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9. Gênero.

“No Princípio era o Dildo, e o Dildo se fez carne: Uma análise dos conceitos de
‘Contrassexualidade’ e ‘Era Farmacopornográfica’ de Paul B. Preciado, através da
interface entre Michel Focault e Judith Butler”.

Autor: Cezar, João Marcelo de Oliveira; joao0905@hotmail.com

Orientador: Junior, Hélio Rebello Cardoso; herebell@hotmail.com

Departamento de História / Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Assis


Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP)

Resumo
O pensamento foucaultiano destaca-se como um dos principais inspiradores da
Teoria Queer, pelo fato de Michel Foucault problematizar o corpo, a sexualidade e o gênero
como dispositivos construídos historicamente, e constituídos de discursos e práticas de
saber-poder. (VENTURA, 2008, p. 64).
O trabalho aqui apresentado se situa a partir da obra de Foucault em associação,
primeiramente por Judith Butler, com a questão da performatividade dos gêneros e agência
dos corpos, de fundamental importância para a Teoria Queer. A partir dessa base, visamos
agregar os conceitos de “contrassexualidade” e “Era farmacopornográfica”, de Paul. B.
Preciado. Este autor toma como base Foucault-Butler para compor um elo de
desenvolvimento conceitual da Teoria Queer (PRECIADO, 2014).
Há ainda um aspecto político a ser destacado a partir da confluência entre a obra de
Foucault e a Teoria Queer. É o problema a respeito do enfrentamento diário das relações de
poder: que resistência opor? É patente, nas investigações de Foucault, a existência de uma
rede de micropoderes que atravessa a toda a estrutura social controlando ou defletindo as
práticas de si (processos de subjetivação). É sob essa perspectiva que o trabalho proposto
aqui desenvolve os conceitos de “Era Farmacopornográfica” e “Contrassexualidade” de
Preciado, para expor de forma clara essa rede de poder que controla as subjetividades das
pessoas, e buscar possíveis formas de resistência a ela.
Em sua obra “Manifesto Contrassexual”, Preciado aponta formas de superação das
dicotomias de gênero e sexo, ou seja, modos que dão possibilidades para os sujeitos-corpos
resistirem a normalização; criticando as categorias fixas de sexo, gênero e sexualidade.
(PRECIADO, 2014).
Palavras chave: Contrassexualidade, Michel Foucault, Teoria Queer.
Introdução tradicionais de gênero e sexuais, pondo em
xeque as dicotomias masculino/feminino,
O termo “Queer”, antes da década de
homem/mulher, heterossexual/homossexual”
1980, era usado como algo pejorativo e para
(LOURO, 2001, p.546), e que iam contra os
inferiorizar pessoas que não se encaixavam
privilégios existentes dentro do movimento,
no padrão heteronormativo, fosse em
entendendo que “o discurso político e teórico
relação aos seus desejos ou modos de se
que produz a representação ‘positiva’ da
comportar e vestir; ou seja, sujeitos que
homossexualidade também exerce, é claro,
desviavam do que se espera dos
um efeito regulador e disciplinador. Ao
comportamentos e desejos “naturais” de um
afirmar uma dada posição-de-sujeito, supõe,
homem ou mulher. Uma tradução livre do
necessariamente, o estabelecimento de
significado de “Queer” para o português
seus contornos, seus limites” (ibdem, p.544),
seria “Viado”, “Bicha”, “Sapatão”, entre
que não dão espaço para figuras como a da
outros. Esse termo, a partir da década de
“bicha afeminada” ou as travestis.
1980, começa a ser ressignificado por parte
do Movimento Homossexual1 de então, Estudos relacionados aos
agora não mais como algo pejorativo, mas trabalhados pela Teoria Queer começaram a
com um caráter de resistência, buscando-se se desenvolver desde os anos 80, como
força e reconhecimento no termo. oposição aos estudos sociológicos
(CARRILLO, 2010). normalizados acerca de gênero e
sexualidade; sendo que a expressão “Queer
Antes de 1980 já haviam debates e
Theory” é usada pela primeira por Teresa de
trabalhos no meio acadêmico acerca do
Lauretis, em 1990, década em que essa
sexo, sexualidade e sujeito, que
linha de pesquisa e debate se consolida de
caminhavam junto ao Movimento
fato (MISKOLCI, 2009, p. 151). De um ponto
Homossexual, porém ele e as discussões
de vista prático, essa teoria é resposta à
que se tinha já não afetavam o status quo da
ordem regulatória dos corpos, das
sociedade, mantendo os privilégios brancos,
sexualidades e das subjetividades
masculinos e a monogamia dentro dos
(PELÚCIO, 2014, p.28). A Teoria Queer tem
próprios grupos minoritários. Depois do surto
como objeto as relações entre sexo e
da AIDS surgem novos agrupamentos
gênero (SPARGO, 2017, p.13). Mais
“preocupados em desafiar as fronteiras
especificamente, ela surge de uma aliança
1 Naquele momento, o atual Movimento LGBT+ era de teorias feministas, pós-estruturalistas e
nomeado de “Movimento Homossexual”.
psicanalíticas, que orientavam a
investigação que já vinha se fazendo sobre A proposta de trabalho aqui
a categoria do sujeito, propondo-se a apresentada se situa a partir da obra de
construir o espaço de desestabilização, Foucault em associação com Judith Butler, a
subversão e emancipação para fenômenos respeito da performatividade dos gêneros e
relacionados com gênero e sexo (SALIH, agência dos corpos, de fundamental
2002, p.19). importância para a Teoria Queer. A partir
dessa base, visamos, com a nova etapa
O pensamento foucaultiano destaca-
agregar os conceitos de
se como um dos principais inspiradores da
“contrassexualidade” e “era
Teoria Queer, pelo fato de Michel Foucault
farmocopornográfica”, de Paul. B. Preciado.
problematizar o corpo, a sexualidade e o
Este autor justamente toma como base
gênero como dispositivos construídos
Foucault-Butler para compor um novo elo de
historicamente, e constituídos de discursos e
desenvolvimento conceitual da Teoria Queer
práticas de saber-poder. Sua obra é
(PRECIADO, 2014).
marcada por três fases: arqueologia,
genealogia e a estética da existência,
divididas em três eixos, respectivamente:
Objetivos
saber, poder e subjetivação. A arqueologia
propôs um modelo de descrição baseado GERAIS: Levantamento bibliográfico
nas transformações dos saberes. A sobre o desenvolvimento da Teoria Queer.
genealogia procurou analisar o surgimento
ESPECÍFICOS:
dos saberes e de que forma, através da
experiência social, os indivíduos eram 1. Complementar os elos que já
levados a reconhecer a si próprios como vinham sendo estabelecidos, em plano de
sujeitos de uma sexualidade, que se atividades anterior, entre Foucault e Butler, a
articulava em um sistema de regras e partir de novas leituras.
coerções relativas a relações de poder. Na
2. Analisar e caracterizar o conceito
terceira fase, estética da existência,
de “Contrassexualidade” de Preciado, assim
Foucault trabalha, a partir da antiguidade
como os instrumentos usados para sua
greco-romana, as práticas de si, que
elaboração, como “contraprodutividade” e
apontam para a possibilidade da produção
“Dildo”.
de si mesmo através de condutas
historicamente situadas. (VENTURA, 2008, 3. Analisar e caracterizar o conceito
p. 64) de “Era Farmacopornográfica” de Preciado,
assim como possíveis instrumentos de
micropoder que existem para mantê-la,
como é o caso do “farmacopoder”.

4. Desenvolver um quadro que Resultados e Discussão


relacione essa tríade trabalhada Foucault-
A proposta do trabalho aqui
Butler-Preciado, para melhor compreensão
apresentado se situa a partir da obra de
do desenvolvimento da Teoria Queer.
Foucault em associação com Judith Butler, a
respeito da performatividade dos gêneros e
agência dos corpos, de fundamental
Materiais e Métodos
importância para a Teoria Queer. Em sua
• Estudo da Teoria Queer através de obra, Butler põe em dúvida a categoria do
seus principais teóricos e influenciadores, “sujeito” - ao assinalar que o gênero é
por meio de livros dos mesmos, tais como performativo -. Além disso, afirma que há
“Cuerpos que importan” (2018) e “Deshacer modos de “construir” a nossa identidade, por
el Género” (2018) de Judith Butler, além de isso o sujeito dispõe de “performatividade”
“Manifesto Contrassexual” (2014) e “Testo quanto à construção do si. Dizer que o
Junkie” (2018) de Preciado. sujeito é constituído não significa que está
determinado; ao contrário, a sua condição
• Estudo dos conceitos formuladas
de constituído é mesmo uma pré-condição
por Michel Foucault no que se refere as
para a agência, pois o que informa uma
influências do mesmo em relação aos
reconfiguração de relações culturais e
pensamentos de Butler e Preciado, atuantes
políticas é o fato de que existe a
no desenvolvimento de suas teorias, através
possibilidade de resistir, ou seja, deve-se
de livros do autor, tais como “Ordem do
questionar as condições da construção do
Discurso” (1996) e “Microfísica do Poder”
sujeito, reposicionando o agente dentro das
(2000).
matrizes de poder.
• Descrição e categorização de
Abre-se então, do ponto de vista
Preciado dentro dos quadros da Teoria
dessa formulação foucaultiana que a Teoria
Queer, seus principais influenciadores, e a
Queer retoma, a possibilidade de questionar
análise de seus conceitos de
a própria definição da identidade que serve
Contrassexualidade e Era
de base para a ação do sujeito através de
Farmacopornográfica, através de seus dois
sua sexualidade. Em sua obra “Problemas
livros já citados no primeiro tópico.
de gênero”, Butler argumenta que assim
• Desenvolvimento de um quadro como acontece com o gênero, não há
teórico que aponte os entrecruzamentos da corpos antes da inscrição cultural, e o sexo,
tríade de autores trabalhada. assim como o gênero, pode ser
performativamente reinscrito de maneiras como que encurralado por um discurso que
que acentuem seu caráter construído. Além pretende não lhe permitir obscuridade nem
disso, o voltar-se sobre si do gênero nas sossego”. (ibdem, p.22).
relações de poder que o estabelecem,
Segundo Foucault, cria-se
mostra Foucault (2017, p.33), permite
mecanismos de poder, na modernidade, que
pensar que existem diferentes maneiras de
visam colocar o sexo em discussão, torna-lo
“se conduzir” moralmente, diferentes
público. E esse discurso moderno sobre o
maneiras, para o indivíduo que age, de
sexo e a sexualidade, que já não é só
operar não simplesmente como agente, mas
religioso, mas também científico, não tem
como sujeito moral dessa ação.
como intenção a repressão, mas o controle
Foucault (2017) afirma, em sua fase e a classificação. Nesse momento, “cumpre
genealógica, que a sexualidade é um falar do sexo como de uma coisa que não se
“Dispositivo Histórico", ou seja, ela é uma deve simplesmente condenar ou tolerar,
relação de poder, uma vez que se constitui, mas gerir, inserir em sistemas de utilidades,
historicamente, a partir de múltiplos regular para o bem de todos, fazer funcionar
discursos sobre o sexo: discursos que segundo um padrão ótimo” (ibidem, p.27),
regulam, que normatizam, que instauram controlando as chamadas “práticas de si”, ou
saberes, que produzem “verdades”. O seja, os modos como as pessoas subjetivam
dispositivo “sexualidade” é a rede de a si mesmas, seus comportamentos,
relações de poder-saber que se estabelece desejos, paixões, vestimentas e etc.
entre esses elementos objetivando
O poder, portanto, irá criar
processos de subjetivação (1993, p.244).
tecnologias que gerenciam a vida das
Em seus trabalhos, Michel Foucault pessoas, produzindo características sociais,
discorre sobre o conceito da “Hipótese formando saberes, induzindo prazeres e
Repressiva”, que busca responder à questão produzindo discursos. Essa sociedade
“A repressão do sexo é mesmo uma moderna, em que o poder se mostra dessa
evidência?”, sendo que, conforme seus forma, é nomeada por Foucault de
escritos, desde o século XVII o que existe é “Sociedade Disciplinar”, que maximiza o
uma “verdadeira explosão discursiva” controle dos indivíduos e cria o chamado
(FOUCUALT, 2017, p.19). Já não se busca “Biopoder”, que será responsável por fazer
ocultar, mas fazer falar, e essa característica uma “gestão calculista da vida” e
está diretamente relacionada a cultura da “administração dos corpos” das pessoas,
confissão, que é fortalecida com a através de
contrarreforma. “O sexo é açambarcado e
escolas, colégios, casernas, suscitou, como elemento
ateliês; aparecendo, também, no especulativo necessário ao seu
terreno das práticas políticas e funcionamento, a noção de sexo.
observações econômicas, dos Não acreditar que dizendo-se
problemas de natalidade, sim ao sexo se está dizendo não
longevidade, saúde pública, ao poder; ao contrário, se está
habitação e imigração, explosão; seguindo a linha do dispositivo
portanto de técnicas diversas e geral de sexualidade (ibidem,
numeras para obterem a p.171)
sujeição dos corpos e o controle
É nesse sentido que se pode afirmar
das populações. (ibidem, p.151)
que ao se praticar o sexo homossexual, ou
Tendo em mente que a sexualidade “se assumir” enquanto gay/lésbica, não se
e o gênero são tecnologias/dispositivos que está caminhando contra o poder, pelo
fazem parte da rede do “Biopoder”, é contrário, ele é quem incentiva a confissão e
imprescindível apontar a relevância desses a categorização, ele é quem ressalta
para a manutenção do poder existente na características. É com tal olhar que esse
modernidade e pós-modernidade, de manter trabalho insere a Teoria Queer no debate,
as pessoas vivas, já que "estamos em uma entendendo que a mesma irá apontar que
sociedade do ‘sexo’, ou melhor, ‘de ambos os polos, heterossexual e
sexualidade’: Os mecanismos do poder se homossexual, se complementam, e
dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz necessitam um do outro para sua
proliferar, ao que reforça a espécie, seu permanência, o que significa que a
vigor, sua capacidade de dominar, ou sua homossexualidade é produzida
aptidão para ser utilizada” (ibidem, p.160). discursivamente por meio das normas
sociais para legitimar a heterossexualidade,
Para Foucault, o sexo é um
demarcando assim os “corpos que
mecanismo criado pela instituição histórica
importam” (LOURO, 2001, p.549). Só é
que é a sexualidade, justamente para
possível criar os sujeitos “normais e
legitima-la no carnal, ou seja, transformar o
naturais, por meio da produção de outros
que era discurso em algo visível, portanto,
perversos ou patológicos” (MISKOLCI, 2009,
não podemos
p.173).
situar o sexo do lado do real e a
sexualidade do lado das ideias Judith Butler aponta em “Problemas
confusas e ilusões, a de Gênero” que o gênero é socialmente
sexualidade é uma figura construído, assim como o sexo e o próprio
histórica muito real, e foi ela que corpo, que existem nas marcas do gênero. E
essas categorias são construídas dentro de sin esos actos, no habría género alguno”2
uma lógica binária, homem/mulher, (GROS, 2010, p.251), dessa forma
hetero/homo, ativo/passivo, para suprimir “a
a “nomeação do sexo é um ato
multiplicidade subversiva de uma
de dominação e coerção, um ato
sexualidade que rompe as hegemonias
performativo institucionalizado
heterossexual” (BUTLER, 2018 p.47). Dessa que cria e legisla a realidade
forma, há a manutenção do que Monique social pela exigência de uma
Witting irá nomear de “Heterossexualidade construção discursiva/perceptiva
Compulsória”, que cria uma ideia metafísica dos corpos, segundo os
de gênero e desejo, de modo que todo ser princípios da diferença sexual.

humano que nasce com um pênis, é Assim, conclui Witting, “somos


obrigados, em nossos corpos e
necessariamente um “homem” que se sente
em nossas mentes, a
atraído sexualmente por “mulheres”.
corresponder, traço por traço, à
Nesse sentido, Butler aponta que os ideia de natureza que foi

corpos são entendidos como submissos aos estabelecida para nós (..)
‘homens’ e ‘mulheres’ são
gêneros, como se fossem passivos, prontos
categorias políticas, e não fatos
a serem inscritos por algo metafísico. Se
naturais”. (BUTLER, 2018,
venho ao mundo dentro da categoria
p.201)
“Mulher”, meu corpo necessariamente deve
corresponder às normas sociais que Ao se entender que os gêneros,
caminham junto a essa categoria, nos sexualidades, sexos e corpos são
modos de se vestir, agir ou desejar. Nesse performativos, e construídos por meio de um
sentido, a autora afirma que os gêneros são discurso, e que àqueles considerados
vistos como algo metafísico, porém, na “anormais”, como os homossexuais, também
realidade, não passam de construtos sociais são criação do mesmo poder que formula os
criados nas malhas do poder para atender “normais”, heterossexuais, a questão que
ao mesmo, de modo a serem performativos, começa a existir é “Como escapar desse
como em um teatro, em que os movimentos, poder? Como subverte-lo?”, e segundo
gestos, comportamentos e “los variados Butler, a resposta dessas questões está na
actos de género crean la idea de género, y capacidade de agência que possuímos
enquanto corpos, já que, como dizia
Foucault, “contra o dispositivo de

2Tradução para o português: “os variados atos de


gênero criam a ideia de gênero, e sem esses atos não
haveria gênero algum”.
sexualidade, o ponto de apoio do contra- alguien que no puede ser sin hacer,
ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os entonces las condiciones de mi hacer son,
corpos e os prazeres” (2017, p.171), só em parte, las condiciones de mi existencia”3
assim que se pode ter um papel de (BUTLER, 2018, p.16).
resistência frente as tecnologias do poder.
As formas de resistência à rede de
Butler coloca em questão a ideia de saber-poder se reconhecem como práticas
“Agência”, ao apontar que os corpos não de liberdade pelas quais o sujeito torna-se
são tabulas vazias prontas a serem ativo quanto à construção de si. Resistir nas
preenchidas de forma extremamente malhas de poder, portanto, também implica
passiva, pelos gêneros e suas construção de subjetividades como formas
performatividades, mas que podem ser de resistência imediata às relações de
agentes de ações que subvertam os ideais poder.
que lhe são impostos, por meio de atos,
Pensando essas formas de
também performáticos e teatrais, que façam
resistência frente a rede de saber-poder, e
uma imitação do “original”, um exemplo
utilizando conceitos de corpo, dispositivos
disso são as travestis e drags, que ao
sexuais, resistências e práticas de si, de
parodiar o ideal “natural”, revelam que o
Michel Foucault, além dos de
próprio “original é uma imitação” (BUTLER,
performatividade, agência e a ideia do
2018, p.238), desnaturalizando e imitando o
“Deshacer el Género” (BUTLER, 2018), o
mito.
trabalho aqui desenvolvido entrará em nova
Para a autora, “se a subversão for etapa, a partir do conceito de
possível, será uma subversão a partir de “contrassexualidade” e da ideia de estarmos
dentro dos termos da lei, por meio das vivendo em uma “Era Farmacopornográfica”,
possibilidades que surgem quando ela se desenvolvidos pelo teórico Paul B. Preciado
vira contra si mesma e gera metamorfoses (2018). A contrassexualidade, colocando-se
inesperadas” (BUTLER, 2018, p.164). Com contra as formas de subjetivação que são
esse apontamento pode-se notar que impostas aos corpos, visa possibilidades de
mesmo estando submetidos ao poder, resistência e ressignificação dos corpos. A
mostrar o quanto as categorias criadas por contrassexualidade, que se baseia em uma
ele são fantasiosas é uma possibilidade, se “contraprodutividade” do ponto de vista das
utilizando, inclusive, das mesmas, subjetividades e corpos normalizados,
performando-as de maneira subversiva portanto é um conceito que provém
através da capacidade de agência que
3Tradução para o português: “se sou alguém que não
possuímos enquanto corpos, já que “si soy pode ser sem agir, então as condições do meu agir
são, em parte, as condições de minha existência”.
indiretamente de Michel “contrassexualidade”, já que ele ultrapassa o
Foucault, para quem a forma pênis e reverte a ideia de “natureza”,
mais eficaz de resistência à mostrando a plasticidade do corpo. Desse
produção disciplinar da
modo, Preciado aponta que o Dildo, que
sexualidade em nossas
surge como um mero suplemento do corpo,
sociedades liberais não é a luta
acaba sendo a condição de possibilidade do
contra a proibição(...), e sim a
original, e essa mesma lógica “prova que os
contraprodutividade, isto é, a
produção de formas de prazer- termos do sistema heterossexual
saber alternativas à sexualidade masculino/feminino, ativo/passivo não
moderna. (PRECIADO, 2014, passam de elementos entre muitos outros
p.22) de um sistema arbitrário de significação”
(PRECIADO, 2014, p.84). Essa indiferença
Em sua obra “Manifesto
entre o natural e o artificial constitui a
Contrassexual”, Preciado aponta a
“contrassexualidade”.
contrassexualidade como uma forma de
superação das dicotomias de gênero e sexo, A contrassexualidade “não é a
ou seja, o modo que dá possibilidade para criação de uma nova natureza, pelo
os sujeitos-corpos resistirem a contrário, é mais o fim da Natureza como
normalização, em crítica às categorias fixas ordem que legitima a sujeição de certos
de sexo, gênero e sexualidade. Para ele, corpos a outros” (PRECIADO, 2014, p.21).
essas categorias fixas são dispositivos Buscando, para tal deslegitimação, as falhas
inscritos em um sistema sociopolítico, que existentes dentro da própria ideia de
se utiliza de instrumentos binários - “Natural” que nos é imposta, margens que
homem/mulher, heterossexual/homossexual, ela possui e que dão poder aos desvios e
passivo/ativo - para manter os corpos derivações. É o caso do Dildo, criado dentro
sujeitados. (PRECIADO, 2014). e por essa estrutura, mas que, segundo
Preciado, acaba por reverte-la.
Para fazer essa “destruição” da
heteronormatividade, que cunha os corpos, Em relação a “Era” ou “Regime
e da “Heterometafísica” (LOBO, 2016, p.79), Farmacopornográfico”, Preciado aponta que
que cria ideais naturais de Homem/Mulher, vivemos em um momento “marcado pela
Preciado irá se utilizar de um objeto- transformação do ‘sexo’, do ‘gênero’, da
experimento, o Dildo. O conceito de “Dildo”, ‘sexualidade’, da ‘identidade sexual’ e do
assim como o de “contraprodutividade”, ‘prazer’ em objetos de gestão política da
também é usado como instrumento para se vida” (PRECIADO, 2018, p. 27). Gestão que
entender a estrutura da se fortalece a partir do século XX, segundo o
autor, e é caracterizada pelo poder exercido azul; degolo o touro no

pela indústria cientifico-farmacêutica e pornô matadouro; apanho os testículos

de modificar características - sexo, gênero e do prisioneiro condenado a


morte. (...) Estabeleço um
sexualidade – subjetivas, através de
contrato no qual todo o meu
mecanismos que afetam, diretamente, os
desejo é alimentado pelas – e
corpos das pessoas.
retroativamente as alimenta -

Esses mecanismos que modificam cadeias globais que transformam


células vivas em capital.
e/ou (re)produzem os corpos são, por
(PRECIADO, 2018, p.176)
exemplo, o uso de hormônios, pílulas
anticoncepcionais, assim como a maior Em seu trabalho, Texto Junkie
produção de filmes pornôs, segundo (2018), Preciado aponta que na Era
Preciado. De modo que, se para legitimar Farmacopornográfica “o biopoder não se
sua identidade uma pessoa toma hormônios, infiltra a partir do exterior. Ele já reside
ela dá poder de controle às indústrias dentro” (p. 223) de nossos próprios corpos
cientifico-farmacêuticas sobre si, adictos a hormônios, pílulas, ou qualquer
colaborando com a manutenção da “Era mecanismo que sirva para que o “Regime
Farmacopornográfica”. Farmacopornográfico” nos (re)produza.
Nessa Era, nossos prazeres, desejos e
O “Regime Farmacopornográfico” é
corpos já não são propriedade de Deus, do
uma estrutura que necessita - além dos
Estado ou privadas, mas sim “das grandes
mecanismos citados - de instrumentos para
multinacionais farmacopornográficas” (p.
se manter, tais como o representado a partir
293).
do conceito de “farmacopoder”, que se
refere as redes estabelecidas pela indústria Nesse sentido, é possível apontar
cientifico-farmacêutica; micropoder que ainda que Preciado vai além da
molda corpos materialmente – “performatividade de gênero” trabalhada por
biologicamente - e que faz esses corpos se Judith Butler, para o autor em questão o
inserirem em uma rede maior de controle e gênero e toda a construção da subjetividade
capitalização, muitas vezes imperceptível. É não se trata apenas de uma repetição
o caso do uso de hormônios, que para teatral, não está ligado somente com o
serem comercializados e usados são campo do discurso, mas sim, diretamente
extraídos de outros corpos, e relacionado com processos de
incorporações do sexo e do gênero em
cada vez que me aplico uma
dose de testosterona, aceito
nosso corpo, de forma que existem técnicas

esse pacto. Eu mato a baleia- - como é o caso da testosterona – usadas


para “moldar o gênero”, indo além daquilo das relações de poder (SALIH, 2002, p.88).
que foi trabalhado em “Problemas de E esse corpo, para Butler, não é uma
Gênero” (2018), por Butler. “facticidade muda” (2003, p.129), ou seja,
não é um fato da natureza. Assim como o
gênero ele é atravessado por discursos, isto
Conclusões é, o sexo e o gênero são construções
culturais “fantasmáticas” que demarcam e
Com as interpretações levantadas
definem o corpo (SALIH, 2002, p. 72). No
aqui é possível apontar que a sexualidade é,
caso do dispositivo da sexualidade, os
para Foucault, uma tecnologia, criada como
pontos de resistência encontram-se nos
ferramenta do poder, para manter os corpos
corpos e nos prazeres.
dóceis e uteis ao mesmo. Ferramenta essa
que se utiliza de sexualidades, gêneros e É através desse ato de agência dos
sexos para moldar determinados corpos, corpos, que existe a possibilidade não de
faze-los praticarem apenas aquilo que lhes é acabar com o poder, mas de subverte-lo
criado e imposto discursivamente. dentro de suas próprias malhas, mostrando
através de uma imitação que o próprio é um
Segundo Preciado, essas
mito, e não algo natural e ontológico como o
ferramentas se utilizam de técnicas para
discurso tenta, a todo momento, reforçar. E
moldar os corpos e subjetividades, técnicas
essa técnica de imitar o que é tido como
essas que, na “Era Farmacopornográfica”
ontológico para mostrar que essa “verdade”
são criadas e controladas pelas indústrias
não passa de um mito, também é usada
pornôs e farmacêuticas. É o caso do uso de
dentro da “contrassexualidade” de Preciado.
hormônios, como a testosterona, que pode
transcrever uma pessoa para um gênero ou
outro, submetendo-a a uma tecnologia que
Referências Bibliográficas
está articulada a uma rede de comércio
imensa e poderosa. BUTLER, Judith. Deshacer el
Género. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
Entendendo, então, que a
Paidós, 2018
sexualidade é uma organização
historicamente específica do poder, do BUTLER, Judith. Problemas de
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gênero que constituem a “agência” do Brasileira, 2018.
sujeito no interior da lei dependem do corpo,
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Civilizar 16 (30): 245-260, enero-junio de orientações pósseculares. Autêntica, 2017.
2016.
VENTURA, Rodrigo Cardoso. A
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estética da existência: Foucault e a
estranho – Ensaios sobre sexualidade e Psicanálise. Cógito, 2008.
teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.
Agradecimentos
LOURO, Guacira Lopes. TEORIA
QUEER - UMA POLÍTICA PÓS Antes de qualquer outro nome,
IDENTITÁRIA PARA A EDUCAÇÃO. acontecimento, razão ou causa, agradeço a
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. minha mãe, Célia. Sem ela nada disso seria
9, n. 2, p. 541, jan. 2001. ISSN 1806-9584. possível. É através de sua força que hoje
Disponível em: posso ser e estar, por isso, antes de tudo,
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/articl ela.
e/view/S0104026X2001000200012>.
Agradeço também a minha colega
Acesso em: 08 maio 2019.
Roane Hildebrand Ferreira, que começou
essa pesquisa enquanto ainda estava na
graduação, abrindo espaço e caminho para E por fim, às minhas amigas e
que eu pudesse dar continuidade. Obrigado amigos, que me fornecem uma grande
também por confiar a mim tal empreitada. quantidade de amor para que eu continue, e
continue, apesar de qualquer coisa: Ariadne,
Ao meu orientador Hélio Rebello,
Giovana, Letícia e Igor.
pela paciência e carinho.

Ao intercâmbio que pude fazer à


Argentina em 2018, que me mostrou o que Financiamento
de fato vale a pena, em todos os sentidos.
Pesquisa financiada pelo PIBIC
Com ele, aos meus amores Rafael,
(Porgrama Institucional de Bolsas de
Leonardo e Pedro.
Iniciação Cíentifica e Tecnologica) do CNPq.

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