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ENERGIA

Composição dos preços de paridade


dos combustíveis no Brasil
Fernanda Delgado Marcelo Gauto
Professora de Geopolítica da Energia e Doutorando de Bioenergia da Unicamp,
coordenadora de pesquisa da FGV Energia especialista em Petróleo, Gás e Energia

A precificação de combustíveis é veis e porque ela é importante para dio de um navio até um porto, onde
tema recorrentemente discutido no o processo de abertura de mercado ocorrerá a descarga e internalização
Brasil nos últimos anos. Havendo que o país está fazendo. do insumo.
uma única empresa produtora de Depois de processados esses óleos
quase toda a gasolina, diesel e de- nas refinarias, as distribuidoras rece-
mais derivados de petróleo produzi- Os elos que compõem o bem os derivados e dão capilaridade
dos no país, é relativamente normal preço final ao consumidor e eles, entregando os produtos nos
que as alterações dos preços estejam Tratando de forma didática, do poço milhares de pontos de revenda espa-
nas primeiras páginas dos jornais to- ao posto, a produção de combustíveis lhados pelo país. A flutuação de pre-
dos os dias. O que não acontece em conta com os seguintes elos: o produ- ços de todos os elos reflete, de modo
economias com mercados abertos. tor de petróleo e gás, o refinador, o geral, as cotações do petróleo.
Agruras do monopólio. distribuidor e o revendedor dos deri- O petróleo é uma commodity cuja
O tema ganhou mais destaque vados. Em um mercado aberto, com cotação internacional é referenciada
ainda a partir do final de 2016, de- preços concorrenciais (produto interno ao petróleo Brent negociado na Bol-
pois que a Petrobras passou a adotar concorrendo com o produto importa- sa de Londres, cotado em dólares por
um alinhamento com o mercado in- do), e quando a produção interna de barril. Os petróleos brasileiros são re-
ternacional de petróleo para os pre- petróleo, gás ou derivados é inferior à ferenciados no Brent, com valores le-
ços da gasolina, diesel e GLP. Adicio- demanda, tem-se um elo adicional, o vemente acima ou abaixo dele, depen-
nado à crescente desvalorização da do importador (figura 1). dendo da qualidade do óleo produzido
moeda brasileira frente ao dólar, o O óleo cru nacional ou importado em questão (vide Petróleo: qualidades
assunto ganha cada dia mais evidên- precisa chegar até uma refinaria em físico-químicas, preços e mercados: o
cia e discussões acaloradas. Neste território nacional. No Brasil, 95% caso das correntes nacionais).1
artigo, tratar-se-á de explicitar qual dessa produção é offshore, então, o Aqui entra a primeira questão
a dinâmica deste mercado e quais petróleo costuma ser transportado importante sobre o funcionamento
são os componentes da paridade de em navios do ponto de produção até da precificação desse mercado: diz
preços de importação que organizam um terminal de armazenamento, an- respeito à variação dos preços dos
o setor hoje no Brasil, destacando a tes de chegar a uma refinaria. A fra- combustíveis locais que dependem
importância de sua manutenção. ção de petróleo ou derivado impor- da cotação do petróleo e da taxa
Em outras palavras: como funciona tada faz caminho semelhante, sendo de câmbio, do valor da moeda local
a paridade de preços dos combustí- trazida de outros países por intermé- frente ao dólar. Quando há aumento

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do barril de petróleo ou aumento da apresentava suas planilhas de custos precificação dos combustíveis. A le-
taxa de câmbio (desvalorização da aos técnicos do governo, que a partir gislação brasileira avançou no senti-
moeda), os preços dos combustíveis delas definia o preço ao consumidor. do de que o mercado seria livre, ga-
sobem, assim como eles caem quan- O preço final era basicamente com- rantindo um período de transição de
do essas duas variáveis flutuam no posto pelos custos informados mais 5 anos, para que os agentes pudes-
sentido oposto. uma margem de lucro definida pelo sem se preparar para a concorrência.
regulador e assim ele era pratica- Assim, de fato, os agentes deste mer-
mente “tabelado” por algum tempo. cado passaram a ter liberdade para
As políticas de preços Para mitigar os riscos de prejuízo, precificar os derivados a partir de
Durante o monopólio legal das ati- os custos fatalmente eram majora- 2002. Cada qual teria que, a partir
vidades de produção e refino de pe- dos pelos agentes, que mantinham daquele ano, lidar com seus custos
tróleo no Brasil (de 1953 a 1997), os certa “gordura” nas suas planilhas. e margens, buscar maior eficiência
preços de saída de cada um dos elos Por conta disso, esse modelo induz a para competir e sobreviver em um
da cadeia dos combustíveis eram de- uma ineficiência em todos os elos. ambiente concorrencial.
finidos pelo governo federal. Assim, A quebra do monopólio em 1997, Entretanto, a herança estrutural
de modo simplificado, cada agente contudo, mudou a lógica interna de do monopólio no refino, mostrou que

Figura 1 Esquema de produção da gasolina comum do poço ao posto

GASOLINA – DO POÇO AO POSTO


Os maiores navios-petroleiros são 1. PRODUÇÃO: o petróleo nacional é produzido majoritariamente na costa
capazes de armazenar 2 milhões de do RJ e SP, nas plataformas marítimas, na chamada produção offshore
2
1 barris de petróleo em carga máxima
Óleo cru 2. TRANSPORTE: os navios-petroleiros atravessam centenas ou milhares
de quilômetros de mar até chegarem a um terminal para descarregamento
3. ARMAZENAMENTO: o petróleo fica armazenado nos tanques dos terminais,
Produção de petróleo sendo normalmente enviado por oleodutos até uma refinaria
Navio-petroleiro
4. REFINO: na refinaria, o petróleo será convertido em combustíveis,
95% do petróleo brasileiro é
solventes, asfalto etc. Nesta etapa é obtida a chamada gasolina A
produzido em plataformas marítimas 3
5. IMPORTAÇÃO: parte da gasolina A consumida no país
Gasolina A importada é importada de diversos locais do mundo
6.DISTRIBUIÇÃO: a distribuidora recebe a gasolina A da refinaria, mistura
Terminal de armazenamento com 27% de etanol anidro, compondo a a gasolina comum ou gasolina C

4 7. REVENDA: a gasolina C é transportada para os postos de combustível,


onde o consumidor final abastece o seu veículo
5
Governo estadual
Gasolina A importada

União
Refinaria
Petroquímicas Gasolina A Consumidor
CIDE, PIS/PASEP e Cofins
Formuladores ICMS
6 ICMS varia de 25 a 34% do preço de pauta, dependendo do estado

Gasolina C
7
Distribuidora
Etanol anidro
Posto de combustível

Fonte: Elaboração própria.

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esse elo ainda era bastante suscetível à de no mercado. Ou seja, esses preços refino, em infraestrutura de impor-
interferência do governo, expondo-o a não acompanharam as conse­quências tação e exportação de derivados,
um viés de “controle de preços”, uma da queda das torres gêmeas e a inva- além de reflexos negativos para o se-
vez que esses preços de combustíveis são do Iraque pelos Estados Unidos, tor sucroalcooleiro de 2011 a 2014
são basilares em qualquer economia, o abrupto aumento de demanda da em especial. Preços controlados pelo
ainda mais em uma fortemente depen- Ásia, o início da guerra civil na Sí- Estado não são atraentes para a ini-
dente de transporte rodoviário. ria, a queda da capacidade ociosa da ciativa privada em nenhum setor.
É relevante destacar que o mercado Arábia Saudita, a crise financeira de Ciente dessa questão, orientada
de commodities é marcado por osci- 2008, a Primavera Árabe, a revolução pelo acionista-controlador, e já miran-
lações diárias de preços, que respon- do shale gas em 2014 e a consequente do a abertura do mercado refinador, a
dem às variações de oferta, demanda, crise de 2015, entre tantos outros fa- Petrobras tem adotado desde o início
estoques e perspectivas por parte dos tores oscilantes dos preços no merca- de 2017 uma política de preços que
analistas globais que podem, por ve- do internacional. Esse represamento tenta acompanhar a cotação do pro-
zes, reagir a notícias e eventos de for- dos preços no mercado nacional fez duto importado, sinalizando que a
ma exagerada, impondo certo grau com que estes ora estivessem acima referência para a produção nacional,
especulativo ao valor da commodity. dos praticados no mercado interna- onde ainda não há um mercado con-
Entendendo esse pressuposto, no cional, ora abaixo, o que pode ser correncial estabelecido, é um marcador
Brasil, essas flutuações de preços do observado mais visivelmente a partir externo independente, e não o gover-
petróleo e derivados foram atenuadas de 2008 (figura 2). no. Desde a metade daquele ano, pas-
pela Petrobras de 2002 a 2016 para Esse descolamento de preços en- sou-se a conviver com oscilações mais
GLP, gasolina e diesel, de forma ar- tre a realidade mundial e o merca- frequentes nos preços na saída das
tificial. A estatal mantinha o preço do interno, por interferência estatal, refinarias. Essa foi, no entendimento
desses derivados constante por lon- trouxe como consequências negati- das recentes gestões da empresa, uma
gos períodos na saída das refinarias, vas redução do caixa da Petrobras, forma de ser transparente em relação
criando a falsa sensação de estabilida- baixos investimentos privados em aos preços praticados pela compa-

Figura 2 Evolução do preço do diesel de 2002 a 2009 no Brasil


Patamares de
Preços abaixo dos Preços acima dos preços alinhados
Patamares de preços
3,000 praticados no mercado praticados no mercado ao mercado 20%
basicamente Preços acima dos internacional
internacional internacional
2,500 alinhados ao mercado praticados no mercado
internacional internacional 15%
2,000
1,500 10%
1,000
0,500 5%

0%

-5%
Fev/02
Jul/02
dez/02
Mai/03
Out/03
Mar/04
Ago/04
Jan/05
Jun/05
Nov/05
Abr/06
Set/06

Jun/10
Nov/10
Abr/11
Set/11

Ago/14
Fev/07
Jul/07
Dez/07
Mai/08
Out/08
Mar/09
Ago/09
Jan/10

Fev/12
Jul/12
Dez/12
Mai/13
Out/13
Mar/14

Jan/15
Jun/15
Nov/15
Abr/16
Set/16
Fev/17
Jul/17
Dez/17
Mai/18
Out/18
Mar/19

Variação trimestral PIB (taxa acumulada 4 meses – eixo dir.) Brasil (sem impostos) Estados Unidos (USGC) Europa (NWE)
Fonte: ANP.

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nhia, bem como para evitar prejuízos ção do petróleo, pois é o insumo que nos unânime, cada agente de merca-
ou lucros artificiais como os ocorridos compõe a maior parcela do custo de do tem suas estimativas. Esses custos
nos períodos de 2011 a 2014 e 2015 a produção. No caso da produção do- embutiram em abril de 2021 uma
2017, respectivamente. méstica, agregam-se ainda os custos diferença estimada em relação ao
Contudo, acostumados a longos de transporte, processamento e mar- produto produzido em solo nacional
períodos sem reajustes, o mercado e gem de refino para se chegar no preço de R$ 0,20 a R$ 0,25 por litro de
os consumidores de combustíveis não final da cesta de derivados. combustível, a depender do ponto de
reagiram bem à nova sistemática de Como o Brasil tem déficit na pro- partida e chegada considerados.
preços quando estes passaram a subir dução de combustíveis, em especial Há que se considerar ainda que
com maior frequência (influência do GLP e diesel, o balizador de preços nem todo combustível produzido no
aumento do petróleo e da desvalori- é o produto importado que chega Brasil tem condições de ser “expor-
zação do real frente ao dólar), fato ao consumidor, isto é, à realidade de tado” para outras regiões do país de
que culminou com a greve dos cami- mercado, o combustível produzido in- forma econômica. Mais da metade
nhoneiros em maio de 2018 e uma ternamente será valorado a preço de da capacidade de refino do país está
ampla discussão a respeito do assun- importado. A bem da verdade, atual- nas regiões Sul e Sudeste e o custo de
to. Interessante notar que quando a mente, o produto importado é o úni- se levar este combustível para as regi-
estatal praticou preços mais altos do co concorrente ao produto Petrobras, ões Norte e Nordeste, por exemplo,
que o produto importado entre 2015 e é a ele que o mercado se referencia. pode ser maior do que trazê-lo de
e 2016, mas manteve eles estáveis por No entanto, existem muitas críticas outro país. A infraestrutura de abas-
longos períodos, não houve maior em relação a essa questão, uma vez tecimento existente no Brasil tem
desconforto a esse respeito. A ques- que fração relevante dos combustí- muito mais um perfil importador do
tão, óbvio, parece ser a frequência veis é produzida internamente e não que exportador, especialmente nas
dos reajustes em si, e não exatamente precisaria ter em seu preço as parce- regiões que estão mais afastadas das
a volatilidade dos preços o que in- las relativas aos custos de importação zonas de abrangência das refinarias.
comoda os agentes do mercado e a que são embutidos no preço de pari- Em última análise, em algumas loca-
população. Há ainda um outro viés dade de importação (PPI). Mas se o lidades é efetivamente mais barato
dessa discussão que nunca é trazido produtor interno precificar abaixo do importar de outro país do que de
à tona: será o problema real a fre- preço do importado, e como não há outro estado da Federação.
quência com que o preço (confundi- condição de suprir 100% da deman-
da muitas vezes com a volatilidade) da, pela lógica da lei da oferta e da
oscila ou o nível do preço perante o demanda, faltará produto. Considerações finais
poder aquisitivo da sociedade? O produto importado é mais caro Como pode-se observar ao longo des-
por conta dos custos logísticos en- te artigo, são vários os elos que cons-
volvidos para trazê-lo de fora e in- tituem o mercado de combustíveis. O
Os preços de paridade ternalizá-lo. Assim, são incluídos no Brasil experimentou durante décadas
de importação preço interno estimativas dos custos preços controlados pelo governo, que
A precificação de produtos em merca- de retirada do produto no porto de impunha arbitrariedade e ineficiência
do livre é particular de cada empresa, origem, do valor do frete, do seguro aos agentes participantes. Legalmen-
dependendo da sua estrutura de cus- da carga, dos custos do porto de che- te, desde 2002 fora conquistada a
tos, definição de margens e estratégias gada, entre outros que compõem os liberdade para precificação dos com-
adotadas para concorrer no mercado. custos de importação (figura 3). bustíveis, mas essa liberdade de fato
No caso dos combustíveis, a princi- A percepção dos custos de impor- só vem ocorrendo desde 2017, sob
pal referência para os preços é a cota- tação não é homogênea, muito me- intenso debate.

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Figura 3 Esquema de precificação dos combustíveis

R$ Câmbio (R$/US$) US$ Importador PREÇOS DE PARIDADE DOS


Preço de paridade de exportação (PPE) internacional DERIVADOS DE PETRÓLEO

Consumidor Derivado no
Derivado no (PPE) refinador
refinador
nacional
Se houver excedente de mercado $ internacional
R$+ Ci+ $+ $

Preço de paridade de importação (PPI) Distribuidor R$+ Ci+ $


Revendedor
R$+ Ci nacional
R$
Estimativa

R$+ Ci

Importador Câmbio (R$/US$) US$


Custos de importação (Ci) nacional
- Despachante
- Taxas portuárias
Câmbio (R$/US$) Ci
- Frete
- Seguro da carga
- Custos financeiros Ci = R$ 0,20 a R$ 0,25/litro
- Demurrage (abril de 2021)
- Quebras/perdas
- Armazenamento no porto
- Transferência até a distribuidora
Fonte: Elaboração própria.

A interferência estatal no elo de custos logísticos embutidos no PPI Preço de paridade, seja ele qual for,
refino impôs ao Brasil um atraso (R$ 0,20 a R$ 0,25/litro de gasolina é essencial na construção de um real
em termos de crescimento da in- e diesel), pois, no limite hipotético, mercado competitivo. A própria al-
fraestrutura de abastecimento na seriam adotados preços de paridade mejada transição energética depende
última década, especialmente por de exportação, sem os custos logís- disso, de condições de mercado que
afugentar o investimento privado. ticos de importação compondo o fomentem a livre concorrência, o au-
Mesmo com os esforços da Petro- preço de saída do refinador. Por isso mento da eficiência e a busca por no-
bras em ampliar a capacidade de que é de suma importância não só vas alternativas energéticas. Qualquer
refino e rotas de escoamento dos que a oferta de derivados cresça in- tentativa de interferência que não pre-
derivados, temos ainda deficiên- ternamente, forçando a uma queda serve a liberdade de preços em todos
cia logística e déficit de derivados de preços à paridade de exportação, os elos da cadeia tem efeitos negativos
estruturais. Os preços de paridade como aumente o número de agentes conhecidos, coloca o país no atraso
de importação são elemento-chave refinadores, de oferta de combustí- e não dialoga com os desafios que se
para que, em mercado aberto, se veis alternativos (biocombustíveis, tem pela frente. Vamos adiante. 
consiga com múltiplos agentes am- GNV, eletricidade – para carros elé-
pliar a estrutura existente. tricos e híbridos), para que haja de
Se o Brasil fosse exportador lí- fato uma concorrência entre esses 1
Disponível em:
quido de derivados, ter-se-ia hoje agentes e a precificação se dê, final- <https://fgvenergia.fgv.br/publicac ao/
petroleo-qualidade-fisico-quimicas-precos-e-
decréscimo de preço equivalente aos mente, pelo equilíbrio de mercado. mercados-o-caso-das-correntes-nacionais>.

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