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UFSCar – Universidade Federal de São Carlos

89400 - Séries e Equações Diferenciais 1001237 - Cálculo B


Notas de aulas ENPE 2020/2

Aula 1 - Equações Diferenciais de Primeira Ordem


1 Introdução
Antes de iniciarmos propriamente com o conteúdo de equações diferenciais de primeira or-
dem, precisamos primeiramente entender o que quer dizer uma equação diferencial.
A primeira pergunta que surge é: por que estudamos equações diferenciais?
Muitos dos princípios, ou leis, que regem o comportamento do mundo físico são proposições,
ou relações, envolvendo a taxa segundo a qual os fenômenos acontecem. Expressas em linguagem
matemática, as relações são equações e as taxas são derivadas. Equações contendo derivadas são
equações diferenciais. Dessa forma, a fim de compreender e investigar problemas que envolvam
o movimento de fluidos, o fluxo de corrente elétrica em circuitos, a propagação e detecção de
ondas sísmicas, ou o aumento ou diminuição de populações, entre muitos outros, é necessário
saber alguma coisa sobre equações diferenciais.
Dizemos que uma equação diferencial que descreve algum processo físico (ou biológico) é
chamada de modelo matemático do processo.
Vejamos o seguinte exemplo.
Exemplo 1. Suponhamos que um objeto esteja caindo na atmosfera, perto do nível do mar.
Vamos formular uma equação diferencial que descreva esse movimento.
O movimento ocorre durante um período de tempo t e o objeto atinge uma determinada
velocidade v . Já que essa velocidade deve variar em relação ao tempo, vamos considerar v como
uma função de t. Dessa forma, t é a variável independente e v é a variável dependente. Vamos
adotar que a velocidade é positiva quando o sentido do movimento é para baixo (objeto caindo),
e que o tempo é medido em segundos (s) e a velocidade, em metros por segundo (m/s).
Sabemos que a lei física que governa o movimento de objetos é a segunda lei de Newton, que
diz que a massa do objeto vezes sua aceleração é igual à força total atuando sobre o objeto. Em
linguagem matemática, expressamos essa lei pela equação

F = ma; (1)

em que m é a massa do objeto (medida em quilogramas - kg), a sua aceleração (em metros por
segundo ao quadrado - m/s2 ) e F é a força total agindo sobre o objeto (em Newtons - N).
Lembremo-nos que a aceleração e a velocidade são relacionadas por a = dv=dt, de modo que
a equação (1) pode ser reescrita na forma
dv
F = m : (2)
dt
O próximo passo é determinar todas as forças que agem sobre o objeto. A gravidade exerce
uma força igual peso do objeto, ou seja, mg , em que g é a aceleração devida à gravidade. Além
disso, existe uma força devido à resistência do ar, que supomos ser proporcional à velocidade,
isto é, v , em que é uma constante chamada de coeficiente de resistência do ar.

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Figura 1: Forças agindo sobre um objeto em queda livre

Para escrever uma expressão para a força F , precisamos lembrar que a gravidade sempre age
para baixo (no sentido positivo do movimento), enquanto que a resistência do ar age para cima
(no sentido negativo), como ilustrado na Figura 1.
Logo,
F = mg v; (3)
e a equação (2) fica reescrita como

dv
m = mg v: (4)
dt
A equação (4) é um modelo matemático de um objeto caindo na atmosfera, próximo ao nível
do mar. Observemos que essa equação diferencial possui três constantes m, g e . As constantes
m e dependem bastante do objeto particular que está em queda e serão diferentes, em geral,
para objetos diferentes. É comum referir-se a essas constantes como parâmetros. Por outro lado,
o valor de g é o mesmo para qualquer objeto.
Para resolver a equação (4), precisamos encontrar uma função v = v (t) que satisfaça
a equação. Existem vários métodos que nos auxiliam na obtenção de uma solução para uma
equação diferencial e veremos alguns deles mais adiante.

Exemplo 2. Vamos verificar que a função v (t) = 49 + ce t=5 satisfaz a equação (4) com m=
10 kg, g = 9; 8 m/s , = 2 kg/s e c é uma constante.
2

De fato, a equação (4) com os parâmetros substituídos é escrita como

dv v
=9 8 ; : (5)
dt 5

Derivando a função v(t) = 49 + ce t=5 em relação a t, temos:

dv 1
= ce t=5
: (6)
dt 5

Por outro lado, substituindo a expressão de v(t) em (5), segue que:


dv 49 + ce t=5 49 ce t=5 1
;
=9 8 =9 8 ; = ce t=5
;
dt 5 5 5 5

obtendo exatamente a expressão da derivada de v em relação a t dada por (6).


Logo, a função v (t) = 49 + ce t=5 satisfaz a equação (5).

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2 Classificação de Equações Diferenciais
As equações diferenciais são classificadas de acordo com o tipo, ordem e linearidade.
Uma das classificações mais imediatas de uma equação diferencial é baseada em se descobrir
se a função desconhecida (no Exemplo 2 a função desconhecida era v (t)) depende de uma
única variável independente ou de diversas variáveis independentes. No primeiro caso, aparecem
na equação diferencial apernas derivadas simples e elas são do tipo equações diferenciais
ordinárias. No segunda caso, as derivadas são derivadas parciais e a equação é chamada de
equação diferencial parcial.
As equações diferenciais que vimos nos exemplos anteriores são equações diferenciais ordi-
nárias. Outro exemplo de uma equação diferencial ordinária é

d2 Q(t) dQ(t) 1
L +R + Q(t) = E (t); (7)
dt2 dt C
para carga Q(t) em um capacitor em um circuito elétrico com capacitância C , resistência Re
indutância L.
Exemplos típicos de equações diferenciais parciais são a equação de calor

@ 2 u(x; t) @u(x; t)
2 = ; (8)
@x2 @t
e a equação da onda
@ 2 u(x; t) @u(x; t)
a2 = : (9)
@x2 @t
Nas equações (8) e (9), 2 e a2 são constantes físicas. A equação de calor (8) descreve a
condução de calor em um corpo sólido, e a equação da onda (9) aparece em uma variedade de
problemas envolvendo movimento ondulatório em sólidos ou fluidos.
A ordem de uma equação diferencial é a ordem da derivada de maior ordem que aparece na
equação. As equações (4) e (5) são de primeira ordem, enquanto que as equações (7), (8) e (9)
são de segunda ordem.
Mais geralmente, a equação

F (t; u(t); u0 (t); : : : ; u(n) (t)) = 0; (10)

é uma equação diferencial ordinária de ordem n. A equação (10) expressa uma relação entre a
variável independente t e os valores da função u e de suas n primeiras derivadas, u0 ; u00 ; : : : ; u(n) .
É conveniente e usual substituir u(t) por y e u0 (t); u00 (t); : : : ; u(n) (t) por y 0 ; y 00 ; : : : ; y (n) . Assim,
a equação (10) fica
F (t; y; y0 ; : : : ; y(n) ) = 0: (11)
Por exemplo,
F (t; y; y0 ; y00 ; y000 ) = y000 + 2et y00 + yy0 t4 = 0 (12)
é uma equação diferencial ordinária de terceira ordem para y = u(t). Algumas vezes outras letras
serão usadas no lugar de t e de y para as variáveis independente e dependente. O significado
deve ficar claro pelo contexto.
Uma classificação muito importante de equações diferenciais é se elas são lineares ou não.
A equação diferencial
F (t; y; y0 ; : : : ; y(n) ) = 0

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Figura 2: Um pêndulo oscilando

é dita linear se F é uma função linear das variáveis y; y 0 ; y 00 ; : : : ; y (n) (uma definição análoga se
aplica às equações diferenciais parciais.
Assim, a equação diferencial ordinária linear geral de ordem n é

a0 (t)y(n) + a1 (t)y(n 1)
+    + an(t)y = g(t): (13)

Uma equação que não é da forma (13) é uma equação diferencial não-linear. A equação (4)
é linear, enquanto que a equação (12) é não-linear por causa da expressão yy 0 . Veja que, em
(12), o termo t4 não interfere na linearidade da equação diferencial.

Exemplo 3. Vejamos um problema físico que resulta em uma equação diferencial não-linear:
o problema do pêndulo. O ângulo  que um pêndulo de comprimento L oscilando faz com a
direção vertical (veja a Figura 3) satisfaz a equação

d2  g
F (t; ; 0 ; 00 ) = + sen  = 0: (14)
dt2 L
A presença da parcela envolvendo sen  faz com que a equação (14) seja não-linear.
A teoria matemática e os métodos para resolver equações diferenciais lineares são bastante
desenvolvidos. No entanto, a teoria para equações não-lineares é mais complicada e os métodos de
resolução são menos satisfatórios. Uma saída para a resolução de equações não-lineares é tentar
conseguir transformá-las, de certa forma, em equações lineares. Por exemplo, para o pêndulo,
se o ângulo  for pequeno, então sen    e a equação (14) pode ser aproximada pela equação
linear
d2  g
+  = 0: (15)
dt2 L

Esse processo de aproximar uma equação não-linear por uma linear é chamado de lineari-
zação e é extremamente útil para tratar equações não-lineares.

3 Soluções de equações diferenciais


Vamos supor que sempre é possível resolver uma equação diferencial ordinária dada pela
maior derivada, obtendo
y(n) = f (t; y; y0 ; y00 ; : : : ; y(n 1) ): (16)

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Uma solução da equação diferencial ordinária (16) no intervalo <t< é uma função 
tal que 0 ; 00 ; : : : ; (n) existem e satisfazem
(n) = f [t; ; 0 ; 00 ; : : : ; (n 1)
;
] (17)
para todo t em < t < . A menos que digamos o contrário, supomos que a função f na equação
(16) toma valores reais e que estamos interessados em encontrar soluções reais y = (t).
No Exemplo 2, vimos que a função v (t) = 49 + ce t=5 satisfaz a equação (5) e, portanto, v (t)
é uma solução de (5) para todo t 2 R.
Devemos sempre ter em mente que uma equação diferencial geralmente possui um número
infinito de soluções. Por exemplo, para qualquer valor de c, a função y = ctet é uma solução da
equação y 00 2y 0 + y = 0. Dizemos que y = tcet é uma família de soluções para a equação.
Exemplo 4. É fácil verificar que as funções
y = et ; y = e t ; y = c1 et ; y = c2 e t
e y = c1 et + c2 e t

são soluções da equação diferencial


y00 y = 0:
Notamos que y = c1 et é uma solução para qualquer escolha de c1 , mas y = et + c1 , com c1 6= 0,
não satisfaz a equação.
O estudo de equações diferenciais é semelhante ao cálculo integral. Ao calcular uma integral
indefinida, utilizamos uma única constante de integração. De maneira análoga, quando resol-
vemos uma equação diferencial de primeira ordem F (t; y; y 0 ) = 0, normalmente obtemos uma
família de curvas ou funções G(t; y; c) = 0 que depende de um parâmetro arbitrário c. Em ge-
ral, quando resolvemos uma equação de n-ésima ordem F (t; y; y 0 ; : : : ; y (n) ) = 0, esperamos uma
família a n parâmetros de soluções G(t; y; c1 ; : : : ; cn ) = 0.
Definição 1. Uma solução para uma equação diferencial que não depende de parâmetros
arbitrários é chamada de solução particular. Além disso, a função constante y = 0, se
for solução de alguma equação diferencial, será chamada de solução trivial.
Exemplo 5. Para escolher uma solução particular basta escolher valores específicos para o(s)
parâmetro(s) na família de soluções. Do Exemplo 4, sendo y = cet uma família de soluções para
y00 y = 0, tomando c = 0, c = 2 e c = 5, obtemos as soluções particulares y = 0, y = 2et e
y = 5et , respectivamente.
Definição 2. Uma solução de uma equação diferencial que não pode ser obtida especificando-
se os parâmetros em uma família de soluções é chamada de solução singular.
Exemplo 6. A função y = (t2 =4 + c)2 é uma família de soluções para y 0 = t y . Quando c = 0,
p
a solução particular que obtemos é y = t4 =16. Neste caso, a solução trivial y = 0 é uma solução
singular para a equação, pois ela não pode ser obtida da família escolhendo-se um valor do
parâmetro c.
Definição 3. Se toda solução de F (t; y; y 0 ; : : : ; y (n) ) = 0 no intervalo I pode ser obtida de
G(t; y; c1 ; : : : ; cn ) = 0 por uma escolha apropriada dos parâmetros c1 ; : : : ; cn , dizemos que a
família a n parâmetros é uma solução geral para a equação diferencial.
A representação geométrica da solução geral é uma família infinita de curvas, chamadas de
curvas integrais. Cada curva integral está associada a um valor particular de c e é o gráfico
da solução correspondente àquele valor de c.

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4 Equações diferenciais de primeira ordem
Nesta e nas demais aulas da Unidade I, vamos tratar especificamente de equações diferen-
ciais ordinárias de primeira ordem,
dy
= f (t; y); (18)
dt
em que f é uma função de duas variáveis dada. Qualquer função diferenciável y = (t) que
satisfaça essa equação para todo t em um determinado intervalo é dita uma solução. Nosso
objetivo é determinar se tais funções existem e, caso existam, desenvolver métodos para encontrá-
las.
Para uma função f arbitrária, não existe um método geral para resolver a equação diferencial
em termos de funções elementares. Em vez disso, estudaremos vários métodos, cada um aplicável
a uma determinada subclasse de equações de primeira ordem.
Estamos interessados em resolver uma equação diferencial de primeira ordem
dy
= f (t; y)
dt
sujeita à condição inicial y (t0 ) = y0 , em que t0 é um número em um intervalo I e y0 é um
número real arbitrário, obtido como imagem de t0 pela função y .
O problema 8
>
< dy = f (t; y);
> dt
:y(t0 ) = y0 ;
é chamado de problema de Cauchy ou problema de valor inicial (PVI). Em termos
geométricos, estamos procurando uma solução para a equação diferencial, definida em algum
intervalo I , tal que o gráfico da solução passe por um ponto (t0 ; y0 ) pré-determinado. Em outras
palavras, satisfazer uma condição inicial significa identificar a curva integral que contém o ponto
inicial dado.
Exemplo 7. Vimos que y = cet é uma família de soluções a um parâmetro para y 0 y = 0 no
intervalo ( 1; 1). Se especificarmos, por exemplo, y (0) = 3, então substituindo t = 0 e y = 3
na família, obteremos: 3 = ce0 = c  1 = c. Logo, a função y = 3et é uma solução para o PVI:
(0
y y = 0;
y(0) = 3:
Por outro lado, uma solução de y 0 y = 0 que passe pelo ponto (1; 3) é tal que y(1) = 3, que
implica c = 3e 1 . Logo, a função y = 3et 1 é solução do PVI:
(0
y y = 0;
y(1) = 3:

Neste ponto, surgem duas perguntas:


1. Sempre existe uma solução para o PVI?

2. Se existir solução, ela é única?


Respostas a essas perguntas serão dadas nas próximas aulas.

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