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ENERGIA

O paradoxo dos preços


dos combustíveis

Marcelo Gauto Fernanda Delgado Márcio Couto


Especialista em O&G e doutorando em Professora de Geopolítica da Energia e Professor e pesquisador da FGV
Bioenergia da Unicamp coordenadora de pesquisa da
FGV Energia

Acompanhando o aumento do pre- agentes em relação aos preços, po-


ço do barril de petróleo e a desva- rém, difere entre si.
lorização da moeda nacional, frente A política de preços da Petrobras
ao dólar, o aumento dos preços dos tem sido alvo de análise de muitos
combustíveis dá sinais de que vai especialistas desde 2017, quando a
pressionar a economia brasileira, estatal passou a praticar os preços
trazendo o tradicional desconten- da paridade de importação. A vola-
tamento da população e de alguns tilidade dos preços dos combustíveis
setores. Antigos dilemas voltaram aumentou desde então no mercado
ao radar, com críticas aos preços de doméstico. A empresa vem “calibran-
paridade de importação, assim como do” o timing dos reajustes, tentando
a suspeita de controle de preços por evitar as flutuações de mercado de
parte da Petrobras. curtíssimo prazo, o que para muitos
Os dois lados da moeda são co- soa como alguma interferência polí-
nhecidos: as consequências de se tica, com controle sobre os preços.
adotar preços de combustíveis arti- Importa mencionar que em outras
ficiais, abaixo do valor de mercado; praças os preços dos combustíveis
e também os efeitos de se ter com- também flutuam com bastante fre-
bustíveis com preços alinhados ao quência, reflexo da volatilidade dos
mercado internacional. A venda das preços internacionais do petróleo, e
refinarias da Petrobras segue avan- esses movimentos (em boa medida)
çando, e é preciso encarar, então, não ocupam as primeiras capas dos
que o modus operandi dos refinado- jornais locais.
res, inclui-se aqui a Petrobras, será A Associação Brasileira dos Im-
o de maximizar eficiência, balizando portadores de Combustíveis (Abi-
seus preços pela concorrência com o com) acionou o Conselho Adminis-
produto importado, em especial. A trativo de Defesa Econômica (Cade)
lógica é simples: se a venda interna em janeiro (2021), alegando que a
não remunera o refinador, o produ- Petrobras está praticando preços
to será exportado. A percepção dos predatórios e que tem mantido fe-

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chada a janela de importação. Os Quando o preço do diesel sobe, o


produtores de etanol concordam, a A política de preços da custo do transporte também sobe. Se
estatal nega. Ao mesmo tempo, as o transporte fica mais caro, os pro-
associações ligadas aos caminhonei- dutos transportados no país também
Petrobras tem sido alvo
ros, bem como boa parte da popula- ficam mais caros. Obviamente, se o
ção, reclamam dos aumentos suces- preço do diesel cai, o que foi relatado
de análise de muitos
sivos dos combustíveis. anteriormente não ocorre, na mesma
Esse aparente paradoxo é antigo velocidade, no sentido inverso. Até
especialistas desde 2017,
e está longe de ter fim. Incrivelmen- aqui nenhuma novidade.
te, todos têm razão: a Petrobras Quando esta escalada de preços
vem seguindo preços de paridade,
quando a estatal passou do diesel ocorre, historicamente
a arbitragem para importação está acabou-se intervindo nos preços da
negativa em várias praças e os com-
a praticar os preços da Petrobras, ou seja, o governo obriga
bustíveis, na ponta, estão ficando a estatal a represar o aumento, utili-
mais caros. Isso tem respaldo em
paridade de importação zando suas reservas de caixa. Porém,
uma vasta literatura que mostra os esta prática sempre foi extremamen-
efeitos da assimetria na transmis- te controversa no mercado. Os refi-
são dos reajustes, no varejo, na alta nadores privados e importadores de
e na baixa dos combustíveis,1 isto estava a US$ 20 em abril de 2020 diesel têm prejuízos e reduzem a pro-
é, os preços sobem mais rápido do chegou em janeiro do presente ano dução, quando não a interrompem.
que descem. a US$ 55. Para não faltar diesel no mercado,
Acomodar as diferentes percep- A desvalorização da moeda bra- a Petrobras importa a parcela que a
ções, o livre-mercado e os anseios sileira frente ao dólar é outro fa- iniciativa privada estava fornecendo,
da população por combustíveis mais tor importante a se considerar na onerando ainda mais o caixa da es-
baratos ou, pelo menos, com preços equação de preço dos combustí- tatal. Assim, o governo resolve um
mais estáveis não é tarefa simples. veis. Desde março de 2020, o dólar problema no curto prazo, mas cria
Será preciso, em dado momento, re- tem sido cotado acima dos R$ 5 no outros no longo.
tomar a discussão a respeito da uti- Brasil. Os combustíveis ficam mais Com a Petrobras subsidiando o
lização de ferramentas que amorte- caros basicamente, mas não ape- diesel, não há investimentos relevan-
çam as oscilações dos preços. nas, por dois motivos: aumento da tes em refino por parte da iniciativa
matéria-prima (petróleo) e/ou des- privada. Por outro lado, se o gover-
valorização da nossa moeda frente no não fizer alguma intervenção,
O petróleo e o dólar ao dólar. Quando as duas variáveis a população e a economia do país
O ano de 2021 começou com as ocorrem ao mesmo tempo, a difi- sentem. Esse dilema se repete des-
commodities em alta, algo já obser- culdade é ainda maior. Assim co- de o governo Sarney, passando por
vado no final de 2020. O início da meçou 2021. Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer e,
imunização das pessoas pelas vaci- Apesar de todos os combustíveis agora, Bolsonaro. Não é trivial um
nas contra a Covid-19 e a expec- apresentarem viés de alta, o que mecanismo amortecedor dos preços
tativa de uma retomada econômi- ocorre no diesel é o que traz maior sem a participação ativa da Petro-
ca mundial são fatores que puxam impacto econômico. Isso porque o bras, mas não é impossível. Medidas
para cima as cotações. No caso do modal de transportes do país é, ma- dessa natureza demandam planeja-
setor de petróleo, colabora para a joritariamente, o rodoviário, depen- mento e algum estoque de dólares
recuperação dos preços, a manu- dente do óleo diesel. Em 2019, foram para tal – usar a estatal sempre foi
tenção e a disciplina dos cortes de consumidos 57 bilhões de litros de o caminho mais fácil. Mas nesse sen-
produção por parte da Opep+. As- diesel, sendo que aproximadamen- tido cabe a discussão se esse seria o
sim, o barril de petróleo Brent que te 22% destes foram importados. papel da Petrobras, uma vez que o

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mercado nacional já é legitimamen- verno federal a ir reduzindo o va-


te aberto (a quebra do monopólio se lor da Cide até que foi zerado em
As dificuldades de se
deu em 1997). 2012. Retomada em 2015, a gaso-
O investidor privado quer condi- lina conta atualmente com R$ 0,10
lidar com as oscilações
ções para competir e isso requer pre- de Cide (que representa 2% do va-
ços livres. Por outro lado, a popula- lor na bomba) e o diesel com zero
ção precisa de preços que caibam no
bruscas e os aumentos de (R$ 0,05 vigente até 2018 quando
seu orçamento. O governo precisa foi zerado após a greve dos cami-
atender aos dois ao mesmo tempo.
preços dos combustíveis nhoneiros). O câmbio desvaloriza-
Há como reduzir o ruído existen- do e o petróleo acima dos US$ 50 o
te entre os agentes, preservando o
não são exclusividade dos barril dificultam o aumento da Cide
interesse de todos, por meio de um no curto e médio prazo para recom-
“colchão” de amortecimento, uma
brasileiros, elas ocorrem posição da reserva tributária. É ne-
reserva ou um mecanismo econômi- cessário aguardar uma nova “janela
co para isso.
no mundo inteiro de oportunidade” para tal.
Existem algumas alternativas
para se atenuar as oscilações das
cotações do petróleo e do câmbio 3. Óleo-lucro da União
sobre o preço dos combustíveis. To- estocagem de petróleo é próxima É previsto nos contratos de parti-
das exigem poupança. A seguir são dos 34 milhões de barris, o equi- lha de produção que a União fique
apresentadas e sucintamente discuti- valente a 15 dias de consumo. Na com algum percentual do petróleo
das algumas alternativas. realidade, o número é menor, pois produzido nas áreas do pré-sal que
não se mantêm os tanques cheios. estão sob esse regime, o chamado
Construir uma reserva estratégica óleo-lucro oferecido pelas empresas
1. Reservas estratégicas de petróleo é uma opção cara e que ou consórcios que venceram os lei-
de petróleo demanda tempo. Todavia, ainda se- lões. Esse petróleo é gerenciado pela
Nos Estados Unidos, por exemplo, ria uma opção. Petróleo Pré-Sal S.A. (PPSA), sendo
existem estoques de petróleo regu- vendido no mercado e os recursos
ladores, cuja capacidade se apro- encaminhados à União.
xima dos 730 milhões de barris, o 2. Reserva tributária (Cide) Dados da PPSA apontam receitas
maior do mundo em valor absolu- Outra alternativa, por exemplo, é crescentes da parcela de óleo e gás
to, suficiente para 35 dias de con- usar a Contribuição de Interven- da União, referente aos contratos
sumo norte-americano. A Alema- ção no Domínio Econômico (Cide), vigentes, cuja receita total projeta-
nha mantém estoques reguladores vigente desde o final de 2001 no da de 2020 a 2032 deve superar os
equivalentes a 90 dias de consumo, país, como amortecedor. Só que é R$ 420 bilhões. De forma resumida,
enquanto o Japão tem estoques que preciso primeiro fazer nova reserva. parte desse montante, poderia com-
superam os 100 dias. Manter essa Em 2002, a gasolina contava com por um “fundo de estabilização” dos
quantidade toda de petróleo em R$ 0,50 de Cide e o diesel com preços do petróleo ou dos derivados,
estoque custa muito caro (e envol- R$ 0,15 por litro. Na época, a ga- uma reserva em dólares para ser
ve severas questões de segurança), solina custava ao consumidor final consumida toda vez que o petróleo
porém serve de atenuante nos mo- R$ 1,70 e o diesel R$ 1,25 o litro, ou ultrapassasse determinado valor. Se
mentos de alta do óleo. seja, a Cide representava quase 30% os preços do petróleo caíssem abai-
No caso do Brasil, segundo da- do valor da gasolina e 12% do valor xo do valor estipulado, o refinador
dos da Agência Natural do Petró- pago no diesel na bomba. e o importador seriam taxados pro-
leo, Gás Natural e Biocombustíveis A escalada dos preços do petró- porcionalmente, de forma a recom-
(ANP), a capacidade nominal de leo a partir de 2003 forçou o go- por o fundo.

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Tal hipótese requer, obviamen- desconto artificial abaixo do preço


te, aprovação legislativa e carece de paridade internacional nos com-
Apesar dos combustíveis
de maior detalhamento técnico bustíveis, distorce-se por completo
para que possa ser utilizada. Dada o mercado. Refinadores privados,
apresentarem viés de alta, o
a dificuldade de implantação, pe- importadores, produtores de etanol
los trâmites legislativos morosos, o e a própria estatal experimentam
difícil consenso político e o déficit
que ocorre no diesel é o que prejuízos. Como efeito colateral
fiscal enfrentado pela União nos secundário, não ocorrem investi-
últimos anos, é difícil imaginar que
traz maior impacto, pois mentos na infraestrutura de refino,
a criação de qualquer fundo de es- logística de movimentação interna e
tabilização seja realizada no curto
nosso modal de transportes importação de derivados. A menta-
prazo. Apesar do uso do óleo-lucro lidade de uso da estatal ou de sub-
ser uma possibilidade, que encontra
é, majoritariamente, sídios aos combustíveis precisa ser
defensores, este não parece ser o superada com urgência.
melhor caminho.
o rodoviário Há como atenuar essa questão,
preservando o interesse de todos, por
meio de ferramentas econômicas de
4. Alíquota fixa ICMS amortecimento, como as apresenta-
A forma na qual o ICMS incide so- da Federação. Essa opção poderá ser das. Elas não são as únicas opções,
bre a gasolina e o diesel nos estados abordada em uma eventual reforma certamente existem outras. O governo
acaba por gerar um efeito amplifi- tributária, com efeitos positivos so- federal tem papel preponderante em
cador das oscilações do petróleo e bre a cadeia de combustíveis. relação ao planejamento dessas ações,
do câmbio sobre os derivados. Isso que atenuem os efeitos das oscilações
porque a alíquota de ICMS é um dos preços do petróleo sobre os com-
percentual que incide sobre o “Pre- Superando os dilemas bustíveis, assim como os estados pode-
ço Médio Ponderado ao Consumi- As dificuldades de se lidar com as riam reavaliar a forma como o ICMS
dor Final” (PMPF), diferente do PIS oscilações bruscas e os aumentos é aplicado sobre os combustíveis.
e Cofins, cujas alíquotas são fixas de preços dos combustíveis não são Os velhos dilemas precisam ficar
por litro de combustível. Dessa for- exclusividade dos brasileiros, elas para trás, o que requer muito tra-
ma, se a alíquota média for de 30%, ocorrem no mundo inteiro. Entre- balho, planejamento e, primordial-
um aumento de R$ 0,10 no litro da tanto, em uma nação bastante de- mente, que se imprima o senso de
gasolina, produzida internamente sigual do ponto de vista econômico, urgência que a matéria requer. Pre-
ou importada, gera R$ 0,13 de au- a convivência com aumentos repen- servar todos os agentes de mercado,
mento ao consumidor final. tinos de custos devido às oscilações mantendo os preços alinhados aos
O desejado, obviamente, é que de preços das commodities e do dó- do resto do mundo e corrigindo dis-
haja uma redução das alíquotas, algo lar, quando os salários são fixados torções tributárias, parece ser a op-
improvável porque a maioria dos es- em reais, fere especialmente os mais ção mais adequada para a sociedade.
tados, assim como a União, apresen- pobres. Ademais, a assimetria na Que se siga neste caminho. 
ta elevado déficit fiscal, não tendo transferência dos reajustes torna o
espaço para redução de receitas. Por problema maior.
outro lado, a utilização de um ICMS Por outro lado, intervir em um
com alíquota fixa, todavia, não im- mercado aberto tem também seus 1
Esse efeito foi estudado pelo pesquisador da
FGV e professor da Uerj, Mauricio Pinheiro Ca-
plicaria renúncia arrecadatória, re- efeitos colaterais. No caso dos nedo, no artigo publicado pela Revista Brasileira
duziria a volatilidade dos preços, combustíveis, vivenciou-se ao lon- de Economia (RBE). CANEDO, M. P. Assimetrias na
ransmissão dos preços dos combustíveis: o caso
além de trazer previsibilidade na ar- go dos últimos 20 anos que, ao se do óleo diesel no Brasil. RBE, Rio de Janeiro, v. 66,
recadação desse imposto aos estados tentar conceder, via Petrobras, um n. 4, p. 557-578, out-dez 2012.

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