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ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A EPISTEMOLOGIA FEMINISTA

NOTES ABOUT THE FEMINIST EPISTEMOLOGY

Amanda Motta Angelo Castro1 e Edla Egger2


Recebido em: 15/04/2011
Aprovado em: 28/04/2012

“Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações:


aprender que existe o sul;
aprender a ir para o Sul;
aprender a partir do Sul e com o Sul (SANTOS, 1995).

RESUMO ABSTRACT

Este artigo tem como objetivo principal realizar This paper aims at providing some point-
alguns apontamentos sobre a Epistemologia Fe- ers on Feminist Epistemology. We will dis-
minista. Abordaremos aqui ações individuais de cuss here the individual actions of ordinary
mulheres comuns ao longo dos tempos até o mo- women throughout the ages until the col-
vimento coletivo de mulheres nas décadas de 60 e lective movement of women in the 60’s and
70. Por que tivemos que buscar uma “alternativa” 70’s. Why we had to seek an “alternative”
ao modelo “clássico” e “tradicional” da Episte- to the “classical” model and “traditional”
mologia? Qual a real necessidade e importância epistemology? What is the real need and
de trabalharmos com a Epistemologia Feminista, importance of working with the Feminist
sobretudo quando realizamos pesquisas sobre Epistemology, especially when we conduct
mulheres, gênero e feminismo? Aqui buscamos research on women, gender and feminism?
levantar algumas dessas questões e, com isso, Here we try to raise some of these issues
acreditamos, em alguma medida, estar contribuin- and we believe in some measure be con-
do para os Estudos Feministas e de Gênero, que tributing to Women’s Studies and Gender
buscam visibilizar “as margens” nas quais as mu- visualizer search “margins” where for cen-
lheres estiveram durante séculos de silenciamento turies women have been muting (PERROT,
(PERROT, 2007). 2007).
Palavras-chave: Epistemologia; Feminismo; Gê- Keywords: Epistemology; Feminism; Gen-
nero; Mulheres. der; Women.

1 Introdução desenvolvidos conhecimentos não re-


conhecidos “oficialmente”. Para Santos
A necessidade de uma epistemo- (2009), “a epistemologia que conferiu
logia que pense a partir das margens, à ciência a exclusividade do conheci-
dos/as excluídos/as e dos/as invisibili- mento valido” (SANTOS, 2009, p.11)
zados/as não é “privilégio” das mulhe- e essa epistemologia, que valida o co-
res,. Em seu livro, Epistemologias do nhecimento, “esqueceu” trabalhadores,
Sul, Boaventura de Souza Santos (2009) mulheres, indígena, afrodescendentes,
nos aponta a necessidade urgente de o e esses excluídos e excluídas estão, so-
conhecimento sistematizado aprender e bretudo, no conjunto de países e regiões
reconhecer a existência epistemológica submetidos ao colonialismo europeu
do Sul. Segundo o autor, no Sul, são (SANTOS, 2009).

1
Mestre em Educação. Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: motta.
amanda@terra.com.br.
2
Mestre em Educação. Doutora em Educação pela EST - Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (PGEDU/UNISINOS), Brasil. E-mail: edla@unisinos.br.

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Nosso artigo caminha na direção maioria, é branco, heterossexual e tem


da reflexão pertinente de Boaventura certo nível de poder. Em vista disso,
sobre as epistemologias desvalorizadas podemos afirmar que esse monopólio
e não reconhecidas pelo conhecimento também é excludente para com outros
formal. Entre essas epistemologias está homens. Decorrente dessas exclusões,
a feminista, que vai pensar a partir do na história recente, houve um período
conhecimento produzido pelas mulhe- marcado por movimentos sociais de
res. Aqui não nos propomos criar uma protesto para que essas desigualdades
nova epistemologia, mas revisitar a fossem questionadas, visibilizadas e
epistemologia feminista que foi pensada transformadas.
e fundamentada a partir do movimento
feminista e de intelectuais feministas 2 As margens visibilizadas: os movi-
que compreenderam a necessidade de mentos sociais
uma epistemologia “alternativa” ao mo-
delo androcêntrico do conhecimento Segundo nosso entendimento, fo-
formal. Neste texto, propomos, ao leitor ram os movimentos sociais que fizeram
e a leitora, ir ao Sul e perceber o conhe- com que esse monopólio fosse questio-
cimento tramado pelas mulheres. nado. Entre os tais, temos: movimento
As mulheres foram excluídas da hippie, movimento antirracismo, movi-
maior parte dos direitos sociais e polí- mento estudantil, Teologia da Libertação,
ticos; seu lugar social, por séculos, foi lutas contra as ditaduras na América Lati-
à esfera privada e não a pública. Logo, na, Educação Popular, Revolução Cuba-
estamos nos referindo há séculos de ex- na, movimento dos Trabalhadores Sem
clusão e silenciamento das mulheres no Terra, Independência de países Africanos
espaço público e, pensando sobre a pes- e o movimento feminista. Há ícones, até
quisa, cabe aqui uma pergunta: quais se- hoje, amados/as e lembrados/as, como:
rão as consequências disso na pesquisa Che Guevara, Nelson Mandela, Rosa Par-
com mulheres? Segundo Perrot (2007), ks, Luther King, Malcon X, John Lennon,
o pouco registro escrito deixado pelas Maysa, Leila Diniz, Simone de Beauvoir.
mulheres ao longo da história, devido à As décadas de 1960 e 1970 foram déca-
sua exclusão das instituições formais de das “das margens” pressionando o centro.
ensino, é um fator complicador na pes- Durante vinte anos, o mundo viveu mo-
quisa sobre/com mulheres. vimentos contra a cultura e a ideologia
Para Gebara (2000), com pouca vigente. Com certeza, muitas pessoas que
história escrita pelas mulheres, ao longo viveram nessas décadas escreveriam com
do tempo, o conhecimento passou a ser a autoridade da experiência e agregariam
totalmente controlado pelos homens. outros movimentos e mudanças que tais
Sendo assim, a autora afirma que “um décadas anunciaram a nós, que não está-
conhecimento que despreza a contri- vamos lá. Nós apenas ouvimos falar e le-
buição das mulheres não é apenas um mos sobre esse tempo e apreciamos a luta,
conhecimento limitado e parcial, mas o coletivo, a moda. Hoje desfrutamos de
um conhecimento que mantém um ca- conquistas realizadas pelas pessoas co-
ráter de exclusão” (2000, p. 117). Evi- muns ou não dessa geração.
dentemente, o poder de contar a história É no bojo desse momento histórico
e escrevê-la ficou como tarefa dos ho- que surge o movimento feminista, dando
mens e, aqui, não nos referimos a todos origem à epistemologia feminista. Sobre
os homens, mas a um padrão normativo o movimento feminista, entendemos ser
androcêntrico. Por consequência, quan- pertinente destacar aqui duas questões
do discutimos o monopólio do conhe- fundamentais: a primeira é que, ainda
cimento pelos homens, referimo-nos hoje, embora erroneamente, muitas pes-
a um modelo de homem que, em sua soas acreditem que todos os direitos fo-

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ram conquistados, superado e que a luta têm um sonho4. Das décadas de 60 e


feminista é desnecessária. Nós, as femi- 70 até os dias atuais, intelectuais e mi-
nistas apoiadas pelas tristes estatísticas, litantes sabem que a igualdade não foi
sabemos que ainda temos muitas lutas a totalmente alcançada. Por isso, tanto o
serem travadas, e conquistas ainda preci- Feminismo quanto a Educação Popular
sam acontecer. Hoje, segundo dados da permanecem ativos, tanto na academia
síntese de indicadores sociais do IBGE como nos movimentos sociais.
de 2008, em todas as posições de traba- A segunda questão é: se ocorreu um
lho que ocupam, o rendimento médio dos movimento feminista nas décadas citadas,
homens é maior que o das mulheres. As isso também ocorreu devido a movimentos
mulheres recebem 22% a menos que os “micro”, realizados individualizadamen-
homens3, segundo Eggert: te por mulheres que ousaram, ao longo da
história, lutar, resistir e transformar. Desta-
(...) dados fornecidos pelo Ministério camos aqui quatro dessas mulheres: Safo,
do Desenvolvimento, Indústria e Co- na Grécia, em 593 a.C; Olympe de Gouges,
mércio Exterior, organizados junta- na França (1748 – 1793); Nísia Floresta, no
mente com o Programa do Artesanato Brasil (1810-1885); e Rosa Parks, nos Esta-
Brasileiro (PAB) e do Sistema de In- dos Unidos (1913 – 2005).
formações Cadastrais do Artesanato
Brasileiro (SICAB). Através destes
dados constatamos que cerca de 80% 3 Entre o individual e o coletivo
do número total dos artesãos cadas-
trados são mulheres. Quase 90% do Safo de Lesbos viveu na Grécia,
total moram em zona urbana, bem onde era proibida a educação formal de
como realizam suas atividades na mulheres, e criou, na ilha de Lesbos, uma
própria residência. Sendo que 52% escola para mulheres. Invisibilizada pela
dos artesãos e das artesãs recebem história, ela entra para os anais de outra
menos de um salário mínimo nacio- forma: pela linguagem. Se pensarmos na
nal, e 42% recebem entre um a cinco
origem das palavras safada e lésbica, até
salários. Dificilmente ultrapassam do
valor de um salário mínimo. Grande hoje pejorativas em nosso vocabulário,
parte do comércio dessa produção temos uma noção de como Safo era vista
é feita na própria residência (49%), em sua época (Matos, 2002).
22% em feiras, e 14% em ruas ou
praças (EGGERT, 2010, p. 2).

Esses são alguns dos motivos,


dentre tantos, que fazem com que os
movimentos iniciados nas décadas aci-
ma citadas ainda continuem. Destaca-
mos, junto com o movimento feminista,
a Educação Popular, pois ambos, até os
dias atuais, lutam e acreditam que tais
movimentos precisam ser contínuos.
Todavia, poderíamos citar os movimen-
tos de igualdade racial que hoje ainda
permanecem, porque precisam lutar. Imagem: Safos de Lesbos5
Passados quarenta anos após o assassi-
nato de Martin Luther King, eles ainda Olimpy de Gouges foi apontada
4
O discurso histórico, “Eu ainda tenho um sonho”, foi realizado no dia
3
Indicadores Sociais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 28 de agosto de 1963, nos degraus do Lincoln Memorial, em Washing-
(IBGE), pesquisa concluída em 2008 e divulgada em 2009. Disponível ton, onde o pastor e ativista político falou a uma multidão sobre o sonho
em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/ pesquisas/default. shtm> da igualdade entre negros e brancos. Tornou-se a pessoa mais jovem a
acessado em 09/10/2009 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, foi assassinado em Memphis,
E ESTATÍSTICA, 2009). no dia 4 de abril de 1968.

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como a primeira pessoa a escrever um


texto com linguagem inclusiva. Em
1791, ela escreveu a Declaração dos
Direitos da Mulher e da Cidadã e sem-
pre manteve sua célebre frase: “Se a
mulher tem o direito de subir ao cada-
falso, ela deve ter igualmente o direito
de subir à tribuna” (EGGERT, 2006 p
187). Sua luta continuou até o dia em
que foi guilhotinada na capital France-
sa: 3 de novembro de 1793.

Imagem: Nísia Floresta6

Por fim, mas não menos impor-


tante, Rosa Parks7, costureira nascida
no Alabana e ativista política pelos di-
reitos dos/as negros/as. No dia 1º de de-
zembro de 1955, negou-se a dar seu lu-
gar no ônibus a um homem branco, o
que se tornou o estopim do boicote aos
ônibus no Sul dos Estados Unidos. Rosa
encontrou apoio num jovem pastor ne-
gro: Martin Luther King, que, posterior-
Imagem: Olimpy de Gouges5 mente a esse fato, veio marcar o início
da luta antissegregacionista e entrar
Nísia Floresta, que, segundo para os livros de História para sempre.
Duarte (1995) e Eggert (2006), é con-
siderada a primeira feminista brasileira,
desafiou a legislação assinada por Dom
Pedro I, que impedia as mulheres de se
matricularem em escolas avançadas. Ela
investiu na educação sem distinção en-
tre os sexos, lutou pela educação cien-
tífica para mulheres e conseguiu a pri-
meira escola exclusiva para meninas,
o Colégio Augusto, no Rio de Janeiro,
com métodos inovadores. O Colégio de
Nísia investia numa educação com com-
petência intelectual para as mulheres.
Pioneira em sua época, ela esteve pre-
sente na luta pelos direitos da mulher e
pela igualdade entre mulheres e homens,
sobretudo no campo intelectual (CAS- Imagem: Rosa Parks8
TRO, ALBERTON, EGGERT, 2010). 6
Nísia Floresta. Fonte: <http://www.substantivoplural.com.br/wp-con-
tent/uploads/2010/05/nisia-floresta.jpg > acessado em ABRI 2010.
7
Conforme informações obtidas no site oficial do “Rosa Parks Institute”
www.rosaparks.org. Acessado em 26 de maio de 2010.
8
Rosa Parks. Fonte <http://30.media.tumblr.com/tumblr_kxo4qdIcEN-
5
Olympe de Gouges. Fonte <http://www.linternaute.com/femmes/dos- 1qamvyto1_400.jpg > acessado em NOV 2010.
sier/0704-femmes-histoire/images/gouges.jpg> acessado em ABRI 2009.

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Assim, com ações individuais de A epistemologia feminista tem


várias mulheres (incluindo as citadas denunciado e alertado a supergenerali-
aqui) ao redor do mundo, durante dife- zação, apontando que os valores, as ex-
rentes tempos e lugares, elas provaram periências, os objetivos e as interpreta-
que a história pessoal é parte de uma ções dos grupos dominantes são apenas
grande história (EGGERT, 2002). Atra- os valores, as experiências, os objetivos
vés delas, podemos chegar ao movimen- e as interpretações desses grupos, não
to coletivo no qual ocorre o movimento da humanidade como um todo. Sobre
feminista. Como nos referimos ante- isso, Gebara afirma que:
riormente, influenciada por esse movi-
mento, surgiu a epistemologia feminis- Sem dúvida, o conhecimento produ-
ta, que vem produzindo conhecimento zido por uma elite a serviço dos de-
ao redor do mundo. Segundo Gebara, tentores do poder é mais valorizado
“o feminismo denuncia a produção de do que qualquer outro produzido, por
um conhecimento considerado científi- exemplo, por um grupo de catadores
co, cuja consequência é a exclusão das de lixo. Não só a questão das classes
mulheres e uma cultura marginalizante” sociais aparece de forma marcante
em todos os processos epistemológi-
(2000, p.115). cos, mas também a questão da raça,
do gênero, das idades, e da orientação
4 Epistemologia: um conhecimento sexual. Nossa maneira de expressar
tramado entre o cotidiano e a expe- nosso conhecimento do mundo é re-
riência veladora de nosso lugar social e cul-
tural. E este lugar condiciona nossa
A epistemologia tradicional, exer- confiança e desconfiança, nossa va-
cida pelas instituições formais de ensi- loração maior ou menos em relação
ao que proposto como conhecimento
no, busca, em alguma medida, processar
(GEBARA, 2008, p. 32).
e filtrar o conhecimento. Gebara (2008)
nos apresenta o argumento de uma epis-
temologia da vida ordinária, que busca, Portanto, foi a partir das questões
a partir do cotidiano, da vida das pes- de classe social, gênero, raça, etnia, en-
soas comuns, mostrar outras formas de tre outras, que surgiu uma área da epis-
conhecimento tecidas no dia-a-dia. Se- temologia dedicada a compreender a
gundo a autora, a epistemologia da vida forma como o gênero influencia aquelas
ordinária é a epistemologia de todos/as concepções e práticas, e como têm siste-
nós, de todos/as os/as mortais. Entender maticamente colocado em desvantagem
e filtrar os conhecimentos ordinários as mulheres e outros grupos subordina-
produzidos à margem das instituições dos. Por esse motivo, podemos afirmar
formais tem sido, até hoje, uma luta que pesquisar mulheres, numa perspec-
constante para a epistemologia feminis- tiva feminista, é desafiar uma lógica
ta. Eggert (2008) afirma que, por muito dominante de um mundo hierárquico e
tempo, as mulheres foram por elas mes- patriarcal (GEBARA, 2000; 2008).
mas, esquecidas e, por consequência, fo- O olhar epistemológico femi-
ram esquecidas pela Academia. nista, tanto ordinário como cientifico,
Devido às questões por nós le- permite reler a história e, sem dúvida,
vantadas, a pesquisa com mulheres re- os resultados das inúmeras perspecti-
quer algumas abordagens peculiares, vas abertas têm sido dos mais criativos
para além da epistemologia reflexiva ou e instigantes. A epistemologia feminista
científica. Aqui, pensamos e sabemos aponta, sobretudo, como fonte principal,
que não se pode abandonar, de forma al- a experiência. A experiência tecida no
guma, a epistemologia cientifica, entre- cotidiano (PEREIRA, 2009), e, por isso,
tanto, precisamos de outras alternativas. é invisibilizada (EGGERT, 2006; CAS-

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TRO, BECKER, EGGERT, 2010), e por Percebemos que trazer o conhe-


vezes negligenciada (DEIFET, 2002). cimento ateórico, tecido em espaços do
Tanto o feminismo como a Edu- cotidiano, de onde surge a experiência
cação Popular apontarão a importância das mulheres, tem sido uma luta femi-
da experiência, pois ambos a conside- nista desde seu início, sobretudo no que
raram como desencadeadora da produ- tange a trazê-las como conhecimento. A
ção do conhecimento. Por esse motivo, epistemologia feminista vem rompendo
o conceito de experiência, ainda em paradigmas estabelecidos, descobrindo
construção, tem, para o nosso grupo de e redescobrindo a vida e a produção das
pesquisa, um investimento de estudo e mulheres ao longo da história, e de tantas
debate, segundo Joan Scott (1999): outras que hoje fazem histórias e produ-
zem, como as mulheres de nossa pesqui-
Precisamos dar conta dos processos sa. Em alguma medida, tentamos fazer
históricos que, através dos discursos, com que suas produções saiam da invisi-
posicionam sujeitos que produzem bilidade, que se percebam como atuantes
suas experiências. Não são os indi- em sua própria história, porque esta não
víduos que têm experiências, mas os está dada. Como afirma Freire (1999):
sujeitos são constituídos através da
experiência. A experiência torna-se
não a origem de nossa explicação, Gosto de ser homem (sis), de ser gente,
não a evidencia autorizada que fun- porque sei que a minha passagem pelo
damenta o conhecimento, mas sim mundo não é predeterminada, preesta-
aquilo que buscamos explicar, aquilo belecida. Que meu “destino” não é um
sobre o qual se produz conhecimento dado, mas algo que precisa ser feito e
(SCOTT, 1999, p 27). de cuja responsabilidade não posso me
eximir (FREIRE, 1999, p. 58).

Sabemos que mulheres trazem


Essa busca por algo que precisa
uma experiência histórica e cultural dife-
ser construído e que é de nossa respon-
renciada da masculina, uma experiência
sabilidade requer alguns instrumentos,
que, muitas vezes, está às margens. Isso
como afirma Eggert (2009): “buscar ins-
porque, conforme referido anteriormen-
trumentais de outros campos do conhe-
te, essas experiências são do cotidiano
cimento, para alimentar caminhos talvez
ordinário, tecidas em conversas infor-
inusitados; questionar as hierarquias; re-
mais, nos espaços privados e nos espa-
ver as margens onde as mulheres geral-
ços do lar. Entretanto, nessas margens,
mente se encontram, no ato de produzir
encontramos experiências cruciais para a
conhecimento...” (2009, p. 32).
pesquisa com mulheres, o que nos leva a
Para Nancy Pereira (2003 p.
valorizar o conceito de experiência. So-
196), “experiência é entendida como
bre isso Eggert (2010) afirma que:
uma operação interna – expressão do
ser ou da consciência – que projeta uma
A apreensão da realidade é o retorno subjetividade na forma de identidade
ao ateórico, ou seja, o nível da expe-
riência. Nesse sentido, desde a década
essencial, de caráter universal, acessí-
de setenta, as feministas tinham muita vel a todos/as”. Portanto, a experiência
consciência da importância da expe- é desenvolvida na vida cotidiana de mu-
riência na luta pela defesa da liberda- lheres, é parte da subjetividade de cada
de e equidade na vida das mulheres. um/uma, e é essa experiência que será
A questão é transformar a experiência base para a epistemologia feminista. Na
do cotidiano e das lutas em teoria não visão de Deifelt (2002), podemos atri-
só para traduzi-las, mas para abrangê buir a experiência como base, pois o co-
-las (EGGERT, 2010, p. 7). nhecimento feminista é forjado, dentre
outros elementos, no bojo da experiên-

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cia, uma vez que esta produz conheci- as distorções masculinas produzidas
mento. Evidentemente, trata-se de um por diferentes disciplinas, tais como
conhecimento marginalizado durante Biologia, Filosofia, História, Medicina
séculos, pois o conhecimento das mu- e a Ciências Sociais9.
lheres, devido a sua exclusão do mundo Acreditamos que nossa pesquisa
público, foi tecido em espaços priva- corrobora junto aos trabalhos de mui-
dos, logo, espaços tidos como óbvios tas outras feministas – tanto nos mo-
(EGGERT, 2002) e, consequentemente, vimentos sociais como na academia –
invisíveis, como o cotidiano artesanal e que buscam construir novos caminhos
doméstico, o espaço privado. de luta, justiça, respeito, sororidade10
e igualdade entre os sexos, pois, assim
5 Considerações finais como os movimentos sociais, a pesqui-
sa é, sem dúvida, uma forma importante
O movimento proposto por San- de nos descolarmos ao Sul.
tos (2009) de irmos ao Sul e aprender-
mos com e a partir do Sul, sem dúvida, Referências
leva-nos a perceber a diversidade de co-
nhecimento produzido nas “margens”.
CASTRO, Amanda Motta Angelo; AL-
Certamente, os movimentos sociais nas
décadas de 60 e 70 foram determinantes BERTON, M. ; EGGERT, Edla . Nísia
para o deslocamento de irmos ao Sul, Floresta a mulher que ousou desafiar
e para que as margens fossem visibili- sua época: Feminismo e Educação. In:
zadas. A partir desses movimentos, o VIII Congresso Iberoamericano de Ci-
feminismo tem produzido uma crítica ência, Tecnologia e Gênero, 2010, Curi-
contundente ao modo androcêntrico de tiba. Anais do VIII Congresso Ibero-
produção do conhecimento. Além des- americano de Ciência, Tecnologia e
sa crítica, tal movimento tem buscado Gênero. Curitiba: UFTPR, 2010.
funcionar num alternativo de operação
e articulação na esfera do conhecimen-
CASTRO, Amanda Motta Angelo; BE-
to, pois faz (re)leituras e novas leituras
sabendo que a nossa construção como CKER, Márcia. Regina. ; EGGERT, Edla.
mulheres passa pelas nossas próprias Técnica e Arte: Trabalho artesanal produ-
histórias, que são marcadas pela diver- zido por mulheres e sua (in)visibilidade
sidade. São essas experiências do nos- social. In: XI Simpósio Internacional IHU:
so cotidiano que nos permitem realizar O (des)governo biopolítico da vida hu-
nossa “leitura de mundo”, conforme mana, 2010, São Leopoldo: IHU, 2010.
nos ensina Paulo Freire (2006), e, por
meio dessa leitura, há novas descober- DEIFET, Vanda. O corpo e o cosmo. In:
tas, novas mulheres silenciadas através TIBIRI, Macia, MENEZES, Magali e
dos séculos, novos processos que pro-
EGGERT, Elda. As mulheres e a filoso-
pomos visibilizar.
A busca pela valorização das fia. São Leopoldo, UNISINOS, 2002.
epistemologias do Sul é desafiadora,
e acreditamos serem inegáveis as con- DUARTE, Constância Lima. Nísia Flo-
quistas das mulheres no campo cientí- resta: Vida e Obra. Natal: Ufrn, Editora
fico, nos poucos anos de epistemologia universitária, 1995.
feminista. Para João Nunes (2009), a
critica feminista e a busca pelo reco-
nhecimento da epistemologia Feminista 9
No seu artigo intitulado “O Resgate da Epistemologia”, João Nunes apon-
ta importantes estudos realizados por feministas, e como esses estudos
é essencial para o conhecimento cienti- influenciaram a mudança do padrão da “normatividade androcêntrica”.

fico pois a epistemologia feminista trás Sororidade, palavra resgatada pela Teologia Feminista que significa “ir-
10

mãs”. Conforme o Dicionário de teologia feminista Vozes, 1999.

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