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História,como se faz?

Exercícios de metodologia da história sobre


escravidão e liberdade

(org.)
María Verónica Secreto
Jonis Freire
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História,como se faz?
Exercícios de metodologia da história sobre
escravidão e liberdade

(org.)
María Verónica Secreto
Jonis Freire
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© María Verónica Secreto e Jonis Freire.
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores
e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj


H58
História, como se faz?: exercícios de metodologia da história sobre escravidão e
liberdade. vol. 1 / organização María Verónica Secreto, Jonis Freire. – Ebook – Belo
Horizonte: Fino Traço, 2022.
263 p. ; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8054-571-5
1. História – Metodologia. 2. Pesquisa – Metodologia. 3. Prática de ensino. I.
Secreto, María Verónica. II. Freire, Jonis.
22-78658 CDD: 901 CDU: 001.8:82-94

Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643 30/06/2022 05/07/2022

Coleção História
Conselho Editorial
Alexandre Mansur Barata | UFJF
Andréa Lisly Gonçalves | UFOP
Gabriela Pellegrino | USP
Iris Kantor | USP
Junia Ferreira Furtado | UFMG
Marcelo Badaró Mattos | UFF
Paulo Miceli | UniCamp
Rosângela Patriota Ramos | UFU

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br

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Sumário

História, como se faz? .........................................................................7


María Verónica Secreto e Jonis Freire

Registros portuários e comércio atlântico: entre o local e o global, entre


o lícito e o ilícito................................................................................ 19
Fabricio Prado

Negros herdeiros na zona da Mata Mineira: os irmãos Costa Lima . 45


Elione Silva Guimarães

A escravidão em números: estudo da demografia escrava entre


1851-1872 ........................................................................................... 73
Maísa Faleiros da Cunha

Batismos, casamentos e óbitos: fontes para os estudos sobre a


escravidão.........................................................................................99
Jonis Freire

Desenhando corpos, construindo liberdades: uma prosopografia das


fugas no Rio de Janeiro ................................................................... 127
Tânia Pimenta, Layla Silva e Flavio Gomes

Jornais no tempo da escravidão ......................................................155


Karoline Carula

Onde estão os arquivos do abolicionismo negro? .............................175


Isadora Moura Mota

As sociedades mutualistas e os seus registros escritos: análise formal e


social das atas de suas reuniões ordinárias e extraordinárias ........ 199
Marcelo Mac Cord

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Perante os tribunais. As fontes judiciais e a historiografia da
escravidão........................................................................................217
María Verónica Secreto

Metodologia de ensino em história do Brasil colonial com base em fontes


primárias: uma proposta para a formação de professores à luz da lei
10.639/ 2003 .................................................................................... 237
Aldair Rodrigues

Sobre os autores .............................................................................. 265

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História, como se faz?

María Verónica Secreto | Universidade Federal Fluminense


Jonis Freire | Universidade Federal Fluminense

Este livro está destinado, principalmente, a aqueles que se perguntam


como se faz e, ainda, para aqueles que, sabendo como se faz, buscam
instrumentos para ensinar a fazer história.
Quando na área de história realizamos uma busca bibliográfica sobre
o tema “projeto de pesquisa” logo descobrimos que é um gênero menor e
que nossa busca será quase infrutuosa. Enquanto nas ciências sociais os
manuais de metodologia são um gênero consagrado e cultivado pelos grandes
nomes das disciplinas (MAUSS, 1972, BOURDIEU, CHAMBOREDON,
PASSERON, 1999, CHAMPAGNE, 1996, OLIVEIRA, 2006), na história é
um campo marginal da produção acadêmica. Sim, o Mauss que escreveu o
Ensaio sobre a dádiva (2003) também escreveu Manual de etnografia (1972).
Trata-se, este último, de uma recopilação de aulas, o que não é um dado
supérfluo. A necessidade de explicitar as metodologias da pesquisa está
relacionada com a prática do ensino.
Os currículos universitários têm disciplinas específicas que tratam da
pesquisa. Umas com formato mais empírico, como Métodos e técnicas de
pesquisa em história, que em geral conduzem o aluno nas etapas de elaboração
de um projeto, e outras com formatos mais teóricos, como Teoria e Métodos
da história. Apesar da pesquisa estar presente de modo transversal na maioria

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dos currículos universitários, o certo é que a explicitação dos métodos não
responde às necessidades dos estudantes. Enquanto as técnicas e estratégias
docentes são explícitas, as técnicas e estratégias de pesquisa ficam ocultas
na apresentação do produto acabado, seja nos livros, artigos ou em outras
produções.
Nos títulos que circulam nas redes bibliográficas globais percebe-se uma
excisão entre teoria e prática. Evidenciada em uma “dispersão” metodológica,
como se heurística e hermenêutica operassem de forma diferente se se faz
história social, econômica, da cultura, serial ou qualitativa. Em história impera
o particularismo. É difícil que alguém se anime a escrever um manual de
história, assim como os manuais de etnografia ou de sociologia.
Na década de 1970 Ciro Flamarion Cardoso e Perez Brignoli publicaram
um livro com o título Os métodos da história: introdução aos problemas,
métodos e técnicas de história demográfica, econômica e social (tradução
do livro publicado pouco antes em espanhol). Por mais de 500 páginas os
autores buscavam dar conta dos instrumentos de conhecimento que o campo
da história dispunha naquele momento. Tempo depois, Ciro Flamarion
Cardoso publicou Introducción al trabajo de la investigación histórica (1981).
Nesse, o autor advertia sobre o perfil do livro, e esclarecia que em 1976 tinha
publicado, junto com Pérez Brignoli, Los métodos como manual universitário.
Ambos os livros tinham nascido da experiência docente e das observações
realizadas por alunos do México, Costa Rica e do Brasil. Dizia o goianiense
que, alguns alunos sugeriram maior detalhamento dos problemas teóricos e
epistemológicos enquanto outros solicitavam o aprofundamento do primeiro
anexo eminentemente prático do livro Os métodos, que levava por título
“como organizar e levar a cabo uma pesquisa histórica.” (CARDOSO, 1981:9).
Enquanto nas últimas décadas vimos crescer a lista de livros na primeira
demanda: análises teóricas e epistemológicas (incluindo as dos diversos
giros epistémicos) a segunda, a dos métodos de forma estrita, vinculados
aos procedimentos, tem recebido menos atenção.
Não viemos a preencher o enorme vazio do manual de metodologia,
que está além de nossas possibilidades – continuaremos como diz Pierre
Vilar a sonhar com um “tratado de história” (VILAR, 1981:7). Propomos
atender uma demanda genuína de nossos alunos, a de mostrar a cozinha da

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história. Junto com eles nos perguntamos por que os historiadores se sentem
confortáveis para escrever ensaios teóricos, historiográficos e empíricos
enquanto “escapam” de escrever sobre como fazem história. O “fazer” às vezes
aparece no relato íntimo, junto às turmas, em que o professor/pesquisador
relata alguma experiência de “arquivo”.
Na década de 1980 e 1990 vimos no Brasil o predomínio das abordagens
qualitativas e um diálogo profícuo entre escolas solidárias: a micro história
italiana com a história social inglesa e a história da cultura francesa. A
combinação era possível e frequente. A “cozinha” ficou bastante evidente já
que essas correntes se definiram pelo método, por uma forma de trabalhar
as fontes e de privilegiar alguns tipos, embora a explicitação metodológica
várias vezes foi reduzida a uma introdução, a uma citação do “método
indiciário” (GINZBURG, 1990).
A primeira década do presente século trouxe a escala global às análises
históricas, houve um alargamento dos espaços estudados acompanhado de
uma ênfase na teoria. O espectro teórico é muito variado já que a perspectiva
“globalista” abrange dos estudos da antiguidade à contemporaneidade.
Importante sinalizar que nessas abordagens as questões teóricas têm grande
peso nas delimitações dos problemas e objetos, como é o caso da perspectiva
decolonial que acompanha o espectro temporal mencionado: da antiguidade
ao presente.
Em uma perspectiva ou outra, continua a ser difícil para os jovens que
se iniciam na pesquisa fazer as primeiras escolhas -tema, problema, fontes –,
começar uma pesquisa e comunicar os resultados. Podemos dizer que esse
livro nasce em sala de aula, da demanda de acompanhar os historiadores pelos
bastidores de um fazer que se evidencia pouco, quando não fica marginado
às notas de rodapé, só inteligível para leitores mais experientes.
Nos últimos anos presenciamos o crescimento da produção historiográfica
em torno da escravidão: tráfico, práticas, demografia escrava, legislação,
fugas, resistências, cotidiano, representações etc., e, em torno a temas nas
fronteiras da escravidão. Por sermos pesquisadores desse campo de estudos
decidimos convidar um grupo de autores (professores/pesquisadores) que
sobressaem por sua produção nessa área para que nos narrassem um pouco
sobre suas pesquisas. Pedimos que nos contassem sobre os problemas que

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abordam e suas fontes. Convidamo-los a vestirem suas pesquisas com as
costuras para fora.
O resultado desse exercício é o que oferecemos a seguir.
Fabricio Prado escreveu o capítulo “Registros portuários e comércio
atlântico: entre o local e o global, entre o lícito e o ilícito”. Neste, o autor
analisa registros portuários para revelar o qualitativo e quantitativo das
trocas comerciais do Rio da Prata em finais do século XVIII. As guerras
na Europa e no Atlântico golpearam a economia espanhola e, com isso, a
capacidade de controle nos seus territórios ultramarinos. As rotas comerciais
que ligavam a Península e as colônias se tornaram perigosas, o que levou
a Espanha a permitir a participação de nações neutrais e amigas. A partir
da análise dos registros portuários produzidos por autoridades locais
do Rio da Prata e do Rio de Janeiro, o autor revela que não houve uma
interrupção das rotas comerciais entre as colônias do Rio da Prata com a
Espanha. Examina as questões teórico-metodológicas e procedimentais da
utilização de livros de registros de chegada e saída de embarcações e autos de
embarcações produzidos em portos das Américas. Mostra como a utilização
de fontes portuárias permite enxergar as conexões regionais e globais de uma
comunidade. Se bem os registros foram produzidos com uma preocupação
eminentemente fiscal, também oferecem excelentes informações sobre o
comércio clandestino, ou de contrabando. No início do século XIX, os de
uso de portos, navios, e intermediários portugueses tornou-se comum nas
operações dos comerciantes do Rio da Prata. Ademais dos “volumes” Fabricio
demonstra como pode ser utilizada essa documentação para compreender
as trajetórias e estratégias de alguns comerciantes, como o caso de Francisco
de Necochea, que em 1802 peticionou ante as autoridades em Brasil e em
Portugal com o objetivo de remover as taxas portuárias e de transbordo no
Brasil e em Portugal.
E embora não seja o objetivo do autor, Prado nos chama a atenção
para o fato de que as características seriais das fontes portuárias oferecem
oportunidades para o uso de técnicas de humanidades digitais, especialmente
no que tange à criação de planilhas e base de dados, como a famosa Slave
Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database.1

1. https://www.slavevoyages.org/

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Elione da Silva Guimarães, em “Negros herdeiros na zona da Mata
Mineira”, define a região como umas das mais escravocratas do país. Área onde
as relações entre senhores e escravizados eram complexas ao ponto de envolver
violência, afeto e contratos. Nesse contexto encontramos escravizados que se
converteram em legatários ou herdeiros de seus senhores. Baseando-se em
testamentos e em inventários post mortem, a autora analisa as heranças e os
legados deixados para os ex-cativos ou libertos. A pesquisa tem como fonte
principal os testamentos anexados aos inventários post mortem. A historiadora
explica o funcionamento das práticas testamentárias e da organização legal
das sucessões. Responde às perguntas: quem testava, como testava, que
tipo de testamentos existiam, qual o valor legal dos testamentos e onde
podem ser encontrados. Também descreve a função social dos inventários
post mortem e sua ocorrência arquivística. Para o presente artigo Elione
Guimarães selecionou testamentos em que cativos e libertos aparecem como
herdeiros. Para esses casos também localizou os inventários correspondentes.
Mas, pesquisadora incansável como é, identificou outros documentos em
que apareceram os envolvidos, como livros de notas (compra e venda de
bens, hipotecas, procurações etc.) e processos civis e criminais diversos.
Buscando, com isso, reconstruir suas trajetórias, conhecer as famílias negras,
e acompanhá-los nos conflitos em que se viram envolvidos por possuir
alguma coisa. Analisou testamentos de 631 pessoas, (290 em Mar de Espanha
e 341 em Juiz de Fora). Destas,17,4%, deixaram legados para cativos e/ou
libertos. A pesquisa permite conhecer parte do processo de formação da
identidade camponesa dos egressos do cativeiro e as limitações do projeto
“proprietário” desse grupo.
Maísa Faleiros da Cunha é autora de “A escravidão em números: estudo
da demografia escrava entre 1851-1872”, no que apresenta o campo da história
demográfica. Analisa as origens do método de reconstituição de família,
fundamental para o estudo das sociedades pré-estatísticas. Como diz a autora,
através dessa metodologia foi possível conhecer as histórias de indivíduos
até então “silenciados”.
Compara os dados populacionais referidos a um momento específico
(1872) com as informações coletadas em inventários post mortem para o
período prévio: 1851-1871. Seu objetivo é o de apontar as semelhanças e

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diferenças encontradas na demografia escrava a partir de fontes distintas.
A primeira, o recenseamento de 1872, o primeiro censo nacional e o único a
recensear a população escravizada no Brasil. A segunda fonte que utiliza são
os inventários post mortem – já apresentados no artigo de Elione Guimarães
-abundantes nos arquivos e fóruns das cidades. Neles é possível verificar
o tamanho da escravaria. O artigo faz uma análise sociodemográfica da
população escravizada em Franca, na província de São Paulo, entre 1851 e 1872.
Ao mapear as famílias escravas no recenseamento (estado conjugal) e nos
inventários Maísa busca salientar como o casamento atuou como instituição
que possibilitou o estabelecimento de laços de parentesco, afetivos e sociais.
Ainda na perspectiva da história demográfica Jonis Freire escreveu
“Batismos, casamentos e óbitos: fontes para os estudos sobre a escravidão.”
Esse artigo nos apresenta os registros paroquiais e a potencialidade das
informações contidas neles a partir das anotações da administração dos
sagrados sacramentos da Igreja Católica. Se bem os sacramentos católicos
são sete, para a história demográfica são três os que trazem informações
sociais mais relevantes: batismo, casamento e óbitos. Antes da criação do
registro civil todo o movimento populacional era assentado somente pela
igreja, única instituição com presença territorial em toda a colônia ou o
Império. “Tomar os sacramentos” era um momento importante na vida
espiritual e social das pessoas.
Jonis Freire parte do parecer dado ao Conselho de Estado, pela “Seção
de Negócios Estrangeiros”, em 1863, no qual se apontava a ausência de
laços entre os cativos devido à ausência de relações familiares duradouras.
“Imperava, pela leitura do parecer, a devassidão”. Mas ao analisar os batismos,
os casamentos e os óbitos de escravos, Freire se depara com outra realidade:
aparecem inúmeras relações familiares com a nomeação de mães, pais e/ou
avós. O compadrio, a sociabilidade e solidariedade também estão presentes.
Redes e laços tecidos pelos cativos para dentro da comunidade escrava e
para fora dela.
Além de mostrar a potencialidade da documentação paroquial quanto a
hipóteses de trabalho o autor recomenda a montagem de um banco de dados,
já que se trata de uma documentação de caráter serial. Essa ferramenta é útil
independentemente se a documentação receberá um tratamento qualitativo

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ou quantitativo, pois permite cruzar as variáveis entre si ou com outros
documentos, localizar indivíduos, apontar padrões/tendências.
Tânia Pimenta, Layla Silva e Flavio Gomes em “Desenhando corpos,
construindo liberdades: uma prosopografia das fugas no Rio de Janeiro”
apresentam o potencial dos anúncios publicados nos jornais e os registros
prisionais para o estudo das fugas e seus significados. Consideram que apesar
dos milhares de microinformações contidas nesses registros ainda sabemos
pouco sobre as intenções e expectativas dos fugados.
Lembram os autores que os anúncios de fuga são redigidos sob um
olhar senhorial, mas como muitos registros das classes dominantes devem
ser lidos criticamente para obter informações que permitam reconstruir
uma história social.
Os autores escolheram dois tópicos para apresentar aos leitores: o
dos corpos e o das experiências. No tópico “desenhando corpos” abordam
uma bibliografia, na qual eles são autores, que vem utilizando as descrições
físicas dos fugados para se aproximar das condições da saúde/doença dos
escravizados e as condições materiais de vida, lidas a partir das condições
e aspectos dos corpos em fuga. Essas descrições não eram “completas” nem
neutras, nos anúncios os senhores escolhiam fazer referência a informações
que permitissem identificar o indivíduo, para sua possível captura, sonegando
outras. O interesse no corpo dos escravizados é um ponto de convergência
entre as historiografias da escravidão e da saúde.
No segundo tópico, intitulado “traduzindo experiências”, os autores
destacam a importância da utilização de anúncios para nos aproximar da
dimensão africana da escravidão urbana no Rio de Janeiro. As estratégias
discursivas impressas nos jornais sobre os corpos, marcas, perfis, estratégias,
formas de falar e de vestir permitem recompor as primeiras visões sobre e
dos africanos. Os autores trazem para análise uma amostra de 780 anúncios
de fuga (somente consideramos os africanos) publicados no Diário do Rio de
Janeiro nos anos de 1822, 1823, 1840, 1841, 1842 e 1843. “As primeiras traduções
aparecem nas descrições do corpo dos (transformados em) africanos. Para
ajudar na captura e reconhecimento – tanto de pedestres como daqueles
que podiam denunciar os fugidos – surgem visões senhoriais.”

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Karoline Carula também aborda a imprensa como fonte para a história
da escravidão. Em “Jornais no tempo da escravidão” analisa o potencial
dessa fonte. Nos alerta para a importância da descrição externa da fonte
e para a metodologia de busca. Afirma que a disponibilização digital da
Biblioteca Nacional, através do portal Hemeroteca Digital, tem facilitado e
incentivado a pesquisa.2
Quem folheia um jornal do século XIX logo percebe que compras,
vendas, aluguel e fugas de escravos eram anunciados diariamente. A
elaboração de séries a partir dessas informações periódicas é uma das
possibilidades de abordagem. A quantificação pode ser combinada ou não
com uma abordagem qualitativa. A esse respeito os anúncios sobre fugas
são muito ricos. Traços físicos, roupas, marcas de nação, cicatrizes, idade
aproximada, comportamentos cotidianos, como modos de andar e falar,
cacoetes etc., eram publicadas com o intuito de recuperar o prófugo. Assim,
diz Karoline, por meio dessa fonte, além da ação de rebeldia contida na
fuga, é possível apreender aspectos da vida cotidiana dos cativos. O artigo
ainda se detém sobre os anúncios de aluguel, lembrando que o aluguel de
escravizados era bastante frequente e rendável para os senhores de escravos.
Entre as profissões dos escravizados alugados Karoline destaca as amas
de leite. Grupo e atividade sobre os quais ela tem pesquisado e produzido
interessantíssimos resultados (CARULA, 2012, 2021). Ademais de atentar
para os elementos textuais dos jornais, o artigo também chama a atenção para
a pesquisa nos formatos ilustrados. Como o tom da imprensa ilustrada da
segunda metade do século XIX era satírico, a autora alerta sobre a necessidade
de compreender o que era risível nesse contexto.
Marcelo Mac Cord é autor de “As sociedades mutualistas e os seus
registros escritos: análise formal e social das atas de suas reuniões ordinárias
e extraordinárias”; inscreve sua pesquisa na história social. Na interseção de
empiria a classe, Mac Cord apresenta uma forma de trabalhar com as atas das
reuniões ordinárias e extraordinárias da Sociedade dos Artistas Mecânicos e
Liberais (1850 e 1880). Ele nos conta que a legislação brasileira exigia que as
sociedades desse tipo mantivessem seus livros de registros administrativos

2. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

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e seus livros contábeis. Mac Cord escolheu para nos apresentar o corpus da
Sociedade das Artes Mecânicas, que existiu na cidade do Recife entre os anos
1840 e 1950. Nessa também se ministravam aulas noturnas. Em 1871, alguns
artesãos pretos e pardos vinculados à associação fundaram o Liceu de Artes
e Ofícios do Recife. Como salienta o autor, neste e em outros trabalhos, nas
últimas duas décadas a historiografia social da educação tem demonstrado
como grupos de africanos e seus descendentes construíram e conquistaram
espaços para seu letramento (MAC CORD, ARAÚJO e GOMES, 2017).
Atento ao público a que se destina este livro, Mac Cord evidencia o potencial
dessa associação e de sua documentação para a história social da educação.
Isadora Moura Mota, em “Onde estão os arquivos do abolicionismo
negro?”, aborda a resistência escrava em Atibaia, em 1863, a partir dos
planos para uma rebelião de escravizados. O abolicionismo do título e do
artigo é um movimento amplo, de longa duração e com múltiplas origens,
e não aquele balizado pelas datas 1871-1888. Como diz a autora, as rebeliões
fizeram parte do cotidiano brasileiro ao longo do século XIX. No artigo é
salientada a dimensão atlântica, presente em todo o século, mas que a partir
da guerra de secessão americana ganhou novos significados nos territórios
mais escravistas das Américas. Mota convida a uma leitura crítica das fontes.
Salienta a “negação” ao protagonismo negro presente na documentação que
tratou sobre os eventos de 1863 em Atibaia. A luta antiescravista aparece nos
escritos das autoridades ou da imprensa imperial como ameaça estrangeira
ou fruto da influência britânica.
Isadora Moura Mota toma como fonte articuladora de sua análise um
ofício escrito por Vicente Ferreira da Silva Bueno (1815-1873) em fevereiro
de 1863. Esse documento integra um dossiê guardado no Arquivo Nacional,
como parte da “Série Justiça – Gabinete do Ministro”. Apesar de ser um
documento “tipificado” que reitera fórmulas técnicas de comunicação e outras
informações classificadas pelo prisma senhorial: estratégias de insurgentes,
seus nomes, idades, origem e fragmentos dos depoimentos e acareações,
pode também ser desconstruído e contextualizado para constituir arquivos
do abolicionismo negro no Brasil.
A autora fornece valiosíssima indicação para os jovens pesquisadores:
a de desconstruir as fontes do ponto de vista das intencionalidades dos

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autores e do contexto sócio-histórico de sua produção. Nessa desconstrução
é fundamental realizar uma análise textual que conceda às epistemologias
negras a mesma dignidade e legitimidade que é outorgada às narrativas
dominantes.
María Verónica Secreto, em “Perante os tribunais. As fontes judiciais e
a historiografia da escravidão”, apresenta, a partir do caso do Rio da Prata,
a potencialidade da documentação jurídica e das demandas de escravos
ante as autoridades. Esse corpus documental permite compreender parte do
cotidiano dos escravizados e da escravidão na sociedade hispana colonial.
A autora diferencia a história social que faz uso dessa documentação da
história do direito. Se bem esta é importantíssima para quem pesquisa nos
processos judiciais e administrativos, é fundamental conhecer quais eram
os corpos legais e como era administrada a justiça. Por exemplo, saber que
os escravizados contavam com um “defensor público”, o chamado defensor
de pobres. Traz à tona uma afirmação de Tamar Herzog, a de que a aplicação
de justiça alimentava novas práticas e novas interpretações, sempre visando
a resolução dos conflitos que aquela sociedade demandava (HERZOG,
1995). A história social recorre à documentação dos “tribunais” porque a
partir desses documentos é possível se aproximar do cotidiano de grupos
silenciados em outros tipos de fontes, como é o caso dos escravos, índios,
mulheres, camponeses etc.
O artigo analisa alguns casos que nos permitem familiarizar no tipo
de demanda encontrada nesse corpus. Os mais frequentes na Buenos Aires
do final do século XVIII e início do XIX são os pedidos de liberdade, os
pedidos para obrigar o senhor a receber o valor do escravo, as solicitações
para mudar de senhor. A partir desses é possível nos aproximarmos do
cotidiano escravo.
Como dissemos no início, a presente coletânea surgiu da detecção de
uma carência, muitas vezes evidenciada em sala de aula. O artigo de Aldair
Rodrigues, permite compartilhar uma experiência áulica. “Metodologia de
ensino em história do Brasil colonial com base em fontes primárias: uma
proposta para a formação de professores à luz da lei 10.639/ 2003” reflete sobre
práticas e metodologias de ensino em História do Brasil colonial centradas no
uso de fontes primárias que contêm evidências sobre a experiência histórica

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dos africanos na diáspora. Aldair traz a experiência desenvolvida no âmbito
de duas disciplinas de graduação do curso de História da UNICAMP: “HH188
Laboratório de História”, oferecida a alunos de primeiro semestre, e “HH384
Brasil 1”, ministrada a alunos do segundo ano. Nesse caso também a pesquisa
documental ganha protagonismo, só que compartilhado com a experiência
de ensino.
Esperamos que depois de ler esses capítulos o jovem pesquisador se
sinta mais acompanhado no caminho que começou a percorrer.

Referências bibliográficas
BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.; PASSERON, J. Ofício de Sociólogo:
Metodologia da pesquisa na sociologia. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
CARDOSO, Ciro Flamarion e PÉREZ BRINOLI, Hector. Os métodos
da história: introdução aos problemas, métodos e técnicas de história
demográfica, econômica e social. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Iniciación al trabajo de la investigación histórica.
Barcelona: Crítica, 1981.
CARULA, Karoline. O mercado de trabalho de amas de leite na Gazeta
de Notícias, 10º Encontro Escravidão e liberdade no Brasil Meridional.
2021. Disponível em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/
images/10encontro/karoline_carula.pdf
CARULA, Karoline. Perigosas amas de leite: aleitamento materno, ciência
e escravidão em A Mãi de Família. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v.19, supl., dez. 2012, [197-214].
CHAMPAGNE, P. et al. Iniciação à Prática Sociológica. Rio de Janeiro: Vozes,
1996.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes do paradigma indiciário. In: Mitos,
emblemas e sinais, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
HERZOG, Tamar. Sobre la cultura jurídica en la América Colonial. Anuario
de Historia del Derecho Español, 1995, [903-912].
MAC CORD, Marcelo, ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira e GOMES, Flávio.
Rascunhos Cativos. Educação, Escolas e Ensino no Brasil Escravista. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2017.

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MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
MAUSS, Marcel. Manual de etnografia. Lisboa: Editora Pórtico, 1972.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O Trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo
15; São Paulo: Ed. Unesp, 2006.
VILAR, Pierre. Iniciación al vocabulario de la investigación histórica.
Barcelona: Crítica, 1980.

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Registros portuários e comércio atlântico: entre o
local e o global, entre o lícito e o ilícito

Fabricio Prado
College of William & Mary

O final do século XVIII trouxe profundas mudanças ao mundo Atlântico.


A crescente rivalidade entre impérios europeus, as guerras e revoluções,
assim como um aumento geral do comércio transatlântico alteraram o
equilíbrio de forças entre as potências coloniais e os seus territórios
ultramarinos. O império espanhol, em particular, enfrentou múltiplos
desafios, especialmente guerras intermitentes e crises econômicas, que muitos
historiadores consideram ter preparado o caminho para os movimentos de
independência hispano-americanas após 1808. As guerras na Europa e no
Atlântico enfraqueceram a economia espanhola e a capacidade de controle do
comércio e da administração nos seus territórios ultramarinos. Os conflitos
militares nas décadas de 1790 e 1800 tornaram perigosas as rotas comerciais
que ligavam a península e as colônias, forçando a abertura das economias
coloniais a agentes estrangeiros. Devido aos perigos da travessia atlântica para
os navios espanhóis, a monarquia permitiu aos seus súditos nas Américas
comerciar com nações “amigas ou neutras”, nessas condições o comércio de
contrabando também floresceu. Historiadores consideraram estes processos,
especialmente a virtual paralisação do comércio transatlântico espanhol,
como fatores cruciais para o colapso do sistema colonial espanhol (STEIN

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e STEIN, 2009:207, FISHER, 1998:459-479, LYNCH, 1994, GRAHAM, 2013,
ELLIOT, 2006). Entretanto, a análise dos registos portuários – comerciais e
administrativos produzidos por autoridades locais do Rio da Prata e do Rio
de Janeiro revela que o volume, rotas, e o tipo de interação comercial direta
entre os espanhóis rio-platenses e os comerciantes de países estrangeiros
(especialmente luso-brasileiros) não significou a interrupção das rotas
comerciais entre as colônias do Rio da Prata com a Espanha. Na verdade,
o comércio com nações estrangeiras, especialmente entre territórios
espanhóis no Rio da Prata e luso-brasileiros, permitiu que os comerciantes
espanhóis americanos mantivessem não só a atividade comercial regional,
mas também se utilizassem-se de navios e portos estrangeiros (neste caso
os portos do Brasil) para manter o fluxo de mercadorias, pessoas, capitais
e informação entre a Espanha e os seus territórios americanos, assim como
entre diferente colônias nas Américas durante períodos de guerra. Neste
período, comerciantes rio-platenses realizavam reenvio e reembarque de
mercadorias em navios portugueses, ou em outras embarcações de nações
neutras. Dessa forma, é imperativo reconsiderar a noção de “paralisação do
comércio entre a colônias e a península” (FISHER, 1985:35-78). Tal argumento
é resultado do estudo das fontes portuárias produzidas nas colônias ibero-
americanas, especificamente os registros de chegada e saída de embarcações.
Este capítulo examina as questões teórico-metodológicas e técnicas
relativas à utilização de livros de registros de chegada e saída e autos de
embarcações produzidos em portos das Américas. Baseado na análise de
registros de movimento naval de Montevidéu e Rio de Janeiro no final do
século XVIII e princípios do século XIX. Explora como os livros de portos,
autos de embarcação, e em menor medida os registros portuários publicados
em jornais locais podem ser utilizados como fontes para história comercial,
história da globalização, história social, e para história da economia-
política de cidades-portos (incluindo o comércio de contrabando). Além
de examinar as particularidades destas fontes, esse texto também reflete
sobre as possibilidades de cruzamento de fontes produzidas em diferentes
impérios/países. O cruzamento de fontes portuárias de diferente cidades-
portos e diferente impérios permite a identificação de rotas comerciais, assim
como perceber as práticas de comércio direto entre súditos de diferentes

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impérios. Visando apresentar aspectos analíticos, mas também oferecer um
exemplo da utilização dos registros de chegada e saída de embarcações do
porto de Montevidéu na escritura da história, começamos por oferecer uma
análise dos livros de porto enquanto fonte; suas características, informações
disponíveis, questões metodológicas e possibilidades técnicas sobre como
trabalhar com este arquivo. Na segunda parte apresentamos um breve exemplo
da possibilidade de utilização dessas fontes como cerne documental de um
argumento histórico: a manutenção da rota Rio da Prata – Rio de Janeiro
no final do período colonial, e como tal rota “ilegal” serviu aos interesses da
monarquia espanhola. Na parte final apresentamos algumas breves conclusões
e apresentamos algumas referências historiográficas para o pesquisador
interessado que queira avançar neste campo de investigação.
A utilização de fontes portuárias produzidas nas Américas oportuniza
uma perspectiva local das conexões regionais e globais de uma comunidade,
seja em padrões migratórios por via marítima, pelo tráfico de escravizados,
ou pelas rotas marítimas conectadas ao comércio global nas quais os
portos podiam estar inseridos. Os livros de registro do movimento de
embarcações dos portos, ou os autos de embarcações avulsos produzidos
nos portos coloniais americanos permitem reavaliar a direção, volume e
rotas de comércio a partir de outra perspectiva, que não apenas vinculada
às metrópoles (Espanha, ou Portugal). Especificamente, os livros de registro
de chegada e saída de embarcações, ou os autos de embarcações de portos
coloniais americanos revelam as inserções de cidades portuárias das Américas
em rotas regionais, atlânticas, e globais, assim como os intercâmbios entre
territórios de distintos países e impérios. Concomitantemente, estes mesmos
registros revelam informações sobre a sociedade local, sobre sua comunidade
mercantil, sobre sua comunidade política, sobre os padrões migratórios e
de consumo das cidades-portos e seus hinterlands.
As fontes portuárias aqui examinadas – livros de chegada e saída de
navios, ou autos de chegada de embarcações (avulsos) – proporcionam
uma série documental com regularidade de informações que permite a
análise serial do corpo documental, mas ao mesmo tempo proporciona
riqueza qualitativa, oferecendo em cada caso de chegada ou de saída de
embarcações, detalhes e informações particulares sobre o evento, incluindo as

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pessoas envolvidas (livres e escravizadas), produtos, itinerários, entre outras
variáveis. No caso de embarcações implicadas em comércio de contrabando,
ou com necessidade de quarentena, os registros de porto proporcionam uma
perspectiva ainda mais detalhada.
As fontes de registros portuários, sejam os autos de embarcação avulsos
ou em parte de um livro mestre de entrada e/ou saídas oferecem certas
informações básicas sobre a viagem. Nome do capitão, tipo, nome e bandeira
(país de registro) da embarcação sempre aparecem, assim como número de
tripulantes, porto de origem/destino, número de dias de viagem, informação
sobre a carga e passageiros e sobre as autoridades executando o registro e/
ou inspeção. Em registros mais detalhados, pode-se encontrar também
informações sobre os de portos de escala, contatos com outras embarcações
em alto-mar, assim como listas nominais de passageiros, lista de pessoas
escravizadas, relações detalhadas das cargas e produtos de comércio, nome
dos donos e consignatários dos produtos. Estas “variáveis” que orientavam
o registro documental das autoridades tinham por finalidade o controle do
movimento de pessoas, bens, serviços e capitais na América Ibérica, mas,
para o historiador, oferecem uma janela para o comércio e a sociedade dos
séculos XVIII e XIX.
Das informações constantes de registros de embarcações, as que
identificam o nome de embarcações, nome de capitães, proprietários de
cargas, consignatário de mercadorias, e autoridades portuárias permite ao
historiador seguir a trajetória de indivíduos e suas inserções nas sociedades
locais e/ou além-mar. Pela característica serial deste tipo de documentação,
pode-se verificar a frequência do envolvimento de comerciantes, e casas
mercantis no comércio atlântico, suas inter-relações políticas e comerciais
nos portos, e como tais relações na comunidade portuária variam com o
tempo. Tais informações são valiosas não apenas na investigação de trajetórias
individuais, mas também na oferta de subsídios para análises de redes sociais,
comerciais e políticas.
Outras informações que aparecem nos registros de portos, como tipo
de embarcação, bandeira, porto de origem e/ou destino, portos de escala,
e contatos em alto-mar oferecem ao historiador informações sobre rotas
comerciais, itinerários detalhados (incluindo portos de escala em viagens de

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longa distância), conexões entre cidades portos, volume de comércio, e as rotas
migratórias (seja de pessoas livres ou escravizadas). A informação sobre o
tipo de embarcação permite ao historiador compreender o volume das trocas
entre portos, o tipo de logística, número de tripulação, e mesmo as escalas
das viagens – por exemplo: bergantins e fragatas tinham capacidade entre
100-500 toneladas em geral, e normalmente eram empregados em viagens
transoceânicas e/ou em média e longa distâncias. Porto outro lado, embarcações
como sumacas e chalupas indicavam navegação costeira ou regional, têm
menor capacidade de carga. As informações sobre porto de origem e os
portos de escala permitem ao historiador identificar as complexidades do
comércio atlântico, assim como revelam a porosidade de rotas “imperiais”.
Por exemplo, pode-se perceber como embarcações “espanholas” operando
na rota Rio da Prata – Espanha em diversas oportunidades paravam em
porto lusitanos nas Américas ou nas ilhas atlânticas, revelando uma maior
complexidade e a importância de conexões trans-imperiais para a manutenção
de rotas “intra-imperiais”. Para historiadores interessados na questão da
comunicação no período moderno, os registros de porto também incluem
referências sobre os contatos durante navegação, troca de informações,
transmissão de valores, reenvio de cartas e documentos que ocorriam em
alto-mar. Dessa forma, registros de porto proporcionam uma mirada distinta
e mais abrangente sobre a geografia do comércio, migrações, rotas marítimas
e a respeito da logística marítima do período.
Os registros portuários foram produzidos com uma preocupação
eminentemente fiscal: garantir a cobrança de tarifas alfandegárias, regular o
fluxo de mercadorias permitidas para importação e exportação de acordo com
as regulações mercantilistas, assim como garantir o embarque, desembarque
e quarentena, quando necessária, para embarcações vinculadas ao tráfico
negreiro. Desta forma, os registros portuários oferecem uma perspectiva
privilegiada para examinar os fluxos do comércio atlântico. Os livros de porto,
em sua maioria, indicam a quantidade de produtos importados, incluindo
gêneros manufaturados europeus (de Espanha, França, Inglaterra etc.),
gêneros de outras colônias do Atlântico (açúcar e tabaco do Brasil, cobre do
Chile), assim como registram o número de africanos escravizados trazidos
a força para as Américas. As fontes portuárias oferecem informações sobre

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consumo, volume de comércio, geografia dos bens comercializados, além
de informações sobre preços e casas comerciais envolvidas no comércio
transatlântico. Os registros portuários oferecem, ainda, informações sobre
os produtos exportados pelos territórios coloniais e permitem ao historiador
perceber a geografia comercial dos territórios interiores. Os portos platinos,
por exemplo, exportavam, além dos couros e sebo produzidos localmente,
cobre do Chile, quinino do Peru, e cacau do Equador. Desta forma, a partir
dos registros portuários, o historiador pode obter informações sobre as
rotas comerciais conectando portos aos territórios interiores. Em outras
palavras: os registros portuários revelam rotas intra-imperiais assim como
trans-imperiais, e podem oferecer informações sobre as rotas externas/
atlânticas e as rotas interiores.
Registros portuários, enquanto fonte para o historiador, apresentam
tanto possibilidades para análises seriais, como apresentam informações
particulares sobre casos, embarcações, pessoas e produtos específicos. Para
o historiador interessado no movimento comercial ao longo de um período
mais largo, os registros de porto permitem ver que produtos aparecem ou
deixam de aparecer no comércio, assim como permite traçar o aumento
de exportações ou importações. No caso do comércio de couros, o final do
século XVIII apresenta um aumento claro na exportação desse artigo, ao
passo que demonstra também a aparição de forma mais comum do café
como uma commodity importada de portos brasileiros. Os registros também
demonstram as mudanças nas rotas portuárias, por exemplo, a inserção de
porto estadunidenses nas rotas do Rio da Prata a partir da década de 1790,
assim como o registro de novas rotas entre Rio da Prata e Moçambique.
Ainda que as conexões com a África portuguesa existissem desde o século
XVI no Rio da Prata, estas não foram estáticas. Os registros portuários,
portanto, constituem uma fonte serial extremamente importante para a
percepção das variações no comércio. Ao passo que tais registros apresentam,
de forma serial, informações sobre indivíduos e viagens específicas, servem
também a historiadores interessados em temas micro-históricos, trajetória
de indivíduos, ou mesmo na procura de movimento de pessoas – através das

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listas de passageiros, podendo-se descobrir quando um indivíduo deixou
ou chegou ao porto em questão.
Esses documentos também oferecem excelentes informações para o
historiador interessado no comércio clandestino ou de contrabando. Os
registros de chegada e saída bem como os autos de embarcação produzidos
quando da entrada dos barcos nos portos indicam as condições de chegada.
Especialmente indicativo da possibilidade de contrabando são as chamadas
“arribadas forçosas,” quando a embarcação solicita entrada no porto devido
à emergência sanitária, necessidade de adquirir suprimentos ou efetivar
reparos. As arribadas foram sempre uma estratégia comum que permitia
embarcações sem autorizações prévias ou mesmo embarcações estrangeiras
teoricamente não autorizadas, a solicitarem ingresso no porto e mesmo
desembarcar mercadorias para venda (em geral, baixo pretexto de obter fundo
para pagar por reparos). Além de indicar a chegada via “arribada”, os registros
portuários incluem informações sobre as inspeções dos fiscais de porto. Em
caso de operações suspeitas, os registros de porto contêm tais informações
e indicam a criação de outros processos (criminais, cíveis etc.), os quais o
historiador pode seguir na trilha dos arquivos. Outra forma pela qual os
registros de porto podem oferecer subsídios para uma história do contrabando
é através do cruzamento de registros de dois ou mais portos. Dessa forma,
pode-se detectar discrepâncias entre os destinos oficiais declarados pelos
capitães nos portos de saída e o destino final e os itinerários realmente
trilhados pelas embarcações. Por exemplo, na rota Rio da Prata – Rio de
Janeiro, oficialmente proibida, dezenas de embarcações saíam de Montevidéu
rumo a Cádis, mas entravam no porto do Rio de Janeiro – com cargas
preparadas para o comércio fluminense, ou mesmo consignada a mercadores
luso-brasileiros. Outro exemplo, embarcações brasileiras saíam do Rio de
Janeiro com destino declarado para o porto de Rio Grande, no extremo sul
do Brasil, mas na verdade tinham cargas preparadas para comerciantes de
Montevidéu e Buenos Aires. Dessa forma, o cruzamento de informações
obtidas nos registros portuários pode revelar estratégias, rotas, produtos,
e comerciantes e capitães envolvidos nas operações de contrabando. Além
dos indícios presentes nos registros portuários, algumas dessas informações
podem servir como pistas para identificar agentes, embarcações, e autoridades

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envolvidas em contrabando para continuar a busca em outros tipos de
acervos documentais.
As características seriais das fontes portuárias oferecem oportunidades
ímpares para o uso de técnicas de humanidades digitais, especialmente no que
tange à criação de planilhas e base de dados, assim como de mapas utilizando
GIS. A criação de planilhas e base de dados, a partir dos registros portuários,
permite a quantificação total do volume de embarcações, as rotas envolvidas,
o volume total de produtos comercializados, assim como a quantificação
do número de imigrantes e africanos escravizados desembarcados em um
determinado porto. Mais ainda, o processamento de informações em tabelas
e base de dados permite estabelecer relações entre datas, lugares, pessoas e
produtos, oferecendo uma visão geral das mudanças e continuidades nos
padrões de comércio de um determinado porto. Permite ao historiador ver
como as mudanças no Atlântico impactam a realidade regional, e vice-versa.
A utilização de recursos digitais no tratamento de dados geográficos contidos
nos registros portuários permite mapear as conexões globais do porto em
questão e identificar as mudanças nos portos de contato de um porto durante
um determinado período. Por exemplo, ao passo que Montevidéu expandiu
suas conexões com Europa, Brasil, África, e América do Norte a partir de
1778, entre 1816 e 1822, perdeu conexões diretas com Espanha, e África,
ao passo que as interações com o Rio de Janeiro e outros portos brasileiro
cresceram exponencialmente. Tal transformação no comércio ocorreu
em parte por motivos políticos (a anexação por parte do Império Luso-
brasileiro da Banda Oriental/Estado Cisplatino), mas os registros portuários
apresentam as consequências econômicas e sociais derivadas do processo
político, oferecendo assim uma perspectiva econômica sobre o mesmo. As
fontes portuárias oferecem dados privilegiados para o mapeamento de rotas
comerciais, migratórias ou apenas os contatos de um porto com diferentes
regiões do além-mar ou do interior.
As fontes de registros portuários oferecem uma gama de informações
e possibilidades analíticas, especialmente se cotejadas com outras fontes
qualitativas ou quantitativas, assim como em conexão com os trabalhos
historiográficos já existentes. Nas páginas que seguem, o presente capítulo
apresenta, a título de exemplo, uma breve análise das transformações do

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porto de Montevidéu, especialmente em relação as conexões entre o Rio da
Prata e portos luso-brasileiros nas Américas. O texto se baseia na análise dos
livros de portos e autos de embarcação tanto do Rio da Prata (Montevidéu)
como do Rio de Janeiro. Além da análise dos dados portuários, as páginas
que seguem demonstram algumas possibilidades de cruzamento de fontes
e diálogo com fontes secundárias.

Comércio trans-imperial em tempos de guerra: o caso do Rio da


Prata
Após a fundação do vice-reino do Rio da Prata (1776), e a expulsão dos
portugueses da região (1777), os comerciantes do Rio da Prata reorganizaram
as suas rotas comerciais anteriormente ilegais que ligavam a região ao Brasil.
Durante o último trimestre do século XVIII, comerciantes do Rio da Prata,
especialmente de Montevidéu, dedicaram-se ao comércio transimperial
com nações neutras e utilizaram navios portugueses em rotas comerciais
para transportar mercadorias, pessoas, e para enviar informações do Rio
da Prata para Cádis. Na virada do século XIX, comerciantes rio-platenses
pagavam fretes em naus portuguesas para reembarcar suas mercadorias, ou
mesmo, utilizavam a bandeira neutra portuguesa e a proteção do comboios
portugueses para cruzar o Atlântico. Como resultado, os comerciantes
hispano-americanos envolvidos em tais trocas não só puderam se beneficiar
do comércio com estrangeiros, como utilizaram essas redes informais com
o Brasil para apoiar a manutenção do domínio espanhol no Rio da Prata.
Os comerciantes do Rio da Prata desenvolveram níveis de autonomia mais
elevados nas suas interações com estrangeiros. No entanto, tais ligações
extra-imperiais em vez de enfraqueceram o império, foram na verdade
responsáveis pela manutenção dos elos debilitados que ligam a península
ao Atlântico Sul em tempos de guerra.
Em resposta ao aumento dos riscos para os navios espanhóis que
atravessam o Atlântico, a Espanha permitiu uma série de regras excepcionais
para flexibilizar as regulamentações comerciais, permitindo aos súditos
espanhóis americanos o comércio de comerciantes estrangeiros de nações
neutras e outros territórios ibero-americanos. Regulamentações comerciais

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neutras posibilitaram que os comerciantes espanhóis negociassem com sujeitos
de outros impérios nas Américas, efetivamente legalizando e incorporando,
no sistema comercial hispano-americano, rotas anteriormente existentes de
comércio trans-imperial. Os comerciantes hispano-americanos efetivamente
ganharam maior autonomia em assuntos comerciais.
Apesar dos efeitos prejudiciais da crise comercial do final do século
XVIII para a Espanha, as colônias hispano-americanas não experimentaram
os mesmos efeitos econômicos debilitantes. Nas últimas duas décadas,
estudiosos que trabalham dentro do quadro atlântico produziram uma
riqueza de pesquisa baseada em fontes produzidas nos territórios coloniais,
bem como na metrópole. Historiadores das américas espanhola e portuguesa
demonstraram que o comércio com estrangeiros, em vez de uma exceção,
tinha sido uma variável integral para as economias coloniais, mesmo antes
da promulgação de regulamentações comerciais neutras. De Cartagena a
Vera Cruz, do Rio de Janeiro e da Bahia ao Rio da Prata, o comércio trans-
imperial (legal e ilegal) era parte integrante das sociedades coloniais. No
Caribe, regulamentações comerciais neutras permitiram um crescimento
acentuado no comércio (legal e ilegal) entre colônias espanholas e britânicas,
Estados Unidos e colônias francesas (CROMWELL, 2018, BASSI, 2016, VIDAL
ORTEGA, 2002:100-15; 159-61, GRAHN, 1985). Na região circuncaribenha
os sujeitos estavam envolvidos em todos os tipos de interações comerciais,
como produtos agrícolas, alimentos, têxteis, outros bens do Atlântico e
escravos. Para a região do Prata, o comércio neutro tornou-se a válvula de
segurança que permitiu aos territórios coloniais espanhóis exportarem suas
produções agrícolas e obterem produtos do Atlântico e escravos através
de interações comerciais com luso-brasileiros e anglo-americanos. Desta
forma, o aumento das interações trans-imperiais teve um impacto negativo
para os comerciantes peninsulares e hispano-americanos que dependiam
das rotas monopolísticas, ao passo que para comerciantes e comunidades
estabelecidas nas américas, o aumento das interações trans-imperiais foi
uma força dinamizadora e de crescimento econômico.
A ascensão das rotas comerciais trans-imperiais forneceu canais
alternativos para as comunidades hispano-americanas não apenas para
manter suas atividades econômicas em tempos de guerra, mas para manter o

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fluxo de bens, capital e informações entre a América espanhola e a Espanha
durante períodos de guerra. No final do século XVIII, os comerciantes
hispano-americanos desenvolveram formas alternativas de assegurar a
travessia do Atlântico utilizando portos estrangeiros, bandeiras estrangeiras e
navios estrangeiros para reduzir o risco e aumentar a segurança da travessia
transatlântica para navios espanhóis. No Atlântico Sul, rotas comerciais
neutras ligando o Rio da Prata a agentes e portos luso-brasileiros permitiram
a manutenção da comunicação e o fluxo de bens e pessoas entre Cádiz e
os territórios do Rio da Prata. Como resultado, os comerciantes hispano-
americanos usaram regulamentos de comércio com nações neutras e trans-
imperial para a manutenção do comércio e comunicação com a Espanha.
O comércio trans-imperial e a autonomia comercial dos súditos coloniais
constituíram uma força principal na formação das políticas imperiais e
da cultura política do Atlântico Sul Ibérico nas últimas décadas críticas
do século XVIII. O comércio trans-imperial e a autonomia comercial dos
súditos coloniais constituíram uma força principal na formação das políticas
imperiais e da cultura política do Atlântico Sul ibérico nas últimas décadas
críticas do século XVIII.

Comércio trans-imperial e o porto de Montevidéu no século


XVIII no Rio da Prata
Até o final do século XVIII, Buenos Aires tornou-se um próspero
centro comercial Atlântico, parcialmente, devido à facilidade com que os
comerciantes coloniais poderiam adquirir bens estrangeiros de comerciantes
estrangeiros. Desde a segunda fundação de Buenos Aires (1580), a cidade
deveria ser abastecida com mercadorias dentro do sistema comercial espanhol
via Lima. No entanto, o comércio direto e extrajudicial com comerciantes
de outros impérios do Atlântico provou ser mais lucrativo, e logo se tornou
uma característica do comércio da região. Entre 1580 e 1640, os comerciantes
portugueses detinham o asiento (contrato para a introdução de escravos
em domínios espanhóis), e eram jogadores proeminentes na comunidade
comercial de Buenos Aires. Durante o século XVII, comerciantes holandeses,
britânicos, franceses e portugueses chegaram regularmente ao Rio da Prata

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usando diferentes desculpas para o comércio. Depois de 1680 até o final
do século XVII, a Colônia Portuguesa ofereceu um entreposto de longa
data para o que as autoridades espanholas consideravam o comércio de
contrabando. A presença regular de comerciantes estrangeiros na região
contrastou com a falta de navios oficiais espanhóis chegando em Buenos
Aires, média de menos de dois por década no século XVIII. Em Buenos
Aires, uma poderosa comunidade mercante surgiu, que derivou sua riqueza
da aquisição de bens europeus e americanos baratos, bem como escravos
de comerciantes portugueses e outros europeus. Em meados da década
de 1750, os comerciantes de Buenos Aires controlavam redes comerciais
que atravessavam o interior da região até o Alto Peru. Como resultado, os
comerciantes de Buenos Aires forneceram um vasto mercado, muitas vezes
contando com bens estrangeiros, e foram capazes de aproveitar enormes
quantidades de prata do Alto Peru e das províncias espanholas no interior.
O acesso à prata foi uma das principais atrações do comércio da região
para estrangeiros. Colônia não era apenas um centro para os portugueses,
mas também para os comerciantes anglo-saxões. A presença de longa data
da colônia portuguesa significou fácil acesso a bens baratos do Atlântico
fornecidos por potências estrangeiras. A criação do vice-reinado (1776) e
posterior expulsão dos portugueses da região (1777) implicaram um rearranjo
dos portos e logística do comércio dentro do estuário.
Quando a proclamação do livre comércio do império espanhol incluiu
o Rio de Prata em 1778, Montevidéu juntou-se a Buenos Aires como um
porto atlântico autorizado. Dotado de um excelente porto natural na entrada
do rio da Prata, Montevidéu transformou-se em base naval espanhola da
região. Além disso, o porto do Banco do Norte converteu-se em porto
de escala obrigatório para os navios comerciais do Atlântico e a sede
administrativa do Resguardo, o escritório responsável pela repressão do
comércio de contrabando. Praticamente, Montevidéu tornou-se porto de
Buenos Aires e a sede das autoridades responsáveis pela logística naval,
aduaneira e portuária adicional. Apesar da conquista da Colônia Portuguesa,
Buenos Aires permaneceu dependente de um porto atlântico. Nas décadas
seguintes, Montevidéu fez-se o principal porto atlântico na região, e substituiu

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Colônia do Sacramento como o local de comércio trans-imperial para as
elites mercantes de Buenos Aires e da América Portuguesa.
No último quarto do século XVIII, a região do Rio da Prata foi a área de
maior crescimento na América espanhola. A reforma burocrática que criou
o Vice-Reino e a política econômica que abriu Buenos Aires e Montevidéu
ao comércio atlântico contribuíram para o desenvolvimento demográfico
e econômico da região. Embora Buenos Aires tenha se tornado a sede do
vice-reinado e da Audiência e fosse o lar dos mercadores mais ricos que
controlavam as redes comerciais para o interior, o status de Montevidéu
concretizou-se como o porto regional designado de escala para todos os
navios transatlânticos, bem como o único autorizado a desembarcar escravos
garantindo, assim, vantagens relativas em relação à capital.
A comunidade mercante emergente de Montevidéu obteve grandes
benefícios econômicos e políticos de ser o porto atlântico para o comércio de
Buenos Aires. Depois de 1778, Montevidéu tornou-se o principal exportador
de couros na região. O historiador argentino Juan Carlos Garavaglia mostrou
que, entre 1779 e 1784, Montevidéu foi responsável por 53% de todas as
exportações de peles do Rio da Prata. Em 1790, a participação de Montevidéu
nas exportações totais de peles era de 56%, em comparação com os 46% de
Buenos Aires, no Rio da Prata. Garavaglia também demonstra, com base em
registros de impostos, que as duas cidades tiveram um crescimento econômico
acelerado, com a riqueza total arrecadada pela Coroa saltando de 3.000 pesos
e 16.000 pesos em 1761-1765, para 21.000 pesos e 35.000 pesos em 1798 para
Montevidéu e Buenos Aires, respectivamente (GARAVAGLIA, 1985:54-57).
Os habitantes de Montevidéu se beneficiaram amplamente do
armamento de navios no porto. Comerciantes da cidade serviram como
procuradores para garantir a logística, pagamento de taxas legais e agências
comerciais adicionais necessárias para os comerciantes de Buenos Aires
realizarem o comércio de longa distância. Eles confiaram em seus agentes
de Montevidéu para todos os procedimentos logísticos e legais envolvidos
no envio e recebimento de mercadorias, porque o porto de águas profundas
de Montevidéu hospedava suas próprias autoridades aduaneiras e portuárias
independentes. Os apoderados locais (advogados) eram responsáveis por
pagar alfândegas, pagar fianças para navios, agir sobre disputas legais, anunciar

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preços e outras informações comerciais, armazenar e mover a mercadoria
e outros organismos informais, incluindo o comércio de contrabando. Em
1803, o porto de Montevidéu era responsável por 73% de todo o movimento
naval transatlântico no estuário do Rio da Prata, efetivamente funcionando
como o principal porto de Buenos Aires.1
As guerras intermitentes no Atlântico, no entanto, forçaram os
comerciantes da região a adaptar suas estratégias comerciais, a fim de manter
o comércio (legal e ilegal) viável durante períodos de conflito bélico no
Atlântico. Nas décadas de 1780 e 1790, comerciantes e capitães adotaram
interpretações específicas das leis coloniais para justificarem seu envolvimento
no comércio trans-imperial: obtendo licenças para o comércio com nações
neutrais e usando o direito de desembarque de emergência (arribadas) para
conduzir o comércio com agentes estrangeiros. Estas transações permitiram,
em última análise, que o comércio trans-imperial adquirisse o estatuto
semilegal dentro do império espanhol. Em vez de paralisar o comércio
colonial, a guerra fomentou a participação dos súditos coloniais no comércio
trans-imperial e facilitou o uso de desculpas legais fornecidas pela nova
conjuntura atlântica.
Entre 1778 e 1806, um mínimo de 231 navios estiveram envolvidos no
comércio trans-imperial com o Rio da Prata (Montevidéu).2 Destes, 116 eram
navios portugueses (48,1%), 81 espanhóis (33,6%), catorze anglo-americanos

1. Semanario de Agricultura. Industria e Comércio. 1803-1804.


2. Os números apresentado aqui foram baseados no seguintes documentos: AN Cx 492 Pct
02, AGNU EHG Cj 34, AGNU EHG Cj 18, AGNU EHG Cj 40, AGNU EHG Cj 2, AGNU
EHG Cj 24, AGNU AHG Cj 15, AGNU EHG Cj 23, AGNU EHG Cj 27, AGNU EHG Cj 28,
AGNU EHG Cj 31, AGNU EHG Cj 32, AGNU EHG Cj 34, EGNU EHG Cj 41, AGNU EHG
Cj 56, AGNU EHG Cj 55, AGNU EHG Cj 54, AGNU EHG Cj 48, AGNU EHG Cj 45, AGNU
EGH Cj 28, AGNU Ex-Museo Historico Cj 4, AHU RJ D. 10056, AHU RJ D 10215, AHU RJ
D. 10215, AHU RJ D. 10532, AHU RJ D.10607, AHU RJ D.11714, AHU RJ D.13396, AHU RJ
D. 13397, AHURJ D.13398, AHU RJ D. 13399, AHU RJ D.13406, AHU RJ D. 13405, AHU-RJ
13407, AHU RJ D.13408, AHU-RJ D. 13412, AHU RJ D. 13408, AHU RJ D. 13413, AHU RJ
D.13415, AHU RJ D. 13418, AHU RJ D. 13419, AHU RJ D. 13421, AHU RJ D. 13422, AHU RJ
D. 13436. AHU RJ D.13437, AHU RJ D.13438, AHU RJ D. 13437, AHU RJ D. 13441, AHU RJ
D.13437, AHU RJ D.13446, AHU RJ D.13452, AHU RJ D. 13458. AHU RJ D. 13462,AHU RJ D.
13470, AHU RJ D. 14058, AHU RJ D. 14121, AHU RJ D. 14099, AHU RJ D. 14500, AHU RJ
D. 14506, AHU RJ, D. 14500, AHU RJ D. 14511, AHU RJ D. 15946, AHU RJ D. 15946, AHU
RJ D. 15953, AHU RJ D. 15958, AHU RJ D. 15959, AHU RJ 16130, AHU RJ D. 16233, AHU RJ
D. 16268, AHU RJ D. 16341, AHU RJ D. 16541, AHU RJ D. 16824, AHU RJ D. 18013, AHU
RJ D. 9567, AHU RJ D. 9028, AHU RJ D 9326, AHU RJ D. 9772, AHU RJ D. 9859, AHU

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(5,8%), oito britânicos (3,6%), três franceses (1,2%) e um dinamarquês. Em
alguns casos, não havia informações e, em outros, os documentos eram
mutilados de forma que a bandeira de origem não era legível em 18 registros
(7,1%). Esses navios chegaram aos portos de Montevidéu (85), Rio de
Janeiro (47), Santa Catarina (3) e Lisboa (4). Tal padrão mostra a força da
conexão entre Montevidéu e as elites mercantis do Rio de Janeiro durante
esse período. Entre os oitenta e um navios espanhóis, trinta e dois chegaram
a Montevidéu, tendo passado por portos portugueses, e quarenta e quatro
outros declararam o Rio de Janeiro como porto de escala ao deixar o porto.
Três navios chegaram a Santa Catarina e apenas um deles tocou o porto de
Lisboa na sua passagem para Montevidéu.
Como demonstra a distribuição dos portos de origem e das bandeiras
dos navios, o comércio trans-imperial não foi realizado apenas por navios
espanhóis que navegavam para portos estrangeiros, mas foi também fortemente
concentrado no porto de Montevidéu, onde um número considerável de
navios mercantes portugueses transportava cargas pertencentes a comerciantes
espanhóis e portugueses tanto em Montevidéu como em Buenos Aires. Os
registros portuários demonstram que a maioria dos navios espanhóis que
chegavam a Montevidéu fez escala em portos portugueses antes de entrar
no porto. Assim, os dados mostram o papel central de Montevidéu como o
principal centro do comércio trans-imperial no Rio da Prata.
Os itinerários dos navios eram extremamente variados e envolviam
navegação através de portos sul-americanos, europeus, norte-americanos,
caribenhos, do Pacífico, da África Ocidental e Oriental e das Ilhas do Atlântico.
De Montevidéu, os navios espanhóis mais frequentemente declararam
Cádis ou outros portos na Espanha (Santander) como seu destino, mas
estes navios comumente atracavam no Rio de Janeiro. Outros destinos
regulares incluíam portos espanhóis nas Américas, como Havana e Callao,
ou portos estrangeiros, como Ilhas Mauricio, Manila, a costa da África,
Cayena, Providence, Boston, ou simplesmente “colônias estrangeiras”. Um
número significativo de embarcações navegou oficialmente de Montevidéu

RJ D. 9772; AHU RJ D. 9932, AHU RJ D.10052. AGI Buenos Aires Gobierno Leg.: 141.
Declaración de Entrada de Puerto;

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para o Rio de Janeiro usando as prerrogativas formais de comércio neutro,
embora às vezes sua mercadoria fosse transbordada para navios portugueses
ou os barcos iriam para a Europa em comboio português. As discrepâncias
entre os destinos oficiais e as rotas reais em que estes navios navegaram
revelam que os súditos do Rio da Prata gozavam de um nível de autonomia
e confiança na condução do comércio trans-imperial no Atlântico Sul.
Os súditos coloniais tanto do império espanhol quanto do império
português exploraram as oportunidades apresentadas pelo novo status legal
do comércio trans-imperial e do transbordo de mercadorias nos portos
brasileiros. As autoridades espanholas em Sevilha estavam cientes de que
o envio de informações, pessoas e mercadorias através da rota portuguesa
era a via mais segura do Atlântico e, relutantemente, ainda assim, aceitavam
frequentemente o uso da rota portuguesa por comerciantes coloniais.
Inversamente, as autoridades portuguesas viram, neste sistema de cooperação,
a possibilidade de obter prata e couros espanhóis, que não tinham chegado
regularmente desde a queda da Colônia do Sacramento. No entanto, apesar
de uma série de restrições legais aplicadas a esse comércio, os períodos de
guerra criaram oportunidades para as autoridades locais. Como resultado,
os súditos coloniais adotaram a lei imperial de acordo com a interpretação
das autoridades locais e dos comerciantes de uma forma que se adequava
ao interesse das elites locais
Embora o comércio trans-imperial entre os mercadores do Rio da
Prata e do Rio de Janeiro tenha sido rapidamente restabelecido após 1777,
o número de embarcações espanholas que chegavam ao Rio de Janeiro
aumentou durante a turbulenta década de 1790. No período entre 1778 e 1792,
as autoridades portuárias de Montevidéu registraram 67 chegadas de navios
portugueses no Rio da Prata. No mesmo período, os funcionários portugueses
da alfândega inspecionaram quinze navios espanhóis que entraram no porto
do Rio de Janeiro. De 1793 a 1802, a situação mudou, com um total de 53
embarcações portuguesas tendo chegado em Montevidéu (e um total de
64 contando as chegadas aos portos de Buenos Aires), e 57 embarcações
espanholas entrando no Rio de Janeiro. O historiador Ernst Pijning estima
que o comércio costeiro entre o Rio de Janeiro e o Rio da Prata, no início

33 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


do século XIX, envolveu de 30 a 40 embarcações de tamanhos variados
anualmente (PIJNING, 1997:163).

A década de 1790 foi um ponto de virada, um momento em que os


padrões de comércio entre os portos luso-americanos e o Rio da Prata
mudaram substancialmente. Desde a década de 1790 e o aumento dos perigos
da travessia do Atlântico derivados da guerra, navios espanhóis que entram
em portos brasileiros tornaram-se mais comuns do que os navios luso-
brasileiros que entram nos portos do Rio da Prata. O número de embarcações
espanholas que chegou ao Rio de Janeiro atingiu o seu pico durante a década
de 1790, especialmente de 1797 a 1799. Os registros portuários relativos a
este período mostram, no entanto, que os portos europeus, e não o Rio de
Janeiro, foram o último destino de muitos dessas embarcações e/ou das suas
cargas. Durante este período, pelo menos quarenta embarcações platinas
utilizaram as rotas portuguesas para chegar aos portos espanhóis. Em outros
casos, navios do Rio da Prata tinham o rio como seu porto de escala final,
mas transportavam mercadorias para transbordo para a península em navios
portugueses. Assim, a noção de que o Atlântico estaria fechado ao comércio
espanhol deve ser reconsiderada à luz dessas redes de cooperação trans-
imperiais. O transporte marítimo estrangeiro permitiu a manutenção de

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20%-40% do movimento naval transatlântico espanhol comparando com
períodos de paz no Atlântico.3

Reconectando o Rio de Janeiro ao Rio da Prata


Em janeiro de 1780, o navio espanhol San Juan e San Jose atracou no Rio
de Janeiro sob o pretexto de uma arribada. Embora nunca desembarcassem
sua carga oficial, o vice-rei brasileiro Vasconcelos relatou ao Conselho
Ultramarino, em Lisboa, que os oficiais desse navio vinham preparados
com prata para adquirir do Brasil fumo, ferro, açúcar e, também escravos.
O vice-rei afirmou ainda que era do seu interesse assegurar a retenção do
máximo de prata possível no Rio de Janeiro. Portanto, ele fez arranjos para
fornecer à tripulação espanhola todas as mercadorias que eles demandassem,
incluindo escravos. O valor total da operação ultrapassou 22: 000 $ 000 réis
(28.947 pesos), e poderia ter sido ainda maior. De acordo com o Vice-rei
Vasconcellos, a quantidade de prata retida no Rio poderia ter sido muito
maior,
se eu pudesse providenciar mais fumo. [...] Eles também levaram muita
madeira, ferramentas de ourives, um pouco de vinho, trinta arrobas
de doces, têxteis, ferro, arame e, finalmente, 93 escravos. Em relação
à transação de escravos, em primeiro lugar tentei criar dificuldades,
mas acabei permitindo tal transação como um grande favor. Resolução
semelhante, na verdade, ia contra a proibição de venda de escravos para
áreas que não estão sob o domínio de Vossa Majestade, aprovada em
14 de outubro de 1751. No entanto, após a publicação desta resolução,
práticas em contrário passaram a ser comuns, desde Colônia e outras
localidades deste Governo, escravos sempre foram exportados para
domínios espanhóis sem qualquer ação contra esse comércio por parte
das autoridades, e isso se deve ao fato de tais regulamentos terem sido
criados apenas para satisfazer estrangeiros que reclamassem do comércio
de contrabando de escravos.4

3. Semanario de Agriculura Industria y Comercio. Junta de Historia Numismatica Americana:


Buenos Aires. 1928-1937. AGN, Montevideo, AGA – Libros de Aduana 95, 96, 99.
4. AHU RJ D 9294. 30 de Marco 1780.

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Nesta carta, Vasconcelos revela os métodos empregados por capitães
e oficiais espanhóis para adquirir mercadorias sem tocar na carga oficial,
a fim de evitar acusações de contrabando. Além disso, o esquema descrito
mostra que tais práticas não foram criadas recentemente. Ao contrário,
foram uma adaptação de métodos já testados em experiências anteriores,
começando com as arribadas forçadas usando os direitos de proteção e
ajuda estabelecidos na lei natural. Embora o destino original do navio fosse
outro porto do Império espanhol, os capitães chegaram ao Rio de Janeiro
sob o pretexto de desembarques de emergência “preparados” com prata
para adquirir mercadorias e comprar escravos. Todos esses sinais sugerem
que, em 1780, antigas redes de comércio estavam sendo restabelecidas. O
portfólio de produtos adquiridos também revela o claro conhecimento
dos comerciantes espanhóis sobre o que precisavam adquirir no Rio de
Janeiro: fumo, madeira, ferro e escravos. Todos esses produtos estavam
normalmente disponíveis no Rio da Prata, via Colônia do Sacramento,
antes de 1777. A aquisição de escravos pelos mercadores platinos no Rio
de Janeiro revelou a continuidade das redes de comércio trans-imperiais
entre o Rio da Prata e o Brasil, uma prática antiga empregada desde os dias
de Sacramento. A comunicação do vice-rei Vasconcelos, do Brasil, mostra
o interesse português em reter a prata e o alto nível de autonomia de que
gozavam as autoridades locais e os comerciantes. O vice-rei afirmou com
ousadia que seu principal objetivo ao receber as arribadas espanholas era
obter o máximo de prata possível dessas transações, embora a transação
pudesse contradizer as leis imperiais. A venda de quantidades significativas
de fumo, madeira, ferro e ferramentas não eram suprimentos estritamente
necessários para que a embarcação continuasse sua viagem ou retornasse
ao porto de origem. O mais notável, porém, foi a venda de 93 escravos aos
espanhóis. Embora fosse contra um decreto real de 1751, a correspondência
do vice-rei mostra que esta lei não foi observada, e muitas autoridades
portuguesas pensavam que tal decreto se destinava a desviar a atenção de
potências estrangeiras. Além disso, Vasconcelos citou o exemplo do papel
de Colônia como fonte de escravos para o Rio da Prata e como, na prática,
esse comércio sempre foi realizado sem impedimentos oficiais. Na avaliação
dos benefícios do comércio, Vasconcelos destacou a retomada do fluxo de

36 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


prata, a incorporação do mercado espanhol às rotas econômicas do Rio de
Janeiro e o aumento da arrecadação tributária que resultaria para a Coroa.
Embora o comércio com estrangeiros fosse especificamente regulamentado,
as autoridades e comerciantes do Rio de Janeiro e seus sócios no Rio da
Prata gozavam de um nível relativo de autonomia em suas transações. Com
o apoio formal das autoridades locais, não foram necessárias autorizações
anteriores das potências metropolitanas. Pelo contrário, o vice-rei apenas
informou as autoridades de Lisboa a posteriori. Os súditos coloniais estavam,
de fato, decidindo sobre o comércio com estrangeiros no espaço colonial.
Menos de um ano depois, quando o mesmo assunto voltou a ser levado ao
conhecimento do Concelho Ultramarino de Lisboa, o vice-rei relatou com
mais pormenores o crescimento do comércio com o Rio da Prata. Neste
relatório de 1781, Vasconcelos revelou que o número de navios espanhóis
que chegavam ao Rio de Janeiro havia aumentado consideravelmente com
a guerra entre Espanha e Inglaterra.
O sucesso do restabelecimento da rota Rio da Prata – Rio de Janeiro levou
ao aprofundamento desses contatos comerciais. Comerciantes e capitães de
navios de Montevidéu afirmavam que as autoridades do porto platino estavam
dispostas a abrigar embarcações portuguesas no estuário. Especificamente,
as autoridades a cargo do tráfico portuário do Rio da Prata queriam deixar
claro aos mercadores do Rio que as embarcações portuguesas seriam bem-
vindas em Montevidéu. No porto, as autoridades permitiriam a entrada de
embarcações portuguesas no porto baixo a pretexto de arribada, – mas na
verdade vinham para comerciar. Para enfatizar o interesse dos comerciantes
montevideanos, um dos representantes da classe na cidade trouxe mais
de cem mil pesos para mostrar que estavam dispostos a despender essa
quantia no comércio, o que convenceu alguns armadores a enviarem seus
navios oficialmente para Santa Catarina, Rio Grande e outros portos do
Sul, mas as embarcações zarpariam para Montevidéu, onde entrariam com
pretexto de arribada. Além disso, o enviado espanhol garantiu que tais
navios voltariam “carregados com abundância de couros e prata, já que os
espanhóis facilitariam isso”.5

5. AHU RJ D 9561 – 12 Julho 1781.

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A importância da rota que liga Rio de Janeiro e Rio da Prata cresceu a tal
ponto que, em 1799, uma petição de comerciantes e agricultores da “estrada
para Minas Gerais” apresentou uma lista de mais de duzentos produtos
para exportar para o Rio da Prata, com informações sobre preços e taxas de
rentabilidade. A lista incluía produtos luso-brasileiros e europeus. Assim,
pode-se perceber a integração do comércio do Rio da Prata no circuito
mercantil do Rio de Janeiro via contrabando e/ou operações semilegais.
As autoridades locais e os comerciantes interpretaram as leis imperiais
de acordo com seus melhores interesses. Sob regras ambíguas, as elites
mercantis regionais que estavam conectadas com autoridades locais utilizavam
estratagemas legais numa interpretação vantajosa das leis para exerceram
controle de facto sobre o comércio trans-imperial.6
No início do século XIX, o do uso de portos, navios, e intermediários
portugueses tornou-se comum para comerciantes rio-platenses operando
no comércio Atlântico. Em 1802, o comerciante de Buenos Aires, Francisco
de Necochea, apresentou uma petição no Brasil e em Lisboa para impedir
que os comerciantes espanhóis pagassem duas vezes as taxas portuárias e
de transbordo no Brasil e em Portugal. Necochea pediu um regulamento
padrão para os todos barcos espanhóis que utilizassem as rotas portuguesas,
e mencionou que isso beneficiaria os seus associados portugueses do Rio e
de Lisboa. A principal reclamação de Necochea era o pagamento obrigatório
de duas taxas portuárias de três por cento. Em vez de pagar as duas taxas
portuárias e a taxa obrigatória de quatro por cento para o transbordo,
Necochea propôs uma taxa total de sete por cento, argumentando que essas
taxas tornavam os custos de tais transações muito altas. Embora não saibamos
o desfecho deste caso, este episódio revela a importância e a utilização
regular da rota portuguesa pelos comerciantes espanhóis. Ainda que os
comerciantes do Rio da Prata estivessem oficialmente usando sua prerrogativa
de comércio neutro, suas transações não terminaram no Rio de Janeiro ou
em outros portos brasileiros. Eles usaram seus conhecimentos e redes no

6. “RELAÇÃO dos GENEROS e Fazendas proprioas do consumo da Colonia do Rio da


Prata, Reyno do Perú e Prezidencia do Chili: os preços que permitem na prz. guerra, e os
que demosntrão mayor utilidade.” 04 de Abril 1799. AHU RJ Cx. 171 doc. 12655

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Brasil para manter o fluxo de mercadorias e informações entre o Rio da
Prata e a Península Ibérica durante a década de 1790 e início do século XIX.
Durante a década de 1790 e início de 1800, o pretexto mais utilizado
pelos capitães espanhóis para entrar nos portos luso-brasileiros era alegar
que precisavam de reparos devido às tempestades encontradas no Atlântico
Sul. Mesmo durante os períodos de guerra, tal desculpa foi usada por muitos
capitães.7 Em 1796, por exemplo, um navio espanhol de propriedade de
um influente comerciante de Buenos Aires, Tomás Antonio Romero,
enfrentou problemas ao tentar entrar no Rio de Janeiro. As autoridades locais
inicialmente consideraram a chegada de seu navio Jesus Maria José, ilegítima.
O capitão José Antonio Sarzetea estava originalmente com destino ao Cabo
da Boa Esperança, mas entrou no Rio de Janeiro em busca de proteção. A
entrada no porto do Rio de Janeiro foi permitida depois que o capitão e
os altos oficiais – que eram luso-brasileiros – explicaram a necessidade de
reparos nas velas e no cordame do navio. Essa desculpa concedeu-lhes não
apenas permissão para abrigar, mas também o potencial de vender parte
de sua carga.8 Vale ressaltar que os navios portugueses usavam os mesmos
pretextos quando atracavam nos portos do Rio da Prata. Como os capitães
dos navios usavam o clima como pretexto para entrar em portos estrangeiros,
isso também lhes permitia o realizar comércio com as nações neutras baseado
em princípios do Direito Natural ou de Gentes. Assim, as tempestades eram
um pretexto que nunca saía de moda (ao passo que licenças para comércio
com neutros dependiam dos ritmos dos conflitos Atlânticos), e permitiam
que autoridades locais usassem seus próprios critérios para admitir navios
estrangeiros nos portos. De 1800 a 1806, 70% dos navios espanhóis que
chegaram ao Rio de Janeiro alegaram necessitar de reparos por conta dos
danos causados pelas tempestades que enfrentaram no Atlântico Sul.
A década que se seguiu à queda de Colônia (1777), consistiu num
período de tensões diplomáticas entre Espanha e Portugal. No entanto, foi
durante esses anos que a rota comercial Rio da Prata – Rio de Janeiro foi

7. AHU-RJ 10215, AHU-RJ 10532, AHU-RJ 10607, AHU-RJ 13396, AHU-RJ 13397, AHU-RJ
13398, AHU-RJ 13399, AHU-RJ 13407, AHU-RJ 13412, AHU-RJ 13408.
8. “Com prerrogativas que lhe guardam as leis do Estado.” AN-RJ – Cx 492 Pct. 02. 10 de
Out de 1796.

39 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


reativada dentro de novos arranjos políticos e comerciais. Mais ainda, os
registros de chegada e saída de embarcações em portos coloniais permitem
reavaliar as conexões locais e globais dos portos americanos. Ainda que
as regulações mercantilistas prescrevessem o rígido exclusivo comercial
peninsular, a realidade comercial do fim do século XVIII refletida nos
registros portuários indica a importância das rotas trans-imperiais, não
apenas como rotas de “contrabando,” mas como rotas fundamentais para
a manutenção do próprio império espanhol em tempos de guerra. Assim
sendo, fontes portuárias das Américas revelam perspectivas outras, não
centradas desde a península, e não raras vezes acabam por demonstrar o
dinamismo dos súditos americanos, bem como a centralidade de portos
coloniais, ou a centralidade das periferias. No caso do Rio da Prata e do Rio
de Janeiro, os registros portuários indicam a interconexão das economias das
duas cidades portos, assim como oferecem pistas, indícios, e detalhes sobre
os agentes envolvidos nessas rotas, seus métodos de comércio, estratégias
legais, bem como oferecem um panorama das conexões atlânticas e globais
de Montevidéu e Rio de Janeiro, mas também brindam informações sobre
as rotas comerciais desde os portos rumo ao interior.

Leituras para aprofundar o estudo dos registros de portos


A análise de fontes portuárias possui uma longa tradição na historiografia
ocidental. Dentre as obras de destaque que se utilizaram de registros
portuários, os historiadores vinculados à tradição dos Annales merecem
destaque. Historiares como Frederic Moreau, Huggette e Pierre Chaunu,
e mais tarde, seguindo a tradição dos Annales, Michel Marineau, Vitorino
de Magalhães Godinho, e Antonio Baquero Gonzales contribuíram de
forma fundamental na sistematização e análise serial de fontes portuárias
peninsulares. Estes trabalhos ofertaram pela primeira vez uma visão geral do
comércio a partir de registros portuários desde diversas regiões do império em
relação a suas interações com Espanha. Entretanto, devido às características
das fontes peninsulares, as relações entre portos americanos com outros
portos coloniais, ou com portos de outros impérios não aparecem de forma
efetiva nestes trabalhos.

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A utilização de registros portuários como corpus documental para
a elaboração de base de dados pode ser evidenciada a partir do trabalho
principiado por David Eltis, David Richardson e Manolo Florentino, e
continuado por seus estudantes, na base de dados sobre o tráfico de escravos,
a já famosa Slave Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Slave
Voyages representa um excelente exemplo de como fontes seriais e de
caráter fiscal e econômico podem oferecer subsídio para histórias sociais,
demográficas e culturais do Atlântico.
Finalmente, uma recente historiografia dedicada a temas econômicos,
políticos e sociais produziu importantes análises cruzando registros de
embarcações de diferentes portos nas américas, Europa e África, assim
como cotejando registros individuais de comerciantes e produtos com
fontes administrativas – efetivamente explorando processos macro e
micro-históricos. Tais trabalhos identificaram a importância das rotas de
contrabando e os mecanismos do comércio trans-imperial para a economia
do Atlântico no período tardo colonial. Especificamente, os trabalhos de
Jesse Cromwell, The Smugglers’ World, Ernesto Bassi, An Aqueus Territory,
além de meu próprio livro Edge of Empire.

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Negros herdeiros na zona da Mata Mineira:
os irmãos Costa Lima

Elione Silva Guimarães


Archivo Histórico de Juiz de Fora

Entre os anos 1850 e 1920, a zona da Mata Mineira destacou-se


economicamente como um dos principais centros cafeeiros do Brasil. Nesta
região, no período escravista, a mão de obra primordial foi a dos escravizados,
concentrando Juiz de Fora e Mar de Espanha, respectivamente, o primeiro e o
terceiro lugar em número de cativos.1 Em uma das regiões mais escravocratas
do país, as relações estabelecidas entre senhores e escravizados eram
complexas e foram muito além da violência que caracterizou as sociedades
escravistas. Algumas vezes, senhores e cativos estabeleceram vínculos afetivos
e contratuais que tornaram ex-escravizados em legatários ou herdeiros de
seus senhores; ainda que estas possibilidades tenham atingido a uma pequena
parcela das pessoas que um dia viveram em situação de cativeiro. Com
base na apreciação de testamentos e de inventários post mortem proponho

1. De acordo com dados do Censo de 1872 a população de escravizados de Leopoldina era de


15.253 a de Juiz de Fora somava 14.368 e a de Mar de Espanha era de 12.658. Todavia, o Censo
não computou a população da Freguesia de Simão Pereira, pertencente ao município de
Juiz de Fora. O Relatório do Presidente de Província de Minas Gerais, de 1873 nos informa
que a população de cativos de Juiz de Fora era de 19.351 indivíduos, é esse quantitativo que
estou considerando. Para maiores considerações sobre a população de Juiz de Fora e Mar
de Espanha nesse período Ver: Guimarães, 2006; Guimarães, Saraiva e Saraiva, 2020.

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analisar as heranças e os legados deixados para os ex-cativos ou libertos.2
Para acompanhar estas histórias, recorri à microanálise (ou à busca exaustiva
das fontes disponíveis), tendo como principal guia condutor os nomes desses
indivíduos que foram indicados herdeiros ou legatários de seus antigos
proprietários (GINZBURG, 1991; LEVI 2000).
O texto foi organizado em três seções. A primeira apresenta as fontes
e a metodologia utilizada para o estudo do tema. A segunda apresenta os
dados quantitativos levantados sobre os testadores, os legatários e os legados
deixados para herdeiros negros nos municípios de Juiz de Fora e de Mar de
Espanha. A última parte apresenta um estudo de caso, qual seja, a análise do
testamento e do inventário do Comendador José Anastácio da Costa Lima,
que deixou seus bens para quatro pardos, filhos da liberta Luiza. As duas
últimas seções dialogam com a primeira, uma vez que demonstram como as
fontes e a metodologia foram utilizadas para se atingir os objetivos propostos.

Fontes e Metodologia de Pesquisa


A pesquisa proposta teve como fonte inicial, e só por esta razão a
considero a principal, os testamentos anexados aos inventários post mortem.
Os inventários úteis ao estudo foram definidos pela leitura e seleção dos
testamentos, pelos quais começaremos a discussão. Afinal, o que são
testamentos? São um instrumento público através do qual um indivíduo
manifesta as suas últimas vontades e disposições materiais e simbólicas,
de acordo com a legislação em vigor.3As disposições testamentárias só se
tornam definitivas após a morte do testador. No período Imperial, eles
eram regulamentados pelas Ordenações Filipinas (1603), Livro Quatro,
que vigoraram no Brasil até a aprovação do Código Civil Brasileiro (1916).
Podiam testar as pessoas do sexo masculino maiores de 14 anos e as do sexo
feminino acima de doze. O ato era vetado aos alienados, aos indivíduos
condenados à morte, aos hereges, ao pródigo, ao surdo e ao mudo de nascença,

2. Estou considerando “ex-cativos” aqueles que foram alforriados nos testamentos ou


inventário em apreço e libertos são aqueles que já estavam emancipados anteriormente e
foram agraciados com legados e/ou herança.
3. Esta seção é uma junção de dois textos escritos por mim anteriormente, com ligeiras
modificações: Guimarães, 2011:71-74; Guimarães, 2012: 85-108.

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ao escravizado e ao religioso professo. Os testadores que possuíam herdeiros
forçados (pais ou avós) e/ou descendentes (filhos) somente podiam legar
um terço de seus bens, o que era chamado de terça.
Os testamentos podiam ser ordinários, os quais dividiam-se em 1)
públicos, aberto pelo tabelião e 2) cerrados, que eram escritos pelo testador
ou por terceiros a pedido e eram entregues a um tabelião na presença de
cinco testemunhas. Havia ainda o nuncupativo, que era feito oralmente
pelo testador que estava à beira da morte e deveria ser invalidado caso ele
se recuperasse. Outros eram chamados de testamento de mão comum, isto
é, aqueles que possuíam mais de um testador. Permitia-se a realização de
acréscimos de última vontade, desde que não implicasse na destituição ou
ampliação de herdeiros, o qual era chamado de Codicilo e era validado pela
presença de quatro testemunhas.
As disposições de última vontade são documentos jurídicos que podem
ser encontrados em: 1) copiados nos livros de registros de testamentos, 2)
juntados aos inventários post mortem de seus titulares – quase sempre –,
3) copiados nos processos de prestação de contas testamentárias; 4) em
algumas localidades podemos encontrá-los nas Cúrias, copiados nos livros de
registros junto aos óbitos dos testadores; 5) ocasionalmente os encontramos
nos livros de notas dos juízes de paz ou nos livros de notas dos cartórios. Os
livros de registro de testamento e os livros de notas dos juízes de paz estão
sob a guarda dos cartórios ou dos fóruns, sendo que os livros do juiz de paz
podem ser localizados, também, nos acervos das Câmaras. Os processos
de inventários post mortem, os testamentos originais e/ou suas cópias e as
prestações de contas testamentárias encontram-se nos arquivos dos fóruns
ou em instituições culturais que sejam detentoras da guarda desses acervos.
Também é possível localizar todas estas peças documentais em arquivos
públicos (Judiciais, Arquivo Nacional, Arquivos Estaduais e Municipais)
desde que possuam a guarda deles, o que depende da localidade.
No oitocentos, o objetivo do testador, ao elaborar este documento de
últimas vontades, era preparar-se para “uma boa morte”, mas ao fazê-lo, o
testador formalizava a distribuição de parte de seus bens, dentre os quais
os domínios rurais (propriedade, benfeitorias, cativos e outros). Em geral

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os testamentos do século XIX contêm um preâmbulo, no qual o testador
declara sua profissão de fé; em seguida ele se qualifica – nome, naturalidade,
filiação, estado civil, nome do(s) cônjuge(s) (quando for o caso, incluindo-se
o número de vezes que se casou), filhos (podendo perfilhar os naturais, desde
que havidos em estado de solteiro ou viuvez, sem que houvesse impedimento
para o casamento entre as partes) e a condição de saúde no momento em que
testou. Na sequência vêm as disposições e legados espirituais – encomenda
da alma, local e forma do funeral e enterro, número de missas para si e de
outros (familiares, escravizados, pessoas com as quais teve negócios). Em
alguns, segue-se um resumo dos bens móveis e imóveis, as declarações
de dívidas passivas e ativas, as alforrias, doações de legados – aos pobres,
às instituições, aos cativos e/ou libertos e a outros. Por fim, constam as
disposições gerais e as autenticações, tais como a nomeação e a ordem dos
testamenteiros (em geral indicando entre três e quatro pessoas), o tempo para
se cumprir as disposições testamentárias; o local e a data da elaboração do
documento; assinaturas ou sinal do testador, das testemunhas e do escrivão;
aprovação e abertura do testamento; aceitação do testamenteiro. Note-se que
estes documentos se apresentam como fontes complexas e riquíssimas para
os estudos relacionados ao cotidiano, ao patrimônio, às relações familiares
(formais e informais), ao estudo sobre as práticas das alforrias, o perfil dos
libertos e dos testamenteiros e o acesso dos emancipados aos bens materiais
(KICH, 2001; PEREIRA, 2004; REIS 1997).
Após o conhecimento da estrutura e do padrão dos testamentos elaborei
um banco de dados no Acess, que pudesse responder às perguntas que propus
à fonte, arroladas no quadro a seguir:

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Quadro 1 – Estrutura da base de dados
NÚMERO INFORMAÇÃO
1 Instituição de Guarda
2 Série (Livro de Testamento, Testamento, Testamentária, Inventário e etc.)
3 Caixa (ou outro recipiente de armazenamento)
Referência (número do livro ou referência do inventário ao qual está
4
juntado),
5 Numeração das folhas em que se encontra
6 Ano da elaboração
7 Ano da Abertura
8 Ano da Abertura
9 Estado civil do testador
10 Cônjuge do testador (quando o tiver)
11 Sexo do testador
12 Naturalidade do Testador
13 Idade do testador
Domicílio (no caso, o local onde fez o testamento – a propriedade mais
14
especificamente)
Localidade onde fez o testamento (o distrito/freguesia onde o documento
15
foi elaborado)
16 Nome do pai do testador
17 Nome da mãe do testador
18 Estava doente ao fazer o testamento (sim ou não)
19 Alforriou (sim ou não). No caso de sim, quantos.
20 Deixou legados para cativos/libertos (sim ou não). No caso de sim, quantos.
21 Qual o legado deixado?
22 Tinha herdeiros necessários? (sim ou não)
23 O inventário foi localizado? (sim ou não)
24 Quantos Cativos Possuía?
25 OBS

Cabe lembrar que, como foram pesquisados os livros de testamentos, as


prestações de contas testamentárias e os inventários post-mortem, encontrei
duplicidade de informações, que naturalmente foram descartadas. Em outras
palavras é possível encontrar o registro de testamento para uma determinada

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pessoa no Livro de Registro dos mesmos e, também encontrá-lo copiado no
Inventário e na Prestação de Contas testamentárias. Outras vezes, contudo,
o encontramos registrado no Livro, mas não localizamos o inventário e
nem a prestação de contas testamentárias do seu titular, que podem ter se
perdido com o tempo. Ou, temos o testamento copiado no inventário e/
ou na Prestação de Contas, mas não o encontramos no Livro apropriado.
Os cinco primeiros campos, acima relacionados, são relativos às
referências do documento. Os campos de 9, 11, 12, 13, 17, 21 e 22 permitem
estabelecer os padrões dos testadores. Os campos relacionados aos nomes
do(s) cônjuge(s) e dos pais podem ser necessários em alguns casos, se
precisarmos consultar os inventários dos mesmos para melhor compreender
as heranças deixadas aos testadores por seus pais (e que estão transmitindo
a seus sucessores) ou as relações familiares dos cativos estabelecidos pelos
escravizados e/ou libertos que estão recebendo os legados. Os campos 20
e 21 são essenciais para identificarmos com quais testadores necessitamos
trabalhar mais detalhadamente a fim de conhecermos os bens transmitidos.
O item 23 é o que nos revela quais inventários teremos à disposição para a
pesquisa. O campo 24, normalmente, só pode ser preenchido com base nos
inventários, e é ele que nos permite conhecer o porte do testador (pequeno,
médio ou grande). No campo 25 anotamos as observações que, por suas
especificidades, escapam ao que é padrão, como, por exemplo: os cativos
beneficiados com heranças e/ou legados foram reconhecidos como filhos?
O testador impôs alguma cláusula para que o legatário possa usufruir do
benefício?
Naturalmente a pesquisa documental é precedida pela visita às
instituições de guarda, que nos permitem saber onde as fontes documentais
estão custodiadas. No caso específico das minhas pesquisas consultei acervos
sob a guarda das seguintes instituições:
1 Arquivo Histórico de Juiz de Fora (AHJF- Prefeitura de Juiz de Fora) –
que possui a custódia de alguns processos civis, como inventários e
prestação de contas testamentária;

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2 Arquivo da Universidade Federal de Juiz de Fora (AHUFJF), que detém
a guarda de processos civis, dentre outros de inventários, testamentos
e prestação de contas testamentárias;
3 Arquivo do Fórum Dr. Geraldo Aragão Ferreira (em Mar de Espanha), à
época da pesquisa guardião dos processos civis – incluindo inventários,
testamentos e testamentárias – e, também dos livros de testamentos– da
Comarca de Mar de Espanha. Atualmente esse acervo está recolhido
ao Arquivo Permanente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Belo
Horizonte-MG).
Identificados os testadores que deixaram legados para cativos (que
também são alforriados nos testamentos) e libertos (pessoas que já haviam
sido emancipadas), o passo seguinte foi analisar os inventários e as prestações
de contas testamentárias desses indivíduos. Nestes dois tipos de documentos
mencionados verificamos o cumprimento ou não das disposições do
testador e os possíveis conflitos surgidos a partir do testamento, tais como
a contestação pelos herdeiros, o cumprimento ou não dos legados destinados
aos forros – principalmente em relação às doações de parcelas de terra – e
os questionamentos em torno da legitimidade dos legados. São eles que
nos permitem, no caso de legados de propriedades agrícolas e de cativos,
saber o tamanho do domínio recebido, sua localização – se o doador era
um proprietário de porte pequeno, médio ou grande – aqui considerando a
posse de escravizados e a extensão de suas terras. Também são eles que nos
informam sobre os herdeiros libertos ou ex-cativos (cor, idade, naturalidade,
estado civil).
As Prestações de Contas Testamentárias são processos civis compostos de
recibos e outros documentos que comprovam o cumprimento das disposições
do testamento (recibos dos padres que rezaram as missas, comprovantes
de alforrias e de entrega de cativos e terras). No geral, o testador estipulava
de um a dois anos para que o testamenteiro cumprisse suas determinações
e prestasse as contas da testamentária e, quase sempre, determinava um
prêmio para quem aceitasse o encargo.
E o que são Inventários? São “(...) processos judiciais destinados à
apuração dos bens de uma pessoa falecida (no caso o inventariado) e a sua

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distribuição entre os herdeiros ou legatários” (NUNES, 2011:57-59). Portanto,
eles arrolam os herdeiros, relacionam e avaliam os bens materiais móveis,
semoventes (animais e cativos), ações e apólices e os bens de raiz (terras
e benfeitorias). “Nesta documentação é ainda apresentada (...), dívidas
deixadas pelo inventariado, termos de curadoria, petições de várias naturezas,
despachos de juízes, mandados, precatória, certidões, notificações, custas do
processo e ainda o plano de partilha” (NUNES, 2011:57-59) Segundo Saraiva
et al., eles nos permitem “... ter uma percepção de indivíduos, conjunto
de indivíduos por categorias sociais, ou mesmo o perfil de determinada
sociedade” (SARAIVA, CURY, GEBARA NETO, GUIMARÃES, 2021). Para
além das análises econômicas, os inventários são reveladores dos muitos
conflitos que ocorrem no momento da morte do indivíduo, envolvendo seus
bens e seus herdeiros, dentre os quais os cativos e os libertos.
Os inventários, muitas vezes revelam os nomes que os ex-escravizados
e os libertos, que foram nomeados herdeiros ou legatários, adotaram na
condição de pessoas livres. Detentores de um “apelido” podemos, com menos
dificuldades, acompanhá-los por fontes múltiplas. Amiúde eles tomavam os
nomes de família dos ex-senhores ou conjugavam o nome de um antepassado
com o sobrenome do ex-proprietário. Por exemplo, os libertos e herdeiros
de Cassimiro Lúcio Ferreira de Carvalho (Mar de Espanha) passaram a
chamar-se Pedro Ferreira de Carvalho ou Leopoldo Ferreira de Carvalho
(GUIMARÃES, 2009). Os herdeiros de Francisco Garcia de Mattos, e filhos
do cativo Balbino (Juiz de Fora), conjugaram o sobrenome do ex-senhor com
o nome do pai – a exemplo de Manuel Balbino de Mattos (GUIMARÃES,
2006).
Conforme notou Ginzburg, o nome nos dá o “fio de Ariana” – “O fio
de Ariana que guia o investigador no labirinto documental é aquilo que
distingue um indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas:
o nome” (GINZBURG, 1991). Giovanni Levi observou que as informações
que encontramos sobre cada indivíduo dependem de sua relevância pública,
todavia, com paciência e metodologia, não é inviável encontrar informações
sobre os mais diversos personagens, indiferente de sua condição social, nas
fontes preservadas (LEVI, 2000).

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Identificados os sobrenomes dos libertos que receberam legados ou
heranças de seus ex-senhores, torna-se viável procurá-los por fontes variadas
e até mesmo encontrar seus inventários e testamentos, além de localizá-los
em processos civis e criminais diversos e em livros de notas (compra e venda
de bens, hipotecas, procurações etc.). E cada documento localizado sobre
eles nos fornecem novas informações, que possibilitam reconstruir suas
trajetórias, conhecer as famílias negras, e acompanhá-los em conflitos, na
formação de patrimônio, nos crimes em que se envolveram – enfim, seus
rastros, sucessos e infortúnios. Para os casos em que estes nomes não emergem
dos inventários e prestação de contas dos testadores, ainda podemos tentar
outra estratégia: levantar os inventários e outros documentos de pessoas que
tenham os mesmos nomes dos contemplados associados aos sobrenomes dos
ex-senhores. Esta tática me permitiu encontrar muitos documentos para os
libertos e herdeiros de Pedro Marçal da Costa e sua esposa Porcina Angélica
de Jesus (Mar de Espanha/MG), que não apareceram com sobrenomes nos
inventários dos ex-proprietários (GUIMARÃES, 2009). Sugiro que, caso a
busca tenha que ser realizada desta última forma – uma busca ao acaso –,
que seja considerado também o nome da esposa. Por exemplo, os libertos de
d. Theodora Maria de Souza, que foi casada com Francisco Garcia de Mattos,
adotaram alguns o sobrenome dele e outros o nome e sobrenome dela – a
exemplo de Marcolino Garcia de Mattos e de Manuel Theodoro de Souza.
Conforme observado, a perseguição nominativa, a partir dos sobrenomes
adotados por libertos, pode nos conduzir a processos civis os mais variados,
incluindo os de divisão e demarcação de terras, os processos de manutenção
de posse e os de execução de dívidas, além de processos criminais. Também
nos permite encontrá-los nas escrituras de notas e, naturalmente, nos
registros civis de casamento, nascimento e morte posteriores a 1889. Embora
os documentos de toda natureza sejam relevantes para o conhecimento e
a compreensão da trajetória dos libertos, os citados, em sua maioria, os
processos civis possessórios denunciam os conflitos por eles vivenciados e
os esforços pela manutenção da propriedade da terra. E aqui é importante
ressaltar que a perseguição nominativa é válida não somente acompanhando
os nomes dos libertos, mas, também, o da propriedade ou sítio que eles
receberam de legado. Por exemplo, os libertos de Theodora Maria de Souza

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e Francisco Garcia de Mattos estavam assentados nas fazendas Boa Vista e
Boa Esperança, então verifiquei todos os processos de divisão e demarcação
de terras destas propriedades, com o objetivo de acompanhar o cotidiano e as
disputas que vivenciaram em defesa de seu patrimônio rural (GUIMARÃES,
2006).
Pelo inventário e Prestação de Contas do testador temos a informação
do nome da propriedade legada, a qual muitas vezes está em comum com
outros proprietários (terra pró-indivisas) e, em determinado momento, algum
deles pode pedir a divisão e demarcação da terra. São “terra pró-indiviso” ou
“terra no comum”, isto é, propriedades sem demarcação judicial dos limites
– possuídas por vários donos, aparentados ou não. São propriedades que,
ao longo dos anos, partindo de transações de compra e venda, heranças,
permutas e partilhas, passaram a ter vários senhores, perdendo as divisas
originais e configurando novas fronteiras, demandando a realização de divisas
legais. É comum que na capa do processo somente conste o nome do autor
da ação e o da propriedade. Por isso é importante a perseguição nominativa
também pelo nome da situação. Na petição inicial o requerente se identifica,
se qualifica, nomeia os demais coproprietários e os confrontantes, solicitando
que sejam citados por editais os que se encontram em lugares distantes e não
sabidos, e requer a divisão e a demarcação da propriedade. Os documentos
juntados ao processo revelam que muitas vezes os condôminos eram tantos
que alguns eram desconhecidos dos demais coproprietários. Nos casos das
propriedades em que libertos figuram como condôminos, eles são citados
e os documentos que comprovam o seu direito sobre a porção de terra que
receberam são anexados aos autos – como, por exemplo, a transcrição do
testamento do doador, as partes do inventário dele, relativas aos legados a
que o liberto teve direito.
Naturalmente a aplicação da metodologia de perseguição nominativa
por fontes múltiplas se torna mais viável quando as instituições de guarda da
documentação possuem bases de dados disponíveis para consulta elaboradas
com informações básicas, como os nomes de pessoas e/ou das propriedades.
Caso não haja base de dados ou inventários onomásticos, resta-nos os
catálogos e inventários sumários, que embora sejam muito variáveis (de uma

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instituição para outra), em termos de qualidade das informações constantes,
são um excelente indicativo para o levantamento prévio dos documentos
a serem pesquisados. Os jornais, muitos hoje disponíveis na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional,4 são outras fontes importantíssimas para a
perseguição nominativa.

Legados para cativos e libertos: Juiz de Fora e Mar de Espanha


(1839-1904)
Analisei os testamentos de 631 pessoas, (290 em Mar de Espanha e 341
em Juiz de Fora) das quais 110 (58 em Mar de Espanha e 52 em Juiz de Fora),
ou 17,4%, deixaram legados para cativos e/ou libertos, distribuídos conforme
a tabela 1. As datas limites (1839-1904) correspondem à do documento mais
antigo localizado com esta informação e à do último testamento em que
encontrei legados explícito para ex-cativos. Embora a fonte não permita
quantificações precisas, é fato que uma parcela de libertos, em tese, teve
acesso à propriedade formal da terra através de legados e heranças deixados
por ex-senhores. Isto é, para além daqueles que receberam nominalmente
porções de terras, tanto em Juiz de Fora quanto em Mar de Espanha, os
que foram indicados herdeiros dos bens ou das terças também podem ter
recebido propriedades fundiárias. Dos testadores analisados, apenas seis
reconheceram e legitimaram os filhos tidos com cativas, os quais receberam
legados ou foram habilitados para herdeiros. Destes, cinco nunca se casaram e
o outro, casado duas vezes, teve os filhos com escravizadas no intervalo entre
o primeiro e o segundo casamento. É provável que muitos outros senhores
tenham tido filhos com cativas na vigência de seus casamentos, todavia, a
legislação não permitia a perfilhação. Nesses casos, poderiam deixar para
eles algum legado, mas na maioria das vezes não mencionavam a existência
de laços consanguíneos entre eles.5

4. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ /Acessado em 18 de agosto de 2021/.


5. Para mais informações sobre perfilhação de filhos ilegítimos e heranças para escravos
e libertos, cf. Herança, legados e o acesso de libertos à terra, In: Guimarães, 2009:53-88.

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Tabela 1 – Legados para Libertos (Juiz de Fora e Mar de Espanha, 1839-1904)
Total de Total de
Legado contemplados em contemplados em total
Juiz de Fora Mar de Espanha
Dinheiro ou apólice 44 11 55
Herdeiro dos bens 42 44 86
Sucessores da terça 36 01 37
Porção de terras 55 74 129
Outros (esmola, animais,
instrumentos de trabalho 14 35 49
etc.)
Total de pessoas
191 165 356
contempladas
Fontes: Arquivo Histórico de Juiz de Fora, testamentos juntados aos processos de
inventários post-mortem e testamentárias, 1850-1904; Fórum de Mar de Espanha. Livros
de Testamento, 1839-1904; Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora,
testamentos juntados aos processos de inventários post-mortem e testamentárias, 1832-1904.

Dentre as histórias recuperadas houve casos, ainda que raros —, e


geralmente quando envolveu filhos naturais, perfilhados ou que apenas as
evidências e os atos falhos contidos nos documentos permitem considerar a
existência de relação de parentesco — em que a terra herdada foi de muitos
alqueires. Algumas vezes foi possível a ampliação significativa da propriedade,
a exemplo da história do liberto Manuel Balbino de Mattos, que foi objeto
de minhas pesquisas no livro Múltiplo viveres de afrodescendentes (2006).
Devido às muitas dificuldades com as quais se depararam, alguns forros
tiveram suas terras griladas pelos fazendeiros vizinhos e outros enfrentaram
longas batalhas jurídicas na defesa de seus direitos e pela permanência na
propriedade herdada. Portanto, são pesquisas que nos dão a conhecer o
processo de formação da identidade camponesa dos egressos do cativeiro
e as limitações das práticas jurídicas em relação às terras de pretos.
Dos testamentos, contemplando doações para ex-cativos, 96 ocorreram
no período escravista (45 em Juiz de Fora e 51 em Mar de Espanha), embora
nove testamenteiros tenham falecido no pós-abolição. Os outros 14 foram
elaborados depois de terminada oficialmente a escravidão no Brasil, sendo
sete em Juiz de Fora e sete em Mar de Espanha. Quanto ao estado civil

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dos testadores, 59 eram casados (sendo 27 em Juiz de Fora e 32 em Mar de
Espanha), 29 eram viúvos (16 em Juiz de Fora e em Mar de Espanha, 13), 18
se declararam solteiros (6 em Juiz de Fora e 12, Mar de Espanha), um padre
em cada uma das localidades analisadas, e três não informaram a condição
civil (um em Mar de Espanha e dois em Juiz de Fora). Quanto ao gênero,
68 testadores eram homens (28, Juiz de Fora e 40, Mar de Espanha) e 40
eram mulheres (22 em Juiz de Fora e 18 em Mar de Espanha); dois casais
de Juiz de Fora prepararam o testamento em conjunto (testamento de mão
comum). Em dois casos, ambos de Juiz de Fora, embora os testamentos dos
cônjuges tenham sido elaborados em separado, as disposições, no que diz
respeito aos afrodescendentes, eram idênticas e, por esta razão, foi eliminado
o testamento de uma das partes para fins de análise. Os legados distribuídos
nos documentos analisados incidiram sobre pouco mais de 191 pessoas em
Juiz de Fora e 165 em Mar de Espanha.
No que concerne aos agraciados em testamento, fica difícil realizar
precisões, pois me deparei com algumas dificuldades operacionais:
não localizei os inventários de todos os testadores, o que ampliaria as
possibilidades de análise; houve inventários em que os cativos alforriados/
beneficiados foram inicialmente avaliados (e, portanto, qualificados) e depois
seu valor descontado; em outros documentos os escravizados nomeados em
testamento para as manumissões/legados não entraram no rol dos bens, e
portanto, não foram qualificados. Nestes casos, quando o testador manifestou
a intenção de deixar uma esmola para todos os seus escravizados, mas não
os nomeou em testamento, a ausência do inventário tornou impossível
precisar quantos foram os agraciados. Este foi o caso de Maria Dorothéia
de Queiroz; viúva, sem filhos vivos, e com os pais já falecidos, ela doou dois
cativos para uma irmã e manumitiu outros nove. Cinco deles foram libertados
incondicionalmente e outros quatro após servirem ao primeiro testamenteiro
e herdeiro constituído por prazos variáveis. Por fim, ela declarou “...que o
meu herdeiro e testamenteiro, logo que eu falecer dará a cada um de meus
escravos, quatro mil réis em dinheiro, os quais serão dados antes de se dar
o meu corpo a sepultura” (AHJF, livro de testamentos nº 01: 3v-5v).

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Os valores doados foram variáveis. Encontrei esmolas na importância
de 4$000, 6$000 e 10$000. Alguns testadores mais generosos e/ou talvez
mais abastados, ou que estivessem beneficiando parentes ilegítimos, legaram
valores maiores — alguns mil réis e mesmo contos de réis. Januária, parda,
filha liberta da escravizada Maria, recebeu do senhor de sua mãe 100$000
(1868); os cinco filhos da cativa Eva receberam 4:000$000 cada um (1861);
os dois filhos de Maria Cândida e as três crianças de Inocência Clara foram
contemplados, cada um deles, com 5:000$000, já no pós-abolição (1891). As
circunstâncias e as condições em que estes e outros legados foram conferidos,
bem como as oportunidades apresentadas a cada um destes indivíduos
foram diversas.6
Neste artigo, para uma melhor compreensão das fontes utilizadas e
da metodologia aplicada ao tema proposto, elegi analisar a trajetória dos
herdeiros que o Comendador José Anastácio da Costa Lima nomeou em seu
testamento. Ao falecer, em 05 de dezembro de 1876, com solene testamento,
o Comendador nomeou para herdeiros de todos os seus bens quatro crianças
pardas. A complexidade das situações presentes nos documentos recuperados,
creio, apresentam-se como um bom exercício para o estudo das heranças
deixadas para afrodescendentes no período imperial e nos anos que se
seguiram à abolição.
No Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora (AHUFJF)
há dois processos arquivados como “inventário” do Comendador José
Anastácio da Costa Lima. Em um deles faltam as folhas iniciais, estando
preservadas a partir da de número 70.7 Inexistem, portanto, as formalidades
iniciais, nas quais, em geral, consta o juramento do/a inventariante, o dia
da morte, se o indivíduo faleceu com testamento ou não, se há herdeiros;
se os tiver, segue a relação deles (com informações sobre idades, estado
civil, parentesco com o inventariado); quando há menores ou incapazes são
nomeados os tutores e os curadores; há uma cópia do testamento; consta a
lista de bens acompanhada da avaliação dos mesmos e, após setembro de

6. Para uma melhor apreciação dessas possibilidades: Guimarães, 2006 e 2009.


7. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador
José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Maria Cândida Perpétua. 1878. Cx. 146/20º
processo.

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1872, quase sempre, está inclusa a lista de matrículas de cativos (após a Lei do
Ventre Livre, Lei 2040, de 28 de setembro de 1871). Na sequência, apresentam-
se os requerimentos, as contestações, as dívidas ativas e passivas, alforrias,
petição de preferência sobre determinados bens etc. Nos inventários em
que há menores ou incapazes, em geral está juntada a assinatura dos termos
de tutela e a prestação de contas de tutelas apresentadas periodicamente
(comumente de dois em dois anos), até que ocorra a emancipação (por
idade, judicial ou por casamento).
O segundo processo arquivado como inventário do Comendador, é, na
verdade, o traslado de uma ação de perfilhação, petição de herança e nulidade
de testamento.8 Dentre os muitos documentos juntados para embasar o
requerimento, está o testamento do Comendador José Anastácio da Costa
Lima, que por ter nomeado para seus herdeiros quatro menores pardos,
interessa à pesquisa e será o ponto de partida de minha análise. Essa ação,
portanto, foi usada para iniciar e complementar as informações pertinentes
às pesquisas. Começaremos pelo Testamento a ele anexado. No preâmbulo
do testamento, o testador declarou sua profissão de fé, católico praticante, e
sua qualificação: natural do distrito de Nossa Senhora do Quilombo (atual
Bias Fortes), da Freguesia de Santa Rita do Ibitipoca, então município de
Barbacena; morador do distrito de São Francisco de Paula (atual Torreões,
distrito de Juiz de Fora), município de Juiz de Fora; filho legítimo do Capitão
Marcelino Gonçalves da Costa e de sua esposa d. Gertrudes Theodora de
Lima; casado com Maria Cândida Perpétua,9 sem filhos e com pais já falecidos;
portanto, sem herdeiros legais. José Anastácio da Costa Lima, nascido em
11 de maio de 1815, foi vereador, pelo distrito de São Francisco de Paula
(atual Torreões), na primeira Legislatura da Câmara Municipal de Juiz de

8. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador


José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Juvencio Bernardes da Silveira. 1878. Cx. 147/21º
processo. O processo foi arquivado equivocadamente na série de inventários.
9. Maria Cândida Perpétua Rodrigues, segunda filha legítima de José Rodrigues Gomes
e Marianna Lucia Perpétua. Eram seus irmãos: Francisco Cândido Rodrigues, Porcina
Cândida Perpétua, Antônio José Rodrigues Gomes, Guilhermina Cândida Perpétua,
Cezário José Rodrigues, Carlota Cândida Perpétua, Mariana Cândida Perpétua, Joaquina
Cândida Perpétua, José Theodoro Rodrigues, Ana Cândida Perpétua, Manoel José Rodrigues
Gomes, Francisca Cândida Ferreira, José e Joaquim Calisto Rodrigues. http://www.
projetocompartilhar.org/Familia/FranciscoRodriguesGuimaraes.htm /Acessado em 09
de julho de 2021/.

58 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Fora (1853-1856). Seu pai, Marcelino Gonçalves da Costa, teve sua fortuna
estimada entre uma das maiores do Brasil na primeira metade do século
XIX. Fica evidente aqui a posição social do Comendador, membro da elite
juizdeforana.10

Herança e Conflito: Os irmãos Costa Lima


Recapitulando, o testador declarou não ter tido filhos de seu consórcio
e que seus pais já eram falecidos quanto elaborou seu testamento. Não
existindo um contrato antenupcial, sua esposa, ainda viva, era a meeira de
seus bens. Da outra metade, não possuindo herdeiros legítimos, ascendentes
ou descendentes, podia partilhar seu patrimônio de acordo com sua livre
vontade. Dispôs de sua terça da forma seguinte: primeiramente cuidou de
sua alma, requerendo ser sepultado envolto no hábito de São Francisco,
solicitou missas de corpo presente, além de mais 200 por sua alma; também se
lembrou de pedir celebrações pelas almas de seus pais, irmãos e escravizados;
na sequência libertou condicionalmente o cativo Silvestre, cabra, que deveria
servir aos seus herdeiros por sete anos após sua morte, sendo libertado
posteriormente a este prazo. Após essas deixas, nomeou para herdeiros de
todos os seus bens aos menores Cândido, Cesário, José e Marcelino, todos
filhos da parda livre de nome Luiza.
... todos quatro atualmente residentes na minha Fazenda do Monte
Verde, com o ônus de alimentarem os ditos meus herdeiros a sua mãe
Luiza enquanto for ela viva, com toda a decência. Declaro que se morrer
alguns dos meus quatro herdeiros construídos sem deixar filhos, o que
de mim houver herdado, passará para os outros meus herdeiros, que
vivos forem, de sorte que haja entre os mesmos instituídos herdeiros

10. Informações obtidas no site da Câmara Municipal de Juiz de Fora, https://www.camarajf.


mg.gov.br/geral.php?tipo=HISTHINO&c=4. / Acessado em 06 de julho de 2021/. Marcelino
Gonçalves da Costa faleceu em 1866, deixando esposa e os seguintes filhos: Major José
Anastácio da Costa Lima, D. Carlota Theodora de Magalhães (casada co o Dr. João Delphino
Pereira da Cruz), D. Carolina, casada com o Tenente Coronel Jacintho Alves Barbosa e quatro
netos, filhos da finada filha d. Maria Theodora. De acordo com seu inventário, seu monte
partilhável foi estimado em 1:345:362$900. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de
Inventário. Inventariado Marcelino Gonçalves da Costa. Inventariante: Gertrudes Theodora
de Lima. 1866., 37-B.

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testamentários, digo, testamentários por feita e recíproca substituição
no que de mim herdarem. Deixo ao meu herdeiro Cesário os escravos –
Sebastião, crioulo, carreiro, e Antonio, crioulo, pajem; ao meu herdeiro
Marcellino, o escravo Firmino, crioulo, pajem, cujos valores serão
deduzidos de minha terça. Recomendo e peço muito que dê preferência
a outros quaisquer bens sejam dados em provento dos herdeiros por
mim instituídos, de minha meação, o resto da terça, digo, instituição,
digo instituição das terças partes de minha meação, e remanescentes
de minha terça, os escravos que herdei dos meus finados pais, e os
que houve por compra de meus co-herdeiros, herdados por estes dos
ditos meus finados pais, escravos que atualmente existem na minha
fazenda do Monte Verde, incluindo-se Francisco Caboclo, e Felippe
Rio Preto. É também minha vontade que aos mesmos meus herdeiros
testamentários sejam dados em pagamento a minha fazenda do Monte
Verde, com todas as suas terras e benfeitorias, culturas e criações nela
existentes ao tempo de minha morte.11

Como foi dito, o testamento está juntado a uma ação de pedido de


anulação de testamento, perfilhação e petição de herança, o que por si só
já enuncia a existência de conflitos em relação ao espólio deixado por José
Anastácio da Costa Lima. Esta ação interessa à pesquisa proposta porque
nela encontramos o testamento – que só foi localizado nesta ação – e porque
ela nos traz algumas informações essenciais, como a existência de disputas
em torno dos bens deixados. O processo em tela foi movido por Juvêncio
Bernardes da Silveira, na condição de cabeça de casal de D. Guilhermina
Cândida da Silveira. Segundo os autores, dona Guilhermina era filha natural
de José Anastácio da Costa Lima com d. Rita Thereza de Jesus. A mãe de d.
Rita, d. Emerenciana, sendo viúva e pobre, foi agregada na Fazenda do Monte
Verde, à época pertencente ao pai de José Anastácio. Nessas circunstâncias,
dona Rita havia sido seduzida por José Anastácio, que durante alguns anos,
manteve com ela uma relação amorosa e a conservou sob “sua proteção”.

11. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador


José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Juvencio Bernardes da Silveira. 1878. Cx.
147/21º processo. Testamento juntado. O testamento foi transcrito tal como está, com os
equívocos da transcrição original.

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Diante do ocorrido, d. Emerenciana achou por bem deixar a fazenda e
mudou-se com a filha para Santa Bárbara do Monte Verde (localidade próxima
à fazenda em questão), continuando ambas a viverem sob os cuidados de
José Anastácio. Dona Guilhermina nasceu em 1839 e alguns anos depois,
por volta de 1844 ou 1845, dona Rita se casou, segundo relatos, um consórcio
arranjado por José Anastácio. Em 1845 José Anastácio também contraiu
matrimônio com dona Maria Perpétua, filha de um fazendeiro vizinho à
propriedade de seu pai.
Narram as testemunhas que era voz pública em Santa Bárbara que pouco
tempo após se casar, José Anastácio pediu a dona Rita que lhe entregasse a
filha, e algumas até alegaram que assim o fez a pedido da própria esposa,
dona Maria Cândida, que se propôs a educá-la. Não concordando dona
Rita em entregar a filha, José Anastácio tentou raptá-la e, por fim, passou
procuração a um conhecido para requerer na Justiça a guarda dela. Desde
então, dona Guilhermina foi criada na casa paterna e “tratada como filha”,
sendo educada por sua legítima esposa, que teve apenas um filho, falecido
pouco após o nascimento. Em 1863, José Anastácio promoveu o casamento
de d. Guilhermina com Juvêncio Bernardes da Silveira.
Juvêncio informou que após o consórcio com dona Guilhermina, José
Anastácio se desentendeu com ele – segundo testemunhas, por considerá-lo
vadio e perdulário. Na mesma ocasião, o Comendador se envolveu com a
parda Luiza, então casada com um dos cativos de sua propriedade, e com ela
teve quatro filhos, os quais nomeou, em testamento, seus únicos herdeiros.
Após o desentendimento com o marido de sua filha, José Anastácio teria
encarregado um de seus empregados para dar fim aos documentos que
estavam no cartório de Santa Bárbara e que comprovavam a ação movida
contra dona Rita para conseguir a guarda da filha, e que, portanto, poderiam
ser utilizadas como provas da paternidade. Alegando que sua esposa nasceu
antes do casamento de José Anastácio com dona Maria Cândida Perpétua,
não possuindo José Anastácio à época títulos ou postos, e não tendo
impedimento para se casar com dona Rita; que sendo Luiza, a mãe dos
quatro herdeiros nomeados por José Anastácio, casada, seus filhos com o
Comendador eram duplamente adulterinos e, portanto, não poderiam ser
instituídos seus legítimos herdeiros. Com base nestas e outras questões,

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requereu a nulidade do testamento e que os bens fossem entregues à sua
esposa, condenando os réus nas custas do processo.
Não há informações e nem indícios nos relatos a respeito de ser d.
Guilhermina descendente de escravizados, portanto, as questões relativas
à sua paternidade não são relevantes para a pesquisa proposta, mas seu
resultado sim, porque dele depende sabermos se os pardos, filhos da liberta
Luiza, tiveram ou não acesso à herança. A ação de perfilhação, nulidade de
testamento e requerimento de entrega de herança que está sendo analisada
é um traslado. Nela acompanhamos os resultados até a sentença, que a
considerou improcedente e absolveu os réus (os herdeiros testamentários),
e que foi apelada para segunda instância (em junho de 1880). Não tendo
localizado o processo original, não conheço a sentença final, mas o que inferi
da leitura do inventário de José Anastácio (ou o que ficou dele preservado) é
que a justiça manteve o ganho de causa para os quatro herdeiros nomeados
no testamento. Chamo a atenção para a seguinte questão: embora filhos
adulterinos, eles não foram nomeados herdeiros de José Anastácio em
momento algum. Mas, não tendo o Comendador herdeiros legais, pôde
dispor de seus bens como bem entendeu.
Antes de irmos ao inventário para conhecermos o patrimônio dos
herdeiros do Comendador, é interessante comentar alguns trechos de dois
livros que mencionam José Anastácio da Costa Lima. O primeiro deles é
“Uma Freguesia nas Montanhas”, de autoria do Padre Henrique Oswaldo,
historiador de Torreões (antigo São Francisco de Paula). O outro, é o livro
de J. Procópio Filho, “Aspectos da Vida Rural de Juiz de Fora”. Em algumas
passagens da obra de Henrique Oswaldo, ele se refere a José Anastácio,
comentando que ele era acusado, na localidade, de haver mandado matar
o padre Antonio Francisco de Paula Dias, e que:
Não era sem jaça a pessoa do Comendador Costa Lima, déspota distrital,
possuidor da fazenda de Monte Verde, uma das maiores da região
e mais bem servida por braço escravo (...). Tendo se imposto pela
força como ‘onipotente senhor’(...). Com a mulher legítima não teve
filhos, e, deixando-a no Claro /Fazenda do Claro/, passou a coabitar, na
Fazenda do Monte Verde, com outra mulher da qual teve a descendência

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dos Costa Lima, isto é: José Anastácio (Zezinho do Monte Verde),
Marcelininho, Candido e Cesário; e destes, a descendência de toda a
geração atual dos Costa Lima. (AZEVEDO, 1878:104 e 179).12

No livro de Procópio consta que o Comendador José Anastácio e sua


esposa, Maria Cândida Rodrigues, foram proprietários, em Torreões, das
Fazendas Monte Verde e do Claro e que: “A primeira passou depois aos
descendentes do Comendador: José Anastácio, Marcelino, Cândido e Cesário
da Costa Lima e a segunda, aos sobrinhos de Maria Cândida” (PROCÓPIO
FILHO, 1973:187). Note-se que os dois autores citados omitem – por ignorar,
por não ser para eles relevante ou por intencional omissão – o fato dos filhos
de José Anastácio serem pardos e tidos de uma relação com uma liberta,
sendo que Procópio sequer menciona que os mesmos eram filhos ou que
eram naturais, refere-se a “descendência”.13
José Anastácio foi senhor, em São Francisco de Paula, das Fazendas
Monte Verde – que herdou do pai – e da Fazenda do Claro, que lhe veio por
herança de sua esposa dona Maria Cândida Perpétua Rodrigues. Mas, como
veremos, ele tinha outras propriedades rurais e uma grande quantidade
de escravizados. Se considerarmos pelo menos parcialmente verídicas as
informações de Henrique Oswaldo, ao optar por abandonar a esposa e ir
viver com outra mulher, supostamente a parda Luiza, ele deixou a esposa na
Fazenda do Claro, que era herança dela, e mudou-se para a Fazenda Monte
Verde, que herdara de seu pai. No momento da doença que o levou à morte,
contudo, ele voltou para a Fazenda do Claro, para sua residência oficial e
onde morava sua legítima esposa, pois foi nesta propriedade que fez o seu
último testamento e foi onde ele faleceu.
A perda das folhas iniciais do processo de inventário nos privou da lista
da avaliação detalhada dos bens deixados pelo Comendador José Anastácio

12. Na ação de perfilhação, nulidade de testamento e requerimento de entrega de herança


algumas testemunhas comentam sobre as desavenças de José Anastácio da Costa Lima com
um certo padre “Macabeu”, que não sei se é o mesmo mencionado por Henrique Oswaldo.
De qualquer modo, não localizei nenhum processo criminal envolvendo José Anastácio e
algum padre. As testemunhas da ação de perfilhação também atestam que José Anastácio
era tido por valentão e estava sempre acompanhado por capangas.
13. No site da Câmara de Juiz de Fora, onde consta uma breve biografia de José Anastácio da
Costa Lima, esta informação está presente – de que teve quatro filhos pardos com uma liberta.

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da Costa Lima. Todavia, recuperamos esta informação, ainda que possa
haver alguns equívocos na interpretação, na divisão dos bens entre a meeira,
dona Maria Cândida, e os quatro herdeiros nomeados em testamento. De
acordo com a conclusão do inventário de José Anastácio, a composição de
seus bens, em 1878, era a seguinte:

Tabela 2 – Composição dos bens de José Anastácio da Costa Lima (1878)


BENS VALOR
Ouro e Prata 1:178$000
Moveis 7:325$880
Mantimentos e roças 11:160$000
Animais e Criação 16:140$000
Café em coco 4:780$000
Benfeitorias 35:400$000
Cafezais 118:650$000
Terras 187:425$000
Cativos 253:010$000
Dívidas Ativas 33:836$653
Dinheiro Existente 9:588$600
Dinheiros de liberdades 1:000$000
Dinheiro que renderam os bens arrematados em praça 1:457$100
Monte Mor 680:952$233
Monte Partilhável 645:523$313
Meação da Viúva 322:761$656
Meação do Inventariado 322:761$656
Deduções de deixas (missas, prêmio ao testamenteiro e, alforria) 7:800$000
Líquido para os herdeiros 314:961$656
Abate-se os legados e as custas, sobrando líquido para os órfãos 266:847$408
Legado para cada herdeiros 66:711$852
Fonte: AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Inventário Post mortem. Inventariado: José
Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Maria Cândida Perpétua. 1878, cx. 146, processo
n. 20.

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Para facilitar a análise, vou aqui considerar somente as terras, café
(colhido e em plantas) e os cativos – que são os três principais ativos da
herança. O espólio do Comendador José Anastácio da Costa Lima era
composto de quatro propriedades: a Fazenda do Claro, com aproximadamente
281 alqueires; um sítio em Vargem Grande, com dois alqueires; a Fazenda
do Monte Verde, com 188 alqueires e a Fazenda da Cachoeira, com perto
de 262 alqueires. À viúva coube, na partilha, a Fazenda do Claro, o sítio
em Vargem Grande e parte majoritária da Fazenda da Cachoeira. Uma
parcela menor dessa última propriedade foi dividia entre os quatro herdeiros
testamentários, que também ficaram com a Fazenda do Monte Verde.14A
viúva recebeu 250 @ de café em côco na Fazenda do claro, 210 @ de café
em côco no Engenho; 68.000 pés de café com frutos pendente na Fazenda
Monte Verde; 8.0000 pés de café de 12 anos, 30.000 de 4 anos, 7.000 cafeeiros
de 16 anos (estragados), 6.000 pés de café estragado. Para cada um dos
quatro herdeiros nomeados, foram atribuídos 33 mil pés de café com frutos
pendentes, de 16 anos (em 1878).15
Quanto à escravaria, foram listados 196 cativos (para a região, uma
escravaria de grande porte) e avaliados os serviços de 20 ingênuos. Entre a
avaliação e a divisão, 14 escravizados faleceram; outros três foram libertados
em praça (provavelmente por idade). Portanto, sobrou para a divisão 189
cativos, dos quais 110 foram dados à meação da viúva e 79 divididos entre
os quatro herdeiros, sendo que um deles, somente os serviços pelo prazo

14. A ausência das folhas iniciais do processo nos privou da avaliação dos bens, mas
procuramos reconstituí-los considerando a divisão entre os herdeiros. Coube à viúva 200
alqueires de terras na Cachoeira, e mais as benfeitorias no mesmo lugar; as benfeitorias
da fazenda do Claro, 20 alqueires de terras em matas na Fazenda do Claro; nesta mesma
fazenda, 54 alqueires em capoeiras ordinárias, 98 e ½ em capoeiras, 20 em capoeiras, 88 e
½ em pastos; um sítio de cultura em Vargem Grande com 2 alqueires. Para cada um dos
quatro herdeiros: 10 alqueires de terras boas, 5 alqueires de pastos valados, 14 e ½ alqueires
de terras em capoeiras estragadas; 15 e ½ alqueires de terras na cachoeira; 25 alqueires de
terras boas na Fazenda Monte Verde. Estimo, portanto, que foram deixados os seguintes
legados em terras: 200 + 4X 15 e ½ na cachoeira = 262 alqueires na Cachoeira; 281 alqueires
na Fazenda do Claro; um sítio com dois alqueires na Vargem Grande; e 188 alqueires de
terra na Fazenda do Monte Verde.
15. Relatos da época estimavam a vida produtiva de um cafeeiro entre 25 e 40 anos em solo
bom, mas outros avaliavam que um cafeeiro de 20-25 anos era velho e dava poucos frutos;
havia mesmo os que pregavam que não valia a pena colher os frutos de cafeeiros com mais
de 15 anos (GUIMARÃES, 2009:96).

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de sete anos, pois trata-se de Silvestre, libertado com a condição de servir
por este período.
Sendo os herdeiros menores, e tendo o testador indicado um tutor
para gerir os bens até a emancipação deles, Joaquim Calisto Rodrigues
passou a administrar o patrimônio. Como vimos, já de início enfrentando o
questionamento de Juvêncio Bernardes da Silveira e dona Guilhermina e as
despesas da demanda judicial. Depois de cerca de10 anos exercendo a função
de tutor dos órfãos – cuidando da educação e gerenciando o patrimônio
deles, Joaquim Calisto Rodrigues, irmão caçula de dona Maria Cândida
Perpétua (a esposa do Comendador), requereu seu afastamento e prestou
contas. Os anos de administração do tutor não foram vantajosos para os
herdeiros de José Anastácio da Costa Lima, que deixou a propriedade com
dívida aos Bancos e a Particulares. Note-se que os cafeeiros que couberam
aos tutelados eram de 16 anos, quando do encerramento do inventário (1878),
e já estavam começando a decair de produção.
Quando o primeiro tutor deixou a função, sendo maior de 21 anos,
Candido assumiu a tutela dos irmãos menores (em 1887). Logo que assumiu
a gerência dos bens ele apresentou uma petição em Juízo requerendo a venda
em praça de parte do patrimônio herdado para poder quitar os compromissos
com os credores, assumindo o controle e a administração de seus bens e dos
demais herdeiros. Os sucessores de José Anastácio da Costa Lima tiveram
sorte similar ao de outros herdeiros negros, que tiveram seu patrimônio
geridos por pessoas que não eram parentes, como os sucessores do Barão
de Loriçal e de Cassimiro Lúcio Ferreira de Carvalho, ambos em Mar de
Espanha, e de Calisto Mendes Ferreira, em Juiz de Fora – má gerência ou
falcatruas consumiram parte significativa dos bens herdados (GUIMARÃES,
2006 e 2009).
Do inventário, ou melhor, da prestação de contas de tutela a ele juntado,
emergiram os sobrenomes que os herdeiros do Comendador José Anastácio
da Costa Lima adotaram em suas vidas de adultos: Candido José da Costa
Lima, nascido em 19 de novembro de 1866; Cesário José da Costa Lima,
nascido em 25 de fevereiro de 1869; José Anastácio da Costa Lima e Marcelino
José da Costa Lima, cujas datas de nascimento desconheço. A mãe dos
herdeiros, a liberta Luiza, adotou o nome de Luiza Theodora de Jesus ou Luiza

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Theodora de Lima. Conhecedores de seus nomes e sobrenomes podemos
agora buscá-los em fontes múltiplas e aprofundar o conhecimento sobre
suas trajetórias. Para além das informações sobre as histórias de herdeiros
negros, essa metodologia nos permite, também, a reconstrução de trajetória
de algumas famílias de ex-cativos, como espero ter demonstrado. Assim,
podemos dar visibilidade a uma parcela da população quase sempre silenciada
e invisibilizada.
Embora histórias como as que foram aqui narradas sejam exceções,
no conjunto dos indivíduos egressos do cativeiro, e, portanto, consideradas
“histórias exemplares”, elas nos revelam as possibilidades e as condições em
que se deram a ascensão de alguns libertos (muitas vezes aparentados aos
ex-senhores). Elas também expõem os limites da lei e sua dissociação com
a Justiça, isso é, o cumprimento da lei nem sempre expressa a efetivação
do que é justo. As instituições de Justiça precisam ser provocadas, e isso
pressupõe conhecimentos e recursos que não estão disponíveis para os que
são economicamente despossuídos ou por aqueles que foram alijados da
educação, da informação e da cultura. As condições desiguais do passado
escravista permanecem nas desigualdades do presente capitalista.
Quanto aos herdeiros do Comendador José Anastácio, a situação do
patrimônio, quando Cândido assumiu a administração dos bens, não era
nada confortável. Para além das dívidas que recebeu junto com a herança, em
1887, a escravidão vivia seus momentos finais e, portanto, o principal ativo
da herança – os cativos – estava prestes a deixar de existir, dificultando a
possibilidade de quitar as dívidas contraídas, de renegociá-las e de reestruturar
o patrimônio. Nos anos que se seguiram, os irmãos Costa Lima viram seus
bens serem parcialmente consumidos, indo a leilão para o pagamento de
dívidas. Não mais localizei conflitos envolvendo os autores da ação de
perfilhação e de nulidade de testamento que deu origem a essa análise com
os herdeiros nomeados do Comendador. Contudo, os nomes dos irmãos
Costa Lima figuram em diversos processos de cobrança e de execução de
dívidas, de tentativas de morte e de homicídio, com certa frequência, aparecem
em notícias de jornais. Conflitos nos quais se envolveram em defesa do
patrimônio e, principalmente, de suas terras..., mas estas são outras histórias.

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Fontes
Arquivo Histórico de Juiz de Fora (PJF). Livros de Testamento, 1853-1904.
Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora, testamentos
juntados aos processos de inventários post-mortem e testamentárias,
1839-1904.
Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Fundo Benjamin
Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador José Anastácio
da Costa Lima. Inventariante: Maria Cândida Perpétua. 1878. Cx. 146/20º
processo.
Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Fundo Benjamin
Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador José Anastácio
da Costa Lima. Inventariante: Juvencio Bernardes da Silveira. 1878. Cx.
147/21º processo.
Fórum de Mar de Espanha. Livros de Testamento, 1839-1904.

Internet
http://www.projetocompartilhar.org/Familia/FranciscoRodriguesGuimaraes.
htm Acesso em: 09 jul. 2021.
https://www.camarajf.mg.gov.br/geral.php?tipo=HISTHINO&c=4. / Acesso
em: 06 jul. 2021.
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ Acesso em: 18 ago. 2021.

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Juiz de Fora: ESDEVA – Empresa Gráfica, 1878.
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In: GINZBURG, Carlo, CASTELNUOVO, Enrico & PONI. A Microhistória
e outros ensaios. Bertran, Difel, 1991, [169-179].
GUIMARÃES, Elione Silva; SARAIVA, Luiz Fernando; SARAIVA, Paulo.
Desigual entre os desiguais. Apontamentos para uma história das desigualdades

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raciais no Brasil: Juiz de Fora na década de 1870. In: MATHIAS, João Felippe
Cury Marinho Mathias; SARAIVA, Luiz Fernando. Igual-Desigual. História
e economia das desigualdades antes, durante e após a pandemia. São Paulo:
Hucitec, 2020, [103-133].
GUIMARÃES, Elione. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e
no pós-emancipação: Família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora – Minas
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GUIMARÃES, Elione. Os arquivos locais e as comunidades negras – O
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NUNES, Francivaldo Alves. “Inventários e Partilhas”. In: MOTTA, Márcia e
GUIMARÃES, Elione (org.). Propriedades e Disputas: Fontes para a História
do Oitocentos. Guarapuava: Unicentro, 2011; Niterói: EDUFF, 2011.
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. Prefácio de Salvio de
Figueiredo – Ed. fac-similar – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial:
Superior Tribunal de Justiça, 2004.

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PROCÓPIO FILHO, José. Aspectos da Vida Rural de Juiz de Fora. Juiz de
Fora: ESDEVA – Empresa Gráfica, 1973.
REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. ALENCASTRO,
Luiz Felipe (organizador do volume). História da vida privada no Brasil:
Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, vol. 2, pp. 95-141.
SARAIVA, Luiz Fernando, MATHIAS, João Felippe Cury Marinho, GEBARA
NETO Seme e GUIMARÃES, Elione. Desigualdade de Renda em Sociedades
Escravistas (Juiz de Fora c. 1870/79). Texto apresentado ao XIV Congresso
Brasileiro de História Econômica & 15ª Conferência Internacional de História
de Empresas. Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica,
Varginha, 15 a 17 de novembro de 2021.

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A escravidão em números: estudo da demografia
escrava entre 1851-1872

Maísa Faleiros da Cunha


Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População
“Elza Berquó” (Nepo/ Unicamp)

Introdução
A história da população é considerada a segunda conquista da abordagem
quantitativa, em seguida à história dos preços, e se insere no movimento
historiográfico conhecido como a segunda geração (1946-1969) da Escola
dos Annales (BURKE, 2011:77-82; BARROS, 2012).1
O advento da história demográfica data dos anos 1950 na França. O
desenvolvimento de métodos que possibilitaram o acompanhamento de
mudanças no comportamento reprodutivo da população francesa do Antigo
Regime, com o emprego de fontes até então pouco utilizadas por historiadores
e demógrafos, marca o que veio a ser chamado de “demografia histórica”2
(MOURA, 2020; CUNHA, 2009).

1. Como aponta Peter Burke (2011:74), “da economia espraiou-se para a história social,
especialmente para a história populacional”.
2. “História da População é um conceito abrangente, que integra e se enriquece com a
Demografia Histórica, mas não se pode confundir com ela. Fontes diversas podem
perspectivar o evoluir da população desde os mais remotos períodos da existência do homem.
Só quando essas fontes permitem a análise demográfica terá sentido falar de Demografia
Histórica” (AMORIM, 2000, p.89). Por sua vez, há autores que não diferenciam História
da População e Demografia Histórica (REHER, 1997; 2000).

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Considerado o pioneiro da Demografia Histórica, Louis Henry
apresentou os resultados do Método de Reconstituição de Famílias em 1960,
método desenvolvido em colaboração com o historiador Michel Fleury.3
Henry era demógrafo e atuou no Instituto Nacional de Estudos Demográficos
(Ined/ França).
Os autores tinham como objetivo entender o declínio precoce da
fecundidade4 na França em relação a outros países europeus no período
entre guerras (1919-1939). Hoje se sabe que a França foi o primeiro país a
passar pela transição demográfica5.
Após a guerra, em 1945, quando começaram a ser registrados indícios de
uma retomada da natalidade, reconfigurou-se o problema historiográfico
na França como de questão política nacional. O primeiro resultado que
o método de Louis Henry possibilitou – a compreensão da evolução
secular da fecundidade – foi buscado através de um programa formal
de pesquisas e sua metodologia bem-sucedida foi então disseminada
como solução para obter informações que pudessem explicar a “bolha”
de aumento da fecundidade após 1945, que contrariava a tendência
secular de queda.6 No trajeto para dar uma solução acadêmica e
administrativa para a questão política, Henry valeu-se de parcerias
com outros demógrafos, com historiadores, arquivistas, genealogistas,
pesquisadores não acadêmicos e estudantes, além de gozar de apoio
das instituições estatísticas nacionais da França (MOURA, 2020:32-33).

3. Louis Henry apresentou a metodologia de Reconstituição de Famílias, pela primeira vez,


em edição do Congresso Internacional de Ciências Históricas em Estocolmo (Suécia) no
ano de 1960. O episódio que marca a inauguração da disciplina ocorreu em 1965, na cidade
de Viena, com a criação da Comissão Internacional de Demografia Histórica no Congresso
Internacional de Ciências Históricas (SCOTT, 2017:8).
4. Fecundidade refere-se à relação entre nascimentos vivos e mulheres em idade reprodutiva
(15 a 49 anos de idade).
5. A “teoria” da transição demográfica foi proposta por Frank W. Notestein na década
de 1940 e considera que a população do passado mantinha relativo equilíbrio através de
taxas elevadas de natalidade e de mortalidade. O declínio da mortalidade, a partir do final
do século XVIII, e a permanência das taxas de fecundidade elevadas por certo período
garantiram um rápido crescimento populacional. Somente com a industrialização e a
maior demanda por famílias menores é que a mortalidade e a fecundidade se aproximam
do equilíbrio novamente.
6. O crescimento populacional verificado nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial
(1945-1964) ficou conhecido como baby boom.

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Resumidamente, o método de reconstituição de família consiste no
agrupamento em fichas nominais e padronizadas de todas as informações
relativas aos nascimentos, casamentos e óbitos, tendo como referência
inicial o registro de casamento. Esses registros paroquiais, produzidos pela
Igreja Católica, fornecem informações para o preenchimento das fichas de
famílias, permitindo o cálculo de indicadores demográficos (natalidade,
nupcialidade e mortalidade) relativos a épocas anteriores à existência de
registros estatísticos sistemáticos.
Vemos a originalidade da demografia histórica na sua “formatação”
por L. Henry, o que levou a sua rápida divulgação na comunidade
acadêmica como solução metodológica para o estudo demográfico de
populações pré-estatísticas. Ou seja, foram a metodologia de pesquisa e
os objetivos historiográficos os fatores que impulsionaram a formação
da demografia histórica como disciplina acadêmica (MOURA, 2020:34).

Os desdobramentos dos métodos mencionados permitiram o


desenvolvimento do arcabouço metodológico e analítico da Demografia
Histórica, assim como, o avanço nas temáticas de pesquisa e na ampliação
de fontes históricas. Passamos a conhecer, dessa forma, uma infinidade de
histórias de indivíduos e grupos até então “silenciados” (mulheres, crianças,
crianças expostas, agregados, pessoas escravizadas) e de famílias/ grupos
domésticos das camadas menos abastadas, urbanas etc.
O primeiro e pioneiro trabalho de Demografia Histórica do Brasil
é de 1967. Trata-se do doutorado de Maria Luiza Marcílio defendido na
Universidade de Paris-Sorbonne sob orientação do professor L. Henry com
a tese La ville de São Paulo. A primeira versão em livro foi publicada em
francês em 1968. Ainda que essa tenha sido “a primeira aplicação das técnicas
modernas de demografia histórica à população brasileira” (SCHWARTZ,
2001:32), o livro em português foi publicado apenas em 1973 com o título
A vila de São Paulo – Povoamento e população. Como se pode notar, a
presença da Demografia Histórica no Brasil data de pouco mais de 50 anos
(SCOTT, 2017).
Os estudos de Demografia Histórica abriram novas vertentes
interpretativas acerca do processo de formação econômica e social da

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sociedade brasileira, com potencial revisionista da interpretação tradicional
de autores como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Celso Furtado, entre outros
(MOTTA, 2002). Entre os contributos da Demografia Histórica, a demografia
da escravidão é considerada uma das principais contribuições da Demografia
Histórica brasileira.
A história social da escravidão no Brasil tem apresentado vigorosa
produção, desde fins da década de 1970, a partir de dois grandes territórios de
pesquisa propostos por Hebe Mattos (2008: 1). “História econômica e social”
que aborda a família escrava e padrão de posse de escravos e 2. “História
vista de baixo” que trata da negociação e conflito. No tocante ao tópico
1, “ampliando o escopo das abordagens clássicas de história econômica e
história demográfica, a pesquisa em história econômica e social desenvolvida
na década de 1980 renovou as fontes e metodologias até então utilizadas”
(MATTOS, 2008:53).
A partir da proposta de Hebe Mattos, nosso trabalho se insere no vasto
território da “História econômica e social”, sendo tributário da história da
escravidão.

Fontes
No intuito de realizar um exercício de caráter metodológico, comparamos
os dados populacionais referidos a um momento específico (1872) com as
informações coletadas em inventários post mortem para o período 1851-1871.
Nosso objetivo é o de apontar as semelhanças e diferenças encontradas na
demografia escrava a partir de fontes variadas e distintas. A confrontação
entre uma fonte de caráter transversal (ponto específico no tempo) com os
inventários post mortem (que permitem extrair informações longitudinais)
demonstra que os dados provenientes das fontes citadas apresentam tendências
e perfis semelhantes no tocante à demografia escrava.
A utilização de fontes quantitativas, especialmente o Censo Geral do
Império de 1872, deixa evidente a força da escravidão no Brasil, destacando sua
presença por todo o território nacional e em atividades econômicas variadas:
agroexportadora, voltada ao abastecimento interno, trabalho doméstico,
atividades manuais especializadas etc.

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O recenseamento foi conduzido pela Directoria-Geral de Estatística
criada pelo decreto n. 4.676 de 14 de janeiro de 1871. Ainda que a observação
sobre possíveis falhas na realização de levantamentos de população seja
evidenciada para o Recenseamento de 18727, é importante lembrar que para
diversas localidades de nosso território não se conhecem levantamentos
periódicos para o total da população antes do censo nacional.
A própria Diretoria Geral de Estatística, no Relatório de 18768 – que
dá por encerrado os trabalhos de impressão desse censo – além de
ressaltar que os resultados obtidos “muito se aproximão da verdade”,
aponta para a existência de problemas na sua realização, que geraram
lacunas e incorreções (BASSANEIZI, 1998:17).

Datado de 01 de agosto de 1872, o primeiro censo nacional e o único a


recensear a população escravizada no Brasil, contabilizou pouco menos de
10 milhões de habitantes, dos quais 84,7% eram livres e 15,3% escravos9. Neste
momento, a população parda e negra era bastante expressiva, representando
62% do total de habitantes, com destaque para os pardos (42,2% da população
total). Como já salientado por Herbert Klein, “dezesseis anos antes da
Abolição, havia 4,2 milhões negros e mestiços livres e apenas 1,5 milhões
de escravos. […] Em nenhuma outra importante sociedade escravista foram
eles [população de cor livre] tão numerosos e tão importantes quanto no
Brasil” (KLEIN, 2012:107).

7. As teses de doutorado de Heitor Moura Filho (2020) e de Dario Scott (2020, publicada
em livro em 2021) realizaram criteriosas correções e ajustes das informações do Censo de
1872 para freguesias da província do Rio de Janeiro e da Madre de Deus de Porto Alegre
(RS), respectivamente.
8. Directoria Geral de Estatística – Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ilmo.
E Exmo. Sr. Conselheiro Dr. José Bento da Cunha e Figueiredo, Ministro e Secretario de
Estado dos Negócios do Império pelo Director Conselheiro Manoel Francisco Correia em
31 de dezembro de 1876. Rio de Janeiro, 1877.
9. A cópia digital do Censo de 1872 se encontra em https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-
catalogo?id=225477&view=detalhes (acesso em 09 dez. 2021); para as localidades que
compunham a província de São Paulo, é possível consultar as tabelas corrigidas na sessão
Estatísticas Históricas do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo/Unicamp):
http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos.php (acesso em 09 dez. 2021). Informações
corrigidas, a nível nacional, foram realizadas por pesquisadores do Cedeplar/ UFMG e
disponibilizadas em http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/pop-72-brasil/31/ (o site encontrava-
se indisponível em dez. de 2021).

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Além da cor e da condição jurídica (livre e escrava), o Censo levantou a
população por paróquias segundo o sexo, idade10, estado civil, nacionalidade,
ocupação e religião. Essas informações evidenciam características da
formação de uma sociedade escravista, hierarquizada, desigual e marcada
pela miscigenação.
Censos posteriores foram realizados durante a Primeira República (1890,
1900 e 1920). Com a fundação do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE)
em 1936, os censos passaram a ter regularidade decenal11, exceto em 1990,
quando foi adiado para 1991 e em 2020. Após 150 anos, o Brasil se prepara
para realizar a próxima operação censitária, o Censo Demográfico de 2022,
cuja coleta foi cancelada em 2020 e postergada por conta da pandemia de
Covid-19 (IBGE, 2021).
A segunda fonte empregada consiste em inventários post mortem,
abundantes nos arquivos e fóruns das cidades brasileiras e, ainda, pouco
explorados em estudos de população.
O estudo da demografia escrava a partir dos inventários post mortem
corrobora o que já foi salientado por L. Henry (1988:11), “a análise dos
fenômenos está pouco ligada ao tipo de documentos disponíveis” sendo
necessário se adaptar à “diversidade de situações”. Diversas fontes não
visam a contabilização da população, mas são empregadas para o estudo
de segmentos populacionais, sendo o emprego dos inventários post mortem
um caso exemplar.
Os inventários são documentos regulados pelo direito de sucessões, nos
quais “são enumerados os herdeiros e relacionados os bens de pessoa falecida,
a fim de se apurarem os encargos e proceder-se à avaliação e partilha da
herança” (FERREIRA, 2012). Esse documento é um dos poucos arrolamentos
em que é possível verificar o tamanho da escravaria, informação ausente do
recenseamento do Império, mas que atua como um dos fatores a influenciar
a demografia e a família escrava.

10. As idades foram coletadas segundo os grupos: 0-1 ano, por idade simples de 1 a 5 anos,
grupos quinquenais de 6 anos até 30 anos, passando para grupos decenais de 31 a 100 anos
e 100 anos e mais.
11. Os censos em 1910 e 1930 não foram realizados por perturbações de ordem política (Fonte:
https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/historico-dos-censos/censos-demograficos.
html Acesso em 10 dez. 2021).

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As peças consultadas para nossa pesquisa encontram-se disponíveis
no Arquivo Histórico Municipal de Franca (AHMF) e referem-se ao 1º e
2º Ofícios Cíveis12, totalizando 339 inventários e 2.264 escravizados para o
período 1851-187113.

Análise sociodemográfica da população escravizada em uma


vila paulista, 1851-187214
Apresentamos o cenário socioeconômico que marcou a formação e
o povoamento do município de Franca, localizado na região nordeste de
São Paulo. A ocupação do território evoluiu de forma interligada com a
dinâmica econômica, no mútuo condicionamento entre esse dinamismo e
a demografia escrava vis-à-vis as conjunturas social, política, econômica e
demográfica da província e região estudadas.
Parte do processo de ampliação das áreas voltadas ao abastecimento
interno na região Centro-Sul do Brasil em fins do século XVIII e começo do
XIX, Franca recebeu indivíduos ligados a grupos familiares que se dirigiram
para o que até então era chamado Sertão do rio Pardo. Famílias já constituídas
migraram para o nordeste paulista e outras vieram a se constituir na nova
freguesia (erigida em 1805). Ao chegar à condição de Vila (1824), Franca
já contava moradores livres e escravizados que se dedicavam à agricultura
de subsistência e à criação de gado vacum e suíno (CHIACHIRI FILHO,
1986; CUNHA, 2009).
Ampliar a fronteira em um momento de procura internacional pelos
produtos coloniais foi a forma encontrada para garantir a produção em terras
ainda escassamente povoadas e relativamente férteis (LENHARO, 1979).

12. As informações coletadas para nossa pesquisa foram: a localização do inventário (caixa,
número), ano de abertura, o nome do inventariado, inventariante(s) e os cativos arrolados
(nome, idade, estado conjugal, relação de parentesco com outros cativos, condições de
saúde, ocupação, cor, naturalidade e preço).
13. Levantamos todos os inventários post mortem referentes ao Termo de Franca, São Paulo
e que constassem com ao menos um cativo arrolado. “Termo de vila ou cidade – O espaço
a que abrange a jurisdição dos seus juízes” (SILVA; BLUTEAU, 1789, v. 2, L-Z:454).
14. Uma versão anterior intitulada “A escravidão em números: demografia escrava em
Franca-SP, 1811-1888” (Cunha, 2015a) se encontra publicada em:
https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/textos_nepo/textos_nepo_70.pdf (Acesso em:
04 nov. 2021).

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Mesmo não estando diretamente inserida na agricultura de exportação,
Franca apresentou uma economia relativamente dinâmica voltada para o
abastecimento interno e a criação de animais, em um momento de expansão
das plantations em terras paulistas.
O fluxo de migrantes, oriundos principalmente de Minas Gerais, teve
destacado papel no povoamento e ocupação do território nas primeiras
décadas dos oitocentos. Em 1809, a população da Freguesia era de 1.279
habitantes, predominantemente paulistas. A partir de então, um grande fluxo
migratório proveniente de Minas Gerais e, também, de outros locais de São
Paulo alterou o volume e o perfil dessa população. Em 1820, a população
total chegou a 2.966 habitantes, dos quais 994 escravizados (33,5%).
A participação de migrantes de Minas Gerais como chefes de domicílios
(homens e mulheres) demonstra o quão significativo foi o componente
migratório na sociedade francana nas primeiras décadas do século XIX. Em
1836, a população total (livre e escravizada) chegou a pouco mais de 10.000
habitantes e de um total de 1.571 domicílios, 72,8% eram chefiados por uma
pessoa nascida em Minas Gerais. A Lista Nominativa informa que 34,9%
do total de habitantes livres era oriundo de Minas Gerais e 36,2% já eram
nascidos em São Paulo em 1836 (CUNHA, 2005:109).
Num primeiro momento, o fluxo de migrantes oriundos principalmente
de Minas Gerais, teve destacado papel na ocupação e povoamento do
território. Com o arrefecimento da vinda de migrantes após 1850, as elevadas
taxas de natalidade (já observadas desde meados da primeira metade dos
oitocentos) garantiram o crescimento populacional (CUNHA, 2015b).
Vimos como o papel dos migrantes internos, com destaque para os
originários de Minas Gerais, foi crucial para a ocupação, povoamento e
crescimento demográfico de Franca e circunvizinhanças até a década de 1850.
Porém, o fluxo não cessou, mas arrefeceu consideravelmente na segunda
metade do século XIX.
Para a segunda metade do século XIX, cotejamos os dados do
Recenseamento Geral do Império de 1872 com as informações coletadas
em inventários post mortem para o período 1851-1871. O recorte temporal
se deve ao fim do tráfico transatlântico de escravizados e a promulgação
da Lei do Ventre Livre em setembro de 1871. As informações referentes ao

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primeiro recenseamento realizado no Brasil em 1872 são provenientes da
coletânea São Paulo do Passado: dados demográficos (BASSANEZI, 1998),
na qual se encontram transcritos, corrigidos e sistematizados os dados
dos levantamentos populacionais regionais e nacionais publicados para a
Província/Estado de São Paulo entre 1836 e 1920.
O Recenseamento Geral do Império de 1872, por motivos imperiosos,
segundo as autoridades da época, só foi realizado na Província de São Paulo
em 1874, ou seja, três anos após a Lei do Ventre Livre (1871). Embora a norma
fosse considerar o ano de 1872 como referência na coleta das informações
censitárias, parece não ter sido obedecida pelos recenseadores em Franca:
entre os escravizados só foram contabilizadas as crianças com três anos e
mais. Precisamos estar atentos a isso. De qualquer forma, mesmo que os dados
sejam relativos ao ano de 1874, a referência será sempre o Recenseamento
Geral do Império de 1872.
No período 1839-1885, Franca presenciou a criação de novas vilas em
seu antigo território15. De acordo com o Recenseamento Geral de 1872, o
conjunto de municípios que compunham o município original de Franca era
composto de três municípios (Franca, Batatais e Cajuru) e contava com 40.277
moradores, dos quais 33.816 livres e 6.461 cativos. Esse informa que apenas
4,2% dos moradores livres (de ambos os sexos) do território de Franca eram
nascidos na Província de Minas Gerais e 90,9% já eram paulistas. Dentre os
escravizados, 72,4% (de ambos os sexos) eram naturais de São Paulo e 3,5%
eram originários de Minas Gerais (CUNHA, 2015b; BASSANEZI, 1998).
Para o município de Franca, o Censo de 1872 contabilizou 21.419
habitantes, dos quais 18.021 (84%) livres e 3.398 (16%) escravizados.
Em 1886, a população do território original de Franca contava com
50.923 habitantes16, sendo 10.040 no município de Franca. A participação de

15. Os desmembramentos territoriais sofridos pelo município de Franca no século XIX


foram: Batatais (elevado a Vila em 1839, do qual se desmembrou Cajuru em 1865), Igarapava
(1873), Patrocínio Paulista e Ituverava (ambos se tornaram Vila em 1885). Santo Antônio
da Alegria desmembrou-se de Cajuru em 1885 e Nuporanga (ex Divino Espírito Santo de
Batatais) também se tornou vila no mesmo ano. No entanto, este último foi reconduzido à
categoria de distrito e incorporado ao município de Orlândia em 1909. Em 1926, tornou-se
novamente município. (BASSANEZI, 1998, v. I:.233-234).
16. Estão somadas a população total de Nuporanga (pertencente a Batatais no levantamento
de 1886) com 3.010 habitantes, de Patrocínio Paulista com 2.248 moradores e de Santo

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cativos no total da população do território declinou de 16,0% em 1872 para
cerca de um décimo em 1887. Franca, em 1887, era o município do nordeste
paulista que mantinha a maior porcentagem de cativos no total da população
(12,8%), apesar de Batatais apresentar maior número absoluto de cativos em
relação ao município de Franca.
A malha ferroviária da Mogiana atingiu primeiro Batatais em 1886 e,
um ano depois, Franca (1887). As últimas décadas do século XIX foram
marcadas pela vinda de grandes produtores de café para a região próxima
de Ribeirão Preto, e que aos poucos avançaram para a região de Franca,
uma vez que a consolidação do café enquanto principal produto da região
data dos anos 1890.
O ritmo de vida tornou-se ainda mais dinâmico, com o fim da escravidão,
a chegada de novos imigrantes estrangeiros (principalmente italianos) que
acabaram por modificar o quadro tradicional da sociedade francana na
passagem do século XIX para o XX.
Ao focalizar a evolução da população cativa na segunda metade dos
oitocentos é preciso levar em conta que durante o século XIX ocorreram
no Brasil transformações econômicas, sociais e políticas que marcaram
profundamente a dinâmica demográfica desse segmento populacional: o
fim do tráfico atlântico de escravizados, a transição para o trabalho livre, a
expansão da cafeicultura e seus desdobramentos (o crescimento dos núcleos
urbanos, a expansão da malha ferroviária e a imigração internacional). Na
primeira metade do século XIX os escravistas tiveram oferta constante de
mão de obra escravizada oriunda da África, enfrentando poucas dificuldades
para adquiri-la17.
O ano de 1850 – quando ocorreu a abolição do tráfico atlântico –
marcou um novo momento na demografia escrava. Após esse ano, embora
o tráfico ilegal possa ter introduzido novos africanos no território brasileiro,
a reprodução da população escravizada passou a depender, sobretudo,

Antônio da Alegria com 4.294 habitantes ainda que não tenham contabilizado a população
segundo condição social (livre e escrava).
17. Apesar de a Inglaterra pressionar o Brasil para a extinção do tráfico e ter conseguido
que fosse proibido formalmente em 1831, a importação de africanos manteve-se nas décadas
de 1830 e 1840.

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do crescimento vegetativo e do tráfico interno. A série de outras leis que
encaminharam o processo emancipacionista, promulgadas entre 1850 e
1888, assim como as grandes transformações socioeconômicas observadas
no país neste mesmo período, responderam por novas mudanças no sistema
escravista que impactaram a demografia escrava. Franca não esteve alheia
a esse processo.
Com a lei n. 581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei Eusebio
de Queiroz, que extinguiu o tráfico transatlântico de escravizados, o tráfico
interno passou a abastecer as áreas escravistas do Sudeste com cativos
especialmente provenientes da região Nordeste. A migração de escravizados
das províncias do Nordeste para o Sudeste agroexportador perdurou até
1881, quando elevadas taxas de importação de cativos foram aprovadas
pelas Assembleias Legislativas do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo,
dificultando o tráfico interno (SLENES, 1976:124-125).
Durante a segunda metade do século XIX o Estado passou a interferir
mais diretamente na relação senhor-escravizado através de leis referentes ao
elemento servil. O decreto nacional n.1.695, de 15 de setembro de 1869, proibia
a separação de escravizados casados por venda. A lei de 28 de setembro de
1871, conhecida como Lei do Ventre Livre ou Rio Branco, libertava os filhos
de ventre escravo18 e permitia ao cativo a formação de pecúlio, com o qual
podia comprar a sua liberdade19.
Uma nova lei de encaminhamento do processo de abolição, a de n.3.270,
de 28 de setembro de 1885, também conhecida como Lei dos Sexagenários
ou Saraiva-Cotegipe, tornou livre todos os escravizados com 60 anos ou
mais. Assim como a Lei do Ventre Livre, a libertação deu-se de maneira
condicional: o escravizado beneficiado pela lei devia continuar servindo seu
antigo proprietário por mais três anos ou até atingir 65 anos20.

18. A Lei estipulava que os filhos livres de ventre escravo (ingênuos) deveriam permanecer sob
a tutela dos proprietários de suas mães até os oito anos, quando então, o senhor escolheria
por se servir do trabalho dos ingênuos até seus 21 anos ou receber uma indenização do
Estado e renunciar aos serviços. A primeira opção foi majoritariamente escolhida entre os
senhores (TEIXEIRA, 2006:12).
19. O pecúlio só foi formalmente reconhecido nesta lei.
20. As leis procuravam realizar a transição para o trabalho livre de forma lenta e gradual,
delimitando as relações sociais entre (ex)escravos e senhores na sociedade livre (MENDONÇA,
2008).

81 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Também é preciso considerar as alforrias que, compradas ou concedidas,
eram um caminho possível para a liberdade e foram frequentes no Brasil
escravista do período. Elas implicavam a saída de pessoas do segmento
escravo para o livre e, consequentemente, em alterações na estrutura e
dinâmica demográfica desses segmentos.
Por fim, a extinção da escravidão ocorreu em 13 de maio de 1888 sem
indenização para as pessoas escravizadas21. A combinação de tais aspectos
teve impactos consideráveis na população escravizada do período.

1851-1871
Em 1836, viviam 10.370 pessoas na Vila Franca, das quais cerca de
1/3 eram escravizadas (3.395); quase quatro décadas após, encontravam-se
40.277 habitantes, dos quais 6.461 (16%) ainda eram cativos. Embora tenha
quase dobrado seu volume em relação a 1836, a participação da população
escravizada no total da população do território francano reduziu-se para
16,0% em 1872 (no município de Franca propriamente dito, para 18,9%).
Tomando apenas o município de Franca, verificamos que em 1872,
estava entre os municípios mais populosos da Província de São Paulo. Dos
89 municípios existentes nessa ocasião, seis tinham uma população superior
a 20.000 habitantes e Franca ocupava a quinta posição nessa classificação
com 21.419 moradores. Sua população livre era inferior apenas à paulistana e
à de Itapetininga e seus escravizados representavam 2,2% (3.398) dos cativos
da Província.
A proporção de cativos no total da população do município de Franca
(18,9%) era superior à observada em Itapetininga (8,5%) e na capital, São
Paulo (12,2%). No entanto, inferior a outras localidades caracterizadas por
uma agricultura agroexportadora: Bananal (53,1%), Campinas (43,6%) e
Piracicaba (28,5%).
No conjunto dos escravizados do município de Franca, a porcentagem
de homens (53,2) predominava sobre a de mulheres (46,8%), em proporções
semelhantes às encontradas para o antigo território. A proporção de crianças

21. A Lei 13 de Maio libertou pouco mais de 700.000 cativos já que, de acordo com a
matrícula de 1887, a população escravizada no Brasil (de 15 a 59 anos) totalizava 723.175
cativos (SLENES, 1976:697-698).

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com até 10 anos apresentava-se um pouco maior no município que no
território (16,5% e 15,3%, respectivamente).
Verificamos que os escravizadoss listados nos 339 inventários, entre
1851 e 1871, totalizavam 2.264 pessoas, das quais 53,7% eram homens e 46,3%
mulheres (valores muito próximos aos verificados no Censo de 1872). A razão
de sexo ficou em 116 entre 1851-1871 e 114, tanto para o território como para
o município de Franca, em 1872.
Quando confrontamos os inventários post mortem no período 1851-1871,
a proporção de crianças com idade igual ou inferior a 10 anos mostrou-se
elevada (30%), o que acabou por dar forma piramidal à representação gráfica
da população cativa por sexo e grupos etários. Nesse período, as crianças
nascidas antes da Lei do Ventre Livre se fizeram presentes e a expressiva
participação delas no segmento cativo nos leva a aventar a hipótese de
reprodução natural em Franca.
Há estudos que atestam a possibilidade de reprodução natural entre a
população escravizada inserida em economias não voltadas para a agricultura
agroexportadora como foi destacada por Gutiérrez (1987) em sua análise sobre
a população escravizada na capitania/província do Paraná, no começo do
século XIX. O elevado número de nascimentos e o perfil jovem da população
cativa indicam que o crescimento desse segmento se deveu à reprodução
natural entre os mesmos. Botelho (1994; 1998) em seu estudo sobre Montes
Claros – MG no século XIX, também atentou para o crescimento vegetativo
da população escravizada, assim como Marcondes e Garavazo (2002) ao
analisarem a estrutura de posse cativa em Batatais-SP em meados da década
de 1870. Paiva e Libby (1995) também chamaram a atenção para as regiões em
Minas Gerais que não se alimentaram exclusivamente do tráfico internacional
(ou do comércio interno de escravizados), uma vez que os nascimentos
também foram responsáveis para a manutenção de escravarias, ao menos
até 1872.22

22. Salles (2008) destaca a ocorrência de reprodução natural entre os cativos de Vassouras-
RJ (zona de produção cafeeira) na segunda metade do século XIX, assim como Barroso
(2015) também atenta para a possibilidade de reprodução natural entre os escravos da zona
Guajarina e Baixo Tocantins (Grão-Pará) ao analisar inventários post mortem referentes ao
período 1851-1888. Outros autores, por sua vez, têm enfatizado o papel crucial do tráfico de
escravizados para a manutenção e expansão da população cativa (SLENES, 1976; KLEIN,
1987; FLORENTINO, 1997).

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Gráfico 1

Fonte: Bassanezi (1998).

Gráfico 2

Fonte: AHMF Inventários post mortem.

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Gráfico 3

Fonte: Bassanezi (1998).

A expressiva participação das crianças explica a idade média dos


escravizados inventariados no período 1851-1871 ter valor igual a 24,7 anos,
abaixo dos valores observados no Censo de 1872: 33 anos no território de
Franca e 31 anos no município. Ao considerarmos apenas os escravizados
inventariados com 11 anos e mais, chegamos à idade média de 33,4 anos,
semelhante ao que o Censo verificou, uma vez que este último sub-representa
o grupo 0-10 anos. É preciso lembrar que o assento de bens presente nos
inventários post mortem poderia ser mais acurado do que o censo, pois os
escravinhos (mesmo crianças) deveriam obrigatoriamente ser listados e
avaliados para a partilha.
No início dos anos 1870, no antigo território de Franca foram recenseados
um total de 6.461 cativos, dos quais 92,5% eram nascidos no Brasil e 7,5% (482)
oriundos do continente africano. No município, os africanos escravizados
representavam 9,2% do total de cativos ou 314 pessoas. Entre os escravizados
inventariados no período 1851-1871, os africanos representavam 14,6%.
A maior porcentagem de africanos inventariados recenseados pode estar
relacionada à idade mais elevada com que muitos dos proprietários faleciam,
ou seja, os bens arrolados refletiam um “momento “declinante” do ciclo de
vida do senhor, com escravarias envelhecidas [...]” (BACELLAR, 2008:93).

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Como mencionado, as crianças com até 10 anos de idade chegavam a 30%
dos cativos inventariados, o que acabou por diminuir a idade média dos
escravizados, mas as colocações sobre os proprietários inventariados mais
envelhecidos também são pertinentes.
É preciso lembrar que boa parte das crianças nasce no seio de famílias
constituídas e, para que isso ocorra, é preciso relativa estabilidade da posse.
Assim, as escravarias mais estáveis garantiram as condições de formação
de famílias e o nascimento de crianças, e é bem possível que tenham se
formado em décadas anteriores. Acreditamos que boa parte da aquisição de
escravizados africanos pelos proprietários do nordeste paulista foi anterior
aos tratados visando o fim do tráfico em 1831, pois a maior porcentagem de
africanos verificada na população escravizada da Vila Franca ocorreu em
1829 (37% do total da população cativa era de origem africana), voltando a
declinar nos anos subsequentes (OLIVEIRA, 2012:58).
Apenas os inventários post mortem nos informam a procedência desses
africanos. De um total de 330 escravizados africanos (14,6% do total de
cativos), a procedência aparece em 217 casos: 82,9% vieram da Costa ou eram
designados como De Nação; 11,5% procediam de Angola (Benguela, Rebolo,
Cassange, Angola), 3,7%, do Congo e 1,2% de Moçambique.
O mesmo não pode ser dito em relação ao local de origem dos
escravizados nacionais. Segundo os inventários abertos entre os anos de
1851 e 1871, foi possível identificar 1.508 cativos como nacionais (66,6%)
(inclusive pardos, mulatos e cabras) e para 18,8% não há menção sobre a
origem. Sobre o local de nascimento, encontramos apenas informações
para quatro cativos: uma escravizada era natural da Bahia, um homem de
Batatais e um homem e uma mulher de Franca, respectivamente.
Dentre os escravizados nascidos no Brasil, o Censo de 1872 especifica
apenas a província de origem e não o município. No antigo território de
Franca, 78% eram naturais da Província de São Paulo; 12,4% eram oriundos
da Região Nordeste (sendo 5,8% da Bahia e 3,2% de Pernambuco), do Rio
de Janeiro e de Minas Gerais (juntos somaram 6,4%). Como sabemos, a
Região Nordeste figurou como uma das principais áreas produtoras de
cana-de-açúcar no Brasil colonial e utilizou mão de obra ativamente. Com

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a decadência da produção de açúcar, suas províncias passaram a alimentar o
tráfico interno de escravizados em direção à Região Sudeste, especialmente,
as lavouras de café. No município de Franca, 80% dos nascidos no Brasil
eram escravizados paulistas; 10,6% naturais da região Nordeste e 7,1% do
Rio de Janeiro e Minas Gerais (conjuntamente).
Ao que parece, a economia de Franca foi relativamente dinâmica para
manter sua mão de obra escravizada, mesmo próxima a áreas de cafeicultura
mais pujantes e ávidas por cativos na Província de São Paulo. É preciso
frisar que estamos nos referindo a escravistas de pequenas posses (até 6
escravizados) característica de uma economia voltada ao abastecimento
interno, mas que se utilizou do trabalho escravo até o suspiro final do sistema
escravista.

Tabela 1 – Distribuição dos inventários post mortem e cativos segundo


período. Franca, 1851-1888
N. N. N. N. médio
Período % % %
cativos ingênuos inventários cativos
1851-1860 1.066 33,4 158 31,3 6,7
1861-1870 1.091 34,2 168 33,3 6,5
1871-1880 652 20,4 45 20,9 115 22,8 5,7
1881-1888 379 12,0 170 79,1 64 12,8 5,9
Total 3.188 100,0 215 100,0 505 100,0 6,3
Fonte: AHMF Inventários post mortem.

Com a realização da Matrícula de Escravos em agosto de 1872, quase


um ano após a Lei do Ventre Livre, os inventários post mortem deveriam
apresentar uma cópia ou a transcrição dela23. A Matrícula trazia nome, idade,
ocupação, condições para o trabalho, filiação e número da matrícula, o que
acabou por contribuir com informações mais completas sobre os escravizados,
especialmente, no tocante ao parentesco escravo.

23. Esta listagem tinha o objetivo de manter o controle sobre os nascimentos de filhos de
escravas, a fim de terem sua liberdade garantida, além de conformar uma base para o Fundo
de Emancipação de escravos. Por conseguinte, a matrícula seria também o fundamento
legal para a propriedade de escravos, de forma que, a partir de 1872, todos os inventários
post-mortem eram obrigados a apresentar sua transcrição (SILVA, 2012:16).

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As informações sobre o parentesco escravo revelam que 579 cativos
(18,2%) estavam inseridos em grupos familiares entre 1851-1888. A maior
parte das famílias escravas identificadas nos inventários era formada por
casais (48,6%), seguida de mães com filhos (24,7%) e de casais com filhos
(17,7%) (os três grupos responderam por 91% dos cativos aparentados).
Uma forma de destacar a existência da família escrava e de visualizá-la
nos recenseamentos é por meio do estado conjugal. De acordo com o Censo
de 1872, no território de Franca 15,4% dos cativos com 16 anos ou mais eram
casados ou viúvos. Quando analisamos segundo o sexo, 13,8% dos homens
cativos com 16 anos ou mais eram casados e 1,5% viúvos, e entre as mulheres
escravizadas, 13,6% encontravam-se casadas e 2,0% viúvas24. A existência
de parceiros elegíveis proporcionou às mulheres mais oportunidades de se
unirem, uma vez que a razão de sexo entre aqueles com 16 anos ou mais
chegou a 154 em 1872.
Quando comparamos o Censo de 1872 com as informações presentes nos
inventários post mortem, chamamos a atenção para a possível sub-registro dos
cativos casados ou viúvos recenseados em 1872. Os dados fornecidos pelos
inventários post portem entre 1851-1871 indicam que dentre os escravizados de
ambos os sexos arrolados, 23,1% daqueles com 16 anos ou mais se encontravam
casados ou viúvos, os homens adultos cativos, alguma vez unidos chegaram
a 20,7% e as mulheres a 26,2%.
O importante a ser ressaltado é que o casamento atuou como instituição
que possibilitou o estabelecimento de laços de parentesco, afetivos e sociais,
assim como, promoveu a reprodução de parte do segmento escravizado e
esteve presente em Franca no decorrer do período analisado.
As informações apresentadas evidenciam que ser escravizado implicou
em vivenciar um comportamento demográfico fortemente marcado pelos
constrangimentos que essa condição lhe impunha.

24. Estamos nos referindo à idade de 16 anos em virtude de a população ser listada no
Recenseamento Geral do Império de 1872 por idades simples até os cinco anos de idade, por
idades quinquenais até os 30 anos (6-10, 11-15, 16-20, etc.) e a partir dessa idade, os grupos
etários passam a ser decenais (31-40, etc.).

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Considerações finais
Em meados da primeira metade do século XIX, Franca estava entre os
municípios que possuíam mais escravizados na Província de São Paulo, no
entanto, a participação da população cativa no total da população não era
tão alta como nas áreas de grande lavoura.
Ao lidarmos com uma localidade que sofreu diversos desmembramentos
territoriais, apresentamos uma proposta de acompanhar o território original
(agrupando as informações censitárias dos municípios desmembrados)
juntamente com as informações referentes ao município propriamente dito.
A fim de realizarmos um exercício de caráter metodológico, comparamos
os dados censitários presentes no Recenseamento de 1872 e as informações
recolhidas nos inventários post mortem referentes ao período 1851-1871.
Ao focalizar a evolução da população cativa entre 1851-1871 é preciso levar
em conta que durante o século XIX ocorreram transformações econômicas,
sociais e políticas no Brasil que marcaram profundamente a dinâmica
demográfica desse segmento populacional: o fim do tráfico atlântico de
escravizados, a transição para o trabalho livre, a expansão da cafeicultura
e seus desdobramentos.
De uma perspectiva metodológica, demonstramos que os dados
provenientes de fontes diversas (censo e inventários post mortem) e com
recortes temporais distintos apresentaram tendências e perfis semelhantes
quanto à estrutura e composição da população cativa, ainda que valores e
proporções diversas, como era de se esperar.
Sintetizamos as características demográficas dos escravizados e
escravizadas recenseados em 1872 e inventariados(as) no período 1851-1871,
por:
Sexo: houve predomínio do número de homens sobre o de mulheres.
Houve uma tendência ao equilíbrio entre os sexos que se acentuou com o
fim do tráfico transatlântico (1850) que privilegiava a entrada de homens.
Idade: as crianças escravizadas (com até 10 anos) tiveram expressiva
participação nos inventários e chegaram a representar 30% do total da
população escravizada. A partir de fins de 1871, as crianças filhas de mãe
escravizada não eram mais contabilizadas entre a população escrava. O

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Censo de 1872 informa apenas as crianças de 3 a 10 anos (uma vez que foi
realizado em 1874 na Província de São Paulo) e elas eram apenas 15,3% dos
cativos no território de Franca e 16,5% no município. Podemos elucubrar
que, pelo menos até 1872, há indícios de reprodução natural dos escravizados
em Franca.
A idade média da população escravizada oscilou entre 23 anos em 1836
a 33 anos em no território de Franca em 1872. A estrutura etária e por sexo
da população africana evidenciou um perfil típico de população imigrante,
com predomínio masculino em idade adulta e produtiva, ao passo que,
os nacionais apresentaram um perfil mais próximo ao da população livre,
destacando-se a elevada participação de crianças (ainda que em proporções
inferiores à verificada para a população livre).
Origem: os nacionais sobrepujaram os africanos na população
escravizada de Franca. A participação africana oscilou entre 31,7% em 1836
,14,6% entre 1851-1871, 7,5% no território e 9,2% no município em 1872.
Os africanos eram, em sua maioria, oriundos do Centro-Oeste africano e
pertenciam ao grupo linguístico banto. As informações a respeito do local
de procedência da África são muito mais acuradas nos inventários post
mortem da primeira metade do século XIX, ao passo que a procedência dos
nacionais passa a ser mais bem informada a partir da segunda metade dos
oitocentos nesse mesmo corpo documental. As fontes censitárias são mais
genéricas ao indicar a procedência do escravizado, mencionando apenas
que ele é de África.
Outro dado atestando a ocorrência de reprodução natural se dá através da
procedência dos escravizados nacionais: boa parte já era natural da Província
de São Paulo em 1836 (21,1% do total de cativos, seguido dos naturais de
Minas Gerais que chegaram a 15,2%). Em 1872, 78% dos escravizados que
viviam no território de Franca e 80% daqueles do município eram naturais
da província de São Paulo. Os nascidos nas províncias do Nordeste (Bahia e
Pernambuco, especialmente) vinham em segundo lugar, indicando a presença
do tráfico inter-regional de cativos.
Estado conjugal: o casamento formal foi uma possibilidade na vida
dos escravizados, principalmente para as mulheres. As mulheres com mais

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de 15 anos apresentaram maior proporção de casadas e viúvas que seus pares
masculinos. A predominância numérica dos escravizados homens adultos
e a baixa incidência de uniões entre noivos que pertenciam a proprietários
diferentes certamente foram entraves significativos para que homens e
mulheres escravizados tivessem acesso ao casamento religioso. Ausência
de formalização, no entanto, não é sinônimo de relações familiares ausentes.
O que podemos aferir, a partir das fontes analisadas, é que o estado de
casado/a ou viúvo/a não foi insignificante entre os cativos de Franca. A
maior participação dos casados/viúvos se deu em 1836, com 29% dos cativos
com 15 anos ou mais de ambos os sexos unidos ou já unidos (ou 29,6% dos
cativos com 16 anos ou mais).
Os dados para 1851-1871 informam que 23,1% do total de cativos com
16 anos ou mais estavam casados ou viúvos. O Censo de 1872 incorreu em
sub-registro do estado conjugal dos cativos de Franca, uma vez que apenas
15,3% do total de cativos do território foi arrolado como casados ou viúvos.
Esperamos que o exercício comparativo seja capaz de demonstrar que
diante de lacunas ou ausências de informações censitárias (recorte transversal)
é possível utilizar os inventários post mortem (caráter longitudinal) a fim de
caracterizar a população escravizada. Devido a sua abrangência nacional, o
Recenseamento de 1872 permite uma análise da população livre e escravizada
em nível paroquial, o que não se dá em relação às demais fontes de caráter
censitário. Por sua vez, os inventários post mortem são fontes relativamente
abundantes para o século XIX, no entanto, o seu acesso nem sempre é
facilitado ou está disponível para consulta pública.

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Tadeu Ferreira, 1789. 2v.: v. 1: xxii, 752 p.; v. 2: 541 p.
SILVA, Guilherme Augusto do Nascimento. A população escrava de uma vila
oitocentista. Piranga, Minas Gerais (1850-1888). In: ENCONTRO NACIONAL
DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 18, 2012, Águas de Lindóia. Anais... Belo
Horizonte: ABEP, 2012.
SLENES, Robert W. The demography and economics of brazilian slavery:
1850-1888. 1976. 728f. Tese (Doutorado) – Stanford University, 1976.
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na
formação da família escrava – Brasil: Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.
TEIXEIRA, Heloisa Maria. “A criança no processo de transição do sistema
de trabalho – Brasil, segunda metade do século XIX”. In: ENCONTRO
NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 15, 2006, Caxambu. Anais...
Belo Horizonte: ABEP, 2006.

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Batismos, casamentos e óbitos: fontes para os
estudos sobre a escravidão

Jonis Freire
Universidade Federal Fluminense

Registros paroquiais: fontes “democráticas”


Os sagrados sacramentos da Igreja Católica foram momentos importantes
na vida de diversas populações ao longo dos séculos e demarcavam aspectos
vitais do cotidiano de homens e mulheres1. Desde muito cedo a Igreja
determinou a composição de livros nos quais eram registrados os assentos
de batismo, casamentos e óbitos2 que deveriam abarcar todos os indivíduos,

1. “Os Sacramentos a Santa Madre Igreja, como a Fé Catholica nos ensina, são (1) sete,
convem a saber: Baptismo, Confirmação, Eucharistia, Penitencia, Extremaunção, Ordem e
Matrimonio. Todos sem duvida causão (2) graça nos que os recebem dignamente, e não põem
(3) impedimento a ella; a qual graça por excellencia se chama cousa sagrada, e dom sagrado,
pois nos santifica com Deos.” Título IX. (Vide, 1853, p. 10 – 11 – destaques no original).
2. Segundo as Constituições Primeiras..., cada paróquia deveria ter e guardar livros específicos
para livres e escravos. (VIDE, 1853). Contudo, muitos livros de batismo, casamento e óbito
possuíam registros de homens e mulheres de todas as condições jurídicas. Essa documentação
encontra-se, geralmente, em arquivos eclesiásticos, contando nesse caso com documentos
conservados, catalogados, tratados e disponíveis para consulta, ou ainda dispersos em
diversas paróquias. É possível o acesso em sites na internet onde a essas fontes e/ou bancos
de dados como, por exemplo: o NACAOB https://www.nepo.unicamp.br/nacaob/index.php/
sobre/; Family Search https://www.familysearch.org/pt/; o Slave Societies Digital Archive
https://ncph.org/project/slave-societies-digital-archive/; a Escravidão africana nos arquivos
Eclesiásticos – séculos XVI – XIX https://www.historia.uff.br/curias/modules/tinyd0/index.
php?id=1

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independente de gênero, status social, condição jurídica (livre, escravo, forro,
liberto), idade etc. (CAMPOS, FRANCO, LIBBY, 2004). No Brasil, esses
e outros ritos católicos foram codificados no Sínodo Diocesano de 1707,
confeccionado a partir da adaptação das resoluções do Concílio de Trento
às condições sociais brasileiras e publicados nas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia em 17203. Essa legislação canônica estipulava as
multas devidas aos párocos que não realizassem de maneira adequada
os sacramentos, determinavam a fórmula segundo a qual deveriam ser
registrados, bem como suas interdições, matéria, formas e efeitos4. Portanto,
para um bom entendimento sobre os sacramentos do batismo, casamento e
óbito é imperativo que os estudiosos conheçam e utilizem essa fonte.
Os registros dos sacramentos são documentos que permitem estudos
quantitativos e qualitativos sobre variados aspectos das sociedades do
passado e do presente, como: o cotidiano, a demografia, as mentalidades, a
religiosidade etc. Dentre os sete sagrados sacramentos, batismo, matrimônio
e óbito foram, talvez, os eventos mais marcantes e/ou com maior cobertura
documental e é a respeito deles que trataremos. Nosso intuito é o de, a partir
de tais fontes, demonstrar algumas das possibilidades de pesquisa para os
estudos sobre a escravidão no Brasil que podem abarcar, dentre outros,
aspectos demográficos, econômicos, culturais, sociais e religiosos5.
No Brasil, onde até muito tarde o Padroado6 incidiu nas relações entre
Estado e Igreja, os nascimentos, casamentos e óbitos revestiam-se de um
duplo papel: religioso e civil.
Contendo inúmeras informações, não é surpreendente que os ‘livros
paroquiais’ tenham sido vistos com bons olhos pelo Estado monárquico.

3. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. (...). Sobre essa legislação canônica


conferir: FEITLER, SALES SOUZA, 2011; VIDE, FEITLER, SALES SOUZA, 2010.
4. No entanto, quando nos defrontamos com as fontes, percebemos o quanto as normas
eram burladas e/ou negligenciadas, bem como outros desvios das leis estabelecidas pelas
Constituições Primeiras. Sobre esses “desvios”: MAIA, 2006.
5. Um trabalho com preocupações similares pode ser visto em: BASSANEZZI, 2009.
6. Segundo Marcílio: “O estatuto do Padroado Régio no Brasil até pelo menos a Constituição
Republicana, de 1891 (quando foram separados, o Estado da Igreja) deu aos Registros
Paroquiais uma cobertura praticamente universal da população brasileira (excluídos apenas
os protestantes que surgem principalmente no Segundo Reinado e dos índios e africanos
pagãos, ainda não batizados).” (MARCÍLIO, 2004, p.16).

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Numa sociedade marcada por elevado número de iletrados, o documento
constituía um dos raros testemunhos escritos que provavam o vínculo
familiar e a condição social dos indivíduos. Os processos matrimoniais
dele dependiam. Através das atas batismais provava-se a posse de um
escravo; forros em pia batismal, por sua vez, utilizavam esse testemunho
para demonstrar a própria liberdade. Na identificação de herdeiros ou na
elaboração de genealogias, destinadas a demonstrar ‘pureza de sangue’,
também não se podia prescindir da ata de batismo. O documento era
um identificador pessoal e social, (...). (VENÂNCIO, SOUSA, PEREIRA,
2006, P. 275).

Existe, portanto, uma riqueza de informações nessas fontes que, já


há algum tempo, têm sido utilizadas pelos pesquisadores em estudos,
qualitativos e quantitativos, com diversas perspectivas (MARCÍLIO, 1970;
CAMPOS, FRANCO, LIBBY, 2004; FRAGOSO, FERREIRA, 2016; FRAGOSO,
FERREIRA, SAMPAIO, 2014; BOTELHO, ANDRADE, LEMOS, 2013; GÓES,
1993). As potencialidades e o uso desses documentos para análises sobre
as populações do passado e do presente, sobretudo, pela ausência quase
que generalizada de documentação censitária, são muito interessantes. Seu
caráter serial permite, no caso brasileiro, a depender do recorte cronológico
(Monarquia, Império ou República) e do evento analisado (batismo,
casamento ou óbito), conhecer informações diversas como: dia/mês/ano
do registro; local; hora; sexo; relações familiares e de sociabilidades; “cor/
qualidade” (preto, branco, cabra, mulato, mestiço, etc.); condição social/
jurídica (livre, escravo, liberto/forro) – no caso dos cativos o(s) nomes de
seu(s) proprietários(as); ocupação (alfaiate, pedreiro, médico, advogado,
ama de leite etc.); títulos de prestígio (comendador, barão, dona, doutor,
etc.); alforrias na pia batismal; origem (africano, crioulo, índio, espanhol,
alemão, etc.); procedência (Angola, Mina, Cassange, Rio de Janeiro, Paris,
Argirita, etc.); idade; ascendência e/ou descendência; causa mortis; local
de sepultamento; etc. Essas são variáveis fundamentais para conhecer as
dinâmicas, padrões e tendências das populações como podemos perceber
nas imagens abaixo.

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A cobertura de populações diversas é uma das características importantes
na utilização dos registros eclesiásticos. O cruzamento entre eles e outras
fontes (inventários, testamentos, listas de habitantes, alforrias etc.) abre uma
“janela” para análises de sociedades e indivíduos distintos e permite um
estudo intensivo que possibilita acompanhar “indivíduos/grupos” por longos
períodos de tempo, ajudando no entendimento de uma série de características
sociodemográficas (LIBBY, 2020; SLENES; 2011; CUNHA, 2005; FREIRE,
2014). Por meio do intercruzamento de fontes, podemos analisar populações,
vivências, dinâmicas, experiências, estratégias e comportamentos que
auxiliam investigações quantitativas e qualitativas. O seu caráter individual e
coletivo possibilita, portanto, analisar as características de momentos vitais
na vida de um indivíduo, ou um grupo, ao longo do tempo e em recortes
geográficos e cronológicos bem delimitados. A nomeação dos indivíduos
é outro aspecto relevante, já que, além de suas características “pessoais”,
possibilita a reconstituição de relações familiares.
O valor desses registros é visível ainda pela sua confecção no momento
“exato” em que as pessoas nasciam, casavam-se e morriam, demarcando seu
caráter serial e cronológico.
Em princípio, toda a população pode ser recuperada através desses
registros. Por isso, os livros que os contêm são considerados fontes
democráticas. Mesmo que, para determinados momentos e locais,
uma parcela dos nascimentos, das uniões conjugais e dos óbitos, por
algum motivo, não tenha sido anotada, esses livros incluem de fato
todos os setores da sociedade. Homens e mulheres, ricos e pobres,
brancos, negros e índios, nacionais e estrangeiros, filhos legítimos e
ilegítimos/naturais, crianças expostas e enjeitadas e também escravos e
libertos (antes de 1888) tiveram (e têm) os seus eventos vitais registrados.
A universalidade dessas fontes é uma das coisas que mais atrai os
historiadores (BASSANEZZI, 2009, p. 142).

Apesar do rico “arsenal” de informações, é preciso destacar que nem


todas estão presentes, bem como outras surgem ao longo dos registros. Esse é
um primeiro alerta para aqueles que se interessam em tal corpus documental
e que é consequência da diligência, ou não, do Padre/Pároco/Vigário/Cura.

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Cada um desses representantes do clero podia ser mais ou menos detalhista
nos registros das informações. Muitas das vezes, o seu tempo de atuação nas
paróquias é fundamental, pois permite uma “memória” dos eventos vitais
de seus fiéis, propiciando o conhecimento de informações importantes que
extrapolam a redação estipulada pela Igreja para a confecção de cada um
dos sacramentos.
Outros dois grandes problemas são os relativos aos sub-registros e à
conservação precária da documentação, que muitas vezes impossibilitam a
pesquisa. Nem todas as pessoas, independentemente de seu estatuto jurídico
e por motivos diversos, procuravam aqueles sacramentos e, portanto, muitos
indivíduos não podem ser conhecidos pela análise dos batismos, casamentos
e óbitos, há, portanto, um sub-registro. Então, por melhor que seja a amostra,
uma parcela da população não será conhecida. Apesar disso, as características
dessas fontes permitem variadas abordagens para a pesquisa e, claro, para
os interessados na história de sociedades e populações do passado e do
presente, demonstrando padrões e dinâmicas diversos. Aqui, vamos apontar
algumas possibilidades de estudos sobre a escravidão utilizando os registros
paroquiais de batismos, casamentos e óbitos e que podem auxiliar pesquisas
sobre: história social, história demográfica, história da família etc.

“Entrelaçados”: Batismos, casamentos, óbitos e a escravidão

O escravo não tem estado civil. Quase que sempre tem um nome, o de
batismo. Não tem apelidos e família. O escravo não tem família. Chama-
se Joaquim, Manoel, João e confunde-se com todos os da mesma cor
e do mesmo nome. Não tem pai conhecido, consta apenas o nome de
batismo da mãe e, às vezes, somente ele o sabe. Não se lhe conhecem
antepassados, nem atos que o caracterizem e chamem sobre ele a atenção.
No assento de batismo, quando o fazem, apenas se lhe menciona um
nome e o do senhor e, quando muito, o da mãe. Nos títulos de venda
apenas se lhe menciona o nome de batismo, o do vendedor e comprador e

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se declara, genericamente, que é da nação (se é africano) sem se declarar
qual seja, ou crioulo, se é nascido no Brasil, seja onde for.7

Em 1863, o parecer dado ao Conselho de Estado, pela “Seção de Negócios


Estrangeiros”, apontava a ausência de laços entre os cativos. Na perspectiva do
redator, sua “falta” de memória resultantes de sua promiscuidade, ausência
de relações familiares duradouras, dentre outros aspectos, deixavam os
escravos “perdidos” sem possibilidades de um mínimo de atuação/autonomia/
movimentação na sociedade ao qual se inseriam. Imperava, pela leitura do
parecer, a devassidão. No entanto, quando analisamos os batismos, destacados
pelo “Parecer”, os casamentos e os óbitos de escravos, nos deparamos com
outra realidade. São inúmeras as relações familiares com a nomeação de
mães, pais e/ou avós, bem como diversas redes de sociabilidade/solidariedade
formadas pelos cativos dentro e fora da comunidade escrava e com indivíduos
de outras condições jurídicas (livres, forros, libertos) 8.
A análise dos registros demonstra um “mundo” muito diferente e
bem mais complexo do que fazia constar o parecer da “Seção de Negócios
Estrangeiros”. Uma primeira providência a ser feita depois da leitura desse
tipo de fonte, ou melhor, em conjunto com ela, é a montagem de um banco
de dados, já que se trata de uma documentação de caráter serial. Tanto
para os estudos quantitativos como para os qualitativos, o banco de dados é
essencial, pois permite cruzar as variáveis entre si ou com outros documentos,
localizar indivíduos, apontar padrões/tendências, delimitar recortes, conectar
relações familiares, além de permitir a análise de informações que nem
sempre aparecem nas fontes, mas que, quando são destacadas, alargam o
conhecimento de aspectos de indivíduos e/ou grupos e as transformações
nas sociedades estudadas 9.

7. Parecer da Seção dos Negócios Estrangeiros, de 22 de junho de 1863. In: O Conselho de


Estado e a política externa do Império: consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (1863-
1867). Rio de Janeiro: Fundação Alexandre de Gusmão: 2007, p. 41-42.
8. As comunidades, como já destacado por Carlos Engemann, são entendidas como “um
conjunto de indivíduos que partilham símbolos, ritos, mitos e parentesco dentro do mesmo
espaço socialmente ordenado” (2008, p. 27). Sobre este assunto conferir também: Faria,
2007; Stevenson, 1996.
9. Um excelente exemplo de crítica e tratamento metodológico com os registros paroquiais,
e outras fontes, pode ser encontrado em: Cunha, 2009.

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Pesquisas sobre os escravos, a partir dessa documentação, têm uma
característica importante, qual seja, o nome de seu(ua/s) senhor(a/es/
as), que muito auxilia os estudos sobre demografia, família, compadrio,
nupcialidade, mortalidade, condições de saúde, relações sociais, alforrias
etc.10 O acompanhamento do nome do senhor(a) e/ou senhores(as) dos
cativos, em todo e qualquer documento, possibilita o intercruzamento de
fontes variadas e, por consequência, um estudo mais aprofundado sobre
o cotidiano dos cativos11. Portanto, o nome dos senhores é uma “porta de
entrada” para termos acesso aos escravos.
(...) os assentos de batismo, casamento e óbitos da Igreja permitem,
em geral, uma identificação mais segura de escravos do que de livres
pobres. Para estes, muitas vezes falta o sobrenome nesses registros,
ou há sobrenomes que não permanecem os mesmos ao longo da vida
das pessoas. Para os escravos, ao contrário, quase sempre o nome do
senhor vem indicado, o que funciona como ‘sobrenome’ (aliás bastante
estável no tempo, já que se trata de pessoa mais ou menos abastada),
possibilitando a localização do mesmo escravo em outros assentos da
Igreja ou nas listas de cativos nos inventários (VOGT, FRY, SLENES,
1996, p. 50).

Os registros paroquiais podem ser trabalhados por meio do cruzamento


de informações, seguindo escravarias no tempo, utilizando, por exemplo,
técnicas de investigação em história demográfica conjugadas à história social e
à micro-história. Análises a partir do método de ligação nominativa, cruzando

10. Trabalhos utilizando essas fontes, para diversos recortes geográficos e cronológicos,
podem ser vistos em: http://historia_demografica.tripod.com/
11. O sacramento do batismo interessava muito aos proprietários de escravos, pois, em
virtude da instituição do padroado, o Estado português delegou à máquina eclesiástica
inúmeras funções, levando as esferas religiosa e civil da vida das populações a estarem pouco
diferenciadas. Dentre estas funções, a que mais interessava aos senhores de escravos dizia
respeito à declaração, feita no registro de batismo dos inocentes e dos adultos, do nome do
seu proprietário, o que lhe garantia a posse efetiva deles. “Quando um escravo era comprado,
havia uma matrícula que servia como ‘comprovante’ da posse. Porém o inocente nascido
de uma escrava não era matriculado, já que não tinha ocorrido uma transação comercial.
Dessa maneira o registro de batismo era a única forma de que dispunha o proprietário para
comprovar que alguns, dos escravos, nascidos em seus plantéis, eram efetivamente seus.”
(Neves, 1990, p. 238, nota 5.)

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vários tipos de fontes, acompanhando, numa perspectiva longitudinal, a
demografia e o cotidiano dos escravos ainda são poucas (FREIRE, 2014;
SLENES, 2011; SLENES, VOGT, FRY, 2004; BACELLAR, SCOTT, 1990;
CUNHA, 2009).
Uma das grandes potencialidades dos registros paroquiais para os
estudos da escravidão é a da reconstituição de relações familiares. Diferente
do paradigma da anomia e da falta de laços nas relações familiares dos cativos,
apontadas no parecer da “Seção de Negócios”, e, por um longo período, pela
própria historiografia, tais fontes demonstram que os escravizados possuíam
famílias duradouras, intergeracionais e estáveis ao longo do tempo e, muitas
vezes, os registros possibilitam conhecer gerações de uma mesma família
no período da escravidão e do pós-abolição (LIBBY, 2022; ROCHA, 2004;
RIOS, 1990). Famílias compostas por indivíduos de condição escrava que
estabeleceram relações consanguíneas e espirituais com outros de mesma
condição e com pessoas de outros estatutos jurídicos (livres e libertos/forros).
Os escravizados africanos e crioulos (nascidos no Brasil) (re)
estabeleceram aqui suas redes de parentesco, laços afetivos, familiares
e constituíram-se como um elemento importante na formação de uma
identidade escrava ancorada em tradições, culturas e experiências africanas.
O tráfico foi realmente danoso, entretanto, após sua chegada, a despeito de
todas as agruras, eles conseguiram se (re)articular e (re)estabelecer traços
fortes de sua cultura, bem como (re)constituir uma identidade entre africanos
e afrodescendentes. Os traços da herança africana constantemente renovados
pelo tráfico se fizeram sentir cotidianamente entre os escravizados. Isto
ocorreu por meio do batismo, do casamento, das atitudes diante da morte,
das práticas de nomeação dos filhos, do apadrinhamento etc. Para muitos
deles, os sacramentos católicos foram bastante importantes para a sua (re)
inserção nas comunidades escravas, que por vezes podiam extrapolar a
propriedade na qual estavam inseridos, estabelecendo relações com cativos
de outros senhores. A socialização das crianças e dos adultos se dava dentro
das comunidades escravas e com indivíduos fora dela (livres e libertos/
forros), por meio dos laços de parentesco e amizade.

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Batismos: “a porta por onde se entra na Igreja Catholica, e se
faz, o que o recebe, capaz dos mais Sacramentos”12
Os registros paroquiais de batismo13, assim como os de matrimônio
e óbito, são fundamentais para a reconstituição demográfica da história
brasileira, mais do que isto, “não são documentos apenas religiosos, mas
sociais; a informação registrada fala da persona social total do indivíduo”
(GUDEMAN e SCHWARTZ, 1988, p. 39). Nesse sentido, o batismo cristão,
foi bastante importante para os projetos individuais e coletivos de muitos
escravizados, que buscaram este sacramento e estabeleceram, a partir daquele
momento, relações de solidariedade e reciprocidade que se consubstanciaram
por meio do compadrio (parentesco espiritual/ritual).14 Para além de seu
significado católico, os laços estabelecidos por pais, mães, batizandos e seus
padrinhos e madrinhas perante a Igreja Católica extrapolaram o âmbito da
Igreja e mostraram-se presentes em toda a sociedade, se fazendo sentir no
cotidiano daquelas pessoas. “(...), o padrinho, segundo a doutrina católica,
constituía-se em um segundo pai, em um com-padre: ou seja, alguém com
quem, de algum modo, se dividia a paternidade.”15
Os batismos, como já dissemos, possuem uma série de informações
que podem ser utilizadas pelos interessados em temas diversos. Possibilitam
também análises qualitativas e quantitativas que auxiliam no entendimento
das populações do passado e do presente. Esse documento, guardando as
particularidades já descritas nesse capítulo, apresenta-se em livros próprios
seguindo a redação estipulada pelas Constituições Primeiras como as imagens

12. Com a inserção na Igreja por meio do batismo o batizando passava a ter direito aos
demais sacramentos da Igreja Católica. Sem este sacramento era vedado ao indivíduo o
acesso, por exemplo, ao casamento, à extrema-unção ou à crisma: “O batismo é o primeiro
de todos os sacramentos, e a porta por onde se entra na Igreja Católica, e se faz, o que o
recebe, capaz dos mais sacramentos, sem o qual nem um dos mais fará nele o seu efeito”.
(VIDE, 1853, p.12).
13. Como bem afirmou Mariza de Carvalho Soares, “Aos olhos da sociedade contemporânea
os livros de batismo têm um significado quase desprezível, mas, no Antigo Regime eles são
a forma primeira de identificação de qualquer indivíduo, livre ou escravo, pobre ou rico,
nobre ou plebeu” (2000, p. 22).
14. O parentesco espiritual ou ritual é aquele estabelecido, por exemplo, pelos pais, padrinhos
e o batizando por meio do batismo; entre os noivos e as testemunhas de seu casamento e
em outros atos.
15. BRUGGER, 2007, p. 318.

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abaixo. Como podemos visualizar uma série de informações importantes
podem ser retiradas dessa fonte.
A Imagem 1 mostra a página do livro de Batismos da Freguesia do Senhor
Bom Jesus do Rio Pardo, 1838 -1888, na qual estão registrados os batismos de
Merenciana, Desideria crioula, Nasaria crioula, Narcisa e Eva. Geralmente,
o registro estava dividido em duas “colunas”. Na primeira constava, muitas
vezes, o nome da pessoa a ser batizada, “cor” e/ou estatuto jurídico, na
segunda os dados referentes aos batizandos, pais e padrinhos, a assinatura
do clérigo responsável pelo registro, além de outras informações como as
descritas no tópico anterior.

Imagem 1 – Batismos de Merenciana, Desideria crioula, Nasaria crioula,


Narcisa e Eva, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, província de
Minas Gerais, 1846

Fonte: livro de Batismos da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838 -1888.
(Arquivo Paroquial)

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Já na freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, província
do Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1838, foi batizado Justino, filho
legítimo16 de Francisco e Joanna, todos escravos pertencentes a João Pereira
Machado. Na ocasião, os pais do batizando escolheram como padrinhos os
cativos Manoel e Luiza, propriedades de outro senhor chamado Francisco
Pereira da Silva. No batismo de Justino, as relações estabelecidas pelos
pais, padrinhos e o batizando, as quais se estendiam para o seu cotidiano,
solidificaram relações dentro das comunidades escravas, que podiam, e esse
foi o caso, extrapolar os limites das propriedades, com padrinhos oriundos
de uma escravaria distinta da dos pais do batizando.17 Os vários estudos
sobre o tema, com métodos, perguntas e inquietações diferentes indicam
alguns padrões/tendências que caracterizavam o batismo de escravizados
e a formação de laços de parentesco consanguíneos e espiritual/ritual
(compadrio). As estratégias, experiências, solidariedades e sociabilidades
estabelecidas por pais e mães dos inocentes, adultos batizados e dos padrinhos
e madrinhas, naqueles sacramentos se deram de maneiras múltiplas e foram
horizontais (entre pessoas de mesmo status social) e verticais (entre indivíduos
de diferentes status sociais), com companheiros de mesma escravaria, com
padrinhos “divinos” (Nossa Senhora; São Benedito, etc.), com africanos
e/ou crioulos (MACHADO, 2008; BACELLAR, 2014; BRUGGER, 2007;
SLENES, 1997).
Naquela mesma freguesia, os adultos Porfilio, Trajano, Annibal, Pompeo,
Antonio, Rebeca, Aura, Sara, Concordia, Raquel e Lia, pertencentes a
Domingos Jose de Oliveira Maia, foram batizados em uma mesma cerimônia,
no dia 24 de junho de 1849. No momento do batismo, escolheram e/ou
foram escolhidos como padrinhos os africanos Jose Benguela e Maria

16. Os filhos legítimos eram aqueles cujos pais casaram-se perante a Igreja Católica. Os
naturais, ou ilegítimos, eram os filhos de pais que não sacramentaram sua relação por
meio do matrimônio. No caso desses últimos, os motivos foram diversos, no entanto, não
significa que pelo fato de não terem se casado perante a Igreja não havia relações sólidas e
duradouras e que eles viviam em relações promíscuas. Outros termos, a partir das relações
entre seus pais podiam ser utilizados para definir essas crianças: espúrios (relações sexuais
com meretrizes); adulterinos (um ou ambos os pais eram casados); sacrílegos (um dos pais
pertencia ao ambiente religioso); incestuosos (união carnal entre parentes por sangue ou
afinidade até o quarto grau) (LOPES, 1998).
17. Livros de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé:
Livro 02 – 1838 à 1849, f. 1 (Laboratório de Documentação Histórica – PPGH Universo,
Doravante LADOCH).

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Conga, também propriedade de Domingos Jose.18 Portanto, as relações de
parentesco espiritual foram tecidas dentro da própria comunidade escrava
na qual estavam inseridos. Isto deve ter sido vital para esses “estrangeiros”,
provavelmente sem laços familiares, reconectar/reinserir suas relações de
sociabilidade, solidariedade e de parentesco, pois, ao que parece, eram
escravizados “recém-chegados”. Nesse sentido, o compadrio foi fundamental.
Para os padrinhos estabeleciam-se também as mesmas relações e ainda a
responsabilidade para com eles e, em contrapartida, respeito e deferência
por parte de seus afilhados. Com relação ao batismo de adultos, se engana
quem pensa que esses indivíduos, batizados coletivamente, tiveram sempre
o mesmo padrinho e a mesma madrinha. As fontes demonstram que havia
outras possibilidades de apadrinhamento/amadrinhamento.
Os padrinhos e madrinhas ajudavam a consolidar laços já existentes
ou aumentar a rede de parentesco constituindo o que denominamos família
extensa19 (parentesco consanguíneo e espiritual). O cura João Luis da Trindade
batizou, em dezembro de 1838, Ireas uma inocente20 filha de escravos:
Aos vinte e oito dias do mês de dezembro de mil oitocentos e trinta e oito
nesta capella do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo batizou solenemente e
pos os santos óleos o padre Ignácio Ferreira de Lacerda na inocente Ireas
filha legítima de Mariano Angolla e de sua mulher [?] crioula escravos
do capitão Felisberto da Silva Gonçalves forão padrinhos Mariano Brás
Nogueira e Jesuína Maria da Conceição todos deste curato e de que
tudo fiz este assento.21

O registro de batismo da inocente Ireas nos oferece, além das variáveis


quantitativas, muitos elementos sobre a sua vida e as relações advindas a

18. Livros de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé: Livro
02 – 1838 à 1849, f. 241v (LADOCH).
19. A família extensa é aquela que extrapola os “limites” consanguíneos. Trata-se de uma
família mais ampla a partir do convívio familiar e da(s) comunidade(s) escrava(s). Ou seja,
trata-se da família intergeracional e ampliada, baseada no parentesco consanguíneo e no
ritual. Portanto, a família se estendia muito além dos limites de qualquer unidade domiciliar
ou consanguínea. Podia atravessar os limites legais da condição de escravo, por meio das
relações oriundas entre cativos e pessoas livres e libertas
20. Termo usual na documentação assim como párvulo, párvula. Por inocentes entendiam-
se as crianças – geralmente com menos de sete anos – que ainda não comungavam.
21. Livro de batismo nº 1, Matriz do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1864, Argirita, MG.

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partir deste sacramento, alguns por si só perceptíveis no registro, outros que
inferimos com a leitura dos livros de batismo. Esse registro de batismo, nos
possibilita conhecer a data do batismo, a localidade, o pároco responsável, a
legitimidade das relações familiares e diversos aspectos do batizando, pais e
padrinhos. Ireas era filha legítima de um africano com procedência conhecida,
Mariano Angola e de sua mulher [? ininteligível] crioula, uma escrava nascida
no Brasil. Além disso, seus pais tinham uma ligação matrimonial legalmente
sancionada pela Igreja Católica, já que o pároco a descreveu como “filha
legítima”. Se não fosse assim ela, teria sido designada como “filha natural”. Os
padrinhos eram livres, o que, dada a importância desse vínculo, aumentou as
redes de sociabilidades/solidariedades para além da comunidade escrava. Era
comum que os padrinhos e madrinhas fossem de estatutos jurídicos diversos.
Sem dúvida teciam-se a partir desse sacramento vínculos importantes para
o cotidiano de mãe, pai, batizandos, padrinhos, madrinhas.
Para Mariano Angolla, pai de Ireas, a retomada de uma vida social
interrompida traumaticamente pelo tráfico deve ter sido imprescindível.
Retirado de sua nação Angola, sua (re)inserção em uma comunidade se
solidificou quando se casou com uma escrava crioula, ou seja, nascida no
Brasil e, provavelmente, com muitos laços familiares e de sociabilidade
consolidados aos quais ele se inseriu. Por intermédio do batismo de sua
filha ele conseguiu também estabelecer laços de compadrio com indivíduos
de condição social livre. No caso de Ireas, seus pais, casados legalmente
perante a Igreja, eram da mesma condição escrava e pertenciam a um mesmo
proprietário, ou seja, residiam na mesma propriedade. Para esta família, o
estabelecimento desses laços, a partir do sacramento do batismo, deve ter
sido de extrema utilidade, pois pais, padrinhos e a inocente passaram a
estabelecer, a partir desse evento, uma ampla rede de solidariedade.
Diferente do casal acima foram as relações de compadrio estabelecidas
por Novata, escrava e parda, que pertencia a Antonio Alves Pedroza. No
batismo de Custodio, seu filho natural, nascido no dia 22 de outubro de 1843,
e batizado no dia 26 de dezembro do mesmo ano, Novata escolheu como
pais espirituais de seu filho Serafim Rodrigues e Oliveira, provavelmente
homem livre, já que não há menção a outro estatuto jurídico (liberto ou
forro), e como madrinha Protetora Nossa Senhora. Um podia interceder/

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proteger seu afilhado junto ao mundo dos homens e a outra perante os anjos
e santos da corte celestial.22
Expusemos aqui apenas algumas das relações de apadrinhamento.
O compadrio foi muitas vezes multifacetado. Características como idade
dos batizandos, “cor”, legitimidade, origem e status social não foram
impedimentos para que se estabelecessem extensas redes de compadrio e,
consequentemente, a formação da família ampliada. Inocentes e adultos
tiveram relações de parentesco espiritual com padrinhos/madrinhas de
condições sociais diversas, e no caso dos de mesma condição social, essas
relações extrapolaram, muitas vezes, os limites geográficos das escravarias,
demonstrando que as comunidades escravas eram bastante dinâmicas.

Matrimônio: “Conforme o direito Divino, e humano os escravos,


e escravas podem casar com outras pessoas captivas, ou livres e
seus senhores lhe não podem impedir o Matrimonio (...)”23

Em primeiro dia do mês de outubro de mil oitocentos e quarenta e


cinco no oratório da Fazenda Lirio nesta Freguezia de Nossa Senhora
das Neves do Certão do Rio Macahe pelas honze horas da manha tendo
sido antes proclamados três dias festivos e confessados sem impedimento
algum recebi em Matrimonio compalavras de presente a Simão de
Nação Moçambique com Felecidade Conga e Cesario de Nação Mina
com Felizarda Crioula todos escravos de Antonio Jose Ferreira Braga,
senhor da dita Fazenda Lirio o qual presente estava estando presentes
por testemunhas Domingos José Pereira Matter e Justino Joaquim de
Figueiredo os quais assinarão a certidão que no mesmo ato comigo
assinarão o qual aqui lancei neste livro e para constar fiz este assento
que assino aos cinco dias do mesmo mês e ano era ut supra.

O vigario encomendador Padre Jose Antonio de Sequeiros.24

22. Livros de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé: Livro
02 – 1838 à 1849, f. 35 (LADOCH).
23. Constituições Primeiras (...), Título LXXI, p. 125.
24. Livros de Casamentos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé:
Livro 01 – 1848 à 1855, f. 1 (LADOCH).

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O matrimônio foi outro sacramento em que podemos encontrar
escravizadas, escravizados e egressos do cativeiro. Assim como o batismo
e o óbito, possuía uma maneira determinada para a redação dos registros
e que permitem análises qualitativas e quantitativas25. As Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia determinavam que no sacramento do
casamento: “O Varão para poder contrahir Matrimônio, deve ter quatorze
anos completos, e a femea doze annos também completos salvo quando
antes da dita idade, constar, que tem discrição, e disposição bastante que
supra a falta daquella (...)”.26 Ainda segundo as Constituições Primeiras, o
senhor não poderia impedir o casamento com ameaças ou maus tratos e os
cativos podiam contrair matrimônio com pessoas cativas ou livres. Aquele
sínodo diocesano determinava ainda que não se deveria separar por venda
os escravos casados. Entretanto, ao mesmo tempo em que dava aos escravos
esses “direitos”, assim como no caso dos batismos, a Igreja determinava que o
cativo não sairia de sua condição de escravizado e permanecia pertencendo a
seus senhores. Mesmo casado com pessoas livres ou libertas, se via obrigado
a lhe prestar serviços.27
Diversas informações podem ser retiradas dessa documentação. Assim
como os batismos, casamentos coletivos não eram raros. No matrimônio é
possível saber: a data; horário e local do casamento e, claro, como trata-se
de uma fonte nominativa, os nomes daqueles que estavam se casando e o das

25. A redação deveria ser a seguinte: “Aos tantos de tal mez, de tal anno pela manhã, ou
de tarde em tal Igreja de tal Cidade, Villa, Lugar, ou Freguezia, feitas as denunciações na
forma do Sagrado Concilio Tridentino nesta Igreja, onde os contraentes são naturaes,
e moradores, ou nesta, e tal, e taes Igrejas, onde N. contrahente é natural, ou foi, ou é
assistente, ou morador, sem se descobrir impedimento, ou tendo sentença de dispensação
no impedimento, que lhe sahio, como consta da certidão, ou certidões dos banhos, que ficão
em meu poder, e sentença que me apresentárão, ou sendo dispensados nas denunciações,
ou diferidas para depois do Matrimonio por licença do Senhor Arcebispo, em presença de
mim N. Vigario, Capellao, ou Coadjutor da dita Igreja, ou em presença de N. de licença
minha, ou do senhor Arcebispo, ou do Provisor N., e sendo presentes por testemunhas N.
e N., pessoas conhedicas, (nomeando duas, ou três das que se acharão presentes) se casarão
em face da Igreja solemnemente por palavras N. filho de N., e de N., natural, e morador
de tal parte, e freguez de tal Igreja, com N. filha de N., ou viúva que ficou de N. natural, e
morador de tal parte, e Freguezia desta, ou de tal Parochia: (e se logo lhe der as bençãos
acrecentará) e logo lhe dei as bençãos conforme os ritos, e ceremonias da Santa Madre
Igreja, do que tudo fiz este assento no mesmo dia, que por verdade assignei.” Constituições
Primeiras (...), Título LXXIII, p. 130
26. Constituições Primeiras (...), Livro I, Título LXIV, p. 109 -110.
27. Constituições Primeiras (...), Título LXXI, p. 125.

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testemunhas do casamento. Um ponto importante que devemos destacar é
que, não raro, como diversos estudos já demonstraram, é possível encontrar
casamentos entre indivíduos de diversos estatutos jurídicos: livres casando-se
com livres; escravos com escravos; livres com forros; forros com escravos;
livres com escravos; etc. Como estamos analisando registros de escravizados,
é possível saber o nome de seu proprietário; sua origem – africanos ou
crioulos, e no caso dos africanos qual a sua procedência – Moçambique;
Congo e Mina. Nesse sacramento era possível também, em alguns casos,
saber se alguns dos envolvidos no sacramento eram egressos do cativeiro,
ou seja, ex-escravos (exemplo Imagem abaixo).

Imagem 2 – Matrimônio dos escravos Vito crioulo com Christina Conga


e Nicolao Congo com Virginia crioula, Freguesia de Nossa Senhora das
Neves e Santa Rita do Serão do Rio Macahé – 1846

Fonte: Livro 1 de matrimônios freguesia Nossa Senhora das Neves e Santa Ritta do Sertão
do Rio Macaé, 1848 – 1855. (LADOCH).

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Assim como os registros de batismos, os livros de casamentos estavam
divididos em duas colunas. Na primeira constavam o nome dos que estavam
casando e, muitas vezes, sua “cor”, condição jurídica e na segunda, a partir da
redação estipulada pelas Constituições Primeiras, o registro com informações
sobre os noivos, testemunhas, dia do casamento, condições jurídicas etc., ao
final vinha o nome do vigário que realizou o sacramento.
Não raras vezes, pelos registros de matrimônio podemos conhecer a
ascendência dos nubentes, o que qualitativamente constitui-se como uma
informação importante para analisar as escravarias. O casamento, além de
ajudar a compreender a dimensão dada à família, teve papel importante
na medida em que aumentava a família nuclear (mãe, pai e filhos(as)),
transformando-a muitas vezes, pela incorporação de outros sujeitos (de
diversas condições jurídicas), em famílias extensas, estáveis e intergeracionais.
A formação da família muitas vezes passou pela instituição do casamento
formal, sancionado pela Igreja, contudo é importante ressaltar que havia
muitas famílias provenientes de outras relações. A família entre os cativos
não passava necessariamente pelo reconhecimento da Igreja. Os laços
familiares se desenvolveram amplamente dentro das relações ditas ilícitas.
Se não chegavam a formar famílias legítimas, não significava que viviam em
promiscuidade sexual e em ligações temporárias. Nesse sentido, tradições e
heranças culturais africanas sobre o casamento ajudam a compreender essa
não necessidade em sacramentar aos olhos da igreja suas uniões. Outrossim,
a ilegitimidade foi, muitas vezes, reflexo dos costumes senhoriais, mais do
que do desinteresse dos escravizados pelo matrimônio, ou seja, suas taxas
de matrimônio variaram de acordo com o compromisso dos senhores na
formalização dos enlaces de seus escravos, levando uniões consensuais a
serem documentadas.28
No dia primeiro de fevereiro de 1870, na Matriz de Santo Antonio de
Juiz de Fora, província de Minas Gerais, ocorreu o casamento entre Emilio,
africano livre, e a escrava Ignacia pertencente à Viscondessa de Uberaba. As
testemunhas do enlace foram Manoel e José e a noiva era filha legítima de

28. REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-
1888. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2007, p. 75. (Tese de Doutorado
em História).

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Custódio e Mathildes.29 Embora o registro não diga, é possível pensar que
as testemunhas e os pais de Ignacia fossem cativos já que não há menção a
seu sobrenome. O cruzamento de fontes talvez possa ajudar a elucidar essa
questão. No entanto, para além dessas indagações o importante aqui é perceber
a riqueza de informações que podem ser encontradas. Era um casamento
entre uma escravizada, filha de pais casados perante a Igreja católica, com um
africano livre, ou seja, um indivíduo que entrou no Brasil, após a proibição
do tráfico em 1831, portanto, via tráfico ilegal o que lhe conferiu o termo de
“africano livre” e que passava agora a (re)conectar seus laços.
Já no dia 26 de fevereiro de 1884, na mesma localidade, casaram-se, o
viúvo livre, Rufino Elias da Silva e a cativa Francisca, pertencente à Dona
Ritta de Cassia Tostes, viúva de Antonio Dias Tostes. Foram testemunhas
o Dr. Feliciano Duarte Penido e Ottoni da Silveira Tristão. Outros dois
casamentos foram realizados no dia 28 de agosto de 1887, unindo a livre
Antonia Maria da Conceição, filha legítima de Adão Antonio da Costa e
Anna Rita dos Santos, com Marcelino, escravo de Dona Rotta Dias Tostes.
As testemunhas foram Pedro Dias Tostes Felicidade Pérpetua de Jesus.30
O outro enlace foi o que uniu, a também livre Deolinda Anna de Jesus e o
cativo Ananias. Deolinda era filha legítima de Adão José da Costa e Barbara
de Jesus e segundo o registro os contraentes eram “nascidos e batizados” em
Juiz de Fora. Esse casamento, teve duas mulheres como testemunhas Dona
Maria de Queiros Americana e Maria do Carmo.31
Os enlaces matrimoniais entre cativas(os) libertas(os) com cônjuges
escravas(os) não eram incomuns como o que se deu entre Joanna, africana
liberta, e Manoel, também africano, escravo do Comendador Henrique
Guilherme Fernando Halfeld, e foi celebrado no dia 17 de novembro de 1872.32
Entre os anos de 1887 e 1888 aconteceu o casamento do escravo Candido,
propriedade de Generoso Dias Tostes, e a liberta Cassiana Maria de Jesus.
Nesse casamento não houve testemunhas.33 Já no ano de 1882 aos 31 dias do

29. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 02, 1864/1887, f. 56.


30. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 04, 01/1887 – 01/1889, f.45.
31. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 04, 01/1887 – 01/1889, f.55.
32. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 02, 1864/1887, f.89.
33. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 04, 01/1887 – 01/1889, f.70.

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mês de maio, casaram-se perante a Igreja Evaristo, crioulo, 36 anos, escravo
de Dona Ritta de Cassia Tostes, e Philomena Maria de Jesus, liberta. As
testemunhas foram Severino Luis da Silva e Lusia Perpetua da Silva. Esse
assento de casamento é muito interessante. O mesmo o pároco descreveu
informações a respeito dos noivos. Sabemos pelo registro que Evaristo era
natural da Bahia e que foi comprado pelo esposo de Dona Ritta, o capitão
Antonio Dias Tostes, em dezembro de 1873, do senhor Francisco Albino da
Costa Freiras; e que Philomena era ex-escrava do casal, nascida e batizada
em Juiz de Fora, tendo sido liberta em testamento pelo capitão Tostes.34
O cruzamento do matrimônio com os batismos, óbitos, e outras fontes,
permite ampliar o conhecimento das histórias de muitos núcleos familiares.
Estudos longitudinais, pelo cruzamento dessas e outras fontes, possibilitam
encontrar dentro das famílias, além do casamento, redes de parentesco
integradas, nas quais as uniões de “longa” duração entre os escravos não
foram incomuns.
Óbitos e escravidão: ritos fúnebres
Aos três de janeiro de mil oitocentos e dose nesta Parochial Igreja de
Nossa Senhora das Neves da Aldea do Rio Macae encomendei e no
Adro da mesma dei sepultura a Antonio solteiro de idade pouco mais
ou menos de vinte e cinco anos escravo de Custodio Jose Teixeira Pinto
da Fazenda da Atalaya desta Freguesia faleceo sem sacramentos por
morrer afogado no Rio foi amortalhado em um lençol de algodão do
que para constar fiz este assento era ut supra. O Vigario João Bernardo
da Costa e Resende.35

Os registros de óbitos compõem a tríade dos sacramentos mais bem


documentados e, por motivos diversos, também os mais procurados.36 A

34. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 03, 1883/1887, f, 38.


35. Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé. Livro 1,
1809 – 1847, f. 12v. (LADOCH).
36. A redação deveria ser: “Aos tantos dias de tal mez, e de tal anno falleceo da vida presente
N. Sacerdote Diacono, ou Subdiacono; ou N. marido ou mulher de N. ou viúvo, ou viúva de
N., ou filho, ou filha de N., de lugar de N., freguez desta, ou de tal Igreja, ou forasteiro, de
idade de tanso annos, (se comodamente se puder saber) com todos, ou tal Sacramento, ou
sem eles: foi sepultado nesta, ou em tal Igreja: fez testamento, em que deixou se dissessem
tantas Missas por sua alma, e que se fizessem tantos Officios; ou morreo ab intestado, ou era

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preocupação “com uma boa morte” era de homens e mulheres de todas as
condições jurídicas e não era diferente para escravizados e ex-escravizados,
africanos e crioulos, com suas tradições sobre a morte e o além ou socializados
nelas, “De suas terras de origem, os africanos haviam trazido ritos fúnebres
e sofisticadas concepções sobre o Além.” (REIS, 1997, p. 98.). Neles é
possível ter acesso às informações derradeiras dos indivíduos. Moléstias,
condições de saúde, causa mortis, idade, data, sexo, procedência, origem,
proprietário(a), sacramentos ministrados, local de sepultamento, dentre
outros são informações que aparecem nos registros de óbitos (GOMES,
KODAMA e PIMENTA, 2012; RODRIGUES, 2005; REIS, 1991).
O estudo desse tipo de documentação revela muitos dos aspectos sobre
a escravidão, os escravizados e os egressos do cativeiro e, claro, das agruras
do sistema. Essa documentação permite, portanto, ter acesso às mortes e
aos mortos e, por meio delas, calcular as taxas de mortalidade de homens
e mulheres; crianças, jovens, adultos e idosos; africanos e crioulos, nas
sociedades analisadas; fator muito importante, por exemplo, para comparar
taxas de nascimento e mortes, expectativa de vida. Não é raro encontrar cativos
morrendo por acidentes “de trabalho”, suicídios, homicídios mostrando muitas
vezes tragédias individuais e “iluminam o custo em vidas da escravização dos
africanos e da falta de cuidado com seus filhos.” (KARASCH, 2000, p. 144).

notoriamente pobre, e por tanto se lhe fez o enterro sem se lhe levar esmola”. Constituições
Primeiras (...), Livro Quarto, Título XLIX, p. 292.

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Imagem 3 – óbitos de Maria, Thereza, Margarida e Balbina, Freguesia de
Nossa Senhora das Neves, 1873

Também dividido em duas “colunas”, o registro de óbito trazia na


primeira o nome do falecido e podia informar sua “cor”, condição jurídica,
e na segunda informações sobre sua morte, sacramentos ministrados
naquele momento, local de sepultamento, condição jurídica do falecido,
proprietários(as), origem (africano ou crioulo), procedência (bahia, mina,
angola etc), relações familiares etc.

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Ao analisar o livro de óbitos da freguesia de São José do Barreto, província
do Rio de Janeiro, nos deparamos com um registro feito em julho de 1868,
naquele momento foi sepultado e encomendado, pelo Vigário no Cemitério da
Matriz de São José do Barreto (pertencente a Macaé), o cadáver de Eliziaria,
escrava de Antonio de Freitas Caldas, segundo o Vigário Joaquim Coutinho
a causa da morte “proveio de uma congestão cerebral.”37 Teria sido essa
uma causa natural, ou Eliziaria recebeu um forte golpe na cabeça, de seu
senhor, do feitor, de um companheiro de infortúnio ou terá sido um acidente
que resultou na tal “congestão cerebral”? Somente com o registro de óbito
pergunta difícil de responder. Caso não tenha sido um acidente o cruzamento
deste registro com a imprensa, bem como a análise de um possível processo
criminal, ajudaria em muito para conhecermos a história dessa personagem.
Além disso, um bom trabalho de pesquisa com os batismos e casamentos
teria grandes possibilidades de encontrá-la, em outros momentos, de modo
a demonstrar suas relações familiares, de solidariedade, de sociabilidade e
comunitárias.
Outro aspecto importante dos registros de óbito como fonte de pesquisas
tem se mostrado nos trabalhos sobre a história das doenças. Muitas vezes os
cativos vinham a óbito por conta de uma comorbidade aumentada devido
às condições sanitárias impostas pelo sistema de trabalho escravo; doenças
do sistema digestivo; sistema respiratório; primeira infância; gravidez/
parto, tuberculose, diarreia, varíola, pneumonia, malária dentre outras eram
moléstias que causavam doenças e mortes de escravizados e que podemos
ter acesso pela leitura das fontes.
Em outras palavras, os escravos morriam em maior número de moléstias
cuja incidência diminui à medida que os padrões de vida de um grupo
populacional melhoram. Os escravos que eram “mal alimentados, mal-
vestidos, expostos a todos os danos do ar [e] submetidos a um trabalho
quase contínuo” não podiam preservar sua saúde ou resistir aos ataques
das doenças. O resultado era uma inevitável “despovoação” entre os
escravos, ou, como admitia o ator de um manual do agricultor, a América
“devorava” os negros (KARASCH, 2000, p. 258).

37. Livro de Óbitos Freguesia São José do Barreto, Livro 3 – 1868 – 1888, f.3 (LADOCH).

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No dia três de janeiro de mil oitocentos e doze foi sepultado Antonio
solteiro, de mais ou menos 25 anos. O estado conjugal de Antonio aponta que
ele não tinha casamento sacramentado pela Igreja, no entanto, os registros
estão repletos de menções com as quais é possível determinar outras relações
familiares, sobretudo aqueles entre pais, mães e filhos. No momento de seu
sepultamento a causa mortis apontada foi o “afogamento” e seu corpo foi
amortalhado em “lençol de algodão”, prática comum para muitos dos cativos
enterrados na colônia/império. Contudo, Antonio faleceu sem sacramentos
provavelmente, sem a confissão e a extrema-unção, por ter falecido por
conta de um “acidente”. Antonio, como era batizado, teve o “direito” de ter
sido enterrado pelo Vigario.38
O afogamento de Antonio teria sido obra do acaso ou suicídio? Difícil
responder apenas com esse registro, contudo o suicídio não deve ser
descartado, sobretudo, pelo fato de não ter recebido os sacramentos. De
todo modo, suicídio ou acidente, para aquele sujeito, de acordo com tradições
africanas e nas quais muitos crioulos foram socializados, esse foi um evento
possível de levá-lo de volta aos seus ancestrais, pois o “afogamento e o
enforcamento em árvores, significativos no contexto das crenças africanas,
facilitariam a passagem de seus espíritos para a terra natal. Os que afogavam
talvez acreditassem que a água era a barreira (Calunga) que tinham de cruzar
para chegar à África e reunir-se aos ancestrais.” (KARASCH, 2000, p. 418).
Os viajantes que visitaram o Brasil ao longo do século XIX evidenciaram o
suicídio como um dos motivos para a morte de muitos escravizados. Essa
atitude extrema demonstrava o desejo de fugir da escravidão ou de poupar
algum parente dela, como no caso do infanticídio.
Como já dissemos, nos óbitos também é possível encontrar referências
às relações familiares dos cativos. Alguns meses depois do “afogamento” de
Antonio, no dia doze de novembro do mesmo ano e na mesma localidade,
foi feito o registro de óbito de outro indivíduo com o mesmo nome, era
Antonio solteiro, 15 anos, filho de Francisco Cabiuna e Maria, todos escravos
de Custódio José Teixeira Pinto e Companhia da Fazenda chamada Atalaya.
Antonio foi sepultado, sem sacramento devido, segundo o registro, a

38. Livro de óbitos Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé. Livro 1,
1809 – 1847, f. 12v. (LADOCH).

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“incúria de seu senhor” e foi amortalhado em pano branco. Um dia após o
sepultamento de Antonio, sepultou-se Narciso inocente filho de Antonio
alfaiate e Maria, todos escravos do mesmo senhor acima descrito. O inocente
tinha três meses, foi amortalhado em pano branco e enterrado “dentro e não
no Adro” da Igreja. Informações como essas, quando contrastadas com os
batismos e casamentos permitem alargar o conhecimento da família extensa
(relações consanguíneas e espirituais).39

Considerações finais
Os registros paroquiais de batismo, matrimônio e óbitos, como já
dissemos, são fontes muito ricas e importantes para estudos sobre diversos
aspectos do cotidiano das populações. Trata-se de fontes seriais que, apesar
dos sub-registros, da falta de conservação dos documentos e da atuação
correta ou não dos párocos, propiciam análises quantitativas e qualitativas
para os interessados na demografia, no cotidiano, nas relações familiares e
rituais/espirituais, as mentalidades etc.
A utilização dessas fontes e seu cruzamento com outros documentos
permite alargar o conhecimento dos indivíduos/populações pesquisadas.
Aqui, expusemos algumas poucas possibilidades de utilização de corpus
documental para análises sobre a escravidão. Para tanto, o leitor poderá
utilizar os diversos arquivos eclesiásticos pelo país e em alguns casos
localizar a documentação por vezes escondida nas paróquias. Igualmente,
pode se valer de documentos disponibilizados na internet e, claro, utilizar
os trabalhos desenvolvidos nos diversos Programas de Pós-graduação no
Brasil e no exterior, sobretudo, nas Ciências Humanas. Existe também para
populações livres, escravas e libertas/forras em diversos recortes cronológicos
e geográficos uma farta literatura sobre alguns dos temas aqui expostos e
outros dos quais não foi possível tratar, o que, sem sombra de dúvidas,
possibilita o diálogo e comparações/conexões com outros espaços. Nosso
intuito é o de estimular o leitor para que utilize esse tipo de fonte para suas
pesquisas e/ou ensino. Se alguns se lançarem na empreitada já estaremos
satisfeitos. Ao trabalho!

39. Livro de Óbitos Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé. Livro 1,
1809 -1847, f.21. (LADOCH).

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Desenhando corpos, construindo liberdades: uma
prosopografia das fugas no Rio de Janeiro

Tânia Pimenta | Fiocruz


Layla Silva | Coc, Fiocruz
Flavio Gomes | UFRJ

No Brasil, até meados do século XX, a literatura historiográfica abordava


uma escravidão genérica, perspectiva quase a-histórica. Posteriormente um
debate (totalmente esquecido nas abordagens contemporâneas) ganhou
força com a emergência de modelos teóricos que redefiniram a ideia de
um escravismo (MARQUESE, 2012 e 2013). Nas últimas décadas, renovadas
gerações de historiadorxs têm se debruçado sobre fontes e acervos.1Mais
e mais dimensões da escravidão têm sido investigadas considerando
fundamentalmente – à luz de categorias, conceitos, exercícios empíricos e
metodologias – as experiências dos escravizados.
E é possível perscrutar mais sobre fugas e fugitivos. Entre os anúncios
publicados nos jornais e os registros prisionais existe um universo social
que, muitas vezes, fica completamente encoberto para o historiador
(HEUMAN, 1985). A despeito de qualquer tentativa de classificação, a
fuga era uma ação única e vivenciada diferentemente por cada indivíduo,
levando em consideração desde o meio em que vivia – área urbana ou
rural – sua naturalidade e sexo, até sua socialização, incluindo aí mundos

1. Ver o pioneirismo em Slenes, 1983 e 1985.

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do trabalho, relações de poder senhorial, domínios e sociabilidades. Ainda
pouco exploradas, os anúncios de fugas (e há aqueles de compra, venda e
aluguel) podem ser utilizados como ferramentas para analisar as imagens
sobre corpos, identidades e comportamentos de senhores e escravizados.
Neste capítulo propomos uma abordagem que possa sugerir a produção
de uma prosopografia da escravidão urbana carioca a partir das fugas e os
anúncios de fugitivos.2

Escapadas, interpretações e cidades negras


Nas cidades, escapadas e fugidos conformavam paisagens e personagens.
Fugitivos – nascidos no Brasil ou africanos – não eram tão-somente rebeldes,
recalcitrantes ou obtusos, como apareceram na historiografia. Nos periódicos
oitocentistas abundam informações sobre complexos mundos urbanos.
Porém, mesmo considerando milhares de anúncios nos jornais e os registros
prisionais envolventes, ainda pouco sabemos sobre as intenções e expectativas
daqueles que escapavam e procuravam se manter escondidos.
As fugas – e mais ainda as suas dimensões nos espaços urbanos – não
podem ser banalizadas, classificadas como repetitivas ou cristalizadas em
atos heroicos. Havia muito de política nas decisões de escapar e mais ainda
de como se manter escondido, principalmente nas cidades. Cativos não
fugiram apenas para causar prejuízo senhorial ou escapar de recorrentes
castigos físicos. Mais do que somente «inadaptados» (MATTOSO, 1982)
ao regime escravista – extenuante carga de trabalho e péssimas condições
de vida – ajudaram a redefinir os significados do cativeiro e da liberdade.3
Os anúncios de fugas têm se revelado fontes ricas. Periódicos oferecem
através deles faces e cotidiano da vida escrava, para além dos fugitivos. Várias
questões podem ser consideradas. Há um breve período entre as ocasiões das
fugas ou desaparecimentos e as datas dos anúncios. Este intervalo pode revelar
como alguns senhores – habituados com o volume e frequência das escapadas
de seus cativos – esperavam algum tempo para desencadear o processo de

2. Para destacados estudos sobre escravidão urbana no Brasil, ver: Algranti, 1988; Carvalho,
1998; Karasch, 2000; Silva, 1988; Soares, 2007 e Wissenbach, 1993.
3. Ver uma abordagem sobre anúncios e fugas em Read & Zimmerman, 2014.

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captura, no caso a comunicação às autoridades ou a contratação de capitães
do mato. Nas ambiências urbanas, talvez alguns proprietários percebessem
determinadas fugas como temporárias (como petit marronage), qual seja
“costumeiras”, aguardando eventuais retornos dos seus cativos. Muitas
escapadas eram mesmo curtas, assim interpretadas pelos senhores. É certo
que – para desespero e incalculáveis prejuízos senhoriais – muitos fugidos
continuaram ausentes por longos períodos ou jamais foram capturados. Já
as escapadas endêmicas revelam como fugitivos organizavam espaços a sua
volta. Não poucos fugiam para visitar “parentes”. Alguns anúncios foram
repetidos por meses e até anos. Episódios de senhores que depois de anos
continuavam anunciando sobre seus cativos em fugas. Restava sempre uma
esperança de recuperar antigos fujões.
Estudos já indicaram a importância das variáveis sobre a ocupação
dos cativos nos perfis das fugas. Há índices reveladores, por exemplo, sobre
ocupações especializadas de fugitivos: carpinteiros, ferreiros, alfaiates,
costureiras etc. (LIMA, 1998 e COLISTETE, 2021). Aqueles com ocupações
especializadas não necessariamente fugiam mais, porém talvez fossem menos
capturados. Procurando proteção e fazendo valer a sua utilidade diante da
ocupação e especialização laboral, conseguiam manterem-se maior tempo
ausentes (NEVES & GOMES, 2010).
Quais as faixas etárias dos fugidos anunciados? Tomando como
referência a Corte do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX
verifica-se que os africanos fugiam mais na faixa de 10 a 15 anos, sendo que
os nascidos no Brasil faziam o mesmo na faixa dos 21 a 30 anos. Africanos
não só escapavam em maior número e quando eram mais jovens. Mesmo
alguns “boçais” (como eram denominados os africanos recém-chegados),
pouco conhecendo as cidades, não demoravam muito para arriscar botar o
pé na estrada. Segundo vários estudos sobre fugas, estas representaram uma
atitude individual, ou seja, na maioria das vezes os cativos fugiam sozinhos.
Não obstante, em alguns anúncios há evidências de escapadas coletivas,
com a participação de dois, três, quatro ou mais cativos envolvidos, além
de fugas envolvendo redes familiares (REIS, 1999 e 2001).

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São várias e diversas informações que aparecem nos anúncios de fugas,
revelando um pouco mais da vida escrava urbana, ainda que interpretada
sob o olhar senhorial. Mas de maneira geral, a historiografia brasileira
pouco destaque deu às fugas, que apareceram mais como atos repetitivos
– quase banalizados – da resistência e, supostamente, sem sentido político.
(QUEIROZ, 1987) Algumas abordagens deram exclusivo destaque aos
aspectos econômicos destas evasões sistêmicas. Os significados delas eram
mais abordados pela perda por parte do senhor de seu produtor direto (o
escravizado) e do lucro por ele gerado. Não poucos estudos generalizaram
uma visão de que na maioria das vezes os cativos se evadiam porque eram
muito castigados ou tinham como objetivo causar prejuízo aos seus senhores.4
Mas as fugas e os seus personagens estavam inseridas no cotidiano
da escravidão. E os anúncios publicados nos jornais revelam muito mais
do que protesto. É possível reconstituir universos sociais (relações de
trabalho, violência, controle social, práticas de incentivos etc.), entender
razões e significados (por quê, como e quando os escravizados escaparam?);
estratégias (o que faziam para se manterem escondidos ou quais eram as
possíveis direções tomadas?); solidariedades, tensões, ambiências, êxitos
e fracassos (fugidos procuravam necessariamente as cidades ou se passar
por libertos); reorganização social permanente da vida escrava (fugidos
procuravam restabelecer laços familiares?) e as conexões entre fugitivos,
escravizados e a população livre pobre.5
Estudo pioneiro foi o de Gilberto Freyre (1963), abordando os anúncios
de jornais do século XIX. Partindo de uma perspectiva antropológica da
época, analisou – sem qualquer preocupação metodológica quantitativa
-- milhares de anúncios de Pernambuco e do Rio de Janeiro. Com base nos
periódicos Diário de Pernambuco e o Jornal do Commercio, ofereceu um
quadro analítico complexo. Segundo Freyre, os anúncios eram ricos em
informações, visto que: “quem tinha seu escravo fugido e queria encontrá-lo

4. Ver, entre outros, Guimarães, 1988 e Maestri, 2003.


5. Ver também Schwartz (1987). Para um estudo clássico sobre fugas no Brasil, ver Goulart
(1972). Outros estudos e novas perspectivas aparecem em Carvalho (1998), especialmente
o capítulo 13, “A escolha de um senhor”; Flory (1979); Gebara (1986); Gomes (1996); Reis
(1999); Silva (1989); Slenes (1987).

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precisava dar traços e sinais exatos. Fosse o anunciante embelezar a figura do
fujão que era capaz de ficar sem ele para toda a vida” (FREYRE, 1979:26). Sobre
as fugas ocorridas no mundo escravista urbano, uma abordagem exaustiva
é oferecida por Marcus de Carvalho. Aponta para a grande pluralidade das
fugas e o distanciamento espacial dos escravizados em relação aos senhores
na Recife oitocentista (1998). Nas cidades, escravizados ampliavam ações
e produziam expectativas de autonomia, desenvolvidas à revelia de seus
senhores, como, por exemplo, viver longe da casa senhorial ou trabalhar
além do jornal estabelecido para, com esse pecúlio, comprar a sua alforria.
Karasch relacionou as fugas com a geografia do Rio de Janeiro em conjunto
à escravidão urbana, perscrutando as formas, sentidos e possibilidades de
fugas. (2000).
Entre clássicos e pesquisas mais recentes são muitos os estudos cobrindo
os anúncios de fugas em espaços urbanos de Belém, Salvador, São Paulo,
Teresina, São Luís, Curitiba, Vitória, Cuiabá, Rio de Janeiro e Porto Alegre,
assim como partes de Alagoas, Minas Gerais, Amazonas, Sergipe, São Pedro
e Rio Grande.6

Desenhando corpos
Os estudos sobre as imagens dos corpos, tópicas e descrições se destacam,
entre as possibilidades analíticas – temas, objetos e abordagens –, a partir
da utilização de anúncios de fugas. Amantino (2007) fez o levantamento no
Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 1850, identificando a estrutura nos
anúncios, de acordo com a qual aparecem descrições e tópicas da conformação
física, comportamento, costumes, sociabilidades etc. Ao selecionar 409
anúncios num total de 1.047, identificou diversas informações sobre as
condições de saúde e compleição dos corpos dos africanos. A partir das
condições físicas assinaladas, avaliou as principais causas para as fugas,

6. Ver: Abreu, 2014; Amantino, 2006, 2007; Bertin, 2021; Bezerra Neto, 1999, 2001, 2002, 2020;
Brandão, 2004; Carvalho, 1997, 1998; Cavalcante, 2021, Colistete, 2021; Costa & Malaquias,
2016; Ferrari, 2005, 2010, 2015; Ferreira, 2010, 2011, 2020; Florentino, 2003, 2008, Gebara,
1986; Gomes, 1996; Maestri, 2003; Machado, 2004; Maneira, 2014; Mott, 2008; Mattos, 2008;
Nascimento, 2019; Nepomuceno, 2020; Neves & Gomes, 2010; Ouriques, 2010; Pereira, 2013;
Petiz. 2006; Reis, 1995-1996, 1999; Schwarcz, 1987; Silva, 1989; Silva, 2014; Silva & Silva, 2016;
Slenes, 1987; Soares, 2003; Sott, 2018; Staudt, 2003 e Zanetti, 2002.

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individuais ou coletivas, classificando maus tratos, castigos excessivos,
má alimentação e desrespeito aos direitos adquiridos. Da amostra total de
anúncios analisados, 203 forneceram detalhes sobre características físicas
como sinais de castigos, cortes de cabelos, marcas étnicas, falta ou desgaste
de dentes etc. Havia também 206 anúncios que apresentavam descrição
detalhadas de problemas físicos de acordo com o saber médico da época. Uma
questão importante diz respeito à sistematização destas informações que, no
caso apresentado, ocorreu com a tipologia proposta por Mendonça de Souza,
“em que se classifica cada tipo de problema, condição patológica ou lesão
de acordo com suas características anatômicas, patológicas ou etiológicas”
(AMANTINO, 2007:1382). Aspectos anatômicos indicavam as regiões do
corpo em que se apresentavam tais problemas, a despeito da patologia. São
informações sobre lesões, cicatrizes, enfermidades etc. Evidências sobre
enfermidades envolviam classificações sobre doenças carenciais, além
daquelas infectocontagiosas, traumáticas, tumorais, reumáticas, psicossociais,
de má-formação ou disfunções orgânicas. A autora destaca a descrição
dos elementos sobre a etiologia que se referiam aos agentes causadores e a
respectiva patologia quando esta pudesse ser identificada como queimaduras,
infecções por certo tipo de vírus, bactérias, parasitas etc.
Deve-se considerar também a importância de problematizar os
anúncios como fonte, uma vez que muitos senhores deixariam de detalhar
aspectos das condições físicas dos escravizados, pois bastavam algumas
informações para identificar o indivíduo. Basicamente, destacavam as
marcas que poderiam distinguir um escravizado em meio a outros tantos.
Além disso, conforme Amantino (2007:1382-1383) aponta, os anúncios eram
elaborados em linguagem leiga, o que reduziria a precisão dos termos das
patologias. Em relação às condições patológicas, as doenças infectocontagiosas
representavam quase 35%, seguidas de traumáticas (30,5%), de má-formação
(19%) e carenciais (9,5%), entre outras com pequeno percentual. No primeiro
grupo, a doença mais referida era varíola. As doenças traumáticas eram
causadas, em geral, por queimaduras, fraturas ou feridas e estavam, muitas
vezes, associadas a surras e uso de instrumentos de castigos. As enfermidades
causadas por traumas junto com as carenciais apontam para condições
ruins de vida e trabalho. Soma-se a isso as doenças de caráter psíquico que

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indicam pressões emocionais constantes, entre as quais se destaca a gagueira.
A autora apresenta ainda outra forma de se verificar a situação física dos
cativos urbanos, analisando patologias e relacionando-as com a anatomia,
que indicaria que as lesões afetavam, sobretudo, membros superiores e
inferiores e a cabeça.
Outro aspecto explorado por Amantino diz respeito às marcas étnicas.
Foram 191 anúncios onde aparecem características físicas organizados em
cinco grupos: marcas feitas de acordo com a distinções das nações africanas e
suas conexões nos corpos (17,5%) e nos dentes (21%); marcas de propriedade
feitas pelos senhores (3%); sinais e cicatrizes (50,5%); e marcas de castigos nos
corpos (7%). Conforme a autora pondera, provavelmente, os sinais e cicatrizes
não foram feitos pelos escravizados, pois os anúncios costumam indicar as
marcas étnicas. Desse modo, pode-se considerar que também refletem a
violência do sistema contra os corpos cativos. Amantino argumentou que a
busca por escravizados fugidos, ainda que doentes, passava mais pela lógica
social de controle da escravaria do que pela lógica econômica. Com outras
perspectivas, diferentes estudos analisaram os corpos dos escravizados a partir
dos anúncios, considerando castigos físicos, má alimentação e identidades
corporais.7
As abordagens a respeito do corpo escravizado constituem um ponto
de convergência entre as historiografias da escravidão e da saúde (VIANA &
GOMES, 2019). No Brasil, os estudos sobre saúde vêm sendo desenvolvidos
por historiadores desde a segunda metade do século XX e se consolidaram,
sobretudo, a partir da década de 1990 com a investigação de temáticas diversas
como instituições e profissões biomédicas, epidemias, doenças, reformas
sanitárias e urbanas, práticas de cura, relações entre raça, doença e saúde
(TEIXEIRA et al., 2018; EDLER, 1998). Pesquisas voltadas para a história
da medicina acadêmica mostram que podemos situar o início do processo
de sua institucionalização no Brasil na primeira metade do século XIX,
com a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829), poucos
anos depois transformada em Academia Imperial de Medicina (1835); das
Escolas de Cirurgia (1808) de Salvador e do Rio de Janeiro, reorganizadas em

7. Ver também as abordagens de Jesus, 2016.

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Academias Médico-Cirúrgicas e, em 1832, em Faculdades de Medicina; e de
periódicos especializados em medicina. Se pretendia identificar e relacionar
as doenças que se desenvolviam no país, sobretudo, ao clima e à alimentação.
Além disso, as faculdades contribuíram para o aumento quantitativo de
médicos, ao menos nos centros urbanos maiores.8
Nesse contexto, os hospitais também representaram um importante
local de aprendizado, exercício e construção do saber médico, em especial,
os da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e de Salvador que
foram fundamentais no processo de estabelecimento da medicina clínica.
Com isso, corpos – vivos ou mortos – passaram a ser o objeto principal da
atenção. Procurava-se estabelecer vínculos entre sintomas e lesões orgânicas
(FAURE, 2012). A partir daí, os corpos de africanos e seus descendentes
foram essenciais no desenvolvimento da medicina no país por meio de
dissecações, da observação do desenvolvimento de doenças e da realização
de testes com novos medicamentos ou dosagens diferentes.9 Afinal, fosse
como escravizado, liberto ou livre, esse grupo constituía boa parte dos
doentes atendidos nas Santas Casas.
Além dos hospitais, os médicos oitocentistas também percebiam e
conviviam com africanos e seus descendentes em diversos momentos de suas
vidas sociais e privadas. O Rio de Janeiro era, em 1849, a cidade das Américas
com o maior número de escravizados, onde viviam e trabalhavam 80.000
cativos (KARASCH, 2000, 28). Dessa forma, os médicos registraram muitas
informações sobre os escravizados em teses, artigos, atestados de óbitos.
Além disso, aspectos sobre sua saúde, suas doenças e seus corpos podem ser
encontrados em livros de entrada e saída de hospitais, em inventários post-
mortem, em anúncios de jornais, em processos judiciais. São documentos
que têm sido explorados por historiadores voltados para a temática da saúde
e escravidão, cuja produção tem se destacado a partir da década de 2010
e tem sido voltada para a análise de questões como o pensamento médico
sobre os africanos e seus descendentes; a identificação e distribuição das
doenças que mais atingiam os cativos e libertos; e o exercício das práticas de

8. Ver Ferreira (1996 e 2009).


9. Ver Lima (2011). Estudos sobre o sul dos EUA e Caribe apontam para o sofrimento
causado a africanos e seus descendentes pela medicina exercida por brancos. Ver, por
exemplo, Hogarth (2017) e Fett (2002).

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cura por essas pessoas (BARBOSA & GOMES, 2016; PIMENTA, GOMES &
KODAMA, 2018; VIANA, GOMES & PIMENTA, 2020). Essas questões se
desenvolveram em torno do corpo, cuja história não se limita à historiografia
da saúde. Como destaca Roy Porter, na segunda metade do século XX,
estudos feministas, sobre gênero e sexualidade contribuíram para as reflexões
sobre a história do corpo. Obras de tradição marxista também apresentaram
“modelos influentes do corpo encarado como um foco para a resistência e
a crítica populares dos significados oficiais” (PORTER, 1992:293). Por fim,
ao analisarmos aspectos sobre a história do corpo escravizado, podemos
inseri-la também nos estudos sobre a história do corpo dos trabalhadores
(CORBIN, 2012).

Traduzindo experiências
Ainda pouco utilizados pela historiografia da escravidão, os anúncios de
fugidos revelam-se fontes únicas para adentrarmos os universos da escravidão
urbana e a sua dimensão africana. Para o Rio de Janeiro da primeira metade
do século XIX, eles podem oferecer indícios das primeiras traduções – e de
seus tradutores –a respeito dos africanos em originais paisagens urbanas. As
montagens-narrativas e as estruturas tópicas sobre corpo, perfil, estratégias,
formas de falar e vestir, marcas e cotidiano das relações senhor-escravo
oferecem possibilidades analíticas de recompor as primeiras visões sobre
e dos africanos.
Apresentamos uma abordagem descritiva com uma amostra de 780
anúncios de fuga (somente consideramos os africanos) publicados no Diário
do Rio de Janeiro nos anos de 1822, 1823, 1840, 1841, 1842 e 1843.10 Escolhemos
as conjunturas da década de 1820 e depois do tráfico ilegal na década de
1840, quando o Rio de Janeiro tinha tanto uma população escrava africana
consolidada – reiteradas gerações trazidas desde o alvorecer de 1800 até
1830, quando o impacto do tráfico alternou entrada anual de oito a 35 mil
africanos –, como contingentes clandestinos que chegavam aos portos e
abasteciam as demandas de mão de obra urbana, para além do reenvio para
o interior do sudeste escravista.

10. Diário do Rio de Janeiro, doravante DRJ.

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As primeiras traduções aparecem nas descrições do corpo dos
(transformados em) africanos. Para ajudar na captura e reconhecimento –
tanto de pedestres como daqueles que podiam denunciar os fugidos – surgem
visões senhoriais. Longas temporadas de convívio ou aquelas curtas, uma
vez que eram comuns escapadas de africanos recém-chegados e comprados
no Valongo, eram suficientes para que senhores pudessem reter percepções
e descrevessem em detalhes corpos, hábitos, costumes e personalidades de
seus escravizados. Muitas vezes nas narrativas repetitivas surgem originais
traduções sobre tais africanos. Mais do que tópicas preconceituosas, podemos
a partir delas ver também como os próprios africanos – de diferentes
origens – traduziam a si próprios para os olhares da sociedade escravista.
Um capítulo original sobre a história do corpo dos africanos aparece nestas
fontes. Dimensões físicas e corpóreas africanas emergem. Uma africana
Cassange de idade de 13 para 14 anos era descrita como “baixa, tem os
beiços grossos, nariz chato e alguma coisa reforçado” (DRJ, 29/01/1840). Já
Silvana, uma africana Conga de “idade pouco mais ou menos 28 anos” tinha
“estatura baixa, cheia de corpo” (DRJ, 24/02/1840). O africano Diogo Angola
tinha “rosto redondo, olhos grandes, nariz bastante chato e boca regular”,
enquanto Guilherme Cabinda trazia “cara comprida, olhos pequenos, muito
cheio de corpo, peitos largos, pernas finas e pés compridos” (DRJ, 18/03/1840
e 24/03/1840). Tratava-se de descrições que reuniam impressões senhoriais,
mas que ao mesmo tempo ajudariam numa rápida identificação do africano
procurado. Havia de ser algo o mais próximo possível daquele escravizado
africano específico a quem se procurava, que não deixasse margens para
dúvidas ou equívocos, ainda mais naquele contexto com milhares e milhares
de africanos nas ruas. Imagens positivas ou negativas – ambas preconceituosas
– eram produzidas e circulavam para o domínio e reconhecimento daquela
sociedade escravista urbana. Qual seja, só se poderia reconhecer (portanto
encontrar) aquilo que já se conhecia. Por exemplo, a fugitiva Isabel “de nação”
era “bonita de cara”, pois tinha “boca grande, beiços grossos, pés pequenos
e bem feitos” (DRJ, 28/03/1840). Jeremias, nação Moange, tinha “estatura
ordinária e cor retinta” enquanto Maria Monjolo apresentava “estatura alta
e rosto comprido” (DRJ, 11/04/1840 e 21/04/1840). Já Felipe Congo, além
de “gordo” tinha “os olhos e boca grande” (DRJ, 16/05/1840). De Sebastião,

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“um preto rapaz” sabia-se das suas “feições regulares” com “boca pequena
e beiços finos” (DRJ, 27/07/1840). Por sua vez Bento Cabinda era “gordo e
socado, retinto, feio” (DRJ, 05/09/1840). A descrição do “moleque” Ignácio
Congo foi bem indicativa com “testa e olhos grandes, beiços grossos, bem
feito de corpo, mas não é bonito de cara” (DRJ, 17/09/1840). O dono do
fugido Cristovão Benguela foi mais incisivo avisando que o mesmo era “mal
encarado” (DRJ, 24/09/1840). Este foi também o adjetivo usado tanto para
João Moçambique que tinha o “corpo grosso” como para Joaquim Cabalar
com “olhos vermelhos e nariz chato” (DRJ, 02/05/1841 e 09/02/1842). De
Ventura “nação Gabão” era preciso saber que era “muito bexigoso, magro e
tem o nariz chato” e de Raimundo Cabinda que tinha “estatura alta e rosto
magro” (DRJ, 02/04 e 11/1842).
Descrições corporais não eram aleatórias ou genéricas. Pelo contrário,
eram conjugadas com indicações sobre barba, cabelos e dentes. Primeiramente
só havia que se olhar e reconhecer rapidamente um determinado africano.
Partes corpóreas como barba, cabelo e dente funcionavam também como
sinais diacríticos. Antonio Moçambique, além de “olhos grandes e encarnados”
tinha o “cabelo redondo” (DRJ, 02/01/1840). Enquanto Candido Moçambique
aparecia com o “cabelo cortado de próximo” (DRJ, 28/04/1840). Diferente
era Fortunato, que não só tinha “pés grandes e largos”, mas também “cabelo
penteado” (DRJ, 06/05/1840). Sobre Diego Inhambane com “cara redonda e
olhos grandes” tinha a “cabeça raspada de 15 dias” (DRJ, 21/07/1841). Uma
preta Angola, que se desconfiava “ter sido desencaminhada” tinha o “cabelo
crescido” (DRJ, 08/07/1842). O que dizer das africanas Floriana Inhambane
que tinha “cabelos grandes” e Maria Conga com “cabelos crescidos” (DRJ,
21/12/1842 e 22/12/1843).
Mas cabelos – raspados, crescidos ou penteados –, barba e,
principalmente, dentes limados e, também, brincos estavam associados às
distinções e identificações dos africanos, sinais diacríticos através dos quais
eles informavam seus pertencimentos entre si e para a sociedade envolvente
que os reconheciam, ou ainda mais procuravam fazê-lo visando a captura
dos fugidos que estivessem perambulando na cidade. Silvana Conga tinha
o “olho esquerdo torto” e “falta de dentes adiante” (DRJ, 24/02/1840). Mas
Alexandre Moçambique era “alto, magro, rosto oblongo, boa dentadura” (DRJ,

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09/03/1840). Diogo com “nariz bastante chato, boca regular” apresentava-se
“com falta de dois dentes de cada lado, tanto de cima como debaixo, beiços
grossos” (DRJ, 18/03/1840). Lourenço Quilimane e Francisco Cassange fugiram
juntos em 14 de julho e “foram vistos no mesmo dia na estrada Engenho
Velho, e julga-se estarem acoitados nas imediações da Tijuca, Andaraí e
Maracanã”, sendo que ambos tinham “dentes ralos”, embora o primeiro
com um “semblante tristonho” e o segundo “cara risonha e bonita” (DRJ,
21/08/1840). De outra fuga coletiva sabemos que João Calabar apresentava
“dentes frontais abertos naturalmente e muito barbado”, enquanto Antonio
Benguela, era “bem dentiado e sem barba” (DRJ, 27/11/1840). Ladislau, fugitivo
de uma chácara no “caminho Macabra”, figurava como “desdentado da parte
de cima e com pouca barba” (DRJ, 03/12/1840).
Mundos de escravidão emergem nestas diversas descrições dos anúncios
de fugidos. Através destas narrativas é possível identificar os primeiros
filtros, percepções, traduções das complexas experiências de africanos
enquanto cativos numa sociedade urbana. As visões senhoriais – uma vez
que eram textos e subtextos compostos que chegavam às tipografias e/ou
eram montados pelos tipógrafos – traziam visões cruzadas. Olhares e lentes
senhoriais desvelavam também aquilo que africanos escravizados queriam
dizer. Nos termos de James Scott, temos através destas narrativas os “discursos
ocultos” de experiência africana carioca (SCOTT, 2013). Da preta Carolina
Benguela sabemos que se aproveitou do horário noturno para escapar. Eram
momentos propícios para vários cativos cruzarem parte da cidade, buscando
água em fontes públicas ou despejando dejetos em praias circunvizinhas.
Ela, “indo à Carioca buscar água”, desapareceu (DRJ, 10/01/1840). O moleque
africano Monjolo escapou durante o dia quando “andava vendendo limões de
cheiro na cidade” (DRJ, 17/01/1840). Já a africana Maria Rosa de nação Mina
Hausá, “indo vender quitanda”, acabaria fugindo (DRJ, 12/05/1840). Prejuízo
grande houve com a escapada da africana lavadeira Cândida Conga “com um
cesto de roupa lavada, vinda do rio do Engenho Velho, com 70 peças tudo de
valor”. Quase na mesma ocasião, Thomas Congo iria desaparecer próximo
ao rio São João, “as seis horas da tarde, indo apanhar folhas de manga” (DRJ,
01/06/1840). Pior azar teve o proprietário do cativo José Benguela, pois ele
desapareceu “estando na porta do botequim do Comércio na companhia de

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seu senhor” (DRJ, 25/06/1840). Houve mesmo quem fugisse da porta de casa,
como Domingos Benguela que desapareceu “indo vender biscoito” em frente
à Rua São Pedro, número 154 (DRJ, 17/08/1840). O que teria acontecido para
que Antonio Congo fugisse da Rua da Lampadosa, número 1, às “4 horas
de madrugada” (DRJ, 01/01/1840). Do africano José Moçambique sabemos
que em pleno domingo “tinha vindo de Botafogo para a cidade vender
quitanda, e não voltou” (DRJ, 07/02/1840). E Francisco Angola, “andando
com um tabuleiro a vender agulhas, alfinetes e outras miudezas”, se escafedeu.
Quem se aproveitou da escuridão foi o africano Simplício, pois escapou à
noite quando “veio à Praia do Peixe, botar água suja” (DRJ,15/06/1841). Mais
audacioso foi Antonio Benguela, que “fugiu indo levar um recado a casa
do Sr. Custódio José de Souza, no Aterrado” (DRJ,16/06/1841). Na praia do
Valongo iria desaparecer João Angola quando “andava com uma carroça a
vender lenha” (DRJ, 30/09/1843), enquanto meses depois escaparia Jesuína
Cabinda, “vinda de Cosme Velho com um cesto de roupa de homem já
lavada” (DRJ, 30/12/1843).
Proprietários – através destas descrições que acabaram impressas nos
anúncios- podiam recuperar momentos e/ou atmosfera da fuga, ocasiões nas
quais sentiram falta dos seus cativos. Ou podiam sugerir as motivações das
escapadas. Nenhum proprietário anunciou que seu cativo fugiu porque era
maltratado, embora não poucos anúncios mencionassem castigos recentes
e condições de vida de seus escravizados.
Os corpos dos escravizados, igualmente traziam marcas e signos da
sociedade envolvente.11 Do fujão Manoel Angola sabe-se que “tem uma
pequena coroa no alto da cabeça de carregar barris de água”. Outro africano
Manoel, porém, Cabinda era mencionado que tinha “um talho na testa
até a ponta do nariz” (DRJ, 07/01/1840). As condições de vida e trabalho
começavam a marcar africanos e produzir cicatrizes. Com 40 anos, Joaquim
Cabinda tinha o “braço esquerdo do cotovelo para cima todo cicatrizado”
(DRJ, 22/01/1840). Domingos Moçambique tinha “signaes no assento de
ter sido recentemente surrado” (DRJ, 17/02/1840). O preto marceneiro

11. Ver uma abordagem instigante sobre marcas dos africanos nos anúncios de jornais em
Jeha, 2019.

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José Angola, que tinha desaparecido de uma loja de marcenaria da Rua
Mata Cavalos, possuía marca de ferro num dos lados da cara”, além de
pisar cambaio (DRJ,10/10/1840). De Caetano Cassange, um africano que
trabalhava ao ganho, havia “falta de cabelos no alto da cabeça procedido
de carregar, canelas curvadas para frente, tendo sobre a da perna esquerda
uma cicatriz de antiga ferida” (DRJ, 30/10/1840). Ainda com 12 anos, José
Cabinda poderia ser reconhecido por “signaes antigos de queimadura nos
braços” (DRJ, 08/07/1841). A preta Isadora Angola tinha “alguns signaes de
castigo antigo” (DRJ, 24/04/1843).
Embora já presente na Gazeta do Rio de Janeiro no alvorecer do século
XIX, abundam na imprensa carioca nos anos 1820 e 1840 – esta última
coincidência com o período do tráfico ilegal – anúncios com detalhes sobre
as nações dos africanos, como marcas, sinais, fala e distinções.12 Mais do que
nunca, em diferentes contextos, a sociedade escravista urbana traduzia os
códigos das nações nos aspectos físicos e marcadores étnicos dos africanos.
Era como se lembrassem aos leitores – futuros informantes e/ou perseguidores
dos fugidos: sinais de nação, nos dentes, indumentária, apetrechos e mesmo
hábitos com sentidos étnicos descritos quase como territórios africanos na
cidade. Felizardo, nação Moçambique “bastante explicado quando fala, de
maneira que parece crioulo” contra o qual se desconfiava “ter mudado de
nome e nação para não ser conhecido” tinha “uma orelha furada” (DRJ,
09/03/1840). Guilherme, nação Cabinda, “expressa-se bem, tem um brinco de
ouro na orelha esquerda, e é de supor que o tenha tirado” (DRJ, 24/03/1840).
Também de nação Cabinda, Francisco andava “com brinco de miçanga
em uma orelha” (DRJ,29/05/1840). Do fugitivo Joaquim, de nação Angola,
era importante destacar que tinha “brinco na orelha ou orelha furada”
(DRJ, 24/09/1840). Ignez, nação Cabinda, levara vestidos e lenços além de
“brincos de ouro das orelhas” (DRJ, 18/02/1841). Maria, nação Benguela,
portava “brincos pretos compridos” (DRJ, 27/06/1840). E a preta Maria
tinha “uma argolinha numa das orelhas” (DRJ, 24/02/1841). Para Julião,
nação Moçambique anotava-se ter “as duas orelhas com grandes furos”
(DRJ, 12/05/1841). O oficial de carpinteiro, Caetano era conhecido por ter

12. Sobre fala dos escravizados nos anúncios ver Alkmin, 2006 e Lima, 2012.

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“um brinco em uma orelha” e Maria Benguela, por “argolas de ouro nas
orelhas”, ambos de nação Benguela (DRJ, 06 e 23/06/1841). Dimensões da
cultura material da escravidão urbana com tais brincos e seus formatos
ainda precisam ser estudados (SLENES, 1991-1992).
De fato, sinais de nação e inscrições corporais – de dentes ao corte do
cabelo e indumentárias – faziam parte das tópicas dos anúncios de fugas
que traduziram faces da cultura material e imaterial dos africanos do Rio de
Janeiro urbano. O africano José, nação Mujambe, só poderia ser conhecido
por “zambo de uma perna, na qual tem uma cicatriz de ferida”. As marcas de
nação e as simbologias étnicas envolventes tinham um papel fundamental,
especialmente nas cidades escravistas. Sobre a desaparecida preta Cecília,
nação nagô, trazia “signaes de sua nação pelas costas” (DRJ, 11/04/1840).
Joaquim, nação Inhambane, tinha “muitos bicos na testa” que eram “signaes
de sua nação” (DRJ, 23/04/1840). Lourenço Monjolo com “signaes de nação
na face esquerda” (DRJ, 06/05/1840). E Miguel, de nação Mina, “tem signal
da nação no peito” (DRJ,19/06/1840). Já Manoel, nação Mucena, além de
“um furo no queixo” tinha “signais de sua terra na testa e nas fontes” (DRJ,
27/06/1840). Teresa, nação Benguela, foi anunciada sem “signais de nação”,
mas achava-se vestida de “pano da Costa, lenço pintado de encarnado na
cabeça” (DRJ, 16/07/1840). Diego de nação Inhambane, era “muito alegre”
posto que “fala bem o português e quase sempre rindo-se” e poderia ser
encontrado pelos “signais de sua nação na testa” (DRJ, 21/07/1840). O africano
Elias “muito ladino”, conhecido pedreiro, “na testa tem marcas em forma
de cicatriz próprias de sua nação que é Moçambique” (DRJ, 30/10/1840).
Quase misteriosa era a africana Eva, de nação Conga, mas com “um lanho
da face direita como signal da nação Mina” (DRJ, 27/03/1841). José, de nação
Angola, além de “meio atrapalhado na fala” tinha “os signais de sua terra
nas costas” (DRJ,06/04/1841). Bernardo, nação Moçambique, tinha o “nariz
todo cheio de repinicados, signaes de sua terra” (DRJ, 24/04/1841). Sobre um
conterrâneo seu, Feliciano, anunciou-se “desembaraçado no falar, advertindo
que suposto seja Moçambique, não tem signal algum da terra pelo corpo, por
ter vindo muito pequeno, e parece ser crioulo” (DRJ, 04/05/1841). Brígida,
também Moçambique, tinha “signal da sua nação sobre o lábio superior”
(DRJ, 15/05/1841).

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A complexidade de descrições das marcas de “nação Moçambique”
sugere uma variação étnica que ainda conhecemos pouco. Vicente,
Moçambique, tinha “signais redondos de sua nação pela cara, dentes limados”
(DRJ,11/06/1841). Uma africana Libolo era “bemfeita de corpo” e “não tem
signal algum da terra” (DRJ, 20/07/1841). Os símbolos de nação de Juliana,
Benguela, era o “pano da Costa escuro” que levava (DRJ, 26/07/1841). O
africano Gil Braz, nação Cassange, tinha os “dentes limados” (DRJ,14/10/1841).
Tendo sido “visto nestes dias de festa no Catete”, o africano Matheus, nação
Congo, tinha os “dentes limados” e estava de “cabelo furado” (DRJ, 04/01/1842).
Sobre um determinado africano Moçambique, mais do que destacar seus
sinais de nação foi importante dizer que “costuma andar com o bigode crescido
e barba no queixo”. Era alguém experiente naquele labirinto urbano – tendo
escapado da rua nova do Livramento – a ponto de ser “muito velho, capaz
de persuadir que não anda fugido” (DRJ, 08/01/1842). Esperteza semelhante
parecia ter Bernardo, de nação Benguela, que “se diz crioulo por não ter
marca de sua nação e também costuma dizer que é forro” (DRJ, 05/04/1842).
Um africano de nação Cabundá tinha diversas “marcas de golpes na cabeça e
de chicotadas pelo corpo”, porém “sem barbas, nem signaes de nação” (DRJ,
05/04/1842). Fugido na Rua de Mata Cavalos, um molecote Moçambique tinha
“dois signais de sua nação na face e três na testa” (DRJ,14/09/1841). Quanto
a João, igualmente Moçambique, advertia o anunciante: “não tem as marcas
da nação, mas sim uma marca na testa como um risco” (DRJ, 03/11/1841).
De “rosto carrancudo”, Josefina de “nação Moçambique de Macua” aparecia
com “signal da sua nação por cima do nariz” (DRJ, 04/06/1842). Identificar
nações era algo importante, por isso era necessário dirimir dúvidas e mesmo
equívocos ao nomeá-las. Em julho de 1842 se dizia que o africano José, era
de “nação Inhage ou Cassange” (DRJ,18/07/1842). Do anúncio de fuga do
africano Miguel, oficial de pedreiro e com “cabelos brancos”, dizia-se que era
“nação Angola ou Rebolo” (DRJ, 24/09/1842). Identificado como um africano
“acostumado a fugir”, sobre José, não se sabia se era de “nação Moçambique
ou Quilimane.” (DRJ, 02/12/1842).

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Considerações finais
Indicamos possibilidades analíticas com base nos anúncios de
escravizados que fugiam. As milhares de fugas por ano no Rio de Janeiro
podem apontar para as relações com os proprietários e nos permitem
conhecer melhor, a partir de uma metodologia adequada, os problemas
de saúde que deixavam marcas visíveis nos escravizados. Os corpos dos
escravizados foram desenhados nos anúncios de jornais não apenas por
senhores e redatores (HUNT-KENNEDY, 2020). As tópicas destes registros
repetidos são também fontes inscritas (diferente de escritas ou ditadas)
pelos próprios escravizados. Eles também se deixavam revelar, pelo menos
faces daquilo de como eram percebidos, ou mesmo poderiam se deixar
perceber ou esconder das várias dimensões do governo senhorial. Como
proprietários – e o olhar urbano escravista – podia reter tantas imagens,
silhuetas, tópicas, contornos e sombras sobre homens e mulheres, suas
roupas, suas dimensões étnicas, comportamentos, anseios e expectativas? Ao
focalizar em demasia o olhar senhorial perdemos de vista a possibilidade de
localizar os escravizados traduzindo seus próprios corpos (LE GLAUNEC,
2005). É possível também pensar em prosopografia e biografias coletivas de
africanos e escravizados a partir de anúncios de fugitivos (SWEET, 2009).
Conseguimos seguir trajetórias de personagens, articulados em redes de
solidariedades e articulados em espaços, especialmente considerando as
cidades negras. Assim, tais fontes secundárias, publicadas aos milhares nos
jornais oitocentistas abrem horizontes de pesquisas para localizar pessoas,
sentidos, expectativas e experiências (FERREIRA, 2006; FRAGOSO, 2010;
MOREIRA & MATHEUS, 2011). Assim encontramos Catarina Cassange.
Suas estratégias puderam ser acompanhadas por pelo menos quatro anúncios
entre 1838 e 1839. Seu proprietário, Manoel da Rosa, anunciou no Diário do
Rio de Janeiro que ela tinha escapado estando grávida de quatro meses. Tal
qual os anúncios da época, seriam descritos seu corpo e comportamento.
O primeiro anúncio da sua escapada foi seguido por pelo menos mais três
anúncios num espaço de quatro meses. Mesmo sem conseguir capturá-la,
conseguiam-se informações sobre o seu paradeiro. Conhecida como preta
ao ganho, era uma vendedora que costumava circular pela praia do Valongo

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e Rua do Livramento, onde se concentravam muitos africanos. Poderia
inclusive ter sido seduzida. Um mês depois do primeiro anúncio, seria
publicado outro dizendo que Catarina – com ajuda de sedutores – estaria
tentando seguir para Minas Gerais. Em mais um anúncio foi dito que ela
estava passando as noites escondida em barcos ancorados e já estaria em
adiantada gravidez. Catarina conseguiu ficar um ano refugiada, só sendo
capturada no final de 1839. Revelou que tinha andado por muitos lugares
da cidade e do recôncavo da Guanabara. Quem mais a tinha ajudado foi o
liberto Aleixo, um africano Mina que tinha o ofício de barbeiro. Durante um
bom período ele escondeu Catarina em sua casa da Rua dos Ferradores. Com
apoio de vários acoitadores e proteções provisórias, Catarina conseguiria ter
o seu filho – de nome José – sendo inclusive levada para as proximidades
do “quilombo de Laranjeiras”.13
Ampliando as possibilidades de uma prosopografia da escravidão
urbana podemos ir além e reconhecer olhares e lentes senhoriais para,
através dos anúncios, percebermos aquilo que os africanos, em especial,
queriam dizer.14 Inevitavelmente, os anúncios de fugas descreviam aspectos
dos corpos dos cativos para que pudessem ser encontrados e, atentando
para os “discursos ocultos” da experiência africana, mundos de escravidão
emergem. É importante atentarmos para as relações de dominação, que podem
ser compreendidas através da categoria analítica de infrapolítica. Diante
das relações entre senhores e escravizados, considera-se as perspectivas do
“discurso oculto”, uma vez que tais categorias sugerem a reflexão de alterações
cotidianas nas relações de poder aqui mencionadas, atentando-se para as
ações, narrativas e, também, silêncios presentes nos anúncios de escravizados
fugidos (SCOTT, 2013).
Tal como as fontes e perspectivas teóricas enquanto possibilidades
interpretativas de contextos escravistas, é possível entender anúncios de fugas
como instrumentos e ferramentas metodológicas nas leituras das dinâmicas
sociais urbanas, aquelas fundamentalmente marcadas pela presença africana
como a Corte Imperial na primeira metade Oitocentista.

13. Esta indicação apareceu nas pesquisas de Carlos Eugênio Líbano Soares (ARAÚJO,
SOARES, FARIAS e GOMES, 2006). Ver também Soares, 1998.
14. Ver um debateteórico metodológico em: Ghobrial, 2019.

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Jornais no tempo da escravidão

Karoline Carula | Universidade Federal Fluminense

Jornais e suas características


A imprensa, desde a década de 19701, é utilizada como profícua fonte
de pesquisa para historiadores que investigam as mais variadas temáticas, no
campo dos estudos sobre escravidão isso não é diferente. Com a transferência
da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e a criação da Imprensa Régia
passou a circular o primeiro jornal totalmente editado aqui, a Gazeta do
Rio de Janeiro2. A partir de então, no correr do século XIX, o número de
publicações cresceu em termos numéricos e em diversidade – jornais de
circulação diária com assuntos diversos, científicos, literários, ilustrados,
satíricos, voltados ao público feminino, criados por associações e categorias
profissionais, dentre outros. No Brasil, os estudos sobre escravidão que
empregam imprensa como fonte estão restritos a um recorte cronológico
bem específico – de 1808 a 1888.
Nos últimos anos, com a facilidade de acesso aos jornais, desde a
fundação da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional3 e a digitalização
de acervos de outras instituições, cada vez mais a imprensa é empregada

1. Uma perspectiva sobre a utilização da imprensa brasileira como fonte pode ser encontrada
em Luca (2008).
2. Sobre a Gazeta do Rio de Janeiro e a relação entre imprensa e poder, ver: Meirelles (2008).
3. http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/

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nos estudos historiográficos. Contudo, lançar mão de periódicos como fonte
histórica implica na necessidade de compreender suas especificidades de
produção.
Assim como para os estudos de outros temas, nos sobre escravidão,
a imprensa pode ser objeto de estudo ou fonte histórica (LUCA, 2008). A
caracterização e compreensão do jornal de maneira densa e detalhada é
essencial para aqueles que o empregam como objeto de pesquisa. No entanto,
ela não deve ser totalmente deixada de lado pelo pesquisador que só o utiliza
como fonte. Atributo essencial desse tipo de publicação é sua periodicidade.
Desta maneira, um determinado assunto pode não se encerrar em uma
única edição, implicando na necessidade da leitura de números seguintes.
Por isso, conhecer algumas informações também é importante para
quem faz uso do jornal como fonte, no intuito de complexificar e subsidiar
a análise documental. Podemos destacar:
1) Dados gerais: título, subtítulo, periodicidade, tiragem e período no
qual circulou;
2) Localização: locais de impressão e de venda;
3) Aspectos gráficos: número de páginas, número de colunas, presença
de imagens;
4) Comercialização: tipo (assinatura e/ou venda avulsa), preços (local e
outras provinciais);
5) Principais seções;
6) Expediente: proprietário, redator-chefe, colaboradores, dentre outros;
7) Perfil político (liberal, conservador, republicano, abolicionista,
pretende-se imparcial etc.);
8) Tipo de público almejado (amplo, feminino, categoria profissional
etc.).
Esses dados podem ser obtidos por meio da historiografia que já analisou
o jornal ou pela leitura diária – “folhear” algumas edições dos periódicos,
mesmo que virtualmente, além de prazeroso, possibilitará reconhecer
muitos desses elementos gerais. Assim, é possível confeccionar uma ficha

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de caracterização. Quando se trabalha com mais de um órgão de imprensa,
esse registro é ainda mais valioso, pois facilita uma análise comparativa dos
perfis.
Metodologicamente, outro aspecto fundamental é delimitar como será
realizada a consulta à fonte, por meio de leitura diária do jornal ou utilizando o
buscador de palavras da Hemeroteca Digital, quando a publicação se encontra
disponível para tal tipo de acesso. A leitura diária, seja no jornal físico ou
qualquer outro suporte em que ele esteja (digital, microfilme ou edição fac-
símile), possibilita um conhecimento mais amplo de suas caraterísticas, uma
vez que será necessário “procurar” o assunto nas várias partes que constituem
a publicação. Primeiramente, o pesquisador deverá selecionar o periódico
a ser analisado, escolha que partirá de algum conhecimento prévio sobre a
imprensa existente4. Além da delimitação do recorte cronológico, que pode
ser dada pelo tema ou pelo período de circulação do jornal, é primordial
justificar a escolha – explicar quais foram os motivos que o levaram a eleger
determinado título em detrimento de outro.
O uso metodológico do buscador da Hemeroteca Digital requer o
conhecimento preliminar do que se pretende buscar, ou melhor dizendo,
quais palavras e/ou expressões podem ser inseridas para se chegar ao assunto
desejado. Uma seleção deve inicialmente ser feita, a historiografia sobre o
tema pode ajudar na escolha de quais utilizar, e, após a leitura do material
selecionado, outras poderão surgir, complementado o que já foi levantado. O
mecanismo possibilita buscar um determinado assunto em décadas, jornais e
locais diversos. Ao aplicar tal procedimento, extremamente profícuo, alguns
cuidados devem ser tomados. O primeiro é o relativo ao contexto histórico,
situando o material encontrado dentro da escravidão no século XIX (proibição
do tráfico transatlântico, comércio ilegal de escravos, leis emancipacionistas,
abolicionismo etc.). Outro ponto importante é o tocante ao local de produção

4. Um dos trabalhos seminais sobre imprensa no Brasil é o Nelson Werneck Sodré (1999),
que traz muitas informações sobre os periódicos do século XIX – fundação, periodicidade,
proprietário etc. Já um estudo mais recente e importante sobre a imprensa no Oitocentos
é o de Marialva Barbosa (2010), no qual é apresentado um panorama sobres os diversos
aspectos dos jornais no período. Além desses, há a produção historiográfica que já utilizou
uma determinada publicação como fonte ou objeto de estudo e que traz análises sobre um
jornal específico e/ou sobre a imprensa de forma mais ampla.

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do periódico, atentando para as especificidades regionais. Por fim, aqueles
relativos à estrutura do jornal, quais as suas principais características.
Em seguida, apresento algumas possibilidades para a utilização do
jornal como fonte para o estudo da escravidão, com destaque aos anúncios,
às demais seções da publicação e, por fim, à imprensa ilustrada.

Anúncios
A proficuidade do uso de anúncios de jornal para o estudo de escravidão
há muito foi destacada por Gilberto Freyre (1979). Compra, venda, aluguel e
fuga de escravos recheavam as seções de anúncios das publicações periódicas5.
Nos principais centros urbanos brasileiros do século XIX, a circulação de
jornais era grande, não só daqueles publicados na localidade, mas também de
outras cidades e províncias. Em grandes localidades, os anúncios aumentavam
a possibilidade de ter uma transação mercantil efetivada mais rapidamente.
Já no caso das fugas, funcionava como um mecanismo a mais para que o
senhor tentasse recuperar a sua propriedade.
Por se tratar de fonte seriada, a utilização de anúncios favorece tanto
estudo qualitativo como quantitativo. Em termos quantitativos, é possível
verificar o número de anúncios publicados no período, quantos homens e
mulheres escravizados estavam envolvidos na transação comercial (compra,
venda ou aluguel) ou na fuga, a partir daí averiguar se havia diferença com
relação ao gênero. Apurar se se tratava de um escravizado nascido no
Brasil (crioulo) ou um africano e, neste caso, de qual nação6. Quais eram
os ofícios mais desempenhados pelos cativos anunciados. Essas são apenas
algumas possíveis variáveis que podem ser utilizadas para um estudo de teor
quantitativo. Outras informações, de caráter qualitativo, também podem
ser apreendidas por meio dos anúncios de jornais envolvendo pessoas

5. Tão logo a imprensa se instalou, no Rio de Janeiro e em Salvador, respectivamente, a Gazeta


do Rio de Janeiro e a Idade do Ouro passaram a publicar anúncios envolvendo escravizados,
com “impressões senhoriais, mesmo que improvisadas, instantâneas e provisórias” (VIANA
& GOMES, 2019: 77).
6. O termo “nação”, empregado para designar africanos, correspondia ao porto de onde
partiram na África, não designando um grupo étnico específico. Sobre a designação de
“nações” africanas e as apropriações identitárias realizadas por escravizados na diáspora
ver: Soares, Gomes e Farias (2005: cap. 1).

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escravizadas. O recorte cronológico a ser escolhido pode estar, dentre outros,
no tempo de circulação, é possível acompanhar os anúncios durante todo o
período de existência da publicação.
Os anúncios de fuga trazem uma especificidade que é a presença de
um texto mais objetivo, decorrente de sua própria motivação – “descrever o
fugitivo de forma a torná-lo inconfundível para os leitores” (CARVALHO,
2010: 258). Como o intuito essencial é recuperar o escravizado fujão, descrições
mais precisas, com riqueza de detalhes, ajudariam a recuperar a propriedade.
Para garantir a eficácia do anúncio, o senhor teria que descrevê-lo da maneira
mais próxima à realidade o possível. Os anúncios traziam descrições de
características vinculadas à aparência do escravo – traços físicos, roupas,
marcas de nação, cicatrizes, idade aproximada etc. Contudo, para assegurar
êxito na empreitada, mais informações eram adicionadas, vinculadas a
comportamentos cotidianos, como modos de andar e falar, cacoetes, entre
outros. Assim, por meio dessa fonte além da ação de rebeldia, é possível
apreender aspectos de sua vida ainda no cativeiro (Ibidem: 259-60).
Nas várias partes do Brasil Imperial, a imprensa foi utilizada como
auxiliar dos senhores na recuperação de seus escravos fugidos. Marcus de
Carvalho sintetiza as características gerais desses anúncios, que não diferiam
de maneira significativa em todo o território nacional, ora com algumas,
ora com outras informações:
Regra geral, consta o nome do senhor, ou da pessoa a quem o cativo
deve ser entregue; menciona-se os trajes do escravo quando foi visto
pela última vez; delineia-se a fisionomia e demais traços físicos, inclusive
marcas de castigos e nação; pode oferecer alguma recompensa; às vezes
é indicado o local onde teria sido visto; explicita alguns hábitos do
escravo; por último, a parte que nos interessa mais aqui: o momento
em que o senhor descreve não apenas o comportamento usual do cativo
mas também um hipotético conjunto de condutas do fugitivo que,
supõe o senhor, poderiam vir a ser mantidas após a fuga. (CARVALHO,
2010: 260)

O anúncio abaixo, à guisa de exemplo, mostra algumas informações


que são possíveis encontrar:

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Escrava
Está fugida desde o dia 21 de Dezembro, a de nome Benedicta,
quitandeira, de 29 para 30 anos de idade alta, magra, de cor fula, tem
as pernas inchadas e manca, provenientes do reumatismo; intitula-se
liberta, pelo que julga-se estar alugada como cozinheira, nesta cidade ou
fora. A pessoa que entregá-la na estação central urbana, será gratificada.
(Correio Paulistano, 28/01/1880: 3)

No anúncio, publicado em jornal na capital da Província de São Paulo, o


proprietário de Benedicta busca reaver sua escravizada fugida há mais de um
mês. Benedicta era quitandeira, portanto, é possível inferir um pouco mais
sobre sua vivência, que atuava no comércio, como muitas outras mulheres
negras naquela sociedade. Estaria ela ao ganho vendendo suas quitandas?7
Seu porte físico é descrito com destaque à sua moléstia – reumatismo. Não
raro anúncios traziam informações sobre enfermidades que o escravizado
possuía, sendo, dessa maneira, possível o diálogo com outras fontes, para
se compreender um pouco mais sobre a história da saúde e das doenças da
população escravizada (PIMENTA & GOMES, 2016; PIMENTA, GOMES &
KODAMA, 2018). Estratégias de sobreviência também podem ser apreendidas
por meio de anúncios. Benedicta, após fugir, passou a afirmar ser liberta8,
seu senhor ou já tinha tido informações ou supunha que ela tivesse fugido
e tudo indicava que já estava atuando em outra atividade, como cozinheira,
e talvez até em outra cidade9. Ou seja, sair do espaço onde muitos poderiam
reconhecê-la e trabalhando em outro ofício dificultaria que seu senhor
conseguisse reavê-la.

7. Uma análise sobre quitandeiras africanas da Costa Mina, na cidade do Rio Janeiro, que
emprega anúncios de jornais em diálogo com os registros da Casa da Detenção, pode ser
encontrado em Soares, Gomes e Farias (2005: cap. 5).
8. Utilizar outro nome após fugir, ou mesmo antes, foi estratégia amplamente utilizada
pelos escravizados como forma de resistência: “Ao dizer por aí que era liberto, o rebelde
afirmava sua condição humana [...] Ao negar o nome imposto pelo senhor, o cativo criva
identidade, através da qual fruía mais amplamente vários aspectos da liberdade possível”
(CARVALHO, 2010: 266)
9. Consoante Carvalho, “essas fontes dizem o que a classe senhorial acreditava que os
escravos eram capazes de fazer” (2010: 261).

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Anunciar a venda ou aluguel de escravizados na imprensa era uma
maneira de ampliar os negócios, aumentando a probabilidade de uma
transação exitosa. Diferente dos anúncios de fuga, a intencionalidade aqui
era outra – realizar uma transação comercial. Portanto, a veracidade das
habilidades e qualidades apresentadas não era, necessariamente, plena.
Embora alguns senhores fossem mais sinceros, como nesse anúncio de venda:
“Uma negra, engoma, e lava de varela perfeitamente, cozinha sofrivelmente,
mui fiel, e boa quitandeira, a vista do comprador se dirá o motivo porque
se vende: no princípio da rua do Hospício quarta casa térrea de vidraça”
(Diario de Pernambuco, 04/05/1836, p. 4). No caso dessa escravizada, mesmo
não cozinhando bem, ela era uma “boa quitandeira”, indicando que o futuro
comprador poderia ter um lucro maior, colocando a cativa para atuar nessa
atividade. Para a venda, a valorização das habilidades, existentes ou não, do
escravizado era fundamental, visto que isso agregaria valor.
O aluguel10 de escravos constituía uma rentável exploração adicional,
visto que o senhor continuava com sua propriedade e ainda lucraria com
seu trabalho alugado. Assim como na venda, nos anúncios de aluguel as
qualidades e habilidades do escravizado eram destacadas a fim de que
pudessem interessar a um possível locatário. Diversas eram as atividades
executadas por escravizados e anunciadas para o aluguel:
Alugam-se diversos escravos: sendo uma perfeita mucama, dois pardos
marceneiros e lustradores, duas amas de leite de 8 a 12 dias, sem filhos,
um moleque alfaiate, uma cozinheira, diversos moleques e pretas para
todo o serviço; para ver e tratar no largo do Catumbi, n. 34, placa.
(Gazeta de Noticias, 09/08/1876: 4)

O anúncio talvez fosse referente a uma agência de aluguel de


trabalhadores, esses locais também utilizavam a imprensa como veículo
para divulgação. Contudo, proprietários também alugavam diretamente
seus escravos em escritórios:

10. Existente desde o período colonial, o aluguel de cativos se intensificou no século XIX. O
locatário pagava ao proprietário o valor referente à locação do serviço prestado pelo cativo,
sendo responsável por ele durante o tempo em que ele estava contrato, sua alimentação,
vestimenta e cuidados. Para o Rio de Janeiro, conferir: Soares (2007) e Karasch (2000).

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Alugam-se, à travessa do Ouvidor n. 27, 1° andar, fundos, das 8 às 5 da
tarde, escravos de ambos os sexos tendo entre eles uma boa e carinhosa
ama de leite, um bom cozinheiro de forno e fogão, copeiros e boas
lavadeiras etc. Este escritório é do próprio senhor dos escravos e não
de agência, e sendo grande o número, todos os dias tem escravos para
alugar. (Gazeta de Noticias, 07/12/1876: 3)

Ao sinalizar para o fato de não se tratar de uma agência de escravos,


talvez o senhor quisesse dar maior credibilidade ao anúncio.
Dentre os diversos trabalhos a serem executados por escravizados
anunciados, destaco o ofício de amas de leite. Classificada como serviço
doméstico 11, a atividade de nutriz de aluguel foi majoritariamente
desempenhada por escravizadas. Nesse sentido, saliento as possibilidades de
se pensar o gênero na escravidão, abordagem cada vez mais investigada pela
historiografia. Na capital do Império, por exemplo, a imprensa foi utilizada,
de maneira significativa, tanto por senhores que ofertavam o serviço, quanto
por famílias que buscavam uma mulher para aleitar seus bebês
ALUGA-SE uma boa escrava para ama, tendo muito bom leite, muito
sadia e do primeiro parto: esta escrava, além de servir de ama, é também
prendada e sabe perfeitamente engomar, lavar, coser, cozinhar e bem
arranjar uma casa; para ver e tratar, na rua do Bom Jardim n. 12 H
(Jornal do Commercio, 19/08/1872: 1).

Os textos publicados, além da indicação de oferta ou procura, muitas


vezes destacavam qualidades desejadas para uma ama de leite, bem como
outras habilidades que a mulher possuía, sinalizando que poderiam exercer
outro trabalho, além da amamentação e cuidado da criança. No caso do
exemplo anterior, a ama de leite, além de aleitar e cuidar do bebê, pois o
cuidado fazia parte do ofício, poderia engomar, lavar, costurar, cozinhar e
arrumar a casa, ou seja, uma vasta gama de trabalho poderia ser exercida
por aquela mulher.
Esses foram apenas alguns exemplos de quão ricos, como fonte histórica,
são os anúncios publicados na imprensa periódica do século XIX. As

11. Sobre o serviço doméstico no Rio de Janeiro ver: Souza, 2017.

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possibilidades analíticas são amplas, tanto para estudos quantitativos como
para qualitativos. Por meio deles, aspectos do cotidiano dos escravizados
são revelados e suas formas de resistência, além da perspectiva senhorial,
quais qualidades do trabalho valorizadas, as suposições acerca das ações
dos cativos etc.

Muito além dos anúncios


A escravidão marcou a sociedade oitocentista, e não somente ela, em
múltiplos aspectos. Sendo os jornais espaços públicos de discussão e formação
de opinião pública sobre o cotidiano, política, economia, dentre outros, temas
relativos à escravidão estavam sempre presentes. Para além dos anúncios,
as demais seções dos jornais – editoriais, artigos noticiosos, publicações
a pedido etc. – constituem importante fonte histórica para esse estudo.
Muitos jornais abriam espaço para a publicação de textos de leitores, nos
quais a opinião pessoal de alguém de fora da redação era tornada pública.
Contudo, uma ressalva deve ser feita, na medida em que não bastava o leitor
querer ou pagar para publicar, a prerrogativa final era do editor. Esse é um
aspecto importante ao analisar o escrito de um possível leitor, digo possível
porque ele poderia vir assim identificado e, na realidade, ter sido produzido
pelo editor, redator ou outro colaborador do jornal. Tal estratégia visava
oferecer a imagem de um espaço público aberto a perspectivas diversas ou
de mostrar que aquela opinião12, semelhante ao posicionamento político da
publicação, era mais ampla.
Periódicos de cidades portuárias poderiam trazer informações acerca
da entrada e saída de embarcações. Para o período anterior à proibição
do tráfico transatlântico de escravos, 183113, os jornais do Rio de Janeiro
publicavam avisos de chegada de navio negreiro vindos da África naquela
praça mercantil. Além desse dado, também eram apresentados os nomes

12. Consoante Marco Morel, no Brasil, foi em 1821 que a imprensa passou a ser um espaço
público no qual os debates se consolidavam e “onde ganhavam importância as leituras
privadas e individuais, permitindo a formação de opinião de caráter mais abstrato, fundada
sobre o julgamento crítico de cada cidadão-leitor e representando uma espécie de somatório
das opiniões” (2005: 204).
13. A Lei de 7 de novembro de 1831 extinguia o comércio negreiro para o Brasil; sobre a
manutenção do tráfico após a Lei, conferir: Mamigonian (2014).

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dos traficantes. Na Gazeta do Rio de Janeiro, por exemplo, havia a seção
“Notícias Marítimas”, que trazia tais informações (FLORENTINO, 2014: 118).
O cruzamento dessa com outras fontes14, pode contribuir para a compreensão
do comércio de escravos.
A política imperial acerca do tráfico negreiro marcou as páginas dos
jornais. Antes de 1831 e durante todo o período em que, a despeito da
ilegalidade, o comércio transatlântico de escravos continuou, o tema esteve
presente nas diversas seções das publicações – editoriais, seções noticiosas e
publicações a pedidos. Por meio da leitura e análise do conteúdo apresentado,
é possível compreender como a publicação se posicionou acerca da questão,
no intuito de formar uma determinada opinião pública a respeito, fosse ela
favorável ou contrária ao fim do tráfico transatlântico de escravos, pensando
antes de 1831, ou, após esse ano, colaborando, em certa medida, para o
desembarque ilegal de escravos, à revelia da lei15. No tocante ao período
entre 1831 e 1850 (fim efetivo do tráfico com a Lei Eusébio de Queirós)16,
A equação era relativamente simples: os Saquaremas defendiam o tráfico
negreiro no Parlamento; em seguida, os redatores filiados ao partido
publicavam artigos com o mesmo conteúdo; a partir deles, os leitores
de jornais – muitos deles senhores de escravos – ficavam sabendo que
tinham sinal verde para desembarcar mais cativos na costa brasileira,
uma vez que essa nova propriedade seria garantida pelos estadistas que
produziam tais discursos. (YOUSSEF, 2016: 298)

A utilização de jornais conjuntamente com outras fontes, como os


debates parlamentares, pode trazer importantes abordagens analíticas na
medida em que, não raro, muitos atuavam na imprensa como colaboradores

14. O cruzamento dessa fonte com outras para a compreensão do tráfico e o mercado
de cativos no Rio de Janeiro, ver: Florentino (2014: 114-143). Para o Recife, um estudo do
comércio de escravos realizado por meio de jornais em diálogos com outras fontes pode
ser encontrado em Carvalho (2010: parte II).
15. Análises sobre a relação entre o Estado e as classes proprietárias, no período, para a
manutenção da escravidão podem ser encontradas em Parron (2011) e Chalhoub (2012).
16. Algumas embarcações ainda foram apreendidas após a Lei n. 581, de 4 de setembro
de 1850, que reafirmava a Lei de 1831 estabelecendo medidas para repressão ao tráfico de
africanos. Uma discussão sobre o tráfico de africanos entre 1800 e 1850 e os motivos que
levaram ao comércio transatlântico de escravos ter encerrado após a Lei Eusébio de Queirós
está presente em Rodrigues (2000).

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e/ou redatores. Em termos metodológicos, o buscador por palavra da
Hemeroteca Digital pode ser empregado, todavia, a leitura do jornal em
sua totalidade é deveras interessante, visto que o tema pode estar presente
em várias partes do periódico e muitas delas possuem diálogo entre si. Por
esse método é possível compreender o perfil político da publicação, qual
opinião pública tencionava forjar sobre o tráfico negreiro, quais interesses
a proposta atendia etc.
Sobre as leis que estabeleciam o fim do tráfico transatlântico de
escravos, anteriormente citadas, e as leis emancipacionistas de 1871 e 1885,
respectivamente, Lei do Ventre Livre17 e Lei dos Sexagenários18, todas foram
amplamente noticiadas e discutidas na imprensa. Os debates parlamentares
que as precederam eram divulgados e reverberados nos jornais. Assim, por
meio da leitura das diversas seções dos jornais é possível analisar quais eram
os argumentos empregados por aqueles favoráveis e contrários à respectiva lei.
Examinar a repercussão na imprensa cotejando com os debates parlamentares
e os textos das leis é uma maneira de complexificar ainda mais a abordagem.
No caso da Lei do Ventre Livre, um aspecto fundamental a ser ressaltado
é o que corpo da mulher escravizada e sua maternidade passaram a figurar
em primeiro plano19 (ABREU, 1996; SANTOS, 2016; COWLING, 2018;
MACHADO et al., 2021), pois, até 1871, o princípio do partus sequitur ventrem
garantia a continuidade da mão de obra escrava, visto que o/a filho/a seguia
o estatuto jurídico da mãe. Nesse sentido, a perspectiva de uma história do
gênero na escravidão pode ser empreendida. A experiência das cativas foi

17. A Lei n. 2040, de 28 de setembro de 1871, estabelecia que os filhos de escravizadas nascidos
a partir dessa data seriam livres. Até os oito anos, a criança ficaria com sua mãe e após o
proprietário daquela poderia utilizar os serviços até os 21 anos ou entregar ao governo,
recebendo uma indenização. A Lei Rio Branco, como igualmente é conhecida, ademais
regulamentava o direito consuetudinário de o escravo possuir pecúlio e de comprar a sua
alforria. Sobre a Lei do Ventre, conferir Pena (2001), Chalhoub (2003: cap. 4) e Machado
et al. (2021).
18. Também denominada como Saraiva-Cotegipe, a Lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885,
determinava a alforria de escravos sexagenários, que, contudo, deveriam prestar serviços
pelo espaço de três anos ou até os 65 anos. Uma discussão sobre a lei, fundamentada,
principalmente, nos Anais da Câmara dos Deputados, pode ser encontrada em Mendonça
(1999).
19. Dois anos antes, o Decreto n. 1.695, de 15 de setembro de 1869, proibiu a separação por
venda de mãe e filhos/as, menores que 15 anos, escravos, indicando uma nova perspectiva
acerca da maternidade das escravizadas.

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marcada por serem produtores e reprodutores de trabalho, “no papel de
dupla produtora da riqueza escravista”, os princípios impostos pelos sistemas
escravistas “acabaram sublinhando a centralidade do corpo da escravizada
como o próprio locus da escravidão” (MACHADO, 2018: 337). O destaque
ao corpo e à maternidade das mulheres escravizadas também se fez presente
na imprensa nas discussões acerca da Lei e nos anos seguintes, já no bojo do
movimento abolicionista. Artigos com forte retórica sentimental (COWLING,
2018) denunciavam o abandono do rebento da mãe escravizada na roda dos
expostos20, para elas serem alugadas como amas de leite (CARULA, 2021),
como exemplifica esse trecho: “Entre nós essas amas são quase sempre
escravas; algumas são obrigadas para amamentar uma criança a ver os
seus próprios filhos expostos pelos seus possuidores” (Diario de Noticias,
6/8/1870: 1).
No tocante à atuação do movimento abolicionista, destaque especial
merece ser dado à imprensa, uma vez que ela se tornou veículo primordial
para a propagação de ideias contrárias à escravidão, simultaneamente às
ações nos salões, parlamento, tribunais, ruas e praças (ALONSO, 2015).
Em paralelo ao protagonismo da população escravizada que lutava contra
escravidão (MACHADO, 2010), integrantes do movimento abolicionista –
como Joaquim Nabuco e intelectuais negros, com destaque a Luís Gama,
André Rebouças e José do Patrocínio – dentre outras ações, divulgavam
nos jornais a crueldade da escravidão e a premente necessidade de seu
fim (AZEVEDO, 1999; ALONSO, 2015; MACHADO, 2014; PINTO, 2018;
FERREIRA, 2020).
Nessa perspectiva, a análise dos escritos publicados nos periódicos,
considerando o papel destes na divulgação e reverberação de novas ideias
e propostas sociais, bem como a trajetória intelectual desses abolicionistas e
seus outros mecanismos de ação é essencial, tanto para os estudos que buscam
compreender a imprensa abolicionista como os que objetivam compreender as
ideias abolicionistas de determinados intelectuais. Em termos metodológicos,
para o estudo de um determinado órgão de imprensa abolicionista, vale
lembrar a ressalva anterior: a leitura diária do jornal é de grande valia, posto

20. Instituição assistencialista pertencente à Santa Casa de Misericórdia, criada no período


colonial, acolhia recém-nascidos abandonados.

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que há um diálogo entre as várias partes da publicação e compreendê-lo
torna a abordagem analítica mais densa.
Na segunda metade do século XIX, principalmente no último quartel, a
difusão de ideias científicas pautadas em um discurso fortemente racializado
passou a circular com intensidade em vários espaços da sociedade brasileira,
ganhando também as páginas dos jornais (SCHWARCZ, 1987; CARULA,
2016). Muitos textos publicados, ao abordarem os mais variados temas,
incluindo os relativos à escravidão, fundamentavam a argumentação em
apropriações e ressignificações de teorias científicas que hierarquizavam a
humanidade, classificando o negro como inferior. No contexto de desagregação
do sistema escravista, com a valorização de projetos modernizadores da nação
que buscavam inserir o Brasil no rol dos considerados países civilizados
(CARULA, 2016), a discussão acerca da raça conectava-se diretamente ao
trabalho, no que se refere às possíveis opções de mão de obra que fazendeiros
teriam no pós-abolição. É possível, portanto, analisar como o discurso
racializado estava presente nos assuntos relativos à escravidão publicados
no jornal.
Destaque também deve ser dado à imprensa negra21 – “jornais criados
e mantidos por afro-brasileiros e dedicados a tratar de suas questões”
(DOMINGUES, 2018: 254). Essa imprensa, produzida por homens negros
livres e libertos tratava de questões do cotidiano, tanto dos interesses de
livres, libertos e escravizados, como o combate ao racismo (PINTO, 2010).
Muitas vezes esses homens negros eram vistos com desconfiança pela classe
senhorial, pelo receio da quebra da ordem social vigente, pois, não raro, havia
ligação entre a população livre negra e liberta com a do cativeiro. Os jornais,
escritos por negros e direcionados ao mesmo público leitor, são uma rica
fonte para o estudo do protagonismo dos afro-brasileiros no século XIX.

21. Ana Flávia Magalhães Pinto (2010) analisou os seguintes órgãos da imprensa negra: na
cidade do Rio de Janeiro, em 1833, O Homem de Côr ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito
e O Lafuente; em Recife, no ano de 1876, O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução
Social; já no pós-abolição, em São Paulo, em 1889 e reaparecendo em 1899, A Pátria – Orgam
dos Homens de Côr; e em Porto Alegre, no ano de 1892, O Exemplo. Também no Rio Grande
do Sul, na cidade de Pelotas, em 1886, circulou o Ethióphico (DOMINGUES, 2018: 254).

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Além dos textos
Em 1844, passou a circular na capital do Império do Brasil A Lanterna
Magica, Periodico Plastico-Philosofico22, primeira publicação a empregar
ilustrações de forma sistemática (LUCA, 2008: 135). Nos jornais ilustrados
que proliferaram na segunda metade do século XIX predominou o conteúdo
satírico-humorístico profundamente crítico. Nesse sentido, compreender o
que era risível no contexto é outra tarefa com a qual o pesquisador que utiliza
esse tipo de fonte enfrenta. Textos e imagens estão presentes na chamada
imprensa ilustrada e sua análise requer que ambos sejam esquadrinhados
de maneira dialógica. Para o estudo das ilustrações atenção também deve
ser dada aos aspetos artísticos que envolviam a sua produção.
Dentre os muitos títulos que circularam, podemos citar para a cidade do
Rio de Janeiro A Marmota (1849), Illustração Brasileira (1854), Brasil Illustrado
(1855), Semana Illustrada (1860), Vida Fluminense (1868), O Mosquito (1869)
e a Revista lIlustrada (1876); já para São Paulo destacavam-se O Diabo Coxo
(1864) e O Cabrião (1866). Muitos dos artistas que faziam as ilustrações eram
estrangeiros, como, por exemplo, o alemão Henrique Fleuiss, o italiano
Angelo Agostini e o português Rafael Bordalo Pinheiro (LUCA, 2008: 135).
Dentre a vasta temática que permeava as folhas, estava a escravidão.
A Semana Illustrada e a Revista Illustrada podem ser mencionadas como
jornais23 nos quais de modo crítico a escravidão esteve presente de maneira
marcante (BALABAN, 2009; PEREIRA, 2015; VASCONCELOS, 2015). A
Semana Illustrada de Fleiuss trazia em sua capa a imagem de duas personagens
que abriam as edições: O Dr. Semana e o Moleque, um
[...] jovem escravo alfabetizado, sempre pronto para auxiliar seu senhor
branco, uma figura bizarra, dotada de cabeça avantajada, coberta por

22. Lançada pelo escritor romântico Manuel de Araújo Porto-Alegre, o título da publicação
“evocava a experiência parisiense dos espetáculos ambulantes das lanternas mágicas,
aparelhos que projetavam por meio de lentes e espelhos imagens pintadas em lâminas de
vidro” (LUCA, 2008: 135).
23. Sobre as primeiras revistas no século XIX, Ana Luiza Martins salienta a dificuldade
em definir tal gênero de impresso, dada sua profunda semelhança com o jornal, “periódico
que lhe deu origem e do qual, no passado, se aproximava tanto na forma – folhas soltas e in
folio – como, por vezes, na disposição do conteúdo, isto é, seções semelhantes” (MARTINS,
2008: 43).

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vasta cabeleira e que cultivava relações com a elite e circulava livremente
pela corte, o que lhe oferecia oportunidades para observar condutas,
acompanhar fatos e comentá-los com seu leal companheiro (PEREIRA,
2015: 11).

À guisa de exemplo segue a capa uma edição de 1871, na qual é possível


observar além do diálogo entre as personagens centrais, outros aspectos do
estilo artístico do periódico.

Semana Illustrada, 19/03/1871: 1

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Já a Revista Illustrada, de Agostini, trazia de maneira acentuada a defesa
do fim da escravidão. O jornal abolicionista possuía um caráter político e
educativo que visava instruir a opinião pública (VASCONCELOS, 2018).
Juntamente com a Semana Illustrada e outros órgãos de imprensa ilustrada,
a publicação de Agostini constitui importante fonte para os estudos sobre
escravidão. A publicação de ilustrações ampliava a repercussão da mensagem
transmitida. A despeito do baixo nível de alfabetização da sociedade brasileira
oitocentista, a leitura oral de periódicos era prática difundida (BARBOSA,
2010, p. 118). Além da parte textual, a iconográfica em si consistia em
importante veículo transmissor de representações sociais e de formação
de opinião pública.

***

Como fonte ou como objeto, a imprensa periódica produzida no século


XIX é riquíssima para os estudos sobre escravidão, bem como para outros
temas. Compreender a finalidade original da produção é essencial, uma vez
que esses registros do passado não foram produzidos para serem utilizados
por historiadores. No caso dos jornais, seu papel era informar, noticiar
e polemizar, temas do cotidiano, da política, da economia, constituindo
assim importante espaço de formação de opinião pública. Além de servir de
veículo para auxiliar nas transações comerciais – por meio de seus anúncios
de compra, venda e aluguel de escravos e de outros artigos – a recuperação
da valiosa propriedade escrava. Por ser uma instituição difundida social e
espacialmente por todo país, a escravidão foi tema constante e marcante na
imprensa, tornando-a importante fonte para os pesquisadores.

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Onde estão os arquivos do abolicionismo negro?

Isadora Moura Mota | Princeton University

No início de fevereiro de 1863, os escravizados de Antônio Januário


Pinto Ferraz organizaram uma noite de batuques e tambaques na Fazenda
Atibaia. Era sábado antes do entrudo em Campinas e eles aproveitavam que
o senhor-moço que administrava os cafezais do pai havia viajado para passar
o feriado na cidade. Sob a supervisão de um feitor escravizado, o carnaval
daquele ano atraiu para Atibaia ao menos outros dezesseis cativos vindos
de propriedades vizinhas que juntos dançaram ao som da viola. Apesar da
atmosfera informal repleta de música e muita conversa, tensões típicas do
cotidiano da escravidão logo começaram a aparecer. Benedito chegou ao
batuque furioso, anunciando a quem quisesse ouvir que pretendia matar
Ferraz Júnior assim que ele retornasse de Campinas. Os motivos para tanto
estavam inscritos em seu corpo: Benedito ainda exibia as cicatrizes das vinte
e cinco chicotadas que recebera por entrar sem permissão na casa grande
de Atibaia para encontrar-se com uma mulher mulata que ali trabalhava.
Trazia nas costas as marcas legíveis da opressão racial.
Enquanto Benedito apeava de seu cavalo, os demais presentes no carnaval
correram para acalmá-lo. Ainda que concordassem ser aquilo muito castigo
para pouco crime, os escravizados de Atibaia pediram para que o companheiro
reconsiderasse seu plano. Uma insurreição já estava sendo organizada para
a Semana Santa e era preciso evitar a vigilância que certamente se seguiria

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ao assassinato de um senhor num dos centros da economia cafeeira paulista.
Benedito cedeu ao apelo e resolveu se juntar aos insurgentes, dando vivas
à liberdade e aos ingleses, de quem eles esperavam apoio militar. Para os
rebeldes de Campinas, o aprofundamento dos conflitos diplomáticos anglo-
brasileiros na década de 1860 sugeria a possibilidade de que os estrangeiros
tão vilificados pelos proprietários fossem solidários à causa da abolição
no Brasil. Assim já diziam gerações anteriores escoladas em décadas de
conflitos pelo fim do tráfico de africanos nas Américas. O momento era de
divisão entre os brancos e os insurgentes decidiram agir para conquistar a
emancipação com suas próprias mãos.
A rebelião teria rebentado não fosse o músico que tocara viola na Fazenda
Atibaia denunciar a conspiração ao delegado de Campinas. “Desde o momento
em que pela leitura das notas diplomáticas trocadas entre o ministro brasileiro
e britânico, concebi a ideia da possibilidade de uma Guerra nacional, meu
primeiro pensamento foi não tirar as vistas um só momento da nuvem negra
que há muito sombreia o horizonte brasileiro,” disse ele (QUEIROZ, 1977:171).
Em 28 de fevereiro de 1863, a Câmara Municipal se reuniu em sessão secreta
para discutir o que fazer e logo conseguiu que o Chefe de Policia de São Paulo
partisse para a região acompanhado da cavalaria do exército. Em 2 de março,
o Barão de S. João do Rio Claro acalmou a Assembleia Provincial, dizendo
não haver mais que rumores de revolta. No entanto, quando a cavalaria
chegou à Campinas no mesmo dia, a Sociedade Patriótica Campineira,
uma milícia branca encabeçada pelo juiz Vicente Ferreira da Silva Bueno,
esperava a postos para auxiliar na repressão (XAVIER, 2002:79). Era sabido
que a conspiração negra se espalhara por Belém, Amparo, e Indaiatuba, onde
cerca de trinta mil escravizados viviam.1
Em linhas gerais, esta é a história sobre a insurreição negra em Campinas
que emerge da documentação oficial trocada entre autoridades provinciais e
imperiais em 1863. Um movimento desautorizado e fadado ao fracasso. Os

1. Revista Commercial, 7 de março de 1863, p. 2. O jornal Correio Mercantil divulgou


pouco depois a volta da tranquilidade ao oeste paulista: “Com a remessa de força feita pela
presidência dissiparam-se os receios de insurreição de escravos em Campinas, e agora as
notícias de solução da questão anglo-brasileira devem fazer desaparecer quaisquer receios.
A crença que tinham alguns escravos de que os ingleses os vinham libertar é que fazia
avultar o perigo.” Correio Mercantil, 7 de Março de 1863, p. 2.

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detalhes vêm de um ofício enviado pelo juiz Silva Bueno ao presidente da
província de São Paulo, no qual ele recomenda vigilância aos fazendeiros
ainda que descarte como fantasiosos os relatos dos escravizados sobre uma
aliança com os ingleses. Esta foi, porém, apenas uma das versões sobre o que
aconteceu em 1863. Nenhuma fonte primária contém em si um significado
único e imutável a ser revelado pelo(a) historiador(a). Documentos
dependem das leituras que fazemos e seu valor como registros de uma
época existe em relação ao meio social que os preserva e analisa. Para os
estudiosos da escravidão no Brasil, o desafio metodológico é ainda mais
espinhoso: à dimensão interpretativa da prática histórica, soma-se o fato
de que as vivências de homens e mulheres escravizados sobreviveram de
forma fragmentada em arquivos criados pelos interessados em desbaratar
ataques ao sistema escravista. Juízes, delegados, comerciantes, ministros e
proprietários de gente são geralmente os autores das fontes que silenciam
as visões de mundo dos afrodescendentes ou os representam como sujeitos
incapazes de transformarem a ordem social vigente.
Nos acervos do século XIX, o ativismo negro é vigiado, criminalizado,
desmerecido e, em última instância, inextricável de pressuposições racistas.
Para ser estudado, portanto, ele requer antes de tudo que o reconheçamos
como tal e consideremos que, ironicamente, o esforço de silenciar vozes
negras também as registra. Combinando diferentes motivações e conjunturas
políticas, as rebeliões escravas fizeram parte do cotidiano brasileiro ao longo
do século XIX (REIS e GOMES, 2021, PIROLA, 2011, REIS, 2003, GOMES,
1995). Existiram como confrontos abertos, conspirações retaliadas antes de
sua eclosão ou na forma de rumores que corriam pelos campos e cidades
do império. Vividos ou imaginados, os levantes estavam imbricados num
jogo complexo de expectativas escravas e senhoriais em torno de diferentes
possibilidades de intervenção nas relações escravistas. Desejando a liberdade,
os cativos interpretavam a realidade a seu redor e construíam estratégias de
ação afinadas tanto com a efervescência política de seu tempo, quanto com
a experiência das comunidades e culturas negras formadas sob a escravidão.
Temerosos em perder o poder que exerciam sobre uma numerosa força de
trabalho, os senhores, por outro lado, combinavam de forma imperfeita
castigo e negociação, eximindo-se no controle da comunicação entre
escravizados, libertos e livres.
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Como o exemplo de 1863 demonstra, o abolicionismo atlântico se tornou
cada vez mais visível como parte da dialética que informava a politização do
cotidiano pela população negra na segunda metade do oitocentos. Informações
sobre a emancipação nas Américas circulavam amplamente através da palavra
impressa e falada, estimulando a discussão sobre o futuro da escravidão no
Brasil (MOTA 2020, MOREL, 2017, GRINBERG, 2016). Mais do que isso,
ao engajarem-se na luta contra seus senhores a partir do que sabiam sobre
os conflitos de seu tempo, os escravizados brasileiros constituíram o que
chamamos de abolicionismo. Tal realidade se reflete nas fontes primárias da
década de 1860, embora de maneira bastante desigual. Resolutos em negar
o papel dos negros como agentes de sua libertação, autoridades imperiais
descreveram a luta antiescravista como ameaça estrangeira e, sobretudo,
como fruto da influência britânica sobre o império. Na documentação que
resultou da repressão às rebeliões negras reina a desconfiança de que os
cativos agiam como massa de manobra de forasteiros ou pessoas livres, uma
vez que julgados inaptos a conceber a liberdade como projeto político mais
amplo. Cabe, então, ao(à) historiador(a), desconstruir as fontes do ponto de
vista das intencionalidades explícitas e implícitas de seus autores, do contexto
sócio-histórico de sua produção, de sua função social e de seu público-alvo.
Quando menciono o abolicionismo, é preciso salientar, refiro-me a um
movimento amplo, de longa duração e com múltiplas origens (FERREIRA,
2018, SINHA, 2016, REIS, 2000). A busca por uma campanha abolicionista
visivelmente articulada levou os(as) historiadores(as) a se concentrarem
nas décadas de 1870 e 1880, momento em que ela emergiu como o primeiro
movimento político nacional de massa do Brasil (CASTILHO, 2016, ALONSO,
2015, ALBUQUERQUE, 2009, AZEVEDO, 1987). No entanto, o abolicionismo
tomou corpo anteriormente de forma mais difusa a partir de fontes díspares
de oposição à escravidão, incluindo a resistência de escravizados, africanos
livres e libertos no terceiro quartel do século XIX. Nos documentos, o que
podemos chamar de abolicionismo negro se insinua de forma descontínua
e geralmente transcrito na terceira pessoa. No entanto, tais relatos apontam
para a existência de geografias alternativas sobre o desenrolar da abolição,
alianças políticas improváveis e interpretações da história oitocentista tecidas
no contexto de redes de comunicação subalternas espalhadas por todo o

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hemisfério (TROUILLOT, 1995, JOHNSON 2011). Para ouvi-las, precisamos
lançar mão de um modo de análise textual que conceda às epistemologias
negras a mesma legitimidade estendida às narrativas dominantes sobre a
formação nacional brasileira (FUENTES, 2016:142-43).

A correspondência administrativa como fonte histórica


Nas páginas que seguem, nos lançamos ao estudo do ofício escrito por
Vicente Ferreira da Silva Bueno (1815-1873) em fevereiro de 1863. Membro dos
quadros burocráticos da elite estatal dirigente em Campinas, ele administrava
os negócios da justiça no âmbito da comarca, onde trabalhava juntamente
aos juízes de paz dos distritos e juízes municipais dos termos.2 Era advogado
formado pela faculdade de Direito de São Paulo e serviu como delegado e
juiz em diversos municípios paulistas ao longo de sua vida. Entre 1850-51 e
1860-61, Silva Bueno foi deputado provincial pelo Partido Conservador e
viria a se tornar Chefe de Polícia de São Paulo no fim da década.3 O posto
que exercia em 1863 era bastante caro aos interesses monárquicos, já que
juízes de direito atuavam não apenas como magistrados, mas também como
articuladores do governo em conflitos e disputas políticas locais. Manter
a paz e garantir a reprodução social do poder senhorial estavam entre as
suas prioridades.
A mensagem que Silva Bueno enviou ao presidente Vicente Pires da Mata
respondia a um pedido de informações sobre as repercussões da chamada
Questão Christie entre os escravizados de Campinas. O documento integra
um dossiê guardado no Arquivo Nacional, como parte da “Série Justiça –
Gabinete do Ministro,” coleção que reúne a correspondência oficial que
passou pela mesa dos ministros da Justiça brasileiros entre 1806 e 1963. Para
o período imperial (1822-1889) que aqui abordamos, há ordens e portarias do

2. BRASIL. Código do processo criminal de primeira instância para o Império do Brasil, com
notas, nas quaes se mostrão os artigos que forão revogados, ampliados, ou alterados, seguido
da disposição provisória acerca da administração da justiça civil e da Lei de 3 de dezembro de
1841 que reforma o mesmo código. Rio de Janeiro, Typographia de Manoel José Cardoso, 1842.
3. Em1872, foi nomeado para o Tribunal da Relação no Rio de Janeiro pouco antes de falecer.
NETTO, Damuel Pfromm. Dicionário de Piracicabanos. São Paulo: IHGP, 2013; AZEVEDO,
Elciene. Orfeu De Carapinha: A Trajetória De Luiz Gama na Imperial Cidade De São Paulo.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 111.

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Gabinete remetidas para autoridades judiciais e policiais, atos administrativos,
relatórios de batidas a quilombos e memorandos sobre a administração da
justiça criminal. Este tipo de correspondência também pode ser encontrado
em outros arquivos públicos e cartórios, geralmente sob a denominação de
documentação provincial ou policial. Falamos da burocracia do dia-a-dia
de uma sociedade escravista.
Ofícios como o de Silva Bueno repetem fórmulas e técnicas típicas
da padronização da linguagem judiciária.4 O juiz abre sua mensagem, por
exemplo, com uma reverência ao “ilustríssimo e excelentíssimo” presidente
de São Paulo e assina como “amigo atencioso, criado e obrigado” daquela
autoridade. Ao documento, juntam-se outros semelhantes escritos no
calor dos acontecimentos para justificar a resposta militarizada do Estado
ao ativismo negro. Dentre eles, um ofício do comandante do quartel do
destacamento da cidade de Campinas, João Carlos Nogueira de Bauman, e
outro do suplente de delegado Francisco Antônio Pinto. Sugerimos adiante
que, apesar do caráter formal, esta documentação suscita interpretações
alternativas quando abordada do ponto de vista dos escravizados. Os ofícios
contêm informações sobre as estratégias de insurgentes, seus nomes, idades,
origem, e não raro paráfrases de seus depoimentos e acareações. Uma vez
retirados do âmbito da segurança pública, eles podem muito bem constituir
arquivos para o estudo do abolicionismo negro no Brasil. São fontes preciosas
especialmente quando, como no caso de Campinas, um processo criminal
não foi instaurado para investigar a tentativa de insurreição.
A análise aqui apresentada se baseia em questões sugeridas pelo campo
da História Social dentro de uma abordagem transnacional. Nas entrelinhas
do discurso oficial, buscaremos significados do cotidiano, das identidades
e das culturas cativas, procurando avançar na compreensão do mundo que
os escravizados criaram para si.5 Revoltas como a de 1863 podem também

4. PINSKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tânia Regina de (org.). O historiador e suas fontes.
São Paulo: Contexto, 2009.
5. Para alguns exemplos, ver, dentre outros: CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão:
Ilegalidade e Costume no Brasil Oitocentista. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012;
LARA, Sílvia H. e MENDONÇA, Joseli, eds. Direitos e Justiças: Capítulos de História Social
do Direito no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2006; SLENES, Robert W. Na senzala,
uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século
XIX. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999.

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ser vistas como iterações de uma luta transatlântica contra a escravidão
liderada por negros que entendiam que seu destino estava entrelaçado com
a sorte dos demais descendentes de africanos em diáspora. Uma história
transnacional, portanto, é aquela que procura o global no local e vice-versa,
reconhecendo que, para escravizados sem direito à cidadania, a liberdade não
era necessariamente sinônimo do anseio de pertencer à nação. Propomos,
portanto, uma incursão pela história imperial do Brasil pensada entre cenários
regionais, nacionais e atlânticos.6

Uma conspiração escrava no rastro da Questão Christie


Em 23 de fevereiro de 1863, Vicente Ferreira da Silva Bueno explicou
com minúcia a repercussão em Campinas da recente represália naval inglesa
no Rio de Janeiro. Havia décadas que Brasil e Grã-Bretanha brigavam sobre
o processo de extinção do tráfico atlântico e o conflito atingiu seu ápice
entre 1862 e 1863, resultando na suspensão de relações diplomáticas até
1865. Em dezembro de 1862, o representante da legação britânica na Corte,
William D. Christie, enviou um ultimato ao governo de D. Pedro II. Ele exigia
indenização e pedido oficial de desculpa em função do naufrágio da barca
inglesa Prince of Wales no Albardão, Rio Grande do Sul, e da prisão de três
marinheiros ingleses na capital imperial por desordem. Christie culpava os
brasileiros pelo desaparecimento de parte da tripulação do Prince of Wales
e considerava escandalosa a prisão de súditos ingleses por um país que se
esquivava de cumprir tratados bilaterais desde sua independência.7 Quando
o Marquês de Abrantes, ministro dos Negócios Exteriores, se recusou a
conceder a reparação, Christie ordenou o bloqueio do porto do Rio de
Janeiro. Na primeira semana de 1863, a marinha britânica capturou cinco
navios mercantes brasileiros em águas nacionais, suscitando em todo o
Brasil rumores de que uma guerra anglo-brasileira estava para começar.8

6. SCOTT, Julius. The Common Wind: Currents of Afro-American Currents in the Age of
the Haitian Revolution London: Verso, 2018; SEIGEL, Micol. “Beyond Compare: Historical
Method after the Transnational Turn.” Radical History Review 91, Winter 2005, pp. 62-90.
7. CHRISTIE, William D. Notes on Brazilian Questions. London, Cambridge: Macmillan
and co. 1865.
8. GRAHAM, Richard. “Os Fundamentos da Ruptura de Relações Diplomáticas entre o
Brasil e a Grã-Bretanha em 1863. A ‘Questão Christie.” Revista de História 24: 49 (Jan–March
1962), 117–37 and 379–400.

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Apesar da lei Eusébio de Queirós ter estancado aos poucos o tráfico
após 1850, as tensões diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha continuaram
vivas por muitos anos. Em questão, estavam o contrabando de gente e o
status dos africanos livres, homens, mulheres e crianças traficados em navios
negreiros mas emancipados por intervenção de cruzeiros britânicos ou da
legislação brasileira desde 1831. Os africanos livres ocupavam uma posição
liminar na sociedade imperial e, embora tivessem direito à emancipação após
cumprir catorze anos de serviços ao Estado ou a arrematantes particulares,
sofriam rotineiramente com maus-tratos ou com a escravização. Diplomatas
britânicos como William D. Christie tornaram pública a discussão sobre o
tema que colocava em xeque tanto a posição diplomática do Brasil quanto
a eficácia da política antiescravista britânica.
Para o governo imperial, a continuidade da escravidão em meio ao
avanço global da emancipação tornava a Grã-Bretanha, seu principal parceiro
comercial e declarada potência abolicionista, também o seu maior adversário
geopolítico.9 No ofício de sete páginas que escreveu à mão, Silva Bueno fez
menção direta ao assunto que os contemporâneos chamavam de “questão
anglo-brasileira,” mais tarde imortalizada por Victor Meirelles em uma
pintura como “Questão Christie.”10 Silva Bueno caracterizou o bloqueio
naval de 1863 tal como o pintor o faria em 1864, isto é, como uma afronta
britânica à soberania brasileira. O nacionalismo ferido levara até o imperador

9. MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos Livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil.


São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
10. Em 1864, Victor Meirelles, pintor formado na Imperial Academia de Belas Artes,
completou o seu completou o seu “Estudo para Questão Christie,” óleo em tela aparentemente
encomendado pelo Marquês de Abrantes. MAMIGONIAN, Beatriz. Building the Nation,
Selecting Memories: Victor Meireles, the Christie Affair and Brazilian Slavery in the 1860s.”
In: COTTIAS, Myriam and ROSSIGNOL, Marie-Jeanne. Distant Ripples of the British
Abolitionist Wave: Africa, Asia, and the Americas. Trenton, NJ: Africa World Press, 2017.
Sobre a Questão Christie, ver: MANCHESTER, Alan. British Preeminence in Brazil: Its Rise
and Decline. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1933; BETHELL, Leslie. The
Abolition of the Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 1807-
1869. Cambridge [Eng.]: University Press, 1970; YOUSSEF, Alain El. “Questão Christie em
perspectiva global: pressão britânica, Guerra Civil norte-americana e o início da crise da
escravidão brasileira (1860-1864).” Rev. Hist. (São Paulo), n. 177 (2018), pp. 1-26; RYAN, Maeve.
“British Antislavery Diplomacy and Liberated African Rights as an International Issue.” In:
ANDERSON, Richard and LOVEJOY, Henry B., eds. Liberated Africans and the Abolition
of the Slave Trade, 1807-1896. Rochester, NY: University of Rochester Press, 2020, 215-37.

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Pedro II às ruas do Rio de Janeiro para assegurar súditos indignados de
“que ele deixaria de ser imperador do Brasil no dia em que não pudesse
mais defender com dignidade a honra nacional e a independência de sua
pátria.”11 Convertida em evento patriótico, a crise diplomática estimulou o
apoio popular ao governo imperial, que começava a preparar o país para a
eventualidade de um confronto armado com a Grã-Bretanha. A missiva de
Silva Bueno oferecia um claro exemplo da corrida bélica: cidadãos livres de
Campinas criaram uma milícia para coadjuvar a atuação de tropas militares
e da Guarda nacional em 1863. Os inimigos, porém, eram tanto internos
quanto externos.
O magistrado assim iniciou seu relato no tom legalista típico da
correspondência trocada com o Ministério da Justiça:
“As ocorrências no Rio de Janeiro com o Ministro Inglês, a probabilidade
de um rompimento que temos do exíguo número de praças de linha, e do
Corpo de Permanentes que guarnecem esta Província, a impossibilidade
em que se veria então o Governo de guarnecer um município da ordem
deste, fez com que criássemos a Sociedade Patriótica Campineira (...)”

Criada a Sociedade começaram a aparecer boatos aqui e ali respeito


da escravatura e naquela venda desta, e daquela estrada eles diziam isto e
aquilo e nas pontes, aguadas e chafarizes onde de costume eles se ajuntam, e
conversam ouvia-se (dizem) o que quer que fosse a respeito de levantes, de
Ingleses & & pois é fato que ou contam com a proteção destes, ou ao menos
há fundado motivo para recear alguma manifestação hostil por parte dos
escravos caso se dê o rompimento com a Inglaterra. Estes boatos, pois, embora
sem maior consistência, pois que eram destacados ouvidos aqui e ali por este
e por aquele que muitas vezes não merecia crédito, e que nem dava razão
suficiente de sua ciência, fez com que alguns sócios da Sociedade Patriótica
requeressem ao Diretório dela a convocação da Sociedade para lançar-se
mão dos meios de tornar práticos os fins da Sociedade = a coadjuvação `as
autoridades =. & Um sócio apresentou uma indicação escrita para que a
Sociedade criasse uma guarda urbana de 50 a 100 fardada, armada, equipada

11. Diário do Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1863, p. 1.

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e paga pela Sociedade e um outro indicou da mesma maneira que se criasse
um batalhão de voluntários armados...”12
Seguindo a lógica daqueles que apoiavam o escravismo, Silva Bueno
discorreu primeiro sobre a importância da segurança pública para só então
revelar a razão tácita por trás da formação da milícia. O magistrado queixava-
se de que os escravizados trocavam ideias “a respeito de levantes, de Ingleses
& &” e que esperavam contar com a proteção destes. Ou seja, Bueno estava à
frente de um grupo que se armava para enfrentar escravizados que planejavam
se insurgir.
Silva Bueno defendia, no entanto, que a Sociedade Patriótica Campineira
permanecesse numa posição secundária. Ela deveria contribuir para
ampliar, fardar e municiar a Guarda Nacional, já que não havia fundos para
propriamente equipar o corpo de voluntários. Os cidadãos de Campinas
assim o fizeram, pois “como esses Guardas Nacionais somente vencendo
o soldo e etape se negam ao serviço e mandam ou fazem-se substituir por
tortos, aleijados, idiotas, enfim, por quem acham para lhe fazer o serviço
bem barato,” era melhor que a Sociedade completasse o que dava o governo
com “ uma gratificação de quinze a vinte mil réis por mês a cada um, que
se mandasse concertar o armamento nacional aqui existente que a maior
parte estava inútil, e que comprasse materiais para cartuchame que nenhum
existia (...).” O magistrado ecoava, assim, iniciativas semelhantes espalhadas
pelo Brasil. Em 1863, os arsenais de guerra passaram a produzir mais balas,
empregados públicos circularam subscrições a fim de juntar dinheiro para o
governo imperial e muitos foram os batalhões que como a Sociedade Patriótica
Campineira se organizaram nominalmente para enfrentar a Grã-Bretanha.13
A preocupação de Silva Bueno com os escravizados tinha raízes
concretas. Em Campinas, corriam boatos de que uma insurreição estava
de fato para irromper durante a Semana Santa, combinando a violência do
cotidiano escravista com o abolicionismo britânico:

12. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Seção Justiça (SJ), IJ1-518, 23 de fevereiro
de 1863. Cópia do ofício de Vicente Ferreira da Silva Bueno para o presidente da província
de São Paulo, Vicente Pires da Matta.
13. Diversas milícias criadas em 1863 acabaram ativas somente quando declarada a Guerra
do Paraguai dois anos mais tarde. Para exemplos nas províncias do Rio de Janeiro e São
Paulo, ver: Correio Paulistano, 18 Jan. 1863, 3; Diário do Rio de Janeiro, 6 Jan. 1863, 1.

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“Um filho do Snr Antônio Januário Pinto Ferraz, que toma conta da
fazenda deste castigou um escravo da casa, tido por fiel, estimado &
e castigou com 25 açoites, porque este escravo arrombou uma janela
da casa da residência, e nela penetrou para fins libidinosos com uma
mulata recolhida &&.

Este castigo parece que foi pouco, em vez de corrigir exasperou ao tal
escravo, vindo o Snr Ferraz Junior e sua Senhora para a Cidade para
assistir o Carnaval deixou a fazenda entregue a um feitor que também
é escravo da mesma.

Estes escravos entenderam dever se revestir, digo, se divertir uma noite


com batuques, tambaques &&, reuniram 16 escravos de uma fazenda
vizinha, e alguns de outras && e aí espiritualizados, e por isso mais
expansivos em suas conversas, aquele castigado de nome Benedito
revelou o plano que tinha concebido de assassinar ao Snr Ferraz Junior
quando voltasse da Cidade, e logo ao apear-se do cavalo os outros
escravos tiraram-lhe isso da cabeça dizendo-lhe que isso ia destruir o
plano da Semana Santa, continuaram nesta conversa e deram vivas aos
Ingleses, `a liberdade &&. Toda esta conversa ou ao menos a 1a parte
dela (a pretensão do assassinato) foi ouvida por um Carapina que lá
estava na súcia tocando violão, digo, viola, este revelou isto a alguém,
e este alguém ao Delegado.

Este deu providências precisas, tem mandado vir diversos escravos, e das
fazendas indigitadas e indigitados uns por outros, tem os interrogado,
e um então revelou que o plano concertado era pela Semana Santa
levantarem-se, baterem nas fazendas, saquearem o dinheiro e virem
incorporados bater na Cidade, visto que contavam certos, nesse tempo
com os Ingleses...”14

Neste trecho, Silva Bueno nos oferece um exemplo típico da retórica


oficial sobre o ativismo negro no século XIX. A conspiração aparece como
reação exasperada dos insurgentes ao castigo e fruto de ideias estapafúrdias
trocadas por eles em momento de descontração. Em registro carregado de

14. ANRJ, SJ, IJ1-518, 23 de fevereiro de 1863.

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desrespeito às mentes e corpos negros, o juiz descreve o levante na Fazenda
Atibaia como produto do desejo de vingança dos escravizados contra os
brancos, prontos como estariam para lançarem-se ao roubo e à depredação
da propriedade privada. Se Silva Bueno recupera fragmentos dos circuitos
de informação entre os envolvidos, é somente para pleitear junto ao governo
provincial o envio de mais tropas para Campinas. Sua narrativa constrói os
insurgentes como pessoas inebriadas e crédulas, afeitas a serem influenciadas
por emissários estrangeiros.
O ofício termina com uma explicação um tanto tortuosa sobre a
necessidade de se salvaguardar Campinas de um levante negro que o juiz
considerava improvável. “Ainda se interrogam escravos, pessoas livres,
camaradas, e agregados indigitados por escravos, e unicamente noto a
repugnância que os escravos mostram em contar o que conversavam. Disse
um deles que o plano é geral, e que qualquer escravo que se pegue sabe de
tudo.” Silva Bueno se mostrava reticente porque as confissões dos insurgentes
havia disso obtidas “debaixo de castigos”:
“Com estes boatos, revelações && alguns espíritos estão
impressionadíssimos, atemorizados &. Eu, porém, declaro a V. Exa.
que não ligo importância alguma a isto, e nem creio que haja plano
concertado de insurreição geral, e nem mesmo parcial, e por isso entendo
que não estamos e nem estivemos sob vulcão algum. Essa revelação
da Semana Santa foi extorquida debaixo de castigos, e por isso para
mim desmerece de valor, entretanto como continuam as indagações
me aguardo para moralizar mais tarde sobre o que houver. Algumas
providências já tenho indicado ao Delegado por exemplo recomendar
aos fazendeiros que redobrem de vigilância em suas fazendas, que não
consintam comunicação de escravos, que acautelem toda a ferramenta
da lavoura, que tomem todo o armamento que por ventura os escravos
tenham, que não deixem as fazendas entregues a escravos pela Semana
Santa, que não consintam em suas fazendas estes latoeiros, mascates,
joalheiros & que podem bem ser emissários, pois o Governo Inglês não
há de mandar Ingleses. Julgo também que pela Repartição da Polícia
deve ser recomendado aos Delegados destes Municípios confinantes

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que recomendem a mesma coisa, e que tomem todas as cautelas, e
por último entendo, e peço a V. Exa. que aumente este destacamento
ao menos com dez praças de Permanentes ou de 1a Linha até depois
da Semana Santa. Não porque me convença da iminência do perigo
e sim por medida de cautela para o policiamento da Cidade, e para
tranquilidade dos espíritos. Isto é indispensável por não se saber quando
passará aqui o destacamento de Batatais.”15

Como vemos, há aqui uma contradição fundamental: se não havia perigo


de rebelião, se ninguém deveria se fiar naquilo que os rebeldes diziam sobre
os ingleses, para que armar e proteger o município de Campinas? Silva Bueno
destacou a “repugnância que os escravos demonstravam ao relatar o que
falavam”, mas mapeou suas conversas; culpou agentes britânicos por incitar
a rebelião, mas admitiu que “os ingleses” eram um elemento importante
da cultura política escrava em Campinas. Tal paradoxo atravessa toda a
documentação sobre a escravidão oitocentista, revelando a presença do que
hoje chamamos de racismo estrutural na construção das fontes primárias.
Motivados pelo medo, autoridades recorriam à repressão preventiva ao
menor sinal de agitação negra; guiados pela crença na inferioridade racial
dos afrodescendentes, descartavam simultaneamente seus projetos como
inconsequentes. Ao(À) historiador(a), no entanto, cabe considerar outras
perspectivas.
Silva Bueno assistiu ao uso de tortura na cadeia de Campinas. A presença
de autoridades e senhores era comum em inquéritos sobre insurreição,
aumentando mais ainda a pressão sobre os escravizados para que confessassem
a “verdade” que as elites queriam ouvir.16 Os depoimentos de insurgentes,
portanto, sofriam diferentes níveis de mediação antes de ganharem espaço
na prateleira dos arquivos judiciais. Amarrados, açoitados ou ameaçados
com duras sentenças, muitos sugeriam nomes de “incitadores” às autoridades

15. Ibid.
16. Durante o império, uma legislação específica regulava a aplicação de castigos físicos
aos escravizados. O Código Criminal de 1830 determinava que açoites e ferros eram penas
exclusivas para eles, além das penas de gales e morte. GRINBERG, Keila. “Castigos físicos
e legislação.” In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (Org.). Dicionário da escravidão
e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 144-148.

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policiais, enquanto outros criavam explicações alternativas que mais
escondiam do que revelavam suas estratégias de luta. As perguntas que lhes
eram feitas geralmente seguiam um script ditado pelo objetivo de os enquadrar
no crime de que eram acusados. Em seu artigo 113, o Código Criminal de 1830
definia o crime de insurreição como aquele cometido por escravos a fim de
haver sua liberdade através da força, exigindo a comprovação do envolvimento
de vinte ou mais participantes, sua manifestação “por atos exteriores” e início
da execução. No caso de uma tentativa de insurreição, se requeria prova
de que o movimento não teve lugar em virtude de circunstâncias fora do
controle dos acusados.17 Seja como for, ao final dos interrogatórios, escrivães –
e veja-se aqui a importância de reconhecer fontes jurídicas oitocentistas
como fruto da perspectiva masculina – transcreviam os testemunhos dos
escravizados em ofícios que eram, então, enviados a diversas autoridades.
O uso de tortura e intimidação já levou muitos estudiosos a rejeitarem os
testemunhos de insurgentes negros como indignos de confiança. Mas esta é a
natureza dos arquivos da escravidão: repletos de violência, racismo e silêncios;
um lugar no qual vozes negras aparecem filtradas pelo exercício da supremacia
branca. Se entendemos o processo de construção de tais testemunhos, porém,
podemos vislumbrar em suas entrelinhas como os rebeldes de Campinas
atuaram como produtores de projetos abolicionistas. Embora não tivessem
subjetividade jurídica ou política nos termos da legislação oitocentista, os
escravizados foram os primeiros a lutar pela eliminação imediata do cativeiro
no Brasil. Na seção que segue, discutiremos como uma leitura crítica do
ofício de Silva Bueno pode dizer algo sobre os significados da liberdade
negra durante o império.

Os arquivos do abolicionismo negro


Na narrativa triunfante de Silva Bueno sobre a conspiração negra de
Campinas, a presunção de invencibilidade dos senhores nega a natureza
indeterminada da história. Em fevereiro de 1863, tudo concorria para o sucesso
da rebelião: o Brasil estava a ponto de entrar em guerra com a Grã-Bretanha,
o governo tinha poucos recursos para policiar as províncias, o povo estava nas

17. Código Criminal do Império do Brasil. Recife: Typographia Universal, 1858.

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ruas e os escravizados claramente entendiam que a questão anglo-brasileira
ecoava a crise do escravismo no Atlântico. Em outras palavras, comunidades
negras desenvolveram estratégias sólidas de resistência em diálogo com o que
chamamos hoje de relações internacionais e com as contradições gritantes
que marcavam o Brasil imperial. Do discurso hermético do juiz, transborda
uma tradição oral negra que elevava a Grã-Bretanha ao status de aliada dos
escravizados pela emancipação.
O abolicionismo deve muito aos escravizados no Brasil. Sua luta contínua
contra o regime escravista mais duradouro do hemisfério ocidental produziu
uma crítica do poder senhorial que ainda precisa ser incorporada à história
da abolição nas Américas. Cativos em um país que na década de 1830 era
a única nação independente a se envolver extensivamente no comércio
transatlântico de africanos, afrodescendentes elaboraram suas visões de
liberdade ao colocar as contradições políticas do século XIX num contexto
hemisférico. No Brasil imperial, o contrabando de pessoas coexistiu com a
proibição do tráfico desde 1831, o avanço do abolicionismo atlântico esbarrou
na supremacia da elite política conservadora e mesmo os liberais que se
posicionavam a favor da abolição gradual falavam em prolongar o cativeiro
até o século XX. Assim, entre escravizados e libertos brasileiros, grassava
desde o início dos 1800s a crença de que a escravidão brasileira só seria
destruída por meio de uma guerra emancipatória com apoio internacional.
Se os negros já eram livres em outras partes do continente e se o tráfico
havia de terminar, imaginavam eles, era plausível supor que a abolição não
tardaria no Brasil.
Falar das lutas escravas pela liberdade – por exemplo, das rebeliões e
quilombos – como parte do movimento abolicionista, porém, não é uma
proposição óbvia. Mesmo no campo da história social da escravidão, tal
asserção requer um posicionamento metodológico: o que chamamos de
abolicionismo, onde e quando ocorre, e quem são seus protagonistas?
Sugiro que o pensamento abolicionista pode ser visto também como uma
forma de discurso político negro gerado ainda no interior da escravidão,
um discurso que excede as fontes de arquivo criadas para minar tudo o
que estava além dos modos aceitáveis de participação popular no Brasil
imperial. Ao encontrarem-se face a face como nas fontes de água de Campinas,

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escravizados e seus aliados partilharam anseios de um futuro radicalmente
diferente para si mesmos e discutiram os acontecimentos históricos de seu
tempo. Estas eram práticas abolicionistas ancoradas no mundo social e
intelectual dos escravizados, assim como práticas de letramento, a evocação
de lutas abolicionistas em outras partes do mundo e a promessa de uma
reversão das hierarquias raciais no Brasil.
O que Silva Bueno descarta em 1863 é, dentro desta perspectiva, o cerne
da contribuição dos insurgentes para uma reinterpretação dos significados
da Questão Christie e do abolicionismo inglês em geral. Ao imaginar que o
bloqueio naval no Rio indicava a possibilidade de uma aliança militar com
a Inglaterra, os escravizados expandiram tanto os significados da crise do
escravismo no Brasil quanto o alcance da política externa inglesa que, de
pressão antitráfico, ganhou cunho abolicionista. Eles sabiam, no entanto, que
os britânicos não eram um bloco homogêneo e imagens de uma potência
antiescravista coexistiam com experiências de escravização em mãos
estrangeiras. Lembremos que a Inglaterra jamais deixou de contribuir para
a reprodução do trabalho escravo no Brasil. Comerciantes com conexões
em Birmingham, Leeds, Liverpool e Manchester abasteceram as viagens
de traficantes brasileiros com mercadorias destinadas especificamente ao
mercado africano; bancos britânicos autorizaram todo tipo de transação
econômica usando escravizados como fiança e casas comerciais com sede
na Inglaterra distribuíram a maior parte da produção agrícola brasileira no
exterior, exportando pelo menos metade do café colhido por escravizados
para os Estados Unidos e a Europa. Além disso, apesar da defesa dos direitos
dos africanos livres, a Grã-Bretanha desprezou as reivindicações africanas
por emancipação incondicional e participou ativamente da construção de
novas formas de trabalho coercitivo através de esquemas de aprendizagem
no Brasil e no Caribe.18

18. BETHELL, Leslie. “O Brasil no século XIX: parte do ‘império informal britânico’ In:
CARVALHO, José Murilo de e CAMPOS, Adriana Pereira, eds. Perspectivas da cidadania
no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, 15-36; “O Brasil no mundo.”
In: BOSI, Alfredo et al, ed. A construção nacional: 1830-1889 – HISTÓRIA DO BRASIL
NAÇÃO – VOL. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, pp. 131-77; MULHERN, Joseph M. “After
1833: British Entanglement with Brazilian Slavery.” PhD Diss., Durham University, 2018;
EVANS, Chris. “Brazilian Gold, Cuban Copper and the Final Frontier of British Anti-Slavery.”

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De qualquer maneira, a negação da autonomia epistemológica dos negros
que marca os arquivos imperiais obscureceu o fato de que o pensamento
abolicionista se desenvolveu toda vez que afrodescendentes se reuniram para
compartilhar ideias e ressignificar notícias jornalísticas, atos de governo e
até mesmo lutas trabalhistas diferentes das suas. Em 1863, não muito longe
de Campinas, por exemplo, a Questão Christie inspirou outra conspiração
negra na Fazenda Ibicaba, em Limeira. Naquela que foi uma das primeiras
experiências do Brasil com mão de obra livre, escravizados se insurgiram por
ouvir imigrantes alemães darem vivas aos ingleses, aconselhando-os a parar
de trabalhar para o Senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro já que
os estrangeiros logo viriam libertá-los.19 Seja em Campinas ou Limeira, é o
movimento heurístico de transferir vozes negras do âmbito da criminalidade
para o do político que constitui os arquivos do abolicionismo negro.
O diálogo sedicioso associado aos ingleses cumpriu em São Paulo funções
específicas em 1863, assim como o fazia em outras partes das Américas: ele
definia lealdades, termos de alianças com os brancos e o terreno geopolítico
mais amplo da luta antiescravista. Em 1823, centenas de escravizados se
rebelaram na colônia inglesa de Demerara por acreditarem que os fazendeiros
locais se recusavam a obedecer às ordens britânicas para a sua emancipação.
Da mesma forma, em 1844, escravizados cubanos protagonizaram a série
de levantes conhecidos como La Escalera após ouvirem que “os ingleses
estavam vindo em navios para fazer guerra aos brancos desta terra”. Em 1861,
o liberto J. H. Banks reiterou que os negros nos Estados Unidos “ouvem dizer
que, embora a Inglaterra tenha sido a primeira a introduzir a escravidão na
América, ela a aboliu nas Índias Ocidentais; eles, portanto, a consideram a
amiga da raça negra. É uma opinião comum entre os escravos que a escravidão

Slavery & Abolition 34.1 (2013), pp. 118-134; GUENTHER, L. “Merchants, Abolitionists and
Slave Traders: Brazilian Perceptions of the British in Bahia, 1808-1850.” In: KRAAY, Hendrik,
ed. Negotiating Identities in Modern Latin America. Calgary: University of Calgary Press,
2007, pp. 93-114; MAMIGONIAN, Beatriz. “In the Name of Freedom: Slave Trade Abolition,
the Law and the Brazilian Branch of the African Emigration Scheme (Brazil–British West
Indies, 1830s–1850s). Slavery and Abolition 30:1 (March 2009), pp. 41–66.
19. APESP, Secretaria de Polícia da Província, cx.2.500. Luis José de Sampaio to Vicente
Pires da Matta, 17 de março de 1863.

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será encerrada por uma guerra entre a Inglaterra e os Estados Unidos.”20
Como vemos, os britânicos integravam as gramáticas políticas alternativas
criadas por escravizados nas mais diferentes partes da diáspora africana. Em
si mesmo um ato de construção do mundo, o internacionalismo permitiu
que afrodescendentes se posicionassem como agentes a definir a tônica do
abolicionismo atlântico ao longo do século XIX.

Considerações finais
A documentação histórica é sempre um registro de várias vozes. Apesar
do tom dominante dos autores e do poder de fala que lhes é concedido por
instituições e arquivos, estes são interlocutores numa área de disputa narrativa
e política. Para estudar a história do ativismo negro no Brasil, é preciso ter
clareza sobre as questões que, como historiadores, levamos ao encontro de
agentes históricos e fontes: quais trajetórias queremos ressaltar? Quem fala
e quem silencia? Como lidar com o não-dito? Só então uma faceta ainda
pouco explorada do abolicionismo brasileiro começa a emergir, qual seja,
aquela protagonizada por afrodescendentes que cruzaram sua luta contra a
violência do cativeiro com a política internacional do século XIX.
Na burocracia da repressão estatal ao ativismo escravo, negros são
representados como seres desprovidos de consciência política e sujeitos à
“incitação” por agentes externos. A linguagem das fontes é, sobretudo, aquela
da pacificação em nome da ordem própria de uma sociedade escravista.
Dependendo dos fluxos e refluxos da história do Atlântico, as autoridades
brasileiras acusaram haitianos, franceses, alemães, norte-americanos, mas,
acima de tudo, os britânicos de levarem os escravizados à insurreição. Do
ponto de vista do Estado, o abolicionismo era fenômeno estrangeiro e

20. COSTA, Emilia Viotti da. Crowns of Glory, Tears of Blood: The Dememara Slave Rebellion
of 1823. Oxford: Oxford University Press, 1994; FINCH, Aisha K. Rethinking Slave Rebellion
in Cuba: La Escalera and the Insurgencies of 1841-1844. (Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 2015, p. 137; PENNINGTON, J. W. C., ed. A Narrative of Events of the Life of
J. H. Banks, an Escaped Slave, from the Cotton State, Alabama, in America. Liverpool: M.
Rourke Printer, 1861. For the British colonies, see also: MATTHEWS, Gelien. Caribbean
Slave Revolts and the British Abolitionist Movement. Baton Rouge: Louisiana University
Press, 2006; BECKLES, Hilary. “The Wilberforce Song: How Enslaved Caribbean Blacks
Heard British Abolitionists,” Parliamentary History xxvi, Supplement (2007), pp. 113-126.

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atividade para homens livres. Em 1863, o juiz Silva Bueno reproduziu tal
discurso, enfatizando a necessidade de vedar o acesso britânico às fazendas,
o que não dissuadiu os escravizados de Campinas a desenvolverem uma
interpretação própria sobre a Questão Christie como mostra da solidariedade
britânica à causa da libertação negra.
Silva Bueno levaria sua experiência como miliciano e juiz envolvido
no combate a revoltas escravas para o gabinete de Chefe de Polícia de São
Paulo, onde despediu Luiz Gama em 18 de novembro de 1869. O abolicionista
assim transcreveu e grifou a portaria assinada por Silva Bueno:
“(...) Chegando oficialmente ao meu conhecimento (por comunicação
oficiosa que lhe fizera o presidente da província) a maneira inconveniente
e desrespeitosa com a qual o amanuense da secretaria de polícia Luiz
Gonzaga Pinto da Gama tem tratado ao senhor juiz municipal suplente
em exercício, do termo desta capital, em requerimentos sobre não
verificados direitos dos escravos, que, subtraindo-se ao poder de seus
senhores encontram apoio no mesmo amanuense, e sendo por isso
inconveniente a sua conservação na repartição da polícia, demito-o
do lugar de amanuense. (!!!)”21

Silva Bueno qualificou as fugas escravas como boicote à autoridade


senhorial e por isso exonerou Luiz Gama por prestar auxílio aos que, como
os rebeldes de Campinas, buscavam sua liberdade. Na trajetória desses dois
homens, se cruzaram dois fenômenos importantes da década de 1860: o
abolicionismo internacionalista de insurgentes escravizados e o ativismo
legal do ex-escravo que viria a ser um dos mais conhecidos abolicionistas
do Brasil. É este o tipo de história do abolicionismo negro que o trabalho
crítico com a documentação oficial nos permite trazer à tona.

21. Correio Paulistano, 20 de novembro de 1869. Apud, Azevedo, Orfeu de Carapinha, p. 111.

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Fontes:
ANRJ, SJ, IJ1-518, 23 de fevereiro de 1863.
APESP, Secretaria de Polícia da Província, cx.2.500. Luis José de Sampaio
to Vicente Pires da Matta, 17 de março de 1863.
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Seção Justiça (SJ), IJ1-518, 23 de
fevereiro de 1863. Cópia do ofício de Vicente Ferreira da Silva Bueno para o
presidente da província de São Paulo, Vicente Pires da Matta.
BRASIL. Código do processo criminal de primeira instância para o Império
do Brasil, com notas, nas quaes se mostrão os artigos que forão revogados,
ampliados, ou alterados, seguido da disposição provisória acerca da
administração da justiça civil e da Lei de 3 de dezembro de 1841 que reforma
o mesmo código. Rio de Janeiro, Typographia de Manoel José Cardoso, 1842.
CHRISTIE, William D. Notes on Brazilian Questions. London, Cambridge:
Macmillan and co. 1865.
Código Criminal do Império do Brasil. Recife: Typographia Universal, 1858.
Correio Paulistano, 20 de novembro de 1869. Apud, Azevedo, Orfeu de
Carapinha.
Diário do Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1863.
O Código Criminal de 1830 determinava que açoites e ferros eram penas
exclusivas para eles, além das penas de galés e morte.
PENNINGTON, J. W. C., ed. A Narrative of Events of the Life of J. H. Banks,
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192 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


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As sociedades mutualistas e os seus registros
escritos: análise formal e social das atas de suas
reuniões ordinárias e extraordinárias

Marcelo Mac Cord | Universidade Federal Fluminense

Há várias maneiras de se pesquisar, de se pensar e de se escrever História,


mas, independentemente das escolhas feitas pelos historiadores, os critérios de
suas investigações devem estar apoiados em trabalho metódico, disciplinado
e criterioso. Estes cuidados são exigidos desde a elaboração do projeto de
pesquisa, passando por sua execução, até a entrega do trabalho final de
graduação ou de pós-graduação. A legitimidade e o reconhecimento destes
últimos, pela comunidade acadêmica, passam pelo respeito ao rigor científico
e à historiografia. Atentos a isto, por exemplo, no conjunto das formas de
se pesquisar, de se pensar e de se escrever História Social, dois elementos
ganham evidência: o indispensável suporte empírico da investigação, ou
seja, o esforço interpretativo apoiado em denso corpus documental, e as
análises fundamentadas nas questões de classe e suas interseccionalidades.
Apesar da assertividade da sentença, “empiria” e “classe” são categorias
problemáticas e em disputa entre os próprios historiadores sociais, o que
torna tanto o trabalho destes especialistas quanto o seu campo de estudos
ainda mais complexos.
O capítulo que o leitor tem em mãos insere-se no campo da História
Social, mas não se debruça sobre os debates teóricos mais amplos que

194 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


buscam dar conta de importantes categorias como “empiria” e “classe”.
Modestamente, de forma bastante pontual e objetiva, apresenta-se aqui
um denso exercício metodológico, que foi feito com as atas das reuniões
ordinárias e extraordinárias da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais.
Especialmente, as que foram produzidas entre os anos 1850 e 1880. Estes
documentos registraram os encontros administrativos e deliberativos da
referida sociedade mutualista, que, além de pecúlios, também oferecia
aulas noturnas para seus membros e para a comunidade em geral. Em sua
maioria, no período em quadro, os diretores e os sócios do grupo eram
artífices especializados, gente preta e parda. Localizada na cidade do Recife,
a associação existiu por pouco mais de um século, ocupou algumas sedes
em sua longa história, conservou importante arquivo com farta memória
operária e foi referência organizativa e educacional para muitos setores da
população pernambucana negra, trabalhadora e pobre.

As sociedades mutualistas e sua relação com os registros escritos


As sociedades mutualistas surgiram nos anos 1830, quando recrudescia,
na Europa, a chamada “questão social”. Em seu nascedouro, elas reuniam
trabalhadores mais ou menos qualificados, que sofriam com o impacto da
proletarização de sua mão de obra, a obsolescência de suas tradições em
contextos liberais e o acirramento da precarização de suas vidas cotidianas –
frutos do aprofundamento da Revolução Industrial. Nesse contexto adverso,
os trabalhadores mais ou menos qualificados compreenderam o advento das
sociedades mutualistas como oportunidade para conquistar, entre outros,
reconhecimento público, modernidade organizativa, instrução, ascensão
política lato e stricto sensu e proteção financeira. Essencialmente, este último
fator era a razão de ser e a justificativa social e jurídica para a existência das
sociedades mutualistas. Com recursos próprios, os associados constituíam
caixas sociais (em outras palavras, poupança) que buscavam garantir, entre
outros, remuneração em caso de doenças e de acidentes de trabalho, auxílio

195 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


jurídico na ocorrência de prisão injusta, pecúlio para seus familiares em
caso de morte e sepultamento digno.1
Apesar de experimentar conjuntura diferenciada, em relação à Europa
dos anos 1830, o Brasil também testemunhou a criação de algumas sociedades
mutualistas em meados do século XIX. Entre elas, a Sociedade das Artes
Mecânicas, fundada em 1841 na cidade do Recife, e a Sociedade Protetora dos
Desvalidos, de 1851, em Salvador. Ambas foram criadas por trabalhadores
especializados livres e libertos, homens de cor, com larga experiência
organizativa em irmandades católicas.2 Contudo, foi no ano de 1860 que o
Império do Brasil regulamentou, de forma sistemática, o que a lei chamou de
“sociedades de socorros mútuos”.3 Por todo o país, um sem número delas foi
criado, tanto com perfis bem delimitados (étnicos, nacionais, profissionais e
classistas) quanto sem fechamento preciso.4 A Primeira República, em seu
processo de modernização capitalista e industrial, além de reformar a referida
legislação, registrou o período de maior sucesso das sociedades mutualistas,
por causa das carências do crescente operariado nacional. Após os anos 1930,

1. Até aqui, para saber mais, consultar, entre outros: AGULHON, Maurice. 1848: o aprendizado
da República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. SAVAGE, Mike. “Classe e história do trabalho”,
In: BATALHA, Claudio H. M. et al. (orgs.). Culturas de classe. Campinas: Editora da Unicamp,
2004, p. 25-48. VAN DER LINDEN, Marcel (ed.). Social security mutualism: the comparative
history of mutual benefit societies. Bern: Lang, 1996. HOPKINS, Eric. Working-class selfhelp
in nineteenth-century England. Londres: UCL Press, 1995. DESROCHE, Henri. Solidarités
ouvrières: sociétaires et compagnons dans les associations coopératives (1831-1900). T. 1. Paris:
Les Editions Ouvrières, 1981. GUESLIN, André. L’invention de l’économie sociale: idées,
pratiques et imaginaires coopératifs et mutualistes dans la France du XIXe siécle. 2ª ed. rev.
e ampl. Paris: Economica, 1998.
2. MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife
oitocentista. Campinas: Editora da Unicamp-FAPESP, 2012. LEITE, Douglas G. “Mutualistas
Graças a Deus”: identidade de cor, tradições e transformações do mutualismo popular na
Bahia do século XIX (1831-1869). Tese de Doutorado em História. São Paulo: USP, 2017.
CAMPOS, Lucas R. Sociedade Protetora dos Desvalidos: mutualismo, política e identidade
racial em Salvador (1861-1894). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2018.
3. LACERDA, David P. Solidariedades entre ofícios: a experiência mutualista no Rio de
Janeiro imperial (1860-1882). Dissertação de Mestrado em História. Campinas: Unicamp, 2011.
4. A bibliografia sobre o tema é expressiva, mas há sínteses importantes em coletâneas e dossiês
temáticos: Cadernos AEL: sociedades operárias e mutualismo. Campinas: Unicamp/IFCH, v. 6,
n. 10/11, 1999. MAC CORD, Marcelo; MACIEL, Osvaldo (org.). Revista Mundos do Trabalho:
dossiê “os trabalhadores e o mutualismo”, v. 2, n. 4, 2010. MAC CORD, Marcelo; BATALHA,
Claudio H. M. (org.). Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil
(séculos XIX e XX). Campinas: Editora da Unicamp-FAPESP, 2014.

196 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


com as paulatinas políticas de bem-estar social, as sociedades mutualistas
seguiram perdendo espaço no seio das chamadas “classes laboriosas”.5
De forma genérica, as legislações brasileiras que, no período em quadro,
regulamentaram a criação e o funcionamento das sociedades mutualistas,
exigiram que tais grupos mantivessem seus livros de registros administrativos
e seus livros contábeis em absoluta ordem. Sobre este material, a fiscalização
dos órgãos públicos competentes deveria ser periódica, para que se evitasse,
entre outros, a malversação dos recursos financeiros acumulados na caixa
social e o desvio das diretrizes associativas, que eram regulamentadas por
estatutos. Este último documento era basilar, pois regia a existência cotidiana
das sociedades mutualistas, norteando sua ordem institucional. Tais entidades
somente conquistavam personalidade jurídica e autorização para funcionar
quando seus estatutos eram aprovados pelas autoridades públicas.6 Como
podemos deduzir, o grau de burocratização das sociedades mutualistas era
expressivo, exigindo que produzissem muitos e diversificados documentos,
como, por exemplo, registros de reuniões e balanços financeiros. Não bastasse
o arquivamento de seus próprios papéis, ainda acondicionavam, entre outros,
atestados e comprovantes expedidos pelas instâncias governamentais.
Apesar do grande número de sociedades mutualistas existentes no
Império do Brasil e na Primeira República, muitas delas tiveram existência
curta e não preservaram seus arquivos. Até mesmo as entidades que existiram
por mais tempo não deixaram seus documentos para a posteridade. Poucas
associações longevas, como a Sociedade das Artes Mecânicas, do Recife, e
a Sociedade Protetora dos Desvalidos, de Salvador, tiveram seus acervos
resguardados. Geralmente, os estudiosos das sociedades mutualistas acessam
fragmentos de suas memórias, que foram lavrados em um ou outro livro
de registros que sobreviveu ao tempo. Contudo, por causa da intrínseca

5. Para saber mais, consultar, entre outros: VISCARDI, Cláudia M. R.; JESUS, Ronaldo P.
“A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil”, In: FERREIRA,
Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). A Formação das tradições (1889-1945). Coleção “As Esquerdas
no Brasil”, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 21-51. FONSECA, Vitor M.
M. No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional; Niterói: Muiraquitã, 2008.
6. Para saber mais sobre as legislações que regulamentaram as sociedades mutualistas no
Império do Brasil e na Primeira República, consultar LACERDA, David P. op. cit. FONSECA,
Vitor M. M. op. cit.

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relação destas entidades com os governos e com a legalidade, há muitos
outros tipos de fontes disponíveis. Os jornais são clássicos, pois, neles, os
sócios convocavam reuniões e publicavam estatutos, atas das reuniões,
agradecimentos aos seus patronos, conflitos institucionais etc. Importantes
também são os papéis produzidos e recebidos pelos órgãos governamentais,
como, por exemplo, os executivos, responsáveis pela análise dos estatutos
e pela fiscalização administrativa e financeira das sociedades mutualistas.7
Como havia sido destacado anteriormente, um dos conjuntos
documentais mais bem preservados e completos é o da Sociedade das Artes
Mecânicas, que existiu na cidade do Recife entre os anos 1840 e 1950. No
espaço de pouco mais de um século, a sociedade mutualista mudou de nome
algumas vezes, sendo mais conhecida pelo seu último, Sociedade dos Artistas
Mecânicos e Liberais. Um dos motivos de sua longa duração é que, para
além da oferta de socorros mútuos aos seus membros, a entidade também
lhes ministrava aulas noturnas, assim como para a comunidade em geral.
Em 1871, alguns artesãos pretos e pardos, que criaram e administraram a
associação, fundaram, com a ajuda de seus patronos, o Liceu de Artes e
Ofícios do Recife. A sede própria, um palacete no Campo das Princesas
(hoje Praça da República), foi inaugurado em 1880.8 A escola pernambucana
funcionou até 1950, o que nos ajuda a compreender o encerramento, em
mesma época, das atividades de sua mantenedora, a Sociedade dos Artistas
Mecânicos e Liberais. Lamentavelmente, apesar das fontes disponíveis, faltam
pesquisas de fôlego sobre a história da associação e de sua escola recortadas
no século passado.

7. Nas últimas duas décadas, há pesquisas que foram feitas e que seguem sendo feitas
em todo o país. Não é possível, nesse texto, fazer um balanço dos arquivos e dos acervos
disponíveis para consulta. Para saber mais sobre alguns deles, por amostragem, consultar
LEITE, Douglas G. op. cit. CAMPOS, Lucas R. op. cit. Cadernos AEL. op. cit. MAC CORD,
Marcelo; MACIEL, Osvaldo (org.). op. cit. MAC CORD, Marcelo; BATALHA, Claudio H.
M. (org.). op. cit. LACERDA, David P. op. cit. FONSECA, Vitor M. M. op. cit.
8. Para saber mais, consultar MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania. LUZ, Itacir
M. Compassos letrados: profissionais negros entre instrução e ofício no Recife (1840-1860).
Dissertação de Mestrado em Educação. João Pessoa: UFPB, 2008. COSTA, Wendell R.
Instruir, disciplinar e trabalhar: a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais e o Liceu de
Artes e Ofícios (1880-1908). Dissertação de Mestrado em História. Recife: UFRPE, 2013.

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O fato de sócios e recifenses em geral, trabalhadores de cor, buscarem
escolarização na Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, durante um
século, é algo muito representativo. Nas últimas duas décadas, a historiografia
social da educação tem demonstrado como grupos de africanos e seus
descendentes, no Brasil, apesar da racialização e do racismo excludentes,
construíram e/ou conquistaram, duramente, espaços para seu letramento.
Tais sujeitos históricos compreenderam que a instrução era uma ferramenta
essencial para sua liberdade jurídica, mobilidade social, cidadania mais ampla,
autonomia cotidiana, respeitabilidade pública etc.9 Neste sentido, na medida
em que compulsamos a documentação da Sociedade dos Artistas Mecânicos e
Liberais, chegamos a importante conclusão: os seus mais destacados gestores,
homens com a pele escura (libertos, livres ou cidadãos, em contextos de
emancipação ou de pós-abolição) foram os responsáveis pela escrituração
da maior parte dos livros administrativos e contábeis da associação. Perceber
isto é reafirmar a agência, o protagonismo e os próprios projetos políticos,
econômicos, culturais e sociais dos de baixo da pirâmide social.

Os registros escritos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e


Liberais
No ano de 1970, o palacete que abrigou o Liceu de Artes e Ofícios
do Recife e a sua mantenedora, a Sociedade dos Artistas Mecânicos e
Liberais, assim como todo o seu acervo documental, ficaram sob a guarda
da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), localizada naquela
mesma cidade. No final do ano de 1980, ou seja, uma década depois, todos
os manuscritos da associação e de sua escola foram tratados e catalogados
por aquela instituição de ensino superior e de pesquisa, sob a coordenação

9. Para saber mais, entre outros, consultar MAC CORD, Marcelo; ARAÚJO, Carlos Eduardo
M.; GOMES, Flávio dos S. (org.). Rascunhos cativos: educação, escolas e ensino no Brasil
escravista. Rio de Janeiro: 7Letras-FAPERJ, 2017. FONSECA, Marcus Vinícius. A educação
dos negros: uma nova fase do processo de abolição da escravidão no Brasil. São Paulo: Edusf,
2002. MARTINEZ, Alessandra F. Educar e instruir: a instrução popular na Corte Imperial:
1870 a 1889. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF, 1997. FONSECA, Marcus
Vinícius; BARROS, Surya A. P. (org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói:
EdUFF, 2016. SILVA, Adriana M. P. Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para
meninos pretos e pardos na corte. Brasília: Editora Plano, 2000.

199 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


de José Ernani Souto Maior (Mestrinho), professor do curso de História. A
série documental ainda permanece protegida e cuidada pela Unicap e foi
indexada na Coleção Liceu, que também contém o que restou da biblioteca
organizada pela sociedade mutualista desde a segunda metade do século
XIX. Constam, para consulta, quase mil volumes. Entre eles, há importantes
obras raras, como publicações literárias, artísticas, científicas e industriais
editadas em países como França e Portugal. Há também coleções de jornais
pernambucanos e de leis locais e nacionais. No conjunto bibliográfico,
almanaques e anais diversos também merecem destaque.10
No início dos anos 2010, reconhecida a importância, a raridade e o
volume dos manuscritos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais,
algumas tratativas, para reproduzi-los, foram feitas entre Unicap, Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj),
localizada na cidade do Recife. Um convênio formal entre as partes foi
firmado, viabilizando a microfilmagem e a digitalização das fontes. Os
processos de trabalho geraram 21 rolos de celuloide e 10 discos de DVD.
Os recursos para a empreitada foram garantidos pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), no bojo do projeto temático
Trabalhadores no Brasil: identidades, direito e política (séculos XVII ao XIX),
coordenado pelo Centro de Pesquisa em História Social de Cultura – Cecult/
IFCH/Unicamp. Nesta última instituição de ensino superior e de pesquisa,
por exemplo, o material microfilmado e digitalizado está depositado, desde
o início de 2013, no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), sob o título Coleção
Liceu de Artes Ofícios.11 Unicap e Fundaj também possuem cópias das referidas
mídias em seus importantes acervos.
O corpus documental da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais,
que chegou até nós e foi reproduzido, é constituído por aproximadamente 150

10. Os títulos disponíveis na Coleção Liceu (documentos manuscritos e impressos) podem


ser pesquisados no site da biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap):
https://porto2.unicap.br/Pergamum/biblioteca/index.php. Aberta a página, assim proceder
sequencialmente: clicar em “pesquisa avançada”, selecionar “assunto”, digitar “Liceu de
Artes e Ofícios de Pernambuco” e clicar “pesquisar”.
11. Para conhecer a listagem completa dos documentos da Coleção Liceu de Artes e Ofícios,
depositado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), acessar https://www.cecult.ifch.unicamp.
br/pf-cecult/public-files/noticias/8113/colecao-liceu-artes-oficios-pernambuco.pdf.

200 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


volumes dos mais variados tamanhos e tipos. Podemos dividi-los, a grosso
modo, em três grupos: administração, finanças e aulas. No primeiro deles,
entre outros, encontramos as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias,
do conselho administrativo, das mesas eleitorais e das assembleias gerais.
Há também relatórios diversos e os livros de registro dos sócios e de ofícios
expedidos e recebidos. No segundo grupo, podemos arrolar a caixa do
fundo social, os balancetes financeiros e os livros de contas-correntes, de
mensalidades pagas pelos sócios, de prestação de contas e de receitas e
despesas. Por último, no âmbito da instrução, temos, por exemplo, os livros de
matrículas das aulas, de ponto da escola primária para adultos e de ponto dos
professores, assim como os borrões das oficinas. Há também alguns códices
avulsos, como os de um sindicato e de um grêmio literário que funcionaram
no palacete do Liceu de Artes e Ofícios. Certamente, grupos com ligações
diretas ou indiretas com a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais.
Em meio a tão farta e diversificada documentação, destacam-se, por
dois motivos, as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias da Sociedade
dos Artistas Mecânicos e Liberais. Primeiramente porque estes documentos
revelam, em sua plenitude e de forma detalhada, as rotinas do grupo recifense.
Neles são debatidos inúmeros assuntos, como, por exemplo, entradas de novos
sócios, pedidos de auxílios financeiros à caixa social, justificativas de ausências
aos compromissos associativos, requerimentos de professores das aulas
noturnas, processos de desligamento dos sócios faltosos, resultados de eleições
para os cargos da Mesa Diretora, sindicâncias realizadas, relações extramuros
etc. Por causa disto, os demais códices possuem caráter complementar, pois
seus registros geralmente ratificam e esmiúçam as deliberações anotadas
nas atas das reuniões ordinárias e extraordinárias. O outro motivo para a
escolha destas últimas fontes é a integridade do conjunto, ou seja, entre os
anos 1850 e 1950, quase não há hiatos nos escritos associativos. Infelizmente,
perderam-se as informações dos anos 1840, período que corresponde ao
início das atividades da então Sociedade das Artes Mecânicas.
No referido conjunto de manuscritos, para se realizar o exercício
metodológico proposto pelos organizadores desta coletânea, foram
selecionadas as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias produzidas

201 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


entre os anos 1850 e 1880. A escolha se justifica pelo fato de que, no período
em quadro, a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais experimentou duas
importantes transformações. A primeira delas foi imposta pela legislação
imperial de 1860, referida anteriormente. O Estatuto de 1862, reformado,
determinava, por exemplo, a abertura do quadro social para estrangeiros e
para membros da chamada “boa sociedade”. Por mais que aquela legislação
não permitisse que as sociedades mutualistas tivessem outros fins, os patronos
da associação recifense burlaram-na e mantiveram as aulas noturnas.
Processo que foi corado, em 1871, com a fundação do Liceu de Artes e
Ofícios, como vimos oportunamente. A outra transformação nos remete
à crise do escravismo. O aumento quantitativo de trabalhadores livres e
libertos fez com que os sócios se proletarizassem, buscassem proteger seus
mercados de trabalho e contassem com seus patronos para lhes empregar.12
As atas das reuniões ordinárias e extraordinárias produzidas entre os
anos 1850 e 1880, do ponto de vista formal, são muito semelhantes às demais.
O primeiro ato de cada reunião era assinalar a data, a hora e o número de
sócios presentes. Em seguida, o presidente da sessão (lugar que era ocupado
por quem, no momento, respondesse pelo maior cargo da diretoria) iniciava
os trabalhos administrativos com a leitura e a aprovação das atas do encontro
anterior. A fase seguinte era o “expediente”, onde se informava a pauta do
dia, composta por demandas dos sócios e questões institucionais. Alguns
exemplos foram arrolados mais acima, como pedidos por auxílios financeiros,
sindicâncias para a entrada de novos membros, julgamentos de querelas etc.
Terminado este estágio, iniciava-se a “ordem do dia”, momento em que eram
discutidos e deliberados os assuntos propostos. Neste instante, vinham à
tona disputas políticas, alianças conjunturais e projetos de poder. Comissões
poderiam ser formadas para estudar os casos mais sensíveis, antes da decisão
final em sessões futuras. Terminado o encontro, o presidente registrava o
respectivo horário e assinava o documento.
Cumpre esclarecer que, entre os anos 1850 e 1880, período em que foram
produzidas as fontes selecionadas, os relatores das atas das reuniões ordinárias

12. O estudo pormenorizado destas questões e seus significados políticos, educacionais,


econômicos, étnicos e sociais podem ser encontrados em MAC CORD, Marcelo. Artífices
da cidadania.

202 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


e extraordinárias eram trabalhadores qualificados de pele escura, ou seja, gente
preta e parda. Como foi comentado oportunamente, sublinhar isto é essencial,
especialmente quando estudamos um império que quase sempre associava
o trabalho manual à escravidão e à ignorância. Por mais que os sócios com
destaque institucional usassem as suas próprias mãos na labuta diária, não
havia como dissociá-los da instrução e do uso socialmente legitimado da
inteligência, características indispensáveis para o reconhecimento público de
seus talentos e de suas virtudes. Em outras palavras, eles eram trabalhadores
letrados, estavam organizados em uma associação (espaço que simbolizava
civilização e progresso desde a Revolução Francesa) e produziam documentos
escritos. Estes últimos lhes permitiam, por meio de suas próprias penas,
demarcar o seu lugar social e registrar suas memórias coletivas, ou seja,
suas escolhas sobre o que deveria ser lembrado e sobre o que deveria ser
esquecido – por seus contemporâneos e por nós.13

Metodologia e os registros escritos da Sociedade dos Artistas


Mecânicos e Liberais
Metodologicamente, há diversas e legítimas formas de se trabalhar
com os registros escritos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais.
Contudo, independentemente do caminho a trilhar, deve-se atentar para
dois condicionantes dialéticos. Em primeiro lugar, as escolhas dependerão
do lugar social de quem tratará o corpus documental, dos problemas que
construirá a partir dele e de sua filiação teórica. Em outras palavras, “é
em função desse lugar que se instauram os métodos, que se precisa uma
topografia de interesses, que se organiza os dossiers e as indagações relativas
aos documentos”.14 Por sua vez, o próprio corpus documental imporá limites
ao observador, seja qual for o seu lugar social, pois não é neutro. As fontes
também foram produzidas por alguém interessado e afetado, algo que impõe

13. Para a percepção da memória enquanto campo de disputa e de escolhas voluntárias ou


involuntárias do que se lembrar e do que se esquecer, ver, entre outros LE GOFF, Jacques.
História e memória. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. RICOEUR, Paul. A memória,
a História e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. POLLAK, Michael.
“Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
14. DE CERTEAU, Michel. “A operação histórica”, In NORA, Pierre; LE GOFF, Jacques (org.).
História: novos problemas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1988, p. 18.

203 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


cuidados ao historiador.15 Tendo em vista tais alertas, e tomando por base
as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias produzidas entre os anos
1850 e 1880, apresenta-se aqui um exercício metodológico possível, que foi
proposto pela tese de doutorado intitulada Andaimes, casacas, tijolos e livros:
uma associação de artífices no Recife, 1836-1880.16
No processo de análise das fontes enunciadas, o primeiro procedimento
metodológico do referido trabalho de pós-graduação foi a montagem de um
banco de dados com todos os sócios nelas relatados. Cada um deles ganhou
sua própria ficha nominal, onde foram registrados, quando informados na
documentação, data de matrícula, idade, estado civil, cor, endereço residencial,
profissão, cargos na Mesa Diretora, matrículas nas aulas noturnas, atuação
como docente nas mesmas, relações pessoais (sócios que indicaram amigos,
colegas de profissão ou patronos para filiarem-se à entidade), participação
em outros grupos recifenses (montepios, clubes, irmandades e associações),
alianças com outros sócios (políticas, profissionais, institucionais e familiares),
atividades em comissões (de sindicância e de emprego de colegas em postos
de trabalho) etc. O minucioso procedimento metodológico produziu cerca
de 350 fichas nominais. A maior parte delas, com poucos dados pessoais
e sociais dos membros da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais.
Outras, ao contrário, com substanciais informações quer do ponto de vista
quantitativo quer do qualitativo.
Construído o banco de dados, o passo seguinte foi hierarquizar as fichas
nominais, segundo o volume e a peculiaridade das informações obtidas, para
que ganhasse destaque os indivíduos com mais visibilidade e importância na
Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. O terceiro momento da análise
foi cotejar o banco de dados com os outros documentos da própria entidade,
para ratificar, retificar e/ou incorporar elementos. Logo após, na quarta
etapa do processo metodológico, cruzou-se as fichas revistas dos sócios mais
destacados tanto entre si quanto com as restantes. Notou-se, além da forte
influência dos mais notórios na vida do grupo, suas consistentes relações

15. DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores/Editora da
UFRJ, 1993, p. 21-42.
16. MAC CORD, Marcelo. Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices
no Recife: 1836-1880. Tese de Doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2009. Esta tese
é a base do livro Artífices da cidadania, citado oportunamente.

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intra e extramuros. Neste último espaço, com membros de outras associações,
funcionários de repartições públicas, políticos, intelectuais, empresários e
negociantes. O quinto passo foi buscar, nos arquivos pernambucanos, outros
conjuntos documentais que permitissem confirmar, refutar, aprofundar,
compreender e esmiuçar as conexões mais amplas. Para tanto, foram
consultados jornais, livros de irmandades, processos jurídicos, contratos
de serviços públicos, debates legislativos, petições públicas, documentos
escolares etc.
A fase subsequente do tratamento das novas informações foi incorporá-
las às fichas nominais. Para além dos dados associativos, muitos dos principais
sócios tiveram revelados, entre outros, locais de trabalho, escolas que
estudaram e lecionaram e grupos que pertenceram. Por exemplo, um dos
fundadores da Sociedade das Artes Mecânicas, José Vicente Ferreira Barros,
mestre de carpina da cor preta, irmão de São José do Ribamar, criou seus
três filhos legítimos em oficinas e em salas de aula, onde alcançaram o
ensino secundário. Eles tornaram-se membros e professores da associação,
sendo que dois deles, José Vicente Ferreira Barros Junior e Antonio Basílio
Ferreira Barros, seguiram a profissão docente em escolas públicas primárias.
O outro, João dos Santos Ferreira Barros, ganhou fama como mestre de
obras, presidente do Gabinete Artístico Provincial e diretor do Liceu de
Artes e Ofícios. Patronos que se tornaram sócios também colaboraram
com as suas trajetórias de sucesso, especialmente os políticos. A mobilidade
social ascendente, que os três últimos trabalhadores de cor conquistaram,
transformou-os em homens pardos, mesmo que não fossem mestiços.
Outro banco de dados também foi criado, concomitantemente ao
primeiro, tomando por base as mesmas atas das reuniões ordinárias e
extraordinárias produzidas entre os anos 1850 e 1880. Contudo, em seu
nascedouro, o recurso metodológico foi alimentado com dados mais
estruturantes, buscando identificar as fases político-institucionais da
Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Entre as informações mais
relevantes, por exemplo, atentou-se para aspectos como mudanças de nome
e seus significados, perfis e composições das Mesas Diretoras, trocas de
estatutos, formas de organização das aulas noturnas, assim como maior ou
menor oferta de cadeiras e de matrículas, perfis de estudantes, professores e

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diretores das aulas, maior ou menor filiação de indivíduos da “boa sociedade”,
fluxos de caixa e balancetes, aproximação ou afastamento de governantes e de
homens públicos, características dos sócios no tempo e momentos de maior ou
de menor pujança associativa. O árduo tratamento destes dados, complexos,
identificou momentos-chave na história da associação, fazendo com que
a pesquisa ancorasse suas interpretações em periodizações e tabulações.
A sequência dos procedimentos metodológicos foi bastante semelhante
àquela que fora feita no primeiro banco de dados. Em seguida à construção
das periodizações e das tabulações, comparou-se os seus recortes e números
com os registros dos outros documentos da Sociedade dos Artistas Mecânicos
e Liberais, para que se corrigisse, confirmasse e/ou incluísse informações.
Recalibrado o segundo banco de dados com este estratagema, conjuntos de
documentos públicos municipais e provinciais, ligados aos poderes executivo,
legislativo e judiciário, foram compulsados nos arquivos pernambucanos.
Entre outros, processos jurídicos de primeira e de segunda instâncias,
orçamentos e leis provinciais, posturas municipais, orçamentos de obras
municipais, provinciais e gerais e atas da Câmara Municipal do Recife e da
Assembleia Legislativa de Pernambuco. Documentos de irmandades católicas
leigas também foram importantes para o exercício realizado com as fontes.
Todo esse corpus documental ajudou a robustecer o segundo banco de
dados revisto, permitindo compreender, de forma mais ampla e profunda,
os acontecimentos e as conjunturas experimentados pela associação.
O segundo banco de dados demonstrou que, nos anos 1840, a Sociedade
das Artes Mecânicas estava sediada na Igreja de São José do Ribamar. A
importância da associação aproximou-a do governo, viabilizando verbas
públicas para as suas aulas noturnas. No início dos anos 1850, quando passou
a se chamar Sociedade das Artes Mecânicas e Liberais, suas portas também
foram abertas para os profissionais que “utilizavam a inteligência”. Com
isso, os artesãos buscaram afastar-se um pouco mais do “defeito mecânico”.
Com as reformas legislativas de 1860, a rebatizada Sociedade dos Artistas
Mecânicos Liberais optou por oferecer, exclusivamente, socorros mútuos.
Contudo, como vimos, seus patronos contornaram a norma e o grupo
continuou com a sua escola. Na segunda metade dos anos 1860, por causa
do crescimento da associação e de suas mudanças, os irmãos de São José do

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Ribamar expulsaram-na de sua Igreja. A Sociedade dos Artistas Mecânicos
entrou em crise, mas foi revitalizada no início dos anos 1870 e atraiu muitos
políticos conservadores para seus quadros. A renovação rendeu-lhe o título
de Imperial, o direito de fundar o Liceu de Artes e Ofícios e mais aportes
financeiros.
Apesar de os dois bancos de dados preocuparem-se com informações
diferentes, ou seja, trajetórias individuais no primeiro e trajetória institucional
no segundo, eles não foram usados, metodologicamente, como ferramentas
ensimesmadas. Ao contrário. Fichas, periodizações e tabulações também
foram cruzadas de forma tensa e intensa. Sócios, Sociedade dos Artistas
Mecânicos e Liberais e sociedade recifense do século XIX, em suas
especificidades e contradições constituintes, foram dialéticos. Processar
as informações de ambos os bancos de dados de maneira isolada criaria
ilusões: ou os artesãos pareceriam absolutamente livres para fazer escolhas
e definir, sem interferências, os rumos de seu grupo e de suas próprias vidas
ou as estruturas da sociedade pernambucana oitocentista e da associação
pareceriam determinar de forma absoluta suas ações. Cuidando-se contra
este tipo de maniqueísmo, e sabendo do lugar social do historiador e dos
limites epistemológicos das fontes históricas, a tese Andaimes, casacas, tijolos
e livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880 procurou evidenciar
um aprendizado: além de seus métodos e interpretações, outros são possíveis.17

Considerações finais
Os mestres de ofício pretos e pardos, membros da Sociedade dos Artistas
Mecânicos e Liberais, entre os anos de 1840 e 1880, foram trabalhadores
experientes e reconhecidos pelos recifenses. Herdeiros das antigas tradições
corporativas, porém adaptadas aos novos tempos, eles idealizavam os seus
próprios produtos, projetavam-nos no papel, preparavam as oficinas para
confeccioná-los, selecionavam as ferramentas adequadas para a empreitada,
buscavam as matérias-primas precisas e executavam os serviços com todo o

17. Sobre as especificidades que envolvem o ponto de vista particular do historiador, entre
outros, consultar BURKE, Peter. “A história dos acontecimentos e o renascimento da
narrativa”, In BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo:
Editora Unesp, 1992, p. 337.

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zelo possível, sendo auxiliados por seus aprendizes e oficiais. Depois disto,
os sócios profissionalmente qualificados comparavam as obras prontas com
o desenho projetado e refinavam-nas. Só então os produtos acabados eram
entregues aos seus contratantes ou levados aos mercados para exposição e
venda. Contudo, antes de se tornarem peritos experientes e prestigiados,
todos aqueles associados, um dia, também foram aprendizes de seus ofícios
e passaram por um longo e árduo processo de tirocínio artesanal. Sob a
supervisão de seus velhos mestres, eles paulatinamente se familiarizaram
com o métier e aprenderam técnicas, comportamentos e procedimentos.
Respeitadas todas as especificidades constituintes, os desafios enfrentados
pelos trabalhadores da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais são
bastante similares aos dos historiadores. Estes últimos profissionais também
são fruto de um longo processo de treinamento orientado. No transcorrer
dos seus estudos de graduação e de pós-graduação, período de formação, o
artífice do tempo amadurece seus pensamentos, perspectivas e sensibilidades
enquanto experimenta caminhos historiográficos, sofistica a construção
de problemas, busca matéria-prima diversa nos arquivos, refina sua escrita
monográfica e dialoga com os seus professores e colegas de ofício. Nesse
longo processo de aprendizagem, para o historiador social, por exemplo, as
fontes são fundamentais, pois configuram-se no mais importante insumo
para a construção de sua obra. Portanto, planejar solidamente a estratégia
metodológica, para um empirista, é ter, entre outros, a clareza sobre o corpus
documental necessário para responder seus questionamentos. Caso contrário,
o historiador social somente terá hipóteses sem evidências ou, no máximo,
apenas argumentos baseados em pesquisas de terceiros.18

Fontes
Coleção Liceu – Universidade Católica de Pernambuco – Unicap, Recife/PE:
documentos físicos, microfilmados e digitalizados.

18. THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao


pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

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Coleção Liceu de Artes Ofícios – Arquivo Edgard Leuenroth – AEL/Unicamp,
Campinas/SP: documentos microfilmados e digitalizados. Reproduzido da
Coleção Liceu sob a guarda da Unicap.
Coleção Liceu de Artes Ofícios – Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, Recife/
PE: documentos microfilmados e digitalizados. Reproduzido da Coleção
Liceu sob a guarda da Unicap.

Referências Bibliográficas
AGULHON, Maurice. 1848: o aprendizado da República. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1991.
BURKE, Peter. “A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa”,
In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo:
Editora Unesp, 1992, p. 327-348.
CADERNOS AEL: sociedades operárias e mutualismo. Campinas: Unicamp/
IFCH, v. 6, n. 10/11, 1999.
CAMPOS, Lucas R. Sociedade Protetora dos Desvalidos: mutualismo, política
e identidade racial em Salvador (1861-1894). Dissertação de Mestrado em
História. Salvador: UFBA, 2018.
COSTA, Wendell R. Instruir, disciplinar e trabalhar: a Sociedade dos Artistas
Mecânicos e Liberais e o Liceu de Artes e Ofícios (1880-1908). Dissertação
de Mestrado em História. Recife: UFRPE, 2013.
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Jacques (orgs.). História: novos problemas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
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DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores/
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processo de abolição da escravidão no Brasil. São Paulo: Edusf, 2002.
FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya A. P. (org.). A história da
educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016.

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FONSECA, Vitor M. M. No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de
Janeiro, 1903-1916. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; Niterói: Muiraquitã,
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GUESLIN, André. L’invention de l’économie sociale: idées, pratiques et
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HOPKINS, Eric. Working-class selfhelp in nineteenth-century England.
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Rio de Janeiro imperial (1860-1882). Dissertação de Mestrado em História.
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LE GOFF, Jacques. História e memória. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp,
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LEITE, Douglas G. “Mutualistas Graças a Deus”: identidade de cor, tradições
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LUZ, Itacir M. Compassos letrados: profissionais negros entre instrução e
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MAC CORD, Marcelo. Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de
artífices no Recife: 1836-1880. Tese de Doutorado em História. Campinas:
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MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e
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MAC CORD, Marcelo; ARAÚJO, Carlos Eduardo M.; GOMES, Flávio dos
S. (org.). Rascunhos cativos: educação, escolas e ensino no Brasil escravista.
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MAC CORD, Marcelo; BATALHA, Claudio H. M. (org.). Organizar e proteger:
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MARTINEZ, Alessandra F. Educar e instruir: a instrução popular na Corte
Imperial: 1870 a 1889. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF,
1997.
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos,
v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
RICOEUR, Paul. A memória, a História e o esquecimento. Campinas: Editora
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SAVAGE, Mike. “Classe e história do trabalho”, In BATALHA, Claudio H. M.
et al. (org.). Culturas de classe. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 25-48.
SILVA, Adriana M. P. Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para
meninos pretos e pardos na corte. Brasília: Editora Plano, 2000.
THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma
crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
VAN DER LINDEN, Marcel (ed.). Social security mutualism: the comparative
history of mutual benefit societies. Bern: Lang, 1996.
VISCARDI, Cláudia M. R.; JESUS, Ronaldo P. “A experiência mutualista e
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Perante os tribunais
As fontes judiciais e a historiografia da escravidão

María Verónica Secreto | Universidade Federal Fluminense

A documentação dos tribunais é fonte riquíssima para o estudo da


escravidão. As práticas corriqueiras, os consensos jurídicos e as mudanças
na compreensão do que é justo ou injusto em sociedades escravistas são
alguns dos aspectos que aparecem nesse corpus documental.
A história social recorreu à documentação dos “tribunais” porque nessa
era possível encontrar vestígios de grupos sociais invisibilizados por sua pouca
familiaridade com o universo letrado. Grupos que não se caracterizam por ter
deixado escritos de si como diários, cartas e memórias, nem ter sido objeto
da escrita de outros, como acontece com as classes dominantes. Escravos,
índios, mulheres, camponeses etc. aparecem nos tribunais demandando ou
sendo demandados. Nos processos nos contam parte de suas vidas, de seus
problemas, do universo de representações, do que consideram justo e injusto.
Os processos, peças polifônicas, se parecem com os romances. Como estes
têm muitos personagens: juízes, fiscais, peritos, testemunhas, autores e réus.
Daí sua polifonia. Cada um aparece falando de seu ponto de vista, de sua
subjetividade. Juízes, fiscais, peritos, advogados defensores, informados pelo
conhecimento técnico, buscam dar “sentidos” às falas e provas apresentadas.
Na teoria do romance se considera que o gênero narrativo recebeu influência
do “processo” judicial e por sua vez os romances incorporam procedimentos

212 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


judiciais, ficcionalizando a ação (MAGUET, 2021). Por esse motivo, quando
lemos um processo, ainda que seja do século XVIII ou XIX, em seguida nos
envolvemos com a trama.
A relação entre história e direito já foi muitas vezes aludida. Referindo-
se ao surgimento do gênero “história”, faz mais de 2.500 anos, Ginzburg diz
que, se bem a palavra “história” procede da linguagem médica, a capacidade
argumentativa provém do âmbito jurídico. O trabalho do historiador bebe
da medicina e da retórica: examina casos segundo o método da primeira
buscando causas em comum, e as expõe seguindo as regras da segunda.
Seguindo Arnaldo Momigliano, Ginzburg diz sobre a história: “a arte
de persuadir nascida nos tribunais”. De acordo com a tradição clássica a
exposição histórica devia ter a capacidade de representar com vivacidade
situações e personagens (GINZBURG, 1993, 18).
Atenção, não devemos confundir a história social, que utiliza fontes
geradas em diferentes tribunais com uma historiografia tradicional que
entendia a norma, a lei, como geradora de realidade. Já passou a época em
que se estudava a norma para entender as sociedades, ou a lei para abordar a
realidade. Disse Pierre Vilar que o historiador que observa o funcionamento
de uma sociedade percebe que a sociedade tem regras cristalizadas no direito.
Então a primeira tarefa é conhecer os juristas, o direito escrito e institucional,
em seguida prestar atenção aos costumes e direito não escrito e, por último,
observar o que ele chama de aceitação sociopsicológica. Mas ainda que
consideremos estes três níveis não conseguiremos explicar o funcionamento
dessa sociedade observada. Devemos observar a realidade socioeconômica
e cultural que o direito organiza (VILAR, 1983:118-120).
Para pleitear, para “correr atrás” de um direito, o direito buscado tem que
estar expresso de alguma forma no corpo jurídico, nas práticas e costumes
ou nos entendimentos consensuados do que é justo e merece ser atendido.
A primeira pergunta, então, que devemos fazer, é se os escravos tinham
direitos expressos no corpus legal e nas práticas judiciais.
No mundo hispano a peça principal, sem ser a única, em que se
expressava esse direito era as Sete Partidas. Compilação de legislação realizada
no século XIII no contexto da presença moura na Península Ibérica, razão
pela qual as formas de escravidão a que elas se referem estão vinculadas,

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principalmente, à guerra santa contra os infiéis. Outro foi o contexto da
escravidão nas Américas, mas os direitos essenciais se mantiveram.1 Em 31
de maio de 1789, Carlos IV sancionou uma Real Cédula sobre educação,
trato e ocupações dos escravos em seus domínios de Índias e Filipinas. Ela
recopilava o que já constava nas Siete Partidas, na Recopilação de leis de
Índias, nas cédulas particulares e gerais e nas ordenações. Não trazia matéria
nova, organizava as anteriores disposições dando ênfase aos “direitos” que
teriam os escravizados. Alguns dos direitos eram: à vida, à alimentação e ao
vestuário, a não ser castigado excessivamente (sevícia), a mudar de senhor,
à assistência judicial, à associação, ao matrimônio, a salvar a alma, ao asilo
etc. (PETIT MUÑOZ, 1944). Quer dizer que qualquer falta em uma destas
áreas podia levar o escravizado a buscar a justiça para defender seu direito.
Diz Tamar Herzog que o direito em América Hispana estava intimamente
ligado ao mundo da resolução de conflitos em oposição a suas formas teóricas
e abstratas. “Cada aplicação supunha uma regra e cada regra, por sua vez,
continha uma semente de aplicação.” As esferas do jurídico e do judicial
estavam misturadas. “A distinção atual entre o ‘jurídico’ e o ‘judicial’, isto é,
entre o que diz respeito ao direito e se ajusta a ele (jurídico) e o que pertence
ao juízo ou à administração de justiça, (judicial) não existia.” (HERZOG,
1995b).

As demandas mais frequentes


Analisaremos algumas demandas apresentadas nas instâncias da Buenos
Aires colonial: ao vice-rei, ao Cabildo e à Real Audiência. Nesses, um escravo
podia demandar, com a representação do defensor de pobres, e requerer a
intervenção da justiça para obter o gozo de algum direito, também podia
enviar uma carta, dirigida ao Governador Geral ou ao Vice-rei, narrando
seu caso, solicitando a clemência do “justo” e “caridoso” governante.2

1. Disponível em domínio público: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/


bk000005.pdf
2. Como uma primeira aproximação ao Archivo General de la República Argentina
recomendoa leitura de seu livro disponível em linha: Fondos documentales del departamento
de documentos escritos. Período Colonial/ Coord. Juan Pablo Zabala, Buenos Aires: AGN, 2011.

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Um dos mais frequentes recursos apresentados pelos escravos de
Buenos Aires, junto com os pedidos de liberdade, foi o chamado “papel de
venda”. Não é clara a origem desse direito, mas é importante aqui retomar
a afirmação de Herzog, a do direito como resolução de conflitos, e não
como abstração teórica. A aplicação da justiça alimentava novas práticas e
novas interpretações, sempre visando a resolução dos conflitos que aquela
sociedade demandava.
A Partida quatro3 estabelecia que o senhor não podia tratar o escravo
com demasiado rigor e, se isso ocorresse e o escravo se queixasse ante o juiz,
o proprietário seria obrigado a vendê-lo sem poder jamais voltar a adquirir
seu domínio. Por esse motivo, os escravos que acudiram às autoridades
ou à Justiça de Buenos Aires com pedidos de outorga de “papel de venda”
fizeram-no alegando maus-tratos por parte de seus senhores.
Diz Miriam Moriconi que o maltrato foi uma das faltas penalizadas.
As denúncias que chegaram até a Corte provocaram efeito normativo como
foi a Real Cédula de 12 de outubro de 1683 remetida a todas as audiências e
governações indianas para que a sevícia fosse castigada, definida essa como
a ausência de assistência aos escravizados na doutrina cristã, vestimenta ou
educação, reiterava a venda obrigada como remédio (MORICONI, 2018:237).
Na aplicação da justiça se utilizou a Quarta Partida, título 6, artigo XXIa
Real Cédula de 1683, mencionada por último, e outra Real Cédula de 1788
emitida para o Rio da Prata (a que nos referiremos mais adiante). Para isso se
combinaram alguns recursos: papel de venda, preço justo, ação de liberdade.
O “papel de venda” permitia resolver os conflitos entre senhores e
escravos mudando de senhor; se bem por esta via o escravizado não escapava
da escravidão, podia entrar numa escravidão negociada, em que o próprio
escravizado buscava seu novo amo, alguém mais de seu “agrado”. As causas
para a mudança eram enquadradas na má conduta do senhor, que não atendia
às obrigações paternalistas/patriarcalistas incumbidas: desatendia o escravo
na alimentação, o castigava excessivamente, não o atendia na saúde, não lhe
permitia casar-se, negligenciava a salvação de sua alma etc.

3. ALFONSO X, EL SABIO. Partida Cuarta, título 6, artigo XXI. Las siete partidas. Santiago:
Andrés Bello, 1982.

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Quando o senhor aceitava outorgar a autorização para que o escravo
buscasse novo senhor – bilhete manuscrito de punho e letra no que constava
o nome do escravo, o do proprietário, as qualidades, às vezes o endereço,
sempre o valor que pretendia pelo mesmo e até a data, o período, a que tinha
vigência o referido papel – o escravo procurava alguém disposto a comprá-lo,
quando já não tinha alguém “apalavrado”. No caso de achar um interessado
que aceitasse as condições do papel, procedia-se a uma compra-venda como
qualquer outra. Mas muitas vezes, o “papel de venda” envolvia outros conflitos:
o período estabelecido nele era muito curto, não sendo suficiente para o
escravo achar um comprador, ou o valor pedido era excessivo. Nesses casos
fica evidente que o senhor emitia o papel sem intenção real de vender o
escravo. Eram esses casos os que chegavam na justiça.
Francisco Arango y Parreño, o político e fazendeiro cubano, dizia que
o escravizado no mundo hispano tinha quatro consolações: a eleição de
um senhor menos severo; a faculdade de casar-se segundo sua inclinação; a
possibilidade de comprar sua liberdade por meio do trabalho ou de obtê-la
por bons serviços; e o direito de possuir alguma coisa e de pagar, por meio da
propriedade adquirida, a liberdade de sua mulher e de seus filhos. Todos esses
direitos se reiteravam uma e outra vez nas demandas e sentenças judiciais.
A partir da leitura dos processos abertos pelos escravizados podemos
compreender o funcionamento das relações escravistas. Podemos também
compreender o rol da justiça na administração de conflitos, nos aproximar
das representações sobre o que era justo e injusto, nos permitir observar
argumentos baseados em diferentes noções econômicas, como as que se
articulam a respeito dos preços dos escravizados etc.

Alguns casos
Os processos administrativos ou judiciais se iniciam com uma
apresentação do demandante falando em primeira pessoa. Da mesma forma
que o fazem em outra tipologia de documentos chamada “solicitudes de
esclavos” (solicitações dos escravos) que também utilizaremos nesse trabalho.
Diz Natalie Zemon Davis que as cartas de remissão, cartas nas quais um
condenado à morte pedia clemência ante o rei, era um gênero misto. Uma

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petição judicial destinada a persuadir o rei e a corte e um relato histórico
dos atos de um indivíduo no passado e uma história (DAVIS, 2001:17). Se
as cartas de remissão do século XVI analisadas por Davis entravam na vida
de um requerente por causa de uma morte, as solicitudes dos escravizados
entravam na vida desses ante a insuportabilidade de uma relação escravista,
ante a possibilidade de conseguir um senhor mais “caridoso”, de sair da
escravidão etc. Os escravizados não demandavam perdão, mas redenção.
No caso das solicitudes o Governador Geral era o destinatário e, a partir da
criação do vice-reino do Rio da Prata, em 1776, o vice-rei. Quando a máxima
autoridade colonial considerava que a solicitude não podia ser resolvida por
essa via, encaminhava o escravizado para o tribunal competente: “Acuda aos
alcaides para a administração de justiça.”
Uma das “solicitações de escravos” mais antiga que encontrei no Archivo
General de la Nación Argentina é a da escrava María Antonia. A transcreverei
na íntegra, mas não abusarei desse recurso:
Buenos Aires 1771

Sr. Governador

Manuela Antonia negra, siendo yo bozal en el tiempo en que era


gobernador Andonaegui me compró Dn. Francisco Sosa a quien
habiéndole servido con gusto y buen proceder por espacio de 5 años
[me casé] con Joseph Antonio negro esclavo de otro amo a quien lo
compró mi amo para casarlo conmigo y habiéndome casado comenzó
mi amo a tomar tirria con mi dicho marido y para cumplir su gusto
lo vendió para fuera de la tierra sin embargo de otras ridiculeces que
había hecho antes para impedir el matrimonio, que por ser tantas no
se ponen sino las principales.

Siempre que yo clamaba por mi marido me hería, pues en el cuerpo


traigo las cicatrices de tres heridas, y últimamente habiéndome hecho
embarazada de mi amo por haber pedido mi marido me dio un garrotazo
en las caderas que me hizo mal parir y habiendo mi amo recogido la
criatura en un pañuelo, que todavía estaba medio viva la arrojo en
un hinojal y habiendo quedado yo bien enferma de dicho golpe, me

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dijo cierto día que me fuese a buscar mi vida, que ya nadie se metería
conmigo y que ya estaba yo libre de esclavitud, y habiendo yo venido
a casa de Juan Pulido le conté lo que me pasaba y que así le estimaría
lo mandase llamar a mi amo, y le dijese que una vez que me daba por
libre me lo diese por escrito, mándalo llamar pero no quiso venir, y
así me mantuve cuatro años en casa de don Juan Pulido, hasta que
cierto día pasó mi amo por casa de Juan Pulido y habiéndolo yo visto
le avise que ahí pasaba mi amo mandolo llamar y habiendo venido le
preguntó si yo era su esclava pero dijo que no, preguntome a mi si era
mi amo a lo que respondí que si, pero el siempre negaba y así se fue y
yo me quedé en casa de Don Juan Pulido cuando en este intermedio
vino mi marido a quien me entregó Don Juan Pulido y habiendo yo
estado todo este tiempo con mi marido, ha venido ahora la cuñada de
mi amo diciendo que ya murió y que me viene a llevar para hacerse
pagar unos pesos que le debía el difunto.

Por lo que pido y suplico que usando de su caridad para con los pobres
y recta justicia se sirva determinar lo que convenga, y fuese razón.

María Antonia Negra

O caso de María Antonia não podia ser resolvido por essa via extrajudicial,
não havia testamento ou qualquer outro documento provatório. A palavra de
Dom Juan Pulido provavelmente teria grande valor, já que era uma pessoa
respeitável entre os vizinhos de Buenos Aires, mas essa só poderia aparecer
em um processo. A demanda de María Antonia era “verossímil”, por isso
o despacho na margem diz: “Acuda aos alcaides para a administração de
justiça.” O relato de María Antonia cumpre com os requisitos das cartas de
perdão mencionados acima: petição judicial destinada a persuadir, relato
histórico dos atos de um indivíduo no passado e uma história. Mas outros
casos podiam ser resolvidos por essa via administrativa.
Em 1766 Luiza, morena, escrava de Dona María Luiza de Larria escreve
ao Governador dizendo que sua senhora, defunta, tinha deixado em cláusula
testamentária uma disposição para todos seus escravos: que se eles pagassem
200 pesos (taxação baixa, se comparada com os preços de mercado do
período), se lhes desse a liberdade. Ocorreu que ela deu esse dinheiro para

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o executor testamentário, mas este, no lugar de dar-lhe carta de liberdade,
a deixou em casa do notário Antonio de Herrera onde diz ter mais opressão
do que a que tinha antes. O despacho na margem confirma a existência da
clausula testamentária e diz que o executor, Manuel de Escalada, tinha sido
apercebido e que emitiria logo a carta de liberdade. Uma demanda como essa
levada aos tribunais podia demorar meses para ser resolvida, envolvendo
desgaste econômico e emocional.
As solicitudes de escravos, como as solicitudes de presos (que podiam
também ser escravos) são textos breves que nos apresentam uma situação
sobre a qual nem sempre conhecemos o desfecho. É um tipo de documento
que nos aproxima da subjetividade do demandante, do entendimento do
justo e do injusto, de problemas cotidianos e do drama da escravidão.
As ordenações capitulares de Buenos Aires, redigidas em finais do século
XVII, estabeleciam que um regedor deveria visitar a prisão para recolher as
demandas. Em 1721 o ajuntamento de Buenos Aires criou o cargo de defensor
de pobres, e a esse foi encarregada a visita do cárcere para acompanhar
as causas dos pobres e para cuidar que não padecessem. A atenção dos
miseráveis de cada comarca não era regulamentada pela coroa, a não ser
como princípio, senão pela elite e administradores locais (REBAGLIATI,
2017:37-38). O defensor de pobres, no cabildo de Buenos Aires, também foi o
defensor dos escravizados. Salientamos que os miseráveis no antigo regime
não eram exclusivamente os “pobres”, mas os menorizados. Miserável era a
pessoa que era incapaz de valer-se por si (DUVE, 2007; HESPANHA, 2007).

Filhos naturais
O defensor de pobres Antonio Romero iniciou, em 1799, uma demanda
contra Nicolás Higareda (ou Igareda). Narrava o defensor que Dom Nicolás,
do comércio da cidade de Buenos Aires, tinha Julian entre outros vários
escravos e que, apesar que esse lhe dava em conceito de “ganho” 7 pesos por
mês, o senhor não atendia sua vestimenta e alimentação. Na casa de Higareda
se utilizava meio real diário de carne para alimentar três criadas, outros três
agregados e ao mencionado Julian. O que evidentemente era uma dieta de
fome. O moço, que trabalhava de sapateiro, tinha uma irmã, Maria Clara,

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que morava em Assunção do Paraguai, na mesma cidade em que morava a
mãe dos jovens, livre nesse momento. Resulta, dizia o Defensor, que ambos
os jovens eram filhos naturais do comerciante e este os tinha por escravos.4
No período colonial a filiação se definiu a partir do matrimônio: dentro
ou fora dele. Assim havia filhos legítimos (os nascidos dentro do matrimônio),
os filhos naturais, (os nascidos fora do matrimônio de pais solteiros) e os
ilegítimos (resultado da união entre duas pessoas sendo uma delas, pelo
menos, casada com uma terceira pessoa). O caso de Higareda seria um caso
claro de filhos naturais, já que Rosa Isabel e Nicolás Higareda eram solteiros
à época dos nascimentos e assim permaneciam quando o defensor abraçou
a demanda. Mas Rosa Isabel era escravizada ou tida por escrava.
Un modo el más irregular, lo propio que a la madre al menos por todo el
tiempo que se conservó en el Paraguay, y la tuvo en su casa y a su lado,
no obstante, de que según las instrucciones que se han proporcionado
al defensor que representa se atreve a afirmar que será imposible o
dificultoso a Higareda justificar el motivo o título de señorío y dominio
respecto de la Rosa Isabel madre natural de los citados.5

O defensor afirmava que outros “detalhes” seriam apresentados em


seu devido tempo.
Quando Higareda respondeu no processo, o fez dizendo que os dois
jovens que o defensor dizia serem filhos naturais seus, eram seus escravos,
dando por sentado que se tratava de frutos de ventre escravo.
Evidentemente o caso não era fácil de resolver. O assessor letrado (TAU
ANZOATEGUI, 2016: 245-267), argumentou que depois de estudar as leis
e doutrina não achava antecedente que sustentasse o pedido do defensor.
Os filhos que o homem solteiro tinha com sua escrava eram seus escravos,
“sem que, por ser filho natural tenha direito e ação de justiça para reclamar
sua liberdade”. É claro que a demanda entrava numa zona nebulosa. É bem
sabido que os senhores de escravos tinham filhos com suas escravas e isso

4. Expediente promovido por el Defensor General de Pobres a nombre de Julián y María


Clara, sobre que Nicolás Igared les de la libertad de estos por justas causas que hay para
ello, 1799. AGN, Tribunales legajo 128 Expediente 1 Sala 9, 37-3-6.
5. Idem.

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não implicava mudanças jurídicas no status da mãe nem dos filhos. Podia
acontecer de o pai reconhecer esses filhos, dar a liberdade ou deixá-la em
testamento, mas tudo isso como “prerrogativa” pessoal.6 No último terço do
século XVIII, um caso de teor semelhante foi tratado em Cartagena de Índias.
Naquele caso Rafaela, uma filha ilegítima, fruto da relação de um senhor com
sua escrava, recebeu no testamento do pai a liberdade condicional, deveria
servir à esposa do defunto até a morte da viúva. Resultou que, depois de
alguns anos, Rafaela se casou e teve dois filhos. Mas seu meio-irmão, filho
legítimo de seu pai, e herdeiro, quis vender uma das crianças. Assim Rafaela
e seu marido perceberam a fragilidade daquela liberdade outorgada em
cláusula testamental. Demandaram ante a justiça a liberdade de Rafaela a
partir da execução do testamento e não da morte futura da viúva. Além de
basear o pedido na interpretação da cláusula testamentária, o Defensor de
Cartagenas ingressou com um pedido de liberdade de Rafaela baseando-se
na filiação com o testador.
O direito de Castela permitia que o filho herdasse a nobreza do pai ainda
quando a mãe fosse de condição humilde. Já que, através do sangue, o filho
herdava a mesma natureza. Sustentava o defensor que Rafaela tinha herdado
a nobreza de seu pai. O procurador baseava seu argumento na relação entre
natureza e direito (DOUGNAC RODRIGUEZ, 2003: 323). Como imitador da
natureza o direito não podia se opor a essa, e a única forma em que Rafaela
poderia disfrutar da nobreza herdada do pai, seria na condição de livre.
Como no caso de Julian e Maria Clara, também não sabemos da sentença
final do caso (GIOLITTO, 2003:86). Mas em ambos os casos o que se busca
é que a liberdade seja a consequência do reconhecimento da paternidade.
Julian e Maria Clara esclareceram em mais de uma oportunidade que
eles não demandavam a liberdade, mas ser reconhecidos como filhos naturais,
o que os habilitaria ao gozo dos privilégios com que o direito auxiliava aos
filhos naturais para os efeitos civis. Diz Tamar Herzog que os filhos naturais e
os ilegítimos passaram por um processo de subestimação que os expropriou,
entre outras coisas, da honorabilidade e do direito de ser chamados para a
sucessão dos pais. Sobre o direito à herança, a mesma autora diz que o filho

6. Ver nesse mesmo livro o capítulo de Elione Guimarães.

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legítimo herdava, o natural somente se reconhecido como tal e o ilegítimo
não tinha direito à herança. Por isso encontramos a Julian e Maria Clara
dizendo que Dom Higarera não tem herdeiros, que eles, se reconhecidos
como naturais, passariam a sê-lo.
Independentemente de que Rafaela em Cartagena de Índias e Julian e
Maria Clara em Buenos Aires conseguissem ou não o direito pleiteado, o
certo é que nos tribunais se aventavam argumentos e entendimentos sobre
os direitos cabíveis a pessoas tão “extraordinárias” que viviam no limbo das
classificações.

Papel de venda, liberdade e preço justo


O “papel de venda” foi uma das demandas recorrentes dos escravizados.
Faz mais de dez anos que me deparei com o seguinte caso que realmente me
surpreendeu, sobretudo pelos termos do argumento na demanda do papel.
Se tratava de uma solicitude de preso. Isto quer dizer que um escravo que
tinha sido colocado na cadeia por seu senhor demandava que o vice-rei
intermediasse sua solicitação. Em 1777, o escravo Francisco, estando no
cárcere, escreveu às autoridades para denunciar a truculência dos castigos
que praticava seu senhor. Ele acreditava que tudo se devia a um motivo
banal, o simples fato de que ele e sua mulher, também escrava, não queriam
servir-lhe, sendo de lei, dizia, que todo escravo tinha liberdade para encontrar
um senhor a seu gosto.7 Esses foram os termos em que Francisco colocou
sua demanda. Eu me perguntava se essa interpretação do artigo das Siete
Partidas era a predominante em Buenos Aires (SECRETO, 2010, 27-62) ou
se não se tratava de uma interpretação “extravagante”.
Os casos do mulato Cecilio Gonzalez e do Pascual Fernández tem
estruturas semelhantes, embora os “enredos” sejam diferentes. Ambos
pediram papel de venda pela quantidade em que tinham sido comprados.
Como pode ser observado se trataria de uma dupla condicionalidade imposta
ao senhor: a obrigatoriedade da venda e o valor limite para essa.8

7. Archivo General de la Nación Argentina (AGN), Solicitudes de presos. Libro 2, Sala 9,


12-9-12.
8. El mulato Cecilio esclavo de D. Isidro González solicitando se le obligue se le dé papel de
venta por la cantidad en que lo compró, 1804, AGN Administrativos Legajo 14 Expediente

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Pascual dizia:
que sintiéndome gravado con el peso de un extraordinario y no
interrumpido servicio a que me tiene mi amo constantemente dedicado,
con la desgracia de no conseguir darle entero gusto... quebrantada mi
salud y en ocasión en que un sujeto muy conocido en esta Capital me
ofrece trecientos pesos en préstamo para el rescate.

Cecílio foi muito convincente a respeito de seus méritos para ganhar o


papel de venda. Tinha trabalhado durante 11 anos para Dom Isidro e nesse
tempo tinha prestado muitos serviços para seu senhor. Pesava contra o
senhor o fato de Cecílio ter padecido uma doença e não ter sido atendido.
Dizia que sua vida corria risco e que o médico Cosme Argerich poderia
dar testemunho9. Com esses argumentos reforçava a ideia de mudança de
domínio. Sobre o preço que dava-se a essa transação, dizia:
Este me compró con once años menos de edad, es decir, en todas las
fuerzas de la mejor edad de la vida, con una capacidad y proporción
de servirle que hoy no tengo y sin la enfermedad que ahora padezco,
producida por la dureza del trabajo a que me ha tenido sujeto

Quiero decir señor Exmo. que para la tasación que hoy se haga en mi
sea justa, es necesario también que se me haga otra de la que yo valía
al tiempo que me compró mi amo, con reflexión a la edad, robustez,
salud y ofício que entonces tenía, para que contemplando la gracia que
entonces me hizo el amo que me vendió y deduciéndola del valor que
hoy tenga mi persona se conozca cuanto justamente puede mi amo
sacar de mi venta.

No caso de Cecílio podemos dizer que ele e sua defesa perceberam que
o tribunal era favorável à demanda, daí que “subissem a aposta”, se no início
eles pedem que seja avaliado como no momento da compra (350 pesos e

295 (1804) Sala IX 23-6-2 e Expediente promovido por Pascual Fernández sobre que su amo
Joaquín Manuel Fer-nández le otorgue la libertad recibiendo al efecto los 300 pesos en
que lo compró, 1805, Adminis-trativos. Legajo 15 Expediente 440 (1804-05) Sala IX 23-6-3.
9. Cosme Argerich tinha estudado medicina em Espanha. Em 1794 foi nomeado examinador
do Protomedicato do Rio da Prata. Desde 1802 ministrava aulas no Protomedicato.

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não os 500 pesos que pretendia o senhor), logo entreveram que, segundo as
práticas de avaliação que eram realizadas localmente, eles poderiam baixar
ainda mais esse preço, considerando a perda de capacidades físicas nos anos
de serviço sob o domínio de Dom Isidro. Por isso, no segundo parágrafo
da transcrição acima o escravo defende a ideia de um exame que considera
seu estado de saúde e robustez no momento da demanda, em comparação
ao de compra.
Cecílio conseguiu que seu senhor fosse intimado a outorgar o papel de
venda pelo valor que tinha pagado pelo dito escravo 11 anos antes: 350 pesos.
O senhor de Pascual foi mais veemente na defesa de seus direitos
dominiais. Argumentava que não havia lei que o obrigasse a vender seu
escravo, não obstante que fosse para que esse conseguisse a liberdade, porque
ainda que se afirme que a “justiça é favorável à liberdade”, não existiriam
fundamentos legais que o obrigassem à alienação, dizia o Joaquín Manuel
Fernández à vez que lembrava do seguinte antecedente: “y un caso sucedido
en esta capital con cierta esclava de Monica de Arce, que motivó la Real
Cédula de 9 de agosto de 1788 expedida en resultado del recurso que se hizo
A S. M. es para un caso particular y muy distinto por todas las circunstancias
del presente.” 10
Se bem o caso da proprietária Mónica Arce, obrigada a libertar a sua
escrava pelo valor que essa lhe oferecia, formava parte da casuística mais
ou menos frequente de resoluções de conflito nesse tipo de demanda, o
certo é que a existência de uma Real Cédula de Sua Majestade criava uma
fantasmagoria a perturbar os senhores. Por isso reiteravam como “mantra”
não existir uma lei que os obrigasse à alienação, quando em realidade existia,
tanto a das Sete Partidas11 quanto a Real Cédula de 9 de agosto de 1788.

10. Expediente promovido por Pascual Fernández sobre que su amo Joaquín Manuel
Fernández le otorgue la libertad recibiendo al efecto los 300 pesos en que lo compró, 1805,
Administrativos. Legajo 15 Expediente 440 (1804-05) Sala IX 23-6-3.
11. Conceitos reiterados na Real Cédula de Carlos II a las Audiencias y gobernadores de las
Indias. Buen Retiro, 12 octubre 1683.

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Após a independência
O ideário revolucionário atlântico condenava os privilégios de antigo
regime, arvorava o princípio da igualdade e mantinha a escravidão. O caso
que analisamos a seguir conjuga as contradições desse momento.
Em 1817, com toda pompa se apresentou ante a justiça do Tucumán
o “Coronel dos exércitos de Dragões da Nação”, Dom Cornelio Zelaya12,
reclamando uma escrava que se encontrava em depósito fazia uns 15 dias e
que lhe fazia muita falta. Quando um escravo fazia uma demanda contra seu
senhor era depositado em casa de alguma família respeitável para não sofrer
represálias em caso de permanecer sob o mesmo teto que o demandado.
Na primeira página do expediente o senhor reclama a devolução da
escrava. Imaginamos que há outro expediente anterior, movido por Marta,
a escrava, não localizado. Logo após a reclamação de Zelaya pedindo a
restituição, Marta se apresenta:
Marta negra esclava del Sr. coronel de Dragones Cornelio Zelaya ante
V.E. con los más sumisos rendimientos y como por derecho corresponde
digo: que la bondad de V. E. se digno depositarme a virtud de queja
que puse por el inmoderado castigo que he sufrido en casa de mi amo.
Este es un motivo suficiente para reclamar por un papel de venta.13

A seguir diz Marta que encontrou alguém que, comovido com


sua desgraça, lhe emprestava o dinheiro para que pudesse comprar sua
liberdade. Para justificar esta ação salienta que, embora existiram leis sobre
a inviolabilidade do direito do domínio, no momento da demanda não havia
nada mais oposto ao sistema igualitário, proclamado no Rio da Prata, que
o da escravidão. Se bem lamenta que não tenha sido extinta a escravidão,
reconhece que pelo menos o sistema era benigno ao resgate da liberdade.
Pedia então que o coronel fosse mandado a nomear um taxador, avaliador
de seu valor, pois ela já havia nomeado Dom Gregório Araoz para esse fim.

12. Destacado militar que havia participado da defesa de Buenos Aires quando das invasões
inglesas (1806-1807). Em 1810, na guerra de independência, também comandou um batalhão
de cavalaria e foi nessa arma que constituiu parte do exército do Norte, no Alto Peru.
13. AGN. Administrativos, Leg. 32, Exp. 1097, Sala IX 23-8-6.

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Embora o coronel tenha sido chamado a designar um perito para avaliar
a escrava, ele não aceitou a resolução. Expressava que Marta e quem lhe
emprestava o dinheiro pretendiam despojá-lo de sua propriedade e fraudar
o estado. Para ele se tratava de uma compra encoberta e não de um resgate
da escravidão. Suspeitava o Coronel que se tratava de um comprador que
buscava uma diminuição do preço à vez que burlava o fisco não pagando a
taxa da operação de compra-venda. Enquanto havia impostos para a compra-
venda, não havia para a compra da liberdade.
Qual era o papel dos avaliadores que cada uma das partes nomeava?
Os peritos definiam o valor do escravizado a partir da análise físico/
ocupacional: idade, contextura, achaques, habilidades etc. Essa ação era
chamada de justipreciar, que, como o diz a palavra, definia o preço justo.
Nessa peritagem os escravizados buscavam sempre “valer menos”, declarar
moléstias, dificuldades para desempenhar tarefas etc. de forma a facilitar
a compra da liberdade ou compra por um terceiro, mais caridoso que o
senhor que os possuía. Em alguns casos o litígio se concentrava nesse ponto:
no valor do escravo. O senhor pretendia obter o máximo possível. Falava
das qualidades do escravo, das habilidades, do preço que ele tinha pagado
e das habilidades adquiridas sob seu domínio. Se bem algumas vezes os
peritos eram leigos, em alguns casos mais litigiosos, eram os médicos do
protomedicato os que emitiam suas valorizações.
Antes de ser avaliada pelos peritos Marta foi examinada pelo médico
José Baltasar Tejerina, que figura entre os primeiros formandos da Escola
de Medicina do Protomedicato de Buenos Aires. Tinha sido médico no
exército que lutou as guerras da independência e ocupava o cargo de médico
na cidade de Tucumán. O laudo dele foi a base sobre a que se apoiaram os
peritos quando realizaram o avaluo da escrava. Tejerina diagnosticara a
escrava com doença do peito, pelo que não poderia realizar grandes esforços.14
Talvez um perito nomeado por Zelaya tivesse contestado os termos do
parecer médico, mas o coronel se negou a nomear um perito. Contestava a
resolução de justipreciar sua escrava, antecedente de aceitar a venda e o valor.

14. Esses atestados médicos existentes no interior dos processos também são fonte valiosa
para a história da saúde e da medicina (PORTO, 2006).

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À revelia de Coronel Zelaya, foram nomeados os dois taxadores: Gregório
Araoz e Patricio Acuña os quais estabeleceram, de comum acordo, o valor
da escrava em 200 pesos.
Acima falamos que os expedientes em questão permitem a aproximação
a um conjunto de aspectos da sociedade estudada, como por exemplo: a
respeito de entendimentos sobre o que é justo e injusto, sobre significados da
escravidão e da liberdade, sobre os direitos de propriedade e suas limitações,
sobre teorias econômicas. A discussões sobre o justo preço transitam entre
conceitos jurídicas e econômicas. Assim encontramos entre os argumentos
a favor da taxação que realizaram os avaliadores Araoz e Acuña, o seguinte
texto escrito pelo defensor fiscal Mariano J. de Ulloa:
El precio justo de mercadurías o especies sujetas a comercio según
doctrina curial es de dos maneras, uno legítimo y otro natural. El
primero es el que está constituido por la ley, Príncipe o República y de
ese se dice constituir punto indivisible. El segundo es el que no está en la
forma dicha constituida y por lo mismo no consiste en punto indivisible,
sino arbitrario. Este precio natural que se divide en medio, superior e
ínfimo, no se ha de calcular por lo que costó antes la alhaja sino por la
estimación común al tiempo actual, en que se trata de su enajenación
tuviese en el lugar ora gane ora pierda mucho el propietario… no se
regulan ni mensuran por lo que valió la cosa tiempos antes de la venta
sino contrariamente por la estimación que tenga al tiempo del contrato.15

Mariano José de Ulloa era um prestigioso advogado formado na


Universidade de Chuquisaca. Nesse texto expunha duas teorias diferentes
para fixar os preços. A segunda forma de definir o preço é a que mais se
parece com o que seria conhecido como “de mercado”, “a estimação comum
ao tempo atual”, como expressa Ulloa. Marta tinha perdido valor por causa
da idade e de questões vinculadas a sua contextura natural, como tinha
expressado o doutor Tejerina em seu laudo médico. O preço dela em 1817 não
era o mesmo que tinha ao tempo em que o coronel a comprou. Então, em
1813, ele tinha pagado 400 pesos. O conjunto documental ao que pertence o

15. AGN. Sala IX 23-8-6, Administrativos, Leg. 32, Exp. 1097.

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expediente que analisamos está povoado por disputas em torno da liberdade
e do preço da liberdade.
Parecia que, sobre os benefícios da liberdade, ninguém duvidava.
Sobretudo depois da independência. Quando as demandas chegavam na
justiça o preço se transformava na principal arena das disputas. Vejamos
o por quê. Para os escravizados, como já mencionamos, porque o preço
definia a possibilidade ou não de conquistar a liberdade. Para os senhores
porque o preço podia significar, no teatro do domínio, a manutenção do
poder do pater famílias.
O preço fixado nos processos dificilmente era o que pretendia o possuidor
do escravizado. O caso de Marta e o Coronel Zelaya é exemplar a esse
respeito. Os taxadores e o fiscal determinaram que ela valia a metade do que
o Coronel tinha pagado por ela quatro anos antes. Por esse motivo o Coronel
apelou. Nomeou para que o representasse em Buenos Aires, na instância de
apelação, o Brigadeiro General Martín Rodríguez, enquanto a escrava foi
representada por um reconhecido advogado chamado Antonio Moreno. A
escolha do procurador de Zelaya demonstra que ele estava muito empenhado
em ganhar a causa, um empenho talvez maior que o dimensionado pelos
200 pesos de diferença entre o que ele pretendia e o que o primeiro tribunal
tinha sentenciado. Não conhecemos a sentença da apelação, mas sabemos
dos argumentos que foram levantados em um e outro sentido.
Moreno salientou que o estado de saúde da Martha, sendo propensa
a febres, sem capacidade para trabalhos intensos e duradouros, tinham
deteriorado seu preço. Moreno questionava sobre a pretensão de 400 pesos:
¿Es compatible con las ideas liberales de nuestro sistema, cuyo objeto
es sostener y hacer valor los derechos del hombre, haciendo correr por
todas partes torrentes de sangre y otros sacrificios los más costosos?

Si Marta se ha deteriorado en poder del S. Zelaya y de consiguiente vale


menos que cuando la compró, sibi imputare, pues empleo su dinero
en cosas defectibles.16

16. AGN. Sala IX 23-8-6, Administrativos, Leg. 32, Exp. 1097.

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A partir de 1810 encontramos muitos argumentos a favor da liberdade
sustentados no contexto político, nos ideais da independência e no
sistema político escolhido para as Províncias Unidas. Por tanto há uma
recontextualização das demandas e das resoluções.
Mas, assim como nos melhores romances, o corpus documental se abre
a múltiplas leituras e abordagens. A aqui somente apresentamos algumas
possibilidades de trabalhar com os expedientes dos tribunais coloniais e o
primeiro período independente do Rio da Prata.

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2021, consulté le 02 septembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/e-
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230 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Metodologia de ensino em história do Brasil
colonial com base em fontes primárias: uma
proposta para a formação de professores à luz da
lei 10.639/ 2003

Aldair Rodrigues | UNICAMP

O objetivo deste capítulo é refletir sobre práticas e metodologias de


ensino em História do Brasil colonial centradas no uso de fontes primárias
que contêm evidências sobre a experiência histórica dos africanos na diáspora.
Discutiremos a experiência desenvolvida no âmbito de duas disciplinas de
graduação do curso de História da UNICAMP: “HH188 Laboratório de
História”1, oferecida a alunos de primeiro semestre, e “HH384 Brasil 1”2,
ministrada a estudantes de segundo ano. O texto encontra-se dividido em três
eixos principais. Na primeira parte a proposta metodológica é brevemente
situada no contexto mais amplo da renovação dos cursos de Brasil colonial a
partir do diálogo com a historiografia sobre história da África e do impacto

1. Esta disciplina foi ministrada de forma remota no primeiro semestre de 2020 para
alunos ingressantes.
2. A disciplina é oferecida regularmente no primeiro semestre de cada ano. Atualmente,
além de mim, desde 2018, a professora Camila Dias é também concursada para esta cadeira,
a qual assumimos de forma intercalada. No meu caso, fiquei responsável pelo curso nos
anos de 2016, quando me tornei professor do departamento; 2017; 2019 e 2021. As reflexões
desenvolvidas neste capítulo, portanto, baseiam-se no trabalho que desenvolvi com os
alunos nos anos mencionados.

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da lei 10.639/2003.3 Em seguida apresentamos uma sugestão de roteiro
para análise de documento em disciplinas de graduação. Na última parte,
elaboramos um exercício de aplicação do roteiro adotando como exemplo
um documento da Inquisição contra a comunidade de malungos de Recife,
datado de 1779.

A renovação da disciplina História do Brasil 1 a partir de


diálogos com história da África
A expansão dos estudos sobre história da África e da cultura afro-
brasileira nas universidades brasileiras a partir dos anos 2000, segundo
Lucilene Reginaldo, está profundamente ligada à necessidade de adaptação
das universidades às diretrizes da lei 10.639. Neste arcabouço, houve grande
número de contratação de professores africanistas. Essas transformações
abriram um imenso campo de possibilidades de renovação da ementa
de História do Brasil 1 em diálogo com os trabalhos sobre a África da
época moderna. Entre tantas, podemos sublinhar o reposicionamento do
protagonismo histórico dos africanos escravizados no processo de colonização
da América portuguesa. No cânone da área, durante muitas décadas, o
enfoque das análises era dado mais sobre o funcionamento do tráfico e da
escravidão do que sobre a vida dos africanos e seus descendentes. Já nos anos
1980 e 1990 a agência histórica dos escravizados passou a ganhar cada vez mais
espaço na historiografia, principalmente em tópicos relacionados às margens
de negociação construídas pelos africanos no seio das relações entre senhores
e escravos. Nos anos 2000 notamos uma importante inflexão nas abordagens
sobre a questão na medida em que a maior difusão das pesquisas sobre o
continente africano permitiu, por exemplo, que conhecêssemos os contextos
de onde os africanos trazidos para o Brasil eram oriundos e a historicidade

3. Essa lei tornou obrigatório o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira na


educação básica e teve inúmeros desdobramentos nos departamentos de história por terem
que se habilitar para formar professores aptos ao cumprimento da medida. http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Sobre uma avaliação da aplicação da lei
na educação básica, ver: Janz, Caroline & Cerri, Luis Fernando. 2018. “Treze anos após a
lei nº 10.639/03: o que os estudantes sabem sobre a história da África?”. Afro-Ásia, 57, pp.
187-211. A lei 10.639 foi atualizada em 2008 e passou a incluir a obrigatoriedade do ensino de
história indígena: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm

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dos processos escravização. Deste modo, vão sendo desmantelandas as
imagens racializadas, estáticas e homogêneas do continente e sua história.4
O vigor historiografia sobre África não permite mais que continuemos
a estudar a formação das hierarquias sociais na Colônia sem perguntar como
os africanos e seus descendentes vivenciaram aquelas dinâmicas a partir de
referências de seu universo cultural trazidas para as Américas. Devem ser
consideradas suas múltiplas visões etnicidade; parentesco; fronteiras entre
mundo visível e invisível; relações sociais; territorialidade; poder político,
principalmente o impacto das ideologias políticas africanas no mundo
colonial, tais como as revoltas escravas e constituição quilombos.
O aumento de publicações disponíveis em português, que podem ser
indicadas aos alunos, e a maior oferta de textos em língua estrangeira nos
repositórios digitais, dando acesso ao professor de graduação à historiografia
internacional produzida tanto na África como em outros continentes,
possibilitam ganho de densidade na formulação de propostas de reflexões
e perguntas que podem ser colocadas em sala de aula. Sob tais estímulos
intelectuais, o professor pode elaborar exercícios com fontes permeáveis à
experiência histórica dos africanos no contexto colonial brasileiro e levantar
perguntas acerca das relações de poder subjacentes ao documento e, a partir
da identificação desse filtro, vislumbrar possibilidades de aproximação do
protagonismo histórico dos africanos escravizados. Afinal, a ementa da
disciplina Brasil 1 cobre cerca de três séculos de colonização cujos temas são
obrigatórios no currículo da educação básica, tanto no ensino fundamental
como no ensino médio. O trabalho com documentos, para além da sua
relevância em qualquer tema, torna-se particularmente importante no caso
de história da cultura afro-brasileira na formação de professores porque nem
sempre encontrarão material disponível nos livros didáticos regulares, apesar
de avanços obtidos nos últimos anos. Explorando esta senda, argumentamos
que os cursos de Brasil colonial estão posicionados para oferecer contribuições
importantes para a formação de professores aptos a aplicarem a lei 10.639/2003
na educação básica. Para tanto, sugerimos a seguir um roteiro para exercício
de análise documental com o objetivo de evidenciar essas potencialidades.

4. Foge ao escopo deste capítulo uma análise historiográfica aprofundada sobre essas
questões. Excelentes balanços sobre as inflexões mencionadas podem ser encontrados,
por exemplo, em: REGINALDO, 2020, 157-212; LARA, 2005, 21-38, LARA, 2021, 465-486.

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Proposta de roteiro para análise de fonte

Introdução
No estudo do passado, segundo Marc Bloch, a “diversidade dos
testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou
escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele”
(BLOCH, 2001, 79). Portanto, a definição de fonte histórica englobaria uma
multiplicidade de vestígios da ação humana no passado, indo desde tipologias
mais convencionais, como informações textuais inscritas em papéis, até
evidências arqueológicas. Essa definição de fonte histórica prende-se ao
conceito de documento histórico na ciência arquivística: “documento é o
registro de uma informação, independente da natureza do suporte que a
contém” (PAES, 2004, 26).
Normalmente, o trabalho de pesquisa em História apoia-se em fontes
secundárias, aquilo que seria o conjunto da bibliografia tangente ao tema
a ser estudado, e fontes primárias, que podem ser vestígios do passado
preservados em arquivos, museus e bibliotecas, ou testemunhos acessíveis por
meio da oralidade ou registros audiovisuais. Essas categorias (fonte primária
e fonte secundária) não são fixas. O parâmetro para a definição de cada uma
delas depende da questão central que norteia uma pesquisa. A depender
da escolha do tema e sua abordagem, o que convencionalmente definimos
como fonte secundária pode se tornar fonte primária, por exemplo, a obra
de um autor ou um texto específico.
A proposta de roteiro aqui apresentada parte da compreensão de que
o exercício da análise de fontes é um passo fundamental na formação de
qualquer professor ou pesquisador da área de História. Os estudantes devem
saber pensar criticamente o processo histórico com base em evidências. Isso
não significa dizer que os documentos fornecem a “verdade” ou um “retrato”
neutro sobre o que aconteceu em diferentes contextos. Seu uso passa pelo
crivo de uma rigorosa crítica documental que revele as mediações subjacentes
à produção e aos usos do documento.

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Os principais objetivos dos exercícios de análise de fontes nas disciplinas
de graduação são o desenvolvimento da habilidade de examinar as condições
de produção histórica de um registro que adquiriu o estatuto de documento
e, além disso, desvendar as relações de força que permearam sua produção e
usos por diferentes agentes históricos imersos em múltiplas dinâmicas sociais.

Metodologia
Cada tipo de vestígio da ação humana vai demandar um aparato
metodológico específico conforme a sua configuração, tais como a
materialidade em que está inscrito e as formas de disposição das informações
que carrega. Nesta proposta de roteiro, estamos privilegiando informações
textuais por serem aquelas convencionalmente mais acessíveis a alunos
de graduação e aquelas mais trabalhadas pelos professores de história do
Brasil colonial. O estudo de uma fonte originalmente inscrita em suportes
de papel (digitalizadas ou não) pode ser dividido em seis passos principais.

a. Dimensão descritiva
O primeiro passo da análise de fonte consiste em uma breve apresentação do
documento, explorando suas características principais e o contexto em que foi
produzido. Para tanto, são relevantes os seguintes procedimentos:
Apresente brevemente o documento e justifique a sua escolha, destacando a relevância
da fonte em um parágrafo curto.
Em seguida, destaque o que pretende desenvolver, seus objetivos e o que será
enfatizado. Depois isso tudo será retomado e aprofundado na seção analítica.
Avalie se, pelo tamanho e características, valeria a pena anexar uma cópia do documento
ao trabalho, sua transcrição integral ou um excerto.
Em seguida, passe para a descrição detalhada, considerando os seguintes elementos:
Referência e localização do documento no arquivo.
Tipologia (manuscrito, impresso, fotografia, objeto tridimensional, pintura, conteúdo
audiovisual etc.)
Materialidade: suporte; formato; dimensões e características físicas.
Data(s);
Localidade(s);
O documento é único ou integra algum fundo/série do arquivo?
Quem produziu? Se não for possível estabelecer autoria, levante hipóteses com base
na bibliografia e em pistas da própria fonte.
Em caso de fontes textuais, em quantas partes principais o documento pode ser
dividido conforme a disposição de suas informações? No caso de imagens, qual é a
disposição/configuração do que você observa?

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b. Dimensão analítica/ ênfase na problematização – formulação de uma
questão que será o fio condutor da análise
Na etapa analítica o aluno extrai informações da fonte, estabelece diálogos com a
bibliografia sobre os aspectos ali presentes e encaminha alguma conclusão preliminar
sobre os elementos destacados. Segue abaixo a elaboração de uma proposta de
itinerário a ser trabalhado com os alunos tendo em vista estas habilidades.
Em que contexto a fonte foi produzida?
Com quais propósitos?
Quais relações sociais, econômicas ou políticas ela mediou?
Quem interfere na produção das informações? Quais são as mediações ali presentes?
Que relações de poder estão subjacentes à construção do documento?
Quais são as vozes mais em evidência? Consegue ver isso explicitamente? Se não,
consegue conjecturar hipóteses com base na bibliografia ou em seu faro historiográfico?
Quem tem visibilidade? Quais grupos sociais ou indivíduos? Quais protagonismos?
Consegue identificar silêncios presentes nas entrelinhas do documento? Se possível,
levante hipóteses sobre as vozes nele silenciadas.
Lembre-se: o documento resulta de uma construção histórica, portanto sua historicidade
deve ser evidenciada na análise.
c. Interlocução com a bibliografia
É muito importante que o aluno consulte artigos e livros (fontes secundárias) tangentes
à fonte que pretende analisar para conseguir vislumbrar o contexto mais amplo em
que ela emergiu.
Quais autores já trabalharam com documentos semelhantes e o que extraíram deles?
Quais são as potencialidades da fonte para essa historiografia? O que ela poderia
revelar que ainda foi pouco explorado?
Como esta fonte contribui para a sua formação?
e. Desenvolvimento e aprofundamento da análise
Aqui é muito importante entrelaçar as informações recolhidas no documento com os
aportes da bibliografia sobre a temática enfocada. É relevante demonstrar que sabe
mobilizar os subsídios da fonte, problematizá-los e, de modo preliminar, desenvolver
o tema analiticamente.
f. Conclusão
Retome brevemente os objetivos colocados inicialmente, passe pelos elementos
presentes na fonte e, em seguida, apresente a conclusão de forma sintética. Se possível,
elabore um argumento, evidenciando como seu trabalho contribui para o(s) campo(s) de
estudos tangenciado(s) pelas potencialidades do documento do documento escolhido.

Observação
Esse caminho (ou roteiro) é uma proposta que contempla elementos
básicos. Alguns tipos de fontes exigem metodologias muito específicas,
por exemplo, na área de história da arte (plásticas, escultura, audiovisual

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etc.) e na área de patrimônio, torna-se necessária a adoção de estratégias
metodológicas muito particulares conforme as especificidades desses campos.
O mesmo vale para a história oral, em que o corpus de evidências empíricas
exige metodologias consolidadas para lidar com a recolha de relatos orais.
Dificilmente alunos de primeiro ano conseguem trabalhar com todas
as etapas elencadas neste roteiro. O importante é que sejam estimulados a
ter os elementos listados acima em seus horizontes ao longo da graduação.
Espera-se que, ao final do curso, tantos alunos do bacharelado como da
licenciatura tenham condições de desenvolver crítica documental.

Exemplo: “Sumário contra os pretos de Angola do continente de


Pernambuco” (1779)
Nesta seção desenvolvemos o exercício de aplicação do roteiro proposto
tomando como exemplo um processo preservado no Arquivo da Torre do
Tombo, Portugal: “Sumário contra os pretos de Angola do continente de
Pernambuco”5, de 1779, cuja transcrição segue abaixo. O objetivo, como já
referido, é apontar caminhos para que futuros professores de história da
educação básica ampliem o repertório de possibilidades de aplicação da lei
10.639/2003 no ensino de história do Brasil colonial.
O documento a ser examinado é constituído por um conjunto de
denúncias ricas em informações sobre as práticas sociais, culturais, identitárias
e religiosas da comunidade formada em Pernambuco pelos africanos de
nação Angola. Além disso, o sumário oferece importantes evidências sobre
as dinâmicas subjacentes à emergência do vocábulo “malungo” no léxico do
português brasileiro do século XVIII. O estudo introdutório que antecede a
transcrição do documento tem por objetivo aproximar o leitor do contexto
no qual as denúncias foram realizadas e indicar as suas potencialidades
para a produção do conhecimento histórico acerca das experiências das
comunidades africanas na diáspora.

5. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo 4740,


1779. Daqui em diante: Sumário. Uma versão ampliada da análise desse documento foi
publicada em: RODRIGUES, 2019, 63-92.

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Transcrição atualizada do “Sumário Contra os Pretos de Angola
do Continente de Pernambuco”
[capa]

Sumário contra os Pretos de Angola do Continente de


Pernambuco
[fl.1v, em branco]
[fl.2r]
Escreveu-se pela Mesa ao Governador daquele Estado, para com as suas
providências se remediar a desordem, de que faz menção a representação
inclusa em carta com a data de 25 de novembro de 1779, a qual se acha
registrada a folha 85.
[fl.2v, em branco]
[fl.3r]
Sumário Pretos de Angola

Ilustríssimos Senhores

Da denúncia junta consta que os Pretos vindos a Pernambuco do


gentio de Angola, e outros distritos, se ajuntam e executam umas danças
acompanhadas de ritos gentílicos, como que aqueles bárbaros adoram
as falsas divindades e outras que incitam a atos torpes e obscenos; a cuja
maldade ocorrendo a vigilância dos padres missionários nada se conseguiu,
por se lhe opor o governador daquela cidade fautorizando os perversos
autores, permitindo-lhes aqueles escandalosos festejos e punindo com penas
pecuniárias aos zelosos que ajudaram os missionários a fazer detestar aqueles
erros, e quebrar-lhes os instrumentos.
Informa o Comissário Manoel Félix da Cruz a verdade deste caso e a
desordem que se irá aumentando com os sobreditos festejos gentílicos, pois
vendo os pretos que o governador lhos permite, escarneiam do contrário e
dos mesmos padres missionários.
Consta que os governadores já [anteriormente] tinham proibido esta
pestilente maldade, como de presente expõem Luís Diogo Lobo, que em

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substância vem a dizer o mesmo que expressam a denúncia e informação
inclusa.
Todos os atos que os gentios executam com alguma espécie de idolatria
são tão abomináveis que os mesmos hereges os aborrecem, detestam e
castigam; o que assim se deve executar entre a cristandade, pelo geral
escândalo dos fiéis para dar publicamente a conhecer o horror de semelhante
delito e para se precaver que aqueles mesmos pretos, depois de alcançarem
a felicidade do batismo e a sã doutrina da igreja católica, não corram e
se precipitem no horrível caos que lhes estava determinado ao tempo da
sua miserável obscuridade, voltando-se por aquele modo ao seu [antigo] e
detestável vômito.
Portanto
Requeiro [+/- 1 palavra corroída] [A Vossas Senhorias] por parte da |

[fl.3v]
da justiça, que vista a denúncia e conta do [sic] inclusas com a
circunspeção que o caso pede, se prova do remédio que parecer mais apto
e pronto para que exemplarmente se atalhe e corte pela raiz tão horrorosa
maldade.
o Promotor [Moller]
[Re]presentado em Mesa o requerimento supra do promotor para os
senhores inquisidores lhe haverem de deferir, de seu mandado lho fiz com
clareza Gregório Xavier Godinho o escrevi.
[Clos]
[fl.4r]
Denúncia ao Santo Ofício
Se deve primeiro saber que neste Pernambuco tem introduzido os
negros gentios batizados umas danças das suas terras, com que lá adoram e
festejam aos seus falsos deuses, acompanhadas de instrumentos gentílicos,
atabaques, que são como espécie de tambor, marimbas e outros de ferro,
todos estrondosos, horríveis, tristes e desentoados, próprios do inferno, e
certas cantilenas na sua língua gentílica, as quais em todos os domingos e
dias santos do ano fazem, e se coloram com título de tirarem esmola para

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Nossa Senhora, e para mandarem dizer missas pelas almas dos que morrem
daquela sociedade. E o fazem com certa mesa coberta com rito também
gentílico: o que tudo deve causar todo o reparo e atenção, pois se acham
em terra cristã e eles batizados.
Alguns governadores proibiram estas danças e outras que se fazem na
terra pelos naturais, chamadas fofa, ou batuque entre homens e mulheres,
que consiste em representar um ato torpe de fornicação, acompanhada
de instrumentos, estrépitos de pés e mãos, com ditos desonestos. E para
maior desgraça, nos tempos presentes, com ditos blasfêmicos, como “Oh
meu Deus, ora vamos para o céu”, cujo toque ou peça por si só ouvida nos
instrumentos movem incentivos para desonestidade ainda nos tementes a
Deus, quanto mais miseráveis pecadores. Foram estes Henrique Luiz, D.
Marcos de Noronha, Luiz Diogo Lobo, e o Conde de Pavolide. Fora desses
correm impunes, [maximá] nos tempos presentes e no seu aumento, nos
quais o atual governador não cura disso e se tem mostrado não só permissor,
[maximé] das dos negros, concedendo-lhes licença para isso por despacho
seu, mas também fautor, como se verá do seguinte.
Chegados os reverendos missionários capuchinhos a esta terra, mandados
pela nossa Fidelíssima Rainha, informados e vendo as sobreditas danças,
máxime a dos negros, começaram a [invehir] fervorosamente dos púlpitos
contra elas, e levados do seu apostólico espírito no dia vinte e um de dezembro
de 1778 saíram do Hospício, acompanhados de cinco sacerdotes seculares,
e pelos lugares que lhes ensinava o povo, a força da razão com um santo
Cristo reduziram a uns a entregar a alguns dos ditos instrumentos, que o
povo pelo dito dos missionários quebraram e queimaram.
Queixaram-se os outros negros no mesmo dia ao governador, que lhes
concedera a licença in scriptis, e no seguinte dia mandou intimar ordem aos
reverendos missionários de cessarem de tal fato sob pena de os remeter para
Lisboa à nossa Fidelíssima Rainha como perturbadores da República. E
condenou aos cinco sacerdotes seculares que os acompanharam em três mil
réis cada um para refação [sic] de instrumentos quebrados por não terem
os missionários com que pagar de que exaltaram os negros até com ditérios
e cantigas subsanarem pelas ruas aos ditos missionários e solenizarem as
festas do Santo Natal seguinte com especial concurso deles às tais danças. E

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a demais a um deles, que procurou ir a Lisboa dar conta à nossa Fidelíssima
Rainha, houve tal embaraço que não foi possível embarcar.
E como vendo os turcos que um cristão arrenegado andasse sempre
a repetir o Credo Pater Noster, etc, e fazendo ações e ritos cristãos,
prudentemente o teriam por cristão e não por mouro ou renegado. Do
mesmo modo, vendo aos negros gentios batizados no Cristianismo com
tanta frequência e publicidade exercitarem ações, cantilenas e ritos e festejos
da gentilidade com que adoram aos seus falsos deuses, prudentemente se
pode suspeitar e temer que estejam cristão sendo
[fl.4v]
sendo os mesmos que eram quando gentios.
E não achando uma coisa de tanto porte e peso de nossa religião cristã
remédio para se evitar nesta terra; porque, como disse, o governador concede
e fautua, os missionários, em lugar de remediar, ficaram atalhados, abatidos
e impedidos para ir dar conta à nossa Felicíssima Rainha. Eu, Domingos
Marques de Oliveira, Sacerdote do hábito de São Pedro, natural, e morador
nesta Vila de Santo Antônio do Recife de Pernambuco, por ser público e
notório o memorado fato nesta terra e por o ter presenciado e ser um dos
cinco que acompanharam aos missionários e que paguei os três mil réis
da condenação, levado unicamente e movido da honra de Deus e da nossa
religião cristã, o denuncio ao Santo Ofício para lhe por o remédio. Nesta
mesma vila do Recife, aos 10 de fevereiro de 1779.
Domingos de Oliveira Marques
[fl.5r]
Ilustríssimos Reverendíssimos Senhores
Há tempo que ando escrúpulo e desejoso de dar conta à Vossa
Reverendíssima de um abuso que se tem introduzido neste Pernambuco, e
agora com maior razão pelo fato que faz menção a denúncia inclusa.
Os negros do gentio de Angola, especialmente os do Gentio da Costa,
costumam, quando morre algum seu parente ou malungo, por publicamente
nas praças e outros lugares uma mesa coberta com uma baeta preta a pedirem
esmola para mandar dizer missas por alma do tal parente ou malungo que
faleceu (até aqui ato de piedade). Porém, nessa mesma ocasião se ajuntam

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umas e outros de diverso sexo e à roda da mesa fazem uma dança ao modo
de sua terra com uns atabaques e outros instrumentos fúnebres, que, na
verdade, não é outra coisa mais do que um rito seu gentílico. E o que mais
é que o senhor governador consente e lhes dá licença para isto e para outras
danças e batuques que atualmente fazem aos domingos e dias santos usando
nesta sua dança de cantilenas e palavras escandalosas, donde resultou o fato
que contém a denúncia inclusa, que toda é verdadeira.
É coisa, na verdade, muito alheia que no meio da cristandade se
consintam semelhantes danças que não parecem outra coisa que ritos
gentílicos opostos à santa fé e religião cristã; e como estas coisas cheiram
muito mal desse conta a Vossas Reverendíssimas com a denúncia inclusa
para que possam dar a providência, como forem servido.
Deus guarde a Vossas Reverendíssimas muitos anos. Boa Vista de Abril
8 de 1779.
De Vossas Reverendíssimas
Fiel Súdito e atento venerador
Manoel Félix da Cruz
[fl5v, em branco]

Análise

Descrição da fonte
O sumário é composto por 5 fólios (frente e verso), reunindo documentos
produzidos por quatro clérigos que atuavam em Lisboa e em Pernambuco. Por
ordem cronológica, a primeira peça é a denúncia detalhada que foi redigida
pelo padre Domingos de Oliveira Marques no dia 10 de fevereiro de 1779.
A segunda é uma carta escrita por Manoel Félix da Cruz, comissário
do Santo Ofício de Pernambuco, em 08 de abril de 1779. Além de endossar o
teor da denúncia, ofereceu uma contextualização mais ampla da persistência
das práticas rituais da comunidade angolana em sua jurisdição. Por ser
comissário do Santo Ofício em um território que não sediava um tribunal

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inquisitorial, Cruz era a autoridade máxima da Inquisição, provavelmente
foi quem remeteu os papéis para Lisboa (RODRIGUES, 2014).6
O documento seguinte é um requerimento do promotor de Lisboa,
Jansen Moller, por meio do qual solicita aos inquisidores o castigo dos
africanos para que “exemplarmente se atalhe e corte pela raiz tão horrorosa
maldade”.
Por fim, o escrivão Gregório Xavier Godinho informa que os juízes da
Mesa da Inquisição de Lisboa haviam escrito ao governador de Pernambuco
no dia 25 de novembro de 1779 com o fim de admoestá-lo para que que
tomasse providências para “remediar a desordem” causada na capitania
pelos pretos de Angola. Infelizmente, uma cópia da ordem transmitida ao
governador não foi anexada ao sumário.

Equilíbrios de poder subjacentes às denúncias


Como indicado no roteiro, uma etapa fundamental da crítica documental
é a análise das relações sociais subjacentes à produção do documento e seu
contexto. No exemplo em apreço, a carta-denúncia enviada aos inquisidores
expressa uma dinâmica conflituosa na administração colonial da capitania
de Pernambuco. De um lado estavam os membros do clero (capuchinhos
aliados com sacerdotes diocesanos) engajados em uma sanha punitivista
contra os africanos e, de outro, o governador da capitania, José da Cunha
e Menezes, o qual, segundo a denunciação, vinha adotando uma postura
permissiva em relação às dinâmicas culturais africanas que destoava das
administrações anteriores.
O padre Marques tece um panorama histórico acerca da postura
adotada pelos governadores de Pernambuco diante das danças e batuques

6. Além do Brasil, o tribunal de Lisboa exercia jurisdição sobre todo o Atlântico luso,
incluindo aí as ilhas dos Açores, Madeira, as colônias e feitorias africanas. O único tribunal
do Santo Ofício instalado no ultramar português foi o de Goa, na Índia. Para se fazer
presente na Colônia brasileira, a Inquisição lançou mão de várias estratégias, predominando
no século XVIII a ação por meio da rede de agentes eclesiásticos (Comissários e notários) e
civis, que eram os chamados familiares do Santo Ofício. As estruturas das dioceses também
tiveram papel importante para viabilizar a presença inquisitorial nestas terras, não apenas
na transmissão de denúncias e processos para Portugal, mas também porque boa parte dos
comissários eram membros dos cabidos e da justiça eclesiástica.

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que considerava gentílicos, elencando nominalmente os representantes da
coroa que não toleravam tais práticas. Em sua avaliação, foram exemplares
na repressão os governos de Henrique Luiz (1737-1746), D. Marcos de
Norona (1746-1749), Luiz Diogo Lobo (1756-1763) e Luís José da Cunha
Grã Ataíde e Lencastro, Conde de Povolide (1768-1769). Em contraste com
as administrações citadas, denunciava a soltura com que os “pretos de
Angola” organizavam suas festas e cerimônias sob o governo de José César
de Menezes, que ali estava desde 1774 e permaneceria até 1787. Os estudos
que abordam o governo de Menezes centram-se principalmente nas questões
ligadas ao funcionamento da Companhia Geral de Pernambuco e Bahia.
Destacam como ele buscava equilibrar, de um lado, os interesses da Coroa em
aprofundar o mercantilismo concebido pelo reformismo ilustrado da segunda
metade do século XVIII e, de outro, a resistência das elites pernambucanas
aos monopólios da companhia, que encareciam os cativos (DIAS, 2011,
1-12). No que toca às relações entre Menezes e as comunidades negras,
Antonia Aparecida Quintão sugere que havia uma certa flexibilidade do
governador quanto às tradições hierárquicas de origem africana construídas
e reconstruídas pelos cativos no contexto colonial. Autorizava, por exemplo,
a prática da expedição de patente de governador dos “pretos marcadores das
caixas de açúcar” do porto, os quais ritualmente estariam subordinados ao
rei do Congo eleito pela irmandade do Rosário (QUINTÃO, 2002, 80-82).
O clímax da tensão entre os dois polos do poder colonial foi atingido
quando os capuchinhos, acompanhados de cinco clérigos seculares, saíram
com uma cruz incitando a população a destruir os instrumentos empregados
pelos negros em suas danças e batuques. Como resultado, “o povo, pelo dito
dos missionários, quebraram e queimaram” os apetrechos. Essa medida
repressiva afrontava diretamente a autoridade do governador Menezes, pois
ele havia concedido “licença in scripts” que permitia os batuques. Afrontado
pelos eclesiásticos, no dia seguinte mandou intimar os capuchinhos para
que interrompessem seus excessos, “sob pena de os remeter para Lisboa”.
Além disso, condenou os cinco padres que os acompanhavam a uma pena
de três mil réis cada. A multa serviria para a restituição dos instrumentos
que haviam sido destruídos no ataque aos africanos, conforme relata o padre
Domingos de Oliveira Marques:

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condenou aos cinco sacerdotes seculares que os acompanharam em
três mil reis cada um, para a refação [sic] de instrumentos quebrados
por não terem os Missionários com que pagar, de que se exaltaram
os negros até com ditérios e cantigas subsanarem pelas ruas aos ditos
Missionários (...).

O cruzamento das informações do sumário com fontes coevas diversas,


sobretudo conjuntos documentais mais permeáveis ao cotidiano dos africanos
e sua ação histórica, poderia sustentar análises sobre as estratégias e astúcias
que os africanos adotaram para negociar aquelas margens de permissibilidade
descritas nas denúncias.

Ultrapassando o filtro colonial: práticas religiosas, sociais e


culturais
A contextualização do documento permite que o aluno identifique os
vieses e intenções que estão por trás das informações presentes na fonte.
Cumprida esta etapa, torna-se possível agora interpretar os dados que estão
nas entrelinhas do documento e, principalmente, visualizar a riqueza de
detalhes sobre a experiência africana na América portuguesa para além dos
estereótipos ligados à ideologia da demonização que detratava e inferiorizava
as culturas africanas.
A obsessão dos inquisidores pelas minúcias das atividades religiosas
dos réus na busca etnocêntrica de indícios de heresias resultava na descrição
densa de uma série de práticas culturais desviantes em relação ao ideário da
ortodoxia da fé católica nos documentos preservados pelos arquivos do Santo
Ofício. Como argumentou Ginzburg, o conhecimento do funcionamento dos
tribunais, da estrutura dos processos e do contexto no qual os inquisidores
atuavam permite o historiador transpor o filtro plasmado nos documentos e se
aproximar do universo cultural e das crenças dos sujeitos por eles perseguidos
(GINZBURG, 1991, 203-214).
No caso brasileiro, João Reis, em seu estudo sobre a invasão de um
terreiro de Calundu na vila de Cachoeira pelo aparato oficial da Bahia, no
ano de 1785, sublinhou que os documentos da repressão, não apenas os da
Inquisição, constituem a “fonte típica em que se inscreveu a história da

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religião afro no Brasil” (REIS, 1988, 60). Seguindo nesta trilha, desde finais
da década de 1980 a historiografia vem explorando o espólio resultante das
atividades repressivas da justiça eclesiástica e da Inquisição para empreender
análises inovadoras acerca da multiplicidade das práticas religiosas coloniais
de matriz africana em diferentes partes da América portuguesa (SOUZA,
1986, MOTT, 1994, MOTT, 1986, 138)
Nos anos 2000 e na década de 2010, a aproximação da historiografia
sobre a cultura da população africana e seus descendentes no Brasil com
a historiografia africanista resultou em uma importante inflexão nas suas
escalas de análise. Seja por meio dos estudos enfocando povos específicos ou
centrando em trajetórias individuais, notamos a constituição de um campo
de pesquisa cada vez mais denso que lança mão das fontes inquisitoriais
para o estudo da diáspora africana. As ênfases recaem nas especificidades
dos elementos africanos presentes nas minúcias descritas pelos notários
a partir de uma perspectiva que conjuga as dinâmicas situadas nos dois
lados do Atlântico, desvelando novas dimensões identitárias e religiosas que
compunham o universo cultural dos povos escravizados e seus descendentes
vivendo no Brasil. Podemos elencar como testemunhos dessa vertente o
trabalho de James Sweet sobre os Cobu do interior do golfo do Benim
(SWEET, 2011, SWEET, 2007); a análise de Vanicleia Santos sobre os
equívocos da associação entre o uso das bolsas de mandinga no mundo
Atlântico e os povos Mandinga da África Ocidental (SANTOS, 2008); e,
mais recentemente, a tese de Alexandre Marcussi a respeito dos calundus em
Minas Gerais, privilegiando a trajetória de Luzia Pinta (MARCUSSI, 2015).
Do lado Angolano, Roquinaldo Ferreira lançou mão de documentos do Santo
Ofício para desvendar os intercâmbios culturais entre Angola e Brasil nos
séculos XVIII e inícios do XIX, privilegiando a abordagem microbiográfica
FERREIRA, 2012, REGINALDO, 33).
O vigor dessa historiografia abre caminhos para pensarmos nas
potencialidades do documento “Sumário contra os Pretos de Angola” para o
desenvolvimento de pesquisas centradas nas cosmologias e nas religiosidades
dos povos oriundos da África Centro-Ocidental que foram traficados para
Pernambuco no Setecentos. Para evidenciar esse aspecto é muito importante
a mediação do professor com o objetivo de apresentar as linhas gerais do

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campo historiográfico que se dedicou às relações entre Brasil e Angola na
época do tráfico. Seria relevante comentar que a fonte em apreço oferece
aportes para investigações tocantes aos ritos funerários e às suas relações com
a ancestralidade no contexto da diáspora. Ao que tudo indica, as práticas
fúnebres descritas no sumário eram derivadas da cerimônia do tambo.
Alexandre Marcussi, baseando-se na historiografia africanista e na obra
de Antonio Cavazzi, define-a como uma complexa “cerimônia pela qual se
produzia o antepassado, ou seja, pela qual um morto, inicialmente hostil,
se convertia em ancestral, entendido como um ascendente com quem a
linhagem mantinha uma relação positiva de lealdade e harmonia, e a quem
podia – e devia – render culto regular.” (MARCUSSI, 2017, 103-106) No
reino de Matamba, o tambo durava oito dias, demandava uma hierarquia
sacerdotal especializada e uma série de recursos materiais para as oferendas
e envolvia possessão.
No episódio pernambucano, notamos a influência de aspectos da cultura
colonial e portuguesa nas práticas culturais angolanas, o que nos alerta para
a impossibilidade de essencializar a análise das tradições africanas no Brasil.
Os tambos parecem congregar elementos do catolicismo, aparentemente
incluindo a celebração de missas na relação com o mundo dos ancestrais
e não duravam oito dias como em Angola, sendo encurtados para caber
no ritmo e calendário do regime de trabalho da escravidão. Neste estudo
introdutório trabalhamos com a hipótese de que os elementos católicos foram
incorporados às tradições africanas em termos africanos, e não o contrário.
Ou seja, foram lidos e apropriados seletivamente com base nas cosmologias
africanas que organizavam a vida social e a relação com o mundo invisível.
Os trabalhos sobre a África Centro-ocidental convergem no sentido de
apontar a complexidade do processo de penetração do catolicismo nas
cosmologias africanas, sobretudo a cosmologia bakongo, emergindo daí um
catolicismo africano (MACGAFFEY, 1986, THORNTON, 1984, FROMONT,
2014, SOUZA, 2018). Linda Heywood e John Thornton argumentam que
estas transformações culturais tinham início no próprio continente africano
em razão da conversão do reino do Congo no século XVI e da penetração
portuguesa no território que constitui posteriormente Angola. Tratava-se de
um processo de transformações culturais e formação de culturas crioulas que

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impactava tanto os portugueses, que iam se “africanizando”, e os africanos;
muitos daqueles traficados para as Américas já possuíam variados graus
de conhecimento do catolicismo e da língua portuguesa (HEYWOOD;
THORNTON, 2001)
O sumário detalha também a dimensão material dos cultos, revelando
os instrumentos musicais e sonoros empregados nos ritos funerários, como
atabaques, marimbas e outros. Descreve suas formas, material de que eram
feitos e sons que emitiam. Tudo se passava em torno de uma “meza coberta
com uma baeta preta”.
O movimento dos corpos (“estrépidos de pés e mãos”) dos participantes
dos rituais e os versos cantados em português (ditos blasfêmicos como Oh
meu Deus, ora vamos para o Céu) ou nas línguas africanas (“cantinelas na
sua língua gentílica”) não escapam aos olhos e aos ouvidos dos clérigos
portugueses.
Os denunciantes reprovam enfaticamente a convivência entre homens
e mulheres no âmbito dos rituais que envolviam danças por conta da
sensualidade que enxergavam ali: “batuque entre homens e mulheres que
consiste em representar um ato torpe de fornicação, acompanhada de
instrumentos, estrépitos de pés e mãos, com ditos desonestos e, para maior
desgraça nos tempos presentes, com ditos blasfêmicos como Oh meu Deus,
ora vamos para o Céu”. Em outro trecho: “ajuntam umas e outros de diverso
sexo e à roda da mesa fazem uma dança ao modo de sua terra”.

Demonização das religiosidades africanas e destruição de seus


objetos de culto
Seria importante explicar aos alunos que o uso de expressões depreciativas
pelos oficiais eclesiásticos para descrever as cerimônias religiosas dos
escravizados de nação Angola, associando-as ao inferno, e a destruição de
seus instrumentos musicais são episódios do longo processo histórico de
demonização das religiões africanas (SOUSA, 1993). Tal processo não se
restringia ao espaço colonial brasileiro. A historiografia africanista demonstra
que, na verdade, este fenômeno esteve articulado também à penetração dos
missionários e outros agentes eclesiásticos do outro lado do Atlântico. A

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ação e os projetos de missionação eram marcados pela circulação de seus
agentes por todo o ultramar e pela troca intensa de correspondências e
experiências que mediavam a ação missionária. Anne Hilton (1985, 195),
John Thornton (2004, 326-327), Marina de Mello e Souza, (2018, 249-261)
Alexandre Marcussi (2017, 33-34), entre outros historiadores que trabalharam
com a documentação e crônicas produzidas pelos missionários na África
centro-ocidental, relatam diversas circunstâncias em que os agentes europeus
associavam o diabo cristão às atividades dos sacerdotes ngangas e xinguilas.
Eram acusados de invocar o demônio ao manejar, na linguagem missionária,
os fetiches minksi (Kikongo) e Kiteke (Kimbundu) para manipular as forças
do mundo invisível.
A ordem missionária que esteve por trás da destruição dos atabaques e
marimbas em Pernambuco teve membros envolvidos também em ataques
e queima de altares do outro lado do Atlântico durante o século XVIII.
Tais ofensivas dos capuchinhos foram registradas nos documentos da
administração colonial, nos relatos dos missionários e na iconografia católica,
conforme trabalho de Suely Almeida (ALMEIDA, 2016, 622).
A detração do universo cultural da população africana estava intimamente
relacionada à exploração da sua força de trabalho e à inferiorizarão de seus
lugares nas hierarquias sociais. Nos séculos XIX e XX, o processo passou a ser
operado pelas forças policiais e foi um elemento importante da racialização
das relações sociais brasileiras. Em boa medida, era isso que legitimava a
apreensão e destruição de objetos litúrgicos do Candomblé (REIS, 2008;
PARES, 2006).

Malungos e parentes
Um aspecto do Sumário que chama bastante atenção é o fato da denúncia
ser contra os africanos de Angola em sua coletividade: “contra os pretos de
Angola do continente de Pernambuco”. Acreditamos que essa tendência a
homogeneizar os cativos daquela origem expressava a face externa de uma
comunidade formada em Pernambuco por pessoas que compartilhavam,
além do trauma da escravização e travessia atlântica, elementos de um mesmo

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complexo cultural centro-africano (LARA, 2008)7. E o vocábulo malungo
era o que codificava os elos entre os membros daquela comunidade.
No século XVIII, a nação Angola designava, basicamente, os escravizados
de origens múltiplas que eram embarcados no porto de Luanda. O próprio
documento registrou em dois momentos que os pretos denunciados eram
“do gentio de Angola e outros distritos”, “negros do gentio de Angola,
especialmente os do Gentio da Costa”. Ou seja, havia diversas origens
encobertas pelo termo abrangente “Angola”.
De acordo com Joseph Miller, os luso-brasileiros, em 1570, definiam
Angola como a “região ngola a kiluanje, sob o domínio de governantes africanos
ao longo do meio do rio Cuanza” (MILLER, 2010, 38). Posteriormente,
“os representantes governamentais estabeleceram seu principal porto de
escravatura em Luanda, no começo do século XVII, eles designaram as
regiões interiores sujeitas ao seu controle militar como o ‘Reino e conquista
d’Angola” (MILLER, 2010, 40).8 Assim, “‘Angola’ a partir de então, serviu
no Brasil como termo cognato para Luanda” (MILLER, 2010, 42). Segundo
Lucilene Reginaldo, no contexto colonial, a nação Angola, que designava
a origem dos escravizados deportados via Luanda, “era bastante genérica
e imprecisa, tanto em termos étnicos como de procedência geográfica ou
regional mais específica” (REGINALDO, 2011, 185).
O leque de trabalhos que se debruçou sobre as rotas do tráfico entre
Pernambuco e a África no século XVIII destaca a importância que o
porto de Luanda desempenhava no abastecimento da praça recifense. E o
estabelecimento da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba em 1759
certamente acentuou a prevalência angolana no tráfico com Pernambuco. A
Coroa, entre outras motivações para a criação da companhia monopolista,
pretendia diminuir a presença pernambucana na Costa da Mina, onde

7. Em sua análise sobre a constituição de Palmares no século XVII, Sílvia Lara destacou
a importância de considerarmos as culturas políticas centro-africanas subjacentes à
constituição da rede dos mocambos e da comunidade ali formada. O fato de os escravos
de Pernambuco seiscentista serem majoritariamente oriundos da macrorregião Congo/
Angola forneceu-lhes, em suas palavras, uma gramática política comum.
8. Diferentemente do uso feito pelos luso-brasileiros, os europeus do Norte empregavam
o termo Angola para designar a origem dos cativos vindos de todo o território ao sul do
Cabo Lopes.

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tinha menos meios para taxar e controlar o comércio de cativos, pois ali os
portos eram dominados pelas elites africanas (MENZ, 2013, 45-76; SILVA
JR., 2017, 1-41; LOPES, 2008).9 Os dados sistematizados por Suely Almeida
e Jéssica Sousa demonstram a prevalência angolana em Pernambuco tanto
no número de embarcações como no número de pessoas desembarcadas.

Quadro 1 – Número de embarcações que vieram da Costa Africana para


o porto de Recife
Nº de embarcações Nº de embarcações
Período
vindas de Angola vindas da Costa da Mina
1742-1759 121 63
1759-1777 78 25
Fonte: Almeida e Sousa, 2013, p. 44.

Como vimos, a denúncia refere-se aos governadores anteriores da


capitania, informando que, em sua maioria, eram duros na proibição às
práticas culturais africanas. Embora devamos cogitar que este pudesse ser um
artifício retórico dos oficiais eclesiásticos para atacar o governador Meneses,
é muito provável que os batuques promovidos pelos cativos constituíam uma
tradição que vinha de longa data, recuando aos primórdios da escravidão
africana e presença angolana na região.
Ao descrever os ritos fúnebres para os inquisidores, o comissário Manoel
Félix da Cruz especificou que eram praticados pelos “negros do Gentio de
Angola, especialmente os do Gentio da Costa” quando “morre algum seu
parente10, ou malungo”. Então costumavam por “publicamente nas praças, e

9. É importante notar que Pernambuco nunca deixou de importar pessoas escravizadas


dos diversos portos da Costa da Mina, como pudemos observar nos dados reproduzidos
acima e, também por meio das evidências presentes no trabalho de Gustavo Acioli Lopes
para o período que vai 1654 a 1760.
10. Os temos malungo e parente aparecem no documento de forma sobreposta, como se
fossem quase sinônimos. Tanto João Reis, em sua análise para o século XIX, como Aparecida
Quintão, em seu estudo sobre o século XVIII, indicam que o termo parente possuía o sentido
de “parente de nação”, expressava a relação entre as pessoas que tinham a mesma origem
étnica, sobretudo no contexto das irmandades católicas negras. Muitas destas associações
caritativas eram organizadas a partir das “nações” dos cativos. Cf. Reis, 1991, 55; Quintão,
2002 90-99. Portanto, malungo tendia a expressar não apenas os vínculos entre companheiros
de um mesmo barco, mas também a relação entre africanos que tinham a mesma origem.

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outros lugares uma mesa coberta com uma baêta11 preta a pedirem esmola
para mandar dizer missas por alma do tal parente, ou malungo, que faleceu”.
Nestas ocasiões “se ajuntam umas e outros de diverso sexo e a roda da
mesa fazem uma dança ao modo de sua terra com uns tabaques e outros
instrumentos fúnebres”.
A desenvoltura demonstrada pelos oficiais eclesiásticos no emprego do
vocábulo malungo para se referir aos vínculos de amizade e companheirismo
nutridos pelos africanos de Angola nos leva a pensar que seu uso pelas
comunidades escravizadas vinha de tempos bem mais recuados. Era corrente
entre eles, foi ganhando densidade e ultrapassando o universo social dos
cativos até que passou a ser usado correntemente em Pernambuco. Por
isso já fazia parte do léxico das autoridades portuguesas no século XVIII,
chegando até Lisboa.
Manoel Félix da Cruz, o comissário da Inquisição que transmitiu
a denúncia ao Santo Ofício, era membro de uma família enraizada em
Pernambuco havia várias gerações, pelo menos pelo lado materno. Seu
processo de habilitação para se tornar agente inquisitorial informa que ele
havia nascido na freguesia da Vargem em 1720, filho de Manoel Marques
da Cruz. 12 Portanto, havia crescido entre uma população que convivia com
os “pretos de Angola” havia muitos anos.
Os estudos sobre o mundo afro-atlântico há tempos vêm sublinhando
a importância dos elos construídos pelos africanos nos navios negreiros
como forma de resistir à experiência dolorosa da viagem transatlântica. No
ensaio “O nascimento da Cultura afro-americana”, Sidney Mintz e Richard
Price argumentam que os laços formados durante a traumática travessia
por pessoas de grupos étnicos variados eram as primeiras fagulhas da
formação da cultura afro-americana. Na visão dos autores, as embarcações
eram carregadas com uma imensa diversidade de povos cujas línguas não
eram mutuamente compreensíveis. Em várias regiões do Caribe, os laços
tecidos na travessia depois continuavam sendo estreitados na constituição

11. Segundo Raphael Bluteau, baeta significa “pano de lã”. Vol. 2. http://dicionarios.bbm.
usp.br/pt-br/dicionario/1/baeta
12. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Habilitações do Santo Ofício, maço 176, documento
1868. 1760.

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de culturas crioulas que englobavam nestas redes de solidariedade os
descendentes dos africanos nascidos no cativeiro (MINTZ; PRICE, 2003).
As expressões que codificavam os vínculos criados na travessia variavam
de acordo com as regiões escravistas: sibbi ou sippi no Suriname; malongue
em Trinidad; bâtiment no Haiti; shipmate na Virgínia, Barbados e Jamaica;
nesta última, shipmate era, inclusive, sinônimo de irmão nas comunidades
escravizadas e poderia chegar ao ponto de interditar relações sexuais entre seus
membros (MINTZ; PRICE, 2003, 65-67; REDIKER, 2011, 310-312). Em partes
do Caribe, segundo Marcus Rediker, “mais tarde, os escravos que tinham
viajado juntos estendiam ainda mais esse ‘parentesco’, recomendando aos
filhos que chamassem seus companheiros de bordo de ‘tio’ e ‘tia’ (REDIKER,
2011, 310-312).13
No caso específico do Brasil, Robert Slenes realizou análise detida sobre
a formação de identidades sociais e culturais no âmbito da diáspora dos
povos da África Centro-ocidental para as áreas rurais do sudeste brasileiro do
Oitocentos. Apoiado na linguística histórica e na demografia da escravidão
e do tráfico, argumentou que os africanos oriundos das áreas falantes de
Kikongo, Kimbundu e Umbundu, que constituíam a esmagadora maioria das
comunidades escravas da região enfocada em seu estudo, compartilhavam
códigos culturais e suas línguas, por serem todas do tronco linguístico bantu,
eram mutuamente compreensíveis. Por isso, malungo, que tinha ressonância
nas três línguas, originalmente significava barco e foi passando também a
significar companheiro de barco, contendo em si a dimensão traumática
da travessia (Slenes, 1992, 48-53). Mais do que a experiência comum da
travessia, tratava-se da emergência de laços e identidades possibilitados
pelo fato de que eram originários da macro área centro-africana, em que,
apesar de especificidades, é possível encontrar um amplo complexo cultural
formado pelos povos falantes das línguas do tronco bantu. Os elementos

13. Marcus Rediker. Apesar de destacar a formação de laços de companheirismo nas


embarcações, o autor demonstra que o navio negreiro era um universo bastante complexo.
Cita vários exemplos de rivalidades étnicas trazidas da África Ocidental, onde havia uma
grande variedade formações políticas e linguísticas, que se desdobravam em conflitos
violentos nas embarcações. Nesse sentido, como estratégia de controle social, os tripulantes
contavam com a ajuda de intérpretes para evitar acorrentar juntos cativos de “nações”
diferentes. Sobre este aspecto, ver as páginas 279-280.

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culturais comuns desta região emergiram na travessia terrestre, Atlântica,
e depois na experiência do cativeiro. Assim, de acordo com o autor “A
palavra ‘encapsula’ o processo pelo qual escravos, falantes de línguas bantu
diferentes e provindos de diversas etnias, começaram a descobrir-se como
‘irmãos’” (SLENES, 1992, 54). Do ponto de vista social e político, a língua
e os aspectos culturais comuns que partilhavam permitiram a construção
de uma comunidade que desenvolveu múltiplas estratégias de resistência
escrava. Estas tornaram-se um problema político para o processo de formação
do estado-nação, que tinha que enfrentar a pressão inglesa pela abolição na
face internacional e a pressão das senzalas, no contexto interno. Portanto,
o termo malungo expressava os elos entre os membros das comunidades
formadas por pessoas que constituíram esse mundo.
Para a Bahia de inícios do século XIX, Lucilene Reginaldo encontrou o
termo malungo sendo aplicado para designar vínculos entre companheiros
que falavam Kicongo (da nação Congo) em um inquérito de 1807 aberto em
Santo Amaro para apurar uma denúncia de contrabando de pólvora. Ao que
parece, portanto, malungo poderia ser utilizado para traduzir as conexões
entre cativos de uma mesma nação. Conforme transcrição da autora, o
escrivão registrou que o denunciante Manoel Uzeda Rodrigues da Silva
ficara sabendo da ocorrência envolvendo o desvio de pólvora por meio de
João “malungo do escravo do denunciante e de igual nação” (REGINALDO,
2011, 189).14
Em síntese, considerando os estudos de Slenes para o sudeste bantu, as
evidências presentes no trabalho de Lucilene Reginaldo e o uso do termo
malungo em Pernambuco, podemos concluir que, tendencialmente, a palavra
malungo abrangia os membros das comunidades formadas por falantes das
línguas do tronco bantu: Kikongo, Umbundu e, sobretudo, Kimbundu (falado
nos territórios habitados pelos vários grupos Ambundos, incluindo o reino
do Ndongo, onde se situa a atual Angola). Mais do que apenas companheiros
de barco, a palavra estava relacionada a um conjunto mais amplo de práticas
sociais, religiosas e culturais de povos que compartilhavam um fundo

14. A transcrição do trecho do processo aqui reproduzida foi realizada pela autora a partir
do processo presente Arquivo Público do Estado da Bahia, Maço 408, Capitães Mores –
Santo Amaro, junho/1807.

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cultural cujos aspectos comuns emergiram na diáspora, sobrepondo-se
aos contrastes que eram salientes no continente africano. O uso de malungo
para se referir de forma particular aos escravizados de nação Angola num
contexto em que conviviam com os de nação Mina, embora estes tivessem
um peso demográfico bem menor, reforça a importância da densidade
dos laços entre os povos de origem bantu na diáspora. Portanto, a palavra
em português que designava companheiro de barco não foi forjada na
Torre de Babel linguística imaginada por Mintz e Price, visto que Kikongo,
Kimbundu e Umbundu, apesar de guardarem variações importantes, são
idiomas mutuamente compreensíveis. Mais do que uma questão linguística,
a experiência comunitária após a travessia demonstra o sentido afrocêntrico
dos ritos e cerimônias fúnebres em Pernambuco. Malungo aparece no Sumário
sendo empregada para designar os membros de uma comunidade que se
reunia para a realização de práticas fúnebres conhecidas como Tambo. O
microcosmo social do navio negreiro foi certamente um locus importante
destas experiências, mas os princípios organizadores das comunidades
africanas na diáspora remontavam ao continente africano.

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REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, pp. 310-312.
REGINALDO, Lucilene. Diversas nações de que se compõe a escravatura
vinda da Costa da África: Identidades africanas, História da África e a
Historiografia da Escravidão no Brasil. In: RÉ, Henrique Antonio; SAES,
Laurent Azevedo Marques de; VELLOSO, Gustavo (Org.). História e
Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: Novas Perspectivas. 1ed. São
Paulo: Alameda; Brasiliana, 2020, [157-212].
REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas – irmandades de africanos
e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011.
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade
e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
REIS, João. A Morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

257 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


REIS, João. Magia Jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto de Cachoeira,
1785.Revista Brasileira de História, v. 8, n. 16, [67-72], 1988.
RODRIGUES, Aldair. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e
mecanismos de promoção social (Século XVIII). São Paulo: Alameda,
FAPESP, 2014.
RODRIGUES, Aldair. Malungos e parentes: “sumário contra os pretos de
angola do continente de Pernambuco” (1779). Sankofa (São Paulo), v. 12, n.
22, 2019, [63-92].
SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: Século
XVIII. (Tese de doutorado, FFLCH-USP, 2008).
SILVA JR. Carlos da. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo
(Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História (USP), São Paulo, n.
176, [1-41] 2017.
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem!: Africa coberta e descoberta do
Brasi., Revista de História da USP, 1992 (12):48, p. 53.
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico: Demonologia e Colonização
(Séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras,
1986.
SOUZA, Marina de Mello e. Além do visível: poder, catolicismo e no Congo
e em Angola (séculos XVI e XVII). São Paulo: EDUSP, 2018. 
SWEET, James. Domingos Alvares: African healing, and the intellectual history
of the Atlantic world, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.
SWEET, James. Recriar Africa: cultura, parentesco e religião no mundo
afro-português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007.
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico
1400-1800.Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, [326-327].
THORNTON, John. The Development of an African Catholic Church in
the Kingdom of Kongo, 1491-1750. The Journal of African History, 25 (2),
1984, [147-167].

258 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Sobre os autores

Aldair Rodrigues
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São
Paulo (USP). É professor efetivo do Departamento de História da UNICAMP,
dedicando-se atualmente ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial, é
diretor do Arquivo Edgard Leuenroth. Bolsista de Produtividade em Pesquisa
do CNPq - Nível 2.
Elione da Silva Guimarães
Doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e
mestre pela mesma instituição, fez graduação na Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF).
Elione atualmente é pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora
(AHJF). Desde 1985 trabalha com organização de fontes documentais e, nos
últimos anos, com digitalização de imagens documentais.
Fabrício Prado
Doutor em História da América Latina pela Emory University (Atlanta,
EUA), licenciado e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
Fabrício é professor associado de história no College of William and Mary,
onde ministra aulas sobre a América Latina Colonial e o Mundo Atlântico.
Seus interesses de pesquisa se concentram em dinâmicas transfronteiriças,
redes sociais, comércio, comércio de contrabando, corrupção, história social
e econômica do Cone Sul da América Latina.
Flavio dos Santos Gomes
Doutor e mestre em história social pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Fez graduação em História pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

259 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Professor nos programas de pós-graduação em História Comparada
(PPGHC), História Social (PPGHIS) e Ensino de História (PPGEH), no
Instituto de História da UFRJ. É professor colaborador do programa de
pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Desenvolve pesquisas em história comparada, cultura material, demografia,
escravidão, cartografia e pós-emancipação nas Américas, especialmente
Venezuela, Colômbia, Guiana Francesa e Cuba. Também atua no Laboratório
de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e pós-coloniais
(LEHA) do Instituto de História da UFRJ.
Isadora Moura Mota
Doutora em História pela Brown University (EUA) e mestre em História
Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Fez graduação
em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professora
do departamento de história de Princeton University (EUA). Historiadora
da escravidão no Brasil e no mundo atlântico. Seus estudos se concentram
na história brasileira moderna, escravidão comparada, abolicionismo,
alfabetização e a diáspora africana para a América Latina.
Jonis Freire
Doutor em história pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), fez mestrado em história na Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho – Franca (UNESP). Graduou-se em História na
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Jonis é professor na Universidade Federal Fluminense (UFF),
coordenador do Grupo de Pesquisa: História Economica, Quantitativa
e Social (HEQUS), e do Centro de Estudos do Oitocentos (CEO). Tem
experiência na área de História do Brasil nos períodos colonial e imperial.
Suas pesquisas se concentram nas sociedades escravistas (XVIII e XIX) e
demografia e economia da escravidão.
Karoline Carula
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP),
possui mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), sendo graduada por esta mesma instituição.
Karoline é professora da Universidade Federal Fluminense. Líder do
Centro de Estudos do Oitocentos (CEO-UFF) e membro do Laboratório

260 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


de Estudos de Gênero e Subjetividades (LEGES). Tem experiência na área
de História do Brasil Imperial, atuando nos seguintes temas: Gênero; Raça;
Escravidão; Intelectuais; Ciência; Imprensa.
É Jovem Cientista de Nosso Estado/Faperj e bolsista de Produtividade
em Pesquisa Nível 2 do CNPq.
Layla Silva Ferreira
Mestranda em História das Ciências e da Saúde (COC-FIOCRUZ).
Fez graduação em história na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Pesquisadora das relações sociais escravistas no Brasil oitocentista.
Atualmente realiza pesquisa sobre fugas de escravizados. Ligada ao LEHA
– Laboratório de Estudos em História Atlântica (UFRJ).
Maísa Faleiros da Cunha
Graduada em Ciências Sociais, Mestre e Doutora em demografia pela
UNICAMP. É pesquisadora do do Núcleo de Estudos de População «Elza
Berquó” (NEPO) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Maísa tem experiência na área de Ciências Sociais, Demografia e História.
Atua principalmente nos seguintes temas: demografia histórica, censos de
população, registros paroquiais, família escrava e regimes demográficos.
É coordenadora Associada do Nepo e coordenadora do GT População e
História da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP).
Marcelo Mac Cord
Graduado em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), doutor e mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).
Professor de História da Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisa sobre história social e
história do trabalho e dos trabalhadores. Autor e organizador de numerosos
livros que têm a experiência dos trabalhadores como tema central.
María Verónica Secreto
Doutora em História Econômica pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Mestre em História social pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Fez graduação em História na Universidad Nacional
de Mar Del Plata – Argentina. É professora titular da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Pesquisa sobre história da América, nos recortes de

261 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


história agrária e história da escravidão. É Cientista de Nosso Estado/Faperj
e bolsista de Produtividade em Pesquisa Nível 2 do CNPq.
Tânia Pimenta
Doutora e mestre em história social pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Graduada em história pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação
Oswaldo Cruz e professora do Programa de Pós-Graduação em História
das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz). Pesquisa e ensina sobre história
da saúde pública no Brasil, escravidão e saúde, história das artes de curar,
história dos hospitais e da assistência à saúde. Atualmente pesquisa sobre
práticas de cura, epidemias e assistência à saúde. Bolsista de Produtividade
em Pesquisa Nível 2 do CNPq.

262 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Coordenação editorial: Betânia G. Figueiredo
Diagramação e capa: Amanda Paim do Carmo
Revisão: Cláudia Rajão

Formato: 15,5 x 22,5 cm | 263 p.


Tipologias: Minion Pro e Myriad Pro.
Papel da capa: Cartão 250g/m2
Papel do miolo: Polén Soft 80g/m2

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O destinatário do livro pode ser qualquer leitor curioso, mas principalmente
os estudantes e jovens investigadores que se interrogam sobre as formas
da pesquisa em história.
Os organizadores partem de uma evidência, a de que o “manual” de
metodologia da história é um gênero pouco cultivado, se comparado
com os das ciências sociais. Nesse sentido, o livro vem preencher
um vazio. A obra em mãos não é um manual propriamente dito;
ele tem um recorte temático. Apresenta fontes e tratamentos
metodológicos em torno da escravidão e liberdade

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