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Crianças Portuguesas
Introdução ..........................................................................................................................3
Bibliografia ......................................................................................................................18
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Resumo
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Introdução
A reflexão aqui proposta, ainda que não aborde questões de natureza pedagógica,
sugere, através do contraponto em relação ao comportamento adulto quando do consumo
de conteúdos televisivos como as novelas brasileiras, que a linguagem, enquanto
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componente cultural, estará sempre sujeita a influências e modificações quando
contrapostas a outras culturas. Além disso, identifica que existe um contraste entre
crianças e adultos, na medida em que Luccas Neto, enquanto gera polêmica ao ter seus
conteúdos consumidos por crianças portuguesas através do Youtube, é também cara de
uma grande rede de supermercados do país e, com isso, atinge também o público adulto.
Neste sentido, a questão central deste artigo é analisar os factos sob a ótica das
Teorias da Cultura e evidenciar as relações que existem entre culturas e tecnologias,
sobretudo no que tange a disseminação de conteúdos na plataforma do Youtube. Portanto,
foram utilizados como base bibliográfica os autores Zygmunt Bauman e Piérre Lévy para
pensar os conceitos de cultura, cibercultura e ciberespaço. Além disso este trabalho se
apoia nos conceitos de Geertz sobre o impacto da produção cultural na humanidade, de
Ana Maria Rodrigues sobre os conceitos de tecnologia, de Thomson e Lambert sobre os
influencers, de Tapscott sobre o fenômeno da “viralização” e de Hall sobre os elementos
de desestabilização da cultura
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1. Youtubers brasileiros viram notícia em Portugal
O jornal descreve que são muitas as crianças que assistem aos conteúdos de
Luccas Neto no Youtube. Muitas delas na fase em que começam a falar. Os pais, ao
mesmo tempo em que permitem que seus filhos acedam essas tecnologias também
expressam medo de que as crianças adotem uma linguagem diferente daquela falada na
cultura portuguesa. Tal preocupação, segundo o artigo, levou alguns pais a encaminhar
seus filhos para terapias da fala pois acreditam que a utilização de termos “brasileiros” na
linguagem portuguesa pode ser nociva para as crianças. Os relatos chegam a comparar o
uso de termos “brasileiros” como uma espécie vício, o que justificaria uma intervenção
profissional de terapeutas.
É possível capturar ainda outros reflexos de caráter cultural. Este parece ser o caso
de uma mãe que relata ter sido interpelada pela professora do filho no sentido de saber se
o pai ou a mãe seriam brasileiros, diante do comportamento da criança em sala de aula.
De outro modo, o texto traz a opinião de especialistas que dizem haver correlação com
outros eventos do passado e que consideram que a abordagem atual do assunto é, por
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vezes, dramatizada. Segundo eles, os desdobramentos são semelhantes ao que outrora foi
visto com a leitura de banda desenhada e com o consumo das novelas brasileiras.
O facto é que o texto é polêmico e controverso. O seu conteúdo foi capaz suscitar,
nos comentários analisados, a prática de preconceito e de intolerância cultural. E se há
preconceitos, na sua etimologia, há necessariamente um determinado choque cultural,
perfeitamente descrito no texto e facilmente identificável nos comentários. Para além
disso, a postura e a estratégia de Luccas Neto, que recentemente divulgou que passará a
dobrar as suas produções para o português europeu, abrem espaço para inferir que existe
receio em perder audiência no país ou, pelo menos, uma preocupação em se adequar ao
mercado que deseja explorar.
São muitos os autores que, ao logo dos anos, buscaram definir o termo “Cultura”.
Por outro lado, bem menos são os que definem “Tecnologia”. Para pensar a influência
dos conteúdos do Youtube na linguagem de crianças portuguesas, é evidente a
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necessidade de buscar definições de tecnologia – que parece ser bem mais abrangente do
que simplesmente computadores, tablets e smartphones.
Assim, o termo tecnologia deriva da junção de techné e logus, que significa razão.
Ao trocar isto para o idioma português, resulta em qualquer coisa como a razão do saber
fazer (Rodrigues, 2001), e/ou o estudo da técnica, da atividade de modificar, do
transformar (Veraszto, 2004; Simon et al, 2004a). Nos diferentes momentos da história,
a tecnologia sempre foi ligada às técnicas, ao trabalho e à produção, mas muito poucas
vezes diretamente ligada à cultura, mesmo que seja esta uma pedra basilar de muitas
sociedades. Desta forma, a relação entre cultura e tecnologia tende a ser bem mais do que
óbvia, razão pela qual seja ignorada por vários autores. Nos últimos anos, após a
revolução industrial e a facilitação do acesso às novas invenções, as sociedades passaram
a ter acesso aos mais diversos dispositivos tecnológicos. Com a redução nos custos e
sendo a tecnologia um excelente canalizador dos modernos padrões de consumo, ocorreu
também um significativo aumento do número de pessoas que podem ter acesso a esses
dispositivos.
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compreendem os seus contextos e se relacionam com o mundo. Contudo há quem pense
que as duas coisas não se direcionem para o mesmo lado. Tanto a influência da tecnologia
nas culturas como a interferência do contexto cultural nos avanços da tecnologia mostram
como esta relação está umbilicalmente ligada. Por esse motivo, há que mostrar como a
tecnologia e a cultura estão numa espécie de ciclo. O contexto tecnológico incide no
desenvolvimento das relações humanas assim como a cultura gera esse contexto
tecnológico.
Não se pode esquecer que nas últimas décadas a forma como as pessoas se
relacionam também tem se alterado, assim como as expectativas no mercado de trabalho,
o modo de consumo e a atitude das empresas. Fatores estes que permitem perceber como
as tecnologias e o seu contexto podem mudar uma cultura e, potencialmente, as próprias
pessoas. Em relação à arte, é possível notar que os negócios culturais tiveram que se
adaptar à indústria. Acabaram por serem ameaçados pelas inovações tecnológicas, graças
à emergente Internet e consequente disponibilização de conteúdo gratuito ou pago, mas
sem intermediação de uma gravadora, no caso da indústria musical.
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dramática, oferecer conteúdo emocional, utilizar a voz para dar sentido às imagens,
utilizar banda sonora apropriada, conciliar áudio e vídeo e, finalmente, gerir ritmos da
história. Nesse aspeto, o caso apresentado pela reportagem do Jornal Diário de Notícias
se encaixa perfeitamente. Mas o que isso poderia dizer em termos culturais? Como forma
de ter acesso aos conteúdos de forma mais fácil e ágil, as novas tecnologias instalaram
uma mentalidade de gratuidade. Como é óbvio, a indústria teve de inovar e assim
nasceram os anúncios que suportavam estas produções artísticas.
Lévy (1999) definiu o ciberespaço como “o novo meio de comunicação que surge
da interconexão mundial dos computadores”. Segundo o autor, o termo abrange não só a
estrutura física necessária para esse novo meio de comunicação, como também todos os
outros elementos que o constituem – nomeadamente informações e usuários. No que se
refere ao conceito de cibercultura, o pesquisador explica que a definição diz respeito ao
“conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de
pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do
ciberespaço” (Lévy, p.17, 1999).
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publicam nos seus próprios canais no Youtube e que, a partir do seu perfil pessoal em uma
rede social, viralizam ao compartilhar o seu dia a dia com seguidores. Aliás, o Youtube é
uma ferramenta capaz de tornar um desconhecido em celebridade, com a simples
viralização de um conteúdo (TAPSCOTT 2007).
“Esse novo ator da cibercultura nasce das relações estabelecidas pelo contexto
digital; é cidadão desse território; sua produção está estabelecida nele; interage
com usuários que são bits – estes também descorporizados e mediados pela
linguagem eletrônica –; ganha visibilidade multitudinária em uma mídia massiva
através de relatos que, mesmo podendo perpassar referenciais distintos, acabam
se construindo em cima da imagem unificada do usuário autor do discurso, que
se torna famoso nas redes”
De acordo com as autoras, esse é um fenômeno que promove uma rutura e que
“retira o monopólio da fama das mãos de uma elite nobre e artística e a democratiza, por
meio das novas técnicas de comunicação operadas pela web, possibilitando a celebridade
do homem comum em sua ordinariedade habitual” (Vasconcellos e Zanetti, p. 1, 2017).
Estas são noções que ajudam a entender a projeção de Luccas Neto, um jovem que criou
o seu canal no Youtube em 2014 e, após se envolver em polémicas e transitar por
abordagens de assuntos diversos, encontrou na temática infantil o caminho para atingir
bilhões de visualizações e ter, atualmente, mais de 38 milhões de pessoas inscritas em seu
canal.
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de 2022. O youtuber alcançou uma capilaridade que extrapolou as fronteiras do Brasil e
hoje está inserido na cibercultura de modo que é capaz de influenciar comportamentos,
despertar desejos e lançar tendências. Segundo Recuero (2017), “o influenciador é uma
pessoa que tem uma posição de certo privilégio na rede. Ele pode ter uma posição que
está conectando vários grupos, onde ele é muito importante para um grupo”.
De acordo com Neira e Nunes, o movimento humano pode também ser entendido
como forma de expressão, o que o torna portador de significados e meio privilegiado para
expressar sentimentos, emoções e toda a produção cultural de um determinado grupo
social. Neste sentido, abstraindo a qualidade e sublinhando a natureza do conteúdo, é
possível inferir que os youtubers, como mecanismo de mudança em padrões de
comunicação e linguagem, se tornam agentes culturais e reforçam a ideia de que a língua
é elemento cultural. Todavia, pela forma como surgiu a reportagem aqui analisada, é
possível seguir o entendimento de que tais fenômenos sejam elementos de
desestabilização da cultura (Hall, 2003).
Sob o viés colonialista, apontado nos comentários ao texto como sendo uma “via
de mão dupla”, destaca-se o pensamento de Carl Jung (1979), em que as crenças, os
desejos, o poder e a aprovação social são influenciados por arquétipos que estão nas
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coletividades, consciente e inconscientemente. A “psique coletiva” é constituída por um
fundo de imagens com carácter histórico. Como imagens e representações simbólicas, os
arquétipos são restituídos à vida por intermédio de estímulos, exteriores e interiores.
Assim, considerando estes eventos como uma espécie de choque cultural, fica
clara a influência que os influencers, que como o próprio nome já diz, são capazes de
provocar no contexto da linguagem enquanto elemento da cultura. Da mesma forma e,
por via de consequência, as repercussões causadas pela reportagem podem coincidir com
o conceito de etnocentrismo – o ideal formado na Europa do século XVIII que
representava a perfeição humana, que outras partes do mundo gostariam de imitar.
Esse recorte não deixa dúvidas sobre a forma como determinados pais veem a
influência do youtuber Luccas Neto sobre a linguagem de seus filhos. Depreende-se que,
para estes pais, a comunicação, enquanto fala, utilizando termos brasileiros, “só o
prejudica”. Tratar este fenômeno cultural como vício denota a ideia de que, para estes
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pais portugueses, reproduzir expressões brasileiras é um mau hábito, passível de
tratamento. Ressalvadas as proporções, é como se a terapia da fala funcionasse como
ferramenta de resgate, como ocorre com alcoolistas e adictos de todo gênero.
Como consequência, esse papel de formador acaba por ser transferido ao cidadão
comum que encontra em ferramentas como o Youtube o “canteiro” ideal para produzir
seus conteúdos, multiplicar seus seguidores e atingir seu público-alvo – em sua maioria
sem qualquer respaldo intelectual e científico. Com efeito, aos intelectuais cabe uma
função quase que residual, no sentido de interpretar esses movimentos, mas não mais
podendo evitá-los. Bauman é, portanto, um autor que aborda este tema da desvalorização
do trabalho intelectual e, bem antes do surgimento do Youtube, já previa que tal fenômeno
pudesse acontecer.
Nesse caminho de aparente ausência de bom senso, agem os pais quando propõem
medidas acauteladoras ao considerar os trejeitos linguísticos de seus filhos como se vício
fosse. A eventual e despretensiosa falta de qualidade dos conteúdos dos youtubers,
enquanto ação, ocasiona nos pais reações também sem qualidade, cabendo aos
intelectuais, de fora, analisar estes fenômenos, classificando-os com base nas teorias
científicas da cultura.
Essa modernidade descrita por Bauman (2000) tende a ser leve, líquida e fluida,
onde a principal característica é justamente a mudança e o dinamismo, que afeta a vida
de todos. Esses efeitos, por sua vez, ocasionam um vórtice de sentimentos e emoções que
acabam sendo impulsionados pela globalização. Justamente por este caráter fluido, a
teoria de Bauman atenua estes fenômenos, dando-lhes menos importância do que de fato
aparentam ter, já que na modernidade líquida nada é feito para durar e tudo é passageiro,
sejam eles sentimentos, emoções ou planos de vida.
É possível perceber este viés no texto do Diário de Notícias, quando da oitiva dos
especialistas em relação ao assunto: "Gosto sempre de relativizar um pouco, face a estes
contextos", sublinha a professora, embora - até como mãe - registe a preocupação com
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"os tempos de exposição, sobretudo em idades muito tenras. Porque no caso dos
adolescentes é temporário, passa muito rapidamente, mudam para outras coisas em pouco
tempo. Agora, nos mais pequenos, quando começam a ser consumos já muito viciantes,
é complicado".
Pelo texto, em que pese constar a preocupação com a exposição excessiva às telas,
que poderia resultar em vício, os especialistas defendem que em pouco tempo esses
comportamentos tendem a desaparecer, levando a crer que não se trata de um fenômeno
de grande preocupação, senão no tempo em que ocorrem, ou ocorreram.
Mesmo assim, se há um risco residual o mesmo está bem mais ligado à qualidade
de seus conteúdos do que propriamente aos efeitos linguísticos que provocou. Da mesma
sorte, deixando de existir as manifestações em “brasileiro” por parte das crianças, também
é sinal de que a “modernidade líquida” descrita por Bauman está por agir também no
gerador de conteúdos do Youtube, reforçando a tese do etnocentrismo.
Considerações Finais
Assim, o estudo serviu como mais-valia, não só para nos envolver com a
bibliografia, mas também para perceber as correlações que esta guarda entre si. À luz do
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que preconizaram os estudos de Bauman, tão efémero é o surgimento de novas
tecnologias quanto o esquecimento dos assuntos que por vezes acirram ânimos, causam
dissabores, elevam medos e sentimentos menos auspiciosos, frutos do choque cultural.
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Bibliografia
Aseff, Marlova (2003). Resenha sobre o livro Em busca da língua perfeita de Umberto
Eco. Cadernos de Tradução.
Moraes, M.B; Lobosco, A.; Teixeira, V.L. (2013) A influência das mídias sociais na
estratégia de marketing das empresas. Anais do Convibra Administração. Congresso Virtual
Brasileiro Administração.
Neira, M.; Nunes, M. (2007). Linguagem e cultura: subsídios para uma reflexão sobre a
educação do corpo. Caligrama (São Paulo. Online), 3(3).
Rodrigues, A. M. M. (2001). Por uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Cortez, 2001:
75-129.
Veraszto, Estéfano & Silva, Dirceu & Miranda, Nonato & Simon, Fernanda. (2008).
Tecnologia: Buscando uma definição para o conceito Technology: Looking for a definition for
the concept. Prisma.com - Revista de Ciências e Tecnologias de Informação e Comunicação do
CETAC.MEDIA. 7. 60-85. Tapscott, D. (2007) Wikinomics. New York: Portfolio.
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Thomson, M. (2006). Human brands: Investigating antecedents to consumers’ strong
attachment to brands. Journal of Marketing.
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