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GUIA DE

MEMÓRIA ORAL
DICAS E SUGESTÕES PARA GRAVAR A
HISTÓRIA DA COMUNIDADE

V E R S Ã O 1
A G O S T O 2 0 1 1

M U S E U D A O R A L I D A D E 1
Este guia é um produto do Ponto de Cultura
Museu da Oralidade. Trata-se da primeira versão,
lançada em agosto de 2011. Produzido na sede
da Viraminas Associação Cultural apenas com
software livre.

Contatos
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contato@viraminas.org.br

Pesquisa e produção
Andressa Gonçalves

Redação e arte-final
Paulo Morais

Apoio à produção
Danielle Terra

Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição
- Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Brasil.

2 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
INTRODUÇÃO

Faz parte da natureza humana valorizar o lugar onde moramos, as


pessoas que nos rodeiam, as memórias de gente com as quais temos
alguma ligação, seja afetiva ou de parentesco. É comum querermos
conhecer histórias que nos remetem à nossa identidade, que nos fazem
sentir mais próximos de nossas raízes. O contato com nossos traços
culturais nos traz um sentimento de conforto, de bem estar.

Esse sentimento leva muitos de nós a querer aprofundar cada vez mais
o conhecimento que temos sobre nossas origens. Assim é que muita
gente embarca no universo da pesquisa de memória. Nos últimos
anos, amadores e profissionais tem se dedicado a vasculhar as
comunidades onde moram em busca de traços da identidade cultural.

Em certa medida, pode­se dizer que isso se deve à presença cada vez
mais marcante do pós­moderno e da cultura de massa, que trazem a
tendência da uniformização das pessoas. Diante de um mundo cada
vez mais conectado e homogeneizado, que tem olhos e lentes focados
no futuro, é comum querer sair do óbvio, diferenciar­se dos demais.
Tentar fortalecer vínculos com nossa identidade cultural é uma forma
de fazer isso acontecer.

Este Guia de Memória Oral pode servir, pois, a amadores, entusiastas,


curiosos, ativistas e profissionais de diversas áreas do conhecimento

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que compartilham o desejo de valorizar a memória da comunidade.
Longe de querer encontrar uma fórmula perfeita para reverter os
efeitos massificantes da era industrial, este tutorial é um pequeno
conjunto de ideias que podem ser aplicadas para quem quer deixar a
inércia de lado e partir para a ação.

A matéria­prima do trabalhador
que deseja seguir estes passos é
uma das mais ricas fontes de
conhecimento que o ser humano
conhece: a oralidade. Muitas
vezes ignorada ou mesmo
descartada pela História
acadêmica tradicional, a pesquisa
de memória oral é uma forma
democrática, popular e até mesmo divertida de se conhecer e valorizar
o passado de uma comunidade. Afinal de contas, quem melhor para
contar a história de seu povo do que o próprio povo?

Neste guia, você conhecerá de forma prática as bases metodológicas


adotadas pelo Museu da Oralidade nas pesquisas que vem realizando
nos últimos anos. Não se trata de fórmulas rígidas, mas de sugestões e
dicas que podem ser apropriadas, modificadas e repensadas por novos
pesquisadores que desejam começar o trabalho de campo. Boa leitura
e boa sorte.

ANTES DE SAIR A CAMPO:


DEFININDO A LINGUAGEM
A recente popularização de equipamentos digitais de registro de
imagem e som, como gravadores, câmeras fotográficas e filmadoras,
facilita e muito a vida de um pesquisador de história oral. Todas as

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pesquisas comandadas pelo Museu da Oralidade partem do princípio
de que as tecnologias podem e devem ser aplicadas a serviço da
documentação, da difusão e da preservação das tradições. É preciso
rechaçar a ideia, até certo ponto comum, de que tradição e
modernidade se excluem.

Existem projetos de registro de memória oral que abrem mão de


equipamentos e se limitam a usar anotações em papel ou a própria
memória do pesquisador para transmitir histórias de vida da
comunidade escolhida. Entendemos que esta estratégia pode ser útil
em casos extremamente específicos, o que não é o caso das propostas
aqui contempladas.

A escolha da linguagem a ser adotada pelo projeto deve levar em


consideração aspectos que variam conforme a expectativa do
pesquisador, o público­alvo do projeto e mesmo a intimidade da
equipe de pesquisa com as ferramentas de gravação e edição
disponíveis. Esta discussão sobre linguagem e suportes desperta
subjetividades e até algumas paixões. Deixando de lado questões
sentimentais, vamos nos ater objetivamente a duas alternativas mais
comuns para o que se propõe: o audiovisual e o texto escrito
acompanhado de fotografias.

O audiovisual é uma linguagem bastante em moda nos dias atuais,


principalmente depois do surgimento do YouTube. Pode­se dizer que a
principal vantagem que o vídeo exerce sobre a linguagem escrita é a
sedução que provoca no público. A proliferação de imagens em
movimento na internet, somada ao monopólio brasileiro da televisão
como meio de comunicação de massa, desperta um interesse ávido por
produções audiovisuais. Em comparação com o texto escrito, o vídeo
tem a vantagem de ambientar visualmente o entrevistado com
universo abordado na pesquisa.

Além disso, o barateamento constante de câmeras digitais amadoras e


semiprofissionais, bem como de telefones celulares que incorporaram

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a tecnologia de gravação de imagens e webcams, possibilita a
cidadãos comuns se apropriarem destas tecnologias para registrar o
cotidiano e botar a voz da comunidade acessível ao mundo. A criação
de produtos audiovisuais por amadores tem sido alvo de numerosos
projetos sociais e culturais, muitos deles tendo como ponto de partida
o registro da memória.

Para cidadãos acostumadas a se portar como meros consumidores de


informação, transmitir uma ideia em vídeo para todo o mundo
representa a queda de uma barreira: as pessoas deixam de enxergar o
mundo pelos olhos dos outros e, ao estabelecer retratos do mundo,
passam a formar um senso crítico sobre a realidade que as cerca. Isso
se dá pelo fato de que todo o processo de produção audiovisual, do
roteiro à finalização, exige da equipe responsável um posicionamento
crítico diante do que está sendo retratado.

Mergulhar nesse processo de consciência crítica a partir do


audiovisual é bastante empolgante e compensador. No entanto, um
pesquisador de memória oral tem que pensar além da pura ideologia e
levar em consideração aspectos técnicos implicados na escolha pelo
vídeo. É possível conseguir resultados técnicos animadores com
equipamentos simples, conforme veremos adiante. Porém, tem que se
pensar se há na equipe do projeto algum profissional capacitado para
o processo de registro, que envolve a operação do equipamento
durante a gravação da entrevista, o armazenamento dos dados, a
edição do material e publicação na internet ou em DVD. É importante
que o produto tenha qualidade: o público pode não compreender um
registro em que o aúdio não funciona bem.

É bem verdade, entretanto, que um simples curioso possa se


familiarizar com técnicas de registro e edição por meio de tutoriais e
manuais disponíveis na web. A principal dica, para quem vai embarcar
nesta onda, é experimentar bastante, sem medo de errar. O erro faz
parte do processo de aperfeiçoamento e deve ser sempre encarado
como uma etapa do avanço.

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Do ponto de vista do público, o pesquisador deve levar em
consideração que a opção pelo vídeo pode trazer algum fator de
limitação. Produtos como o DVD são menos elementares do que, por
exemplo, o livro, que pode circular de mão em mão e não depende de
nenhum artefato eletrônico para ter seu conteúdo acessado. O vídeo
costuma, então, ter acesso menos fácil por parte de idosos, uma faixa
etária que normalmente se interessa por projetos de memória. No
entanto, esta limitação pode ser parcialmente contornada por meio de
apresentações em cineclubes, escolas, faculdades e associações
comunitárias.

No Museu da Oralidade, a maioria dos projetos ainda se sustenta no


tripé áudio­texto­fotografia. Embora também necessite de algum
conhecimento técnico, a estratégia de gravar o áudio para futura
transcrição é consideravelmente mais simples que o registro
audiovisual. Ela também implica em um posicionamento crítico dos
pesquisadores, uma vez que o processo de transcrição de texto, apesar
de trabalhoso, é recompensado com um reconhecimento profundo do
objeto pesquisado.

Outra vantagem a ser levada em conta é a intimidação que um


equipamento de vídeo pode vir a causar a um entrevistado, sobretudo
idosos. Não é incomum os depoentes perderem a desenvoltura diante
de uma câmera. Já um gravador simples pode, às vezes, nem ser
notado pelo depoente, que até se esquece de que a conversa está sendo
gravada, facilitando a desinibição. Este argumento, no entanto, não
deve ser encarado como verdade absoluta. Por algumas vezes
pudemos perceber situações inversas: entrevistados aparentemente
tímidos que, diante de uma câmera, acabam revelando uma certa
sensação de lisonjeio pela oportunidade de aparecer no vídeo e
desandam a contar histórias assim que o botão de gravar é acionado.

Eis aqui algumas opções que podem ser levadas a cabo por uma
equipe de pesquisa de memória oral.

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1. Publicação de livro: é uma das alternativas mais
interessantes. O livro é uma das linguagens mais elementares,
circula de mão em mão e é bastante acessível. Os depoimentos
ganham em profundidade, pois podem ser de tamanhos maiores.

2. Documentário em vídeo: a equipe pode gravar vários


depoimentos e criar um único vídeo contemplando todas as falas
registradas e apresentando a memória da comunidade. É uma
alternativa bastante atual. Tem a vantagem da sedução que o
vídeo causa, sobretudo no público jovem.

3. Programas de rádio: também tem como vantagem a


popularidade. Existem locais onde rádios comunitárias tem
bastante alcance e que podem abrir espaço para projetos de
memória. Os pesquisadores podem gravar as histórias e criar
uma série de programas temáticos, com base nos temas
apresentados pelos próprios entrevistados.

4. Exposições de imagem e texto: os pesquisadores podem usar


os depoimentos registrados para criar exposições itinerantes,
produzindo banners impressos que tragam as histórias da
comunidade. Eles podem ser apresentados em bibliotecas,
escolas, clubes, repartições públicas e tem como vantagem o fato
de proporcionarem ao público uma experência coletiva.

5. Blog: ferramenta de comunicação muito difundida na internet,


o blog tem a desvantagem de ser menos acessível, pois depende
do acesso à rede. No entanto, carrega o mérito de alcançar um
público distante da sede do projeto, como pessoas que mudaram
da cidade há muitos anos mas ainda procuram informações
históricas da terra natal na rede.

6. Videolog: ao invés de produzir um único documentário


condensado em DVD, a internet dá a possibilidade de publicar
várias pílulas de vídeo. Assim, à medida em que o projeto
conhece novos entrevistados, os registros podem ir ao encontro
do público na web em arquivos de micro (até 3 minutos) ou curta

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metragem (até 12 minutos).

COMO ESCOLHER OS
ENTREVISTADOS
Tudo bem, você vai em busca de histórias da sua comunidade. Porém,
antes de sair à rua para coletar as memórias, é imprescindível que
exista uma lista prévia de pessoas a serem registradas. É preciso ter
todos os nomes definidos? Não necessariamente. Não é obrigatório ter
todos os entrevistados escolhidos de antemão, e é até saudável que
isso não aconteça, uma vez que a existência de lacunas a serem
preenchidas permite a descoberta de indicações interessantes à medida
em que o trabalho de campo avança.

Se a pesquisa for realizada em uma comunidade da qual o pesquisador


faz parte (se for no seu bairro ou na sua cidade, por exemplo), o ponto
de partida pode ser indicações vindas de pessoas ao seu redor:
parentes, amigos, conhecidos. Para completar a listagem inicial, a dica
é buscar nomes com figuras bastante conhecidas na comunidade:
professor, padre, diretor de escola, comerciantes. Jornalistas e
radialistas também são pessoas que conhecem muita gente e podem
colaborar com boas indicações.

Importante: a equipe do projeto tem de levar em consideração o


caráter popular da memória oral. Embora a presença de autoridades
como políticos, párocos ou empresários na lista de entrevistados seja
louvável, é fundamental que sejam consideradas pessoas comuns,
personagens do cotidiano do lugar. No levantamento da memória de
uma cidade, o depoimento de um padeiro ou de uma lavadeira pode
ser tão ou até mais enriquecedor do que o de um ex­prefeito.

No momento da busca por indicações, é saudável que cada

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entrevistado tenha alguma peculiaridade, algum diferencial que
justifique a inclusão na lista. Isso pode garantir a diversificação das
indicações. Uma dica é pautar a procura de nomes pelos ofícios. O
trabalho realizado pela pessoa costuma influir em sua visão de mundo.
Assim, quanto mais ofícios forem contemplados na lista, maior a
variedade de assuntos registrados nas entrevistas.

Sugestões
Ofícios tradicionais rurais: retireiro, queijeiro, carapina (fazedor de
carro de boi), parteira, trançador de couro, carreiro.
Ofícios tradicionais urbanos: sapateiro, barbeiro, costureira,
alfaiate, lavadeira, artesão, escritor.

Partindo das primeiras indicações, o pesquisador deve elaborar uma


lista contendo os nomes dos indicados, a peculiaridade envolvida e
uma referência para contato. Raramente as pessoas que sugerem os
entrevistados sabem o endereço preciso. Portanto, nessa lista
preliminar, vale tudo: alguém que conheça a pessoa, uma praça
próxima à casa do entrevistado ou um local onde conseguir
informações.

Exemplo de listagem preliminar de indicações

Indicado Peculiaridade Referência


José do Onofre Primeiro padeiro Perguntar na praça
da cidade do bairro Porto Velho

Maria Cândida Doceira Perguntar no Centro


Espírita do Centro

10 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
João Siqueira Alfaiate Rua Minas Gerais, 48.
Fone 3555-1280.

O pesquisador pode estipular critérios para seleção ou corte de


indicados. Alguns projetos de história oral optam por limitar a data de
nascimento de entrevistados, por exemplo, escolhendo pessoas
nascidas até 1930. Esta pode ser uma definição objetiva se o alvo da
pesquisa tiver relação com alguma data específica, como, por
exemplo, ex­pracinhas da segunda guerra. Há também quem prefira
fechar a lista exclusivamente com moradores nativos do local a ser
retratado. Se por um lado tal decisão pode conferir ao projeto uma
maior identificação com o lugar, uma vez que os entrevistados
contarão histórias de pais e avós que viveram na localidade, por outro,
pode excluir a participação de emigrantes que tiveram participação
ativa na comunidade, muitas vezes trazendo de fora novidades que
transformaram o cotidiano da população.

Há que se observar também o equilíbrio de gênero. É interessante que


seja evitada uma predominância muito forte do número de homens
sobre o de mulheres ou vice­versa. Em situações específicas, como no
caso de pesquisas temáticas, tal situação não terá como ser evitada. É
o caso que enfrentamos quando pesquisamos a memória dos
ferroviários, ofício predominantemente masculino, ou a história oral
da educação, cujos profissionais são, em grande maioria, mulheres.
Nestes dois casos, prevaleceu no produto final a supremacia de um
gênero sobre o outro, que foi amenizada com alguns poucos nomes
encontrados.

No caso dos ferroviários, a pesquisa preliminar detectou que,


enquanto a maioria masculina ficava com o trabalho pesado nas
oficinas e na manutenção dos trilhos, a minoria feminina se
encontrava em ocupações burocráticas e de escritório. No caso da

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educação, as professoras detinham a predominância no cenário do
ensino fundamental (fato que até hoje se mantém), mas pudemos
encontrar alguns ex­professores homens que trabalharam nos níveis
médio e superior, contrabalançando a lista de indicados.

A quantidade de pessoas a ser pesquisada leva em conta critérios


objetivos e subjetivos. Pode partir de alguma simbologia, como no
caso do projeto de memória oral do centenário de Divinópolis, em que
consideramos válido optar pela gravação de cem entrevistas. Na
pesquisa da memória da antiga colônia de hanseníase Santa Fé, 17
entrevistados representaram os cerca de 200 idosos que ainda moram
no local, garantindo uma proporcionalidade bastante significativa.

Do ponto de vista objetivo, tem que se levar em conta a capacidade de


mobilização e a agilidade da equipe para cumprir os prazos
estabelecidos para terminar a pesquisa. Este é outro ponto que merece
algum destaque. Mesmo a lista sendo aberta a novas inclusões, os
pesquisadores precisam ficar atentos ao fato de que o projeto tem um
fim. Chega uma hora em que devem se encerrar as indicações para
que a pesquisa possa caminhar para as fases seguintes.

COMO DEFINIR O ROTEIRO DE


PERGUNTAS?
A forma mais simples de registro de memória oral é pela história de
vida. Antes, no entanto, de se iniciar a entrevista propriamente dita, o
pesquisador deve registrar a ficha de matrícula: o próprio
entrevistador diz, assim que inicia a gravação, o nome do projeto, a
data, o local, as testemunhas presentes e o nome dos pesquisadores.
Isso facilita o armazenamento e a localização dos arquivos durante e
após o encerramento do projeto.

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O pesquisador não tem necessidade de ir ao encontro de um
entrevistado com todas as perguntas pré­elaboradas. A melhor maneira
de abordar um entrevistado é a partir de um roteiro semiestruturado,
que comece com perguntas fáceis de serem respondidas e que leve o
entrevistado a se desinibir aos poucos. Para o levantamento de
histórias de vida, a ordem cronológica é o melhor fio condutor. A
conversa deve começar pelas reminiscências da infância: o trabalho
dos pais, a escola, o nome dos irmãos, brincadeiras. O entrevistado
deve estar atento para que se registrem todas as fases da vida do
entrevistado: infância, escola, juventude, casamento, vida adulta,
trabalho e terceira idade.

As perguntas devem ser ativadoras da memória do entrevistado. Elas


devem induzir o mesmo a responder de forma descritiva, evitando
respostas simplórias ou meramente afirmativas. Por exemplo, ao invés
de perguntar “A folia de reis daqui era bonita?”, é preferível que se
pergunte “Como era a folia de reis daqui?”.

É mais do que comum que o entrevistado interrompa a trajetória


cronológica prevista no roteiro, comparando fatos vividos no passado
com situações comuns nos dias atuais. Por exemplo, uma parteira, ao
lembrar dos partos que fazia nas fazendas da região, pode interromper
as lembranças para comentar sobre as facilidades que médicos e
hospitais oferecem às gestantes. Esse tipo de intervenção é
interessante, pois revela o ponto de vista do pesquisado em relação às
transformações pelas quais o mundo passou. Em ocasiões como esta,
o pesquisador deve evitar interromper a linha de raciocínio do
entrevistado, voltando ao roteiro assim que houver alguma brecha.

Subjetividades poderão aparecer por mais vezes durante a entrevista.


É fundamental ter claro que um projeto de memória oral depende
delas e, ao contrário do que pode se imaginar, não busca uma verdade
histórica irretocável ou indiscutível. Não há como desvincular a
narrativa da vida de uma pessoa de suas opiniões sobre o mundo que a
cerca. Enquanto na história tradicional a subjetividade é um ponto a

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ser descartado, na história oral, ela é um elemento a mais a ser
compreendido e valorizado.

Nem só de passado vive a memória oral. Na finalização da entrevista,


o pesquisador deve­se pautar pela atualidade: como o entrevistado
enxerga a realidade e a compara com o passado. Após esta análise,
deve­se voltar para a perspectiva de futuro: o que pode ser mudado,
qual mensagem o entrevistado deixa. O fechamento deve acontecer
com uma avaliação da entrevista pelo entrevistado.

Sugestões de perguntas para um roteiro semiestruturado


Qual o nome de seu pai e de sua mãe? E de seus avós?
Como o que seus pais trabalhavam? Como era o trabalho deles?
Como o senhor descreveria seu pai? E sua mãe?
Como era a casa onde o senhor nasceu? E a rua?
Quais eram as brincadeiras de criança?
Dentro de casa, como era a rotina?
O senhor estudou? Como era a escola? Como era a sala de aula?
Quem era a professora? Como era o comportamento dela?
Quem eram seus principais colegas na escola? Como as crianças se
comportavam?
Qual era o passatempo dos jovens na cidade?
Quando o senhor começou a trabalhar? Como era o trabalho?
Quem te ensinou seu ofício? Que ferramentas utiliza? Que matéria-
prima utiliza? Como é confeccção do produto?
Quando o senhor começou a namorar? Quando conheceu sua
esposa?
O senhor teve filhos? Quantos?
Como era a rotina do senhor dentro de casa?
Como era a rotina da cidade, comunidades, vilarejo?

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E as festas, quais eram e como eram?
O senhor participou de alguma atividade comunitária ou religiosa?
E hoje, qual a sua rotina? O senhor tem alguma atividade de lazer?
Exerce alguma profissão?
Em relação ao passado, o que mudou na vida do senhor? O senhor
tem saudade dos tempos passados? Faria alguma coisa diferente
do que já fez?
O senhor gostaria de deixar alguma mensagem para as pessoas
que vão conhecer sua história de vida?
O que o senhor achou desta entrevista?

COMO DEFINIR A EQUIPE DO


PROJETO?
Embora o Museu da Oralidade entenda que a pesquisa de memória
oral depende de poucos recursos técnicos, materiais ou humanos para
ser colocada em prática, vale o destaque de que, sozinho, dificilmente
um pesquisador terá a agilidade e a capacidade de mobilização
necessária para tocar um projeto
minimamente amplo. A pesquisa solitária
pode até ser possível, mas é
desaconselhada. Trabalhar em equipe é
fundamental.

Em um projeto básico, pelo menos duas


pessoas formam a equipe de trabalho.
Uma delas é o coordenador. Além de orientar as atividades, tem de
agendar com os entrevistados e fazer as perguntas na hora das
entrevistas. O segundo membro pode ser chamado de organizador e
ocupa funções mais técnicas, como operar câmeras e gravadores e
armazenar e catalogar dados obtidos, como áudios, vídeos e

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fotografias. Alguns projetos podem se dar ao luxo de contar com mais
membros de apoio, como um operador de câmera exclusivo e pessoas
para transcrição de depoimentos.

Em relação aos equipamentos necessários, a lista pode variar de


acordo com o propósito do projeto e os recursos disponíveis. Um
aparato técnico muito sofisticado nem sempre significam melhores
resultados: mais do que ter equipamentos, é preciso saber usar os
equipamentos. Deve­se ter em mente, ainda, que equipamentos mais
complexos geram arquivos maiores e, por consequência, mais difíceis
de editar e armazenar.

Acompanhe algumas sugestões para montar uma estação de memória


oral. Com as listas sugeridas, é possível atender a uma variedade de
projetos, incluindo áudio e vídeo. Há uma estimativa de preços para
cada nível de configuração. Uma estação dessas pode ser montada em
um centro comunitário, atendendo a vários pesquisadores.

Estação de memória oral (sugestões)


Básica: Câmera digital 5 MP com zoom ótico de 3x; cartão de
memória 4 GB; MP3 player com gravador de voz; computador com
2GB de memória e 120 GB de HD; impressora; pen-drive de 8 GB
para cópias de segurança. Estimativa de preço: R$ 2.500,00.

Intermediária: Filmadora digital full-HD com entrada para


microfone externo; cartão de memória 16 GB; microfone de lapela;
computador com processador dual-core, 4GB de memória,
memória de vídeo de 512 MB, 320 GB de HD, tela de 18'';
impressora multifuncional laser; HD externo de 500 GB para cópia
de segurança. Estimativa de preço: R$ 6.000,00

Ideal: câmera fotográfica com HDSLR 12 MP de resolução e


gravação de vídeo; dois cartões de memória 32 GB; microfone de
lapela ou microfone externo unidirecional; rebatedor de luz;

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computador com processador quad-core, 6 GB de memória,
memória de vídeo de 1 GB e 1 TB de HD; impressora
multifuncional laser; HD externo de 1,5 TB para cópias de
segurança. Estimativa de preço: R$ 9.000,00

ONDE E COMO ABORDAR OS


ENTREVISTADOS?
No Museu da Oralidade, entende­se que
o pesquisador deve ir até o entrevistado
e não o contrário. É comum a alguns
projetos de memória oral ter espaços
como estúdios ou cabines móveis que
recebem depoentes para registro.
Embora esta seja uma opção que traz
vantagens do ponto de vista técnico (facilitando a iluminação e a
captação de áudio, por exemplo), a percepção é de que a estratégia
inibe os entrevistados e os tiram de um ambiente mais harmonioso,
que tenha relação com a trajetória da pessoa e com o que está sendo
conversado. Assim, a opção mais recomendada é que as gravações
aconteçam na casa do depoente ou no local de trabalho, se o mesmo
ainda estiver ativo.

Para início da gravação, o pesquisador precisa identificar a si próprio


e a toda a equipe, relatando de forma clara a motivação pela qual
todos estão ali. É interessante reportar ao depoente de quem surgiu a
indicação do nome e citar algumas pessoas que já foram abordadas
pelo projeto, para dar segurança e confiança ao entrevistado. Ele deve
ser informado também que a publicação do material decorrente do
registro terá de ser autorizada ao fim da gravação e que a mesma
poderá ficar disponível para futuras pesquisas. Nunca se deve gravar
alguém sem o devido consentimento. Antes de começar a entrevista,

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deixe claro que tudo o que for falado será gravado.

Mais uma vez, leva­se em conta a presença de pelo menos dois


pesquisadores. Um se concentra no cumprimento do roteiro de
perguntas e outra fica por conta de acompanhar o funcionamento
correto do gravador. Este segundo pesquisador pode, também,
acumular a função de operador de câmera (no caso de registro em
vídeo) ou de fotógrafo. O primeiro pesquisador deve anotar em um
bloco nomes de pessoas e lugares que possam gerar dúvidas na fase
de transcrição, conferindo a ortografia com o entrevistado, sempre que
possível.

A estimativa padrão é de que a gravação de uma história de vida dure


em torno de uma hora e meia. Terminada a entrevista, pode ser
interessante passar alguns minutos de conversa informal com o
entrevistado, seja tomando um cafezinho ou apenas jogando conversa
fora. Momentos menos sisudos podem revelar pequenas histórias ou
indicações de fontes que podem enriquecer o projeto.

Após o encontro, os pesquisadores retornam à base do projeto, onde


devem imediatamente armazenar todos os dados registrados. Num
computador, deve ser criada uma pasta específica para os arquivos
gerados. Renomeie os itens de áudio com o nome completo do
entrevistado, evitando o uso de alcunhas (prefira sempre “Sebastião
Souza Silva.mp3” a “Seu Tião.mp3”). Crie também uma subpasta
para conter as fotografias e um arquivo de texto simples com a
matrícula da entrevista.

COMO FUNCIONA A GRAVAÇÃO EM


ÁUDIO E A TRANSCRIÇÃO?
A grande vantagem do registro de uma entrevista somente em áudio é

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a discrição. Enquanto câmeras de vídeo e máquinas fotográficas
chamam muito à atenção e podem tanto inibir quanto distrair o
depoente, o gravador pode passar desapercebido pelo mesmo. A
primeira dica para a gravação de uma entrevista é encontrar um local
silencioso, sem interferência de equipamentos eletrônicos ou de outras
pessoas. Crianças brincando, televisão, rádio ou liquidificadores
ligados devem ser evitados ao máximo numa gravação de memória
oral.

Se o local da entrevista for em uma rua de grande movimento, é


melhor buscar um algum lugar da casa onde o barulho seja menor,
como no quintal, se for o caso. Procure posicionar o gravador próximo
ao entrevistado, de preferência de forma discreta. Conseguir um áudio
de qualidade é fundamental e dá tranquilidade para seguir com o
projeto. Informações valiosas podem ser perdidas por causa de
barulho.

O processo de transcrição é tido por alguns como um trabalho chato e


penoso. Isso não deixa de ser verdade. A estimativa do Museu da
Oralidade é de que, para cada hora de gravação, levam­se quatro horas
para transcrever. Porém, a tarefa de traduzir o áudio em texto escrito
tem suas recompensas: o pesquisador toma contato mais profundo
com a narrativa, conhece expressões orais novas e, principalmente,
observa com mais zelo detalhes da história que mal foram notados
durante a gravação. Muitos alunos de oficinas nos questionam se há
programas de computador que transcrevem automaticamente o áudio.
A resposta é não. O trabalho deve mesmo ser conduzido pela equipe
responsável pelo projeto. Uma dica: não deixa passar muito tempo
após a entrevista para começar a transcrever. A memória fresca facilita
a compreensão das falas.

Para iniciar a transcrição de um depoimento, crie no computador um


arquivo de texto simples. Comece com a matrícula da entrevista:
nome do projeto, instituição responsável, pesquisadores presentes,
testemunhas, entrevistado, data. O áudio pode ser ouvido no gravador

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ou no próprio computador. É interessante que o pesquisador
experimente as alternativas para verificar qual delas oferece mais
conforto e agilidade.

Cabe destacar que o texto escrito surgido a partir da gravação de uma


fala deve tentar manter o público na posição de ouvinte e não de mero
leitor. Ou seja, é um texto para ser escutado e não lido. Todos sabemos
que a linguagem oral, marcada pela coloquialidade, tem grandes
diferenças em relação à escrita, que preza pela formalidade. O
processo de transcrição, no entanto, deve buscar um meio termo entre
as duas formas: preservar as marcas da oralidade, mas sem impedir a
legibilidade do texto.

Por exemplo, expressões como né e hein podem ser mantidas. Mas, na


escrita literal dos verbos no infinitivo, é preferível adotar a forma
tradicional, como ter, fazer ou ver ao invés de tê, fazê ou vê. Também
é aconselhável evitar usos exacerbados de coloquialismos, como em
formas populares do tipo nóis, deiz ou faiz (preferível nós, dez e faz).
Tempos e conjugações verbais diferentes da norma culta podem ser
mantidos, como em eles foi ou nós vai.

A adoção de formas de expressão coloquiais em textos de memória


oral pode variar de um projeto para outro, ou entre pesquisadores. É
essencial buscar a padronização destas expressões. O principal nesta
fase é buscar uma unidade de linguagem, de forma que possa ser
tocado por pessoas diferentes, mas com resultados semelhantes. Em
alguns casos, como na publicação de um livro, pode ser útil publicar
em anexo os critérios de normalização adotados, atentando o leitor
para a opção intencional da manutenção do falar do cidadão comum.

Vale ressaltar também que a escrita com formas coloquiais não é


necessariamente errada. Muitos defensores das formas eruditas podem
defender que é ruim preservar as marcas da oralidade na escrita. No
entanto, é preciso ter claro que, para os propósitos do registro de
memória oral, a coloquialidade é um item importante e descartá­la

20 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
pode desvirtuar o projeto dos objetivos iniciais, que é valorizar a
identidade cultural de tipos populares. Assim, seria inadequado
apresentar memórias orais registradas em consonância absoluta com a
norma culta da língua portuguesa. Uma dica para atenuar uma
possível aparência de desleixo dos revisores é destacar as formas
coloquais do restante do texto, usando, por exemplo, o itálico em
referência às marcas da oralidade. Exemplo: “a festa da padroeira era
muito bonita, todo ano nós ia lá”.

Transcrever as perguntas também é aconselhável: tal prática delimita


no texto as marcas autorais do entrevistador, deixando claro
intervenções que possam ter acontecido. Sugere­se, ainda, que sejam
anotados na transcrição possíveis trechos inaudíveis (o pesquisador
pode escrever o trecho*inaudível* quando não conseguir compreender
o que está sendo dito).

O conjunto de depoimentos transcritos forma as fontes orais. Elas são


mais que simples histórias de vida. A partir do momento em que
foram devidamente catalogadas e armazenadas, tornam­se
documentos, que podem ser comparados e analisados por
memorialistas e historiadores em futuros projetos.

Terminada a transcrição literal, a equipe deve reler o texto


acompanhado de uma segunda audição, verificando possíveis erros de
digitação ou inadequações. No fim do documento, enumere nomes de
pessoas citadas e os principais assuntos. Na linguagem da internet, os
tópicos citados pelo entrevistado são aquilo que convencionou­se
chamar de tags (termo em inglês correspondente a etiqueta). Exemplo:
de forma objetiva, a entrevista de um maquinista da rede ferroviária
de Três Corações pode ser marcada com as tags ferrovia, maquinista e
Três Corações.

Essa enumeração facilita futuras pesquisas e a comparação entre as


narrativas dos depoentes, além de ser útil para a hierarquização das
histórias em acervos digitais como o do Museu da Oralidade. No site

M U S E U D A O R A L I D A D E 21
do Museu, é possível clicar num tag e encontrar todos os depoimentos
marcados com a mesma etiqueta. Em um conjunto pequeno de
entrevistas, tal iniciativa pode parecer pouco útil, mas à medida em
que se acumula um grande número de memórias, ela se torna um
poderosa ferramenta de categorização e de busca por temas
registrados.

Quando as transcrições terminam, os membros da equipe de pesquisa


podem discutir e avaliar o resultado dos registros. A comparação entre
os dados coletados permite o cruzamento das informações,
verificando quais temas surgiram de forma mais incisiva nos relatos e
quantas versões existem para os mesmos fatos.

Se o projeto prevê a publicação de um livro, pode ser interessante uma


nova rodada de entrevistas – a reentrevista – quando nomes de
pessoas e lugares e versões de fatos devem ser checados. Novas
informações podem ser incluídas. No projeto Memórias Iluminadas, a
fase de reentrevistas rendeu vários novos causos, quando as
informações de um entrevistado complementaram a narrativa de
outro. Por vezes, visitamos a casa de idosos em três ou quatro
ocasiões, checando informações e gravando novas memórias. Tudo
era anotado no próprio documento de transcrição e acrescentado ao
documento digital em seguida. Neste caso, o cabeçalho com as
informações do registro deve ser adequado para conter as datas das
reentrevistas.

A melhor forma de guiar uma reentrevista é fazendo a leitura integral


da transcrição original. O entrevistado pode acompanhar tudo o que
disse e interferir com correções ou novos dados.

Importante: a transcrição em si não encerra o trabalho. É preciso


deixá­lo adequado para disponibilização ao público, dentro do que
chamamos de edição ou, conforme terminologia de alguns
especialistas, transcriação. É quando podem ser removidos vícios de
linguagem, interjeições, informações demasiadamente repetitivas.

22 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
O processo de edição de um texto deve servir para colocar em ordem
trechos da entrevista que fugiram da cronologia da narrativa. Como já
dissemos, é comum constantes idas e vindas por parte do narrador. Na
hora da transcriação, deve­se colocar tudo em ordem correspondente.
O tamanho de um depoimento finalizado depende do produto final. Se
pretende­se realizar uma exposição de banners, por exemplo, textos
pequenos (de até 30 linhas) são mais adequados. No caso de
publicação de livro, histórias mais compridas são melhores, pois
presume­se que o leitor terá tempo de sobra para conhecer as
histórias.

COMO É A GRAVAÇÃO E
EDIÇÃO EM VÍDEO?
A edição de vídeo é comumentte considerada tarefa para profissionais
ou especialistas. Porém, à medida em que a linguagem audiovisual vai
se torna mais presente no cotidiano e a disponibilidade de programas
de edição intuitivos se popularizam, a tendência é de que o trabalho de
montagem de vídeos venha a ser uma atividade corriqueira, mesmo
para amadores. Não é difícil imaginar que, em alguns anos,
adolescentes e jovens criem pequenos filmes digitais de qualidade
com a mesma facilidade com que
escrevem uma redação para a escola.

Um bom material em vídeo começa


antes mesmo do momento da gravação.
Para o registro de uma entrevista de
memória oral, o operador de câmera
deve primeiro observar alguns pontos:

1. Enquadramento: o elemento Exemplo de enquadramento:


básico da linguagem do meio primeiro plano.

M U S E U D A O R A L I D A D E 23
audiovisual é o enquadramento, também chamado de plano. Com
o entrevistado sentado, as melhores opções para gravar são o
plano médio (da cintura para cima) ou o meio primeiro plano (do
tórax para cima). Quanto mais próximo do rosto do entrevistado,
maior a sensação de intimidade entre o espectador e a
personagem. Lembrando que o tripé é equipamento básico para
este tipo de projeto.

2. Cenário: procure gravar a entrevista em um local com uma


composição de elementos interessante ao fundo. Evite posicionar
o entrevistado de costas a uma simples parede branca, por
exemplo.

3. Luz: prefira sempre gravar à luz do


dia. Os melhores horários para
gravação são o início da manhã (das 7h
às 9h30h) e o fim da tarde (a partir das
15h30). Nestes períodos do dia a luz do
sol é mais branda. Ao meio dia, o
constraste entre sombra e luz fica muito
evidente e compromete a qualidade da
imagem. Se estiver dentro de casa,
posicione o entrevistado próxima a uma entrada de luz (porta ou
janela), mantendo­a aberta. Jamais posicione o entrevistado de
costas para a luz.

4. Áudio: o ideal é que se utilize o microfone de lapela. Porém,


câmeras simples não tem entrada para microfone externo. Neste
caso, procure gravar em locais silenciosos e horários de menor
movimento na rua, posicionando a câmera próxima ao
entrevistado. Evite fazer comentários durante a fala do
entrevistado, pois o microfone interno da câmera irá captar todos
os sons do ambiente.

5. Cenas extras: além da entrevista propriamente dita, faça


também a captação de imagens extras, que podem ser úteis no
processo de edição. O movimento na rua onde foi gravada a

24 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
entrevista, a entrada da casa, o artesanato produzido pelo
entrevistado (quando for o caso), etc. Para estas cenas, deixe o
tripé de lado e faça com a câmera na mão.

Ao início da gravação, registre a matrícula da entrevista: nome do


projeto, nome do entrevistado, local da entrevista, nome dos
pesquisadores e testemunhas. Anote o número do arquivo de vídeo
que está sendo gerado no equipamento. Alguns projetos fazem uso de
claquete para marcar o início da tomada, prática herdada do cinema.
Com a digitalização do vídeo, a catalogação das tomadas tornou­se
muito mais fácil, pois os arquivos são escritos nos cartões de memória
numerados sequencialmente. Isso torna o uso da claquete meramente
figurativo.

Como já foi dito neste guia, o vídeo pode inibir o entrevistado,


embora nem sempre isso aconteça. Se perceber que isso está
ocorrendo, pode ser útil fazer algumas perguntas genéricas, sobre o
tempo ou a família, que o levem a distrair e cortem o clima de
formalidade.

Terminada a entrevista, não se esqueça de gravar todos os arquivos


gerados em uma mesma pasta, no computador do projeto. Enumere os
arquivos e renomeie­os arquivos com o nome do entrevistado (por
exemplo: 01josébonifáciorocha.mpg e 02beneditanogueira.mpg). Faça
também uma cópia de segurança em outra fonte de dados (um
pendrive ou hd externo, por exemplo), que deve ser guardada em local
seguro e acessada apenas ocasionalmente.

Somente após encerrado o ciclo de entrevistas é que o projeto deve


partir para a edição do material. Esta pode ser feita de forma
individual, ou seja, cada entrevistado sendo retratado em um vídeo
exclusivo, ou coletiva, quando apenas um vídeo apresenta o conjunto
da obra registrada. Vamos tratar aqui da edição de vídeos individuais
para publicação na internet. Essa forma dá ao espectador a
possibilidade de assistir ao material gerado pelo projeto na sequência

M U S E U D A O R A L I D A D E 25
que achar melhor, graças à interatividade da rede.

A transformação do material bruto nos produtos finais deve ser feita


nos programas chamados de edição não­linear. Pelo termo, entende­se
que o vídeo pode ser editado em várias trilhas de áudio e vídeo,
agilizando e simplificando o processo. Muito raros no passado, esses
softwares vem se popularizando com o avanço da internet e das
câmeras digitais. Os principais sistemas operacionais do mercado já
vem com programas de edição não­linear instalados. Iremos tratar do
tema de maneira superficial, pois o assunto é extenso e não caberia em
um guia prático como este.

O Museu da Oralidade
recomenda o uso de software
livre em todas as etapas de
produção, tanto pela gratuidade
quanto pelo espírito
colaborativo que o envolve.
Sendo assim, para edição de
vídeo, recomendamos o uso de
Kdenlive: editor de vídeos livre dois programas: o PiTiVi, para
edições simples, e o Kdenlive,
para projetos mais completos. Ambos rodam em qualquer máquina
com o sistema operacional Linux.

O sistema Linux possui várias versões, criadas por diversos usuários


ao redor do mundo. São as chamadas distribuições. Para o trabalho
com vídeo, recomenda­se a distribuição Linux Mint, que já vem com
vários decodificadores de vídeo instalados.

Cabe ressaltar ainda que, em sistemas proprietários, as licenças de


editores de vídeo não­lineares mais usados no mercado ultrapassam o
valor de R$ 2 mil. O uso de cópias não­autorizadas (prática apelidada
pelas indústrias de “pirataria”), apesar de muito comum, não é
recomendado, sobretudo em instituições públicas. Fora o preço,

26 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
programas de computador pagos não garantem a liberdade de
customização e experimentação inerentes ao software livre.

O trabalho com editores pode ser aprendido facilmente por meio de


tutoriais disponíveis na internet. Porém, a melhor escola é mesmo a
prática. Pesquise os conceitos básicos da edição não­linear na rede,
frequente fóruns de discussão, grave pequenos filmes no quintal de
casa e treine no computador. É um processo prazeroso e
descomplicado, mas que exige dedicação.

Uma forma simples de editar o material em vídeo consiste em


começar pelo mapeamento da entrevista. O pesquisador redige o
início e o fim de cada uma dos principais momentos da conversa,
como no exemplo a seguir.

Parte Início Fim


Infância na roça 00:02:45 00:07:13
Causo do fantasma 00:14:34 00:20:17
O casamento 00:57:12 01:04:54

Depois de mapeada a entrevista, o editor seleciona os trechos no


programa de edição. Esta seleção pode ter alguns critérios básicos,
mas entendemos que ela é primordialmente intuitiva, ou seja, segue
aquilo que o pesquisador entende ser melhor, segundo os próprios
conceitos. O importante é tentar reproduzir no produto final o clima
da conversa. Entrevistas mais sérias exigem uma edição mais serena,
assim como conversas descontraídas merecem um tratamento mais
bem humorado.

Logo, tem­se os trechos escolhidos formando uma narrativa editada,


próxima do que será o produto final. No programa de edição, é
necessário que se adeque os pedaços do vídeo ao tamanho proposto
para o vídeo final, excluindo­se partes desnecessárias. Para a edição

M U S E U D A O R A L I D A D E 27
de um vídeo de memória oral, seguem algumas dicas:

1. Prefira corte seco. Ser simples conta pontos a seu favor. Abra
mão de transições entre uma cena e outra, que podem cansar o
espectador e, em muitos casos, imprimem um certo ar cafona ao
vídeo.

2. Crie vídeos curtos. É fundamental ser objetivo. Vídeos muito


longos distraem o espectador. Se o material estiver na internet, o
usuário pode migrar para outro site. Na dúvida entre cortar e
manter um trecho, corte. Ao invés de criar um vídeo de 15
minutos para a rede, prefira três pílulas de cinco minutos cada.

3. Evite trilhas sonoras. Mais uma vez prefira a simplicidade.


Trilhas sonoras são desnecessárias, exceto quando tiver relação
intrínseca com o objeto da entrevista. Apelar para trilhas
emotivas quase sempre resulta em vídeos bregas.

4. Enriqueça o vídeo com imagens extras. Fotografias e


imagens em arquivo podem ser úteis para ilustrar uma fala. Mas
não é preciso interromper a narrativa para apresentá­la ao
público. Na maior parte dos casos, é preferível usar a narração
em off (somente a voz do personagem em paralelo às imagens), o
que deve ser evitado apenas quando a qualidade do áudio estiver
comprometida.

O QUE FAZER COM O MATERIAL


BRUTO (NÃO EDITADO)?

Você gravou 20 entrevistas em áudio, transcreveu tudo, editou e


publicou em livro. Ou então gravou 10 depoimentos em vídeo,
totalizando 20 horas, e reduziu tudo para 50 minutos na internet. O

28 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
que pode ser feito com o material que não foi aproveitado?

Embora não tenha sido usado em seu projeto, o material bruto não é
descartável. Ele pode ser interessante para futuras pesquisas ou em
novos projetos. O Museu da Oralidade recomenda que todo o
subproduto de um projeto de memória oral (transcrições, áudios,
fotografias, vídeo) seja catalogado em uma mídia portátil (DVDs, por
exemplo) e doado a instituições públicas ou comunitárias, como
universidades, bibliotecas, arquivos públicos, escolas, museus ou
casas de cultura.

Não é incomum casos em que depoimentos de memória oral se


perderam após o término do projeto. Por algumas vezes, ouvimos
histórias de pesquisadores que registraram depoimentos em VHS
(fitas de videocassete) nas décadas de 80 e 90, em projetos cujo
material foi sendo emprestado de mão em mão até que ninguém mais
sabia dizer onde foram parar. A tecnologia digital, nesse ponto, é
favorável, na medida em que facilita a reprodução em grande escala
do material. Isso permite, por exemplo, que um DVD seja copiado
numerosas vezes com pouco trabalho, diferentemente do que
acontecia com o VHS.

Para evitar que o material se perca ou fique engavetado no futuro,


procure conhecer bem as instituições. Veja se elas tem um espaço
dedicado a acervos de memória. Confira se há acervo semelhante e se
o mesmo é de acesso público. Na dúvida sobre qual instituição deve
receber o material do projeto, faça mais de uma cópia e doe para mais
de um local. Dê publicidade à doação: escreva para a imprensa local
que o acervo está disponível para a comunidade e publique também na
internet. Faça também seu próprio arquivo e inaugure o seu pequeno
museu de história oral.

M U S E U D A O R A L I D A D E 29
ONDE PUBLICAR MEU
MATERIAL NA INTERNET?
Publicar na internet é uma boa solução para atingir um público
diversificado. Existem diversas opções para você compartilhar o
conteúdo gerado com outras pessoas. No Museu da Oralidade,
tivemos experiências interessantes de moradores de lugares distantes
que encontraram histórias de parentes e conhecidos em livros
publicados virtualmente e voltaram a entrar contato com suas raízes
culturais. Outra vantagem é a chamada divulgação viral: pessoas que
criam empatia com o produto o recomendam voluntariamente para
amigos por e­mail ou pelas redes sociais.

Por essas e outras, a divulgação na web tem grandes vantagens.


Embora não seja um serviço universalizado (ainda há camadas da
população que não tem acesso à rede), a internet permite o acesso
permanente do público ao produto final do seu projeto. Há algum
tempo, empresas prestadoras de serviços na internet perceberam que o
potencial da rede não está na produção de conteúdo, mas sim na
possibilidade de os usuários gerarem conteúdo e interagirem com ele.
Isso é o que convencionou­se chamar de web 2.0 – o público é
espectador e também produtor do conteúdo.

Sabendo disso, é importante conhecer as ferramentas disponíveis para


chegar melhor às pessoas. O conteúdo de um projeto de memória deve
ser hospedado em um serviço cuja proposta seja compatível com a
ideia. Por exemplo, o YouTube é, de longe, o mais conhecido dos
portais de vídeo disponíveis na rede. Porém, o conteúdo enviado pelos
usuários é, na grande maioria das vezes, reproduções de programas de
televisão, cenas de comédias estilo pastelão, filmagens bestas do
cotidiano e situações constrangedoras vividas por personalidades,
políticos e artistas. É a isso que você quer associar seu projeto?

30 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
Conheça alguns serviços alternativos disponíveis na internet que
podem ser úteis para você compartilhar seu projeto.

1. Museu da Oralidade: o espaço virtual do museu dá a


possibilidade de qualquer pessoa registrar a memória da
comunidade e compartilhar. museudaoralidade.org.br

2. Museu da Pessoa: permite que qualquer pessoa conte sua


história no portal do museu. www.museudapessoa.net

3. Wordpress: ferramenta de criação de blogs gratuita. Tem a


versão wordpress.com, onde os usuários se cadastram e
começam a postar imediatamente. Na versão wordpress.org, você
pode baixar o programa e instalar em um servidor web,
customizando da maneira que melhor desejar. É o programa
usado para a criação da rede de blogs da Viraminas e do site do
Museu da Oralidade.

4. Vimeo: serviço de hospedagem e exibição de vídeos na


internet com foco na produção autoral e criativa. vimeo.com

Outro ponto muito importante a ser verificado é o licenciamento do


material disponibilizado. Licenciamento é a maneira como o criador
do conteúdo permite que o mesmo seja assistido, copiado ou
distribuído. Indústrias culturais, como a música e o cinema, costumam
licenciar suas obras dentro do tradicional copyright, que determina
regras rígidas. O copyright tradicional não permite, por exemplo, que
usuários compartilhem o conteúdo mesmo que para fins não­
comerciais.

O comportamento das indústrias culturais é bastante reacionário e


desconexo em relação ao comportamento dos consumidores de
informação do século XXI. Permitir o compartilhamento de uma obra
é mais usual e gentil, sendo, inclusive, bem­visto pelo público. Com
essa visão, muitos ativistas culturais iniciaram um movimento
conhecido como copyleft, que busca facilitar a circulação de cultura

M U S E U D A O R A L I D A D E 31
na comunidade virtual.

A sugestão do Museu da Oralidade, adotada por diversos produtores


de conteúdo da web, é adotar licenças Creative Commons. Trata­se de
um serviço de padronização do licenciamento para facilitar a vida do
produtor de conteúdo. No site da organização
(creativecommons.org.br), o usuário determina a forma como o
conteúdo pode ser consumido e compartilhado pelos usuários. Ao
invés do tradicional todos os direitos reservados, a licença adota o
conceito de alguns direitos reservados.

32 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
ANEXO I
INDICAÇÕES DE LEITURA
Usos e abusos da História Oral, de Janaína Amado e Marieta de
Moraes Ferreira. FGV Editora.

Memória e sociedade: lembrança de velhos, de Ecléa Bosi. EDUSP.

Manual de História Oral, de Verena Alberti. FGV Editora.

A Voz do Passado: História Oral, de Paul Thompson. Editora Paz e


Terra.

História oral: como fazer, como pensar, de José Carlos Sebe Meihy e
Fabíola Holanda. Editora Contexto.

História falada: memória, rede e mudança social, de Karen Worcman


e Jesus Vasquez Pereira. Museu da Pessoa e SESC­SP.

M U S E U D A O R A L I D A D E 33
ANEXO II
MODELO DE TERMO DE
AUTORIZAÇÃO

Eu, abaixo assinado, autorizo a publicação de minha entrevista de


história oral concedida ao projeto ____________________________
da instituição ________________________________. Declaro estar
de pleno acordo com a reprodução das informações por mim cedidas e
de minha imagem na internet e em outros produtos culturais para fins
de pesquisa, preservação e documentação da memória da comunidade.

Três Corações, ___ de ___________________ de __________.

Nome do entrevistado: ________________________________

Assinatura: ____________________________.

34 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L
M U S E U D A O R A L I D A D E 35
36 G U I A D E M E M Ó R I A O R A L

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