Você está na página 1de 70

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS
CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

CARLA DÉSIRÉE DOS SANTOS MENEZES

O DESENHO COMO PRÁTICA ESPIRITUAL E ANCESTRAL: pontos riscados na


Umbanda do Canabibi e produção artística a partir dos ensinamentos do
terreiro

VITÓRIA
2023
CARLA DÉSIRÉE DOS SANTOS MENEZES

O DESENHO COMO PRÁTICA ESPIRITUAL E ANCESTRAL: pontos riscados, na


Umbanda do Canabibi e produção artística a partir dos ensinamentos do
terreiro

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Departamento de Artes
Visuais da Universidade Federal do
Espírito Santo, como requisito parcial para
obtenção do título de Licenciada em Artes
Visuais.
Orientadora: Prof. Drª Aissa Afonso
Guimarães

VITÓRIA
2023
CARLA DÉSIRÉE DOS SANTOS MENEZES

O DESENHO COMO PRÁTICA ESPIRITUAL E ANCESTRAL: pontos riscados na


Umbanda do Canabibi e produção artística a partir dos ensinamentos do
terreiro

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Departamento de Artes
Visuais da Universidade Federal do
Espírito Santo, como requisito parcial para
obtenção do título de Licenciada em Artes
Visuais.

Aprovada em 24 de julho de 2023.

COMISSÃO EXAMINADORA

__________________________________
Profª Drª Aissa Afonso Guimarães
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientadora

__________________________________
Profº Drº Osvaldo Martins de Oliveira
Universidade Federal do Espírito Santo

__________________________________
Profº Me. Rafael Pagatini
Universidade Federal do Espírito Santo
AGRADECIMENTOS

De início agradeço à minha mãe Jovelina Santos e ao meu pai Carlos Irapuan, por
me incentivarem aos estudos desde muito nova, sem eles e os dizeres sobre a
importância da educação durante toda a minha criação esse caminho jamais teria
sido iniciado.

Agradeço aos Babás do meu terreiro, a minha madrinha Marly Caetano, a madrinha
Maria Conceição e o padrinho Heliomar de Ogum, por me acolherem e passarem
ensinamentos tão importantes ao longo de minha vida espiritual e caminhada no
terreiro que reverberam na produção deste trabalho e na minha vida.

Agradeço imensamente aos professores Drª Aissa Afonso Guimarães e Prof. Drº
Osvaldo Martins Oliveira por acreditarem nas minhas produções e processos desde
o início da minha graduação e que foram mediadores de caminhos que
reverberaram em produções, publicações e exposições, isso fez muita diferença em
meu processo acadêmico e de vida. Um agradecimento especial a orientação da
professora Aissa nesse trabalho de conclusão de curso.

Agradeço a força e perseverança que estiveram ao meu lado cotidianamente para a


finalização deste ciclo e por fim, mas também no início, pois a vida é feita de ciclos
agradeço as entidades que caminham e caminharam comigo durante toda a
produção deste trabalho.

Laroyê Exu!
Laroyê Pombagira!
Adorei as Almas!
Okê Caboclos!
1
Agô
gravura em metal, Carla Désirée 2022

1
ÀGÔ, s. Forma de pedir licença. Agô onílé o - Com licença ao dono da casa. (BENISTE, 2010, p.51)
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Tabela, calendário festivo.

Figura 2: Gira em homenagem à Iemanjá.

Figura 3: Croqui do Centro Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi.

Figura 4: Legenda do croqui.

Figura 5: Estrela do CEPAC com Pontos Riscados e flores no dia de Homenagem a


cabocla Canabibi.

Figura 6: Quadro localizado no terreiro, relacionando as cores com orixás.

Figura 7: Exemplos de Pontos riscados de caboclos retirados do livro Candomblé e


Umbanda no Espírito Santo: práticas culturais religiosas afro- capixabas.

Figura 8: Ponto riscado para exu, ao lado esquerdo na entrada do CEPAC.

Figura 9: Firmeza para caboclos, ao lado direito na entrada do CEPAC.

Figura 10: Estrela localizada ao centro do terreiro, no salão em que ocorre as giras.

Figura 11: Aruanda, tinta de terra sob algodão. 20 x 30 cm.

Figura 12: Exposição Olope, obra Aruanda, 2021.

Figura 13: Xilogravura, Laroyê.

Figura 14: Tatuagem sobre a pele.

Figura 15: Sankofas em grades.

Figura 16: Agô. gravura em metal.

Figuras 17 a 33: Livreto produzido pelo Canabibi.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..……………………………………………………………………...………7

Capítulo 1: UMBANDA.......………………………………………………………...…… 13

1.1 Caminhos e possibilidades...………..………………………………………..…... 13

1.2 Defesa de direitos e reconhecimento do Estado.…………………...………... 16

Capítulo 2: CENTRO ESPÍRITA PAZ AMOR E CARIDADE CANABIBI, UMA


PARTE DO CAMINHO, RITUAIS E PONTOS RISCADOS...…………..................... 24

2.1 Centro Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi.......………………...………… 24

2.2 O desenho como magia, ponto riscado, a pemba firmada no encanto...…. 29

CAPÍTULO 3: PRODUÇÃO ARTÍSTICA A PARTIR DOS ENSINAMENTOS DO


TERREIRO.………………………………………………………………………………... 42

3.1 - Aruanda, Agô e Laroyê...……………………………...………………..………... 42

CONSIDERAÇÕES FINAIS....…………………………………...………………….….. 54

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....……………………………………….………. 57

ANEXOS….……………………………………………………………………...………… 60
INTRODUÇÃO

O trabalho se inicia com a obra chamada Agô, a velha detém muitos saberes, habita
um corpo mestiço e representa a entidade de outro plano astral habitando um corpo
contemporâneo, com marcas de vida e desenhos que carregam consigo elementos
presentes nos pontos riscados da umbanda, de culturas brasileiras, africanas,
indígenas e grafismos utilizados nas tatuagens do corpo contemporâneo. A obra é
uma cópia de uma gravura em metal gerada a partir da matriz produzida na placa de
cobre, com técnicas diretas e indiretas de gravação, Agô, traz a minha percepção
como artista sobre a ancestralidade, através da imagem de uma preta-velha,
entidade presente, respeitada, cultuada e escutada nos rituais de Umbanda, religião
que pesquisamos. A preta-velha é o elo que conecta meu objeto de pesquisa e
minhas produções artísticas.

O interesse no ponto riscado como objeto de pesquisa e pesquisa sobre o desenho


como prática espiritual e ancestral se deu em quatro momentos. Primeiro a partir da
minha relação com os terreiros de umbanda, que desde 2018 caminha junto com
minha pesquisa e produção artística em diversos suportes.

O segundo momento se deu a partir de minha permanência e vivência no Centro


Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi, quando ocorreu a percepção da relação do
desenho com a espiritualidade, com as entidades e com o ritual, um desenho com
fundamentos permeados pela magia, pela ancestralidade e pelo corpo que executa
a ação do desenho, transmitindo um grafismo a partir da manifestação espiritual na
religião com a incorporação das entidades.

O terceiro momento foi a pesquisa e a compreensão sobre o tema fora do espaço do


terreiro, pela falta de referências sobre os pontos riscados e pela necessidade de
pesquisas sobre o tema a partir do olhar e referência de um lugar de fala, de quem
ocupa e transita por esse espaço sagrado do terreiro.

O quarto momento foi quando se deu a percepção da inserção e desdobramentos


dos grafismos, utilizados nos pontos riscados na minha pesquisa, produção e
trabalho artístico, que se perpetua em desenhos, gravuras, xilogravuras, tatuagens e

7
pinturas.

A metodologia da pesquisa adota a abordagem qualitativa para o levantamento de


dados, com pesquisa a partir de referências escritas, pesquisas de campo,
comparecimento nas giras e observação das mesmas, entrevistas e diálogos com as
lideranças do terreiro Canabibi: Maria Conceição, Marly Lúcio e Heliomar de Ogum,
estes, são os três dirigentes responsáveis pelos trabalhos durante as giras, que
foram entrevistados e passaram as informações referentes à casa e aos pontos
riscados para a execução deste estudo. As entrevistas semidirigidas foram
realizadas com método oral com as lideranças e também foram feitos registros
fotográficos e produções com os grafismos presentes nos pontos riscados. Como
referencial teórico utilizamos os escritos de Cleber Maciel, Luis Rufino, Luiz Antônio
Simas, Zeca Ligiéro e Dandara, José Carlos Gomes dos Anjos, Nei Lopes,
Reginaldo Prandi, Mario de Souza de Chagas, César Manhães Monteiro, Maria
Helena Versiani.

A minha trajetória acadêmica foi fator fundamental no meu interesse pela pesquisa e
pelo tema desta pesquisa. Adentrei na Universidade Federal do Espírito Santo no
ano de 2014, no curso de História, do qual cursei três períodos; em 2016 fiz outro
vestibular para Artes Visuais, porém o interesse pela história e em especial a história
afro-brasileira continuou e pude mesclar os processos artísticos com a pesquisa
dentro da Universidade.

A primeira pesquisa que participei foi o programa de Extensão “Africanidades:


Identidades, Religiosidades e Patrimônio Cultural”, coordenado pela professora Drª
Cleyde Rodrigues Amorim (UFES) e pelo professor Drº Osvaldo Martins de Oliveira
(UFES), a pesquisa possuía o objetivo de mapear os terreiros de Candomblé na
Grande Vitória, que até então não eram mapeados. E como um dos resultados em
2017 o programa publicou o livro “Africanidades: Identidades, Religiosidades e
Patrimônio Cultural”, a partir dos dados coletados em campo durante a execução do
projeto, no qual pude participar com algumas fotografias, croquis dos terreiros e
textos2. Os quais contam um pouco sobre a história dos zeladores e terreiros de

2
Foram 5 textos publicados nesse período: MENEZES, Carla Désirée dos S. Gieussi de Omolu:
Dedicação às divindades do Candomblé e da Umbanda. In: Africanidades e seus zeladores (Org.
Cleyde R. Amorim e Osvaldo M. de Oliveira). Vitória: PROEX/UFES, 2017. / MENEZES, Carla
Désirée dos S.. Mãe Célia de Iansã. In: Africanidades e seus zeladores (Org. Cleyde R. Amorim e
8
Candomblé da Grande Vitória; percebo esse momento como o início, de fato, do
meu interesse pela pesquisa e pelas possibilidades de desdobramentos que a
pesquisa pode proporcionar.

Em 2017 com a finalização do livro e fim da pesquisa, pude participar como bolsista3
e contribuir com o programa de Extensão “Jongos e Caxambus: memórias de
mestres e patrimônio afro-brasileiro no Espírito Santo” coordenado pela professora
Drª Aissa Afonso Guimarães em parceria com Drº Osvaldo Martins de Oliveira
(UFES) e Drª Patrícia Gomes Rufino Andrade (UFES). O projeto se caracteriza pela
interdisciplinaridade, abrangendo as áreas de Artes, Antropologia e Educação.
Realiza e engloba desde 2012 ações de extensão, ensino e pesquisa de graduação
e pós-graduação, atividades relacionadas à memória dos mestres e mestras do
Jongo e do Caxambu no Espírito Santo. Durante sua vigência realizou encontros
comunitários nas regiões sul e norte do Estado. E em 2017 foi lançado o livro
“Jongos e Caxambus: culturas afro-brasileiras no Espírito Santo” como uma das
devolutivas da pesquisa.

Também como desdobramento das ações do mesmo programa, em novembro de


2017 participei como artista da exposição “Memorial de Mestres: Jongos e
Caxambus no ES”, que trouxe fotografias dos mestres, objetos simbólicos dos
jongos e caxambus no ES e 32 desenhos de retratos, de cada um dos mestres
jongueiros do Estado. Fui responsável por 17 dos 32 desenhos e o artista Maurício
dos Santos Malta, também bolsista do mesmo programa na época, foi responsável
pelos outros 15 retratos; os desenhos foram realizados com carvão e giz branco,
sobre papel pardo, todos possuem um tamanho de 91,5cm x 66cm. A exposição foi
realizada no Mucane, Museu Capixaba do Negro, localizado no centro Vitória, no
lançamento contou com a presença dos grupos Caxambu da Família Rosa de
Muqui, e Jongo Wilson Bento de Itapemirim, que participaram da roda de conversa e
realizaram uma roda de jongo dentro do Museu. A Exposição Memorial de Mestres

Osvaldo M. de Oliveira). Vitória: PROEX/UFES, 2017 / MENEZES Carla Désirée dos S.. Mãe Anacé
de Oxossi. In: Africanidades e seus zeladores (Org. Cleyde R. Amorim e Osvaldo M. de Oliveira).
Vitória: PROEX/UFES, 2017. / MENEZES, Carla Désirée dos S.. Pai Sérgio de Ayrá: Dedicação
incansável à religião . In: Africanidades e seus zeladores (Org. Cleyde R. Amorim e Osvaldo M. de
Oliveira). Vitória: PROEX/UFES, 2017 / MENEZES, Carla Désirée dos S.. Pai Simão. In:Africanidades
e seus zeladores (Org. Cleyde R. Amorim e Osvaldo M. de Oliveira). Vitória:PROEX/UFES, 2017.
3
A pesquisa e as ações realizadas, nos anos de 2016 e 2017, dentro do “Programa de Extensão
Jongos e Caxambus: memórias de mestres e patrimônio afro-brasileiro no ES” obtiveram recursos por
meio do Edital ProExt MEC/Sisu 2015 – PROEX/UFES.
9
também foi realizada parcialmente, em Itaúnas, em janeiro de 2019, em parceria
com o Projeto de Pesquisa “Africanidades Transatlânticas: culturas, histórias e
memórias afro-brasileiras à partir do Espírito Santo” (2018/2019
UFES/FAPES/SECULT). E em Muqui em novembro de 2019, também parcialmente,
com os desenhos de mestres da região sul, em parceria com o Caxambu da Família
Rosa e com Associação Afrodescendente de Muqui.

Atualmente, durante a pesquisa e a escrita desse trabalho faço parte da edição do


projeto de extensão “Africanidades transatlânticas: história, memórias e culturas
afro-brasileiras”, de 2022/2023 com coordenação dos professores Drº Osvaldo
Martins de Oliveira (UFES) e professora Drª Cleyde Rodrigues Amorim (UFES),
responsável por mapear e pesquisar os terreiros de Umbanda localizados na região
metropolitana do Espírito Santo, a pesquisa e as visitas a terreiros têm sido
fundamentais para o entendimento da diversidade da Umbanda no Espírito Santo e
para a execução dessa pesquisa.

Este trabalho sobre ponto riscado como objeto de pesquisa, em um curso de


Licenciatura em Artes Visuais, se relaciona com as perspectivas de aplicação da Lei
10639/2003, que estabelece a valorização da cultura afro-brasileira como um dos
objetivos da educação no Brasil. A lei determina a promoção do conhecimento sobre
a cultura, história, tradições, religiões e contribuições dos povos afrodescendentes
para a formação da sociedade brasileira, para auxiliar no combate ao apagamento
histórico, ao racismo e à discriminação; por meio da valorização da diversidade
cultural do país, a partir da promoção de uma educação antirracista e inclusiva, que
contribua para a desconstrução de estereótipos, preconceitos e discriminações
raciais, e promova o respeito e a valorização da diversidade étnico-racial. Neste
sentido aponta para a formação de uma consciência crítica na abordagem dos
temas, além do cumprimento da legislação educacional vigente no Brasil já que
busca promover a inclusão e a representatividade dos povos afrodescendentes nos
currículos escolares e acadêmicos, fortalecendo a diversidade e a
representatividade nas instituições de ensino.

O primeiro capítulo traz uma breve introdução sobre a história da Umbanda, religião
afro-brasileira que recebeu em sua formação influências de outras religiões. A
Umbanda enaltece as forças da natureza em uma coroa divina composta por Orixás,
10
possui vínculo com espíritos encantados que viveram em tempos antigos, as
entidades4 exus, pombagiras, caboclos, pretos e pretas velhas, crianças/erês,
boiadeiros, marinheiros e baianos. Também trabalha com magia através de ervas e
símbolos. Os pontos riscados ou pontos de pemba5, tema norteador desta pesquisa,
são desenhos mágicos, portais de conexão e firmeza com outros planos astrais
feitos no chão durante os rituais de Umbanda pelas entidades que estão gerindo os
trabalhos6 num determinado momento..

O capítulo também traz os avanços no que diz respeito aos direitos e ao


reconhecimento do Estado em relação à religião, seus praticantes e frequentadores.
Apesar dos avanços conquistados em termos de direitos e reconhecimento em
relação à religião e seus praticantes, ainda persistem desafios e questões a serem
abordadas. As práticas religiosas de matriz africana, ainda enfrentam discriminação
e estigmatização. Existem casos de intolerância religiosa, atos de violência e
preconceito contra praticantes da Umbanda e outras religiões. Nesse contexto, é
fundamental promover a conscientização, o respeito e a valorização da diversidade
religiosa, para garantir que todos tenham o direito de exercer sua fé sem
discriminação. Além disso, é importante destacar que o reconhecimento pelo Estado
e pela sociedade das religiões de matriz africana é um processo contínuo.

O segundo capítulo traz a história do Centro Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi,
localizado no bairro Fradinhos em Vitória, é o terreiro de Umbanda mais antigo do
município, casa em que eu, Carla Désirée, frequento há quatro anos. Para a
execução deste capítulo houve três caminhos feitos em tempos diferentes para a
conclusão e organização desse momento. O primeiro caminho foi a presença e
alguns registros em giras e festas em que estive presente, as fotografias
4
Segue uma breve explicação sobre as entidades da Umbanda, que serão tratadas com mais
detalhes nos próximos capítulos: Os exus são entidades espirituais que atuam como guardiões e
mensageiros, intermediando a comunicação entre o plano terreno e o plano espiritual. As pombagiras
são entidades femininas que representam a energia feminina na Umbanda. Os caboclos são
entidades que representam a sabedoria ancestral indígena e têm uma forte conexão com a natureza.
As pretas e pretos velhos são entidades espirituais que representam os ancestrais sábios, muitos
deles vieram de África, conhecidos por sua sabedoria, paciência e humildade. Os erês são entidades
espirituais das crianças que trazem alegria, pureza e sabedoria.
5
Nome do giz utilizado para a realização dos pontos riscados, também pode ser chamado de riscador.
6
A palavra ‘trabalho’ quando se referir ao terreiro pode dizer sobre um ritual realizado para limpezas e
descarregos individuais ou coletivos, também pode se referir a oferendas para orixás e entidades que
trabalham nos terreiros de umbanda; As oferendas podem ser realizadas dentro da casa ou em locais
específicos que concentram as energias do orixá, cabe ao leitor contextualizar na frase o tipo do
trabalho a qual o texto se refere.
11
apresentadas ao longo deste trabalho foram realizadas em conjunto com o meu
trajeto dentro do terreiro. O segundo caminho foi o diálogo com as lideranças sobre
a Umbanda, sobre os pontos riscados e sobre os momentos em que eles surgem
durante as giras. O terceiro caminho foi a busca de referências escritas sobre a
Umbanda, a Umbanda capixaba e os pontos riscados. E a relação dos pontos
riscados nos espaços do terreiro.

O terceiro capítulo conta com uma produção artística pessoal realizada ao longo do
meu processo de formação, a partir de práticas e técnicas que aprendi dentro da
Universidade Federal do Espírito Santo, relacionadas com as sabedorias de terreiro,
pontos riscados e elementos utilizados durante a gira, como flores e ervas. Todas as
imagens da pesquisa foram realizadas por mim, ao longo da monografia, da minha
vivência no terreiro, de minhas produções e de meus caminhos.

12
Capítulo 1. UMBANDA

1.1Caminho e possibilidade

A origem da religião Umbanda não possui um evento determinante como sendo o


único caminho para seu marco inicial. Mas cabe aqui dizer que ela é brasileira,
popular, e possui influências de diversas etnias como africanas e indígenas, e de
algumas religiões como o candomblé, o catolicismo e o kardecismo, junção que
resulta em uma diversidade de rituais.

No final do século XIX numerosos elementos da Umbanda praticada hoje em dia, já


estavam presentes na Cabula, prática religiosa que recebeu forte influência das
práticas dos povos bantos, “praticada na região do Espírito Santo, em fins do século
XIX, por negros, mas com a presença de alguns brancos” (SILVA, 2005, p.85), o
chefe do culto era chamado de embanda e o ritual era realizado na casa de alguém
ou dentro das matas. Segundo trecho extraído do livro, Candomblé e Umbanda no
Espírito Santo: práticas culturais religiosas afro-capixabas, do professor e historiador
Cleber Maciel:

“No Espírito Santo a Umbanda seguiu trajetória histórica idêntica à ocorrida


na Bahia e nos Estados da região Sudeste. Conforme depoimentos de
antigos praticantes e dirigentes de organizações associativas, essa história
não é muito precisa, além de que, é muito difícil descrever todos os
caminhos percorridos pela Umbanda para chegar, instalar-se e difundir-se.
[...] Sabendo-se que no fim do século passado a Cabula no norte do Estado
já tinha elementos ritualísticos que muito se assemelhavam à Umbanda de
hoje, já que muitas palavras do vocabulário cabuleiro são utilizadas na
Umbanda atual, não afastar-se da verdade afirmar que a Umbanda está
presente entre nós, desde, pelo menos, 1870.” (MACIEL, 1992, p.128)

Ainda sobre a Cabula faço referência ao trecho presente em Kitábu: o livro do saber
e do espírito negro-africanos de Nei Lopes, que possui alguma afinidade e/ou
semelhança com ritos da Umbanda praticada atualmente no Espírito Santo:

I. A mesa e o santé [...] 2. Toda confraria de cabulistas constitui uma mesa.


O chefe de cada mesa é o embanda, a quem todos devem obedecer. Cada
embanda é secundado por um cambone. 3. A cabula é dirigida por um
espírito, Tata, que encarna nos camanás, iniciados. 4. Sua finalidade é o
contato direto com o Santé. o conjunto de espíritos da Natureza que moram
nas matas. Por isso, todos os camanás devem trabalhar e se esforçar para
receber esse Santé, preparando-se mediante abstinência e penitências, 5.
Cada um dos espíritos que formam o Santé é um Tata. Todo camaná tem e
recebe seu Tata protetor, [...] 7. A reunião dos camanás forma a engira. [...]
1. A engira deve ser secreta. realizando-se alta noite. ora numa casa ora
num camuxito. que é o meio da mata. 2. Os camanás devem estar todos
13
vestidos de branco e descalços. [...] 6. Acesas as velas. ele entoará o
primeiro cântico. nimbu. pedindo licença para qüendar, caminhar, trabalhar,
pede licença a Calunga, aos tatas e aos baculos, os mais-velhos, os
ancestrais. 7. Enquanto o embanda canta, os camanás fazem coro, batendo
quatan, liquaqua, palmas. 8. Os cânticos são executados ao som de um
tambu. um engoma7 menor e uma puíta (tambores)l, ao redor de uma
cabaça com água. [..] inicia a defumação, mordendo e soprando candáru, a
brasa do incenso. (LOPES, 2005, p.248 - p.249)

Dentre os elementos presentes na Cabula que se manifestam até hoje em muitos


terreiros de Umbanda, podemos citar a hierarquia das funções; a presença dos
cambones; o contato e a incorporação com espíritos da natureza; as velas acesas; a
abstinência (hoje como nome de preceito em muitos terreiros); a roupa branca; os
pés descalços; o pedido de licença, a defumação e o som tambores.

No início do século XX kardecistas passaram a mesclar suas práticas religiosas com


elementos de tradições da religiosidade afro-brasileira, não se sabe exatamente
quando essas práticas começaram a ser incorporadas, mas foi em 1908 que um
grupo de pessoas praticantes do kardecismo fundaram no Rio de Janeiro a Tenda
Nossa Senhora da Piedade, liderada por Zélio Fernandino de Moraes, que
incorporou pela primeira vez em 1908, o Caboclo Sete Encruzilhadas:

“[...] ele seria fundador de uma nova religião, uma religião verdadeiramente
brasileira dedicada ao culto e evolução dos espíritos brasileiros: os caboclos
e pretos velhos”. A nova religião daria a esses espíritos a atenção negada
pelos kardecistas e o respeito que lhes negava a religião oficial[...]no dia e
hora combinados, uma multidão de curiosos se aglomera em torno de sua
casa, pois a notícia de sua cura milagrosa espalhara-se como fogo no
matagal ressecado. Ele então recebe a profetizada visita do caboclo que lhe
confirma a missão de fundar uma nova religião, a qual seria chamada
“Umbanda” (LIGIÉRO, 2000, p.75)

Segundo Diana Brown:

Zélio e seus companheiros dos setores médios. Trabalhavam no comércio,


na burocracia governamental, eram oficiais de unidades militares; o grupo
incluía também alguns profissionais liberais, jornalistas, professores e
advogados, e ainda alguns operários especializados. Todos esses
indivíduos eram homens e quase todos brancos [...] Muitos integrantes
deste grupo de fundadores eram, como Zélio, kardecistas insatisfeitos, que
empreenderam visitas a diversos centros de “macumba” localizados nas
favelas dos arredores do Rio e de Niterói.” (Brown, 1985, p.11)

Levar em consideração o grupo de Zélio e a área em que ele trabalhava é algo que
pode ser um dos fatores que contribuíram para a aceitação social da religião e para
7
Engoma pode ter relação com angoma, no Caxambu nome atribuído ao tambor escavado no tronco
da madeira, também é roda e canto. (GUIMARÃES e OLIVEIRA, 2017) Tambu e puíta também são
nomes atribuídos aos tambores nos caxambus do RJ.
14
a popularização da Umbanda no século XX em território nacional e, pois muitas das
práticas religiosas existentes na Umbanda fundada por Zélio já existiam e faziam
parte de diversas religiões no Brasil, assim como o própria Cabula, a Jurema, o
Candomblé de Caboclo, o Batuque, os cultos a orixás e outras religiões
afro-brasileiras e afro-indígenas. Tais religiões, que eram compostas por maioria de
pessoas negras e pardas de classes sociais mais baixas eram criminalizadas.
Segundo Monteiro, Versiani e Chagas (2022):

No Brasil do século XIX, e mesmo no começo do século XX, o


branqueamento étnico, o incentivo à imigração branca europeia e o combate
ao que fosse africano na língua, na cultura e na religião fizeram parte de um
mesmo pensamento dominante em favor de uma ideia de progresso, que
não por casualidade, faz parte do lema da sua bandeira. Por mais que as
batidas policiais e apreensões constituíssem, na justa perspectiva do povo
de santo e de terreiro, crime, afronta e violação de direitos, as apreensões
policiais encontravam respaldo legal, a partir de normativas que proibiam o
que era classificado como espiritismo, curandeirismo e prática ilegal da
medicina, evidenciando assim um racismo legalizado e pouco velado.
(MONTEIRO, VERSIANI E CHAGAS, 2022, p.18).

A importância de Zélio para a difusão da Umbanda é inegável, mas é necessário


apontar contextos que não o colocam como marco zero da religião, da incorporação
de caboclos, pretos velhos e espíritos que viveram e ainda vivem em território
brasileiro.

Professor Sidnei Nogueira (2021) sobre a Umbanda e o trajeto dela diz que:
“A Umbanda também é uma religião perseguida, [...] Durante o período da
Santa Inquisição do final do século XVI e início do século XVII documentos
da Inquisição que evidenciam uma prática ritual muito assemelhada ao que
chamamos de Umbanda hoje. Uma prática mediúnica de incorporação de
espíritos, de dança, de cura, então a umbanda mimetiza a pajelança dos
povos originários que nós chamamos de indígenas. Mimetiza rituais
africanos predominantemente dos escravizados Bantu no século XVI e XVII
no escravismo praticado nos séculos XVI e XVII, ela mimetiza isso ao
kardecismo, e elementos coloniais da igreja católica, então na verdade a
umbanda é uma grande magia que permite que sem máquina do tempo que
nós acessamos por meio da mediunidade, pretos velhos escravizados [...] e
até antes do período escravagista no Brasil. Caboclos, que são os povos
originários que nós chamamos de índios, Pombagiras que são espíritos de
mulheres que estavam além do seu tempo nos séculos XVI, XVII, XVIII [...]
homens além do seu tempo representando a malandragem, o progresso, a
determinação, que são os exus, que são espíritos encantados,´[...] a
Umbanda é muito brasileira porque ela é pluriversal. (Nogueira, Sidnei. 02
A “tradição” do racismo religioso com prof. Sidnei Nogueira. Podcast:
Comunicadora - Assessoria e Comunicação. 13 de março de 2021. Minuto
00:01.)

Diante da perseguição sobre a qual Sidnei Nogueira (2021) fala, a defesa dos

15
direitos e reconhecimento do Estado para com as religiões afro-brasileiras só foi
ocorrer, séculos após os primeiros registros de “macumbas” realizadas no Brasil,
tema que será discutido no próximo subcapítulo.

1.2 Defesa de direitos e reconhecimento do Estado

Durante os séculos XIX e XX no Brasil, o branqueamento étnico, o incentivo à


imigração europeia branca e a rejeição a aspectos linguísticos, culturais e religiosos
africanos estiveram unidos por um pensamento dominante que promovia a ideia de
progresso, o ‘progresso’ estava diretamente ligado a ideias de perseguição,
intolerância e racismo religioso, sobretudo a tudo que não era cultural do
pensamento do colonizador. O reconhecimento do Estado, a defesa de direitos e a
criação de políticas públicas específicas para as religiões brasileiras de matriz
africana aconteceram em momentos diferentes da construção da história do Brasil,
conforme trataremos a seguir.

O Código Penal de 1890, em seu artigo 157, criminalizava as práticas de


curandeirismo, feitiçaria e charlatanismo, já o Decreto-Lei nº 1.202, de 1939, que
alterou o Código Penal, passou a incluir o artigo 284-A, que considerava crime a
prática de "curandeirismo e magia", nenhum deles fazia referência direta à
Umbanda, porém ela foi amplamente afetada pela criminalização e repressão
estatal, uma vez que muitas das práticas e rituais umbandistas foram estigmatizados
e associados à charlatanismo, feitiçaria e outras formas de atividades ilegais.

A promulgação da Constituição Brasileira de 1891, que marcou o início do período


republicano, estabeleceu diversas normativas que acabaram por confrontar o
princípio do Estado laico e da liberdade de crença e culto no Brasil. Essas normas
contribuíram para a criação de um ambiente de violência policial, institucional e
estatal contra praticantes e adeptos de religiões afro-brasileiras, e também contra os
terreiros e os espaços de rituais. Líderes religiosos, como mães e pais de santo,
sofreram perseguições, encarceramentos e acusações de praticar feitiçaria. Suas
casas sagradas e manifestações religiosas foram profanadas, e em meio a esse
contexto, seus objetos sagrados foram apreendidos e registrados como evidências
criminais.

16
A criminalização das práticas afro-brasileiras não ocorria somente em âmbito
religioso, mas em outras expressões culturais das populações negras, como a
capoeira, que em 1937, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas foi proibida por meio
do Decreto-Lei nº 3.199, considerando-a como atividade criminosa. A justificativa
para essa criminalização era associar a capoeira à violência, à criminalidade e à
marginalidade, assim como a uma resistência cultural dos negros e dos
descendentes de africanos.

Após o fim do Estado Novo, a criminalização da Capoeira começou a ser revogada


gradualmente. Em 1953, o presidente Getúlio Vargas assinou a Lei nº 2.864, que
revogou a proibição da prática da capoeira. Essa medida foi um passo importante
para o reconhecimento e a valorização da Capoeira como patrimônio cultural
brasileiro. Em 2008 a “Roda de Capoeira e Ofício dos Mestres de Capoeira” foi
registrada no Livro de registro das Formas de Expressão, e reconhecida como
Patrimônio Imaterial do Brasil pelo IPHAN; em 2014 foi reconhecida como
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.

O principal ato ‘teórico’8 do Estado que garante a segurança de liberdade religiosa


ocorreu na Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso VI que estabelece que "é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias", (BRASIL, 1988). Entretanto, o estabelecimento de uma Constituição
sem a instituição de políticas públicas, que considerem as reparações históricas
necessárias para as mudanças de hábitos de toda uma nação, acostumada a
perseguir e violentar praticantes de saberes tradicionais, indígenas e afro-brasileiros,
não é o suficiente para findar com a intolerância. Sobre a intolerância religiosa no
Espírito Santo Cleber Maciel diz:

“Por volta de 1920, já havia muitos Terreiros abertos e em atividade, apesar


das perseguições policiais que até a década de 70 ainda eram muito fortes
e que ainda não findaram totalmente. Nesse sentido, diz o Ogã Orlando
Santos, presidente da UNESCAP, diz que furar atabaques, derrubar
imagens, prender sacerdotes, e fiéis era o mínimo que podia se esperar da
repressão e perseguição policial. Muitas vezes era necessário reuniões com
representantes da superintendência da polícia civil para tentar convencer as
8
A palavra teórica foi aqui empregada no sentido de demonstrar a ineficácia da proteção do Estado,
pois apesar da na Constituição garantir proteção aos terreiros e povos praticantes da religião de
matriz africana, estes ainda são perseguidos e vítimas de agressão, como se pode observar, a teoria
e prática seguiram por caminhos diferentes nesse caso.
17
autoridades policiais da necessidade de respeito e consideração a que os
espíritas tinham direito. (...) (MACIEL, 1992, p.128)

No Rio de Janeiro durante o período de criminalização e perseguição pelo Estado


brasileiro ao longo das seis primeiras décadas da República, até meados dos anos
1940, foram apreendidos inúmeros objetos sagrados de religiões de matriz africana
pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Durante várias décadas, muitos dos objetos
retirados dos terreiros eram armazenados na Polícia Civil como ‘prova do crime’,
dentre estes 519 existentes na atualidade foram nomeados pelo estado, na ocasião
da criação do SPHAN, no final da década de 1930, como coleção de “Magia Negra”
do Museu da Polícia, reafirmando o preconceito contra os objetos recolhidos e ao
povo a que pertenciam. “Naquele momento, a proposta ainda incipiente de criação
de um museu da polícia limitava-se à exibição dos artefatos sagrados ao lado de
outros materiais associados à contravenção penal, tais como armas de fogo”.
(MONTEIRO, VERSIANI E CHAGAS, 2022, p.19)

Após uma mobilização durante décadas do povo de Santo do estado do Rio de


Janeiro, para retirada destes objetos sagrados do poder da polícia, finalmente
comunidades religiosas, pesquisadores e gestores, se organizaram para a retirada
dos objetos sagrados do Museu da Polícia Civil para o Museu da República, De
acordo com Monteiro, Versiani e Chagas (2022):

[...]sob a liderança e com o exemplo de Mãe Meninazinha, o povo de santo


se organizou e contatou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), o Ministério Público Federal, o Iphan, a Superintendência
Estadual de Museus, o Museu da Polícia Civil, o Museu da República, o
Museu Nacional, o Museu Histórico Nacional e o Museu do Ingá, entre
outras instituições. (MONTEIRO, VERSIANI E CHAGAS, 2022, p.23)

A retirada das obras do acervo da Polícia Civil ocorreu após muita luta, diálogo e
reivindicações. Também foi criado, um plano Museológico, elaborado junto com o
povo de terreiro e Mário Chagas diretor do Museu da República na época. S,
Monteiro, Versiani e Chagas (2022):

O Plano Museológico do Museu da República para o período de 2018-2021


foi discutido e aprovado coletivamente e é coerente com a missão da
Museologia Social, o que inclui constituir, no Museu, um acervo
representativo da pluralidade étnica e cultural do Brasil Republicano e
assumir posição clara e democrática face às ações de reparação de justiça.
A retirada dos objetos sagrados do Museu da Polícia (e chegada ao Museu
da República) insere-se, pois, no campo mais amplo das ações antirracistas
e de rejeição à intolerância religiosa e como ação reparadora, a ser
18
realizada em gestão compartilhada com o povo de santo. (MONTEIRO,
VERSIANI E CHAGAS, 2022, p.23)

Sobre a recuperação dos objetos mãe Meninazinha de Oxum no documentário


Respeita Nosso Sagrado, sob direção de Fernando Souza e Gabriel Barbosa9 diz:

“É um momento de grande emoção [...] há trinta anos eu tô falando sobre as


coisas nossas que estão nas mãos da polícia [...] Isso não é meu, isso não é
dela, não é dele, isso é da religião afro-brasileira, e tava tudo preso na
polícia como se tivesse cometido algum crime”. (Mãe Meninazinha de
Oxum, 2020, 00:01:04)

A retirada dos objetos do Museu da Polícia Civil se deu a partir de um


reconhecimento do Estado — que hoje inclui a religião como parte da memória,
apesar da força renovada da extrema direita nos últimos quatro anos que causou
uma influência direta no aumento nos casos de intolerância, como discutido abaixo
— e uma mobilização e organização política do povo de terreiro. A possibilidade de
diálogo só ocorre a partir de um reconhecimento, por isso a necessidade de
articulação, discussão e mapeamento das comunidades tradicionais. Sobre a
importância da transferência dos objetos para o Museu da República Monteiro,
Versiani e Chagas (2022):

A transferência do acervo para o Museu da República torna-se parte de uma


reparação histórica, que ilumina de luz própria esse patrimônio museológico.
O protagonismo da comunidade de santo é afirmado, postulando-se nova
relação entre poder público e sociedade civil, em que a população de santo
é deslocada de uma condição em que possuía reduzido poder de decisão
para outra em que o seu conhecimento, sua participação e representação
tornam-se indispensáveis e orientadores da gestão do acervo. (MONTEIRO,
VERSIANI E CHAGAS, 2022, p.20)

A possibilidade do diálogo de órgãos governamentais e reconhecimento do Estado


com o povo de terreiro foi um caminho que durou anos e ainda está em curso. Fez
parte desse caminho, a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, SEPPIR, em 2003. A Secretaria foi criada para pensar e elaborar
planos e políticas voltadas às comunidades tradicionais. Também em 2003 a Lei nº
9.394, de dezembro de 1996, é alterada com a Lei nº 19.639 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo

9
A entrevista pode ser assistida no documentário Respeita Nosso Sagrado, que registra o dia de
transferência do Nosso Sagrado para o Museu da República, em 21/09/2020. A produção audiovisual
da Quiprocó Filmes e direção de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, o documentário foi lançado em
20/11/2020. Disponível em:
https://www.facebook.com/quiprocofilmes/videos/respeita-nosso-sagrado/846492332769638/. Acesso
em: 05 de maio de 2023.
19
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura
afro-brasileira”. A lei torna obrigatório o ensino sobre a História e Cultura
afro-brasileira, também inclui o estudo da História da África e dos Africanos. Até
então, além da perseguição à cultura do povo africano e afro-brasileiro, o
apagamento histórico também se dava pelo não dizer, pela tentativa de fazer
esquecer a história de todo um povo. Rufino (2019) diz que:

A narrativa inventora do mundo, a partir do advento da modernidade


ocidental, produz presença em detrimento do esquecimento. Se engana
quem pensa que a história é uma faculdade que se atém somente aquilo
que deve ser lembrado, a história, como um ofício de tecer narrativas,
investe fortemente no esquecimento. (RUFINO, 2019 p.14).

Em 2005 foi dado mais um passo contra o caminho do esquecimento criando uma
nova possibilidade de narrativa para o povo de terreiro a partir da I Conferência
Nacional de Promoção da Igualdade Racial, CONAPIR, no relatório final10 o Estado
brasileiro reconhece pela primeira vez a importância das comunidades de terreiro na
construção cultural brasileira. “O Estado brasileiro não pode desconsiderar o papel
histórico e a contribuição que as religiões de matriz africana tiveram na formação da
identidade e costumes do povo brasileiro” (BRASIL, 2005, p.105). Durante a
Conferência também foi evidenciada e reconhecida a dívida histórica que o Estado
brasileiro possui com os povos praticantes de religiões de matriz africana, “uma vez
que essa história foi marcada pela perseguição às suas manifestações, territórios,
objetos sagrados e seguidores” (BRASIL, 2005, p.105).

O relatório final também propõe o reconhecimento de zeladores religiosos de matriz


africana assegurando-lhes respeito e legitimidade social pelas funções exercidas por
eles; a garantia do livre acesso a cemitérios, hospitais e presídios na mesma
condição de outros representantes religiosos; o estabelecimento de um fórum
permanente contra a intolerância religiosa e pela diversidade; a valorização do saber
adquirido pela transmissão oral; apoio e incentivo a mulheres parteiras, benzedeiras,
rezadeiras e curandeiras; o fomento da pesquisa nacional para a coleta de dados
sobre as religiões de matriz africana, com foco no mapeamento dos terreiros de
candomblé e umbanda, focando na promoção de resgates históricos e culturais

10
Relatório final, 1º conferência promoção Nacional de Promoção de IPEA, 2005. Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Igualdade_Racial/relatorio_1_confere
ncia_promocao_igualdade_racial.pdf>. Acesso em: 17, janeiro 2023.
20
dessas comunidades.

Em 2007 o decreto 6.177/2007 estabeleceu uma política nacional para o


desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, o que inclui o
povo de terreiro. Essa política visou reconhecer e valorizar a contribuição desses
grupos para a conservação da biodiversidade e dos recursos naturais, promover a
melhoria da qualidade de vida desses grupos, preservar seus modos de vida e
fomentar o desenvolvimento sustentável em seus territórios.

Em 2011, o Ministério da Cultura11 realizou a I Oficina Nacional de Elaboração de


Políticas Públicas de Cultura para os Povos Tradicionais de Terreiro. Foram
reservadas 140 vagas exclusivas para representantes dos povos tradicionais de
terreiros, sendo 40 para participantes do Maranhão e 100 para participantes de
outros estados, também houve vagas destinadas a gestores públicos, movimentos
sociais, acadêmicos e afins. No ano seguinte, em maio de 2012 foi decretada a Lei
12.644, que determina o dia 15 de novembro como Dia Nacional da Umbanda.

Em conjunto com as mobilizações de secretarias e discussões sobre as religiões de


matriz africana em âmbito nacional, também ocorria incentivos a pesquisas de
comunidades de terreiro. Nesta perspectiva em 2013, na Universidade Federal do
Espírito Santo, foi diagnosticada a falta de dados sobre terreiros no estado e a
necessidade de mapeamento das casas religiosas de matriz africanas no mesmo, foi
então que começaram a ser realizadas pesquisas e mapeamentos, por meio de
projetos e grupos de estudos e pesquisas sobre religiões afro-brasileiras, vinculados
ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, NEAB/UFES.

Partindo dessa demanda foi submetido ao edital nacional PROEXT MEC/SESu


(2014), um programa de extensão que propunha o mapeamento das comunidades
de Candomblé no ES, o Programa “Africanidades: Identidades, Religiosidades e

11
Durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, o MinC foi extinto e suas atribuições
foram incorporadas ao Ministério do Turismo. A extinção do MinC gerou controvérsias e críticas por
parte de diversos setores da sociedade, incluindo artistas, produtores culturais, intelectuais e
acadêmicos. A decisão compromete a autonomia e a promoção da cultura brasileira, além de reduzir
o orçamento destinado ao setor cultural com a incorporação das atribuições do MinC pelo Ministério
do Turismo, momento em que houve uma redução significativa do orçamento destinado à cultura.
Isso afetou a capacidade do governo de fomentar projetos culturais e de apoiar a produção artística e
cultural em todo o país.

21
Patrimônio Cultural”, o qual foi contemplado com recurso do MEC e realizado
durante os anos de 2015 e 2016. O mapeamento das comunidades de Candomblé
resultou no livro Africanidades e seus zeladores: identidades, religiosidade e
patrimônio cultural, organizado por Cleyde R. Amorim e Osvaldo M. Oliveira,
coordenadores do programa, na qual, como bolsista, pude contribuir com textos,
fotografias e croquis dos terreiros. Segundo a contracapa do livro Amorim e Oliveira
(2017):

O trabalho demonstra parte da história de resistência cultural do povo negro


brasileiro, nessas comunidades de terreiros. O mapeamento das formas de
organização social dos espaços dos povos de terreiros de Candomblé,
realizado na região metropolitana da Grande Vitória, é parte de um diálogo e
envolvimento necessários entre acadêmicos e detentores de saberes de
matriz africana — zeladores de terreiro e suas famílias-de-santo, nos
proporcionando uma apresentação de parte de nossa constituição
sócio-histórica e cultural. Temos aqui também mais uma produção
acadêmica para subsidiar o cumprimento da Lei 10.639/03, que trata do
ensino da história e cultura africana e afro-brasileira no ensino brasileiro.
Trata-se ainda de um texto aliado ao enfrentamento da intolerância religiosa
que ainda assola as religiões de matriz africana e que se propõe a ser uma
ferramenta de combate aos preconceitos e à invisibilidade dessas religiões.

O evento de lançamento do livro e da exposição fotográfica com os registros


realizados durante a pesquisa foi realizado no Teatro Universitário da UFES em maio
de 2017, e contou com a presença de diversas lideranças de Candomblé do ES.
Durante o período em que a pesquisa era realizada, de 2015 a 2017, foi criada uma
nova Lei de Combate à Intolerância Religiosa (Lei nº 11.105/2015), que também
contribui para a proteção da religião, estabelecendo medidas para prevenir e punir a
discriminação por motivos religiosos, incluindo ações criminais contra atos de
violência, ameaças e injúrias motivadas por preconceito religioso.

Apesar das ações tomadas pelo Estado brasileiro na defesa dos direitos e proteção
da religião, ainda são muitos os casos de racismo religioso que ocorrem no Brasil. O
II Relatório sobre intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe da Unesco12
diz que: “No ano de 2021 segundo os dados do Ministério da Mulher da Família e
dos Direitos Humanos (disque 100) o Brasil teve um total de 966 casos de
intolerância religiosa distribuídos entre: matriz africana 244 casos, não-definida 234
casos, evangélica 186 casos, demais religiões 160 casos” (UNESCO, 2023). Ainda

12
II Relatório sobre intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe. UNESCO . Rio de
Janeiro, 2023. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000384250 Acesso em:
20 abr 2023.
22
que a maior parte da população brasileira seja pertencente a religiões cristãs, os
números de casos de racismo religioso e ataques a espaços religiosos são muito
maiores contra as religiões afro-brasileiras e de matriz africana.

Os altos números de ataques a terreiros religiosos são uma triste realidade que
evidencia a persistência do racismo religioso e da intolerância no Brasil. No Espírito
Santo os números de intolerância triplicaram entre 2021 e 202213. Diante desse
cenário, a continuidade de políticas voltadas para a proteção e para a educação
étnico-racial se torna crucial como garantia do exercício pleno da liberdade religiosa.
Além de políticas e diálogos que promovam a conscientização, o respeito e a
valorização da diversidade religiosa, a educação é um campo fundamental para
promoção da transformação social necessária, para combater o racismo religioso e
construir um país mais inclusivo e respeitoso com a diversidade religiosa.

Em 11 de janeiro de 2023 foi sancionada uma LEI Nº 14.53214, pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo e
também protege a liberdade religiosa. Agora é previsto dois a cinco anos para
quem obstar, impedir ou empregar violência contra manifestações ou práticas
religiosas, além de pagamento de multa. Assim, a legislação brasileira avança para
o reconhecimento das religiões de matriz africana como parte da diversidade
religiosa do país, garantindo a liberdade de culto e o combate à intolerância
religiosa.

13
Casos de intolerância religiosa triplicaram entre 2021 e 2022 no ES - ES TV, 06 de maio de
2023. Disponível em https://globoplay.globo.com/v/11596013/. Acesso em 2 de junho de 2023.
14
BRASIL. 2023. LEI Nº 14.532 DE 11 de janeiro de 2023.
23
Capítulo 2

CENTRO ESPÍRITA PAZ AMOR E CARIDADE CANABIBI, UMA PARTE DO


CAMINHO, RITUAIS E PONTOS RISCADOS

2.1 Centro Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi, história e uma parte do
caminho
“As filhas do senhor João eram o principal instrumento de Deus para o
trabalho da caridade. Mariazinha incorporava a Cabocla Canabibi e Didi a
Cabocla Jatobá. [...] O movimento em busca de auxílio crescia dia a dia.
Mas a ignorância é inerente ao ser humano. A polícia vez por outra dava
batidas naquela casa. Para evitar problemas deste tipo, Sylvino Fontes
resolveu legalizar o centro. No dia 10 de fevereiro de 1942, a primeira
diretoria do CEPAC15 deu entrada no cartório Maria Leão Lopes Ribeiro, na
cidade de Vitória, para sua legalização, assumindo a presidência Alfredo
Rodrigues da Silva. “(ANTOLINI, 1992, p.12 e 13)

Um material singular sobre o Centro é um livreto16 produzido por iniciativa própria,


como lembrança dos 50 anos da existência do terreiro, o material possui o título de
Centro Espírita Paz, Amor e Caridade CANABIBI: Jubileu de Ouro 1942-1992, o
texto e a edição são de Marco Antonio Antolini e a publicação conta com apoio de
médiuns e colaboradores da Casa. O livro conta a história da Centro, da fundação,
dirigentes, problemas, conquistas, horários das sessões e atendimentos. O fato
citado acima ocorreu no início dos anos 1940, momento da Segunda Guerra Mundial
e início dos trabalhos na casa.

O Centro Espírita Paz, Amor e Caridade Canabibi foi fundado em 10 de fevereiro de


1942 e hoje está localizado no Bairro Santa Cecília, rua José Malta, na cidade de
Vitória, o terreiro já estava aberto alguns anos antes da data de fundação, a
primeira sede do centro foi em uma casa humilde localizada no Forte de São João,
onde é hoje o Colégio Estadual do Espírito Santo, a casa era de João de Deus
Farias Chagas, sua esposa e suas duas filhas: Mariazinha, que incorporava a
cabocla Canabibi e Didi que incorporava o Caboclo Jatobá, a família mudava a
rotina nos dias das sessões, a sala era transformada em um templo, os móveis eram
retirados, ficando somente uma mesa que servia de altar para os trabalhos
espirituais.

No ano de 1943 o terreiro já não comportava mais o número de pessoas que

15
Centro Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi.
16
Livreto disponível no arquivo anexo desse trabalho.
24
procurava auxílio, com a alta demanda de atendimentos e frequentadores do
terreiro, Mário Monjardim17, cedeu por um período de cinco anos a casa de sua
família, localizada em Fradinhos para os atendimentos e realização das giras. Mario,
também doou o terreno para a construção do Centro, havia uma pedreira localizada
ao centro do terreno.

Há um ponto que se canta na Umbanda com os dizeres: “Xangô meu pai, deixa essa
pedreira aí, Umbanda tá lhe chamando, deixa essa pedreira”, e outro que diz “Xangô
é rei na cachoeira, Xangô é chefe na pedreira". A relação da pedreira com o Orixá e
com a religião é direta, este pode ter sido um dos pontos levados em consideração
para a não remoção da pedreira durante a construção do terreiro. O terreiro é
firmado na pedreira de Xangô, Orixá que também é, segundo (PRANDI 2001, p. 1),
“conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça”.

A nova sede demorou cerca de dois anos para ser construída, Sylvino Fontes, seus
filhos e Mário Monjardim trabalharam ativamente na construção do Centro, até que a
diretoria conseguiu ajuda do Instituto de Readaptação Social da Glória, em Vila
Velha; um grupo de presidiários atravessava a Baía de Vitória de bote para prestar
auxílio na construção da sede uma vez por semana. Em 1951, acima de uma
pedreira a nova sede ficou pronta e permanece em atividade até os dias atuais.

A liderança dos trabalhos na casa foi um lugar ocupado por muitas pessoas ao longo
dos anos, sendo Maria Borloth Monjardim a liderança que ficou mais tempo à frente
dos trabalhos do terreiro, até o afastamento por problemas de saúde. Atualmente a
lideram e dirigem dos trabalhos: Maria Conceição, Marly Lúcio e Heliomar de Ogum.

O Centro Canabibi18, possui uma história e um processo de construção de estatuto


interno, composto com contribuições de diversas pessoas que tiveram formações e
trânsitos religiosos distintos, e que há décadas fazem parte do terreiro, responsáveis
por inserir, ao longo da história do terreiro, nos trabalhos e giras diversas
particularidades. Cada dirigência, por mais que preserve as raízes do ritual, tem sua
própria forma de dirigir a gira com elementos simbólicos, pontos riscados, uso de

17
Mário Monjardim foi frequentador e parte da corrente mediúnica do Centro Canabibi.
18
Nesta pesquisa irei me referir ao Centro Espírita Canabibi de diferentes formas como: Centro, Casa
ou Terreiro, pois são as formas que os frequentadores e participantes utilizam para se referir ao
espaço.
25
flores e ervas de forma única; sendo dentro da casa Canabibi muito evidente a
diversidade e multiplicidade da Umbanda.

O terreiro possui uma organização anual em relação aos trabalhos, dias de gira e
homenagens. As giras abertas ocorrem às segundas-feiras e sextas-feiras. Na
primeira terça-feira do mês são realizados trabalhos na sala Bezerra de Menezes,
onde acontecem as cirurgias espirituais, para tratar problemas de saúde. Às
quartas-feiras são realizadas giras internas para desenvolvimento do corpo
mediúnico e na última sexta-feira no mês são realizados os trabalhos de Calunga,
nessa gira quem trabalha são os exus e as pombagiras dos cemitérios,
denominados povo da Calunga, segundo os ensinamentos do terreiro. Todos os
trabalhos realizados são previamente agendados a partir das consultas realizadas
nas giras abertas de segunda-feira.

O terreiro também conta com um calendário anual de homenagens e festividades,


que podem ser observados na tabela abaixo.

Calendário anual festivo e de homenagens do Centro Espírita Canabibi

Mês Entidade e/ou Orixá homenageado


Janeiro Homenagem a Oxóssi e limpeza do corpo mediúnico
2 de Fevereiro Iemanjá, gira realizada na praia de Camburi.
Março Aniversário da Irmã Canabibi
Abril Ritual de fecha corpo e homenagem para Ogum
Maio Homenagem aos Pretos velhos
Junho Homenagem a Xangô
Julho Homenagem a Nanã Buruquê
Homenagem ao povo da Calunga, que trabalha no cemitério e para
Agosto os Exus e Pombagiras
Setembro Homenagem a São Cosme e São Damião
Homenagem a Iansã e Oxum, gira realizada na cachoeira com o
Dezembro encerramento dos trabalhos do ano.

Figura 1: Calendário Festivo.

O calendário anual segue o calendário religioso da Umbanda. Geralmente as giras


de homenagens são realizadas dentro do terreiro, exceto a de Iemanjá (Figura 2) e a
de Oxum, realizadas na praia e cachoeira, respectivamente.

26
O ritual em homenagem e agradecimento a Iemanjá ocorre todo dia 2 de fevereiro
na praia de Camburi, (Figura 2) Iemanjá é “[...] a senhora das grandes águas, mãe
dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a
loucura” (PRANDI, 2001, p.22). Neste dia é comemorado no calendário católico do
Brasil o dia da Nossa Senhora dos Navegantes, protetora dos pescadores, que faz
relação com Iemanjá nas relações sincréticas de Umbanda.

No dia 2 de fevereiro são realizadas muitas giras em homenagem à Iemanjá, na


praia de Camburi, não só pelo centro Canabibi, mas por muitos terreiros de
umbanda e de candomblé da Grande Vitória; a relação da devoção das pessoas da
cidade com a Orixá tem relação com a cultura tradicional da pesca, na ilha de Vitória
e arredores, que foi durante muito tempo uma das principais fontes de renda e
trabalho, estando o mar muito presente no cotidiano da população. Na praia de
Camburi também está localizado o monumento que representa e homenageia
Iemanjá, a escultura19 foi inaugurada em 1988 e desde então recebe muitos devotos
que deixam flores e velas abaixo da escultura, não só no dia 2 de fevereiro, mas ao
longo de todo o ano.

19
A escultura em 1988 foi encomendada pelo prefeito da época, Hermes Laranja ao artista Ioannis
Zavoudakis. O monumento possui 3,10 m de altura além da base e uma largura que varia entre
4,70m e 4,10 m. Em 2017 a escultura passou por um processo de readequação, o monumento
ganhou uma nova cor de pele, coroa e vestido. Iemanjá que estava representada na cor branca foi
pintada de marrom, representando o povo preto, respeitando a valorização da diversidade cultural..A
Gazeta. Branca ou negra? A mudança na estátua de Iemanjá em Vitória. Disponível em:
https://www.agazeta.com.br/capixapedia/branca-ou-negra-a-mudanca-na-estatua-de-iemanja-em-vitor
ia-0221. Acesso em 16 de julho de 2023.

27
Figura 2: Gira em homenagem a Iemanjá, realizada pelo CEPAC, Praia de Camburi - Vitória - ES,
2019, Foto: Carla Désirée.

O Canabibi neste dia tem por tradição confeccionar uma estrela na areia da praia,
geralmente a estrela está dentro de um círculo cercado de conchas, flores e velas
acesas, a imagem de Iemanjá é sempre colocada ao centro (Figura 2). A estrela
também pode ser visualizada por praticantes da religião como o símbolo dos cinco
elementos: terra, água, fogo, ar e espírito. No ritual da praia também serve como
demarcação do espaço. Neste dia são realizadas oferendas e entregas de um barco
com flores e um manjar, além da realização de passes20 por entidades de caboclos e
marujos.

As homenagens no CEPAC possuem rituais específicos de acordo com as entidades


e orixás e a relação desses com o espaço. A gira é realizada de forma diferente
quando há homenagem, as oferendas mudam, os pontos cantados são direcionados
aos homenageados, os pontos riscados são feitos em função do dia de ritual e do
espaço em que a gira acontece; nas giras da praia os pontos são riscados na areia,
nas giras dentro do terreiro se faz o uso da pemba pelos riscadores, e assim a gira
corre conforme os fundamentos específicos do terreiro. Anjos (2006) diz que “A
20
Segundo Maciel (1992, p.150) “passes são rituais de purificação para o afastamento de espíritos
ruins”, não é incomum ver um ponto sendo riscado também na aplicação do passe.
28
religiosidade afro-brasileira tem um outro modelo para o encontro das diferenças que
é rizomático: a encruzilhada como ponto de encontro de diferentes caminhos que
não se fundem numa unidade, mas segue como pluralidade” (ANJOS, 2006, p.21) O
ponto de vista deste trabalho sempre parte desse sentido da pluralidade,
observando os momentos de gira, dos pontos riscados e os seus usos no Canabibi,
não colocando em discussão certezas ou verdades, só mais uma das mais variadas
formas de seguir com a gira nos encantos no mundo. Os momentos que os pontos
riscados surgem durante os rituais e a relação com os espaços do terreiro serão
discutidos melhor no subcapítulo abaixo.

2.2 O desenho como magia, ponto riscado, a pemba firmada no encanto

“Caboclo risca seu ponto na rodilha do cipó, Caboclo risca seu ponto na
rodilha do Cipó” 

Na umbanda, o ponto riscado é um desenho realizado por espíritos e/ou entidades


com um giz também chamado de pemba ou de riscador pelos umbandistas, pode
ser realizado também com pólvora, e possui propósitos diferentes de acordo com o
elemento, o tempo da gira e a localização em que foi realizado. Dentre as diversas
possibilidades de execuções do ponto riscado durante a gira, do Centro Canabibi
podemos citar: a convocação; o chamamento; as assinaturas de espíritos/entidades;
a proteção e demarcação do espaço em que vai ocorrer a gira, e até um portal de
encaminhamento para outro plano astral. É uma forma de comunicação sem o uso
da palavra, é a tecnologia ancestral, uma máquina do tempo de comunicação.
Ligiéro e Dandara definem o ponto riscado como ícone que evoca as qualidades das
entidades, as distinguem e as convocam no ciberespaço da umbanda.

O encanto do ponto riscado, do desenho está relacionado com o encanto da palavra


do ponto cantado e encantado. De acordo com Rufino (2019) “Tudo que é criado
ganha força à medida que o rito o encanta, seja para sua transcendência ou para a
perda de energia vital” (p. 76) O rito gera a força do encanto, o desenho como parte
do rito é o que faz dele encantando, é que faz dele portal de acesso a outros
lugares, é o que representa presenças e identidades.

29
Os desenhos são representações gráficas de elementos cotidianamente presentes
na religião e na vivência espiritual das entidades que estão trabalhando, como: sol,
lua, estrelas, ondas, flechas, linhas, retas, espirais, horizontes, círculos, cruzes,
tridentes, caminhos e encruzilhadas. Segundo Ligiéro e Dandara:
“O ponto riscado encontra os seus equivalentes na firma da religião cubana
chamada Palo ou Regla de Mayombe; na escrita sagrada intitulada
Anaforuana, desenvolvida pelo povo abaquá da África e seus descendentes
cuba; nos diagramas Vevé, utilizados no Haiti e em Nova York para invocar
os voduns; e na escrita ideográfica Adinkara21, desenvolvida pelo povo akan
de Gana e da Costa do Marfim. Todos esses diagramas, ou assinaturas de
espíritos, bem como os pontos riscados da umbanda, têm sua matriz
comum no cosmograma kongo chamado genericamente dikenga. (LIGIÈRO,
Zeca, DANDARA 1998, p.134 e 135)

Os pontos riscados estão presentes nas giras do CEPAC em diversos momentos do


ritual, os locais em que são inseridos podem ser observados conforme a imagem a
seguir, uma planta baixa em que podemos observar a divisão do terreiro, desde
1951 até os dias atuais. Além das representações dos espaços e assentamentos do
terreiro, os pontos em branco e cinza são as representações dos locais em que
ocorrem os pontos riscados durante as giras.

21
Também identificado como Adinkra.
30
Figura 3: Croqui do Centro Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi

31
Figura 4: Legenda do croqui

Cleber Maciel (1998) em sua pesquisa, para produção do livro Candomblé e


Umbanda no Espírito Santo, visitou uma gira no Centro Canabibi e se refere ao
início da gira da seguinte forma:
“No Centro Espírita Paz, Amor e Caridade Canabibi, uma gira observada
começa com um ritual em que cerca de metade dos médiuns presentes até
então, sentam-se em torno a uma grande mesa, enquanto, um dos
diretores, de pé, fala sobre obras espirituais realizadas, destaca a
necessidade de mais realizações e faz preces de agradecimento por todas
as graças e obras concretizadas. Com o discurso, cria-se um clima de paz e
concentração, enquanto vão chegando os médiuns retardatários que se
posicionam na roda que vai se formando em torno da firmeza” (MACIEL,
Cleber, 1992, p.154)

Cleber Maciel, durante a sua pesquisa também fala sobre os pontos riscados no
CEPAC:
“Enquanto a defumação continua, já vão sendo cantados pontos para a
Cabocla Jurema e o povo de Umbanda. A Cabocla Jurema “desce na”
médium Chefe e risca muitos pontos na firmeza, em torno de 3 rosas
vermelhas já lá depositadas, enquanto os demais médiuns vão recebendo
seus Caboclos que também vão ao Centro da firmeza fazer os seus
“riscados”” (MACIEL, Cleber, 1992, p.155)

A palavra “riscados”, que Cleber Maciel cita, se refere aos pontos riscados
realizados na estrela e alguns deles podem ser observados na Figura 5.

32
Figura 5: Estrela do CEPAC com Pontos Riscados e flores no dia de Homenagem a cabocla
Canabibi, 14 de março de 2019. Foto: Carla Désirée.

A estrela de sete pontas localizada ao centro do espaço em que ocorrem as giras é


um local central de concentração energética, toda a gira é realizada em volta dela.
Em dias de festas e homenagens para orixás e entidades, a estrela também é o
ponto de concentração das oferendas, flores, comidas e presentes para os
homenageados. Também é um local destinado a alguns trabalhos de ajuda
espiritual, executados durante a gira; pessoas de fora da casa não podem pisar nela
sem a autorização da liderança chefe da noite. A estrela é o lugar que recebe a
maior concentração de pontos riscados, eles são apagados e alterados pela
entidade regente durante a gira, de acordo com o momento do ritual.

Cada cor representada na estrela está associada à vibração de um Orixá. A relação


das cores com os Orixás pode ser observada em um quadro que está localizado na
parede no salão principal onde ocorrem as giras (Figura 6):

33
Figura 6: Quadro localizado no terreiro, relacionando as cores com orixás. fevereiro de 2023.Foto:
Carla Désirée.

A vibração de Orixalá (ou Oxalá) é representada na cor branca, a de Iemanjá na


azul, a cor verde representa a vibração de Oxóssi, Ogum é representado na cor
vermelha, a vibração de Yorimá é lilás, a vibração de Yori rosa, a vibração de Xangô
em marrom e a vibração de Iansã em amarelo.

A gira é aberta com os médiuns em torno da estrela, pedindo licença a Ogum para
início da defumação, os primeiros pontos riscados da noite são realizados dentro da
estrela, pela entidade que lidera os trabalhos da noite ao mesmo tempo em que se
canta o ponto para Oxalá: “Eu abro a nossa gira, pedindo de coração, ao nosso pai
Oxalá, que nos ajude a seguir a missão”. 

Após os pontos cantados de abertura e os pontos para os orixás cultuados no


terreiro são chamados os caboclos, para convocá-los se canta “Caboclo risca seu
ponto, na rodilha do cipó, Caboclo risca seu ponto, na rodilha do cipó. Deu meia
34
noite, na lua, deu meio-dia no sol”.

A partir do ponto cantado e encantado os caboclos chegam, incorporados nos


médiuns do CEPAC e riscam o ponto em volta da estrela. Neste momento o riscam
como firmeza, também pode ser uma assinatura, a identidade da entidade, do guia
ali presente, os caboclos mostram que chegaram ao espaço, esses pontos são
efêmeros, e na medida que a gira corre, a pisada dos caboclos os apaga. Os
desenhos dos caboclos podem apresentar flechas, linhas, estrelas, ondas e espirais.
Na execução do ponto riscado pode haver vários desses elementos ou apenas um
ou dois deles. A Figura 7 traz alguns exemplos de pontos riscados nos terreiros de
Umbanda no Espírito Santo.

Figura 7: MACIEL, Cleber. Candomblé e Umbanda no Espírito Santo: práticas culturais religiosas
afro-capixabas. 1 edição. Vitória: Nume produções ltda, 1992, p. 168.

Os riscadores, pontos riscados ou firmezas, durante a gira do CEPAC possuem a


maior concentração no espaço em que ocorre a gira, esses são apagados na
medida que a gira corre, mas também há pontos riscados presentes nas porteiras,
nas entradas e saídas da casa (Figuras 8 e 9) e um ponto abaixo da imagem do
Caboclo Jeremias (ver croqui, Figura 3) que são fixos.

35
Os pontos riscados ao longo da gira, dentro da estrela, sempre são trocados na
medida em que se muda o momento do ritual, o primeiro é riscado na abertura dos
trabalhos, depois é apagado e alterado no momento de aplicação dos passes,
terminado os passes e dado início os trabalhos de puxadas22 são riscados outros
pontos, e para a finalização dos trabalhos da noite é riscado um último ponto.

Há pontos que são riscados em momentos de trabalhos especiais de consultas23,


passes e puxadas. Para a realização das puxadas no Centro Canabibi, os médiuns
incorporados com os guias formam um círculo em volta da pessoa que irá receber o
passe, neste momento o espaço é limpo com um pano e o ponto é riscado pela
entidade regente do trabalho de puxada com uma pemba — aqui o ponto serve
como um portal, é a abertura de um lugar — assim que o ponto é riscado a pessoa
se posiciona acima do ponto, através do comando do médium chefe.

No momento de puxada são realizadas limpezas e benzimentos em conjunto com os


pontos riscados, muitas vezes também se observa a utilização de folhas de Espada
de São Jorge, arruda, velas, fumos, cachimbos e charutos consumidos pelas
entidades. “As curas se dão por baforadas de fumaça pitadas nos cachimbos, por
benzedeiras com raminhos de arruda e rezas grifadas na semântica dos rosários.”
(SIMAS E RUFINO, 2018, p.13). Assim que o trabalho de puxada termina, a pessoa
benzida pula para fora do ponto riscado. Em seguida todas as entidades que
trabalharam na puxada, fazem gestos em direção ao ponto riscado que sugerem a
limpeza do corpo que trabalhou, no terreiro esses gestos são denominados conforto
do aparelho24. Após a finalização do trabalho a entidade responsável por guiar a
puxada faz um gesto ritualístico, dando três toques com a mão por cima do desenho,
joga o marafo25 e apaga o desenho com um pano; nesse momento da gira, a partir
da força do rito, o ponto riscado funciona como um portal de encaminhamento, é a
abertura e fechamento de um lugar, um espaço criado e demarcado. Da perspectiva

22
“As puxadas são passes coletivos. Uma ou mais pessoas recebendo e vários médiuns incorporados
dando o passe” (MACIEL 1992, p.151).
23
As consultas no CEPAC geralmente ocorrem com os pretos-velhos e caboclos. São conversas da
pessoa da assistência com as entidades e é agendada em momento anterior a gira. Nos dias de
consulta o salão em que ocorre as giras é organizado com mesas, bancos e cadeiras, e o consulente
senta de frente com a entidade para uma conversa. Geralmente após as consultas são
recomendados banhos de ervas, as ervas são prescritas de acordo com necessidade individual.
24
Aparelho é o nome dado dentro do terreiro para o corpo que foi o transporte da manifestação da
entidade.
25
Nome utilizado dentro do terreiro para se referir à cachaça, aguardente feita de cana-de-açúcar.
36
do terreiro uma porta foi aberta para encaminhamento dos males que acompanham
o indivíduo, e a partir do momento que foi apagada, aquela porta foi fechada.

Figura 8: Ponto riscado para exu, ao lado esquerdo na entrada do CEPAC, novembro de 2022,
Vitória - ES. foto: Carla Désirée

Figura 9: Firmeza para caboclos, ao lado direito na entrada do CEPAC, novembro de 2022, Vitória -
ES. foto: Carla Désirée.

37
Nas porteiras, entradas e saídas do terreiro, são observados os pontos riscados
para os exus (Figura 8), junto com um coité preenchido com marafo, e o ponto
riscado para os caboclos (Figura 9) acompanhado de uma vela e um copo de água,
quando situados nas entradas do terreiro funcionam como firmeza de proteção,
estes são pontos fixos durante a gira. Os pontos riscados fixos são saudados por
todas as entidades presentes durante a gira.

Comumente os exus são conhecidos como o povo da rua, ou povo/linha da


esquerda, e são considerados senhores dos caminhos, protetores, guardiões das
porteiras, todo o ritual do terreiro Canabibi e da umbanda depende de seu papel de
mensageiro, ele faz parte do meio, do entre, é a comunicação, é quem leva as
mensagens dos humanos aos orixás, nos pontos riscados para os exus geralmente
são traçados tridentes e alguns elementos que podem representar as encruzilhadas;
os pontos podem mudar de acordo com a gira e de acordo com o exu responsável
pelos trabalhos da noite. Prandi (2001) se refere a exu no candomblé da seguinte
forma:

“Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás
depende de seu papel de mensageiro. Sem ele, os orixás e humanos não
podem se comunicar. Também chamado Legba, Bará e Eleguá, sem sua
participação não existe movimento, mudança ou reprodução, nem trocas
mercantis, nem fecundação biológica. Na época dos primeiros contatos de
missionários cristãos com os iorubás na África, exu foi grosseiramente
identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os
dias de hoje.” (PRANDI, 2001, p. 20)

Na umbanda exu também exerce o papel de mensageiro, e é uma entidade que


também está relacionada com a comunicação entre as pessoas com os orixás, é a
encruzilhada que torna possível os desdobramentos dos rituais de umbanda. O
ponto comumente cantado em terreiros de Umbanda do Espírito Santo confirma a
sua importância dentro do ritual “exu, exu, exu da encruzilhada, sem exu não se faz
nada”, sem ele não se faz nada, é a própria encruzilhada, o meio para seguir
qualquer um dos caminhos escolhidos. Luiz Rufino traz exu como "Linguística e
intérprete do sistema do mundo. [...] Um princípio necessário para o diálogo,
elemento fundamental para qualquer processo de produção de conhecimento e da
própria condição humana.” (RUFINO, 2019, p.43).

Na última sexta feira do mês é realizada uma gira na qual o terreiro denomina como

38
gira de Calunga. O ponto riscado surge da seguinte forma: o consulente se senta em
uma cadeira e próximo a seus pés é riscado um ponto, após o ponto riscado aos pés
do consulente são colocados em cima algumas velas, flores e pipoca26. A partir da
firmeza feita se inicia o trabalho com o povo da Calunga, as luzes do terreiro são
apagadas e a partir de então são realizadas as puxadas e descarregos. Para a
finalização do trabalho o consulente recebe um banho de pipoca e após a finalização
do banho todos os elementos utilizados no trabalho são queimados com cachaça
dentro de um alguidar.

Voltando as firmezas localizadas em pontos fixos do terreiro, ao lado da firmeza de


exu (Figura 8), está a firmeza dos caboclos (Figura 9), na umbanda “Caboclo não
tem caminho para caminhar, caminha por cima da folha por baixo da folha em todo
lugar”. O ponto cantado em terreiros de Umbanda do ES justifica a presença do
ponto riscado para caboclos na entrada da casa, por caminharem em todo lugar, os
caboclos em alguns momentos trabalham ao lado de exu. Rufino (2019) traz os
caboclos como um conceito:

O conceito de caboclo, como ser supravivente, multitemporal e uma


antinomia da civilidade, revela outras veredas das reflexões acerca da
existência e da natureza do ser e das suas produções de conhecimento. [...]
Risca-se o ponto, brada-se o som dos valentes guerreiros. No signo
encarnado pela força da pemba desenham-se duas flechas cruzadas com
uma estrela acima delas. A encruzilhada de setas demarca os limites da
razão intransigente imposta pelo colonialismo como também inscreve as
muitas outras possibilidades advindas do cruzo. A estrela acima é o símbolo
maior do encante, o supravivente não é morte e não é vida, é potência
existencial que transgride o limite do que é comportado pelas 102 duas
categorias normatizadas pelo Ocidente. É feixe de luz que corre mundo,
corre gira, movimento que fundamenta o transe como caminho e
possibilidades nos segredos da encantaria (RUFINO, 2019, p.102 e 103)

Rufino (2019) nos conduz a uma reflexão profunda sobre o conceito de caboclo, que
vai além de uma simples definição ou identificação. É apresentado como um ser
supravivente, cuja existência transcende o tempo e desafia as noções
preestabelecidas de civilidade. Esse corpo encantado é fundamental nos trabalhos
realizados na Umbanda, também está relacionado27 com as encruzilhadas, assim

26
A pipoca na umbanda é associada aos Orixá Obaluaê e Omolu, que estão relacionados à cura.
27
A relação dos caboclos com as encruzilhadas pode ser observada no ponto cantado de Umbanda
“Caboclo das Sete Encruzilhadas Santo Antônio ele é, Caboclo das sete encruzilhadas Santo Antonio
ele é; amarrador de feiticeiro, no cordão da sua fé. [...]” O ponto cantado relaciona o caboclo com
Santo Antônio e com as encruzilhadas, lugar que também é de exu, como citado em outros
momentos deste trabalho.
39
como exu.

As entidades de pretos-velhos, presentes na religião que trabalham nos terreiros


também riscam seus pontos quando chegam, no CEPAC a partir do ponto cantado
“Eles vem beirando o rio, eles vem beirando o mar, eles vem beirando o rio, eles
vem beirando o mar. Saravá os pretos-velhos de Aruanda que chegaram no Congá”
as entidades de pretos-velhos chegam na gira, caminham lentamente em volta da
estrela do terreiro, sentam no banquinho, acendem seus cachimbos e suas velas e
riscam seus pontos no chão; nas giras de segunda-feira fazem atendimentos e
consultas.

Pensar os pontos riscados e os elementos associados a ele no momento em que é


riscado, como os pontos cantados, os lugares e objetos que os acompanham, é um
caminho que provavelmente não tem fim, pois a Umbanda é múltipla e diversa e
sempre está em transmutação pelas questões sociais que a cercam no momento em
que ela é vivida.

Outro ponto riscado que ocorre nas giras do Canabibi é o ponto de finalização da
sessão (Figura 10), que é riscado enquanto se canta “Eu vi Santa Bárbara no céu, e
a trovoada roncou no mar. Girar me vou êe, girar me vou êa. O céu está coberto de
estrelas, o mar está coberto de rosas. Filhos de Umbanda, por que é que choram?
são os seus caboclos, que já vão embora” nesse momento os caboclos se
encaminham e os médiuns desincorporam. Logo em seguida são realizados
agradecimentos às entidades e aos orixás, e são finalizados os trabalhos da noite.

40
Figura 10: Ponto riscado para finalizar a gira e encaminhar os caboclos de volta aos seus planos
astrais de origem na estrela localizada ao centro do terreiro do salão em que ocorrem as giras.

A presença dos pontos riscados, desenhos encantados das entidades, dentro de


cada terreiro e do ritual de cada gira possui uma função diferente no momento em
que é riscado e no assentamento em que é firmado. Cada momento em que o ponto
é riscado possui um fundamento e um objetivo diferente, a mudança de grafismo vai
depender da entidade que está riscando o ponto, os lugares permanecem fixos no
terreiro.

Aqui comuniquei sobre desenhos de encanto a partir da observação e execução


deles nas giras do Centro Espírita Paz Amor e Caridade Canabibi. Este trabalho foi o
início de um caminho na pesquisa dos desenhos inseridos no terreiro, que
possibilitaram e inspiraram a produção artística que se desdobrou em pinturas,
gravuras e tatuagens.

41
CAPÍTULO 3 PRODUÇÃO ARTÍSTICA A PARTIR DOS ENSINAMENTOS DO
TERREIRO

3.1 Aruanda, Agô, Laroyê

A minha produção e pesquisa em arte a partir de 2020 caminha acompanhada com


os ensinamentos dos terreiros que me são passados desde 2019, momento que me
inseri no terreiro de Umbanda de forma direta e passei a pertencer a um terreiro.
Segundo o professor Sidnei Nogueira: “[...] a Umbanda é uma grande máquina do
tempo imaterial que permite por meio da mediunidade acesso a memórias
existências de outro tempo.” É a partir desse acesso a memórias e existências de
outro tempo que fundamento minha produção, desse modo inicio e finalizo esse
trabalho, a partir da imagem de uma preta velha — entidade que transmite o saber
através da oralidade, que são conhecidos nos caminhos, nos terreiros e em outros
planos astrais — pedindo licença, Agô.

Os trabalhos e minha pesquisa em Artes percorrem/transitam por desenhos,


pinturas, gravuras, tatuagens e fotografia. Aqui, falarei de alguns trabalhos que
considero importantes na minha trajetória como artista, através da pesquisa de
diferentes suportes para a materialização da produção. Coloco aqui uma pintura
produzida com tinta de terra, uma xilogravura, uma tatuagem e uma gravura em
metal. Os trabalhos apesar de estarem em suportes diferentes representam a
produção contemporânea a partir de um corpo artista que pesquisa possibilidades
de suportes para a execução da transmissão do saber e da memória. As obras
apresentadas aqui são respectivamente uma pintura, uma xilogravura, uma
tatuagem e uma gravura em metal.

Os elementos que geralmente estão inseridos na prática ritualística de umbanda e


também inseridos na minha pesquisa e produção em arte permeiam pela
materialização das imagens das pretas velhas, pelas flores, plantas e ervas,
oferecidas às entidades ou receitadas aos consulentes dentro da religião, assim
como dos grafismos, pontos riscados e desenhos presentes nos terreiros.

O primeiro trabalho que exponho, e que considero como início do processo de uma
produção que surge a partir do caminho junto ao terreiro, se chama Aruanda (Figura

42
11). A pintura foi materializada com terra, a partir de terras de diferentes cores
coletadas na região do Caparaó, sul do Espírito Santo. Aruanda foi pensada a partir
das memórias das velhas que trabalham nos terreiros e fez parte de uma série que
materializou pinturas feitas com a terra.

A relação do uso da terra para a materialização da imagem também traz memórias


sobre os povos que passaram, trabalharam e viveram pisando naquela terra.
Lembrar dos antepassados transgride a lógica da morte, tornando vivo o que já
passou por esse caminho. Rufino (2019, p.27) diz que só há morte no esquecimento
e que “combater o esquecimento é uma das principais armas contra o desencanto
do mundo”. “O não esquecimento é substancial para a invenção de novos seres,
livres e combatentes de qualquer espreitamento do poder colonial” (RUFINO, 2019,
p.16). É a partir da memória, da lembrança, do combate ao esquecimento, que a
pintura Aruanda (Figura 11) torna viva quem passou por aquele caminho, trazendo a
terra olhando para quem a observa.

O uso do café e do fumo, também representados na imagem, possuem uma relação


direta com o terreiro e as entidades mais velhas, que fazem o uso da fumaça dos
cachimbos e tabacos enrolados, utilizados no auxílio da cura.

O trabalho Aruanda possui 20 x 30 cm e foi executado em algodão cru, em 2021, fez


parte da Exposição Olope, uma exposição mapeada28 (Figura 12)29 que foi realizada
em um edifício da Avenida Jerônimo Monteiro, no Centro da Cidade de Vitória, a
exposição contou com o trabalho de 12 artistas do Brasil e além da exposição
mapeada também reverberou em uma exposição online e de uma intervenção
urbana em diferentes pontos da Grande Vitória / ES, com o objetivo apresentar
expressões culturais da diversidade étnica do nosso país. A produção e curadoria
foram realizadas por mim, Carla Désirée, chama.amanda e Lara Toledo. A exposição
foi um passo importante para pensar em possibilidades de transmissão da imagem,
do trabalho e da memória, em outros suportes que possibilitem atingir mais pessoas.

28
A exposição mapeada, também conhecida em mapeamento de projeção é uma técnica audiovisual
que consiste em projetar imagens, vídeos ou animações em superfícies tridimensionais, geralmente
em edifícios, monumentos, esculturas ou qualquer estrutura arquitetônica.
29
Mais detalhes das exposições Disponível em:
https://www.behance.net/gallery/173013415/Curadoria-e-producao-Exposicao-Olope: Acessado em
1ºde julho de 2023 13:07h
43
Figura 11: Aruanda, tinta de terra sobre algodão. 20x30cm. Carla Désirée. junho de 2020.

44
Figura 12: Exposição Olope, obra Aruanda, 2021. Foto: Carla Désirée

O segundo trabalho que apresento se chama Laroyê (Figura 13), uma xilogravura
impressa em papel de arroz e tem aproximadamente 20 x 24,5 cm.

A xilogravura é uma técnica de gravura em que uma imagem é esculpida em uma


placa de madeira, por meio de ferramentas de corte, como formões e goivas. A
superfície esculpida é então entintada e impressa em um papel, tecido ou outro
material de impressão, produzindo uma cópia da imagem original. A xilogravura é
uma técnica de impressão de gravura antiga, tendo sido usada em muitas culturas
em todo o mundo.

O trabalho Laroyê foi produzido em 2022 faz referência aos símbolos e elementos
relacionados aos exus e pombagiras e possui uma composição visual que
representa a flor dama da noite ao centro do trabalho, tridentes, folhas, estrelas e
losango. A cor branca da gravura faz referência à representação visual religiosa dos
pontos riscados com pemba branca.

45
A flor, dama da noite — que está representada na gravura — na umbanda é
oferecida de presente para as pombagiras, chamadas de moças, rainhas das
estradas e dos caminhos, sábias, feiticeiras, entidades que alcançaram um plano
astral elevado e que se presentificam nos terreiros para ensinar, para transgredir
com os ensinamentos do sistema dos colonizadores, vem para a terra encantar e
trabalhar. “A pombagira é o enigma que poetiza as transgressões necessárias às
normatizações da dominação do homem na sociedade, que inferioriza, regula e
interdita o papel da mulher” (SIMAS e RUFINO, 2018, p.90). Rufino (2019)

Os tridentes que formam os caules das folhas, presentes no trabalho a partir do


ponto de vista do terreiro, que também é o meu ponto de vista na pesquisa, são uma
menção ao ponto riscado destinado e firmado para os mensageiros, os exus e as
pombagiras, entidades que vêm à frente abrindo os caminhos, os senhores das
palavras. As folhas aparecem como a representação de ervas, elemento
fundamental para a vida e para os rituais de umbanda, que carregam consigo
conhecimentos de medicina e fundamentos religiosos.

As estrelas, localizadas nas pontas do trabalho, fazem menção ao ponto fixo de


energia dentro do terreiro, a firmeza da casa. As estrelas também estão diretamente
relacionadas com a vida terrena, que não seria possível sem o sol como mediador
de vida na Terra. Os losangos são a delimitação do espaço, demarcam o território
do trabalho. A obra Laroyê é um conjunto de ensinamentos dos terreiros.

46
Figura 13: Laroyê, xilogravura, 2022. Carla Désirée.

47
O terceiro trabalho (Figura 14) é uma tatuagem, vivência pessoal e profissional que
caminha comigo desde 2018. A técnica da tatuagem é uma prática milenar que
envolve a aplicação de pigmentos na pele através de agulhas e tintas resultando em
desenhos permanentes. É realizada com o uso da máquina como intermediadora da
agulha que insere a tinta na pele. Atualmente existem diversos tipos de máquinas e
agulhas disponíveis para a realização da tatuagem. A máquina que utilizei para a
execução do trabalho foi uma máquina de bobina, seu funcionamento depende do
transporte da energia acionada por uma fonte conectada a um cabo que liga a
máquina. A energia passa por duas bobinas de fios de cobre que geram forças
eletromagnéticas que atraem o batedor, na qual a agulha está conectada, para
baixo, o movimento perfura a pele. Após esse momento o circuito energético é
quebrado puxando a agulha de volta para cima, esse movimento faz com que a
agulha bata diversas vezes por segundo possibilitando a continuidade do desenho.
Para cobrir 5 cm quadrados de pele, a máquina faz até 28 mil perfurações30.

Para a execução do trabalho foi utilizada uma agulha para traço com numeração
9RS, a especificidade dessa agulha é que ela possui 9 micro agulhas soldadas
formando uma, a variação da espessura do traço depende da quantidade de micro
agulhas soldadas em cada agulha. A agulha 1RS é a que possibilita um traço mais
fino e a agulha 18RS um traço mais grosso.

As agulhas, máquinas, voltagens e ajustes variam conforme o tipo de trabalho a ser


realizado, a área do corpo a ser tatuada e a preferência pessoal. A variação do
número de batidas da agulha por segundo variam conforme a voltagem e força da
máquina utilizada.

Na tatuagem o desenho sai de uma materialidade estática e se torna vivo, ganha


movimento a partir do momento que se torna parte daquele corpo. Neste trabalho o
corpo é quem faz a transmissão do saber. Rufino (2019) define o corpo como campo
de possibilidades, e é a partir de uma das possibilidades que o trabalho se assenta
nesse corpo. O desenho foi escolhido a partir de uma série de desenhos amuletos
que disponibilizei para serem tatuados. Amuleto por conter elementos que permeiam

30
“Como funciona uma máquina de tatuagem?” Disponível em :
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-funciona-uma-maquina-de-tatuagem. Acesso em 12
de julho de 2023
48
a sabedoria das benzedeiras e a magia da religiosidade brasileira.

O desenho foi criado por mim a partir da arruda, e da grafia dos pontos riscados
para os exus e pombagiras. A arruda é uma planta de poder muito usada nos rituais
de umbanda e associada às entidades dos pretos-velhos. A tatuagem também se
relaciona com a memória e se torna parte daquele corpo, que será associado ao
desenho assentado.

Os elementos presentes no desenho tatuado trazem grafismos com referência aos


tridentes de exu e da lança de ogum. A lua vem como marcador da passagem do
tempo e a arruda evoca o significado de proteção.

Ao ser tatuado o desenho passa a ser parte de outro corpo, podendo agregar a partir
da perspectiva de quem carrega o desenho novas percepções, associações,
crenças e memórias.

Figura 14: Tatuagem sobre a pele. Carla Désirée, 2022.

O último trabalho que apresento é uma gravura em metal, brevemente mencionado


no início dessa pesquisa e se chama Agô (Figura 16), o trabalho foi realizado na
UFES a partir da aula de gravura com o professor Rafael Pagatini.
49
Agô é um pedido de licença, nos terreiros se pede licença na entrada e se pede
licença na saída, por isso, a obra Agô está no início e na finalização desse trabalho
de pesquisa. A obra traz elementos das culturas brasileiras e afro-brasileiras, com a
representação da preta-velha; mestiça com elementos a partir do corpo cruzado31,
com a inserção dos símbolos adinkras nas tatuagens e no corpo, com a
representação dos desenhos na pele e gravados no corpo.

A Velha representa um corpo detentor de saber e representa a entidade de outro


plano astral, com marcas de vida e desenhos que carregam consigo elementos de
culturas brasileiras, africanas, indígenas e grafismos utilizados nas tatuagens do
corpo contemporâneo.

As sankofas32 representadas nas tatuagens do corpo comunicam sobre a


importância da aprendizagem com o passado, é um lembrete constante de que a
experiência passada deve ser um guia para o futuro. Os símbolos sankofas, muito
presentes em desenhos de portões e grades (Figura 15) no Brasil, evocam objetos
de proteção, de guarda e preservam os dizeres e saberes de um de povos presentes
na construção arquitetônica e designer brasileiro.

31
“Nas bandas de cá do Atlântico os corpos inventores da vida enquanto possibilidades são corpos
cruzados e imantados como amuletos que reivindicam e assentam a memória e o axé ancestral"
(RUFINO, 2019, p.150)
32
Sankofa é um símbolo da cultura Akan, originária da região que hoje corresponde a Gana, na África
Ocidental. O símbolo de Sankofa representa a ideia de que, para seguir em frente, é preciso olhar
para trás e aprender com as experiências do passado. Os desenhos representam uma memória
ancestral e hoje está muito presente no Brasil em grades, portas e portões. CARMO, ELIANE,
História da África nos anos iniciais do ensino fundamental: os Adinkra. p.51. 2016. Mestrado
Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, Bahia.
50
Figura 15: Sankofas em grades. Vitória - Espírito Santo, 2023. foto: Carla Désirée

A gravura em metal, as técnicas de gravação podem ser tanto diretas, utilizando-se


ferramentas que cavam sulcos na placa de metal, onde a tinta será depositada para
a impressão, ou indiretas, onde os mordentes químicos corroem a superfície
gravando sulcos e construindo a imagem. As mesmas, após serem entintadas, são
impressas sobre um papel, que chamamos de cópia.

Na obra Agô foram utilizadas técnicas de gravação diretas e indiretas a partir da


placa de cobre. Para a execução da técnica de gravação direta, , presentes no corpo
da velha representada, utilizei a ponta seca, usando o mesmo modelo de agulha que
utilizo na gravação das tatuagens, que faço nos corpos das pessoas que desejam
uma tatuagem, um desenho permanente..

As tatuagens representadas na gravura são uma metáfora ao corpo, às gravuras e


aos desenhos tatuados na velha. O mesmo objeto que tem o potencial de gravar a
pele e as pessoas, que vivem nesse plano material, tem o potencial de gravar outras
matérias, aproximando o ser presente no trabalho de uma forma mais particular à
humanidade, aos processos que interferem nos corpos e nas vivências cotidianas a
partir da memória dos caminhos, e das referências visuais presentes

Peço licença para retratar na contemporaneidade esse corpo a partir da gravura em


metal, um processo utilizado desde o século XV, executado e difundido pelo
51
continente Europeu, este que foi o grande agente de práticas de invasão e
colonização de diversos povos, nações e pessoas. Licença para transgredir a lógica
colonial da tentativa de apagamento de povos indígenas e negros no Brasil, Agô
representa os povos os quais a colonização mais massacrou. Com isso dou um dos
pequenos passos para transgredir a lógica de negação dos espaços e de vivências a
esses corpos. O trabalho representa muitos corpos, e pode ser lido de diversas
maneiras a partir da narrativa de quem observa a imagem internalizada.

Os elementos representados no corpo da velha caminham por uma representação


multicultural, através dos alargadores e dos furos no nariz, que possuem relação
com os indígenas brasileiros, e do turbante que se relaciona com o povo indiano e
com o povo de África. O terceiro olho está ligado à abertura de consciência. Os
elementos que compõem e fazem parte desse corpo representado, só são possíveis
a partir do cruzamento transatlântico que possibilita a construção de um corpo a
partir da diversidade e possibilidade cultural existente no Brasil.

Agô foi ganhadora do prêmio na categoria gravura durante a Olimpíada Brasileira de


Artes Visuais33, realizada para estudantes de todo o ensino federal do país. Finalizo
a pesquisa com uma frase de Rufino (2019) “Étnico, na gramática ocidental, é o
termo que corre fora dos limites do branco. Para aqueles subordinados à lógica de
negação sistemática do outro, resta a pergunta: Quem sou eu? (RUFINO, 2019,
p.151)

33
A Olimpíada foi realizada pela Fundação Nacional de Artes, no ano de 2022 e teve abrangência
nacional, de 100 (cem) projetos, distribuídos em dez categorias como reconhecimento à produção
artística e cultural de novos talentos no meio acadêmico. Agô, ficou em primeiro lugar na Categoria
gravura. Mais informações sobre o edital e resultados disponível em:
https://www.gov.br/funarte/pt-br/assuntos/noticias/todas-noticias/premio-funarte-olimpiadas-das-artes-
visuais-resultado-final . Acessado em 10 de julho de 2023.
52
Figura 16: Agô. Gravura em metal, Carla Désirée, 2022

53
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho para escolha do tema se deu em primeiro momento com a escolha dos
pontos riscados como objeto de pesquisa. Na medida em que o texto e a busca
sobre o tema seguiam, para além da minha vivência e observação dentro do terreiro,
percebi o ponto riscado como uma encruzilhada que ligava a três caminhos: a
história e o caminho da religião no Brasil, a relação da religião com a sociedade e o
Estado e uma produção material artística que surgia em conjunto com esses
caminhos. Vale lembrar que a encruzilhada possibilita outros encontros com outras
encruzilhadas e outras possibilidades de caminhos, dito isso, essa é só uma das
encruzilhadas que a pesquisa nos terreiros do Espírito Santo pode proporcionar.

O trabalho traz narrativas históricas e artísticas visuais vislumbrando a possibilidade


de aplicação da Lei 10.639/03, no meio acadêmico e no ensino básico, a partir do
debate interdisciplinar entre arte e identidades locais, por meio da vivência.

A relação do nosso objeto de pesquisa com a formação no curso de licenciatura em


Artes Visuais é mais um passo para uma nova forma de pensar a educação, a partir
da valorização da diversidade étnico-racial e cultural. Reconhecendo a importância e
o respeito pela cultura afro-brasileira, tradições, religiões e manifestações artísticas;
assim como a valorização da diversidade através de políticas públicas e
reconhecimento de Estado, como discutido no capítulo 1. Pois acreditamos que a
discussão e aplicação de políticas públicas é essencial para a construção de uma
sociedade mais inclusiva e plural.

Os estudos de história da arte africana e/ou afro-brasileira e indígena estão se


expandindo na licenciatura de Artes Visuais na UFES, esperamos com essa
pesquisa apresentar caminhos para a compreensão da história e da contribuição dos
povos de religiões de matriz africana para a formação do Brasil. Consciência
histórica é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária,
e a educação é um dos passos para essa mudança.

A educação com foco nas relações étnico-raciais contribui para o combate ao


racismo, ao preconceito e à intolerância religiosa, uma vez que promove a
conscientização sobre a história, a partir de uma perspectiva de que é preciso

54
conhecer para compreender as experiências e vivências das culturas e religiões de
matriz africana. A pesquisa buscou analisar a relação dos pontos riscados com os
momentos dos rituais que ocorrem fora dos dias de festas e homenagens; porque
para a análise dos fundamentos dos pontos riscados em cada dia do calendário
festivo do terreiro seria necessário um tempo maior de pesquisa. Ainda que tenha
sido possível a exposição de diversos momentos em que os pontos riscados são
utilizados, as possibilidades de grafismos e variações de acordo com as entidades
são imensas, e este trabalho é só um pequeno passo do caminho para uma
pesquisa mais profunda sobre os pontos.

O ponto riscado também pode estar relacionado com outros elementos, além da
pemba, durante as giras e rituais, como água, coités com marafos, velas, fogos,
flores, pólvora, oferendas, e ervas que não foram investigados aqui, mas que
puderam ser observados ao longo das imagens presentes na pesquisa. Falar sobre
a pemba e o desenho foi um meio de apontar uma relação do desenho com a
espiritualidade, que existe também dentro de rituais religiosos. Além de caminhar
junto com o meu corpo e vivências de uma artista contemporânea.

Por um momento cogitei falar no trabalho apenas sobre os pontos riscados e o


caminho da religião, retirei por um período o subcapítulo 1.2, que traz a defesa de
direitos e o reconhecimento do Estado com as religiões de matriz africana, mas
enquanto o trabalho estava sendo escrito o número de ataques e casos de racismo
religioso no ES aumentavam, intensificando a necessidade de falar sobre o quanto é
necessário a defesa dos direitos dos praticantes e o combate ao racismo religioso.

O terceiro capítulo, que fala sobre produções artísticas pessoais, de início, não
estava previsto para esse trabalho, mas percebi que os meus caminhos e produções
de pinturas, gravuras e tatuagens estão muito conectados com as práticas,
ensinamentos e símbolos do terreiro. Trazer um pouco de como esse caminho
reflete em minha produção e algumas reverberações da produção, foi importante
nesse momento em que os ensinamentos de terreiro se juntaram aos ensinamentos
acadêmicos e pude representar o quanto os caminhos se conectam e se unem em
mais uma encruzilhada em algum momento.

Assim realizei este empenho de sintetizar e fazer entender algumas das


55
possibilidades e caminhos que temas afro-brasileiros podem possibilitar, permitindo
aos estudantes caminhos para o fortalecimento também da identidade pessoal,
reconhecendo-se como parte de uma história e cultura rica e diversa.

56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Cleyde R; OLIVEIRA, Osvaldo M. (org.). Africanidades e seus


Zeladores: Identidades, religiosidades e patrimônio cultural. Vitória: UFES,
ProEx, 2017.

ANJOS, José Carlos Gomes dos. No território da linha cruzada: a cosmopolítica


afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006.

ANTOLINI, Marco Antônio. Centro Espírita Paz, Amor e Caridade CANABIBI:


Jubileu de Ouro 1942-1992, Vitória, 1992

BENISTE, José. Dicionário yorubá·português.- Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,


2011.

CARMO, Eliane. História da África nos anos iniciais do ensino fundamental: os


adinkra. Monografia (mestrado em história da África, diáspora e povos indígenas).
Centro de Artes, Humanidades e Letras. Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia. Cachoeira, p.190. 2016

CHAGAS, Mario de Souza de; MONTEIRO, César Manhães; VERSIANI, Maria


Helena. A chegada e chegadas do nosso sagrado à república - La llegada y
llegadas de nuestro sagrado a la república. MUSEOLOGIA &
INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 11, nº 22, jul./dez. 2022

GUIMARÃES, Aissa Afonso; OLIVEIRA, Osvaldo M. (org.). Jongos e Caxambus:


culturas afro-brasileiras no Espírito Santo. PROEX/UFES - Vitória, 2017.

LOPES, Nei. Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos – Rio de


Janeiro: Ed Senac Rio, 2005

LIGIÉRO, Zeca e Dandara. Iniciação à Umbanda. Rio de Janeiro: Nova Era, 2000

LIGIÉRO, Zeca e Dandara. Umbanda: Paz, Liberdade e Cura. Rio de Janeiro.


Record: Nova Era, 1998.

57
MACIEL, Cleber. Candomblé e Umbanda no Espírito Santo: práticas culturais
religiosas afro- capixabas. Vitória: Nume produções ltda, 1992.

NOGUEIRA SIDNEI. A tradição do racismo religioso com prof. Sidnei Nogueira.


Episódio 1. 13 de março de 2021. Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/1VSPvRyZ6xRhrBq33On0UO?si=XiKuCb_AQdSB
OWh_6iCx-w. Acesso em 01 de junho de 2023.

OLIVEIRA, Osvaldo M. (org.) Negros no Espírito Santo. –2ª ed. – Vitória, (ES):
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016.

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: editora Vozes,
1998

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras,
2001.

RUFINO, Luiz, Pedagogia das encruzilhadas. Rio de janeiro: Mórula editorial, 2019

SANTOS, Viviane. Velas: o uso em práticas Umbandistas - Canabibi


(Vitória/ES). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Artes Visuais).
Centro de Artes, Licenciatura em Artes Visuais. Universidade Federal do Espírito
Santo. Vitória, p.45. 2018.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. A ciência encantada das macumbas. Rio de
Janeiro: Mórula, 2018.

II Relatório sobre intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe.


UNESCO. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em:
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000384250. Acesso em: 20 abr. 2023

“Respeita nosso sagrado”. Direção de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa.


Quiprocó Filmes. 2020. 10:35 min. Disponível em:
https://www.facebook.com/quiprocofilmes/videos/respeita-nosso-sagrado/846492332
769638/ Acesso em: 05 de maio 2023.

58
Branca ou negra? a mudança da estátua de Iemanjá em Vitória. Disponível em:
https://www.agazeta.com.br/capixapedia/branca-ou-negra-a-mudanca-na-estatua-de
-iemanja-em-vitoria-0221 Acesso em: 16 de julho de 2023.

Casos de intolerância religiosa triplicaram entre 2021 e 2022 no ES - ES TV, 06


de maio de 2023. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/11596013/ . Acesso
em 2 de junho de 2023.

Como funciona uma máquina de tatuagem? Revista Super interessante. 2020.


Disponível em:
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-funciona-uma-maquina-de-tatuage
m. Acesso em 12 de julho de 2023.

59
ANEXOS

Figura 17: Livreto produzido pelo Canabibi

60
Figura 18: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 19: Livreto produzido pelo Canabibi

61
Figura 20: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 21: Livreto produzido pelo Canabibi


62
Figura 22: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 23: Livreto produzido pelo Canabibi


63
Figura 24: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 25: Livreto produzido pelo Canabibi


64
Figura 26: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 27: Livreto produzido pelo Canabibi

65
Figura 28: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 29: Livreto produzido pelo Canabibi

66
Figura 30: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 31: Livreto produzido pelo Canabibi

67
Figura 32: Livreto produzido pelo Canabibi

Figura 33: Livreto produzido pelo Canabibi

68
Figura 34: Livreto produzido pelo Canabibi

69

Você também pode gostar