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Política Energética

Do Proálcool ao flex fuel, etanol


migrou do Estado para o mercado
André Ricardo Alcarde*

acervo unica

Unidade de armazenamento de etanol

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A possibilidade de usar o etanol como nos trabalhos desenvolvidos pelo pro- decorrência do segundo choque do pe-
combustível automotivo é conhecida fessor Urbano Ernesto Stumpf sobre tróleo (1979-1980), que triplicou o preço
há mais de um século, mas, até os anos a adaptação dos motores para uso da do barril. As compras desse produto
70, a disponibilidade e o baixo custo dos mistura gasolina-álcool e da conversão passaram a representar 46% da pauta
derivados de petróleo inibiram o desen- desses motores para uso exclusivo do de importações brasileiras em 1980. O
volvimento do etanol carburante. Com o álcool. Segundo Stumpf, a impressão governo, então, resolveu adotar medidas
primeiro choque do petróleo, em outubro que o presidente teve sobre a viabilidade para plena implementação do Proálcool.
de 1973, o cenário mudou e o mundo se do uso do álcool como combustível foi A produção alcooleira atingiu 12,3 bilhões
viu ante o risco de desabastecimento decisiva para que o governo federal se de litros em 1986-1987, superando em
energético, reacendendo assim o inte- posicionasse definitivamente a favor do 15% a meta inicial do governo, que era de
resse mundial por fontes alternativas de Proálcool. 10,7 bilhões de litros/ano para o final do
energia. A crise internacional elevou as Finalmente, em 14 de novembro de período. A proporção de carros movidos
despesas do Brasil com importação de 1975, pelo Decreto n. 76.593, foi criado o a álcool no total de automóveis leves
petróleo de US$ 600 milhões em 1973 para Programa Nacional do Álcool (Proálcool), produzidos no país aumentou de 0,46%
US$ 2,5 bilhões em 1974. O impacto pro- com o objetivo de estimular a produção em 1979 para 26,8% em 1980, atingindo
vocou um déficit na balança comercial nacional do etanol carburante. De acor- 76,1% em 1986.
de US$ 4,7 bilhões, resultado que influiu do com o decreto, a produção do álcool De 1986 a 1995, o programa entrou
fortemente na dívida externa brasileira deveria ser incentivada por meio da numa fase de estagnação. A partir de
e na escalada da inflação, que saltou de expansão da oferta de matérias-primas, 1986, o cenário internacional do merca-
15,5% em 1973 para 34,5% em 1974. do aumento da produção agrícola, da do petrolífero foi alterado. Os preços do
Preocupado em preservar as principais modernização e ampliação das destila- barril de óleo bruto diminuíram grada-
metas do 2º Plano Nacional de Desen- rias existentes, da instalação de novas tivamente de US$ 40 para US$ 12 nesse
volvimento – conter a inflação, manter unidades produtoras, anexas a usinas ou período, denominado de “contra-choque
o crescimento acelerado e conservar o autônomas, e da instalação de unidades do petróleo”, o que dificultou o desenvol-
equilíbrio do balanço de pagamentos – o armazenadoras. vimento dos programas de substituição
general Ernesto Geisel, ainda na condi- O governo federal decidiu encorajar de hidrocarbonetos fósseis por combus-
ção de futuro presidente da República, a produção do álcool em substituição à tíveis renováveis e de uso eficiente da
solicitou ao então diretor comercial da gasolina pura, com o objetivo de reduzir as energia em todo o mundo. Na política
Petrobrás e futuro ministro das Minas importações de petróleo, então com gran- energética brasileira, seus efeitos foram
e Energia Shigeaki Ueki que estudasse a de peso na balança comercial externa. sentidos a partir de 1988, coincidindo
utilização de fontes não convencionais Ainda nessa época, o preço do açúcar no com um período de escassez de recursos
de energia para fornecer subsídios ao mercado internacional vinha diminuindo públicos para subsidiar os programas de
novo governo. rapidamente, o que tornou conveniente estímulo aos combustíveis alternativos,
Fóruns de debate sobre a crise do a produção de álcool em detrimento à resultando em sensível decréscimo do
petróleo resultaram no documento de açúcar. A substituição da gasolina volume de investimentos nos projetos
intitulado “Fotossíntese como fonte pelo álcool, no período de 1976 a 2006, de produção interna de energia. A oferta
de energia”, entregue ao Conselho Na- constituiu uma economia para o país de de álcool não pôde acompanhar o cres-
cional de Petróleo em março de 1974, e aproximadamente US$ 130 bilhões. cimento da demanda, decorrente das
que se tornaria a semente do Programa Na primeira fase do Proálcool, de 1975 vendas de carro a álcool em proporções
Nacional do Álcool (Proálcool). O estudo a 1979, o esforço foi dirigido principal- superiores a 95,8% das vendas totais de
combinava as preferências do Instituto mente para a produção de álcool anidro veículos leves para o mercado interno,
do Açúcar e do Álcool pela produção de para ser misturado à gasolina. Nessa fase, em 1985.
álcool direto em destilarias autônomas tal produção coube às destilarias anexas. Os baixos preços pagos aos produtores
e da Copersucar pelo aproveitamento da A produção alcooleira cresceu de 600 de álcool devido à diminuição dos preços
capacidade ociosa das destilarias anexas milhões de litros/ano (1975-1976) para internacionais do petróleo impediram a
às usinas açucareiras. 3,4 bilhões de litros/ano (1979-1980). Os elevação da produção interna do produ-
Durante visita ao Centro Tecnológico primeiros carros movidos exclusivamen- to. Por outro lado, a demanda pelo etanol
da Aeronáutica, em junho de 1975, em São te a álcool surgiram em 1978. Na segunda por parte dos consumidores continuou
José dos Campos, o então já presidente fase do Proálcool, de 1980 a 1986, o sendo estimulada por meio da manuten-
Geisel demonstrou especial interesse programa se firmou, principalmente em ção de preço relativamente atrativo ao

visão agrícola nº 8 jAN | JUN 2008 27


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da gasolina e da manutenção de menores – obrigou o país a realizar importações a indústria automobilística esperava.
impostos nos veículos movidos a álcool de etanol e metanol que superaram 1 bi- Atualmente, os veículos bicombustíveis
comparados, aos a gasolina. Essa com- lhão de litros no período entre 1989-1995, representam 83% do total de veículos
binação de desestímulo à produção de para garantir o abastecimento do mer- leves vendidos no país. Diante do atual
álcool e de estímulo à sua demanda pelos cado. De 1995 a 2000, o Proálcool entrou preço da gasolina, decorrente do nível
fatores de mercado gerou a crise de abas- na sua quarta fase, a de redefinição. Os elevado das cotações de petróleo no
tecimento da entressafra 1989-1990. mercados de álcool combustível, tanto mercado internacional, é mais vantajo-
Enquanto a frota nacional de veículos anidro quanto hidratado, encontravam- so economicamente para o consumidor
movidos a álcool aumentava no país, se liberados em todas as suas fases de abastecer seu automóvel bicombustível
a produção de álcool manteve-se em produção, distribuição e revenda, sendo com etanol. Estudos indicam que se o pre-
padrões praticamente inalterados, de 11 os seus preços determinados pelas con- ço do etanol hidratado cai abaixo de 70%
a 12 bilhões de litros por safra durante dições de oferta e demanda. De 1998 a do preço da gasolina, é mais vantajoso o
1985 e 1990. A crise de abastecimento de 2000, a produção de veículos a álcool abastecimento com álcool. Atualmente
álcool ao final da década de 80 afetou a manteve-se abaixo de 1% do total de veí- essa relação é de 60%.
credibilidade do Proálcool que, junta- culos novos produzidos.
* André Ricardo Alcarde é professor do
mente com a redução de estímulos ao seu Nesse novo século, o Proálcool vive
Departamento de Agroindústria, Alimentos
uso, provocou, nos anos seguintes, um uma fase de expansão dos canaviais com e Nutrição da USP ESALQ (aralcard@esalq.
significativo decréscimo da demanda e, o objetivo de oferecer, em grande escala, usp.br).
conseqüentemente, das vendas de auto- o combustível alternativo. Motivado
móveis movidos por esse combustível. pelo interesse externo por combustíveis
Devem-se acrescentar ainda outros renováveis, o plantio avança além das
motivos determinantes que, associados, áreas tradicionais, do interior paulista e
também contribuíram para a redução da do Nordeste, e espalha-se pelos cerrados
produção dos veículos a álcool. No final e áreas de pastagens degradadas. A nova
da década de 1980 e início da década de escalada não é um movimento coman-
1990, o cenário internacional do preço dado pelo governo, como a ocorrida no
do petróleo sofreu fortes alterações, final da década de 70, quando o Brasil
tendo o preço do barril diminuído sensi- encontrou no álcool a solução para en-
velmente. Tal realidade, que se manteve frentar o aumento acentuado dos preços
praticamente como a tônica dos dez anos do petróleo que importava. A corrida
seguintes, somou-se à tendência, cada para ampliar unidades e construir novas
vez mais forte, da indústria automobi- usinas é movida agora por decisões da
lística optar pela fabricação de modelos iniciativa privada, convicta de que o álco-
e motores padronizados mundialmente, ol terá, a partir de agora, um papel cada
na versão a gasolina. No início da dé- vez mais importante como combustível,
cada de 90 houve também a liberação no Brasil e no mundo.
no Brasil da importação de veículos A tecnologia dos motores flex fuel veio
automotivos produzidos, na sua origem, dar novo fôlego ao consumo interno de
exclusivamente na versão gasolina e álcool. O carro que pode ser movido a
diesel e, ainda, a introdução da política gasolina, álcool ou uma mistura dos dois
de incentivos para o “carro popular”, de combustíveis em quaisquer proporções,
até 1.000 cilindradas, desenvolvido para foi introduzido no país em março de 2003
ser movido a gasolina. e conquistou rapidamente o mercado.
A crise de abastecimento de álcool so- Hoje a opção já é oferecida para quase
mente foi superada com a introdução no todos os modelos das indústrias. A pro-
mercado do que se convencionou chamar dução de automóveis bicombustíveis
de “mistura MEG”, que substituía, com ultrapassou a de movidos a gasolina em
igual desempenho, o álcool hidratado. meados de 2005. A velocidade de acei-
Essa mistura – de 60% de etanol hidra- tação pelos consumidores dos carros
tado, 34% de metanol e 6% de gasolina flex fuel foi muito mais rápida do que

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