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Novos dados sobre ninhos

e ovos do tinguaçu-ferrugem,
Attila cinnamomeus
(Passeriformes: Tyrannidae)
Glauko Correa da Silva1, Ricardo Parrini2
& Marco Aurélio Crozariol3

O gênero Attila compreende sete espécies ocorrentes do México


até o nordeste da Argentina, leste do Paraguai e sul do Brasil (Di-
ckinson & Christidis 2014).
Dessas sete, apenas não se conhecem os ninhos de Attila pho-
enicurus Pelzeln, 1968 (capitão-castanho) e Attila citriniventris
Sclater, 1859 (tinguaçu-de-barriga-amarela) (Crozariol 2016), bem
como há apenas uma descrição do ninho de Attila torridus Sclater,
1860 (Greeney 2006).
A espécie Attila cinnamomeus (Gmelin, 1789) ocorre das Guia-
nas até o leste do Equador, descendo pelo leste do Peru e norte
da Bolívia e toda a Amazônia brasileira (Pinto 1944, Sick 1997,
Walther 2016), incluindo o estado do Tocantins (Pinheiro & Dor-
nas 2009). Habita principalmente as áreas de várzea e manguezais,
portanto, aquelas sazonalmente alagáveis (Haverschmidt & Mees
1994, Sick 1997, Walther 2016).
Embora Crozariol (2016) tenha citado como sendo conhecida
apenas uma descrição de ninho para A. cinnamomeus, feita por Pin-
to (1953), duas outras publicações o descrevem (Penard & Penard
1910, Haverschmidt & Mees 1994).
O objetivo da presente nota é apresentar dois novos ninhos com
ovos de A. cinnamomeus, bem como uma revisão sobre os hábitos
reprodutivos da espécie.
A descrição mais antiga que pudemos encontrar para o ninho e
os ovos de A. cinnamomeus foi feita por Penard & Penard (1910),
como “A[ttila] thamnophiloides Spix”, para a região norte da Amé-
rica do Sul. Esses autores descrevem o ninho em holandês “Het nest
van grootendeels zwartachtige worteltjes wordt in verlaten spechte-
nholen, tusschen de kronen van palmen of onder de bladeren van
orchideeën of ook wel in houtluizennesten gebouwd.”, que tradu-
zido seria: “O ninho que consiste em sua maior parte de pequenas Figura 1. Ninho encontrado em 01 de dezembro de 1996 em Alta Floresta,
raízes enegrecidas, é construído em buracos abandonados de pica- MT. A seta branca indica a localização do ninho na palmeira.
-paus, entre as copas de palmeiras ou sob as folhas de orquídeas ou No detalhe ninho com três ovos. Fotos: Ricardo Parrini.
também em ninhos de cupins.”. Citam como total da postura dois de um “barbante comum”, medindo 12 cm de largura. Os ovos,
ou três ovos de coloração rosa-amarelado ou salmão com manchas, em número de três, possuem coloração “rósea de salmão, bastante
algumas vezes concentradas ao redor do polo mais rombo, de cor carregada; enfeitam-os manchas côr de chocolate do mais variado
marrom-acinzentado e lilás, medindo 25 x 21 mm. Esses autores fi- tamanho, distribuídas em plano distintos, e tanto mais carregada no
nalizam a descrição dizendo que os ovos variam muito, lembrando tom quanto mais superficiais; de permeio, e em plano ainda inferior,
aqueles do gênero Tyrannus, sendo incubados por ambos os sexos. nódoas mais claras, tirantes a cinza. As manchas se acumulam em
A segunda descrição foi feita por Pinto (1953), baseado na cole- volta do polo grosso, formando coroa bem caracterizada [...]”.
ção de Carlos Estevão. O ninho é descrito como ocorrendo cerca Por fim, Haverschmidt & Mees (1994) descrevem o ninho como
de 3 m acima do solo em um “anajazeiro” (espécie de palmeira, sendo um copo raso e aberto, feito com pequenos gravetos mortos,
provavelmente Attalea maripa), tendo forma de copo largo e feito forrado com finas raízes e construído em fendas de troncos de ár-
com raízes que variam em espessura de uma crina de cavalo até vores ou entre o tronco principal de uma árvore e uma Bromelia sp.

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Figura 3. Vista geral do local em que foi encontrado o ninho em 03 de
Figura 2. Ninho encontrado em um nicho de buriti em 03 de janeiro de janeiro de 2015, em Porto Velho, RO. A seta vermelha indica a localização
2015, Porto Velho, RO. Foto: Glauko Correa da Silva. do ninho na palmeira. Imagem: Glauko Correa da Silva.

(Bromeliaceae). Apenas um indivíduo foi observado construindo o provavelmente também retiradas da própria palmeira onde havia
ninho. Os ovos são cor de salmão-rosado com manchas marrom- sido construído. Havia três ovos no ninho (Figura 4), semelhantes
-avermelhadas sobre marcações arroxeadas. Bota entre dois e três àqueles já descritos anteriormente, porém a coloração da base do
ovos, com tamanho médio de 22,5 x 18,2 mm. ovo era rosa, bastante claro. No dia 18 de janeiro GCS retornou ao
local e encontrou o ninho com sinais de predação e os ovos ausen-
Nossas observações tes. Os ovos e ninho não foram medidos.
O primeiro ninho aqui descrito foi encontrado em 01 de dezem- Nossa revisão, somada aos dois registros aqui apresentados, indi-
bro de 1996 por RP no município de Alta Floresta, Mato Grosso, no cam um período de reprodução que varia de setembro a maio, depen-
Cristalino Lodge. Estava em uma pequena palmeira em um tipo de dendo da região (Penard & Penard 1910, Hellebrekers 1942, Pinto
pomar do próprio Lodge (Figura 1), construído a 2,2 m do solo, em 1953, Haverschmidt & Mees 1994, Robbins et al. 2007, Walther
um nicho na base das frondes da palmeira. Tinha forma de semiesfe- 2016). No Brasil, os registros variam entre dezembro (Mato Grosso,
ra apoiado pela base e foi construído, aparentemente, com algumas este trabalho e Pará, Pinto 1953) e janeiro (Rondônia, este trabalho).
poucas fibras vegetais da própria palmeira, dispostas em círculo, sem Como bem citado por Lanyon (1985), no geral, os ninhos das
apresentar um forro diferenciado para acomodar os ovos. A coloração espécies do gênero Attila não estão inseridos em uma “cavidade
geral do material usado no ninho e aqueles presentes ao redor (vide verdadeira”, sendo um pouco mais expostos, construídos em ni-
detalhe da Figura 1), lembra a coloração ferrugínea da espécie. Havia chos ou fendas. Pela classificação de Simon & Pacheco (2005),
três ovos no ninho, de coloração creme-claro com manchas marrom- ambos os ninhos aqui descritos são do tipo “cesto baixo/base”.
-avermelhadas ou vináceas, principalmente ao redor do polo mais Porém, essa seria uma classificação muito simplificada, visto que
rombo. Tanto o ninho quanto os ovos não foram medidos. os ninhos foram encontrados em uma espécie de nicho, mas, que
O segundo ninho foi encontrado em 03 de janeiro de 2015 por pelas sugestões propostas por eles, não se encaixaria em um tipo de
GCS no município de Porto Velho, Rondônia, margem direita do rio cavidade, onde aqui concordamos com Lanyon (1985). Penard &
Madeira, próximo ao distrito de Nova Mutum Paraná. No momento Penard (1910), no entanto, citam ninhos encontrados em cavidades
do encontro, dois indivíduos adultos foram observados saindo do abandonadas por Picidae e cupinzeiros e Harverschmidt & Mees
ninho, de forma bastante discreta. Na primeira de duas tentativas (1994), em fendas, o que poderia indicar certa plasticidade na hora
de aproximação, os adultos saíram e apenas um ficou próximo, a da escolha do local de nidificação, podendo assim, segundo a classi-
cerca de 10 m, arrumando suas penas em local de vegetação seca e ficação de Simon & Pacheco (2005), ser também do tipo “cavidade/
quase fechada, vocalizando baixinho (“reclamando”) em intervalos sem túnel/cesto baixo”.
irregulares (de 3, 5 e 7 min), mas sem muito alarde ou display reco- Dentre as espécies do gênero Attila, apenas A. rufus parece nidi-
nhecível; o segundo indivíduo manteve o mesmo padrão de vocali- ficar em cavidades mais profundas e, segundo Höfling & Camargo
zação, porém mais afastado e escondido na vegetação densa. Esse (1999), podem construir ninhos em barrancos e em ocos de árvores
ninho, assim como aquele de Alta Floresta, também foi construído com até 20 cm de profundidade, embora às vezes apenas entre aglo-
na base das frondes de uma palmeira (Figura 2), no caso um buri- merados de bromélias (Simon 2000).
ti (Mauritia flexuosa - Arecaceae), que estava quase morto e com De qualquer forma, fica aparente que A. cinnamomeus parece
parte submersa pela inundação do reservatório artificial da Usina ter preferência por construir seus ninhos nas bases das frondes de
Hidrelétrica Jirau. O ninho estava a cerca de 2 m acima da água palmeiras (vide Penard & Penard 1910, Pinto 1953 e as presentes
(Figura 3) e também possuía forma semiesférica apoiado pela base, descrições), sendo então bastante possível que na ausência desse
porém um pouco mais exposto, ou seja, menos escondido pela fo- tipo de recurso a espécie possa utilizar outros locais que apresentem
lhagem, que o anterior. Foi construído com fibras vegetais variadas pequenas cavidades, onde consiga esconder seu ninho, como abai-
dispostas em círculos, de coloração mais clara, como palha seca, xo de bromélias (Haverschmidt & Mees 1994).

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Normalmente, A. cinnamomeus é encon-
trado forrageando nos estratos superiores das
matas ciliares ou de várzea (obs. pessoal de
RP), sendo a altura dos ninhos aqui descritos
e aquele encontrado por Pinto (1953) posi-
cionados num nível mais baixo que aquele
utilizado no forrageamento. Esse comporta-
mento parece ser comum para outras espé-
cies do gênero, com ninhos de 1,3 m do solo
para A. bolivianus (Hilty & Brown 1986),
entre 2 e 3 m para A. rufus (Euler 1900, Si-
mon 2000), entre 80 cm e 4 m para A. spa-
diceus (Pinto 1953, Skutch 1971, Greeney &
Gelis 2007, Melo & Gama 2016) e 2 m para
A. torridus (Greeney 2006).
Todas as espécies que possuem ninhos re-
lativamente bem conhecidos do gênero Atti-
la utilizam musgos em sua construção, por Figura 4: Detalhe do ninho com ovos, em 03 de janeiro de 2015,
exemplo, A. bolivianus (Naumburg 1930, Porto Velho, RO. Imagem: Glauko Correa da Silva.
Hilty & Brown 1986), A. spadiceus (Pinto 1953, Greeney & Ge- Lanyon, W.E. (1985) A phylogeny of the Myiarchine Flycatchers. Ornithological
lis 2007) embora nem sempre esse material esteja presente (vide Monographs 36: 360-380.
Melo, T.N. & V. Gama (2016) O comportamento de predar lagartos de Attila spa-
Skutch 1971 e Wetmore 1972) e A. torridus (Greeney 2006). Tanto diceus com notas sobre sua biologia reprodutiva. Atualidades Ornitológicas
que Hilty (2003), na parte introdutória do gênero, cita “nest an open 192: 20-22.
mossy cup [...]” [ninhos são um copo aberto de musgos]. Porém, Naumburg, E.M.B. (1930) The birds of Matto Grosso, Brazil. A report on the birds
até então, nenhum ninho de A. cinnamomeus foi encontrado com a secured by the Roosevelt-Rondon Expedition. With field notes by George K.
Cherrie. Bulletin of The American Museum of Natural History 60: 1-432.
presença desse tipo de material.
Penard, F.P. & A.P. Penard (1910) De vogels van Guyana (Suriname, Cayenne en
A coloração dos ovos de A. cinnamomeus lembra aqueles já des- Demerara). Vol. 2. Paramaribo, Suriname: F. P. Penard.
critos anteriormente para a própria espécie, bem como para seus Pinheiro, R.T. & T. Dornas (2009) Distribuição e conservação das aves na região do
congêneres (Penard & Penard 1910, Hellebrekers 1942, Pinto 1953, Cantão, Tocantins: ecótono Amazônia/Cerrado. Biota Neotrop. 9(1): 187-205.
Hilty & Brown 1986, Haverschmidt & Mees 1994, Simon 2000, Pinto, O.M.O. (1944) Catalogo das Aves do Brasil e lista dos exemplares existen-
tes na coleção do Departamento de Zoologia. 2ª Parte: Ordem Passeriformes
Greeney 2006).
(continuação); Superfamília Tyrannoidea e Subordem Passeres. Publicação do
Departamento de Zoologia Secretaria da Agricultura, Industria e Comercio São
Agradecimentos Paulo, Brasil.
Somos gratos a André August Remi de Meijer pela tradução do Pinto, O. (1953) Sobre a coleção Carlos Estevão de peles, ninhos e ovos das aves
texto em holandês escrito por Penard & Penard (1910), a Jorge Bruno de Belém (Pará). Papéis Avulsos do Departamento de Zoologia, SP, 11(13):
113-224.
Nacinovic pelo auxílio bibliográfico e a Thiago Filadelfo que nos au- Robbins, M.B., M.J. Braun, C.M. Milensky, B.K. Schmidt, W. Prince, N.H. Rice,
xiliou com dúvidas terminológicas. GCS agradece a Energia Susten- D.W. Finch & B.J. O’Shea (2007) Avifauna of the upper Essequibo river and
tável do Brasil (ESBR) por proporcionar parte desse estudo e a AR- Acary mountain, southern Guyana. Ornitologia Neotropical 18: 339-368.
CADIS Logos S.A. pelo apoio e incentivo na publicação do mesmo. Skutch, A.F. (1971) Life history of the Bright-rumped Attila Attila spadiceus. Ibis
113: 316-322.
Sick, H. (1997) Ornitologia brasileira. Edição revista e ampliada por José Fernan-
Referências bibliográficas do Pacheco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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nhecidos das famílias Tityridae, Platyrinchidae, Pipritidae, Pipromorphidae Congresso Brasileiro de Ornitologia, Florianópolis. Ornitologia Brasileira
e Tyrannidae: um pedido de auxílio aos observadores de aves! Atualidades no Século XX. p. 370-371.
Ornitológicas 189: 18-24.
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Hilty, S.L. (2003) Birds of Venezuela. Princeton, New Jersey: Princeton University E-mail: glaukorrea@gmail.com
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Rua Desembargador Izidro 160, ap. 601 - Tijuca, Rio de
Hilty, S.L. & W.L. Brown (1986) A guide to the birds of Colombia. Princeton,
New Jersey: Princeton University Press. Janeiro-RJ. CEP 20521-160. E-mail: rparrini@hotmail.com
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