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As Mil Voz es do Performer

(Ana Sacramento)

A caracterização vocal da person agem , como outros processo s de


representação com características performativas , tem subj acente uma base
técnica construída a partir da manipulação da configuração do tracto vocal,
com recurso ao contr ole neuro muscular da s es truturas anatómicas envolvi das.

O processo permite ao perfo rmer adaptar a sua interpretação vocal com


elevada versatilidade e segurança.

Até à última década do século XX a única técnica vocal considerada


correcta, no âmbito d a música e rudita ocident al, foi a técnica de canto lírico.
Os estilos não eruditos e o trabalho vocal dos actores, não beneficiavam de
técnicas vocais específicas.

As exigências técnicas colocadas pelos novos estilos vocais que surgira m


durante o século XX trouxera m consigo a nec essidade de uma técnica vocal
versátil que permit isse executar todos os sons, em qualquer género musical,
de forma consi stente e segura.

Na última década do séc. XX, com base nas des cobertas da investigação
científica, foram criados novos métodos de técnica vocal destinados a preparar
os perf ormers para p rodu zir toda a multi plicidade de sons, falado s ou
cantados, através da aqui sição de uma gr ande plasticidade vocal. E stes
métodos não exclu íram os processos correctamente des envolvidos com as
técnicas tradicionais , mas ala rga ram o e spectro de possibil idades do perf orme r
para além da técnica tradicional de canto erud it o.

Para dar respo sta às ex igências, por vezes radi cais, das peças de mús ica
contemporânea, desenvolveram - se novas técnicas adequadas à produção de
fonações mai s extremas da vo z como o grito, o grunhido, as qual idades vocai s
necessárias às dobragens, e às sonoridades ade quad as à música dos séculos XX
e XXI como a mús ica erudita contempo rânea, o pop, o j az z, o hip - hop, a wor ld
music, a dance music, os musicais e outro s géneros contemporâneos .

As novas técnicas vieram pos sibilitar a execução de fo nações extremas


e de práticas de crossove r vocal de mod o flui d o e seguro pa ra o per for mer. Por

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crossover vocal entende - se “processo de tra nsição de um estilo vocal par a
outro”.

O processo permite ao perfo rmer elevada vers atilidade e segurança na


perform ance vocal. Mantém- se, ainda assim, a necessidade do
aperfeiçoamento do estilo e da especialização , quer ao nível do treino das
destrezas técnicas, quer ao nível do domínio do estilo e desenvolvimento de
repertório.

E volução das técnicas vocais

Numa investigação sobre as prátic as de cros so ver entre técnicas vocais


utilizadas no canto lír ico e no canto nos music ais, fora m realiza das entrevistas
a cantores pr ofis sionais de canto e rudito e de musicais sobre os a spectos
fundamentais d as sua s técnicas vocais e sob r e as suas práticas de cro ssover.
Foi estabelecida uma comparação ponto por ponto entre as duas técnicas tendo
sido encontrada uma percentagem elevada de correspondências entre amba s.
Através das definições das configurações básicas das qualidades vocais
utilizadas no canto e rudito e n os mu sicais foi possível compreende r como s e
pode fazer, tecnicamente, o crossover entre técnicas, de forma concreta,
através da adaptação da configuração do tract o vocal.

O estudo foi estruturad o em duas fases : na p ri meira fase selecionara m -


se as duas técnicas v ocais a estuda r e na segun da fase d o pr ocesso real izou - se
o estudo de cada uma das técnicas vocais , a comparação das duas técnicas
vocais entre si e definiu- se o processo de exec ução do crossover .

Técnica vocal de canto lírico

No âmbito da técnica vocal de canto lírico, fora m estudados os seguintes


parâmeros: início e final ização d o so m , stac cato, apoio da voz, gestão da
respiração, agilidade , ress onância , vogais, consoantes orais e nasais ,
sostenut o, registos vocais , modificação das vogais e cobertura do som ,
ampliação da tessitura vocal.

Técnica vocal para canto não lírico

A técnica v ocal para canto não lí rico está su bdividid a em doi s níveis
sequenciais : no 1º nível trabalha- se o controle das estruturas do tracto vocal

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através de 13 grupo s de exercícios e no 2º nível trabalha- se o controle das seis
qualidades vocais básicas.

E struturas e exercícios do 1º nível : pregas vo cais – início e finali zação


do som, pregas v entriculares – constrição e retraçã o, pregas v ocais – corpo e
cobertura, c artilagem tiroide, sirene, c artila gem cricoide, laringe, língua,
palato, esfíncter ariepiglótico, lábios, maxila r, ancoragem da c abeça e do
pescoço, ancoragem do Tronco .

Qualidades Vocais básicas do 2º nível: fala, fals etto, lamento / c horo, twang
oral / twang nasal, ópe ra / legit singing , belting .

Comparação entre técnicas

A comparação, ponto p or ponto, entre as du as técnicas incidiu sobre 43


parâmetros e o fereceu resulta dos mu ito intere ssantes e inesperado s.

As duas técnicas analisad as têm um elev ado número de p rocessos


parcialmente semelhantes ent re si (5 6%), existindo mais pontos de
convergência do que de divergência entre as duas técnicas estudadas.

As zonas de semelha nças entre técnicas, totais ou parciais, podem


facilitar as ada ptações necessária s pa ra tran s itar entre estilos, funcionando
como uma espécie de “ponte”.

A técnica de canto lírico desenvolve com grande profu ndidade as


práticas específ icas utili zadas no canto lírico , mas nã o desenvolve o trein o
específico para a obtenção das qual idades vocais necessárias n o teatro
musical, como as qualidades vocais de Twan g e de Belting, nem tão pouco
desenvolve o treino específico para a vo z falad a do ator.

A técnica de canto não lírico per mite executar todas as qu alidades


vocais, faladas e cantadas, utilizadas no teatro musical; aborda também a
qualidade vocal da ópera, mas nã o contempla o trein o das destreza s
virtuosísticas c aracterísticas do canto lírico.

Acima de tudo, a conclusão mais impo rtante a retirar desta comparação


é que nenhuma das duas técnicas exclui a ou tra ou desapr oveita o tr abalh o
correctamente realizado, e amba s as té cnicas podem ser utiliz adas

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paralelamente e sem incompatibili dade. Ist o explica o facto de alguns
performe rs terem atividade artí stica simultânea em géneros dife rentes,
passando de um pa ra outro com facilidade e ra pidez.

Mas se para algun s este processo é natural e in tuitivo, para outro s trata -
se de um mistério incompreensível , domin ad o por uns poucos eleitos, cuj a
chave para o desvendar do mi stério não se enc ontra nas suas m ãos.

No entanto, esta noção é profundamente erra da pois desde os anos 90


do séc. XX que é possível explicar de forma concreta e científica, como se faz
a t ransição de u m género pa ra out ro. E mbora a nostalgia da magia se tenh a
dissipado com a crua ve rdade científica, o proc esso tornou- se clar o e acessível.

Ao processo de tra nsição de um género pa ra outro deu- se o nome de


crossover vocal.

Metodologia do cros sover vocal

O crossover vocal executa - se recorrendo à d escrição da postu ra das


estruturas do tracto vocal. A metodologia permite descrever concretamente
quais as estruturas anató micas a movimentar e de que modo. E sta metodologia
é de uma simplicidade desarmante no que resp eita à compreensão do processo,
mas o seu controle prático pode se r bastant e difícil de ad quiri r e executar
devido à complexid ade das coordenações n euromusculares envolvidas . Os
passos a reali zar s ão os seguintes:

a. descreve - se a configuração da postura das estr uturas do tracto vocal n a


fonação de origem,

b. descreve - se a configuração da po stura da s est ruturas do trato vocal na


fonação de destino;

c. analisam- se as alterações a efectuar;

d. treinam- se as coordenações musculares necess árias à transição;

e. executa- se o crossover.

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Notas Finais

O controle das práticas d e crossover permite uma maior versatilidade


vocal aos pe rfo rmers pois, ao controlarem com precisão esta metodologia,
podem desdobra r- se em “mil vozes”. Ao alterar, mesmo que sej a
milimetricamente, a forma do tracto vocal, as alterações do espectro
harmónic o reflectem- se em variações do timb r e da voz, que se rão, de um modo
geral, tanto mais notórias q uanto maiore s fore m as alterações.

No caso dos atores esta possibilidade abre u ma porta à tão almej ada
qualidade camaleónica, geralmente apanágio dos grandes at ores, e q ue lhes
permitirá “muda r de vo z” consoante a s neces sidades de caracterização vocal
das personagens.

Outro aspecto imp ortante a consi derar tem a ver com a saú de vocal do
performe r, poi s o conhecimento das configuraç ões corretas para cada situação
salvaguardará a sua saúde vocal, permitind o- lhe uma grande l ongevidade
profis sional.

A nível pedagógico, a metodol ogia apresentada torna pos sível descrever


quais as alterações a efectuar para realizar as práticas de crossover permitindo
clareza e correcção na prática pedagógica e consequentemente, melhor
qualidade no trabalh o.

E xistem transições mais simples e outras mu ito mais complexas mas


todas podem se r treinadas; o processo pass a a depender do t rabalho do
performe r e não apenas da sua habilid ade inat a .

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