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Espiritismo e evolução do princípio inteligente - Três Reinos?

Article · July 2020

DOI: 10.22568/jee.v8.artn.010205

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Ricardo Andrade Terini

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JEE
Jornal de Estudos Espíritas 8, 010205 (2020) - (10 pgs.) Volume 8 – 2020

Espiritismo e evolução do princípio inteligente - Três Reinos?

Ricardo A. Terini
Centro Espírita Irmão Itajubá, São Paulo, SP, Brasil
e-mail: ricardoaterini@gmail.com
(Recebido em 10 de Junho de 2020 e publicado em 16 de Julho de 2020).

R ESUMO
Na formulação do Espiritismo como ciência de obser-
vação, Allan Kardec sempre se preocupou em apre-
sentar os conceitos doutrinários associados às idéias
científicas aceitas na sua época, visando integrá-lo à
cultura vigente. E buscava atualizar-se, consolidando
a doutrina de modo que a confiança nela pudesse “en-
frentar a razão face a face, em todas as épocas da hu-
manidade”. Em O Livro dos Espíritos, Kardec menci-
ona uma classificação dos seres da Natureza em três
reinos, incluindo os minerais, com base em divisão
científica aceita desde o século XVIII. O presente traba-
lho analisa a evolução dessa concepção biológica após
Kardec, quando ela passou a incluir apenas os seres
vivos, derivando para o evolucionismo das espécies e
do ser humano (darwinismo), aprofundado e consoli-
dado com o desenvolvimento, no século XX, da bio-
logia evolucionista e com o mapeamento do genoma
humano. Nesse livro, Kardec aborda com cuidado o
terreno da ciência biológica das espécies. Após a publicação de A Origem das Espécies por Charles Darwin em
1859, Kardec, em vários artigos na Revista Espírita, avançaria os conceitos da Doutrina em consonância com o
desenvolvimento da Ciência da evolução. Em A Gênese, em 1868, Kardec formularia a hipótese sobre a origem do
corpo humano em que nossa descendência biológica dos primatas apareceria como a conclusão mais provável. No
entanto, diferentemente da preocupação de Kardec, a evolução dessa concepção biológica não tem sido levada em
conta pela maioria dos divulgadores do Espiritismo, que continuam a ensinar os mesmos Três reinos ainda hoje,
comprometendo a própria credibilidade da Doutrina na sociedade. Por outro lado, O Livro dos Espíritos introduz a
ideia de que os Espíritos humanos se desenvolveram e individualizaram em várias existências nas espécies ditas in-
feriores da Natureza. Em A Gênese, a hipótese da evolução espiritual através das espécies vivas seria desenvolvida,
confirmando-se que “nesse primeiro período a alma se elabora e ensaia para a vida”. Ali, Kardec avançaria também
na compatibilização entre a evolução do princípio espiritual e a teoria da evolução das espécies vivas, analisando
que, na época do surgimento dos primeiros hominídeos na Terra, os corpos de macaco existentes teriam sido muito
adequados para a encarnação dos primeiros Espíritos humanos que vieram habitar a Terra. As conclusões atuais da
biologia evolucionária e da paleontologia têm sido bastante compatíveis com essas teses espíritas. A análise aqui
apresentada confirma que o Espiritismo e a Ciência se completam e se fortalecem um ao outro, e que a divulgação
adequada desses dados irá certamente contribuir para fortalecer e arejar nossa fé raciocinada.
Palavras-Chave: Evolução; princípio inteligente; reinos da natureza; evolucionismo; espiritismo; criacionismo.
DOI: 10.22568/jee.v8.artn.010205

I I NTRODUÇÃO de sua época, visando integrá-lo à cultura vigente. Fez

O Espiritismo, marchando com o progresso,
jamais será ultrapassado, porque se novas des-
cobertas demonstrassem estar em erro sobre
um certo ponto, ele se modificaria sobre esse
ponto; se uma nova verdade se revelar, ele a
aceitará. (KARDEC, 2010a, A Gênese, cap. I,
item 55).
Na formulação do Espiritismo como ciência de obser-
vação, Allan Kardec sempre se preocupou em apresentar
os conceitos doutrinários associados às ideias científicas
isso com referência aos campos da astronomia, da quí-
mica, da física, da geologia, da paleontologia, da biolo-
gia, não para congelar essas noções científicas no corpo
da Doutrina, mas para mostrar, ao contrário, que “fé ina-
balável é aquela que pode enfrentar a razão face a face,
em todas as épocas da humanidade” (KARDEC, 2010b).
Atualmente, muitas décadas depois desse início, os
estudiosos do Espiritismo nem sempre se dão conta dessa
relativização e, ao invés de aprender com a coragem de
Kardec em cotejar os conceitos espíritas com as ciên-
cias da época (no caso, a nossa), tratam os conceitos

Seção 02: Artigos Regulares 010205 – 1 ©Autor(es)

Espiritismo e evolução do princípio inteligente, . . .

científicos daquela época como se fossem os mesmos ainda
hoje. Resultado: contaminam os conceitos atualíssi-
mos da Doutrina Espírita com um dogmatismo científico
injustificável. Neste artigo, particularmente, nos propo-
mos a analisar sinteticamente a questão do caráter evolu-
cionista presente no Espiritismo, desde 1857 até o século
atual.
Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec analisa, já
na 1a parte, a visão espírita da Criação universal, abor-
dando Deus e os elementos gerais do Universo. No 4o
capítulo, ele se propõe a abordar os seres vivos, sua vari-
edade e a causa de sua vitalidade. Logo no início, Kardec
define:
Os seres orgânicos são os que trazem em si uma
fonte de atividade íntima que lhes dá a vida;
nascem, crescem, reproduzem-se e morrem; são provi-
dos de órgãos especiais para a realização dos diferen-
tes atos da vida e apropriados às necessidades de sua
conservação. Compreendem os homens, os ani-
mais e as plantas. Os seres inorgânicos são os
que não possuem vitalidade nem movimentos pró-
prios, sendo formados apenas pela agregação da ma-
téria: os minerais, a água, o ar, etc. (KARDEC,
2012, O Livro dos Espíritos, cap. IV, 1o parágrafo,
grifos nossos).
Após a pergunta 71, Kardec define melhor essa con-
ceituação:
Podemos fazer a seguinte distinção: 1o - os seres
inanimados, formados somente de matéria, sem vi-
talidade nem inteligência: são os corpos brutos; 2o
- os seres animados não pensantes, formados de
matéria e dotados de vitalidade, mas desprovidos de
inteligência; 3a - os seres animados pensantes,
formados de matéria, dotados de vitalidade e tendo
ainda um princípio inteligente que lhes dá a faculdade
de pensar. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos,
cap. IV, questão 71, grifos nossos).
Nessa definição mais precisa, seres inanimados se-
riam os seres inorgânicos, mencionados no início do
capítulo, enquanto os seres animados (pensantes e não-
pensantes) seriam os seres orgânicos citados antes.
Aqui, a preocupação foi apenas em separar os seres que
tem vida (seres vivos) daqueles que são inertes (hoje cita-
dos mais como objetos, componentes, etc., do que como
seres).
Note-se ainda que as qualificações orgânico e inor-
gânico, nesses textos, não se referem necessariamente às
definições atuais de compostos orgânicos e inorgânicos da
1 Possivelmente, a confusão que existe em relação às expressões orgânico e inorgânico (não somente no movimento espírita) deve-se,
Química, já que tanto os seres animados (vivos) quanto
os inanimados (inertes) podem ser compostos de substân-
cias orgânicas ou inorgânicas. Ex.: Nossas células contêm
compostos inorgânicos (sais minerais, água) e orgânicos
(proteínas, vitaminas, lipídeos); por outro lado, uma taça
de vinho contém álcool, uma substância orgânica1 .
Mais tarde, no capítulo XI da 2a parte de O Livro
dos Espíritos, Kardec ensaiaria uma classificação dos
seres da Natureza, que analisamos a seguir neste texto.
II R EINOS E D OMÍNIOS
585. Que pensais da divisão da Natureza em três rei-
nos, ou melhor, em duas classes: a dos seres orgânicos
e a dos inorgânicos? Segundo alguns, a espécie hu-
mana forma uma quarta classe. Qual destas divisões
é preferível?
- Todas são boas, conforme o ponto de vista. Do
ponto de vista material, apenas há seres orgânicos e
inorgânicos. Do ponto de vista moral, há evidente-
mente quatro graus.
Esses quatro graus apresentam, com efeito, caracte-
res determinados, muito embora pareçam se confun-
dir nos seus limites extremos. A matéria inerte, que
constitui o reino mineral, só tem em si uma força me-
cânica. As plantas, ainda que compostas de matéria
inerte, são dotadas de vitalidade. Os animais, tam-
bém compostos de matéria inerte e igualmente do-
tados de vitalidade, possuem, além disso, uma espé-
cie de inteligência instintiva, limitada, e a consciência
de sua existência e de suas individualidades. O ho-
mem, tendo tudo o que há nas plantas e nos animais,
domina todas as outras classes por uma inteligência
especial, indefinida, que lhe dá a consciência do seu
futuro, a percepção das coisas extra-materiais e o co-
nhecimento de Deus. (KARDEC, 2012, O Livro dos
Espíritos, 2a parte, cap. IX).
A divisão da Natureza mencionada por Kardec seria,
então:
A. Sob o ponto de vista material: - seres orgânicos e
seres inorgânicos
B. Sob o ponto de vista moral: - reinos mineral, ve-
getal, animal e (?) hominal.
Mas essa é a divisão da Natureza proposta em 1735
pelo botânico, zoólogo e médico sueco Carl von Linné
(1707-1778) (Fig. 1), na sua obra de vários volumes Sys-
tema naturae, e que era ainda aceita e ensinada no século

pelo menos em parte, ao desconhecimento da evolução histórica da terminologia química. Em 1777, o químico sueco Torbern O. Bergman
(1735-1784) definiu química orgânica como aquela que estuda os compostos extraídos dos organismos vivos, enquanto a química inorgânica
trataria dos compostos existentes no então chamado “reino mineral”. No entanto, em 1828, o químico alemão Friedrich Wöhler (1800-1882)
demonstrou ser possível a síntese em laboratório de um composto orgânico, a ureia, a partir de um composto inorgânico. Em 1866, Marcelin
P. E. Berthelot (1827-1907) fez o mesmo ao sintetizar o benzeno, derrubando definitivamente a definição de Bergman. Então, o químico
alemão Friedrich A. Kekulé (1829-1896), em 1858, reformulou o conceito de química orgânica como sendo apenas “a química dos compostos
de carbono” (cf. aceito atualmente). No final do século XIX, seria, então, criado o termo Bioquímica, para denominar “a química dos seres
vivos”, que teve um grande avanço a partir de 1920. Atualmente, reconhece-se a existência de compostos orgânicos, inorgânicos e biomo-
léculas. As biomoléculas podem ser orgânicas (sintetizadas pelos seres vivos), inorgânicas (presentes em seres vivos e elementos inertes)
e organometálicas (espécie de composto intermediário, caracterizado pela ligação metal-carbono) (WIKIPEDIA: QUÍMICA ORGÂNICA,
2020; WIKIPEDIA: BIOQUÍMICA, 2020).

J. Est. Esp. 8, 010205 (2020). 010205 – 2 JEE

 Terini, R. A.

XIX. Linné (ou Carolus Linnaeus, como foi latinizado,
ou simplesmente Lineu), em sua classificação, baseou-se
nas diferenças morfológicas externas das várias espécies
conhecidas dos seres da Criação. Orgulhoso do seu tra-
balho, afirmava, em latim, que “Deus criou, Lineu orga-
nizou”.
1969, Robert Whittaker (1920-1980) (Fig. 2) incluiu os
fungos numa nova classificação dos organismos em cinco
reinos, classificação ainda adotada e ensinada em várias
escolas brasileiras. Esses reinos, que se diferenciam pelo
tipo de nutrição do ser vivo e pela organização de suas
células, são: (unicelulares) Monera e Protista, e (multi-
celulares) Fungi, Plantae e Animalia.

Figura 1: Carl von Linné. Fonte: https://pt.

wikipedia.org/wiki/Lineu#/media/Ficheiro:
Carl_von_Linné.jpg.
Kardec era um pesquisador e professor do século XIX,
atualizado com as ciências naturais de sua época. E não
podia ser diferente. Isso quer dizer que ele esteja ultra-
passado? Não, porque ele estava em dia com as desco-
bertas e já não admitia o que a Ciência havia desmentido
(ex.: que a Terra era o Centro do universo; a Criação em
seis dias etc.). O fato é que a divisão de Lineu, do ponto
de vista da natureza material, era a noção aceita. Os
Espíritos que assessoraram Kardec na elaboração do Es-
piritismo, cientes disso, afirmaram que “Todas são boas,
conforme o ponto de vista”, referindo-se às classificações
da natureza indagadas por Kardec.
Mas, ele mesmo, mais tarde, afirmaria que:
O Espiritismo caminha de acordo com a ciência no
terreno da matéria: admite todas as verdades que
ela constata; mas onde se detêm as investigações
desta, prossegue as suas no terreno da espirituali-
dade. (KARDEC, 1998, Obras Póstumas, Curta res-
posta aos detratores do Espiritismo).
Já em 1866, o biólogo e naturalista alemão E. Haec-
kel (1834-1919) propunha os reinos Protista (bactérias,
algas, fungos e protozoários), Plantae e Animalia como
componentes da Natureza, descartando a matéria bruta
(minerais). No meio do século XX, H. Copeland (1902-
1966) introduziria um quarto reino para as bactérias, que
têm uma organização celular procariótica (sem núcleo),
enquanto os outros três reinos são formados por organis-
mos eucarióticos (com núcleo). Este quarto reino acabou
denominado como Monera (≡ formas primitivas). Em
2 A universalidade do código genético é considerada pela generalidade dos biólogos como uma evidência a favor da teoria da origem
Figura 2: Robert Whittaker. Fonte: https:
//hi-static.z-dn.net/files/dc3/
a72cdb5e1575835cd0197b1031c41169.jpg.
Quando se consolidou a aceitação da unicidade evolu-
tiva da vida na Terra2 , surgiu a necessidade de agrupar os
reinos até então reconhecidos num patamar mais abran-
gente: o domínio. Em 1990, Carl Woese (1928-2012)
propôs o agrupamento dos diferentes reinos da taxonomia
tradicional em três grandes domínios: Bacteria, Archaea
e Eukarya (WOESE, KANDLER & WHEELIS, 1990, ver
Fig. 3).
Figura 3: Carl Woese e seu sistema de 3 Domínios / 6 Rei-
nos (1990). Adaptado de https://planetabiologia.com/
dominios-dos-seres-vivos-reinos-da-biologia/.
A estrutura adaptada reflete a aceitação das diferen-
ças fundamentais contidas no genoma dos seres vivos de-
vidas a relações evolutivas entre eles. Mais recentemente,
mas com grande aceitação, está o sistema dos dois do-
mínios e seis reinos proposto por T. Cavalier-Smith
(1942 – ): Protista, Archaebacteria, Eubacteria, Fungi,
Plantae, Animalia (CAVALIER-SMITH, 2004) (Fig. 4).

comum universal para bactérias, archaea e eucariotas. Em 2010, Douglas L. THEOBALD (2010) publicou um estudo na revista Nature
avaliando a probabilidade de que toda a vida descendia ou de vários organismos ou de um único. Os seus resultados indicam que a
probabilidade de uma origem comum universal é 102860 maior do que a hipótese de haver mais do que um ancestral comum. Atualmente,
acredita-se que o mais recente ancestral comum universal (denominado LUCA – do inglês last universal common ancestor) de todos os
organismos vivos modernos tenha surgido há cerca de 4 bilhões de anos, um organismo de uma única célula, que não precisava de oxigênio,
alimentando-se de nitrogênio (WIKIPEDIA: ORIGEM COMUM, 2020).

JEE 010205 – 3 J. Est. Esp. 8, 010205 (2020).

Espiritismo e evolução do princípio inteligente, . . .
A Fig. 5 esquematiza didaticamente a sequência cro-
nológica dos sistemas de classificação dos seres vivos pro-
postos após a de Linné, ressaltando os mais recentes, que
incluem os domínios acima dos reinos. Essa evolução re-
força a confirmação da Ciência à visão evolucionista da
Doutrina Espírita.
Relembrando, com Kardec: “O Espiritismo marcha
sobre o mesmo terreno que a Ciência, até os limites da
matéria tangível” (KARDEC, 1868c, Revista Espírita,
março de 1868). É importante que os espíritas tenham
consciência, o mais possível, da evolução dos conceitos
científicos e que não repitam apenas, em cursos e pales-
tras, os textos doutrinários sem análise crítica e razoável
atualização científica, sob pena de comprometer a credi-
bilidade pública da Doutrina na própria sociedade.
Figura 5: Esquema didático da sequência cronológica dos sistemas de classificação dos seres vivos propostos desde
Carl Linné. Adaptado de WIKIPEDIA: REINO EM BIOLOGIA (2020).
III C RIACIONISMO VS . E VOLUCIONISMO
NOS SÉCULOS XIX E XX
Desde o século XVIII, a partir das descobertas da
Paleontologia e das hipóteses evolucionistas do natura-
lista Georges L. L. Buffon (1707-1788), do filósofo Ja-
mes Burnett (1714-1799) e outros, diferentes pontos de
vista foram formulados com o objetivo de conciliar a ci-
ência da evolução com a narrativa de criação do Gênesis,
da Bíblia. Nessa época, aqueles que acreditavam que as
espécies tinham sido criadas separadamente eram geral-
mente chamados de “defensores da criação”, ou ocasio-
nalmente “criacionistas”. Nos séculos seguintes, surgiram
várias correntes, religiosas ou não, de criacionistas. O
termo “criacionismo” é mais comumente usado para se
referir à rejeição, por motivação religiosa, de certos pro-
cessos biológicos, particularmente a evolução (WIKIPE-
DIA: CRIACIONISMO, 2020; WIKIPEDIA: HISTÓRIA
DO PENSAMENTO EVOLUTIVO, 2020).
Kardec foi contemporâneo do naturalista, geólogo e
biólogo britânico Charles R. Darwin (1809-1882), céle-
bre por lançar as bases do evolucionismo das espécies
nas ciências biológicas. Juntamente com Alfred R. Wal-
J. Est. Esp. 8, 010205 (2020). 010205 – 4
Figura 4: Thomas Cavalier-Smith. Fonte:
https://www.timetoast.com/timelines/
los-5-reinos-de-los-seres-vivos.
lace (1823-1913), Darwin estabeleceu a ideia que todos
os seres vivos descendem de um ancestral em comum -
argumento agora amplamente aceito e considerado um
conceito fundamental no meio científico - e propôs a te-
oria de que os ramos evolutivos são resultados de seleção
natural e sexual. (WIKIPEDIA: CHARLES DARWIN,
2020) (Fig. 6).
O Livro dos Espíritos foi publicado por Kardec na
França em 1857 e, em sua 2a edição, em 1860. A Origem
das Espécies e a Seleção Natural, de Darwin, foi publi-
cada em 1859, tendo muita repercussão e alimentando
uma “efervescência cientificista” na Europa. As idéias
da obra dividiram os expoentes da Igreja católica e cau-
saram espanto na sociedade e na comunidade científica
da época, mas conseguiram grande aceitação nas déca-
das seguintes, superando a rejeição dos próprios cientis-
tas. “No início da década de 1870 a evolução se tor-
nou a principal explicação para a origem das espécies em
países de língua inglesa. (...) No entanto, a aceitação
da evolução entre cientistas de países não anglo-saxões,
como França, países do sul da Europa e América Latina
foi mais lenta.” (WIKIPEDIA: HISTÓRIA DO PENSA-
MENTO EVOLUTIVO, 2020).
JEE

Figura 6: Charles Darwin e suas principais obras, A Origem das Espécies (1859) e A Origem do Homem (1871), em
tradução para o português. Adaptado de WIKIPEDIA: CHARLES DARWIN (2020).
N’O Livro dos Espíritos, Kardec avançou com cui-
dado no terreno da ciência biológica das espécies, tra-
tando inclusive de questões hoje superadas, mas presen-
tes na Ciência da época, como é o caso da hipótese da
geração espontânea (ver p. ex., a pergunta 46)3 . Atento a
um posicionamento mais positivo dos pesquisadores, ele
preocupou-se mais com os aspectos espirituais da Natu-
reza, deixando em aberto certas questões científicas para
o futuro. Mas o fundamento da posição da Doutrina apa-
recia já claro:
... tudo se encadeia, tudo é solidário na Natu-
reza. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos, trecho
de comentário de Kardec após a questão 132).
Durante os anos seguintes, Kardec acompanhava e co-
nhecia os trabalhos de Darwin, como o demonstram algu-
mas citações, por exemplo, na Revista Espírita de junho
de 1868, onde Kardec transcreveu um texto que analisa
as hipóteses da obra de um certo Sr. Herrenschneide:
Como se vê, o autor adota os princípios científicos
do progresso dos seres, emitidos por Lamarck,
Geoffroy Saint-Hilaire, e Darwin, com esta di-
ferença de que a ação moderadora das formas e dos
órgãos animais não é mais somente o resultado da
seleção e da concorrência vital, mas é também,
e sobretudo, o efeito da ação inteligente do espírito
animal... (KARDEC, 1868a, Revista Espírita, junho
1868, grifos nossos).
No mesmo ano, em consonância com o progresso das
ideias científicas, aparecia na Revista Espírita uma opi-
nião mais amadurecida sobre a questão da geração e evo-
lução dos diferentes seres vivos:
Os seres não procriados formam, pois, o primeiro es-
calão dos seres orgânicos, e contaram provavelmente
um dia na classificação científica. Quanto às espécies
que se propagam por procriação, uma opinião que não
é nova, mas que se generaliza hoje sob a égide
da ciência, é que os primeiros tipos de cada
espécie são o produto de uma modificação da
espécie imediatamente inferior. Assim é estabe-
lecida uma cadeia ininterrupta desde o musgo e o lí-
3 Veja uma interessante discussão de Kardec sobre a geração espontânea num artigo da Revista Espírita de 1868 (KARDEC, 1868b).
JEE 010205 – 5
Terini, R. A.
quen até o carvalho, e desde o zoófito, o verme da
terra e do oução até o homem. Sem dúvida, entre
o verme da terra e o homem, não se conside-
rando senão os dois pontos extremos, há uma
diferença que parece um abismo; mas quando
se aproximam todos os anéis intermediários,
acha-se uma filiação sem solução de continui-
dade. (KARDEC, 1868a, Revista Espírita, julho de
1868, grifos nossos. Similar em A Gênese, cap. X,
itens 25 e 28).
No mesmo ano, Kardec lançaria A Gênese, os mi-
lagres e as predições. O capítulo sobre A Gênese ma-
terial deixa claro que, desde O Livro dos Espíritos, as
conclusões da Ciência haviam progredido, com base nas
novas descobertas, e que o Espiritismo a acompanharia
pari passo, enfrentando os preconceitos, e incluindo o ser
humano na linha de evolução biológica:
Verificado que o corpo do homem está em condi-
ções idênticas aos outros corpos, que ele nasce, vive e
morre da mesma maneira, deve ter sido formado nas
mesmas condições.
Embora isso fira seu orgulho, o homem deve se resig-
nar a ver em seu corpo material o último elo da ani-
malidade sobre a terra. O inexorável argumento dos
fatos aí está, e será em vão levantar protestos contra
tal situação. (KARDEC, 2010a, A Gênese, cap. X,
itens 28 e 29).
Em 1871, DARWIN (2019) publicaria outro livro
significativo, intitulado A Origem do Homem e a Sele-
ção Sexual, em que estabeleceria, a partir de numerosas
fontes de dados, a descendência dos humanos em relação
aos animais, mostrando a continuidade de seus atributos
físicos e mentais a partir dos primatas, e enfatizando que
todos os humanos são da mesma espécie. Sua conclusão
foi que:
... o homem, com todas as suas qualidades nobres,
com a simpatia que sente por todos aqueles menos
favorecidos, com a benevolência que se estende não
somente aos outros homens, mas também com a cri-
atura mais humilde, que com seu intelecto espelhado
ao divino penetrou nos movimentos e constituições do
J. Est. Esp. 8, 010205 (2020).
Espiritismo e evolução do princípio inteligente, . . .
sistema solar – com todos seus poderes, o homem
ainda traz em sua estrutura física a marca indelével
de sua origem primitiva. (DARWIN, 2019).
A Ciência avançou muito desde então e, no século
XX, a estrutura do DNA foi elucidada (1953) e, no ano
2000, concluiu-se o audacioso Projeto Genoma Hu-
mano (PGH), que envolveu laboratórios de vários paí-
ses, sequenciando todo o genoma (sequência genética do
DNA) da espécie humana.
Hoje, com o sequenciamento gênico de diversas ou-
tras espécies, sabemos, por exemplo, que a nossa
sequência difere cerca de 1% da informação dos chi-
panzés. (CECHETI, 2018).
Como, então, hoje em dia, se pode negar que nós, hu-
manos, temos uma descendência biológica comum com os
outros primatas?
Além disso, os dados mais recentes demonstram que
o genoma de uma pessoa é igual a 99,5% da com-
posição do DNA de qualquer outro indivíduo na
face da Terra, seja qual for sua etnia ou origem. Essa
diferença é considerada insuficiente para caracterizar bi-
ologicamente diferentes raças na espécie humana... “Um
duro golpe no orgulho vão!” (WIKIPEDIA: PROJETO
GENOMA HUMANO, 2020).
IV E VOLUÇÃO DO PRINCÍPIO INTELI -
GENTE PELAS ESPÉCIES VIVAS
Em paralelo com a análise da evolução das espécies
biológicas, Kardec analisa, nas obras básicas do Espiri-
tismo, a evolução do princípio espiritual, cuja análise tem
escapado às demais ciências.
É interessante analisar como Kardec compatibiliza es-
ses dois processos de evolução: a biológica (das espécies)
e a espiritual, até chegar ao estágio hominal.
O processo da evolução espiritual foi apenas esboçado
em O Livro dos Espíritos, quando as ideias de evolução
biológica das espécies ainda eram controversas em todo
o mundo. Ela é inserida no mesmo capítulo XI em que
Kardec aborda os “três reinos” (concepção de Lineu).
607. Dissestes que o estado da alma do homem, na
sua origem, corresponde ao estado da infância na vida
corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se
ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa pri-
meira fase do seu desenvolvimento?
- Numa série de existências que precedem o período a
que chamais Humanidade. (KARDEC, 2012, O Livro
dos Espíritos).
Os Espíritos inquiridos afirmam, então, que nem só a
espécie humana serve para a encarnação das almas; que
a inteligência do Espírito se desenvolve antes de atingir
a condição de Humanidade e que, para isso, renasce em
outras espécies (palingênese). Continuando, Kardec pro-
põe:
4 Planeta tem 8,7 milhões de espécies conhecidas, aponta levantamento. 2011. Veja este link. Acessado em 10.06.2020.
J. Est. Esp. 8, 010205 (2020).
607-a. Parece que, assim, se pode considerar a alma
como tendo sido o princípio inteligente dos seres in-
feriores da criação, não?
- Já não dissemos que tudo na Natureza se encadeia
e tende para a unidade? Nesses seres, cuja totali-
dade estais longe de conhecer, é que o princípio
inteligente se elabora, se individualiza pouco a
pouco e se ensaia para a vida, conforme acabamos
de dizer. É, de certo modo, um trabalho preparatório,
como o da germinação, por efeito do qual o princípio
inteligente sofre uma transformação e se torna Espí-
rito. Entra então no período da humanização, come-
çando a ter consciência do seu futuro, capacidade de
distinguir o bem do mal e responsabilidade dos seus
atos. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos, grifos
nossos).
Logo de início, os Espíritos confirmam que muitos se-
res vivos ainda seriam descobertos, como, de fato, ocor-
reu, propiciando o desenvolvimento das taxionomias bi-
ológicas modernas: hoje, mesmo sem contar bactérias e
vírus, reconhecem-se pelo menos 8,7 milhões de espécies
vivas na Terra, incluindo a espécie humana!4 Nessa per-
gunta, Kardec, como de costume em sua época, se refere
às demais espécies, vegetais e animais, como “inferiores”
à espécie humana, e a resposta confirma que a alma só
atinge a condição humana após várias existências nes-
ses seres, em que “se elabora, se individualiza pouco a
pouco e se ensaia para a vida” (KARDEC, 2012, O Livro
dos Espíritos, questão 607-a). Só depois desse processo
evolutivo é que ela entra no “período da humanização,
começando a ter consciência do seu futuro, capacidade
de distinguir o bem do mal e responsabilidade dos seus
atos” (KARDEC, 2012, Idem).
Continuando, os Espíritos afirmam o caráter contí-
nuo e gradativo desse progresso do princípio inteligente,
mesmo quando já na espécie humana:
Durante algumas gerações, ele pode conservar um
reflexo mais ou menos pronunciado do estado primi-
tivo, porque nada na Natureza se faz por transição
brusca (...). Os primeiros progressos se realçam
lentamente, porque não são ainda secundados
pela vontade, ... (KARDEC, 2012, O Livro dos Es-
píritos, questão 609, grifos nossos).
O processo evolutivo espiritual, como um todo, envol-
veria, assim, não só os seres vivos do nosso planeta:
A Terra não é o ponto de partida da primeira encar-
nação humana. O período de humanidade co-
meça, em geral, nos mundos ainda mais inferi-
ores. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos, ques-
tão 607-b, grifos nossos).
Anos depois, em A Gênese, Kardec confirmaria e deli-
nearia melhor o processo evolutivo do princípio espiritual
antes de entrar para a espécie humana:
010205 – 6 JEE
 Terini, R. A.

Nos seres inferiores da criação, naqueles a quem ainda

falta o senso moral, nos quais a inteligência ainda não
substituiu o instinto, a luta não pode ter por móvel
senão a satisfação de uma necessidade material. Ora,
uma das mais imperiosas dessas necessidades é a da
alimentação. Eles, pois, lutam unicamente para vi-
ver, isto é, para fazer ou defender uma presa, visto
que nenhum móvel mais elevado os poderia estimu-
lar. É nesse primeiro período que a alma se
elabora e ensaia para a vida. (KARDEC, 2010a,
A Gênese, cap. III, item 23, grifos nossos).
Léon Denis (1846-1927), considerado um dos conti-
nuadores franceses do trabalho de Kardec, corroboraria
Figura 7: Hipótese da origem do corpo humano, em A
essa ideia incluindo, na sua obra mais conhecida, a fa-
Gênese (KARDEC, 2010a), que compatibiliza evolução
mosa frase:
das espécies e da alma humana6 .
Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha;
só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se
consciente...5 (DENIS, 1985, cap. IX, 1985). Dessa forma, antes do aparecimento da espécie hu-
Mas no cap. XI d’A Gênese, Kardec avançaria na mana na Terra, Espíritos que já haviam atingido a con-
compatibilização entre a evolução do princípio espiritual dição humana (obviamente em outros mundos) teriam
e a teoria da evolução das espécies vivas, analisando a sido trazidos para encarnar na Terra em dada época.
época longínqua em que os primeiros humanos ainda não Não havendo ainda corpos humanos no planeta, acaba-
haviam surgido na Terra. Considerando a possibilidade ram encarnando na espécie de primatas mais propícia à
de emigração e imigração de Espíritos entre os planetas, expressão das qualidades daqueles Espíritos. Natural-
e a interferência espiritual nos processos evolutivos ter- mente, sua ação espiritual sobre a constituição física des-
restres, Kardec formula uma hipótese sobre a origem do ses corpos somou-se à influência hereditária e do ambi-
corpo humano (Fig. 7): ente, provocando, geração após geração, alterações ge-
néticas que foram se fixando e produzindo, ao longo de
Corpos de macaco teriam sido muito adequa-
alguns milhões de anos, corpos hominídeos progressiva-
dos a servir de vestimenta aos primeiros Espí-
mente modificados em direção às características humanas
ritos humanos, necessariamente pouco adian-
tados, que vieram encarnar na Terra; tais corpos atuais. Segundo os dados atuais:
terão sido os mais apropriados às suas necessidades e
mais próprios ao exercício de suas faculdades, do que A verdade é que, de aproximadamente 2 milhões de
o corpo de qualquer outro animal. (...) a origem do anos a 10 mil anos atrás, o mundo foi habitado por
corpo não prejudica o Espírito, que é o ser principal, várias espécies humanas ao mesmo tempo. (HARARI,
e que a semelhança do corpo do homem com o corpo 2017, cap. 1).
do macaco não implica na paridade entre seu Espí-
rito e o do macaco. (...) Admitindo essa hipótese,
pode-se dizer que, sob a influência e por efeito da ati- Essas novas qualidades acabaram permitindo, há
vidade intelectual do seu novo habitante, o envoltório cerca de 70.000 anos, a predominância da espécie Homo
se modificou, embelezou seus detalhes, conservando sapiens, que se mostrou mais apta e preparada para os
a forma geral do conjunto. Os corpos melhorados, novos desafios que se apresentaram. Os outros hominí-
ao se procriarem, reproduziram-se nas mesmas con- deos (chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos) con-
dições (...). Deram origem a uma espécie nova (...). tinuaram a reproduzir-se normalmente, em paralelo com
O Espírito do macaco, que não foi aniquilado, os sapiens, o que é uma indicação de que não houve o
continuou a procriar, para seu uso, corpos de
mesmo tipo de ação espiritual diferenciadora como a que
macaco, (...) e o Espírito humano procriou
corpos humanos, variantes do primeiro molde
ocorreu nos Homo sapiens. Nesse momento, os Espíritos
onde se estabeleceu. (KARDEC, 2010a, A Gênese, humanos que viessem renascer na Terra já encontrariam
cap. XI, itens 15 e 16, grifos nossos). organismos mais adequados a suas necessidades. Graças
5 Essa é a versão correta (em português, claro) da frase famosa de Léon Denis, cf. o cap. IX de sua magistral obra O Problema do

Ser, do Destino e da Dor (DENIS, 1985), e não a versão mais comumente divulgada, que afirma que “A alma dorme na pedra, sonha no
vegetal, agita-se no animal e acorda no homem”, mencionada por J. Herculano Pires (1914-1979), na obra Mediunidade: vida e comuni-
cação (PIRES, 2015). Essa última frase, está mais de acordo com a tradição oriental e é defendida também pelo advogado J. B. Roustaing
(1805-1879), em sua polêmica obra Os Quatro Evangelhos (ROUSTAING, 2008). À parte a diferença de tradução, a possibilidade da alma
passar/estagiar no reino mineral, endossada por alguns autores, não é respaldada por A. Kardec (veja-se, por exemplo, a questão 136-a d’O
Livro dos Espíritos e o artigo A alma da Terra, na Revista Espírita de setembro de 1868) além de outros autores, como Gabriel Delanne
(1857-1926) e Ary Lex (1916-2001) (SOBRINHO, 2014).
6 Também nesse aspecto, desde a época de Kardec, as conclusões científicas se refinaram, com base na análise dos fósseis descobertos,

e aceita-se hoje que humanos (sapiens e seus parentes extintos), chimpanzés e bonobos tiveram um ancestral comum, que teria vivido há
pelo menos 5,5 milhões de anos (BBC NEWS BRASIL, 2019; WIKIPEDIA: ANCESTRAL COMUM ENTRE HUMANO E CHIMPANZÉ,
2020). Esse fato, entretanto, não afeta a conclusão proposta por Kardec sobre a encarnação inicial dos Espíritos humanos na Terra, e seria,
talvez, um indicativo da época aproximada em que esse processo teria se iniciado.

JEE 010205 – 7 J. Est. Esp. 8, 010205 (2020).

Espiritismo e evolução do princípio inteligente, . . .
ao desenvolvimento de uma linguagem elaborada e versá-
til, de tecnologias mais aperfeiçoadas de caça e plantio,
à invenção de meios de transporte, iluminação, defesa,
arte e conservação mais eficazes, nos acostumamos, desde
cerca de 10.000 anos atrás, a considerar nossa espécie,
Homo sapiens, como a única espécie humana da Terra.
São os próprios especialistas que reconhecem:
A maioria dos pesquisadores acredita que essas con-
quistas sem precedentes foram produto de uma re-
volução nas habilidades cognitivas dos sapiens. (HA-
RARI, 2017, cap. 2).
A evolução espiritual das espécies vivas acarreta
modificações na forma desses seres atuarem no ambiente
(que inclui a diversidade das próprias espécies, em geral).
Isso acaba produzindo uma adaptação do ecossistema a
esses modos de atuação que, em média, tendem a torná-
lo cada vez mais harmônico, em resposta a uma atuação
cada vez mais equilibrada e responsável. As desarmonias
e altos e baixos provocados principalmente pelo mau uso
do livre-arbítrio pela espécie humana são compensados,
a longo prazo, pelo aprendizado que advém do enfren-
tamento das consequências adversas dessas ações. Em
O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec deixa bem
clara essa interdependência entre nós e o ecossistema em
que vivemos:
Ao mesmo tempo em que todos os seres vi-
vos progridem moralmente, progridem materi-
almente os mundos em que eles habitam. Quem
pudesse acompanhar um mundo em suas diferentes
fases, desde o instante em que se aglomeraram os
primeiros átomos destinados e constituí-lo, vê-lo-ia
a percorrer uma escala incessantemente progressiva,
mas de degraus imperceptíveis para cada geração, e
oferecer aos seus habitantes uma morada cada vez
mais agradável, à medida que eles próprios avançam
na senda do progresso. Marcham assim, paralela-
mente, o progresso do homem, o dos animais,
seus auxiliares, o dos vegetais e o da habita-
ção, porquanto nada na Natureza permanece
estacionário. Quão grandiosa é essa ideia e digna da
majestade do Criador! (KARDEC, 2010b, O Evange-
lho Segundo o Espiritismo, cap. 3, item 19, grifos
nossos).
V C ONCLUSÃO
No presente trabalho procuramos sintetizar a evolu-
ção da taxionomia biológica dos seres da Natureza após
Kardec, a qual, dos três reinos de Lineu, passou a incluir
apenas os seres vivos, derivando para o evolucionismo
das espécies e do ser humano (darwinismo), aprofundado
e consolidado com o desenvolvimento, no século XX, da
bioquímica e da biologia evolucionista e a complemen-
tação do mapeamento do genoma humano no limiar do
século XXI.
Analisamos também de que forma Kardec, a partir da
publicação de O Livro dos Espíritos, avançou, em artigos
na Revista Espírita, a conceituação da Doutrina sobre a
evolução das espécies, em consonância com o desenvolvi-
mento da Ciência da época, além das novas informações
J. Est. Esp. 8, 010205 (2020). 010205 – 8
obtidas gradativamente dos Espíritos. Em A Gênese,
além disso, Kardec formulou sua arrojada hipótese sobre
a origem do corpo humano, em que nossa descendência
biológica dos primatas apareceria como a conclusão mais
plausível.
Em paralelo, pontuamos que O Livro dos Espíri-
tos introduziu a ideia de que os Espíritos, antes de se
qualificarem para a espécie humana, se desenvolveram em
várias existências nas outras espécies da Natureza. Em
A Gênese, essa ideia foi desenvolvida, compatibilizada
com o processo paralelo de evolução biológica das espé-
cies, sugerindo-se inclusive que, na época do surgimento
dos primeiros hominídeos na Terra, os corpos dos pri-
matas mais desenvolvidos existentes teriam sido os mais
adequados para a encarnação dos primeiros Espíritos hu-
manos que vieram habitar o planeta. A reprodução e
a fixação de novos caracteres oriundos da atuação des-
ses Espíritos em seus corpos materiais, juntamente com
a influência dos fatores ambientais e genéticos, permiti-
riam a formatação da espécie humana, como a entende-
mos hoje. O Espiritismo trata então da interação entre
a evolução espiritual e a evolução biológica.
Na elaboração do trabalho, utilizamos artigos e obras
científicas, de acesso geral físico ou via Internet, além
das obras básicas de Kardec. Não são conhecimentos
herméticos. Boa parte desse conhecimento científico já
é ensinado, mesmo que sinteticamente, no Ensino Básico
brasileiro. Como queremos que o Espiritismo seja levado
a sério pelos próprios jovens se ele não for divulgado em
concordância com as noções científicas básicas que apren-
dem na escola?
O desenvolvimento do Espiritismo se deu a partir das
progressivas informações obtidas dos Espíritos ao longo
do trabalho de Kardec e colaboradores, mas, como um
dos critérios de aceitação de novas informações doutri-
nárias é o “seu confronto com as verdades científicas de-
monstradas” [J. H. Pires, Introdução a O Livro dos Es-
píritos, in O Livro dos Espíritos, Ed. LAKE], era im-
prescindível que houvesse sintonia com o progresso das
ciências da Natureza.
O movimento espírita não pode ignorar o progresso
sério das ciências, sob o risco de repetir o que ocorreu
com a Igreja cristã que, até há pouco tempo, teimava que
a Terra era o centro do Universo e que os métodos anti-
concepcionais eram de inspiração diabólica, sendo atro-
pelada pelo progresso e reduzindo seu protagonismo na
sociedade. Se queremos que a Doutrina Espírita, monu-
mento de coerência e luz para a humanidade, não seja
guardado apenas nas estantes, como obra histórica, é ne-
cessário lembrar o alerta de Allan Kardec:
O Espiritismo e a Ciência se completam um ao ou-
tro: a Ciência, sem o Espiritismo, se encontra impo-
tente para explicar certos fenômenos somente pelas
leis da matéria; ao Espiritismo, sem a Ciência, falta-
ria o apoio e o controle. (KARDEC, 2010a, A Gênese,
cap. I, item16).
JEE
 Terini, R. A.

A GRADECIMENTOS KARDEC, A. 2010b. O Evangelho Segundo o Espiritismo, trad. J.

Ao C. E. Irmão Itajubá, pelas oportunidades de
aprendizado e trabalho. Aos amigos biólogos que conheci
na UFABC, pelas discussões esclarecedoras e inspirado-
ras. Aos revisores do JEE, pelas importantes contribui-
ções que enriqueceram este artigo.
R EFERÊNCIAS
BBC NEWS BRASIL, 2019. “Teoria da Evolução: por que é errado
dizer que viemos dos macacos e outras 4 questões sobre nossa
origem”. 22/11/2019. https://www.bbc.com/portuguese/
geral-50514485, acessada em 09.07.2020.
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trad. J. Abreu Filho, EDICEL, 1a ed., São Paulo, SP.
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Title and Abstract in English

Spiritism and evolution of the intelligent principle – Three kingdoms?

Abstract: In the formulation of Spiritism as a science of observation, Allan Kardec has always been concerned with presenting
its concepts associated with the scientific ideas accepted at his time, aiming to integrate it into the current culture. And
he sought to update himself, consolidating the doctrine so that confidence in it could “face reason face to face, in all ages
of mankind”. In The Spirits’ Book, Kardec mentions a classification of the beings of Nature into three kingdoms, including
minerals, based on a scientific division accepted since the 18th century. The present work analyzes the evolution of this biological

JEE 010205 – 9 J. Est. Esp. 8, 010205 (2020).

Espiritismo e evolução do princípio inteligente, . . .

conception after Kardec, when it started to include only living beings, drifting towards the evolutionism of species and human
being (Darwinism), deepened and consolidated with the development, in the 20th century, of evolutionary biology and with the
mapping of the human genome. In this book, Kardec carefully addresses the field of biological science of species. After the
publication of The Origin of Species by Charles Darwin in 1859, Kardec, in several articles in the Spiritist Magazine, would
advance the concepts of the Doctrine in line with the development of the Science of evolution. In The Genesis, miracles and
predictions, in 1868, Kardec formulated the hypothesis about the origin of the human body in which our biological primate
descent appeared as the most likely conclusion. However, unlike Kardec’s concern, the evolution of this biological conception
has not been considered by most of the disseminators of Spiritism, who continue to teach the same Three kingdoms today,
compromising the Doctrine’s own credibility in society. On the other hand, The Spirits’ Book introduced the idea that human
Spirits have developed and individualized in many existences in the so-called lower species of Nature. In The Genesis, the
hypothesis of spiritual evolution through living species has been developed, confirming that “in this first period the soul is
elaborated and rehearses for life”. There, Kardec would also advance the compatibility between the evolution of the spiritual
principle and the theory of the evolution of living species, analyzing that, at the time of the appearance of the early hominids
on Earth, the existing monkey bodies would have been very suitable for the incarnation of the first human Spirits who came
to inhabit the Earth. The current conclusions of evolutionary biology and paleontology have been quite compatible with these
spiritist theses. The analysis presented here confirms that Spiritism and Science complement and strengthen each other, and
that the adequate disclosure of these data will certainly contribute to strengthen and airing our reasoned faith.
Keywords: Evolution; intelligent principle; kingdoms of nature; evolutionism; spiritism; Spiritist science.

J. Est. Esp. 8, 010205 (2020). 010205 – 10 JEE

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