roca, o documento foi assinado por Enrique
Barros, Horácio Valdés, Ismael Bordabehere,

O interventor nomeado, José Nicolás Matienzo,


iniciou a reestruturação da Universidade, com
características liberais. Em maio, a Universidade
alguns dos dirigentes da Federação Universitá-
ria de Córdoba (FUC), que havia sido fundada
no dia 18 de maio. O documento é considerado
tinha um novo estatuto que alterava a imobilidade pelos pesquisadores da história das universida-
dos corpos diretivos e o caráter vitalício dos con- des latino-americanas a principal carta de prin-
selhos existentes nas faculdades. Foram declara- cípios apresentada até então.
dos vagos os cargos de reitor e de membros do
Conselho da Universidade. Os candidatos apoia- O Manifesto de 21 de
dos pelos estudantes obtiveram a maioria dos vo- junho de 19181
tos na eleição para o Conselho, ocorrida em 28 Organizado em 15 parágrafos, o Manifesto
de maio. O cargo de reitor, entretanto, foi alvo de aborda três pontos centrais que destacamos: o

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diagnóstico da crise vivida pela Universidade de Na primeira frase do documento estudantil


Córdoba; a afirmação do poder de renovação da eles afirmavam ser “homens de uma República
juventude e suas propostas políticas; e as reivindi- livre” que acabaram de “romper o último elo, que
cações reformistas propriamente ditas. em pleno século XX, nos prendia à antiga domi-
nação monárquica e monástica”. Os estudantes,
A crítica à Universidade na esteira da tradição argentina oitocentista que
e à docência via na cidade um baluarte do conservadorismo,
O Manifesto é contundente em sua descrição da apresentavam-se como aqueles que redimiriam
realidade universitária. O regime era definido como Córdoba do seu passado: “desde hoje contamos
anacrônico e fundado numa espécie de direito di- para o país uma vergonha a menos e uma liberda-
vino do professorado, que mantinha os docentes de a mais.”
separados da realidade e distantes dos alunos. As Debelar o que classificavam como “absurda
universidades, em torno da noção de cátedra, de- tirania” dos modelos representativos da Univer-
monstravam um “espetáculo de imobilidade senil” sidade e que servia para proteger a “falsa com-
, “refúgio dos medíocres” e garantia de “renda dos petência” era a bandeira dos estudantes. Para
ignorantes”. O argumento da autoridade professo- os estudantes, em Córdoba, não havia desordem
ral era usado para inibir e controlar. Contra esse mo- por conta da ação estudantil, mas o “nascimento
delo, afirmaram os estudantes: “a autoridade, em de uma verdadeira revolução que há de agrupar
uma casa de estudantes, não se exerce mandando, sob sua bandeira todos os homens livres do con-
mas sugerindo e amando: ensinando.” tinente”.
A manutenção de regras que reforçavam a Os estudantes atribuíram para si um destino
mera obediência, similar a um quartel, não tinha heroico ao defender que todos os esforços eram
qualquer relação com um lugar em que se produz para produzir a “redenção espiritual das juventu-
ciência, segundo o Manifesto. “Se não existe uma des americanas”. Algumas referências parecem
vinculação espiritual entre o que ensina e o que saídas do clássico ensaio do uruguaio José Enri-
aprende, todo ensinamento é hostil e, consequen- que Rodó (1872-1917), Ariel, escrita em 1900.
temente, infecundo.” A obra percorreu a América Latina e tinha como
O cerne da reivindicação estudantil era em alvo a educação dos jovens que seriam desinte-
torno do exercício da autoridade universitária e a ressados ante um espírito pragmático e corrompi-
revogação de princípios que impediam, mais do do. A premissa idealista reafirmada no Manifesto
que a participação na administração, o desenvol- tinha, à semelhança do arielismo, uma aposta na
vimento acadêmico. ação do indivíduo na sociedade e na história. Ou-
tra influência, igualmente perceptível e fundante
As questões políticas e o papel no processo, foi José Ingenieros (1877-1925) que
histórico dos estudantes defendia ser a juventude a protagonista das trans-

‘Se não existe uma vinculação


espiritual entre o que ensina e o que
aprende, todo ensinamento é hostil e,
consequentemente, infecundo’
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formações culturais, além de ser um árduo entu- Reunidos em Córdoba, definiram de forma mais
siasta de que a nacionalidade argentina estava por consistente o que havia sido apresentado no Ma-
ser construída nos planos ético, cultural, social, nifesto de 21 de junho. A reivindicação pode ser
econômico e filosófico e a Universidade deveria sintetizada nos seguintes pontos:
acompanhar tal debate, distanciando-se de um
modelo europeu e adquirindo feições próprias. coparticipação dos estudantes na estrutura
administrativa;
As demandas estudantis participação livre nas aulas;
Em um único fragmento podemos identificar periodicidade definida e professorado livre das
as imbricadas bandeiras políticas e acadêmicas cátedras;
dos estudantes cordoveses. Os jovens universitá- caráter público das sessões e instâncias
rios se contrapunham ao “regime administrativo”, administrativas;
contra o “método docente” e contra “um concei- extensão da Universidade para além dos seus
to de autoridade”. O temor diante de qualquer limites e difusão da cultura universitária;
reforma era justificado, segundo o documento, assistência social aos estudantes;
pelo receio de perder o emprego e, consequen- autonomia universitária;
temente, não havia espaço para qualquer inova- universidade aberta ao povo.
ção. Mantinha-se um ensino dogmático, com a
repetição exaustiva dos mesmos textos e progra- Em 7 de agosto o reitor Nores renunciou. Em
mas, impedindo o desenvolvimento da ciência e 9 de setembro, os estudantes tomaram a direção
a introdução de “disciplinas modernas”. A estru- e o controle da Universidade e reabriram a ins-
tura administrativa e burocratizada, fechada em tituição. O governo de Yrigoyen designou como
si mesma, não permitia a participação estudantil interventor o próprio ministro da Educação, José
nas instâncias deliberativas da Universidade e Salinas, que foi recebido em outubro com apoio
ignorava seus anseios. dos estudantes. Salinas levou a cabo o projeto de
Contra tal tríade os estudantes de Córdoba reforma universitária tal como reivindicado pelos
apelavam aos estudantes de toda América do Sul estudantes, assegurando o triunfo do movimento
para que observassem como as demandas eram universitário que se espalhou por toda América La-
similares, assim como a tarefa que se impunha de tina e estabeleceu as bases para o funcionamento
reformar as universidades a partir de uma ban- das universidades do continente.
deira comum: mudar os mecanismos administra-
tivos, o ensino e a prática docente. Os legados de Córdoba
Qualquer processo histórico pode ser anali-
A continuidade do sado sem pensar no imediato desdobramento de
movimento reformista suas ações. O caso do movimento de Córdoba,
O impasse na Universidade de Córdoba pros- entretanto, permite observar seus alcances e per-
seguiu pelos meses seguintes: os estudantes em manências nas universidades latino-americanas.
greve geral e a administração querendo conter os Um dos principais nomes da história intelectual
ímpetos reformistas. O bispo de Córdoba chegou argentina, Oscar Terán, afirmou que o movimento
a emitir uma Carta Pastoral condenando a mobi- político-estudantil iniciado em 1918 foi um “dos
lização estudantil que ganhava adeptos externos movimentos de alcances continentais mais exito-
à Universidade. No mês de julho, realizou-se o I sos em todo o século XX, ao ponto de que se teve
Congresso Nacional de Estudantes Argentinos. que esperar até a Revolução Cubana para encon-

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História

A experiência da Primeira Guerra


Mundial obrigou muitos intelectuais a
rever o europeísmo como indicador da
modernidade a ser buscada
trar outro movimento de semelhantes proporções cias às questões de cada país provocaram uma
latinoamericanistas” (TERÁN, 44). redescoberta dos vizinhos: de um sentimento
O que teria garantido a permanência da Refor- nacional chegava-se à condição política e econô-
ma de 1918 no imaginário latino-americano? Como mica da América Latina. O diagnóstico de que se
uma demanda tão particular, a reivindicação estu- enfrentava um inimigo comum, o imperialismo,
dantil pela mudança no ensino e na administração, suscitava a aproximação entre os latino-america-
pôde ter uma repercussão tão ampla? Provavel- nos. O anti-imperialismo tornara-se uma bandei-
mente nenhuma resposta a tais questões esgota ra comum nas primeiras décadas do século XX e
as possibilidades de interpretação. Uma delas é marcou uma geração de intelectuais, como os já
a emergência e o reconhecimento do papel da ju- citados Ingenieros e Rodó, além do mexicano José
ventude, muitos deles filhos de imigrantes, nos pro- Vasconcelos e do peruano José Carlos Mariátegui,
cessos de modernização e urbanização acelerados para citar alguns dos mais conhecidos.
do início do século XX. Na Argentina da década Porém, como observado no início do artigo,
de 1910, 53% da população era urbana. As uni- não devemos nos fiar exclusivamente nas expli-
versidades latino-americanas, desde suas origens cações do contexto geral, fazendo com que se
coloniais, eram os centros formadores das elites percam as especificidades de um processo, nem
intelectuais e profissionais. A partir das mudanças observar apenas o aspecto mais particular que li-
do século XIX, quando as nações emergiram como mite o alcance da compreensão do movimento de
unidades políticas independentes, ter universida- Córdoba em 1918.
des e, sobretudo, frequentá-las era uma forma de
acesso imediato ao debate público e às funções de
Estado. Qualquer reforma que indicasse maior de-
mocratização e a proposição de grandes questões
N o que tange à particularidade desta publica-
ção sobre Ensino Superior é inegável que a
Reforma sinalizou alguns aspectos que podem
da realidade podia ser lida como um fenômeno co- ser remontados a partir das declarações e da
mum e apropriado por outras nações. vasta bibliografia que se dedicou a analisar aque-
Outro aspecto importante foi o contexto inter- le processo. Dentre os aspectos destacamos: a
nacional de 1918. A experiência da Primeira Guer- defesa da autonomia universitária; a mudança
ra Mundial obrigou muitos intelectuais a rever o no processo de ensino e de docência e a demo-
europeísmo como indicador da modernidade a ser cratização da universidade, tanto em sua gestão
buscada. Ao mesmo tempo, muitos países cele- como na garantia da permanência de estudantes
bravam o primeiro centenário de suas indepen- de todos os grupos sociais.
dências políticas e ainda se perguntavam sobre A experiência dos estudantes de Córdoba
qual nação que estava sendo construída. Mais do contra a interferência do clero e dos setores mais
que avaliar o passado, estavam sendo propostos reacionários implicava a defesa do princípio da
desafios em direção ao futuro das sociedades la- autonomia, que em outros países, e por diversas
tino-americanas. Naquela atmosfera, as referên- vezes ao longo dos anos seguintes, foi utilizada

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contra as pressões governamentais. A defesa da social da universidade, ao mesmo tempo em que
autonomia foi parte das declarações de movimen- os saberes não deveriam ficar restritos aos círculos
tos estudantis que se seguiram ao Manifesto de 21 acadêmicos. Parece-me ser este um dos pontos
de junho de 1918 em vários países, como México, mais inquietantes da proposta de Córdoba, pois
Uruguai, Chile, Brasil e Peru. A autonomia tinha em muitos países latino-americanos a Universida-
que existir como uma bandeira em meio a um li- de foi quase o monopólio da produção e circulação
mite tênue entre o ataque às cátedras e ao ensino de conhecimentos. Dessa forma, a abertura à par-
universitário vigente e a afirmação da liberdade ticipação externa seja como estudantes ou como
universitária para sua reorganização. Portanto, a docentes que não estejam vinculados por laços
autonomia não era uma bandeira simples, posto empregatícios é um desafio difícil de ser superado
que se articulava com demandas como a inserção em muitas instituições nos dias atuais.
social da Universidade e mecanismos de controle
das instâncias administrativas por parte de estu-
dantes, professores e funcionários.
As mudanças no ensino propostas pelos estu-
P or fim, a bandeira da democratização da uni-
versidade na gestão e na permanência dos
estudantes. Em Córdoba reivindicava-se a parti-
dantes foram das mais significativas. A Universi- cipação de estudantes, graduados e professores
dade de Córdoba e as demais universidades que na gestão. As experiências concretas e a reforma
se reinventaram no século XX tiveram de alterar na legislação argentina asseguraram a participa-
práticas e regulamentos para evitar o encastela- ção estudantil em Córdoba e, posteriormente, em
mento e o enrijecimento da estrutura docente. diferentes níveis nas universidades latino-ameri-
A proposição de cátedras livres, da livre partici- canas. O ponto dissonante, no caso argentino, foi
pação, ou, mais adequadamente, livre matrícula que ao longo das décadas o pressuposto de que
nas disciplinas eram medidas complementares. A há uma comunidade educativa em que todos os
liberdade de oferecimento de cursos e disciplinas membros, independentemente de suas posições
externos às cátedras tradicionais, por professores políticas, religiosas ou ideológicas, compartilham
que nem integravam o quadro universitário, era um conjunto de valores e uma lógica de funcio-
uma forma de fraturar a rigidez das cátedras. O namento com a finalidade de produzir e trans-
estudante podia optar entre disciplinas a serem mitir conhecimento, foi perdendo significado.
cursadas e, consequentemente, os docentes ti- Tal conclusão foi exposta numa mesa-redonda
nham de se desdobrar em sua atividade para ocorrida em Buenos Aires em setembro de 2000
atrair os estudantes. Olhando de forma distante, que reuniu a historiadora Hilda Sábato, o reitor
poderia parecer um concurso de popularidade da Universidade Nacional de General Sarmiento,
entre profissionais, mas não se tratava disso. O José Luís Coraggio e o decano da Universidade
rigor continuava existindo, mas o que se preten- de Buenos Aires, Guillermo Etcheverry (Punto de
dia confrontar era a “mediocridade” descrita pelo Vista, 68). Assim, muitas vezes, o resultado tem
Manifesto e impulsionar a renovação dos métodos sido a sensação de que “não se caminha para
e conteúdos de ensino. nenhum lado”, pois o modelo estruturado em
Outro dado importante, nesse mesmo aspecto, 1918 e revisto pós-ditadura, em 1984, preser-
era a abertura das disciplinas para a assistência vava a ideia de comunidade e de consenso que
livre. O fim da concepção da universidade como pudesse ser obtido. As tensões na vida universi-
um claustro levava à liberdade para que um pú- tária, como se observa, são parte da própria lógi-
blico amplo pudesse frequentar as aulas. Era uma ca de funcionamento de um espaço de produção
forma de corresponder às demandas de inserção e circulação de conhecimento.

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História

Ignorar os eventos de 1918, por outro


lado, é perpetuar o desconhecimento
da história das universidades latino-
americanas e seus esforços para adquirir
um caminho próprio e legítimo

Córdoba, no seu momento mais estruturado KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das
e politizado, denunciou uma situação e empre- origens ao século XXI. S. Paulo: Contexto, 2007;
endeu esforços para mudar. Olhar para 1918 LUNA, Félix. Los conflictos en la Argentina próspera
em busca de lições a serem extraídas é negar a (1890-1937). Buenos Aires: Planeta, 2003.
própria dinâmica que propuseram seus integran- PRADO, Maria Lígia Coelho. América Latina: tramas, te-
tes: é quase um exercício de monumentalização las e textos. São Paulo/Bauru: Edusp/Edusc, 1999.
que enaltece um passado vibrante enquanto se REVISTA PUNTO DE VISTA. Ano XXIII, número 68. Bue-
vivencia um presente pouco desafiador. Ignorar nos Aires: dezembro de 2000.
os eventos de 1918, por outro lado, é perpetuar SADER, Emir; GENTILI, Pablo; ABOITES, Hugo. (orgs.)
o desconhecimento da história das universidades La reforma universitaria: desafíos y perspectivas
latino-americanas e seus esforços para adquirir noventa años después. Buenos Aires: CLACSO,
um caminho próprio e legítimo. Entre uma e ou- 2008.
tra postura, há que seguir questionando e proje- SARMIENTO, Domingo F. Facundo, ou civilização e bar-
tando uma universidade que esteja conectada a bárie. S. Paulo: Cosac Naif, 2010. [1845].
seu tempo, expresse suas pluralidades e contra- TERÁN, Oscar (org.). Ideas en el siglo: intelectuales y
dições, nem tema pelo futuro que seus próprios cultura en el siglo XX latinoamericano. Buenos Ai-
agentes já estejam construindo. res: Siglo XXI, 1998.
TÜNNERMANN BERNHEIM, Carlos. “La reforma uni-
FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultu- versitária de Córdoba”. In: Educación Superior y
ra y política em los años veinte latinoamericanos. Sociedad. Caracas: Unesco, vol. 9, no.1, 1998. p.
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. 103-127.

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