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O anti-fitness

ou o manifesto anti-desportivo

Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Luís Coelho
Fisioterapeuta mézièrista
Professor de Pilates
Investigador na área das raquialgias
“Vejo no relativismo uma doença dos pensadores,
a qual consiste em acreditar que a opção entre duas doutrinas rivais é arbitrária,
porque a verdade não existe, ou porque não há nenhum meio de decidir,
se entre duas teorias, uma é superior à outra.”

(Karl Popper)

Título: “O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO.


INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE REEDUCAÇÃO POSTURAL”
Autor: Luís Coelho
Paginação: Maria João Rico
Impressão: Fotolitaria, Lda.
ISBN: 978-989-8086-25-9
Depósito legal nº:
1ª Edição: Novembro de 2008

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Contra Margem Lda
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Índice

AGRADECIMENTOS ...................................................................................................9

PRÓLOGO .............................................................................................................11

INTRODUÇÃO ........................................................................................................13

I - DADOS HISTOLÓGICOS E FUNCIONAIS PRELIMINARES: TECIDOS CONJUNTIVO E MUSCULAR ...23

II - DIFERENTES TIPOS DE MÚSCULOS ..........................................................................35

III - POSTURAS DE “POSTURA” ..................................................................................44

IV - INTERVENÇÃO POSTURAL ...................................................................................53

V - O MÉTODO MÉZIÈRES OU A REVOLUÇÃO NA GINÁSTICA ORTOPÉDICA ...........................61

VI - O MÉTODOS NEO-MÉZIÈRISTAS ............................................................................71

VII - IMPLICAÇÕES DA REEDUCAÇÃO POSTURAL PARA A PRÁTICA DESPORTIVA .......................90

VIII - FITNESS ENQUANTO “INDÚSTRIA CULTURAL” ................................................. 115

CONCLUSÃO.................................................................................................. 123
agradecimentOs

Todos os autores que lemos e relemos, de forma mais ou menos incessante,


influenciam a nossa escrita. Daí que começaria por agradecer a feição desta obra a
todos os autores e todos os indivíduos que de alguma maneira influenciaram a minha
forma de pensar.
Neste contexto, um agradecimento é também devido a todas as pessoas que
conheci no seio do mundo do fitness, e, em especial, às pessoas que me ensinaram
ao longo de muitos anos, particularmente os mestres da Escola Superior de Saúde
do Alcoitão.
Não poderia deixar de agradecer também ao pessoal com que trabalho no dia
a dia, no Consultório e Clínica de Reabilitação, Lda. - Lisboa, que constituem, para
além dos colegas terapeutas e médicos responsáveis, os próprios doentes/alunos
das minhas aulas de reeducação postural. Foi com todos eles que se assumiu o meu
caminho metodológico.
Agradeço, em geral, a todas as pessoas que são capazes de ler os meus escritos
(incluindo os leitores do meu blog), e evitar atirar logo pedras, sem se questionarem,
sem reflectirem. Isto inclui especialmente diversos membros de grupos minoritários.
E não deixará sempre de ser nestes grupos que reside a Verdade...
Não poderia deixar de agradecer também ao Dr. José Luís Bernardino Rocha por
toda a paciência necessária no decorrer dos últimos anos.
E, particularmente, à Dra. Helena Mineiro, agradeço a forma como abraçou o
projecto deste trabalho, e o entusiasmo que manteve do início ao fim da feitura da
obra.
Deixo quase para o fim um agradecimento fundamental aos meus pais, os quais,
mesmo não compreendendo completamente a importância deste trabalho, e
tropeçando no medo de que eu seja objecto de alguma forma de estigmatização,

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LUÍS COELHO

não deixam de me apoiar, sendo a força motriz mais importante da minha vida nos
tempos mais problemáticos.
Aos meus amigos, velhos, novos e futuros, agradeço toda a companhia, e a ajuda
no saborear dos prazeres da vida. PrólOgO
E, por fim, o agradecimento mais importante. À Vanessa Almeida, a quem dedico
particularmente esta obra. A minha antiga companheira íntima e a minha eterna
amiga Vanessa, um dos seres simultaneamente mais niilistas e mais sentimentais que
conheço, é e será sempre a minha “alma gémea”, alguém que, apesar de tantas O termo anti-fitness surpreende pela suposta contradição que evoca nas nossas
aventuras e desventuras, quero que herde todo o “objecto” da minha vida. Que os mentes. Nos tempos modernos, tem sido vendida a ideia de que o exercício
teus olhos continuem a brilhar (no amor) tanto agora como sempre brilharam!... físico é sinónimo absoluto de “saúde”. Aliás, fitness significa, num sentido mais ou
menos etimológico, um “completo estado de bem-estar físico”, nas suas diversas
Luís Coelho componentes.
Nesta obra, teremos sempre em conta uma designação de fitness enquanto um
Contacto: coelholewis@hotmail.com conjunto de práticas físicas cada vez mais em voga, supostamente com um componente
Blog: http://www.reeducacaopostural.blogspot.com importante de auxílio da saúde. Veremos porque é que defendo que o fitness está
Site: http://www.reeducacaopostural.com muito longe de constituir um serviço à saúde humana. Para tal, apresento uma série
de argumentos, todos eles com base em factos ou dados científicos basilares, assim
como apresentarei, de forma séria, a minha visão teorética da coisa.
É, portanto, necessário dizer que esta obra é sobretudo um “manifesto”, uma
tentativa de construção de um conceito, de transmissão de um entendimento. Este
não é um livro de instruções. Não é um guia de treino, apesar de fornecer algumas
bases do que será uma “revolução na metodologia do treino”. Este livro é uma obra de
carácter teorético. Os seus objectivos são a passagem imperiosa de uma mensagem
e da iniciação a uma pragmática, não de uma pragmática propriamente dita.
E é uma obra para ser lida com a mente aberta. E com toda a certeza de que a
Verdade deve ser encontrada, não nas pressuposições de investigadores imperfeitos, e
muito menos nas crenças das “maiorias” ensinadas por esses mesmos investigadores.
A Verdade carece de uma epistemis adequada. E disso tentarei não me esquecer no
decurso da escrita deste manifesto.

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intrOduçãO

O título da presente obra remete para o campo da inadequada compreensão


do tipo “utilitarista”, o que é o mesmo que dizer que a grande maioria das pessoas
não concordará sequer com o conceito que me proponho defender, nos seus mais
básicos circunlóquios. Falar de desporto tem sido, nas últimas décadas, falar de
uma espécie de milagre ou descoberta médica ultra-inovadora, um aglomerado de
artifícios corpóreos tendentes à criação de um super-homem, de tudo capaz, com
tangentes possibilidades físicas e/ou mentais. Aliás, a temática desportiva, seja pelas
suas cambiantes psicossociais, seja pela crescente mediatização das competições que
lhe estão associadas, tem dado lugar a um discurso assaz público, capaz de toldar os
mais aprimorados espíritos da intelligentsia nacional e internacional.
Não pretendo, de forma alguma, com o meu discurso, barganhar a ideia de que
o desporto é inteiramente mau ou que possui só consequências deletérias para o
organismo biomecânico. O que pretendo realmente fazer é mostrar, de uma forma
umas vezes científica, outras vezes inteiramente apodíctica (portanto, com base em
axiomas), que, em termos músculo-esqueléticos, e somente nestes termos (que o
mesmo será falar de um contexto determinado), o desporto actual e modernamente
praticado possui mais inconvenientes que vantagens.
Pretendo, anunciar, que o desporto, e a actividade gímnica em geral, tal como
nos é apresentado, constitui mais forma que conteúdo, mais aspecto que verdadeira
inteireza, tendo, em si, todas as armas disponíveis para alimentar a patologia do
“corpus” frágil que todos possuímos. Se especificarmos a “questão patológica”
veremos, com algum nível de análise, que me refiro não tanto a um “curto prazo
nosológico” mas mais a um “longo prazo estrutural”. Ou seja, quando falo das
consequências nefastas que a actividade desportiva poderá ter para o corpo músculo-
esquelético, falo essencialmente numa óptica relativa ao “longo prazo”, uma óptica

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ou dimensão de um “porvir” que não pode ser mais do que meramente previsto em estultamente negligenciado. Geralmente, a discussão presente finaliza-se no ponto
termos especulativos. em que se entende, em que se assume que “a função faz o órgão” e que, como tal,
Tentemos especificar melhor a última ideia. Sabemos que a ciência médica tudo depende da função. Mas, o que havemos todos de fazer se ninguém reparar
interessa-se fundamentalmente pela patologia “presente”. O seu modelo, que tem que, em toda esta história, provavelmente “o Rei vai nu”, e estamos todos a incorrer
sido tantas vezes apelidado de “biomédico” ou “biomecânico”, consigna a “cura” de num erro crasso?... Ou, o mesmo será dizer, que havemos de fazer se, porventura,
uma anomalia estrutural e/ou funcional. Raramente as “ciências da saúde” se têm a função depende, de forma inextricável, da estrutura que a acomete?... Será que
interessado pela “prevenção” (seja primária, secundária ou terciária). E raramente compreendemos suficientemente bem as implicações dessa possibilidade? Será que
essas mesmas ciências se têm interessado pelos aspectos, mais sublimes, da estrutura conseguimos mesmo atender à possibilidade de que tudo o que fazemos “agora”
corporal enquanto aspectos definidores da saúde do “porvir” de determinado terá repercussão cumulativa no design músculo-esquelético do corpo, interferindo na
indivíduo. É certo que cada corpo é uma idiossincrasia, única e singular no seu todo. função futura?... Diria que o contexto dos métodos fisioterapêuticos de Reeducação
Mas também é certo que a ciência médica se tem interessado sobretudo pelos Postural, que iremos atender mais tarde, implica a compreensão de que é a estrutura
aspectos grupais (ditos nomotéticos) dessa mesma idiossincrasia. A ciência médica, que vence a “pressão dual” do binómio vigente.
muito pela forma como a mesma está teorética e institucionalmente cimentada, Ainda no contexto da dicotomia estrutura vs. função, talvez não seja demais repetir
prima por um pensamento preferencialmente do “curto prazo”, por um esquema que é a parte “função” do binómio que tem sido amplamente objecto de investigações,
conceptual fundamentalmente funcional. Não se interessa muito pelo “andamento” estudos maioritariamente de natureza experimental (ou quasi-experimental). No
de uma condição, pelo futuro de uma patologia, pelas consequências de um contexto desses estudos, é inegável que a prática física possui uma série de efeitos
determinado comportamento e, sobretudo, pelo devir de determinada morfologia numa ou várias funções corpóreas. Portanto, quando falamos de funções como a
(relativa à forma ou estrutura corporal). força, potência muscular, resistência muscular, mobilidade articular, resistência aeróbia,
No parágrafo anterior deixei latente uma dicotomia. Trata-se do binómio, e tantas outras, remetemo-nos para um conjunto de indicadores/variáveis funcionais
especialmente relevante, estrutura vs. função. Aproveitando a ideia do parágrafo, relativamente fáceis de medir e de obter. No respeitante aos estudos relativos a
diria que a ciência médica se tem interessado especialmente pela “função” corpórea, esses mesmos indicadores, não é difícil adivinhar que o treino de força conduz ao
e pouco pela estrutura. Mas, temos de deixar bem claro que tal é totalmente aumento da força (medida, por exemplo, com um dinamómetro) e do volume
coerente, se tivermos em conta que, geralmente, a ciência que é praticada visa o (medido meramente por uma fita métrica) musculares ou que o treino de resistência
“curto prazo funcional”, ou seja, visa a medição de uma série de variáveis, controladas aeróbia leve à diminuição da frequência cardíaca e da tensão arterial (em repouso), no
preferencialmente numa população randomizada (ou aleatorizada), no contexto de médio prazo. E também não é difícil pressupor que estas mesmas funções corpóreas,
estudos de mensuração de uma ou mais funções corporais. Daí que a “ciência” se treinadas até determinado ponto, levam à melhoria da saúde e qualidade de vida
interesse sobretudo pela função, pois tudo o que interesse ao design corpóreo remete do indivíduo. Não obsto a essa evidência. Há, provavelmente, milhares de estudos
para um campo de “longo prazo” que poucos têm a paciência ou a disponibilidade relacionados com as funções referidas. E não há quaisquer dúvidas que a prática
para escrutinar. Portanto, voltando ao binómio presente (estrutura vs. função), diria desportiva possui inúmeras vantagens para a saúde cardio-respiratória, óssea e até
que somente a parte função é sabidamente conhecida, assim como apenas essa parte psicomotora.
tende a ser aludida no respeitante ao “campo de actuação” da prática física. Contudo, A dúvida, nomeadamente aquela que proponho neste “manifesto”, prende-se
o outro lado do binómio, o lado da estrutura, tem sido amplamente esquecido, senão com a saúde músculo-esquelética, num sentido geral, e com a saúde postural, num

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sentido restrito. Pois, é precisamente aí que a investigação existente ecoa no vazio das Cadeias Musculares”, facilmente podemos começar a visar um conjunto imenso
e, partindo de uma série de pressupostos e de axiomas criados pelos paradigmas de implicações para o mundo da fisioterapia classicamente preconizada e da actividade
fisioterapêuticas de “Reeducação Postural”, acredito que há um enorme fosso teórico física modernamente praticada. Aliás, para mim, as ditas implicações são tão óbvias
(e também pragmático) que pode e deve ser analisado. que, todos os dias, me impressiono por ver tantos e tantos profissionais de Fisioterapia
O mesmo será dizer que, se atendermos à postura como design músculo- e de Educação Física a cometerem sucessivamente os mesmos erros e a caírem tão
esquelético, poderei desde já dizer que esse mesmo design, na realidade de natureza profundamente na ignorância cabal relativamente à temática da Globalidade e da
mio-fascial, constitui um assunto de grande âmbito e complexidade, com fortes Postura enquanto design corpóreo.
repercussões na questão “saúde” que nos pretendemos tratar. Ou seja, o paradigma Não entendo as ditas implicações de uma forma muito mais completa do que
dito postural possui uma repercussão inalienável naquilo que podemos designar como aquele que foi o entendimento de Thérèse Bertherat sobre a mesma temática. O
“saúde músculo-esquelética a longo prazo”. E, como veremos, não é despiciendo mesmo será dizer que o meu entendimento da prática desportiva não acrescenta,
dizer que existe uma enorme ignorância, entre leigos e profissionais, relativamente aparentemente, muito às ideias de Bertherat e à sua antiginástica. Todavia, o meu
àquilo que consigna à temática da Postura e da Intervenção Postural. entendimento estende-se a um conjunto mais vasto de ideias e actividades, tomando
Esta obra começará por tratar a parte que considero mais proeminente em termos
as modalidades do tipo fitness como uma espécie de “alvo a abater”. Daí o conceito,
teoréticos: a natureza das estruturas musculares e fasciais, aquelas que, supostamente
por mim criado, de Anti-fitness. Veremos que, para mim, o conceito presente não
estão envolvidas no “desenhar” da nossa estrutura músculo-esquelética. Isto não
se resume ao conjunto citado de implicações músculo-esqueléticas advindas do
antes de esclarecermos o postulado mais importante desta obra, que é também o
paradigma da “Reeducação Postural”. O anti-fitness é mais do isso; é uma reflexão
postulado mais importante dos métodos de “Reeducação Postural” que iremos tratar
sobre as práticas, progressivamente superficiais, que visam o treino compulsivo de
no “manifesto”, nomeadamente que “o estado das estruturas miofasciais determina a
um “corpo frágil” e a esteticização patológica desse mesmo corpo. É um conceito
forma e alinhamento das articulações”. Iremos, portanto, começar o nosso trabalho
global, decorrente em muito da ideia de “alienação” sustida por tantos filósofos...
pela análise sucinta da natureza histológica (relativa aos tecidos humanos) de músculos
alienação relativamente ao fitness enquanto prática destruidora da harmonia corporal
e tecido conjuntivo, acabando num capítulo de análise do conceito ou postulado
central do “trabalho postural” que advogo. e do equilíbrio psicofísico com esta relacionado. O anti-fitness constitui, portanto,
Só depois pretendo traçar um percurso que passa pela análise do conceito de uma “entidade ontológica” independente e relevante.
“postura” e pela história geral dos métodos ditos de “Reeducação Postural”. Posso Da ontologia (relativa ao que há) passemos para o campo epistémico (relativo à
dizer desde já que, face à tão grande prolixidade de métodos de “intervenção teoria do conhecimento), com o qual pretendo finalizar esta introdução. É preciso
postural”, aqueles que apresentam a grande inovação conceptual para o nosso atender que muitas das afirmações que profiro se baseiam em premissas e teorias,
trabalho correspondem aos métodos da Escola francesa, ou seja, todos os que partem fortemente ligadas aos métodos de “Reeducação Postural”, um tanto ou quanto
do grande método, praticamente desconhecido em Portugal e no mundo anglo- especulativos. Ora, se a temática “estrutural” se relaciona com o campo do “longo
saxónico, de Françoise Mézières, o método Mézières. Todos os outros métodos prazo longitudinal”, é logicamente difícil suster os métodos em análise por estudos
podem ser considerados como secundários àquele que levou a ideia de Globalidade verdadeiramente científicos. Ou seja, especificamente falando, o trabalho com o
ao seu máximo, e também àquele que criou o conceito de “cadeia muscular”. método Mézières ainda carece de um linha de estudos experimentais que atestem a
Todas estas bases são fundamentais no sentido em que caminhamos na direcção “evidência” da “técnica”. O que não é de estranhar, pois, à semelhança da psicanálise
de um propósito. Compreendendo aquela que pode ser entendida como a “Teoria e de tantos outros métodos de carácter fortemente conceptual, as metodologias de

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terapêutica global dizem respeito a aspectos muito abrangentes da Pessoa, sendo, daquelas que fazem das aulas de “educação física” o grande tormento semanário.
portanto, difícil isolar variáveis e medir resultados. Não tenho dúvidas de que os mesmos A ironia reside no facto de que, após ter tido uma infância particularmente “inactiva”,
existem e estão bem presentes nas mentes de terapeutas bem experimentados. Na tornei-me, na minha adolescência já tardia, um fervoroso praticante de desporto, em
realidade, para mim, toda a conversa da “falta de evidência” encerra, no seu âmago, particular de musculação. Foi a prática da musculação que me ajudou a conceber uma
a dificuldade em compreender um conjunto de pressuposições axiomáticas que têm ideia do corpo como constitutivo de um conjunto avultado de músculos, unidades
sido tão importantes na edificação de grandes teorias do conhecimento. Que Karl da potência práxica, estruturas que aproximam articulações e que nos permitem a
Popper me perdoe se, por vezes, incorrer na falta de falsificabilidade científica. Ainda concretização de uma série de actividades. A musculação ajudou-me, naquela altura,
mais, porque tanto admiro este homem que soube dizer que Verdade há só uma e a ver o corpo como um todo, cujos conjuntos musculares trabalham muitas vezes de
o que varia é a proximidade a essa Verdade. forma sinérgica e associativa. Ajudou-me, em particular, a ter uma ideia de que grupos
Esta última premissa é especialmente relevante, pois, quando eu disser que musculares compõem o corpo e a que tipo de “acções” esses grupos se destinam.
acredito que, por exemplo, a musculação alimenta os “desequilíbrios musculares”, a Este tipo de conhecimento iria, de forma mais ou menos directa, mais ou menos
par de tão grande evidência observacional cimentada, muitos outros dirão que essa indirecta, influenciar a minha entrada no curso de Fisioterapia, altura em que seria
é a minha verdade, e que, paralelamente à minha há muitas outras verdades. Por particularmente útil o meu conhecimento “rudimentar” da anatomia muscular. Diria
mim, dispenso tal pós-modernismo. A Verdade depende, obviamente, do homem que, para indivíduos completamente incultos em matéria de “desporto”, a prática de
que a “constrói”, mas há, indubitavelmente quem tenha a lógica e a Verdade mais uma qualquer actividade física poderá ser vantajosa no sentido de poder dar um certo
perto de si. nível de consciência corporal. Por outro lado, essa mesma prática poderá tornar-se,
Será que eu me considero “essa” pessoa? Será que vejo em mim algum tipo de num segundo tempo, cem por cento nefasta, ainda mais se estiver associada a uma
destino messiânico? Como é óbvio, seria prejudicar-me demasiadamente se admitisse entrega mais ou menos obsidiante.
tal coisa. Perante a perplexidade da existência de tantos e tantos paradigmas (na lógica Acontece que não precisei de muito tempo para perceber que a “força muscular”
de Kuhn) e de tantas epistemis (na lógica de Foucault), somente convido os leitores a constitui apenas uma entre diversas funções corpóreas, e que o seu treino em
terem sempre presente a “dúvida” e a reverem copiosamente as suas ideias, tentando elevado grau poderia fazer com que o corpo perdesse determinados atributos,
evitar as barreiras naturais que tendem a interpor-se. Na realidade, algumas das ideias principalmente flexibilidade. Durante o curso de Fisioterapia, constituí várias vezes
que defendo vão contra o que a “maioria” advoga. E vão certamente contra um “modelo” para os professores e colegas, exemplo perfeito do que uma prática rígida
certo tipo de tradição. E, para além disso, muitas dessas mesmas ideias são contra- do desporto poderia levar em termos de “equilíbrio muscular”. O meu corpo estava
intuitivas, aumentando a vontade natural para não as aceitar. Convido qualquer um a absolutamente ingovernável, repleto de “desequilíbrios musculares”, chegando a
pensar na quantidade de ideias contra-intuitivas que, inicialmente pura especulação, haver estruturas musculares que realizavam tarefas de forma totalmente patológica
se tornaram um facto à luz da ciência mais rigorosa. e disfuncional. Rapidamente, ficou bem explícito que vários anos de musculação,
Gostaria de terminar esta introdução com uma contextualização, de natureza apesar de terem dado ao meu corpo uma certa “estética musculosa”, tinham enchido
biográfica, considerada importante, para compreendermos a necessidade da escrita a minha “capa” de diversos defeitos que só dificilmente se poderiam corrigir. Precisei
desta obra. de vários anos de curso para ter uma ideia mais ou menos “diferencial” da concepção
Devo dizer que é um tanto ou quanto irónico que escreva esta obra, nesta de corpo músculo-esquelético. Mas, mesmo assim, mesmo com vários anos de
fase da minha vida, ainda mais porque fui uma criança particularmente sedentária, curso e uns poucos anos de prática profissional, a minha ideia de “corpo” não diferia

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

cabalmente da ideia de “corpo” que é partilhada pela maioria dos fisioterapeutas e tempo para começar a entender certos argumentos de fisioterapeutas especialistas
profissionais de educação física. em “Reeducação Postural”, assim como a natureza fundamental do trabalho
Os profissionais da Motricidade partilham uma ideia de corpo enquanto estrutura reeducativo.
constituída por um conjunto de diversos grupos musculares, mais ou menos A ordem dos capítulos deste livro reflecte, de alguma maneira, a ordem com
“comunicáveis” entre si. Tanto o trabalho de “contracção”, quanto o trabalho de que fui “integrando” muitos desses conceitos. Essa mesma ordem também reflecte a
“distensão”, são vistos enquanto funções relativas a grupos musculares distinguíveis necessidade de uma certa coerência conteudística. Convido os leitores a fazerem um
uns dos outros: flexores (aproximam duas superfícies ósseas) e extensores (afastam trajecto pela obra, um trajecto necessariamente de “mente aberta”, pois só assim se
duas superfícies ósseas) do ombro e da anca, do cotovelo e do joelho, do punho e poderá verdadeiramente entender a natureza do conhecimento.
do tornozelo, e das diversas secções da coluna; abdutores (afastam da linha média),
adutores (aproximam da linha média) e rotadores do ombro e da anca; etc. As diversas
funções musculares são vistas como adstritas às funções articulares mais importantes,
e o treino de pesos (e de todas as actividades que utilizam resistências), assim como
o treino de flexibilidade, é visto em termos desses grupos musculares, um por um.
A visão de Globalidade muscular, ou seja, a visão de conjuntos estendidos de
grupos musculares sinérgicos, e sobretudo a visão de Globalidade mio-fascial (um
conceito mais lato que o anterior), não tem sido apanágio dos paradigmas de treino e
do trabalho de fisioterapia convencional. Independentemente da pessoa ou patologia
existente, o treinador ou o terapeuta gostam de fortalecer, tornar os músculos
mais potentes e resistentes, e pensam sempre segundo o “raciocínio dos grupos
musculares”, nunca segundo um raciocínio de... cadeias musculares, conceito que irá
ser mais tarde tratado.
Dizia eu que, quando comecei o meu trabalho de fisioterapeuta, não via o corpo
de uma forma muito diferente de um treinador que trabalha conjuntos de músculos.
Aliás, os fisioterapeutas mais “experientes” que observava também não trabalhavam,
em geral, segundo “uma outra forma de ver” as coisas.
Só muito mais tarde, quando abracei a área da Reeducação Postural, começando
a ler os livros da “Reeducação Postural Global” de Souchard, comecei a perceber
que as coisas poderiam ser vistas de uma forma diferente. E comecei, igualmente,
a revalorizar a questão dos “diferentes tipos de músculos”. Precisei de vários anos
de trabalho em “Reeducação Postural” para começar a perceber que o corpo
possui uma identidade global bastante mais completa do que a “identidade” que nos
servem nos cursos de base de Fisioterapia e Motricidade. E precisei de bastante

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i - dadOs histOlógicOs e funciOnais
Preliminares: tecidOs cOnjuntivO e muscular

A “histologia”, ou seja, o estudo dos tecidos biológicos, constitui terreno


fundamental do nosso percurso. Obviamente, não interessa discorrer muito sobre
o tipo de tecidos que compõem o organismo humano. Aliás, à nossa visão “global”
do corpo interessa, sobretudo, um conjunto de dois tecidos: o tecido conjuntivo e
o tecido muscular.
O tecido conjuntivo ou conectivo compõe, de forma dominante, as articulações,
as peças anatómicas que permitem os eixos de movimento.
Bienfait1, na sua obra “Os desequilíbrios estáticos”, apresenta uma descrição
sucinta deste tipo de tecido, descrição que vai ao encontro da nossa “perspectiva”. O
tecido conjuntivo é, portanto, constituído por um conjunto de células denominadas
“blastos”, cuja função é a secreção de duas proteínas de constituição: o colagéneo
e a elastina. Estas duas proteínas possuem alguma capacidade regenerativa, mas,
enquanto a elastina (proteína de longa duração) constitui uma forma estável, o
colagéneo (proteína de curta duração) modifica-se durante toda a vida. Segundo
Bienfait, é nestas proteínas que se situa a maior parte da patologia do conjuntivo
(sendo esta especialmente relevante para as alterações estruturais). No interior
do tecido conjuntivo, as duas proteínas formam fibras, as quais contribuem para a
substância matricial da estrutura articular. Agora, é fundamental perceber a dinâmica
deste conjunto de fibras, a qual tem sido tantas vezes negligenciada por tantos
profissionais. Sublinhem-se as seguintes palavras. A “dinâmica” estrutural do tecido
conjuntivo depende totalmente do mecanismo funcional das fibras anteriormente
mencionadas. Bienfait refere a “dinâmica da elastina” como estando dependente do
“estado de tensionamento” do tecido (p.15): (a) “se a tensão suportada pelo tecido
é contínua e prolongada, as moléculas colaginosas e os feixes conjuntivos alongam-
se”; (b) “se o tecido suporta tensões curtas mas repetidas, as moléculas colaginosas

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

instalam-se em paralelo. As fibras colaginosas e os feixes conjuntivos multiplicam-se”. diferentes. Em geral, podemos resumir as coisas desta maneira: é necessário um
O caso (a) refere-se ao fenómeno de crescimento do tecido, nomeadamente ao determinado tipo de força de deformação para que o tecido inicie o seu “alongamento”.
“alongamento” do tecido. O caso (b) refere-se à compactação do tecido, ou seja, À medida que essa força for ocorrendo, aquando de um leve alongamento, o tecido
à densificação do tecido proteico. O caso (a) deriva da força contínua e progressiva funciona na porção elástica da curvatura. Esta “pequena deformação” produz uma
de alongamento. O mesmo será dizer que o crescimento ou alongamento do série de alterações reversíveis no tecido conectivo, que o mesmo será dizer que
tecido depende da submissão do mesmo a uma tensão longitudinal progressiva e “ocorrerá completa recuperação dessa deformação normal caso a sobrecarga não
continuamente realizada. É a primeira pista que damos para a forma como deve seja mantida” (Kisner & Colby, p. 151). Se a sobrecarga continua para além do
ser feito o alongamento, muito particularmente importante para quando falarmos ponto anterior, acabamos por entrar na “amplitude plástica” da deformação tecidular,
da fáscia (estrutura essencialmente constituída por tecido conjuntivo). O caso (b) ocorrendo uma forma mais permanente de alongamento. Entretanto, se é aplicada
deriva da submissão do tecido a repetidos estados de tensões curtas, o que aparece uma carga máxima e é atingido o ponto de força máxima o tecido acabará por falhar,
fortemente relacionado com o trabalho de força do tecido muscular. Assim sendo, havendo a possibilidade de ruptura.
o trabalho de força leva à compactação tecidular, e, indubitável e axiomaticamente Se compararmos a deformação do “tecido não contráctil” com o esticar de
demonstrado pela “ciência histológica”, leva à diminuição progressiva da elasticidade. um elástico, podemos presumir que uma deformação fraca e não mantida leva à
Isto remete-nos para um campo extremamente polémico da discussão envolvendo o recuperação completa da “elasticidade”; uma deformação mais persistente leva ao
treino de força vs. treino de flexibilidade. Os dados apresentados levam-nos a supor aumento da amplitude ou da flexibilidade do citado elástico, e uma deformação
que, realmente, o mito de que o treino de força leva a uma diminuição progressiva “demasiadamente persistente” leva à “distorção” das propriedades do referido
da flexibilidade tem sentido de existir. Muitos autores contrapõem a este “mito”, elástico.
defendendo que o facto de o músculo ser mais forte não significa que se torne menos Importante será ter em atenção que é totalmente científica a noção de que
flexível... mas, todavia, nós ainda nem chegámos à parte relativa a esse tipo de tecido tanto a força como o tempo de deformação tecidular influenciam a capacidade de
(muscular). Ainda estamos a falar de um tipo sistematicamente gorado de tecido deformação permanente do tecido.
biológico, que é o tecido conectivo. Há, aliás, uma fórmula de deformação, que é a seguinte:
Kisner & Colby2, na sua mítica obra “Exercícios terapêuticos”, preferem falar Índice de deformação = Força aplicada / Coeficiente de elasticidade x Tempo
de um tipo de tecido não contráctil, falando, de duas “forças” relacionadas com a O Índice de deformação é conhecido como fluage, sendo que este é um estado
flexibilidade deste tipo de tecido: sobrecarga e distensão. É academicamente bem normal ou fisiológico dos tecidos dependente directamente da Força e do Tempo.
conhecida a chamada “curva sobrecarga-distensão”, a qual demonstra existir uma Factores como o calor submetido ao tecido (por exemplo, na forma de exercício)
certa proporcionalidade entre a sobrecarga ou força exercida no tecido conjuntivo e e a idade cronológica influenciam o Coeficiente de elasticidade. O primeiro aumenta-
a distensão obtida no mesmo, até que, após determinado limite de força, a distensão o, enquanto que o segundo diminui-o. O aumento do Coeficiente de elasticidade
diminui, havendo, mais tarde, a possibilidade de ruptura do tecido. leva à diminuição da fluage, o que significa que tudo o que aumente a elasticidade,
Vários factores influenciam a “curva sobrecarga-distensão”, e estes podem ser como o calor na forma de exercício físico, diminui a capacidade de deformação
revistos em Kisner e Colby: elasticidade, dureza, deformação, rigidez estrutural, permanente do tecido.
produção de calor (conhecida por histeresis) e fadiga. Este facto é especialmente relevante e aponta para um dos mais importantes
A “curva sobrecarga-distensão” pode e deve ser interpretada de formas muito aspectos “revolucionários” a ter em conta no respeitante a uma “nova” metodologia

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de treino. O alongamento, que é comummente realizado a quente e no final do o treino de flexibilidade tem de ser adequado à tal “curva sobrecarga-distensão”
treino, só é verdadeiramente eficaz e factível se for efectuado a frio. Ou seja, uma anteriormente apresentada. Vários factores influenciam a elasticidade, e, perante
deformação permanente do tecido anteriormente falado só pode ser conseguida se os citados factores, podemos (e devemos) treinar a flexibilidade com um nível de
o treino de flexibilidade for realizado sem a presença de factores que aumentem o sobrecarga suficientemente forte para que haja uma deformação mais permanente,
Coeficiente de elasticidade. e suficientemente fraca para não correr o risco de lesões por distensão ou ruptura.
Philippe Souchard3, o pai da Reeducação Postural Global, chama a todo este Este “princípio de trabalho” deve estar presente independentemente do tipo de
“facto” o Paradoxo do Coeficiente de elasticidade. Em artigo meu, intitulado “O treino factores que influenciem a elasticidade do tecido. Para além disso, poderei ainda
da flexibilidade muscular e o aumento da amplitude de movimento: uma revisão argumentar que o “calor” embota a sensação de dor, a qual ajuda a guiar a sensação
crítica da literatura” (revista Motricidade, volume 3, n.º4, 2007)4, desmonto os de alongamento (e do seu limite), sendo que, na realidade, é o treino a quente que
aspectos mais científicos relativos ao paradoxo referido, sendo que faço uma revisão se torna (coerentemente) perigoso.
dos estudos relacionados com a utilização do calor como factor auxiliar no aumento A principal implicação da existência de tecido conjuntivo é a de que o alongamento
da flexibilidade. Concluo que a maioria dos estudos aponta para a não comprovação deve ser suficientemente prolongado de modo a que o citado tipo de tecido possa
de que o calor produza um efeito significativo no aumento da flexibilidade. “deformar” permanentemente. Por outro lado, certos autores, como Bienfait, não
Claro que estas afirmações estão, de certo modo, relacionadas com uma série concordam que se deva mexer com a fluage tecidular, argumentando que essa é uma
de discursos mais ou menos polémicos. A primeira questão a ter em conta é a da propriedade fisiológica dos tecidos que não deve ser modificada. Ora, esta assunção
própria validade da minha “revisão da literatura”. Será que eu fui completamente vai de encontro à ideia de muitos autores que referem que o verdadeiro treino de
objectivo na “recolha” dos estudos mencionados? A minha mente diz que sim, mas flexibilidade (ou seja, o verdadeiro treino de aumento das amplitudes de movimento)
pode ser meramente acto (mental) defensivo. Outra questão prende-se com o grau não deve ser realizado, e somente o “alongamento” (muitas vezes referido como
de aceitação de ideias pouco consentâneas. Na realidade, não há verdadeiramente “diferente” do trabalho de “flexibilidade”), sem vistas à deformação permanente, deve
razões genuinamente científicas para pressupor que o treino de flexibilidade tenha ser realizado. Por mim, devo dizer que não acredito na possibilidade reeducativa de
de ser realizado a quente. Essa ideia tradicional advém da pressuposição, da lógica, um método que não inclua o treino de flexibilidade propriamente dito. Ou seja,
da intuição de uma série de “especialistas”. Mas essa mesma pressuposição tão acredito que o treino de flexibilidade deve ser realmente e seriamente executado, se
lógica e intuitiva contradiz a lógica de uma equação científica, o que, mais uma vez, quisermos uma modificação mais “real” do estado de tensão dos tecidos (e, portanto,
demonstra que, por vezes, a ciência é contra-intuitiva. Temos, portanto, que uma da “consequente” postura corporal). Veremos que os métodos de Reeducação
série de “cientistas” afirmam e advogam teorias que não são apoiadas por uma Postural se baseiam num tipo de alongamento necessariamente lento e progressivo,
lei física basilar. As suas teorias baseiam-se não em factos objectivos mas sim em sem o qual não é possível haver mudança real dos aspectos da estrutura mio-fascial.
intuições de estatuto inteiramente subjectivo, sendo que, a meu ver, muitos dos Mas retomaremos mais tarde esta questão.
cientistas da área da “motricidade humana” têm realizado um mau serviço a respeito Se as propriedades mecânicas do tecido não contráctil são importantes, não
dessa dada “ciência”. Para além disso, muitos defensores da ideia de que o treino podemos esquecer as propriedades relativas ao tecido muscular. Todavia, as
de alongamento deve ser realizado a quente referem que o treino a frio aumenta propriedades ditas mecânicas do tecido muscular ou contráctil dependem sobretudo
o risco de lesão, pois a elasticidade do tecido a alongar é menor. Ora, para além de dos componentes de tecido conectivo, ou seja, quando falamos das propriedades
não existir qualquer prova científica desta asserção, deve ser dito que, obviamente, relacionadas com a “deformação” muscular estamos fundamentalmente a referir-nos

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

às propriedades mecânicas de deformação do tecido conjuntivo (tecido este que Ou seja, se tínhamos que saber as inserções e acção de cada músculo em
está na composição sectária-anatómica dos conjuntos musculares). Estas foram já particular, era dada preferência ao estudo “imagético” mediante a utilização de
tratadas. imagens de conjuntos musculares (como as imagens da figura 1) e não tanto de
Mas, ainda assim, há que referir outras propriedades, nomeadamente as músculos individuais.
propriedades ditas “neurofisiológicas” do tecido muscular. Trataremos das mesmas Dou um certo “realce” a esta temática por motivos que iremos compreender
depois de referirmos alguns componentes do tecido muscular. adiante. Na realidade, a maioria dos livros de anatomia de texto, como os livros do
Os músculos constituem a unidade motriz do nosso corpo. Lembro perfeitamente prof. Esperança Pina, visam o estudo de músculo a músculo, quando o mais correcto
as aulas de anatomia, nos tempos de estudante do ensino superior, em que os e “fisiológico” seria estudar “conjuntos musculares”, algo que se aproxime daquilo
músculos eram estudados sobretudo nas suas vertentes anatómicas relacionadas que mais tarde iremos designar por “cadeias musculares”.
com as inserções ósseas. Tínhamos que saber, para cada músculo, a sua “origem”, A visão analítica dos músculos domina o mundo da medicina e da “saúde” em
“inserção” e “acção” (cinesiológica). Na realidade, podemos estudar os músculos de geral. É quase sistémico o acto de julgar os males músculo-esqueléticos em termos
formas muito diversas, assim como podemos ver o sistema muscular também de de músculos ou tendões específicos, e raramente se atende à realidade patológica
formas muito diversificadas. Os meus antigos professores de anatomia encorajavam de um “conjunto muscular”. Por outro lado, em termos funcionais, é comum referir
o estudo “analítico” dos músculos, mas com desenhos globais dos mesmos. os flexores e os extensores, os abdutores e os adutores, os rotadores, entre outros
“realizadores” funcionais.
Dentro dos possíveis, devemos ver o corpo como um todo. Somos verdadeiramente
uma espécie de gabardina de músculos, os quais se ligam uns aos outros em termos
anatómicos pelas aponevroses (tecido fascial), e, em termos mais funcionais, pelas
inserções ósseas comuns. Temos centenas de músculos ditos agonistas (realizadores
do movimento), outros que contrariam a acção destes (antagonistas) e músculos
que colaboram no processo funcional (sinergistas). Um mesmo músculo pode ser
agonista, antagonista e sinergista, mas nunca tudo ao mesmo tempo. E, assim, o corpo
aparece desenhado com uma série de “capas” musculares, umas mais superficiais,
outras mais profundas, todas elas numa interacção mais ou menos contígua.
A história da anatomia humana releva para um campo extremamente profundo do
conhecimento médico e científico. Gostaria só de salientar a importância de Andrés
Vesálio (1514-1564), o mais importante anatomista de sempre. Para além de ter sido
um grande investigador, foi igualmente um grande ilustrador, e é bem conhecida a
excelência das suas imagens de conjuntos musculares. Aliás, como se pode ver pelas
figuras 2 e 3, Vesálio tinha já uma visão extremamente global do aparelho muscular,
uma visão que só seria historicamente “igualada” em pleno século XX com algumas
Fig.1 - Imagem simplificada do sistema muscular (plano superficial). famosas “imagens” das “cadeias musculares”.

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

O músculo é revestido por uma fina camada de tecido conjuntivo - o perimísio.


Por sua vez, o epimísio divide o músculo em secções ou feixes musculares. O feixe
divide-se também, por sua vez, em secções, as fibras musculares, também elas
rodeadas de tecido conjuntivo. Portanto, um músculo é constituído por um conjunto
avultado de fibras musculares, dividindo-se cada uma em miofibrilas contrácteis,
sendo estas constituídas por dois tipos principais de proteínas: a actina e a miosina.
Entretanto, é importante dizer que as miofibrilas são constituídas por unidades
funcionais denominadas sarcómeros, os quais incluem um sistema de filamentos;
estes filamentos deslizam entre si, encurtando o sarcómero aquando da contracção
muscular e aumentando o seu comprimento aquando da “distensão”.
Kisner & Colby descrevem muito bem a resposta mecânica da “unidade contráctil”
ao alongamento. Resumindo, podemos dizer que, quando o alongamento é realizado
Fig. 2 - Imagem de Vesálio. Fig. 3 - Imagem de Vesálio.
passivamente, o alongamento inicial ocorre no componente elástico em série. Após
certo ponto, ocorre um comprometimento mecânico das pontes transversas à
medida que os filamentos - anteriormente referidos - se separam com o deslizamento
Em termos fisiológicos, poderei dizer que é tarefa hercúlea descrever os
e ocorre um alongamento brusco nos sarcómeros (Flitney e Hirst, 1978, citados
pormenores do funcionamento neuromuscular do aparelho músculo-esquelético.
por Kisner & Colby). Quando a força de alongamento é libertada cada sarcómero
Aliás, não é minha intenção escrutinar aqui de forma elaborada temas que podem ser
recupera o seu comprimento de repouso. É a esta “energia potencial elástica” do
encontrados em quaisquer livros de anátomo-fisiologia.
músculo que se dá o nome de elasticidade, propriedade igualmente imputável ao
O tecido muscular que nos interessa é conhecido por tecido muscular estriado
tecido conjuntivo. O mecanismo de alongamento mais permanente, relacionado
esquelético. Este mesmo tecido constitui a propriedade “carnal” da estrutura
com o já referido trabalho lento e progressivo de flexibilização, está relacionado com
esquelética. A figura 4 desmonta as partes constituintes do tecido muscular e tecido o aumento do número de sarcómeros em série.
conjuntivo associado. Estes factos são de natureza “física” e, portanto, claramente científica. Também é
científico o facto de haver um aumento da quantidade de tecido conectivo aquando
perimísio
da imobilização do músculo em posição de contracção, assim como é científico
endomísio
epimísio sarcômero igualmente o facto de esse aumento tecidular ser acompanhado de uma redução
sarcolema
miofilamento no número de sarcómeros (Tabary et al., 1972; Tardieu et al., 1982; Threlkeld,
1992; citados por Kisner & Colby). Daqui a afirmar que o trabalho de contracção
fibra muscular miofibrila
muscular, associado ao processo de fortalecimento muscular, resulta no mesmo tipo
feixe muscular de redução do número de sarcómeros, não me parece que exista grande distância
teorética.
músculo Se a natureza mecânica funcional do tecido muscular é relevante, não deixa de
Fig. 4 - Partes constituintes do tecido muscular. ser igualmente crucial referir alguns aspectos da natureza neurofisiológica do tecido

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

contráctil. É importante relembrar que existe uma relação directa entre o córtex relaxação muscular. No meu já citado artigo da revista Motricidade apresento um
cerebral e os neurónios que inervam os conjuntos musculares, mediada pelo sistema quadro de resumo de estudos que atestam a credibilidade científica do PNF enquanto
piramidal, assim como existe uma relação entre as zonas subcorticais do encéfalo método de incremento da flexibilidade. Por outro lado, não podem ser gorados
e outro género de neurónios que inervam os músculos, mediada, desta vez, pelo todos aqueles estudos que demonstram que a seguir a uma contracção mantém-
sistema extra-piradimal e, em baixo, pelo sistema Gama. É no contexto deste sistema se sempre um estado de tensão latente ao nível do músculo, não sendo possível o
que devemos referir a existência de um conjunto de fibras musculares, colocadas bem mesmo relaxar por completo (proponho a consulta da revisão de Rosemary Payne5
no centro do músculo, que trabalham como censores ou medidores sensíveis ao grau na sua obra “Técnicas de relaxamento”). Ora, acontece que alguns estudos muito
e velocidade de alongamento muscular. Refiro-me ao fuso neuromuscular. Este “fuso” recentes referem que a eficácia do PNF no aumento da flexibilidade não se deve
detecta variações na velocidade e duração do alongamento muscular, activando, em afinal à activação do reflexo tendinoso de Golgi (como se pensou durante décadas),
resposta a esse alongamento, o chamado reflexo miotático, o qual conduz à contracção mas sim devido à existência de um prévio mecanismo de inibição pré-sináptica do
muscular. O aspecto relevante de todos estes dados neurofisiológicos é que, se for sinal sensorial do fuso neuromuscular 6.
realizado um alongamento brusco, produz-se, em resposta, uma rápida contracção Aliás, já vários estudos mediante a utilização de medições electromiográficas
muscular, o que significa que, se se pretende realizar uma deformação tecidular (método de medição dos inputs neuromusculares) tinham demonstrado que a
mais permanente, e portanto evitar essa mesma contracção muscular defensiva, o seguir a uma contracção o músculo não relaxava por completo, o que, demonstra
alongamento deve ser realizado lentamente. Por outro lado, o alongamento lento que, independentemente do processo envolvido no “contrair-relaxar” deve ser
faz disparar o órgão sensitivo do tendão (Órgão Tendinoso de Golgi), levando este, questionada a eficácia da contracção muscular como veículo para o relaxamento e
por meio do chamado reflexo tendinoso de Golgi, à produção de um relaxamento flexibilização. Veremos que os paradigmas de Reeducação Postural não incluem a
muscular. utilização das técnicas “de contracção” referidas. E isso deve-se sobretudo ao facto
Os pormenores e respectivos autores podem ser consultados em Kisner & Colby. de a Escola francesa de onde vem a maioria desses métodos ser um pouco alheia aos
Importa, sim, afirmar que estes dados são muito mais do que meras pressuposições, estudos referidos (os quais são de origem anglo-saxónica).
constituindo dados já liminarmente aceites, relacionados com as bases fisiológicas Acabamos este capítulo com a referência à electromiografia. E é com “medições
mais preliminares. electromiográficas” que se traçou definitivamente um novo e importantíssimo
Importa, já agora, acrescentar que a contracção muscular vigorosa produz percurso na compreensão da “fisiologia muscular”, nomeadamente na distinção entre
também a activação do reflexo tendinoso de Golgi, levando alguns autores a duas grandes naturezas de músculos: os músculos tónicos e os músculos fásicos.
presumir que a contracção pode, em certa medida, ser utilizada como veículo O assunto é de tal forma importante e crucial que merece um capítulo próprio.
de relaxamento muscular. Tem sido essa a “base” teorética de certos métodos de Veremos, portanto, no próximo capítulo os principais aspectos relativos às diferentes
trabalho da flexibilidade como o contract-relax e o hold-relax do PNF (Facilitação naturezas musculares. Sublinho desde já que só mediante a compreensão adequada
Neuromuscular Proprioceptiva), método um pouco na moda dos profissionais do dessa “natureza muscular diferencial” é que é possível traçar o caminho que este livro
fitness, já conhecido há várias décadas entre os fisioterapeutas. Também tem sido - e toda a minha teoria - se propõe. Portanto, não negligencie o próximo capítulo
essa a base de vários métodos de “relaxamento progressivo” como o “relaxamento como tantos profissionais da motricidade têm surpreendentemente feito.
muscular progressivo de Jacobson”. Em ambos os métodos, é utilizada a contracção
muscular vigorosa seguida de relaxamento como veículo do aumento do estado de

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LUÍS COELHO

Bibliografia (I)

1. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento


fisioterápico. São Paulo: Summus editora. ii - diferentes tiPOs de músculOs
2. Kisner, C. & Colby, L. (1998). Exercícios terapêuticos: fundamentos e técnicas (3ª
edição). São Paulo: Editora Manole Ltdª.
3. Souchard, Ph-E. (1981). Le champs clos. Paris: Maloine.
4. Coelho, L. (2007). O treino da flexibilidade muscular e o aumento da amplitude É de admirar que, nos tempos que correm, ainda existam cursos da área da
de movimento: uma revisão crítica da literatura. Motricidade, 3(4): 22-37. motricidade que relevam para segundo plano a temática da classificação dos diferentes
5. Payne, R. (2003). Técnicas de relaxamento. Um guia prático para profissionais de tipos musculares. Ora, é um facto que os músculos do nosso corpo não são todos
saúde. Loures: Lusodidacta. iguais. Eles diferenciam-se em muitas características e esses mesmos caracteres
6. Chalmers, G. (2004). Re-examination of the possible role of Golgi tendon organ relevam para diferentes tipos de classificação, uns nem sempre compatíveis com os
and muscle spindle reflexes in proprioceptive neuromuscular facilitation muscle outros.
stretching. Sports Biomech, 3(1): 159-183. Há imensas referências bibliográficas relativas ao tema. Por mim, poderia cair aqui
no acto de “revisão da literatura” intensiva e tornar todo este texto hiper-científico.
Pois é certo que muito há a dizer sobre as classificações dos tipos musculares.
Poderia, inclusive, fazer aquilo que tantos “investigadores” fazem: plagiar um artigo já
realizado, mudando uns verbos aqui e uns substantivos acolá, e citando as referências
do “meu” trabalho como genuinamente consultadas, fazendo de conta que as
mesmas não estavam já referidas no artigo de base. Por uma qualquer compulsão
de ordem eticista, prefiro citar o artigo para onde olho neste momento. Chama-
se “Classificação e adaptações das fibras musculares: uma revisão” e é de Viviane
Minamoto e de uma revista brasileira (Fisioterapia e Pesquisa 2005; 12(3):50-5)1. Este
mesmo artigo explica, de forma sucinta, os diferentes tipos de classificação das fibras
musculares, com a necessária contextualização científica.
É certo que, em geral, existem diversas formas de classificar as fibras musculares.
E tudo varia segundo o critério científico que é atendido. E esse mesmo critério
prescreve um modelo ou contexto de investigação determinado.
É de realçar que a primeira classificação dos diferentes tipos de fibras musculares
remonta ao ano de 1873, quando foi utilizada a coloração do músculo (Ranvier):
as fibras foram classificadas como brancas ou vermelhas. E essa coloração está
intimamente ligada à constituição estrutural e funcional das células que compõem

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

esses tecidos. A coloração vermelha está ligada à alta concentração de mioglobina Vemos pela análise do quadro 1 que existe uma forte correlação entre os diferentes
e com a grande densidade de vascularização do tecido. Estes músculos de fibras tipos de fibras musculares.
essencialmente “vermelhas” serão, portanto, músculos de actividade mais “constante” Mas para quê analisarmos de forma tão científica e tão demorada estas
do que músculos com menor concentração de mioglobina (músculos brancos). classificações? Queremos, não obstante o enfado que esta teoria possa causar, deixar
Assim, os músculos de coloração vermelha estão associados àqueles que são de bem sublinhada a certeza científica e factual da existência de dois grandes tipos de fibras
natureza a realizar actividades preferencialmente aeróbias, como todas as actividades musculares: umas relacionadas sobretudo com actividades musculares constantes e
que implicam uma activação prolongada ou por tempo indefinido. Estes mesmos outras relacionadas sobretudo com actividades musculares inconstantes.
músculos de coloração vermelha tendem a ser, noutros termos, consentâneos com A distribuição numérica e proporcional do tipo de fibras musculares por cada
os músculos ditos slow-oxidative, com fibras do tipo I, de contracção lenta e com alta músculo vai permitir perceber qual a natureza funcional dominante desse mesmo
resistência à fadiga. músculo. É preciso deixar bem preciso que há dois grandes tipos de músculos no
No quadro 1 apresentamos uma tabela, adaptada de Minamoto1, que relaciona corpo humano: os músculos que possuem maior proporção de fibras musculares de
os diversos tipos de classificação de dois grandes grupos de músculos. um tipo e os músculos que possuem maior proporção de fibras musculares do outro
tipo. Essa proporção é altamente viciosa e depende sobretudo da função exercida
Quadro 1. Terminologia utilizada para a classificação dos diferentes tipos de fibras pelo músculo. Ou seja, a proporção de fibras musculares de um determinado tipo
musculares (Minamoto, 2005). em dominância relativamente a outro tipo depende totalmente da raiz funcional
do músculo ou grupo muscular em questão. E essa mesma função depende das
MÉTODOS DE “ordens” que esse mesmo músculo recebe de níveis neuronais que lhe são bastante
CLASSIFICAÇÃO DAS AUTOR(ES)/ANO TERMINOLOGIA DA CLASSIFICAÇÃO DAS FIBRAS superiores.
FIBRAS MUSCULARES
Assim sendo, há que referir a existência de músculos tónicos e de músculos
fásicos. Os músculos tónicos possuem uma alta proporção de fibras de contracção
Coloração Ranvier / 1873 Vermelha Branca
lenta, sendo que os mesmo tendem a ser pluri-articulares (ou seja, cruzam várias
Bioquímico Peter et al / 1972 Slow-oxidative
Fast Glicolitic/Fast- articulações); são músculos fundamentalmente posturais e portanto de natureza anti-
Oxidative Glicolitic gravítica (ou seja, responsáveis pela manutenção ou sustentação do corpo contra a
Guth & Samaha / 1969 gravidade). Os músculos fásicos possuem uma alta concentração de fibras musculares
Histoquímico Tipo I Tipo II e subtipos
Brooke & Kaiser / 1970 de contracção rápida, com um papel fundamentalmente anaeróbio ou inconstante.
Fisiológico (Vários) Contracção lenta Contracção rápida São responsáveis pela produção da maior parte das acções motrizes voluntárias.
Metabolismo Ogata / 1958 Oxidativo Glicolítico
Portanto, vamos dizer o mesmo de uma forma diferente. O corpo aparece
desenhado com dois grandes conjuntos musculares. Um conjunto é composto por
Kugelberg & Edstrom Alta resistência à Baixa/moderada
Limiar de fadiga músculos de tonicidade ou activação constante, possuindo uma função postural. É o
/ 1968 fadiga resistência à fadiga
caso da maioria dos músculos ditos paravertebrais (músculos posteriores da coluna)
Imunohistoquímico
Staron / 1997
Myosin heavy chain I Myosin heavy chain II e da quase totalidade dos músculos da região posterior do corpo. Estes músculos,
Pette et al / 1999 designados de tónicos, possuem uma activação fraca mas constante, tendem a

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

estar presentes em zonas profundas do corpo e compõem as chamadas “cadeias Estes factos, que são - para mim - extremamente básicos, são esquecidos todos
musculares”. Por estarem em constante activação, estes músculos possuem uma os dias por todos os profissionais de saúde e educação física que teimam em querer
tendência inequívoca para se encontrarem encurtados (portanto, muito contraídos). fortalecer músculos extensores da coluna. Ao fazerem-no estão a criar condições
Os músculos fásicos são de activação fundamentalmente consciente e voluntária, sendo para a criação de novos encurtamentos e de um esgotamento tónico da musculatura
que trabalham somente quando ordenamos a sua actividade (os tónicos possuem posterior. Pois a verdade é que o tal “endireitamento” das costas, associado de forma
uma activação fundamentalmente inconsciente e involuntária). São os músculos da superficial à “boa postura” está dependente da capacidade de activação tónica da
força, mas como só se activam esporadicamente não têm grande tendência para o musculatura extensora da coluna (posterior), e esta capacidade está dependente
encurtamento. de algo que podemos designar de maleabilidade tónica. Aumentando a tensão de
É preciso atender ao seguinte: as diversas medições dos impulsos neuromusculares músculos já tendencialmente tensos estamos a diminuir essa capacidade. E estamos
- feitas mediante a utilização da electromiografia - têm demonstrado a realidade a contribuir para a fadiga dessa musculatura, por super-activação.
inquestionável da função dos músculos tónicos vs. músculos fásicos. É, portanto, E quão visionária foi Françoise Mézières quando percebeu que as deformidades
inquestionável que os músculos posturais estão em activação quase permanente, posturais advinham dessa mesma super-solicitação tónica. Quão inteligente foi esta
enquanto os músculos fásicos só se activam quando os mandamos mover determinada
senhora ao prever o “erro” presente no trabalho de activação ou fortalecimento de
articulação. Os estudos electromiográficos também têm demonstrado que é possível
músculos tendencialmente encurtados...
os músculos fásicos chegarem a um completo estado de repouso ou relaxamento,
Bem, demos agora mesmo já uma série de pistas acerca do que são os métodos
mas tal é praticamente impossível de ocorrer com a musculatura tónica.2-5
de Reeducação Postural, sobretudo aqueles que têm por base o método Mézières.
Sabe-se actualmente que os músculos tónicos estão presentes fundamentalmente
Veremos mais tarde que Françoise Mézières, sem conhecer necessariamente bem a
na zona posterior do corpo, enquanto que a musculatura fásica é sobretudo anterior.
diferença teorética entre músculos tónicos e músculos fásicos, soube perceber que a
Qualquer semelhança com a natureza da cadeia muscular postural posterior
deformidade estava relacionada sempre com “excessos musculares” da musculatura
- identificada primacialmente por Françoise Mézières - é pura coincidência...
posterior.
poderíamos dizê-lo, apenas com um fim totalmente humorístico. Pois é tão certo
que a musculatura postural está sempre em tensão que todos os dias me espanto O tratamento segundo o método também não difere muito da assunção base
ao verificar nas prescrições fisiátricas a presença de algo como “fortalecimento dos de que os músculos tónicos, por estarem já excessivamente retraídos, devem ser
extensores”. Ora, se a musculatura postural é de natureza tónica, então a sua activação alongados, enquanto que os fásicos devem ser fortalecidos.
é inquestionavelmente um facto. Para quê estimular uma musculatura cuja activação é Souchard6 veio mais tarde lidar mais à vontade com os conceitos tratados. São
constante?... Para quê activar uma musculatura que já possui uma tendência inefável dele as seguintes palavras que resumem os objectivos de tratamento ou “princípios
para o encurtamento?... De facto, a musculatura posterior tem um aspecto de de intervenção” da Reeducação Postural Global: (1º) Só as posturas activas em
fraqueza, mas tal deve-se unicamente ao facto de que, sendo a musculatura tónica alongamento podem devolver aos músculos hipertónicos, rígidos e dolorosos a sua força,
constituída essencialmente por fibras musculares de contracção lenta, esses músculos comprimento e flexibilidade; (2º) É necessário alongar os músculos da estática [tónicos]
não têm a capacidade para crescer ou hipertrofiar. Daí o seu aspecto algo asténico. e os músculos suspensores, encurtando-se os músculos da dinâmica [fásicos]; (3º) Só as
Mas não passa tal aspecto de pura ilusão. Essa musculatura aparentemente fraca está, posturas de estiramento progressivo cada vez mais globais permitem alongar todos os
na realidade, numa activação quase permanente; de tal forma que, mesmo deitados, músculos rígidos, assim como reencontrar a retracção de origem.
os músculos posturais de sustentação mantêm uma actividade remanescente.

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Estas frases são fundamentais e expressam os objectivos fundamentais do Ora, é normal que o método Bobath, assim como muitos outros paradigmas de
trabalho em Reeducação Postural. Expressam, também, o objectivo de trabalho em intervenção neurológica, advoguem a realização de um trabalho de inibição tónica,
qualquer abordagem física que possua a “saúde” como fundamento primacial. Ora, é sem o qual é impossível obter a função “normal”.
indubitável que os diferentes tipos de desportos e actividades de fitness não possuem Todos os terapeutas que trabalham com o método em questão sabem que o
no “alongamento” o seu modelo base de trabalho. Na realidade, muitos instrutores “fortalecimento muscular” é total heresia, pois o mesmo só poderá levar a mais
de fitness são completamente alheios à realidade da distinção teorética tratada neste deformações e/ou compensações corporais. O que eu sugiro é a interpretação da
capítulo. E os que a conhecem simplesmente não sabem muito bem como lidar com teoria de Bobath à globalidade do funcionamento corporal, incluindo as pessoas
os conceitos vigentes. Por exemplo, quando Souchard fala de “fortalecimento dos sem lesão neurológica. E assim sendo, não será difícil perceber que o trabalho de
músculos da dinâmica”, eventualmente as pessoas poderão pensar que podemos fortalecimento muscular jamais poderá ajudar na edificação postural, e portanto, no
fortalecer músculos anteriores com pesos ou resistências. Mas tal presunção é um tratamento da deformidade e/ou da raquialgia.
erro, pois sempre que realizamos uma actividade que envolva contracção muscular E estas pressuposições são de tal forma inequívocas que é difícil entender por que
contra resistências, estamos, sem qualquer possibilidade de o evitar, a estimular é que ninguém vê que, em história de tratamento de dores da coluna (raquialgias),
os músculos da estática. Os dados provenientes da electromiografia5 não deixam
o “Rei vai nu”. Talvez se deixem levar pelos tais aspectos de aparente fraqueza
margem para dúvidas de que até os mais pequenos esforços, quando realizados
muscular...
contra resistências, envolvem o esforço da musculatura tónica, a tal musculatura que
O motivo pelo qual os médicos se mantêm agarrados ao paradigma “fortalecimento”
deveria somente ser alongada e relaxada.
é diferente do motivo pelo qual os profissionais da motricidade mantêm o mesmo
É por este motivo que defendo que a maioria das actividades de fitness, em
tipo de modelo. Os médicos mantêm-se nesse modelo essencialmente porque
especial a musculação, desrespeitam as leis fundamentais da postura e do trabalho
possuem um tipo de ignorância que o Sistema ajuda a alimentar (e quando me refiro
postural.
ao Sistema, refiro-me ao Estado que retira importância ao trabalho da Fisioterapia e
A assunção de que o trabalho de força levaria ao surgimento de deformações
alimenta a prossecução desse trabalho com meros papeis de “prescrição médica”). Os
e “compensações” (reacções de substituição inadequada da actividade muscular),
inquinando a possibilidade de se realizar um trabalho de facilitação da função profissionais de educação física mantêm-se nesse modelo essencialmente porque não
apropriado, é comum também à maioria dos paradigmas de tratamento em conhecem outro, portanto mais uma vez a ignorância a permanecer no Sistema...
reabilitação neurológica, principalmente aquele previsto pelo método Bobath. Outro conceito que os ditos profissionais ignoram é o de “desequilíbrio muscular”.
O método Bobath constitui o mais famoso método de intervenção fisioterapêutica Na realidade, quando falamos de uns músculos com tendência para o encurtamento
em condições neurológicas como a paralisia cerebral ou os AVCs. O método em e outros com tendência para o relaxamento, estamos a referir-nos à emergência da
questão, desenvolvido pelo casal Bobath, defende o treino da facilitação de padrões possibilidade de existência de um desequilíbrio muscular. Um “desequilíbrio muscular”
funcionais de movimento, mediante a precedente inibição do tónus anormal. Não tem sido definido em termos da existência de um músculo ou grupo muscular muito
devemos esquecer que, mais tarde ou mais cedo, a maioria dos doentes com encurtado levar à inibição e alongamento do seu antagonista (músculo ou grupo
lesão cerebral desenvolve condições de hipertonia, ou seja, desenvolve reacções muscular com a acção inversa). Portanto, podemos dizer que o corpo aparece gerido
relacionadas com o excesso tónico. Esse mesmo “excesso tónico” tende precisamente por um conjunto mais ou menos avultado de desequilíbrios musculares. O simples
a aparecer em músculos de natureza tónica, estática e/ou postural, e é de tal forma facto de a zona posterior ser fundamentalmente tónica (porque é essa zona que nos
estrénuo que pode aparecer sob a forma de padrões específicos de actividade. “endireita”) e a zona anterior ser fundamentalmente fásica ou dinâmica leva-nos a

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

pensar que o equilíbrio corporal assenta num gigantesco estado de “desequilíbrio Bibliografia (II)
muscular”. O desequilíbrio muscular é tanto maior quanto mais acrescida for a
décalage entre as “forças musculares” oponentes. E a deformidade postural advém 1. Minamoto, V. (2005). Classificação e adaptações das fibras musculares: uma
do tamanho progressivo dessa mesma décalage, ou seja, a deformidade postural é revisão. Fisioterapia e Pesquisa, 12 (3): 50-55.
tanto maior quanto maior for a relação hipertónica/hipotónica entre as diferentes 2. Burke, J.F. (1973). Electrode placement and muscle action potentials
“faces” do corpo. amplitudes. Physical Therapy, 53(2): 127-131.
O objectivo de tratamento em Reeducação Postural não é muito mais do que 3. Gollnick, P.D., & Matoba, H. (1984). The muscle fiber composition of skeletal
a tentativa de criar um maior equilíbrio. Ou seja, mediante a inibição dos músculos muscle as a predictor of athletic success. An overview. American Journal of Sports
hipertónicos e a estimulação dos hipotónicos tenta-se dar um maior equilíbrio postural Medicine, 12(3): 212-217.
ao corpo. Veremos mais tarde que o conceito de “desequilíbrio muscular” e que a 4. McLean, L. (2005). The effect of postural correction on muscle activation
noção de reequilibração postural são apanágio sobretudo dos métodos ditos “neo- amplitudes recorded from the cervicobrachial region. J Electromyogr Kinesiol,
mézièristas” de intervenção. 15(6): 527-535.
Mas gostaria de deixar já bem explícita a questão funcional dos músculos posturais. 5. Gurfinkel, V. et al. (2006). Postural muscle tone in the body axis of healthy
Se o tónus postural é necessário para o requerido “endireitamento postural” não humans. J Neurophysiol, 96(5): 2678-2687.
será um contra-senso inibir esse mesmo tónus? Não será contra-indicado trabalhar 6. Souchard, Ph-E. (1981). Le champs clos. Paris: Maloine.
no sentido de inibir a musculatura tónica/estática? A resposta pode ser encontrada
no conceito, tão caro a Mézières e a Souchard, de hegemonia. O que acontece
é que as reacções ditas normais à sobrevivência humana acabam por, facilmente,
ser exageradas pelo próprio corpo, até ao ponto em que perdem o seu sentido
de existir. Assim sendo, se uma quantidade mínima de tónus é necessária à função
“anti-gravítica” da musculatura postural, o normal é encontrar um estado de super-
activação constante e desinibida. Assim sendo, urge controlar as reacções de
sustentação postural referidas.
Ora, podemos acabar este capítulo referindo a primeira definição possível de
postura. Assim sendo, podemos definir postura como o conjunto global das reacções
de equilíbrio muscular existentes numa interacção constante e abrangente no
corpo.
Veremos que quando falamos de postura ou morfologia (relativo à forma) estamos,
em muito, a referir-nos à natureza neuromuscular de um conjunto avultado de
processos corporais.

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O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

sendo que uma se centra mais na força do centro do corpo e a outra se centra mais
na flexibilidade. Iremos tentar ordenar todos estes diversos campos semânticos e
idiomáticos.
iii – POsturas de “POstura” Comecemos pela caracterização do termo “postura”. Este possui um significado
original de “posição, atitude ou hábitos posturais”1. Por “postura” podemos entender,
em termos práticos, “a posição optimizada, mantida com característica automática
e expontânea, de um organismo em perfeita harmonia com a força gravitacional e
A questão que se coloca logo é: porquê definir “postura”? Qual a importância predisposto a passar do estado de repouso ao estado de movimento”; funcionalmente,
que a mesma tem para o nosso manifesto? O que acontece é que quando falamos pode ser considerada como “o conjunto de relações existentes entre o organismo
de postura falamos de um conjunto multidimensional relativo ao design corpóreo. como um todo, as várias partes do corpo e o ambiente que o cerca”; substancialmente,
Ou seja, falamos de todas as características, mais neurológicas ou mais músculo- porém, vai de acordo com “um complexo sistema de muitos moldes, no qual
esqueléticas, que interferem com o “desenho” ou formato do corpo. intervém, além do carácter biomecânico, um conjunto de variáveis” (p.22).
Ora, devemos conceber esse mesmo desenho enquanto a “estrutura” basilar do Enquanto “posição corpórea”, “postura” pode referir-se tanto à posição relativa a
corpo, que mais não é que o conjunto estrutural das articulações, influenciadas por um tempo determinado, tendo como exemplo o conjunto das curvaturas vertebrais
um conjunto de forças dadas às mesmas pelos músculos e respectiva tonicidade. funcionais, como à posição relativa a uma estrutura determinada, admitindo agora
Essa mesma “estrutura” irá determinar o tipo e grau de mobilidade articular e de como exemplo o conjunto estruturado (ou virtualmente estruturado) das curvaturas
função geral, assim como o conjunto das patologias relacionadas com as últimas. vertebrais (ditas anatómicas).
Portanto, tudo o que acontece em termos funcionais, e em específico, em Efectivamente, quando falamos de “postura” podemos estar a referir-nos a
termos desportivos, é, de alguma forma, condicionado pela “postura”, assim como a um “fenómeno” consubstanciado por diferentes perspectivas/dimensões e níveis.
personalidade humana condiciona o comportamento. E qualquer actividade motora Tribastone1 refere-se a planos, comparando os mecanismos de controlo postural com
será mais ou menos problemática, ou desgastante a nível articular, dependendo da os mecanismos de controlo do movimento (a postura pode ser, inclusive, definida
“estrutura corporal” de base. como um conjunto incomensurável de múltiplos e microscópicos movimentos -
Para entender por que é que o treino de força implica um conjunto de efeitos definindo-se esta como uma perspectiva ‘dinâmica’ da postura). Temos, portanto,
deletérios sobre o corpo, é preciso primeiro perceber um pouco a natureza das o plano anatómico, relativo à organização racional da actividade perceptivo-motora,
forças musculares (que já referimos) e aquilo em que resulta esse “jogo” de forças, alcançada a partir de movimentos, e com a normalização do conjunto das cadeias
ou seja, a postura. cinéticas, actuando na reequilibração das tensões miofasciais e das cadeias articulares;
Diversos investigadores têm dado luz a múltiplos métodos de “intervenção o plano neuromotor, relativo às sensações proprioceptivas e às variáveis aferentes de
postural” sem que uma definição conceptual de “postura” tenha sido aprioristicamente controlo postural; e o plano psicomotor, relativo à organização do esquema corporal,
relevada; daí que muitas das confusões metodológicas e pragmáticas dos vários alcançada a partir da percepção consciente e do conhecimento do próprio corpo,
métodos de “correcção postural” nunca tenham sido adequadamente resolvidas. Por das suas modalidades de funcionamento e da sua organização espacio-temporal.
exemplo, tanto no método Pilates quanto no Stretching fala-se de “postura”, mas em No respeitante aos mecanismos de regulação da postura, estamos a entrar num
ambos os métodos realizam-se conjuntos de metodologias físicas dissemelhantes, terreno essencialmente “neurológico” que é composto por um conjunto de quatro

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

níveis1: 1) centros superiores, que compreendem o cérebro, o cerebelo e o tronco Para termos uma ideia do que Mézières entendia como a bela forma basta
cerebral; a esses chegam as informações provenientes principalmente dos fusos atendermos à imagem modelo do David de Miguel Ângelo (fig. 4).
neuromusculares, dos mecano-receptores articulares, dos órgãos tendinosos de O conceito de postura “normal” apresenta, no paradigma “componencial” de
Golgi, e também da retina, da pele e do vestíbulo (responsável pelo equilíbrio); 2) Marcel Bienfait, a existência de um completo equilíbrio entre os centros de gravidade
interneurónios, motoneurónios alfa e gama, contidos na espinal medula (zona central de cada uma das peças ósseas que constituem o esqueleto dito “integral”. Aliás,
e inferior); 3) músculo e todos os factores que influenciam a resposta contráctil para os diversos proponentes das perspectivas “analíticas” do conceito postural e
(referimo-nos, como sabemos, essencialmente a músculos posturais, ou seja, respectiva intervenção, a postura significa essencialmente o encadear harmónico
músculos de controlo essencialmente inconsciente); e 4) fusos neuromusculares, de um conjunto de segmentos. Estes são, para Bienfait, organizados segundo dois
órgãos tendinosos de Golgi, vestíbulo e receptores sensoriais. sistemas: um sistema ascendente - equilíbrio estático assegurado pelos membros
Diferentes métodos de “intervenção postural” agem sobre uma ou mais partes dos inferiores e pelo tronco, e um sistema descendente - adaptação estática assegurada
referidos níveis de controlo postural. Daí que um processo de “reeducação postural” pela região cérvico-cefálica e pelo tronco 3.
nunca possa limitar-se só à dimensão neurológica ou só à dimensão muscular per
si. Por outro lado, os diferentes níveis de controlo postural, pelo facto de estarem
intimamente relacionados, influenciam-se mutuamente, sendo de esperar que a
intervenção num nível acarrete mudanças na totalidade dos níveis de controlo.
Por exemplo, o paradigma de Bricot2 refere-se sobretudo ao nível neurológico,
sendo que a sua intervenção (postural) acarreta modificações a nível proprioceptivo
(relativo à sensação corporal), regendo-se esta pela administração de palmilhas de
reprogramação postural, pela modulação do receptor ocular e/ou pela intervenção
ao nível do receptor dento-oclusal. Apesar de um tanto ultrapassado, o modelo de
Bricot constitui ainda plataforma obrigatória do estudo da posturologia (esta entendida
num sentido lato).
Tentemos, agora, definir o conceito de postura “normal”.
Para Bricot2, a postura normal significa a ausência de forças contrárias e a presença
de relações harmoniosas entre as diferentes componentes esqueléticas. O resultado
será a inexistência de dor.
Já que pretendemos referenciar o paradigma Mézières, vamos referir o que
é a postura perfeita para o método com o mesmo nome. A Madame Mézières
costumava referir-se às formas das obras de arte renascentista enquanto “formas
de dimensões perfeitas”. O trabalho em Mézières constitui um esforço de retorno
à “morfologia perfeita”, conhecida como a bela forma. As proporções da bela forma
correspondem ao número de ouro (em relação a √5 +/− ½) para o qual todos
deveríamos tender. Fig. 4 - A bela forma.

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Todas as alterações relativas à postura dita “correcta” correspondem a As deformidades posturais consideradas mais importantes são a cifose (curva de
paramorfismos, se as alterações são temporárias e reversíveis, e a dismorfismos, concavidade anterior) aumentada (fig. 6), a lordose (curva de concavidade posterior)
se as alterações se consideram fundamentalmente irreversíveis1 (claro que esta aumentada (fig. 6), a escoliose (desvio lateral da coluna, no plano frontal) (fig. 7), os
classificação não preenche os quesitos conceptuais do método Mézières, já que para pés planos ou cavos, os pés, joelhos e ancas varos ou valgos (desvios relativamente
o mesmo a linha teórica que separa as tais “dismorfias” dos referidos “paramorfismos” aos eixos verticais), em hiperextensão (recurvatum) ou em flexão (flexum).
é assaz espúria). Alguns autores referem-se a três graus possíveis de “deformidade”: o Claro que segundo o modelo de Bienfait a deformidade está presente no mero
primeiro grau constitui a “atitude” ou paramorfismo, facilmente tratável pela Fisioterapia desequilíbrio de uma única peça óssea. O desequilíbrio de uma peça é sempre
reeducativa, o segundo grau constitui a dismorfia parcialmente corrigível, e o terceiro compensado pela reequilibração de outra peça, portanto num novo desequilíbrio;
grau refere-se às deformidades que não devem ser objecto de alongamento, e que daí que um pequeno desequilíbrio pode dar origem a grandes deformidades. E daí
só podem ser eficazmente tratadas mediante a realização de cirurgia ortopédica 3. também que uma intervenção analítica, adequada ao desequilíbrio de cada peça
Para Bricot2, mais de 90% dos indivíduos apresentam um desequilíbrio postural. afectada, no sentido da consequência para a causa, possa ser, na visão de Bienfait,
Para o autor, os desequilíbrios posturais comportam planos: o plano de alinhamento suficiente e necessária ao tratamento do paramorfismo.
escapular e das nádegas, com aumento das curvaturas; o plano escapular posterior; Interessam ao nosso “modelo” de trabalho sobretudo as “deformidades” cuja
o plano escapular anterior com dorso plano; e os planos alinhados com diminuição origem seja do tipo “muscular”. Mas não devemos esquecer que uma deformidade
das curvaturas. - por exemplo, certas dismorfias congénitas - não tem de ser necessariamente de
É de reter também a classificação postural de Kendall, dentro das quais são ordem miofascial. Por outro lado, é possível que certas deformidades, inicialmente
paradigmáticas as “kyphosis-lordosis posture”, “sway back posture” e “flat back ósseas por excelência dêem origem a deformidades de predominância miofascial.
posture” (fig. 5). Entretanto, vale a pena criar uma divisão entre deformidade de natureza muscular
e deformidade de natureza fascial. Assumindo sempre que a fáscia é uma estrutura
mais difícil de “moldar” (pois, constitui um conjunto de músculos, articulações e
TYPES OF FAULTY POSTURE aponevroses), mais ligada à “forma” vista como “estruturada”, podemos dizer que,
A B C D E inicialmente um paramorfismo ou já uma dismorfia possui uma componente somente
muscular. Entretanto, também se pode falar na “estruturação” do paramorfismo
numa verdadeira dismorfia. Essa estruturação consiste, segundo Bienfait, na inclusão
de estruturas fasciais na “deformidade”, quando até ali era mais uma questão de
“tonicidade muscular”. Para este autor, o tratamento de uma deformidade bem
estruturada, ou seja, aquela que já envolve a fáscia, não pode significar uma correcção
relevante. Aqui, e como veremos mais à frente, Bienfait desacredita o método
RELAXED KYPHOSIS SWAY FLAT ROUND
Mézières, dizendo que o mesmo não é capaz de conseguir tamanhas correcções
GOOD FAULTY LORDOSIS BACK BACK BACK
POSTURE de “dismorfias”. Por outro lado, como veremos nos próximos capítulos, e como já
dissemos atrás, o método Mézières relativizará toda essa questão das “dismorfias”,
Fig. 5 - Classificação da postura segundo Kendall. afirmando que toda a deformidade é virtualmente recuperável (isto, se estiver “em

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

jogo” uma causalidade nos tecidos moles, e não uma deformidade óssea congénita).
Não quero entrar em mais pormenores sem que percebamos verdadeiramente
o contexto histórico da “intervenção postural”, em geral, e do método Mézières e
seus “filhos”, em particular.

Fig. 7 - Escoliose numa criança.

Quanto à avaliação postural, esta pode ser meramente observacional, mas pode
também fazer uso de instrumentos e metodologias complexas1. A mais utilizada
pelos clínicos é indubitavelmente sustida pela observação naturalística em real time.
É a partir dessa observação, e não esquecendo nunca a “imagem”, eventualmente
quimérica, fornecida pela bela forma, que o terapeuta mézièrista irá conduzir a sua
acção, sempre com vista à aquisição da morfologia “perfeita”.
Sem desprimor das definições apresentadas, diria que tanto as classificações
existentes de ‘postura’ como as enunciações definidoras da sua “normalidade”
vs. “anormalidade” caem no erro de considerar a “postura” como um arquétipo
concreto, objectivo e bem definido. A meu ver, a “postura” está para o corpo como
a “personalidade” está para a mente. Assim como é difícil definir a normalidade/
anormalidade do funcionamento personalístico, segundo um ponto de vista
psicologista, também é difícil definir os critérios de normalidade da “postura corporal”.
Fig. 6 - Postura cifo-lordótica. A “postura” é, tal como a personalidade, essencialmente uma idiossincrasia, um

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LUÍS COELHO

“corpus” definidor de um conjunto intrincado de factores psiconeurológicos, psico-


emocionais, músculo-esqueléticos e neuromusculares, variáveis, muitas vezes
radicalmente, de sujeito para sujeito. Portanto, a tentativa de classificar a postura
“normal” vs. “anormal” é, apesar de útil do ponto de vista nosológico, dispensável iv – intervençãO POstural
segundo o ponto de vista “dinâmico” e “morfoanalítico”.
No próximo capítulo iremos atender ao conceito (geral) de intervenção postural,
assim como ao conceito mais específico de Reeducação Postural, pré-requisitos ao
entendimento das bases do método Mézières. Não é minha intenção formular, neste capítulo, uma história da ginástica, mesmo
que queiramos especificar a nossa abordagem como a “ginástica de correcção
postural”. Afinal de contas, a história do desporto é quase tão antiga quanto a história
Bibliografia (III) da civilização. Aliás, se não nos esquecermos de certas práticas milenares como
o Yoga e artes marciais como o Tai-chi, então temos pano para mangas quase de
1. Tribastone, F. (2001). Tratado de exercícios correctivos aplicados à reeducação tamanho indefinido.
motora postural. São Paulo: Editora Manole. Nos tempos anteriores à nossa Era, tínhamos já a funcionar uma série de
2. Bricot, B. (2004). Posturologia (4ª edição). São Paulo: Ícone Editora. actividades do tipo desportivo, associadas a competições de maior ou menor nível.
3. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento Por exemplo, os Jogos Olímpicos, a competição multi-desportiva de maior nível,
fisioterápico. São Paulo: Summus editora. vêm, como é sabido de um tempo anterior à civilização helénica. Naquele tempo, os
jogos e as competições estavam irrefutavelmente ligadas à necessidade de emulação,
à necessidade de afirmação dos povos e até das raças. Temos, portanto, o desporto
ao serviço de uma série de razões de ser de ordem mais ou menos competitiva, algo
que se vai manter ao longo de milénios.
A história dos diversos desportos - individuais ou grupais - pode dar azo a uma
série de argumentos, assim como a pormenores mais ou menos importantes de
cariz histórico. Não interessa traçar aqui a história dos diversos desportos. Interessa
somente dizer que não há um único desporto que tenha sido inventado com um
fim de “saúde”. Todos os desportos parecem estar mais ou menos direccionados
para a consecução de um ou mais objectivos, quase todos de ordem mais ou menos
mentalista, mas nenhuma actividade desportiva foi inventada de propósito para servir
a saúde humana.
Por outro lado, certas actividades orientais, como o Yoga, foram criadas com a
intenção de criar um cômputo fisicalista numa prática fundamentalmente espiritual
e mentalista. O Yoga é interessante no sentido em que estava já associado à crença

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

de que o formato corporal dependeria de uma actividade muscular essencialmente numa época em que pouco se sabia sobre a natureza das estruturas anatómicas e das
estática, movida por princípios de alongamento global e progressivo. Os princípios funções por estas permitidas. Assim sendo, penso que não será difícil provar que a
do Yoga têm milénios de existência e, ainda assim, aproximam-se bastante dos “ginástica moderna”, ainda parcialmente movida pelos princípios de Ling, não possui
princípios da Reeducação Postural. Aliás, é curioso ver como tantos fisioterapeutas qualquer tipo de relevância para a intervenção dita “postural”. Aliás, todos aqueles
RPGistas se recusam a falar do Yoga e das suas possibilidades terapêuticas (em termos princípios de ginástica centrada na mobilidade das articulações e do alongamento
posturais), como se tivessem medo que o Yoga criasse uma espécie de “nuvem” ao feito no fim do treino advêm, muito, das pressuposições deste senhor que viveu num
seu método. tempo já há muito passado.
Tal receio não se justifica, pois o conceito moderno de “postura”, necessariamente O que é perfeitamente incrível é que ainda actualmente tantos e tantos
inclusivo da diferenciação entre musculatura tónica/estática e musculatura fásica/ fisioterapeutas, assim como professores de educação física, continuem a mover as
dinâmica, é do total ou quase total desconhecimento dos instrutores de Yoga. Ou suas abordagens por princípios seculares. Como é possível que, dado o conhecimento
seja, apesar de o Yoga ser portador de alguns princípios de intervenção “visionários”, do binómio “tónico vs. fásico”, tantos profissionais continuem a realizar ginásticas de
não faz uso das noções fisiológicas mais basilares. No Yoga, trabalham-se extensores correcção que se baseiam somente na mobilidade da coluna e outras zonas com
do tronco e flexores do tronco mais ou menos com a mesma disponibilidade. deformação?... A meu ver, tal nesciência advém, única e exclusivamente, da fraca
Tudo feito por instrutores que não são adequadamente formados, e não possuem vontade de evoluir para caminhos mais desenvoltos.
conhecimentos suficientes sobre a distinção entre os diversos tipos musculares. Devo dizer, neste momento, que o conceito de “correcção postural”, assim
Dizendo de outra maneira, o Yoga não discrimina os tipos de musculatura. Para como o conceito de “ginástica estática”, é extremamente lato e dado a inúmeras
mais, exagera o trabalho de extensão do tronco, trabucando a força da musculatura interpretações metodológicas. Ou seja, no início do século XX, eram já inúmeras
posterior, a tal musculatura que, segundo a distinção já realizada entre musculatura as referências a ginástica de “correcção postural”, assim como a “ginásticas estáticas”,
tónica e musculatura fásica, não deve ser fortalecida. Isto para não falar de todas mas tais conceitos estavam, em termos práticos, ainda muito longe de possuírem o
aquelas torções, supostamente realizadas para diminuir o nível de cifose dorsal...cem sentido que actualmente possuem.
por cento ineficazes por motivos que iremos explicar mais tarde...e cem por cento Em 1947, no ano em que Françoise Mézières iria criar o seu método, esta senhora
perigosas para indivíduos que sofram de hérnias discais. publicou a obra “La gymnastique statique”1, na qual falava um pouco sobre todas essas
Como este capítulo se dedica sobretudo à “intervenção postural”, não é minha ginásticas “estáticas”, com objectivos pretensamente de “intervenção postural”.
intenção perder muito mais tempo a explicar que praticamente quase todos os Alguns destes métodos aparecem bem explicados no capítulo “Escoliose” da obra
desportos existentes foram inventados antes da invenção da electromiografia, e de Tribastone2.
portanto, quase todos os desportos foram inventados antes de possuirmos os dados Os métodos “ginásticos” referidos pelo autor para o tratamento das escolioses
fisiológicos da distinção “tónica” vs. “fásica” que possuímos na actualidade. Também são os seguintes:
não pretendo perder muito tempo a explicar que este nosso livro se dedica sobretudo
à “ginástica” e não tanto ao “desporto” em geral. a) O método Niederhöffer, centrado no trabalho inicial de fortalecimento e
Caminhando pelas noções de “ginástica”, a referência à figura de Per Henrik Ling continuado de relaxamento dos músculos envolvidos nos desequilíbrios
(1766-1839) não deixa de ser obrigatória. Na realidade, este senhor sueco, o qual musculares próprios da escoliose;
viria a firmar as bases programáticas da ginástica moderna (dita “sueca”) viveu também

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

b) O método Schroth, centrado na tentativa de colocar em equilíbrio todas as excelência para um tipo de ginástica mais centrado em princípios neurológicos e de
deformações envolvidas nas grandes deformidades, baseando-se em exercícios treino sensorial-proprioceptivo.
de tomada de consciência, associados a exercícios respiratórios e de treino de Graças a Deus, Tribastone não perdeu tempo a pensar na possibilidade de o
força muscular estática; método Pilates poder ter algum tipo de efeito nas escolioses. A verdade é que
um método centrado na força abdominal, mesmo sendo centrado na força dos
c) O método Klapp, baseado na colocação de posições específicas na postura de abdominais profundos (transverso abdominal, soalho pélvico), não pode ter qualquer
quadrupedia; tipo de influência numa coisa tão complexa quanto a escoliose.
A escoliose tem sido vista como o modelo fundamental do trabalho de Reeducação
d) O método do Instituto Ortopédico Pini, baseado no trabalho em alongamento Postural, pois é uma perturbação indelevelmente ligada à temática dos desequilíbrios
completo e encurtamento incompleto dos músculos paravertebrais do lado musculares, e, muito precisamente, correlaciona-se sempre, independentemente da
da concavidade, e no trabalho em encurtamento completo e em alongamento sua origem, com um “excesso” da musculatura posterior.
incompleto dos músculos do lado da convexidade escoliótica; Considerada por Françoise Mézières3 como uma deformidade secundária à
lordose, Souchard4 deu-lhe uma importância enorme, relegando-lhe a atenção de
e) O método do Psoas, baseado na convicção de que as escolioses dorso-lombares várias formações especializadas.
e lombares podem obter uma vantagem terapêutica de contracção isométrica Os estudos recentes tendem a considerar a escoliose como um desequilíbrio
do músculo psoas (inserido superiormente na lombar e inferiormente na muscular de proporções variadas, mas todas as investigações dão relevo à existência
anca), do lado da concavidade escoliótica, ajudando, portanto, na diminuição de excessos ou contraturas musculares na etiologia da escoliose idiopática (primária,
dessa concavidade; sem causa aparente).5-8
Daí a lógica da ginástica estática, centrada sobretudo no trabalho de fortalecimento
f) O método Gimnasium, baseado na utilização de um conjunto de rolos muscular estático ou isométrico, não possuir já grande razão de ser. Portanto a crítica
piruteantes, os quais favorecem a contracção muscular simétrica; formulada por Mézières em 1947 a esses diversos tipos de ginástica tem a sua
conveniência.
g) O Estruturalismo Psicomotor; O facto de muitas dessas “ginásticas” moverem-se já pelo paradigma da “Estática”
representa um tipo de evolução que a maioria das actividades dos ginásios modernos
h) A Reeducação Proprioceptiva Neuromuscular; desconhece. Ainda assim, essas mesmas ginásticas davam excessiva ênfase ao trabalho
de força muscular, sem terem verdadeiramente em linha de conta o binómio “tónico
i) A Ginástica Proprioceptiva; e vs. fásico”, negligenciando o aspecto mais importante da Estática: o alongamento.
Mais ou menos paralelamente a esse tipo de “ginásticas estáticas”, os métodos
j) As Técnicas de Desequilíbrio. centrados no alongamento tecidular também tiveram o seu lugar na história. Mas esta
não é já a “história da ginástica”, é mais a “história da terapêutica global”, associada,
Estas últimas técnicas representam a passagem, fundamental em termos históricos, primacialmente e em termos ditos “miofasciais” aos osteopatas dos finais do século
de um tipo de ginástica mais centrado em princípios músculo-esqueléticos por XIX.

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

A importância do alongamento dos tecidos moles viria a ser formulada organizados globalmente de modo a formar um “trilho” ou “cadeia” dominante e de
várias vezes pelos osteopatas, os quais compreendiam bem o papel do “tecido natureza inquestionavelmente tónica ou estática.
conjuntivo” no estado de tensão do corpo e no “design” das articulações e da postura Mas atenção!... Não é Françoise Mézières que vai ligar a temática científica dos
global. músculos “tónicos vs. fásicos” à sua noção de “cadeia muscular”. Isso, quem o faz é
Em especial, uma estrutura que engloba vários componentes musculares e Souchard. Mas dos méziéristas e “neo-mézièristas” falaremos bastante nos capítulos
conjuntivos - a fáscia - viria a ser importancionalizada cabalmente pela osteopatia que se seguem. Aliás, os próximos capítulos são precisamente dedicados a explicar
preliminar. E todos os diversos métodos anglo-saxónicos de trabalho postural viriam as bases da revolução mézièristas, assim como a história do surgimento dos métodos
a integrar a fáscia como componente fundamental da dinâmica da Globalidade. discípulos.
Em especial, devemos referir o método da “Integração estrutural” ou rolfing, Para mim, a verdadeira Reeducação Postural, os verdadeiros métodos de
criado pela Doutora Ida Rolf (1896-1979).9,10 Esta bioquímica viria a criar um “intervenção postural”, as únicas ginásticas com verdadeiras potencialidades em saúde
método extremamente inovador, baseado no tipo de massagem mais profunda e e Postura, correspondem sobretudo aos métodos baseados nas teorias de Françoise
global existente à face deste planeta. O rolfing constitui um método inovador, o qual Mézières, e, naquilo que podemos designar como “teoria das Cadeias musculares”.
viria a influenciar todos os métodos anglo-saxónicos ditos de “Reeducação Postural”, Como já afirmei, para mim, uma ginástica só pode ser considerada “para a
incluindo os “Trilhos anatómicos” de Myers11. saúde humana” se respeitar as leis posturais, o que significa que só podemos
É de sublinhar o facto de que passei, agora a falar já do conceito de “Reeducação aceitar, em nome da saúde humana, as ginásticas posturais baseadas na “teoria das
Postural”. Para mim, a história dos métodos de “Reeducação Postural” começa com Cadeias musculares”. Como é a Postura que subjuga todas as restantes normas de
a noção de globalidade miofascial cedida pelos osteopatas americanos dos finais do funcionamento corporal, como é a Postura que representa a Estrutura humana, como
século XIX. E estes mesmos métodos viriam a desenvolver-se de forma independente a Psique representa a Estrutura psíquica humana, então somente poderei considerar
tanto no mundo anglo-saxónico quanto no mundo francófono. como “sãs” as “ginásticas” baseadas nos princípios do “alongamento global” e nunca
No mundo anglo-saxónico, os tratamentos ditos “globais” constituíram, durante as ginásticas estáticas sem discernimento da “teoria das Cadeias musculares” e muito
muito tempo, diversos tipos de terapia manual e/ou massagem que constituem menos as ginásticas do tipo fitness, dinâmicas, feitas para perder calorias, mas não
manobras analíticas no caminho da globalidade. Só muito mais tarde, os proponentes para respeitar as “leis do corpo”.
das metodologias relacionadas com os “trilhos miofasciais”, as quais são baseadas Gostaria de dizer que este capítulo “fica em aberto”. Ele será terminado nos
naquela que podemos designar de “teoria do sistema fascial humano”, viriam a fazer vários capítulos seguintes, principalmente nos dois próximos, nos quais falarei dos
uso de métodos globais de alongamento de “cadeias musculares”. Esta noção de diversos métodos de Reeducação Postural.
“trilho”, assim como o método de trabalho utilizado (centrado no alongamento
global), perdeu a corrida “ideológica” para a Escola francesa, nomeadamente a escola
de Mézières.
Podemos dizer que os anglo-saxónicos iniciaram as viagens de “exploração do
Espaço”, mas foram os franceses os primeiros a “chegar à lua”. Pois foram estes
que, pelas mãos de Françoise Mézières, criaram o conceito de “cadeia muscular”,
que mais não é do que um conjunto entrelaçado de músculos e tecido conjuntivo,

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LUÍS COELHO

Bibliografia (IV)

1. Mézières, F. (1947). La gymnastique statique. Paris: Vuibert.


2. Tribastone, F. (2001). Tratado de exercícios correctivos aplicados à reeducação v-O métOdO mézières Ou a revOluçãO na
motora postural. São Paulo: Editora Manole. ginástica OrtOPédica
3. Mézières, F. (1949). La révolution en gymnastique orthopédique. Paris:
Vuibert.
4. Souchard, Ph-E. (2003). As escolioses. Seu tratamento fisioterapêutico e A compreensão dos princípios do método Mézières implica o entendimento
ortopédico. São Paulo: É Realizações. da postura sobretudo como o resultado funcional do equilíbrio “estático” entre as
5. Karski, T. (1996). Contractures and growth disturbances in the hip and pelvis cadeias musculares. Mas o que são afinal as cadeias musculares? E de que maneira as
as the cause of “idiopathic scoliosis”. Biomechanical considerations. Chir mesmas contribuem para desenhar a forma do corpo, para moldar a sua estrutura?
Narzadow Ruchu Ortop Pol, 61(2): 143-150. Vamos tentar responder a estas questões no contexto da explicação da história do
6. Karski, T. (2002). Etiology of the so-called “idiophatic scoliosis”. Biomechanical método Mézières.
explanation of spine deformity. Two groups of development of scoliosis. New A história do método em questão releva de determinados acontecimentos e
rehabilitation treatment; possibility of prophylactics. Stud Health Technol Inform, observações que são do bom conhecimento do terapeuta mézièrista.
91: 37-46. A própria Mézières (fig. 8) conta na sua obra “L’homéopathie française”1
7. Karski, T. (2004). Biomechanical factors in the etiology of idiophatic scoliosis: (traduzindo): “Quando numa magnífica manhã de primavera de 1947, nós vimos
two etiopathological groups of spinal deformities. Ortop Traumatol Rehabil, 6(6): entrar no nosso consultório uma paciente apresentando uma soberba ‘cifose’, nós
800-808. estávamos bem longe de pressentir que a nossa profissão e o destino de toda uma
8. Karski, T. (2006). Recent observations in the biomechanical etiology of so legião de doenças iam ser mudadas. Tratava-se de um sujeito longilíneo, muito alto e
called idiophatic scoliosis. New classification of spinal deformity - I-st, II-nd and magro. Um colete de couro e ferro não havia conseguido parar, como esperado, a
III-rd etiopathological groups. Stud Health Technol Inform, 123: 473-482. progressão da doença”.
9. Rolf, I. (1977/1990). Rolfing. A integração das estruturas humanas. São Paulo: Nesta época, a ginástica postural clássica era, como já vimos, realizada com base
Martins Fontes. nas leis fisiológicas que aceiram o papel do fortalecimento muscular. E foi esse mesmo
10. Feitis, R. Ida Rolf fala sobre rolfing e realidade física. São Paulo: Summus tipo de trabalho que foi feito inicialmente com a doente. Mézières refere: “Nós
editorial. tentámos, naturalmente, os exercícios de ‘endireitamento’ e o trabalho dos músculos
11. Myers, T. (2003). Trilhos anatómicos. Meridianos miofasciais para terapeutas dorsais com vista a fortalecer os extensores do tronco, mas a rigidez era tal que
manuais e do movimento. São Paulo: Editora Manole. nada era possível realizar. Deitando, então, a nossa doente, no chão, em decúbito
dorsal, nós realizámos a flexão dos ombros e vimos, para nosso espanto, produzir-
se uma enorme lordose lombar. Para não acrescentar um mal à cifose já presente,
nós realizámos a báscula posterior da bacia e, para nosso novo espanto, vimos a
hiperlordose lombar esquivar-se e deslocar-se para a nuca”1 (fig.9).

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

“toda a modificação de comprimento no sentido do alongamento ou no sentido do


encurtamento de parte da musculatura tem repercussão sobre todo o conjunto”.
Françoise Mézières acrescenta: “Tanto que como o alongamento da musculatura
lombar se traduzia pelo encurtamento da curvatura cervical, a lei é que o alongamento
de um qualquer músculo posterior leva ao encurtamento do conjunto de toda a
musculatura posterior”1. É o que costumamos chamar de compensação.
“Então, para esta paciente, nenhum músculo posterior era demasiadamente fraco
ou longo, nem mesmo os da região cifosada; pelo contrário, todos estavam curtos,
rígidos e fortes demais. O sujeito não era de forma alguma esmagado pela acção
da gravidade (noção clássica), mas sim achatado pela sua própria força, a dos seus
músculos dorsais. Era preciso, ao invés de fortalecer esta musculatura, descontraí-la,
alongando de uma ponta à outra da coluna vertebral, como se se tratasse de uma
lordose”.1
Fig. 8 - Françoise Mézières (1909-1991). Actualmente sabemos que a “cadeia posterior”, identificada pela primeira vez
por meio das observações de Mézières, inclui um comportamento dinâmico, o qual
integra um conjunto muito avultado de estruturas musculares, como o diafragma
e, até mesmo, a musculatura anterior. Esse comportamento dinâmico integra um
conjunto de inúmeras compensações, geradas por mecanismos protectores, sendo
que estes são devidos ao denominado reflexo anti-álgico à priori. Veremos, igualmente,
mais à frente que a noção de “cadeia muscular” (e também dos seus constituintes)
diferenciou-se um tanto com a prossecução teorética dos diversos métodos de linha
“mézièrista”.
Entrámos, efectivamente, num conjunto de noções variadas que inicialmente
Mézières não dominava completamente. A fisioterapeuta resumia, efectivamente, as
suas observações em duas partes: (1) a musculatura posterior comporta-se como um
só músculo e (2) ela é sempre forte de mais, curta de mais, potente de mais. E, para
Fig. 9 - Lógica das compensações musculares. os proponentes de Mézières, o princípio preliminar de que todas as deformações
têm origem num encurtamento da musculatura posterior manteve-se incólume até
à data.
Depois de repetida várias vezes a experiência, Mézières e os colegas acabaram Deve, também, ser acrescentado que a própria Françoise Mézières terá cedo
por admitir uma verdade que viria a ser anunciada como uma nova lei: que “todo o percebido que existia uma sinergia importante entre a musculatura posterior e o
encurtamento parcial da musculatura posterior leva a um encurtamento de todo o diafragma e os músculos rotadores internos dos membros (cadeia muscular ântero-
conjunto desta musculatura”, o que corresponde à noção de cadeia muscular, onde interna).

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Assim sendo, a desmontagem dos princípios far-se-ia na forma de um “tripé de (5) « La lordose s’accompagne toujours de la rotation interne des membres. » (6)
intervenção”, com vista à harmonização muscular na forma da morfologia perfeita ou « La morphologie thoracique est conditionnée par certains mouvements de la tête
bela forma: deslordose, expiração e desrotação (fig. 10 e fig. 11). et des membres supérieurs. » (7) « La lordose coexiste toujours avec le blocage du
diaphragme en inspiration. »
As conclusões de Mézières levaram a que a autora enunciasse oficialmente um
conjunto de seis leis na sua obra “Originalité de la Méthode Mézières” (1984)2:
Primeira lei: « Les nombreux muscles postérieurs se comportent comme un seul
et même muscle (Une chaîne musculaire se définira comme étant un ensemble
de muscles polyarticulaires et de même direction, qui se succèdent en s’enjambant
comme les tuiles d’u toit) »; Segunda lei: « Les muscles des chaînes sont trop toniques
et trop courts (il n’y a donc rien qu’il faille renforcer) »; Terceira lei: « Toute action
Fig. 10 - Françoise Mézières tratando uma doente. É visível a aplicação do princípio da deslordose. localisée, aussi bien élongation que raccourcissement, provoque instantanément le
raccourcissement de l’ensemble du système »; Quarta lei: « Toute opposition à ce
raccourcissement provoque instantanément des latérofléxions et des rotations du
rachis et des membres (lógica das compensações) »; Quinta lei: « La rotation des
membres due à l’hypertonie des chaînes s’effectue toujours en dedans »; Sexta lei:
« Toute élongation, détorsion, douleur, tout effort implique instantanément le blocage
respiratoire en inspiration. »
O esquema 1, apresentado seguidamente, representa o “anel Mézières”, o qual
resume os princípios referidos anteriormente.
Fig. 11 - Françoise Mézières deslordosando e desrodando uma doente.
ESQUEMA 1: “ANEL MÉZIÈRES”
Da observação iniciática de Mézières do paciente cifótico, referida atrás (conhecida
1 A musculatura
posterior é
como o “princípio de observação”), Mézières tira diversas conclusões (mantemos, demasiado forte e

¶ Deformações
agora, o original francês): (1) « Il n’est que des lordoses »: a cifose (e a escoliose) não demasiado curta.
Em lordose
é possível sem uma acentuação das lordoses e é vista como a sua consequência. A congénitas Compensações
lordose constitui a origem de todas as deformações do ráquis e dos membros. Para ou primitivas Devido ao reflexo Rotação dos
¶ Patologias
Deformações
anti-álgico à priori membros
¶ Trauma
além disso, ela ocorre em todos os movimentos de extensão e nos movimentos
¶ Dores
de grande amplitude dos membros. (2) « La lordose est mobile et coulisse sur le Porque a
musculatura Bloqueio
corps tel un anneau sur une tringle à rideau. » (3) « Les membres sont solidaires diafragmático
posterior se
du tronc et le creux poplité constitue, en dehors du rachis, une troisième concavité comporta como um
postérieure liée aux lordoses rachidiennes. » (4) « Tout est compensation lordotique. » só músculo.

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Do Esquema apresentado, podemos dizer que, para Mézières, todas as


deformações ocorriam a partir de uma ou mais lordoses, sendo que esta(s) estaria(m)
associada(s) à rotação dos membros (relacionada com o encurtamento do psoas e
outros músculos sinergistas) e ao bloqueio diafragmático (associado ao encurtamento
do diafragma e dos diversos músculos suspensores das vísceras, incluindo musculatura
sinergista com inserção superior na coluna cervical). O tratamento segundo Mézières
corresponderia precisamente a toda a acção de alongamento muscular global e
prolongado com vista à deslordose, desrotação e desbloqueio diafragmático (os Fig. 12 - Postura de trabalho com o método Mézières.
princípios fundamentais de trabalho de Mézières, assim como os princípios da
“revolução na ginástica ortopédica” viriam a ser formulados iniciaticamente na sua A cadeia muscular posterior era vista como a estrutura principal a trabalhar. O
obra “Révolution en Gymnastique Orthopédique”3). O tratamento mézièrista consiste conceito de “cadeia muscular” não aparece inicialmente na obra de Mézières. As
precisamente num conjunto de posturas que possibilitam o tratamento iniciático de “cadeias musculares” vão sendo “formuladas” ao longo da obra da autora: a cadeia
um “bloco superior” da “cadeia posterior” (constituído pela cabeça, coluna cervical, braquial, a grande cadeia posterior e a cadeia ântero-interna são postas em evidência
cintura escapular e membros superiores, e coluna dorsal até T7) e, logo de seguida, por Mézières, enquanto que a cadeia anterior do pescoço é posta em evidência por
ao tratamento do “bloco inferior” da “cadeia posterior” (coluna de T7 até ao cóccix, Nisand (futuro criador da “Reconstrução Postural”) e aceite, mais tarde, por Mézières
cintura pélvica e membros inferiores) (fig. 12). (ver figuras 13 e 14 com imagens clássicas, respectivamente das cadeias musculares
Na realidade, o tratamento segundo Mézières poderá consistir meramente o posterior e anterior, e imagens seguintes das cadeias musculares tidas em conta).
trabalho respiratório com incidência na expiração, processo essencial à obtenção do
relaxamento de todas as cadeias musculares (pois todas estão relacionadas, directa
ou indirectamente, com o diafragma). Algo tão simples quanto o trabalho expiratório
mantido durante 30 minutos ou mais pode significar a essência de um tratamento.
Portanto, nada em Mézières tem a ver com a “estética” do fitness. No método
Mézières (e, como veremos mais tarde, também em Souchard), as posturas de
tratamento podem ser mantidas durante vinte, trinta ou mesmo quarenta minutos,
pois essas mesmas posições constituem um sucedâneo de múltiplos alongamentos
sucedidos no tempo, e prolongados ao longo de determinada amplitude (articular).
O trabalho é, portanto, longo, árduo e algo doloroso; não tem nada a ver com o que
é ou não “bonito” ou com o que é ou não “agradável”. É tudo parte de um processo
extremamente controlado, ajustado e pensado.

Fig. 13 e fig. 14 - Imagens clássicas dos conteúdos principais das cadeias musculares anterior e posterior.

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Fig. 15 - Cadeia muscular posterior Fig. 16 - Cadeia muscular posterior Fig. 19 - Cadeia anterior do pescoço.
(plano superficial). (plano profundo).

A obra e método de trabalho de Mézières parte de um postulado patogénico:


« La forme conditionne la fonction et la douleur est à envisager comme un signal
d’alarme d’une déformation qui aurait atteint son seuil d’acceptabilité. » O princípio
terapêutico da Globalidade é proposto bastante cedo pela autora e consistia no já
referido “tripé de tratamento”. As posturas de alongamento deveriam ser realizadas
com “alongamento global de todas as cadeias musculares envolvidas”, através de
“contracção isométrica excêntrica”.
O conceito de “cadeia muscular”, enquanto um conjunto avultado de estruturas
musculares (e fasciais) que compõem um “todo” em determinadas regiões do corpo
viria a ser entendido de diferentes maneiras por diferentes autores. Veremos, no
próximo capítulo que os diferentes discípulos de Mézières viram as “cadeias” de
diferentes maneiras. E, entretanto, só nos anos 90 é que os anglo-saxónicos viriam a
falar de “trilhos” miofasciais, e, mais tarde, viriam a estabelecer a sua relação com os
meridianos chineses.
Fig. 17 - Cadeia muscular Fig. 18 - Cadeia muscular braquial. O que fica do método Mézières é sobretudo a noção primacial de “cadeia
ântero-interna. muscular”, utilizada, nos tempos que correm, de forma algo gratuita, e a noção de
tratamento pela Estática mediante a realização do alongamento global. Veremos que

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LUÍS COELHO

autores como Souchard viriam a cientificar um pouco mais os conceitos de Françoise


Mézières, ou pelo menos, a adaptar os seus conceitos e princípios a uma gíria mais
relacionada com as “novidades” da fisiologia.
Importante será também dizer que, provavelmente, o grande postulado da vi – O métOdOs neO-mézièristas
Reeducação Postural consiste, precisamente, no facto de que o design músculo-
esquelético, ou seja, o tipo de alinhamento e formato das estruturas articulares, está
dependente do estado de tensão das cadeias musculares. Este estado de “tensão”
pode referir-se a duas dimensões: (a) dimensão miofascial por excelência, a qual As técnicas ditas “mézièristas” constituem todas aquelas que advêm directa ou
respeita ao comprimento dos tecidos moles, e (b) dimensão neuromuscular, a indirectamente do trabalho de Françoise Mézières.
qual respeita não tanto à flexibilidade miofascial mas mais à tonicidade muscular, Mézières ensinou a sua arte desde os finais dos anos 50 até à sua morte em 1991.
ou seja, à resistência tónica que os músculos contrapõem durante o processo de Perto do fim da sua vida, ela estimou o número de terapeutas com o seu curso
mobilização ou alongamento. A prática clínica demonstra que, por vezes, pessoas como sendo de cerca de mil e quinhentos. Esta cifra é meramente aproximativa
extraordinariamente flexíveis possuem deformidades. Poderíamos explicar isso com o e não pode deixar de ser moderada pelo facto de os seus cursos não possuírem
facto de essa hiperflexibilidade significar um tipo específico de desequilíbrio muscular, programa, avaliação de conhecimentos ou registo das presenças dos formandos. Ou
estando ou não associada a uma retracção muscular a algum nível antagonista. Mas seja, não eram necessárias muitas “condições” e/ou critérios para que um terapeuta
como explicar os casos de pessoas com grande flexibilidade da cadeia muscular fosse considerado “mézièrista”.
posterior e que, mesmo assim, possuem, por exemplo, hiperlordose lombar? Ora, a A proliferação de escolas paralelas tornou-se inevitável, isto desde os anos 60. Em
meu ver há duas possibilidades de explicação: uma é a da existência de uma retracção 1990, Mézières declarou: « Je m’indigne en voyant une multitude de kinésithérapeutes
ou encurtamento muscular numa zona muito específica da cadeia muscular posterior prétendre améliorer, voir enseigner ma méthode, alors qu’il y a fort peu de praticiens
(neste caso, a zona lombar, ou então, relacionada com a cadeia posterior, a cadeia qui l’aient réellement assimilée »1. O fenómeno da proliferação de escolas (e do
ântero-interna); a outra explicação reside na tal questão da tonicidade. Pode existir método em si) amplificou-se consideravelmente após a publicação do livro de
grande flexibilidade muscular, mas, ainda assim, esses mesmos grupos musculares Thérèse Bertherat2 “Le corps a ses raisons” (1976), traduzido para português para
podem ser particularmente “tensos” e “hipertónicos”. Essa hipertonia não tem de ser o desapropriado título “Dê saúde ao seu corpo: a saúde pela antiginástica” (Europa-
obrigatoriamente acompanhada de retracção miofascial estrutural, pelo menos num América). A obra de Bertherat (ver fotografia na fig. 20) era toda ela de “inspiração”
primeiro tempo... mézièrista, sendo que incluía um capítulo inteiro dedicado ao método de Mézières.
Foi esta mesma obra que permitiu a criação da fama relativa ao método, aliás um tipo
de “(re)conhecimento” que a própria Mézières não pretendia. Depois da obra de
Bibliografia (V) Bertherat ter conhecido um sucesso mundial de vendas, Mézières recebeu o prémio
da “Legião de Honra”, e passou a ser ouvida na rádio e vista na televisão. A sua fama
1. Mézières, F. (1972). L’homéopathie française. Ed. G. DOIN. 4 - 195. aumentou de forma descontrolada, algo que a própria Mézières não pretendia. Tanto
2. Mézières, F. (1984). Originalité de la méthode Mézières. Paris: Maloine. ela como os fisioterapeutas mézièristas pretendiam manter o método dentro das
3. Mézières, F. (1949). La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert. lides clínicas e académicas, sendo que não gostaram que o método passasse a fazer

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

parte da “opinião pública” (aliás, ainda muitos terapeutas mantêm esta tendência para resultar num excesso mio-fascial com consequências reumatológicas deletérias no
manter determinada “arte de intervenção” no “segredo dos Deuses”, dificultando, longo prazo.
muitas vezes, a assunção de um conjunto muito avultado de vantagens relativamente Regressando à questão da proliferação de escolas, o que aconteceu inicialmente,
ao conhecimento de “novos” campos de conhecimento e terapêutica). e fortemente após a publicação da obra de Bertherat2, é que, visto que o nome
“Mézières” estava fortemente inflaccionado, todos os autores que introduziram ideias
interessantes no método recusavam-se a abandonar a apelidação “Mézières”. Tudo
isto levou a que Mézières acusasse os diversos autores de adulterarem o seu método
e de utilizarem o seu nome como um viático1.
Por volta dos anos 80, Françoise Mézières fez proteger o seu nome através do
Institut National de la Propriété Industrielle, o que obrigou os autores referidos a
utilizarem outras denominações para apelidarem os seus “métodos”.
No final, alguns anos depois de Mézières ter registado o seu método, muitos outros
métodos do tipo “mézièrista” surgiram: (a) vários métodos que se reclamam como
sendo independentes do método Mézières, apesar da evidência demonstrar que são
métodos dependentes de Mézières e pouco diferentes - teorética e pragmaticamente
- do original. É o caso do método de Ph-E Souchard (um antigo assistente de
Mézières, que, inclusive, ensinou e escreveu sobre o método), a Reeducação
Postural Global (RPG); (b) as técnicas de antigos alunos de Mézières, ditas “método
Mézières”, mas que, no fundo, apresentam diferenças significativas relativamente ao
Fig. 20 - Thérèse Bertherat.
método original. É o caso dos métodos ensinados pela Association des mézièristes
d’Europe, pela Association Mézièriste Internationale de Kinésithérapie (AMIK) ou pela
Quanto às obras de Bertherat, estas foram feitas para o grande público, possuindo Association des Mézièristes du Nord. O método ensinado por estas associações já
o erro da simplificação abusiva. Porém, é de realçar a capacidade que Bertherat teve não é completamente congruente com o método original, como é advogado pelas
para explicar o método a todos os que não possuíam formação especializada. Para além mesmas. É o resultado de uma - provavelmente lógica - evolução relativamente ao
disso, a autora teve, mais do que qualquer outro, a capacidade para compreender as original; (c) técnicas que se reclamam como sendo de origem “mézièrista”, mas que
verdadeiras implicações que o método Mézières possui para o mundo do desporto não escondem o facto de apresentarem “evoluções” relativamente ao original – tanto
em geral. Em todas as suas obras, e principalmente em “Le repaire du tigre”3, no plano teórico como no plano prático - evoluções que justificam a mudança de
Thérèse Bertherat conseguiu traduzir, com grande engenho, o conjunto dos erros apelidação do método. É o caso do método das “Cadeias musculares e articulares”
e “deformações” que os métodos gímnicos modernos - e a maioria dos desportos de Godelieve Denys-Struyf (uma importante retratista e escritora sobre o método
de carácter assimétrico - alimentam. Aquilo que para Bertherat foi apelidado de Mézières), o método das “Cadeias musculares” de Leopold Busquet e a “Reconstrução
“antiginástica”, e que, como já percebemos, pode ser apelidado de anti-fitness, Postural” de Nisand.
consiste precisamente no acalentar da ideia - contra-intuitiva mas científica - de que o Voltemos à “antiginástica” de Bertherat. Mais do que um método (de trabalho
treino de força muscular, apanágio das práticas desportivas contemporâneas - poderá grupal), é sobretudo um conceito. Um conceito relacionado com as implicações

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

- pouco percebidas - que os princípios mézièristas possuem para toda a “ginástica


ortopédica”. Thérèse Bertherat não deixou de perceber, mais do que qualquer outro,
que a Reeducação Postural poderia trazer uma série de implicações para o mundo da
prática desportiva. Para ela, nem técnicas como a “eutonia de Gerda Alexander” ou
o método reeducativo de Feldenkrais eram suficientemente bons e comparáveis à
excelência de Mézières. O seu método de trabalho grupal advoga a consciencialização
corporal, por meio do alongamento do tipo Mézières, como meio para atingir a
excelência pessoal. É, portanto, um método de vocação quase psicoterapêutica. Ele
prevê alguns dos princípios de métodos futuros como o relaxamento da sofrologia e
o método “Corpo e Consciência” de Courchinoux.
Importante será dizer que Bertherat recusa o conceito de “ginástica suave” ou
“ginástica doce” para o seu método (e muitos outros da linha mézièrista). A sua
“ginástica” envolve imensas estruturas de âmbito psicofísico, assim como um
considerável poder de concentração, não podendo ou devendo ser vista como uma
ginástica “doce”. Fig. 21 - Posturas do RPG (1. rã no chão com fechamento dos braços; 2. rã no ar com fechamento dos
Entretanto, referimos também a Reeducação Postural Global de Ph-E Souchard. braços; 3. postura sentada; 4. rã no chão com abertura dos braços; 5. postura de pé contra a parede; 6. rã
Este é provavelmente o método mais conhecido de todos. Muita coisa pode ser no ar com abertura dos braços; 7. postura “bailarina”; 8. postura de pé).

dita sobre o mesmo. E é claro que não é minha intenção constituir um resumo
dos princípios do método; muito pela razão de que a maioria desses princípios, Em termos teoréticos, Souchard vai dar mais atenção à(s) cadeia(s) anterior(s)
supostamente “descobertos” por Souchard, são princípios do método Mézières. do que Mézières; por exemplo, se para Mézières não há cifose sem lordose, para
Convido qualquer um a ler a obra de Souchard “Le champs clos - Bases de la Souchard a cifose poderá constituir-se como uma entidade autónoma relativamente
Rééducation Posturale Globale” e a comparar os princípios do RPG com os princípios à lordose, com cadeias anteriores envolvidas em independência da cadeia muscular
preliminares do método Mézières. É de lamentar que Souchard raramente refira a posterior. Para Souchard há dois grandes conjuntos de “retracções” globais: posterior
“mãe intelectual” do seu método, ainda mais porque o mesmo ensinou o método e anterior. As posturas de trabalho variam segundo as alterações existentes. Se
durante dez anos e escreveu sobre o mesmo. Não é criticável que Souchard tenha analisarmos bem essas “posturas” veremos que algumas são iguais às posturas
criado o seu próprio método. Ainda mais porque as suas posturas de trabalho (o seu de Mézières, mas esteticamente mais belas e “politicamente” mais correctas; por
método inclui oito posturas de alongamento) são claramente inovadoras. Portanto, exemplo, na postura “sentada” é mantida a curvatura lombar neutra, enquanto
apesar de as posturas do RPG não acrescentarem nada em termos metodológicos que essa curvatura tende a ser “deslordosada” no método Mézières (ver exemplos
ao método Mézières, são bastante imaginativas, inovadoras e eficazes (ver posturas nas figuras 22 a 27). Talvez Souchard tivesse em conta as novas linhas de estudos
em fig. 21). “funcionais” que privilegiam a “utilização da coluna neutra”. Aí, o autor talvez tivesse
esquecido a máxima de Mézières “a saúde é o resultado da forma perfeita”, pois,
segundo a filosofia dos métodos vigentes, a forma prevalece sobre a função.

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Para além do que fica dito, Souchard vai ter em conta a existência de cadeias
musculares um pouco diferentes das do método original. Mas aí, ele não inova tanto
quanto outros autores.
Aliás, a maioria dos autores “neo-mézièristas” vai possuir uma noção de “bloco”
e de “cadeia muscular” muito diferente da original. Dissemos, anteriormente, que
o tratamento segundo Mézières incluía primariamente o bloco superior da cadeia
posterior e só depois o bloco inferior. Ora, tanto o método de Souchard como
o método de Busquet (“Cadeias musculares”) tentam dar uma ênfase de maior
Fig. 22 e fig. 23 - Postura de Mézières (à esquerda) e a “correspondente” ‘rã no chão’ globalidade aos tais “blocos”, trabalhando os dois “blocos” ao mesmo tempo, na
do RPG de Souchard (à direita). medida do possível. Aliás, enquanto o tratamento segundo Mézières é feito num
colchão, o tratamento segundo Souchard acaba por ser feito - individualmente -
numa mesa própria, a qual permite colocar em tensão todas as cadeias musculares
simultaneamente (principalmente quando utilizado o sistema de polias).
Resta dizer que, sendo o método mais conhecido, é a obra de Souchard que
tem permitido expor muitas bases da “teoria mézièrista” ou “teoria das cadeias
musculares”. O autor publicou cerca de duas dezenas de obras, muitas delas com
mais imagens que texto, e todas elas com uma certa tendência para ser recalcitrantes.
Algumas são fundamentais, como a já citada “Le champs clos” e também a recente
obra “As escolioses. Seu tratamento fisioterapêutico e ortopédico”4. Outras advêm da
necessidade de criar um método mais adaptado à realidade desportiva como o “Le
Fig. 24 e fig. 25 - Postura de Mézières e a “correspondente” ‘rã no ar’ do RPG de Souchard. stretching global actif”5 (o Stretching Global Activo constitui um método grupal baseado
igualmente em posturas de alongamento e princípios ditos “mézièristas”; foi feito a
pensar sobretudo nas necessidades dos desportistas). As suas obras foram traduzidas
para o português do Brasil e podem ser encontradas nas livrarias especializadas. Em
certos países, como o Brasil, o método de Souchard é considerado muitas vezes
como original, sendo que é este que acaba por ser vítima de plágios e de tantos
e tantos “formadores” a ensiná-lo. Neste mesmo país em particular, o ensino do
método de Souchard atingiu proporções de merchandising avassaladoras.
Importa, ainda, dizer que a noção de “cadeia muscular” para Souchard acrescenta
um pouco a Mézières, no sentido em que Souchard valoriza a diferenciação entre
musculatura tónica e musculatura fásica de uma forma que Mézières não valorizou.
Fig. 26 e fig. 27 - Postura de Mézières e a “correspondente” ‘postura sentada’ do RPG de Souchard. Importa também referir que, se Souchard refere a existência de cadeias dinâmicas,

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

então Busquet (fig. 28) vai dizer que somente existe uma cadeia estática: a grande pois os métodos de Godelieve Denys-Struyf8 e de Peyrot são de tal forma
cadeia estática posterior. Todas as outras cadeias musculares são sobretudo de “diferentes” que só com muito esforço podemos considerá-los como métodos da
natureza dinâmica. linha da postura e/ou da motricidade humana. Esses métodos dão importância ao
ser humano na sua totalidade psíquica e somática, e relacionam, de forma ímpar, a
postura com os estados psicológicos (e vice-versa). Por exemplo, Godelieve Denys-
Struyf, grande retratista de posturas, delineou a existência de cinco tipos de posturas,
uma dupla, portanto seis estruturas posturais, designativas de seis tipos particulares
de personalidade, as quais dependeriam da cadeia muscular mais solicitada (posturas
PM, AM, PA-AP, AL e PL).
A postura PM (póstero-mediana) é, provavelmente, uma das mais modelares
estruturas posturais patológicas. Nesta estrutura, o equilíbrio adoptado impele o
Fig. 28 - Leopold Busquet.
corpo para a frente, sendo que é a actividade dos músculos posteriores que garante
a sustentação da atitude. É observável em todas aquelas pessoas que aparentam
A obra de Busquet é bastante prolixa. Inicialmente, a sua única obra traduzida
possuir umas costas bem esticadas, uma lordose geral facilmente verificável.
para português, nomeadamente a “A pubalgia”6, constitui uma importante referência
É muito comum entre os atletas e os instrutores de fitness, os quais chegam a
dentro da linha de Mézières. Mas é estranho que Busquet praticamente nem sequer
pensar que esta é uma postura louvável.
refira o nome de Mézières em praticamente toda a sua obra7.
Busquet acrescenta uma série de estruturas formadas por tecido conjuntivo à sua
“cadeia estática posterior”. As outras cadeias - cadeias flexoras e extensoras, cruzadas
anteriores e cruzadas posteriores - são de natureza dinâmica, ou seja, são constituídas
essencialmente por músculos fásicos, os quais, nestas cadeias, permitem a interligação
dinâmica e funcional entre os membros superiores e os membros inferiores.
De espantar está também a linha de cadeias “neuromeníngeas” e “viscerais” em
que Busquet vai colocar realce. A sua obra possui uma grandeza de conhecimento
anatómico que qualquer outro mézièrista não possui. Num ponto de vista dos
métodos “neo-mézièristas” é aquele que, segundo uma linha “orto-reumatológica”
possui a maior completude.
Neste ponto, é preciso referir que, se utilizássemos um critério de categorização
dos métodos “neo-mézièristas” diferente do utilizado atrás, poderia dizer que há,
sobretudo, métodos de linha mézièrista de natureza ortopédica (RPG e “Cadeias
Musculares”), de natureza psicossomática (“Cadeias musculares e articulares”
de Godelieve Denys-Struyf e “morfoanálise” de Peyrot) e métodos de natureza
neurológica (“Reconstrução Postural”). Apresento, agora, esta nova categorização, Fig. 29 - Postura PM (póstero-mediana).

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Esta postura pode resultar de uma motivação e de uma escolha, sendo As opções terapêuticas variam consoante a natureza causativa da postura: a postura
característica das pessoas que desejam possuir um grande controlo sobre a sua vida pode ser o resultado de uma “personalidade constitucional profunda e realizada”,
e a dos outros; é, no fundo, uma postura de combate defensivo, que favorece a pode resultar de uma “personalidade relacional ou de fachada” ou então pode ser o
ideação e a acção. O seu tratamento depende muito mais do que a inibição do resultado de uma “personalidade adquirida mal vivida, em dificuldade”.
seu padrão neuromuscular característico; eventualmente, na tentativa de contrariar a A dupla estrutura PA-AP (póstero-anterior - ântero-posterior) é aquela que mais
postura defensiva da pessoa, esta reage com ainda mais tensão, pois, no fundo, é a se aproxima da estrutura de músculos profundos e anti-gravíticos, contribuindo,
sua própria identidade que está em jogo. A solução parece estar na regularização das portanto, para a manutenção de determinado alinhamento vertebral e determinado
tensões, na modelagem. A musculação, algum Pilates e algum Yoga poderão agravar padrão de achatamento articular. Esse achatamento é mínimo se existir um bom
esta estrutura particular. equilíbrio corporal. Por outro lado, se existir um fraco equilíbrio, criar-se-á um
A postura AM (ântero-mediana) resulta da actividade dos grupos musculares padrão específico de trabalho muscular profundo exagerado e desinibido, de modo
anteriores, os quais garantem o suporte de um desequilíbrio para trás. Esta postura a contrariar a tendência para a queda, criador de tensões e diminuidor da mobilidade
é extremamente característica, sendo que conjuga a hiperlordose lombar (excessivo articular. Uma atitude PA-AP não forçada, correcta, alinhada, rigorosa e, no entanto,
arqueamento da coluna lombar) com uma compensatória hipercifose dorsal flexível e agradável, constitui o padrão ideal, estando associado às personalidades
(inclinação anterior do tórax). As pessoas com a postura AM estruturada tendem a mais flexíveis e assertivas. Em especial, a estrutura AP constitui uma espécie de
viver na espera, limitando o imprevisível. Se a postura é resultado de uma imposição, estrela central de todas as outras estruturas, o eixo de todas as personalidades,
então ela releva de um problema de auto-estima, uma dificuldade na relação com o representando uma personalidade lançada para a maturidade, para a liberdade
exterior, uma tendência ao fechamento e uma atitude de derrota. responsável e consciente.

Fig. 30 - Postura AM (ântero-mediana). Fig. 31 - Postura PA-AP (póstero-anterior - ântero-posterior).

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

A postura AP é aquela que precisa mais de ser preservada, pois é o padrão que
permite a acção e a busca práxica da realização; é a estrutura que busca o devir,
permitindo o confronto das forças depressivas da morte. A ginástica, o desporto em
geral, a dança e as artes marciais, realizados num espírito lúdico e despreocupado,
permitem o desabrochar da AP. Mas o seu desenvolvimento está também dependente
do acolhimento da mãe AM, do apoio do pai PM e do suporte celestial PA.
Restam as estruturas secundárias AL (ântero-lateral) e PL (póstero-lateral), vistas
nos planos frontal e horizontal (as cadeias mais dinâmicas e relacionais, semelhantes
às cadeias cruzadas de Leopold Busquet). A primeira associa-se ao fechamento e
à retracção, ao medo e à introversão. Já a segunda associa-se a um outro tipo de
tensão, mais posterior, mas permite a abertura, a expansão e a extroversão (é este
o tipo de cadeia que é mais trabalhada nas extensões, aberturas e torções do Yoga).
Possivelmente, estas duas estruturas interagem no mesmo corpo; AL relacionada
com a dominância do membro superior direito e PL relacionada com o apoio no Fig. 33 - Postura PL (póstero-lateral).
membro inferior esquerdo (isto, claro, para os indivíduos destros). A dinâmica destas
estruturas importa à compreensão de todas as assimetrias corporais, assim como das Estas estruturas pertencem ao eixo horizontal, um eixo relacional, enquanto que
escolioses. as anteriores pertenciam ao eixo vertical da personalidade.
O trabalho global das “cadeias musculares e articulares” GDS impõe a sempre
impartível relação do terapeuta com o doente e deste com o seu próprio corpo.
O trabalho terapêutico deve partir da sempre necessária consciencialização da
estrutura, de modo a perceber o seu dinamismo e a inverter alguns dos aspectos
que caracterizam a sua patologia. E nunca devemos esquecer que todo o indivíduo
é irredutível a uma tipologia, resultando o seu padrão postural e comportamental de
uma combinação muito própria de elementos das diversas estruturas tratadas.
É de Godelieve Denys-Struyf a frase “a estrutura governa a função e submete o
psiquismo”. A sua concepção de postura enquanto entidade psicossomática holística
é fundamental à compreensão integral do ser humano. A sua “visão” releva de uma
orientação mais psicologista do método Mézières; e leva-nos a entender até que
ponto o conceito de Mézières é abrangente e tende para uma visão globalista do
ser humano, visão - aliás, também posta em evidência por Thérèse Bertherat - mais
próxima das abordagens psico-corporais e psicomotricistas do que da actividade
Fig. 32 - Postura AL (ântero-lateral). desportiva tida no seu frio “fisicalismo” quase anti-humano.

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Em matéria de métodos neo-mézièristas, o mais desconhecido de todos é, uma nova interpretação da lógica das compensações corporais, salientando a
indubitavelmente, a Reconstrução Postura 9-18 de Nisand (fig. 34), o que é bastante importância de um conjunto de respostas neurológicas aquando do movimento
injusto, pois este é simultaneamente o mais fiel e o mais evoluído dos métodos pós- (respostas evocadas) e o contributo dos centros neurológicos centrais para o
Mézières. É, como já dissemos, o mais fiel dos métodos, pois é aquele que mais surgimento das deformidades. Assim sendo, o tratamento passa não só pelo
respeita as bases teoréticas do método original; é, também, o mais científico dos alongamento global das cadeias musculares (Mézières), mas também pelo trabalho
métodos, pois, estando ligado à Universidade Louis Pasteur - Strasbourg, é aquele de consciencialização corporal com base na estimulação neuro-sensorial (ou seja,
que mais respeita os critérios de uma necessária cientificidade; é também o método na modificação do padrão de excitabilidade muscular das cadeias posturais), de
com os princípios mais inteligentes, pois foi o único que - finalmente - compreendeu modo a que os alongamentos possuam um efeito de neuroplasticidade adaptativa
a “postura” enquanto entidade primacialmente neurológica. Ora, era preciso ter eficaz e não só um efeito de modificabilidade temporária do tónus. (c) O método
surgido este método em 1992 para finalmente percebermos - os poucos que sabem da Reconstrução Postural propõe uma outra forma de interpretar o aparecimento
sequer da existência dele - que a postura não é talvez tanto o resultado de uma maior de dor. A dor não tem origem na própria deformidade, mas sim na incapacidade
ou menor flexibilidade mio-fascial; se calhar, a postura depende, mais do que da que a estrutura hipertónica (rígida) tem de se deformar. A partir destas diferenças,
elasticidade dos músculos, do seu tónus (e jamais podemos esquecer que é através o método de tratamento por Mézières por meio do estiramento em “contracção
das variações de tónus que o sistema nervoso comunica com o sistema muscular). isométrica excêntrica” transforma-se num meio de tratamento por “solicitação activa
induzida”, ou seja, da postura trabalhada passivamente passa-se para um trabalho
de carácter mais activo, mediante a facilitação de padrões de postura por meio de
“pontos-chave” (à semelhança do papel dos mesmos “pontos-chave de controlo”
do método Bobath de tratamento das disfunções neurológicas), partes do corpo
que são sujeitas a movimentos de grande amplitude com o objectivo de induzir ou
solicitar determinado padrão postural. As posturas em Reconstrução Postural são
obtidas, portanto, a partir de pontos periféricos precisos, e são mantidas não por
tempos necessariamente muito prolongados (Mézières), mas até ao ponto em que
se verifique a normalização tónica. O agravamento da dismorfia é, ao contrário do
que ocorre com o método Mézières, uma condição obrigatória para se obter a
postura normal, é um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural
Fig. 34 - Michaël Nisand, pai da Reconstrução Postural. “correcto”. Diferenças metodológicas levam a diferentes técnicas, sendo que muitas
das manobras mézièristas foram modificadas ou suprimidas: o mézièrista tende a evitar
A Reconstrução Postural difere do método Mézières em diversos aspectos, as compensações, enquanto que o “reconstrutor” tende a lidar com todas as posturas
nomeadamente: (a) Enquanto Mézières se referia à existência de três cadeias que possam ser efectivas no sentido de se obter uma inibição do padrão; o mézièrista
musculares posturais (a grande cadeia posterior, a cadeia ântero-interna - diafragma identifica a dismorfia como algo “anormal”, enquanto que o reconstrutor identifica
e psoas - e a cadeia braquial), Nisand acrescenta e descreve pormenorizadamente a dismorfia como um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural
uma nova cadeia muscular - a cadeia anterior do pescoço. (b) Nisand propõe vantajoso; o mézièrista tende a encontrar uma postura correctiva e a mantê-la o

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

máximo de tempo possível, enquanto que o reconstrutor tende a manter a “postura” As implicações que este - e todos os outros métodos - possuem para a “dinâmica
só até que exista exaustão e extinção da resposta evocada (normalização tónica); as desportiva” e do axioma “exercício é saúde” são muitas e carecem de uma análise em
autoposturas são impensáveis na Reconstrução Postural (o que levanta uma série capítulo próprio (capítulo VII).
de questões relativamente ao trabalho de Reeducação postural em grupo), pois o Mas gostaria de acrescentar mais um ponto a este capítulo. Temos falado de
próprio sujeito não consegue educar as suas próprias reacções tónicas correctivas; os diferentes métodos de trabalho. Temos referido diferentes paradigmas de intervenção.
proponentes da Reconstrução Postural não falam de “correcção morfológica” como Mas, se calhar, não temos sido suficientemente claros em afirmar que os diferentes
os mézièristas, mas sim de “restauração morfológica”, a qual tem por base não o métodos devem ser entendidos sempre dentro de determinado contexto sócio-
alongamento mio-fascial correctivo mas sim o alongamento com vista à normalização histórico, não deixando, obviamente, de existir uma série de elementos em comum
de padrões de activação tónica das cadeias musculares. entre métodos supostamente divergentes. Por exemplo, as “cadeias musculares” são
Com todas estas inovações, o modelo de Nisand (porque é de um “modelo” semelhantes aos “trilhos miofasciais”, e, ainda assim os conceitos desenvolveram-
que efectivamente se trata) constitui o mais inovador de todos os métodos de se de forma independente. Outro exemplo, os pontos corporais de trabalho na
Reeducação Postural. É, provavelmente, o mais neurológico dos métodos e também Reconstrução Postural fazem lembrar os “pontos-chave de controle” do método
o mais contra-intuitivo dos mesmos. Bobath (que mais não são do que partes do corpo - mais sensitivas - utilizadas para
Infelizmente, de todos os métodos, este é o único que carece de uma atitude induzir o movimento periférico). As pompages de Bienfait lembram muito certas
de “comercialização” e de exploração para além da Universidade Louis Pasteur. Ou tracções do método ortopédico de Cyriax. E muitos dos princípios da Reeducação
seja, é um método condenado à reclusão teorética. O que não pode deixar de se Postural são, como já tivemos oportunidade de ver, semelhantes aos princípios do
considerar como antitético. Yoga. E podíamos continuar eternamente. Portanto, daqui podemos tirar uma série
Vemos, portanto, que, em termos de evolução, os métodos de Reeducação de conclusões. E uma delas é a de que devemos, sobretudo, tentar compreender
Postural de linha mais orto-reumatológica evoluem para uma visão da “cadeia muscular” os aspectos mais simplistas dos métodos, fazendo a necessária integração mentalista,
cada vez mais próxima da visão fascial. É o caso dos métodos anglo-saxónicos e do aumentando a nossa compreensão basilar das coisas e diminuindo a nossa insegurança
método de Busquet, estes bem comparáveis entre si. (a mesma que nos leva a fazer tantas e tantas formações pós-graduadas, ajudando
Dentro desta linha evolutiva, podemos incluir a Integração Funcional de Bienfait19, formadores e empresas a encherem os bolsos de dinheiro). Outra conclusão é a
método que irá valorizar o trabalho analítico de alongamento miofascial e de de que constitui uma obrigação ética e intelectual aquela que podemos designar
descompressão articular (por meio daquilo que o autor designa de pompages). Este a “necessidade de integração metodológica”; na realidade, é pena que tantos
método vem revalorizar o papel da terapia manual, salientando a necessidade de fisioterapeutas não realizem esse espantoso trabalho de comparação dos diferentes
uma intervenção necessariamente individualizada do doente. métodos, tentando integrar conceitos e mostrar semelhanças metodológicas. Por
Por outro lado, outra evolução possível constitui a via neurológica. Ou seja, o exemplo, tanto o conceito de Bobath como a teoria das “Cadeias musculares”,
que a Reconstrução Postural vem dizer é que o tipo de “diminuição dos excessos métodos desenvolvidos de forma independente, possuem uma mesma forma de
musculares” que é necessária constitui a “inibição do tónus”. Podemos, igualmente, ver a práxis neuromotora, nomeadamente a inibição da tensão prévia ao processo
dar, de novo, ênfase a métodos de cariz proprioceptivo, questionando a eficácia de de actividade motora dita “facilitada”. Por exemplo, Bobath era totalmente contra
actividades mais lúdicas, psicodramáticas, psicomotricistas e psicossomáticas, as quais a utilização de pesos nos seus doentes neurológicos, pois a actividade resistida
podem, de alguma maneira interferir com o “estado tónico” do sujeito. alimentava a “actividade anormal”, as “compensações” e as “reacções associadas”

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

relacionadas com a hipertonia. Ora, vejam os pontos em comum com os princípios 15. Nisand, M.; Callens, C.; Jesel, M. (2002). À propos de certains
do “conceito de Mézières”. É fundamental que alguém pegue nos dois conceitos e dysmorphismes du pied: identification et correction par la Reconstruction
crie uma teoria, simples e abrangente, da actividade muscular segundo a perspectiva Posturale®. KINÉSITHÉRAPIE, les annales 10: 37-42.
Globalista. Esse é um passo para o futuro! 16. Callens, C. (2004). Entre le tout renforcement et le tout étirement, existe-t-il
une autre voie ?.11ème Symposium Roman de Physiothérapie les 5 et 6
novembre 2004: “Les Chaînes Déchaînées” Lausanne-Suisse. Mains Libres, la
Bibliografia (VI) revue Romande de Physiothérapie.
17. Nisand, M. (2004). La Reconstruction Posturale®, déviance ou évolution?
1. Turlin, P. (1990). Françoise Mézières sort du silence. Kiné Actualité, 332: 6-7. 11ème Symposium Roman de Physiothérapie les 5 et 6 novembre 2004:
2. Bertherat, T. (1976). Le corps a ses raisons. Paris: Éditions du Seuil. “Les Chaînes Déchaînées” Lausanne-Suisse. Mains Libres, la revue Romande
3. Bertherat, T. (1990). Le repair du tigre. Paris: Éditions du Seuil. de Physiothérapie.
4. Souchard, Ph-E. (2003). As escolioses. Seu tratamento fisioterapêutico e 18. Nisand, M. (2006). La méthode Mézières: un concept révolutionnaire. Paris
ortopédico. São Paulo: É Realizações. Éditions Josette Lyon.
5. Souchard, Ph-E. (1996). O stretching global ativo. A reeducação postural global 19. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos. Fisiologia, patologia e
a serviço do esporte. São Paulo: Editora Manole LTDA. tratamento fisioterápico (3ª edição). São Paulo: Summus editorial.
6. Busquet, L. (1985). A pubalgia. Lisboa: Europress.
7. Busquet, L. (1996). Les chaînes musculaires. Kine Plus 57: 19-25.
8. Denys-Struyf, G. (1995). Les chaînes musculaires et articulaires: la méthode
G.D.S. Paris: Maloine.
9. Nisand, M. (1997). Le traitement des algies vertébrales par la Reconstruction
Posturale. La lettre du médecin rééducateur.
10. Publication périodique de l’ANMSR (Association Nationale des Médecins
spécialistes en Rééducation).
11. Nisand, M. (1997). Formation continue: Premier stage de Reconstruction
Posturale à Genève. Le Magazine 97.
12. Nisand, M. (1997). La Reconstruction Posturale: une physiothérapie normative
de la forme. Mains Libres, la revue Romande de physiothérapie.
13. Jesel, M. (1999). Reconstruction Posturale. Concept; traitement des
dysmorphismes et des algies du tronc et des membres. KS 387.
14. Jesel, M.; Callens, C.; Nisand, M. (2001). Rééducation fonctionnelle dans les
cervicalgies communes selon la méthode de reconstruction posturale: concept
et aspect technique. KS 417.

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

É, igualmente, preciso entender que a base científica dos métodos em análise é


real, sendo que os estudos que envolvem a electromiografia não deixam margem
para dúvidas de que a actividade tónica dos músculos de natureza postural é mais
vii - imPlicações da reeducaçãO POstural persistente e menos “moldável” que a actividade tónica dos músculos de natureza
Para a Prática desPOrtiva fásica. O mesmo será dizer que a diferenciação teorética da musculatura humana
em dois grandes tipos - músculos tónicos/posturais e músculos fásicos/dinâmicos -
essencial para a prescrição metodológica dos métodos da linha de Mézières, é já
Começaria por dizer que, dentro do conjunto dos métodos neo-mézièristas, há considerada mais “facto” que “teoria”, o que releva de uma grande importância para a
aqueles que seguem uma linha mais comercial de divulgação e aqueles que seguem consubstanciação conceptual dos métodos de trabalho em Mézières. Claro que não é
uma linha mais conservadora de desenvolvimento. Em particular, métodos como despiciendo o argumento - utilizado por tantos - de que o facto de existirem músculos
a “antiginástica” de Bertherat e a “Reeducação Postural Global” auferem de uma de natureza postural não obriga à utilização de uma ginástica do tipo “estática”. Ora,
fama a nível mundial, a qual tem permitido criar um número incomensurável de penso que esta questão começa a ganhar novos contornos científicos na actualidade,
cursos e formações com preços simplesmente indescritíveis. Para além disso, tanto sendo que tem sido inalienavelmente demonstrado que os músculos de natureza
a “antiginástica” quanto o “Stretching Global Activo”, filho do RPG, tornaram-se “tónica” são mais “sensíveis” a um trabalho também ele tónico, enquanto que os
métodos de utilização grupal e massificada, a qual, não querendo diminuir a sua músculos de natureza “fásica” são mais “sensíveis” a um trabalho dinâmico (que os
importância, não possui o mesmo grau de eficácia que os métodos verdadeiramente diferentes desportos de resistência e força/potência muscular tão bem demonstram).
individuais. Aliás, o conceito de ginástica “estática” e/ou “postural” é anterior à revolução de
Diria que todos os métodos neo-mézièristas possuem a robustez e a vitalidade Mézières, sendo que ganhou importantes contornos científicos com a introdução
de uma metodologia inovadora, que não deixou de possuir, principalmente no e desenvolvimento do método Pilates. Não devemos esquecer, igualmente, que a
mundo francófono, a capacidade de criar uma verdadeira “revolução na ginástica primeira obra de Françoise Mézières - “La gymnastique statique” (1947) - é anterior
ortopédica”. Por motivos de coerência histórica, de parcimónia científica e de ao princípio de observação que levaria à criação do seu método.
pureza metodológica, diria que é devido ao método Mézières o seu necessário e Tudo isto demonstra que o conceito de “ginástica estática” não é derivado de
inalienável reconhecimento enquanto método fundador de um conceito também Mézières e da sua revolução. O que realmente deriva da “revolução mézièrista” é a
ele fundador. Não critico, contudo, todos os esforços de inovação, tanto teorética nova metodologia de “ginástica estática”, a qual, até ali se centrava especialmente no
quanto pragmática, relativamente ao mais puro método original. A evolução constitui treino de força muscular, e a partir dali, viria a centrar-se no trabalho de alongamento
um caracter especificamente humano, e de tal forma o é, que é raro um método não muscular global.
brotar numa nova linha mais ou menos independente, mais ou menos autónoma, de Importante será também dizer que a ideia de que a postura e/ou morfologia
métodos-filhos e /ou novas metodologias. estaria relacionada com o estado de comprimento-tensão dos grupos musculares
Direi, contudo, que o conceito de trabalho postural com base no alongamento também não é apanágio criador de Mézières, pois, no mundo anglo-saxónico, a dita
global das estruturas miofasciais (organizadas em cadeias) com vista à reestruturação ideia já vigorava nas ginásticas mais clássicas. Aliás, durante décadas, acreditou-se que
morfológica caracteriza a totalidade dos métodos de linha mézièrista, pelo menos o trabalho do transverso abdominal ou dos rectos abdominais levaria à diminuição da
aqueles que se relacionam mais com os profissionais da motricidade. hiperlordose lombar (já, naqueles tempos pré-Mézières, considerada como “malade

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postural”). Só mais tarde, Souchard viria a deixar bem claro - melhor que a própria
Françoise Mézières - que o treino, seja estático, seja dinâmico, de um qualquer
músculo e/ou grupo muscular jamais poderá permitir o trabalho de “correcção” de
uma deformidade, mesmo que seja funcional. O autor associa isso ao facto de não
existir, no nosso corpo, um sistema muscular de “antagonismo puro”, ou seja, a
acção de determinados músculos não poderá contrariar completamente a acção
de outros conjuntos musculares. Eu acrescentaria que, sendo o músculo transverso
abdominal um músculo de inserção posterior lombar e anterior abdominal, ele jamais
poderia ter o efeito de “deslordosar” a coluna (aliás, os mézièristas mais clássicos até
acreditam que o trabalho do transverso abdominal tem um efeito lordosante e que,
como tal, deve ser evitado).

Fig. 36 - Músculos superficiais da parede abdominal (Netter).

Este é um bom argumento para tantos e tantos desportistas e terapeutas que


acreditam que o treino dos músculos anteriores dinâmicos do tronco (rectos
abdominais) poderá fazer com que aumente a cifose dorsal. Como poderá aumentar
a cifose dorsal por esse mecanismo, ou seja, como poderá constituir-se determinado
design postural se estamos a falar de músculos de natureza dinâmica e não estática/
postural?...
Outra coisa que é importante ter em conta diz respeito ao método Pilates. Sendo
essencialmente um método de treino da força abdominal profunda - e da capacidade
de activação dessa mesma musculatura -, principalmente do músculo transverso
Fig. 35 - Músculo transverso abdominal. abdominal, temos de colocar a hipótese de a actividade deste mesmo músculo ter
realmente um efeito lordosante, e, portanto, o Pilates passar a ser uma actividade
contra-indicada ao trabalho de Reeducação Postural propriamente dito... E já que
Quanto aos músculos flexores dinâmicos do tronco, sendo dinâmicos nunca falamos de Pilates, podemos igualmente citar que a sua prática, por este e outros
poderiam contrariar a acção de uma musculatura estática (posterior). motivos, não faz sentido se não incluir o trabalho de alongamento ou stretching, ainda
mais porque os níveis mais avançados do treino de Pilates implicam a existência de
um certo nível de flexibilidade muscular.

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Para perceber o perigo do treino abdominal, próprio de várias actividades físicas,


incluindo o Pilates, é preciso ter uma ideia da relação biomecânica que os abdominais
estabelecem com outras áreas corporais. Na realidade, os abdominais, principalmente
os profundos, possuem uma função importante de estabilização da coluna lombar.
Se a exigência sobre a lombar aumenta - por exemplo, pela acção de afastamento
do membro inferior - os abdominais contraem e fornecem um “ponto fixo” à
coluna lombar. Porém, sempre que a exigência sobre a coluna for muito grande os
abdominais perdem a capacidade para realizar tal estabilização, aumentando o nível
de deformidade na lombar, que é o que muitas vezes acontece num treino abusivo e
descontrolado do Pilates. Por outro lado, um bom instrutor de Pilates será capaz de Fig. 38 - Prancha de Pilates com excessiva activação lombar.
se aperceber do perigo de “deformação” quando ele estiver próximo de acontecer.
Mas há ainda uma outra realidade a ter em conta: é que, por melhor que o instrutor Portanto, até aqui já citei uma série de mitos e as contradições existentes nos
mesmos. Mas não fiquemos por aqui. Vamos analisar a ideia - clássica e hegemónica
seja, não é possível eliminar muitas das compensações que o corpo realiza aquando
- de que o trabalho de “correcção postural” carece de “fortalecimento muscular”.
do treino abdominal, o que torna tudo muito mais contra-indicado ou impróprio para
Ora, o que a experiência dos mézièristas tem demonstrado é que o fortalecimento
a saúde dita “postural”.
muscular, mesmo que somente dirigido à musculatura fásica (o que é, aliás,
impossível, pois não há forma de isolar completamente o trabalho da musculatura
dinâmica relativamente à musculatura postural), tem por resultado o aumento do
tónus da musculatura de natureza postural. Ora, é esse mesmo exagero tónico que
se pretende inibir com o trabalho de “reeducação postural”. Portanto, por exemplo,
o trabalho de fortalecimento dos extensores do tronco, com vista à correcção de
uma hipercifose dorsal, é cem por cento irracional. E isto por várias razões. Primeiro
que tudo, como se pode fortalecer músculos essencialmente tónicos (músculos
extensores do tronco e musculatura adutora das omoplatas) com exercícios de
fortalecimento dinâmico? Não é muito lógico, pelas razões já apresentadas. Mas,
ainda assim, visto que dissemos que o trabalho dos músculos fásicos comportaria o
trabalho co-sinérgico dos músculos posturais, ainda podemos pensar na possibilidade
de exercícios de fortalecimento abdominal e de fortalecimento dos extensores do
tronco poderem ter como resultado o encurtamento dos músculos extensores.
A experiência tem demonstrado que, geralmente, esse trabalho de força irá somente
levar à criação de uma nova deformidade. Ou seja, a correcção da cifose, ou não
é simplesmente conseguida, ou então, é conseguida à custa do encurtamento da
Fig. 37 - Treino abdominal (excessivo) com compensação lombar. musculatura extensora, ou seja, à custa de uma nova deformidade (com todas as

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consequências sintomáticas que tal acarretará). O trabalho de força muscular, pura Por tudo o que fica dito, e por muito mais, posso e devo dizer que o
e simplesmente, não é correctivo, pois tem sempre como consequência a criação “endireitamento postural” constitui uma ideia supramente mitificada. Não só a “bela
de tensão numa musculatura de natureza já por si hipertónica. Aqui surgem muitas forma” ou “postura correcta” não consiste numa “postura direita” (ao contrário
questões. Uma delas consiste no facto de a maioria dos atletas possuir um semblante do que quase toda a gente acredita, incluindo especialistas da área), como essa tal
de “endireitamento” do tronco, belo e atractivo. Ora, esse mesmo “endireitamento” “postura direita” constitui um erro postural inacreditavelmente dominante. Se há
do tronco constitui, a meu ver, algo comparável ao açúcar da alimentação: é belo, coisa que os mézièristas demonstraram, sem margem para dúvidas, é que a ideia de
sabe bem, tem bom aspecto (pois já foi útil em tempos passados), mas faz mal (pois que devemos manter uma “postura direita” e de que toda a nossa higiene postural
já não se adequa às necessidades do Homem presente). Os atletas, pelo facto de se relaciona com o “estar direito” constitui um mero e estulto mito. Tendo em conta
possuírem intensa actividade física, desenvolvem muita tensão nos extensores do a natureza funcional da cadeia muscular posterior, a postura “correcta” consiste, na
tronco. Isto acontece, claro está, porque todo o trabalho de força muscular - no qual realidade, em toda a postura que permita o alongamento muscular posterior (sem
é exímio o conjunto de desportos contemporâneos - irá criar a hegemonia de tensão exageros, é claro...) e o trabalho de inibição tónica das hegemonias musculares
da musculatura postural, ou seja, o trabalho desportivo irá super-solicitar o trabalho prevalecentes. Assim sendo, é bastante comum os mézièristas recomendarem aos
postural. Isto leva a que os extensores do tronco da maioria dos atletas fiquem seus doentes que estes se sentem com a lombar bem apoiada, se não cifosada.
demasiadamente encurtados, dando-lhes uma aparência de “direitos”. Ou seja, a Mais tarde, Souchard, temendo o nível de contra-intuição presente nesta ideia,
grande maioria dos atletas possui o tal aspecto hegemonicamente belo, à custa de viria a trair os princípios de higiene postural mézièrista, preferindo, muitas vezes,
uma deformidade (de retracção muscular) em rectificação ou” lordose dorsal”. Talvez a colocação da coluna lombar numa posição neutra (ou seja, com manutenção da
isto explique que estes mesmos atletas “direitinhos” sejam altamente vulneráveis a curvatura lordótica “normal”). Diria que o treino de correcção de uma hiperlordose
dorsalgias e cervicalgias, assim como ao aparecimento de hérnias discais. somente poderá ser conseguido com o trabalho de ablação total da curvatura, o
que corresponde não propriamente à inversão da curvatura (como muitos críticos
de Mézières têm sugerido), mas sim à eliminação de qualquer nível de lordose,
mesmo a funcional (ou seja, consiste, mais uma vez, no princípio mais genuinamente
mézièrista, a deslordose). Mas voltando às questões da “higiene postural”, talvez seja
pertinente dizer que, para os mézièristas, a postura “ideal” de “descanso” consiste,
na realidade, na postura do “cocheiro” (estou a referir-me verdadeiramente ao
“curvado” cocheiro). Todo o trabalho de “endireitamento” somente irá criar uma
hiper-solicitação do trabalho muscular da cadeia muscular posterior, o que, a longo
prazo irá traduzir-se na fadiga e consequente “encurvamento”. Ou seja, o trabalho de
força da musculatura extensora irá, pela natureza de trabalho neuromuscular desta
musculatura, criar um nível de fadiga tal, que a pessoa irá, lentamente tender para a
cifose. Quer isto dizer que, ao contrário do que a intuição nos poderia fazer pensar,
o trabalho dos extensores do tronco ainda vai aumentar mais a cifose (a não ser
Fig. 39 - “Agachamento”, exercício paradigmático da musculação com excessivo trabalho de extensão. claro que, como acontece com os desportistas, se crie a retracção hegemónica da

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musculatura entre as omoplatas, o que levaria a um “endireitamento patológico”). É fora”, esta actividade é, de facto, inovadora, constituindo, a meu ver, o menor mal
preciso entender que a capacidade de “endireitamento postural” está dependente entre vários males. Mas, à semelhança do Yoga e de muitas outras actividades físicas,
do bom funcionamento tónico da musculatura extensora postural, o que, tendo há várias escolas de Pilates. De uma forma simplista diria que as escolas clássicas
em conta o que sabemos do funcionamento deste tipo de músculos, significa a defendem um tipo de treino mais “duro”, com a lombar necessariamente sempre
capacidade de manter a contracção por períodos prolongados de tempo sem criar assente no colchão, enquanto que as escolas modernas defendem a realização de
fadiga. Ou seja, o “endireitamento postural” será tanto maior quanto mais flexíveis uma prática menos “dura”, e portanto, com menos compensações, mas com a coluna
forem os músculos posturais; a capacidade para manter a contracção está fortemente lombar em posição neutra. Ora, por motivos já apresentados, defendo o trabalho
dependente da capacidade elástica da musculatura. Significa, então, que, quanto mais do Pilates tal como protagonizado pelas escolas modernas, ou seja, um Pilates
flexível for a musculatura postural, mais capacidade tem a mesma de gerar uma controlado, com menor probabilidade de deformação e/ou compensação corpórea.
contracção anti-gravítica persistente. Aliás, as minhas observações têm-me dado a Com o risco de ser menos interessante, é indubitável que o Pilates apresentado por
entender que a facilidade para nos mantermos “direitos” advém do comprimento da certas escolas como o “Pilates Institute” é exponencialmente mais seguro que muitos
cadeia muscular posterior, ou seja, advém da flexibilidade da musculatura posterior. E outros. Porém, não concordo, de forma alguma, com o princípio da “coluna neutra”.
isto não é novidade alguma, pois, qualquer bom observador poderá facilmente ver a Entendo, pelos já apresentados motivos relacionados com a “deslordose”, que o
diferença na forma como uma pessoa flexível se senta, relativamente a uma pessoa Pilates deve ser praticado sempre com a coluna lombar completamente assente
menos flexível. Compare-se, por exemplo, as senhoras com os senhores. Quem no colchão ou, em geral, em estado de “deslordose” ou alongamento. Trata-se do
tem, geralmente, maior capacidade para manter uma postura sentada direita (com necessário “colocar em tensão” de uma estrutura cujos músculos são tendencialmente
pernas esticadas)? As senhoras, que são mais flexíveis? Ou os senhores, que são mais fortes, curtos e hipertónicos.
“fortes”?... O princípio mais primacial de observação leva-nos a verificar que são as
senhoras as que possuem mais facilidade em obter determinadas posturas, o que
advém da sua maior flexibilidade miofascial.
Recomendo, em termos de treino desportivo, a realização dos diversos exercícios
com diminuição da curvatura lombar. Mas mesmo assumindo que um bom instrutor
ajuda o seu aluno a manter uma postura de “deslordose”, não há cuidado algum
que retire a essa mesma actividade física a sua tendência para o “fortalecimento”, o
estatuto de “deformadora”. Ou seja, é real que muitos instrutores actuais ajudam
os seus alunos a diminuir o nível de tensão sobre a coluna, mandando os utentes
dobrarem os joelhos ou deslordosarem a lombar. É, admito, uma evolução positiva
no campo do fitness. Mas, ainda assim, de pouco serve tal evolução, pois o carácter
“deformador” de certos desportos, como as actividades resistidas, está incutido no
contexto próprio dessas actividades.
Gostaria, entretanto, de referir, mais uma vez, o Pilates. Como actividade de força
do centro do corpo, diria que, pelo facto de o Pilates trabalhar a força “de dentro para Fig. 40 - Coluna lombar assente no colchão.

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Já que falamos mais uma vez de “força”, devo dizer que a ideia de que as lombalgias com o “comprimento muscular”. Assim sendo, as deformidades e dores ósteo-
estão associadas à falta de um “reforço muscular” é, por tudo o que foi dito, falaciosa. musculares advêm sobretudo da incapacidade que as estruturas musculares têm para
E a todos aqueles que poderão apresentar linhas de estudos que demonstram essa criar “pontos” de modificabilidade tónica.
relação, eu apresento linhas de estudos que contradizem essa mesma relação, assim Ora, neste ponto, importa referenciar novamente o paradigma de Bricot. Ou
como muitas outras linhas de estudos que relacionam flexibilidade, morfologia, seja, se vamos passar a valorizar mais o campo “neurológico” do trabalho postural,
mobilidade, e muitos outros factores, com a presença/ausência de dor. Diria que não podemos deixar de sublinhar a importância do trabalho terapêutico com
ainda estamos muito longe de atingir uma plena maturidade metodológica que base no treino proprioceptivo e de equilíbrio e no relaxamento psicofísico. Aliás,
permita atribuir credibilidade suficiente às diversas linhas de estudos existentes. O se a “postura” depende fortemente de uma capacidade de “controlo neurológico
mesmo será dizer que, atendendo ao que tenho visto em tantos e tantos artigos, central”, que, sendo essencialmente subcortical, é de natureza fundamentalmente
pouco se sabe verdadeiramente, em termos científicos, sobre a relação entre os inconsciente, então devemos, tal como o fez Bernard Bricot, valorizar o papel do
diversos factores biomorfológicos e a raquialgia. trabalho “neurológico”, percebendo, de uma vez por todas, que a ordem “consciente”
Aliás, atendendo a que à maioria dos estudos realizados falta um grupo controlo e “voluntária” para “endireitar” as costas de nada serve. Ora, se o mecanismo de
ou a necessária aleatorização da amostra, não posso deixar de afirmar que a ciência controlo postural é inconsciente de que serve mandar alguém “endireitar-se”?... A
que se faz por aí é ainda extremamente imatura. Isto para não esquecer o facto de, experiência tem demonstrado que as metodologias que fazem uso de estratégias de
mesmo nos estudos considerados como sendo “de qualidade”, é impossível controlar controlo consciente da posição corporal são ineficazes. Diria que certas metodologias
o efeito Pigmaleão da investigação, ou seja, o efeito relacionado com a influência que de “actividade física” que privilegiam o “global” ao invés do “analítico”, e o “motor” ao
as expectativas pessoais do investigador terá no surgimento dos resultados. invés do “físico”, como a dança, a psicomotricidade, o relaxamento, as artes marciais e
Se somarmos a tudo isto certos actos próprios da investigação científica, como o todas as actividades que façam uso das capacidades de equilibração e de coordenação
plágio, a invenção, ou o mero acto de sobrevalorização de uns estudos em desprimor neuromotora, poderão ter mais eco no trabalho de “reeducação postural”. Portanto,
de outros, podemos ter bem em conta que devemos desconfiar de tudo o que para além das metodologias mais fisicalistas, todas as outras mais psiconeurológicas
é processo científico. Em termos gerais, os cientistas, nos seus estudos, nem que possuem uma importância provavelmente fulcral.
seja por um efeito Pigmaleão inconsciente, tendem a concluir aquilo que desejavam Gostaria de referir que, muitas vezes, principalmente quando temos novos alunos
concluir. nas nossas aulas, as nossas tentativas de “endireitar” e alinhar o utente levam a que
Prefiro, pessoalmente, mergulhar na natureza apodíctica das bases conceptuais o mesmo fique mais tenso do que se o deixássemos simplesmente em paz. Ora,
de um método revolucionário como o método Mézières. E é no seio dessa por vezes, é preferível não sermos excessivamente exigentes para com os utentes,
mesma natureza que o princípio revolucionário de que as deformidades posturais pois a “tomada de consciência” do corpo e da postura envolvem um processo de
e as raquialgias são devidas aos excessos musculares e/ou tónicos e não à fraqueza automatização, o qual é necessariamente delongado.
toma aspecto de uma verdadeira “lei” de estudo etiopatogénico e de intervenção Portanto, temos que uma intervenção a nível reumatológico, na presença
terapêutica. da “deformidade postural” e ou de sintomas raquidianos, passa por um trabalho
Importante será acrescentar que, na actualidade, principalmente no campo necessariamente ecléctico, centrado fundamentalmente no paradigma Mézières, o
teorético da “Reconstrução Postural”, parece que tudo o que dissemos sobre que inclui também a sua componente psicofísica e de integração neuro-sensorial.
excessos musculares está relacionado mais com o “tónus em si mesmo” do que Como vimos, para o paradigma em análise, todas as deformidades posturais

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

possuem origem em “excessos” da musculatura essencialmente posterior. As está dependente da “forma” e, portanto, dos factores miofasciais e neuromusculares
lordoses são a origem. As escolioses estão sempre correlacionadas com um excesso que com ela se relacionam. Se a pessoa possuir algo perto da “bela forma”, e não
muscular da musculatura lordosante (os mesmos músculos paravertebrais que estão vier a ter alguma condição reumatológica e/ou orto-traumatológica relevante que
envolvidos na flexão lateral, e eventualmente, na rotação dos corpos vertebrais da modifique as condições de alinhamento articular, é pouco provável que venha a sofrer
coluna, são também os músculos mais poderosamente envolvidos na “lordose”). E de qualquer tipo de condição degenerativa. Acrescentaria que estas mesmas pessoas
as cifoses, essencialmente deformidades meramente “aparentes”, resultam também também são aquelas que podem praticar actividades como “andar”, “correr” ou “saltar”
de uma compensação lordótica, que, eventualmente, pode ser devida à acção de com a menor probabilidade de virem a criar problemas articulares decorrentes de
contrariação “directa” da lordose, seja devido à acção do diafragma, seja devido à deformidades (a não ser que o excesso de prática desportiva modifique o panorama
acção dos músculos rotadores internos, ou da acção mais “indirecta” das cadeias tónico-muscular presente). Por outro lado, o que dizer da “saúde” de alguém que
musculares anteriores (sempre relacionadas com a “posterior”, relação mediada pelo possua um certo nível de desalinhamento e/ou deformidade (mesmo que não
diafragma). notória)?... Será que as pessoas com um nível mínimo de deformidade poderão
Vimos, também, já bastante atrás, que a o conceito de postura “normal” e de praticar actividades físicas com o mesmo à-vontade que as pessoas que possuem
postura “anormal” não é correcto, visto que ninguém possui uma postura perfeita. grande nível de “bela forma”?...
Portanto, no campo “postural”, raramente alguém é isento de hegemonias musculares, Aquilo que tenho defendido é que não. Ou seja, deverá haver, para a maioria
raramente alguém possui uma postura dita “normal”, e raramente alguém possui das pessoas, uma diminuição cabal da tendência para a prática de desportos como
características “perfeitas” de flexibilidade muscular. Ora, o que tudo isto vai implicar os de carácter assimétrico e as actividades de fitness, pois, estando estas actividades
é que a linha teorética que divide “saúde” de “deformidade” é extremamente grosseiramente centradas no trabalho da “força muscular”, acabarão por funcionar
espúria, se é que chega a existir. Ou seja, todos nós somos “doentes posturais” como uma porta de entrada para a criação de tensão muscular e consequente
em potência e, portanto, tudo o que fica dito para as pessoas com deformidades deformidade. Atenção: não pretendo negar a evidência que tantos estudos (ditos
posturais relevantes, mantém-se oportuno para a totalidade das pessoas, pois todos funcionais) têm lançado sobre determinadas vantagens que advêm da prática
nós possuímos algum grau de “deformidade postural”. O mesmo será dizer que, em desportiva. Falo só em termos “posturais”, “estruturais”, “morfológicos”, ou, mais
termos analíticos, todos nós possuímos determinada idiossincrasia, e somos tanto globalmente, “músculo-esqueléticos”. E o que defendo é que, ao contrário do que
mais saudáveis quanto melhores as condições de bom alinhamento e a proximidade muitos preconizam, a actividade desportiva, principalmente as novas modalidades do
à “bela forma”. E todos devemos tender para a “bela forma”. E tudo deveríamos fazer fitness, potenciam o exacerbar de hegemonias musculares que se queriam refreadas.
para criar tal tendência, a qual não deixa de se aproximar do conceito kantiano de E isto é tanto mais verdade quanto maior a tendência que o indivíduo possui para a
“perfectibilidade” humana. tensão muscular e a retracção mio-fascial.
Por exemplo, o mecanismo patológico da artrose está intimamente relacionado Em particular, certos desportos, como a musculação, constituem, provavelmente,
com a “postura”. Os médicos tendem a relacionar a “artrose”, ou qualquer outro um factor importante de criação de desequilíbrios musculares relevantes. Analisem-
processo degenerativo, com a osteoporose e outros factores de desgaste articular. se as “posturas” dos culturistas e retirem-se as necessárias conclusões...
Mas, eu diria que, se a postura fosse perfeita, se o alinhamento fosse perfeito, Já Françoise Mézières, no seu “Originalité de la Méthode Mézières”1, dizia que
nunca teriam estado presentes factores relevantes de desgaste articular. Ou seja, a « a la différence de toutes les autres méthodes, ma méthode: 1º ne s’adresse
“perfectibilidade” é condição do bom funcionamento articular. E essa “perfectibilidade” qu’à élasticité musculaire; 2º ne fait jamais de musculation; 3º tient compte de la

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

morphologie normale; 4º n’exerce jamais l’inspiration; 5º ne fait jamais d’exercice pelos fisioterapeutas e outros profissionais da motricidade. Consiste, na realidade,
analytique; 6º ne fait jamais d’exercice perpendiculaire à l’axe rachidien; 7º ne no modelo de trabalho dos terapeutas com doentes com artroses ou processos
s’adresse qu’au physique. » E quem a conheceu, diz que Mézières não simpatizava inflamatórios. Pergunto se estes profissionais chegaram a perceber se o seu utente
sequer com o Yoga. O que é perfeitamente compreensível, pois, estando repleto de teria as condições de alinhamento articular requeridas para esse mesmo trabalho.
posturas em (hiper)lordose, e de fortalecimento dos extensores do tronco, torna-se Vamos ter em conta um exemplo. Qual será, na realidade, o resultado da mobilização
extremamente anti-mézièrista (fig. 41). de um joelho excessivamente valgo ou varo? Se num joelho valgo há aproximação
das superfícies externas da articulação e se num joelho varo há aproximação das
superfícies internas, será que uma actividade tão simples como a marcha não
poderá ajudar no desgaste das superfícies mais próximas (incluindo todo o conteúdo
articular como a cápsula articular e as cartilagens)? Provavelmente, andar um ou
dois quilómetros não provocará grande diferença, mas se somarmos essa mesma
actividade repetida dia a dia, semana a semana, ano a ano, ao final de vários anos, os
efeitos ditos “cumulativos” serão, provavelmente, relevantes... Podemos generalizar
este exemplo para qualquer outro tipo de “desalinhamento”, e principalmente para
actividades mais intensas como o “correr” ou a realização de qualquer outra actividade
com relativo impacto...
Na realidade, especialidades médicas como a “medicina desportiva” ou a própria
“fisioterapia desportiva” existem somente porque o desportista é extremamente
dado a lesões. Já todos devemos ter ouvido falar nas Lesões por Esforço Repetido
(LER)!... E há todo um conjunto extremamente avultado de lesões próprias do
excesso de actividade física. A maioria das actividades gímnicas, principalmente se
Fig. 41 - Postura de Yoga, com hiperlordose lombar. realizadas em termos “competitivos”, colocam o corpo humano sob grande stresse.
E o que é certo é que nem mesmo esses profissionais da Medicina Desportiva e da
Portanto, depois de percebermos que tanto o método Mézières como os Fisioterapia Desportiva têm consciência de que o corpo é suficientemente frágil de
métodos neo-mézièristas não gostam do trabalho de força, aqui está este autor a modo a preocuparmo-nos cada vez mais com todas as condições de prevenção
generalizar o conceito à totalidade dos praticantes de actividade física. A actividade e/ou evicção dos esforços deletérios. E se têm essa consciência, então fingem que
física, principalmente a actividade intensa e/ou com fins competitivos, constitui uma não a têm pois não dá jeito ao médico ou terapeuta que o seu atleta passe a ter
porta de entrada para a “deformidade”. E o atleta inteligente é, indiscutivelmente, muito menos lesões. Chego a este ponto e afirmo, sem margem para dúvidas, de
aquele que treina a sua flexibilidade!... que a fisioterapia desportiva existe somente para criar condições para que o atleta
Mas as questões não se resumem ao carácter de maior ou menor fortalecimento - ser inconsciente - volte o mais rápido possível para a actividade, a qual, seria mais
muscular. A questão relaciona-se em muito com o típico trabalho de mobilidade sensato, simplesmente evitar; o fisioterapeuta desportivo existe para criar condições
articular. O trabalho de mobilidade/mobilização articular é realizado sistematicamente para que o desportista volte a assumir o mais cedo possível “carne para canhão”

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para a actividade desportiva competitiva. Um bom fisioterapeuta - que não será meu manifesto. Para além disso, ainda poderia acrescentar todas as obras – existem
decerto o fisioterapeuta do desporto - será um ser consciente, que tem a obrigação centenas - que se dedicam ao estudo das dores e lesões próprias de cada actividade
ética de desencorajar a realização de uma actividade física que está a demonstrar física.
ser perniciosa para o atleta. O bom fisioterapeuta aposta na prevenção, e aposta E já que falámos da obra de Leandro Massada, referente a jovens desportistas,
na Verdade, não na criação de condições de fisioterapia não reeducativa, focada é preciso referir alguns aspectos relativos ao desenvolvimento dito “ontogenético”
sobretudo em sintomas e apenas nos mesmos, e concentrada na criação de condições (desenvolvimento juvenil). Não devemos nunca esquecer que o bebé é totalmente
de agravamento da condição geral do desportista. Vamos atender a um exemplo que cifótico e que o desenvolvimento acarreta o aumento das curvaturas lordóticas. Daí
considero ser paradigmático: a ligadura funcional. Se um atleta realiza um mecanismo que Bienfait3 considere as lordoses cervical e lombar como curvaturas secundárias (e,
de entorse, distendendo os tecidos moles da zona externa do tornozelo, é muito de facto, a cifose é apenas aquilo que resta do desenvolvimento das lordoses). O que
comum o fisioterapeuta colocar no atleta uma ligadura elástica que permitirá reduzir é preciso entender é que quase toda a deformidade postural, assim como a “normal”
a amplitude dos movimentos dolorosos, permitindo a realização dos movimentos “maturidade postural”, está já presente no final da adolescência, consistindo esta fase
não problemáticos. Ora, já algum terapeuta se perguntou se esta mesma ligadura não (principalmente o “pico de crescimento em altura” que dura maioritariamente dos
irá sujeitar a estrutura a um jogo artificial de tensões? Já algum terapeuta se perguntou 12 aos 14 anos de idade) um importante período de aquisição do equilíbrio postural.
se esta mesma ligadura não aumentará o nível de stresse sobre as estruturas que está De facto, o período adolescente é riquíssimo em “desequilíbrios musculares”, pois,
a libertar, o que parece ser uma consequência óbvia da limitação dos movimentos a verdade é que a maturação óssea faz-se de forma assimétrica e desproporcionada,
problemáticos?... E poderia continuar a efectuar perguntas, sem nunca mais cessar... levando a que a deformidade possa facilmente ocorrer ou manifestar-se nesta época
Por isto e muito mais, vemos que nem sempre a actividade desportiva se (através de um excesso tónico desinibido). Eu próprio tenho, em conjunto com
correlaciona com a saúde, pelo menos se nos restringirmos à saúde músculo- outros investigadores, estudado os factores de risco envolvidos no aparecimento
articular. de raquialgias em adolescentes4,5. E é bem verdade que a prevalência de dores
Gostaria de, chegado a este ponto, referir uma importante obra da literatura da coluna em jovens é bastante acentuada. Proponho a leitura dos artigos citados,
médica. Trata-se da obra “O homem é um animal assimétrico. Especulação sobre um os quais incluem uma revisão de estudos relacionados com a realidade vigente.
estudo antropométrico efectuado em jovens atletas”2, e é do médico especialista em O facto de a postura possuir um “desenvolvimento” precoce, atingindo um certo
ortopedia e medicina desportiva Leandro Massada. Esta obra, para além de possuir nível de “estruturação” até ao final da adolescência, leva-nos a assumir que, não só
informações preciosas sobre postura, simetria corporal e deformidades posturais, os desportos de competição devem ser evitados nas idades jovens, como todo o
explica, de uma forma bastante científica, um pouco aquilo que venho citando em todo esforço com vista a uma correcta “intervenção postural” deve confluir numa palavra
este texto, ou seja, que a actividade desportiva estrénua acarreta grandes esforços muitas vezes negligenciada: a prevenção. Em particular, apesar de os fisioterapeutas
para as estruturas articulares. Para além disso, a obra de Leandro Massada apresenta de Reeducação Postural acreditarem, quase todos, na possibilidade de reestruturação
dados bastante concretos sobre a forte incidência de deformidades posturais, como postural em qualquer idade, a verdade é que tudo indica que, quanto mais tarde
escolioses de curvatura dupla (deformidades do tipo “assimétrico”), em atletas de se iniciar o esforço reeducativo mais difícil se torna o processo de tratamento da
desportos do tipo “assimétrico”. A obra inclui, também, uma importante revisão de deformidade. Como veremos na Conclusão, importa falar cada vez mais de Educação
estudos que referem a existência de deformidades diversas em actividades desportivas Postural ao invés de Reeducação Postural. Aliás, Bienfait sublinha a importância da
variadas. É um livro obrigatório, que considero um complemento fundamental ao prevenção, sublinhando, por exemplo, que as deformidades posturais de terceiro

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

grau, as verdadeiras dismorfias, não possuem qualquer tipo de recuperação do tipo alongamento libertam as estruturas articulares. Só nesta altura, quando a posição e
fisioterapêutica (somente a cirurgia ortopédica pode ajudar). alinhamento articulares forem menos viciosos, deverão ser realizadas as actividades
Ora, a solução para tudo o que foi dito não passa, propriamente, pela evicção de mobilidade (actividades cardiovasculares, ginásticas de mobilidade), as quais
da actividade desportiva, apesar de em muitos casos tal ser recomendável. Passa, deverão ser necessariamente suaves. E só no fim de todas as estruturas estarem
sobretudo, pela realização de actividades ligeiras, suaves, com carácter essencialmente adequadamente “libertas” de tensão, é que se pode pensar na realização do treino
cardiovascular. E essas actividades deverão ser acondicionadas a toda uma nova de força. Este deve privilegiar o trabalho do “centro do corpo”, como no Pilates, e
metodologia de trabalho físico. o trabalho “facilitado” das estruturas à periferia. De modo a não se acabar o trabalho
Ou seja, pretendo dizer que actividades que fazem uso “directo” da força da físico em posição de encurtamento, deve-se voltar a alongar globalmente (com os
cadeia muscular posterior, como a natação, a musculação e o Yoga, deveriam ser cuidados necessários ao alongamento a quente) e acabar com o relaxamento.
proibidas aos padecedores de raquialgias. Jamais deveriam ser recomendadas, que é Portanto, a minha “utopia” de treino consiste num conjunto de “atletas” que
o que uma miríade de profissionais de saúde ainda faz. E essas mesmas actividades alongam logo de manhã, por longos períodos de tempo, antes de realizarem qualquer
são, a meu ver, desaconselhadas a qualquer pessoa, a não ser àquelas que possuam outro tipo de actividade física. Só depois de estarem criadas as boas condições de
condições de flexibilidade excelentes. alinhamento esquelético é que se torna “racional” realizar muitas das actividades
Outras actividades, como a maioria dos desportos de carácter assimétrico, e a motrizes típicas do fitness.
quase totalidade de práticas do fitness, possuem igualmente uma incomensurável Nos meus grupos de “Reeducação Postural”, trabalho sempre segundo a
irracionalidade, pelos mesmos e outros motivos que já apresentei. metodologia que apresentei. Na fig. 42 é visível um conjunto de doentes a alongarem
Por outro lado, certas actividades cardiovasculares, como o simples “andar” a cadeia muscular posterior.
podem ser muito benéficas para a saúde, mas mesmo estas deverão ser inseridas
num novo plano de treino físico. Pois, até mesmo esse “andar” poderá apresentar
malefícios num indivíduo que apresente deformidade. Não será assim tão estranho
pensar no que acontece a um joelho excessivamente valgo ou excessivamente varo,
após horas de marcha ou mesmo meia hora de corrida (como vimos atrás)... Por
outro lado, o jogo de forças articulares deletérias poderá ser beneficiado de um
trabalho preliminar de alongamento. Esse mesmo plano ou metodologia é diferente
da tradicional e consiste na realização, pela ordem que vou apresentar, do seguinte
leque de actividades: 1º relaxamento; 2º alongamento global; 3º mobilidade articular;
4º força do core e trabalho facilitado das extremidades, 5º alongamento global e 6º
relaxamento. Portanto, inicialmente, têm de ser criadas condições de relaxamento
das estruturas miofasciais, através dos métodos de relaxamento. Somente este
relaxamento inicial irá facilitar o alongamento. Só depois deverá ser realizado o
alongamento. Este deve, tal como já foi dito (anteriormente), ser feito a frio, global Fig. 42 - Alongamento da cadeia posterior, em grupo,
e progressivamente por períodos prolongados de tempo. O relaxamento e o numa classe no Consultório e Clínica de Reabilitação, Lda. - Lisboa.

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

verdade é que a fisioterapia actual constitui um processo crescentemente massificado,


sendo que, não havendo tempo para aplicar terapias manuais aos doentes, é comum
aplicar-lhes instruções para a realização de exercícios activos. Mas, a meu ver, não
há nada que impeça a realização precedente de alguns minutos de alongamento. Por
exemplo, no caso de uma artrose, antes de se passar à mobilização do membro e
aos vários exercícios de força (que não recomendo nas artroses, pois os exercícios
de fortalecimento irão ajudar a criar tensão em estruturas que já estão por si tensas
e demasiadamente “colapsadas”), recomendo a realização de algum alongamento
global por uns meros minutos. Esse alongamento permitirá libertar mais a articulação,
a qual “fará” posteriormente um trabalho de mobilização menos vicioso.
Em termos mais específicos, recomendo que tenhamos em conta a ideia de
“blocos” da cadeia muscular posterior. Todos os problemas da coluna vertebral, tórax
Fig. 43 - Trabalho no rolo correctivo, em grupo, numa classe no Consultório e membro superior, deveriam ser tratados inicialmente com a correcção da posição
e Clínica de Reabilitação, Lda. - Lisboa. da cabeça e coluna em geral e o trabalho respiratório (com insistência na expiração).
No caso de haver um problema no ombro, seja de cariz inflamatório, seja de cariz
A fig. 43 apresenta os mesmos doentes treinando o alinhamento e mobilidade da degenerativo, recomendo, na maioria dos casos, a realização de manobras de
coluna em rolos correctivos. descompressão articular (e podemos, mais uma vez, referir as pompages de Bienfait),
Seguir-se-iam o treino de força central, apenas se houver tempo para tal assim como técnicas ditas “harmónicas” que ajudam a criar “espaço” nas superfícies
componente... articulares e a mobilização articular dita “acessória”. Só depois faz sentido passar ao
Ora, é indubitável que este novo “esquema” de trabalho físico implicaria, em trabalho de mobilidade, seja passiva, seja activa. Portanto, no caso de existir, por
termos da “minha utopia”, uma série de mudanças. Neste novo esquema, a saúde exemplo, uma tendinite ou qualquer outro estado inflamatório do membro superior,
passaria para primeiro plano, enquanto que a “estética”, a “moda” e toda a efemeridade passar directamente ao trabalho de mobilidade (o que é extremamente comum ver
patente na indústria do fitness passariam para segundo plano. nas clínicas que por aí abundam) pode constituir um erro. Primeiro é necessário
Este tipo de metodologia também obrigaria a que os treinadores e professores libertar a articulação, constituindo nesse “acto” o alongamento um papel primordial.
passassem a dispor de um conhecimento mais alargado da “teoria das cadeias No caso de se tratar de um processo inflamatório ou degenerativo do membro
musculares”, das novas formas de alongamento, e das necessárias implicações inferior, recomendo, antes de mais nada, o alongamento do bloco inferior da cadeia
metodológicas do mesmo baseadas no conceito de Mézières. E também implicaria o posterior. Por exemplo, antes de nos pormos a mobilizar um joelho com artrose,
erradicar do mito do “endireitamento postural”, já anteriormente aludido. não custa nada, realizar o alongamento global dos membros inferiores por meros
E especificamente para os fisioterapeutas, gostaria de dizer que, por mais ocupados minutos. Fará toda a diferença, posso garanti-lo. A fig. 44 demonstra-me a alongar
que os mesmos estejam com o seu excesso de doentes, nada (ou quase nada) impede uma doente naquele que considero o alongamento mais paradigmático do método
que se realize algum trabalho de alongamento global antes de passar à realização das Mézières. Eventualmente, uma postura de Stretching Global Activo, autónoma,
mobilizações e dos exercícios autónomos. Como veremos no próximo capítulo, a também poderá ajudar nos nossos intentos (ver fig. 45).

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LUÍS COELHO O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO
Introdução ao conceito de Reeducação Postural

Aliás, penso que muitas vezes a razão pela qual certas artroses demoram tanto
tempo a conhecer uma melhoria sintomática prende-se, precisamente, com o facto
de os terapeutas ou instrutores moverem uma articulação sem pensarem no seu
primacial realinhamento. Ora, não terei primeiro de pôr tudo no seu lugar e só
depois passar à “função”?... Portanto, mais uma vez, a meu ver, a estrutura domina
a função.
Também no meu trabalho com grupos realizo sempre o mesmo ciclo global
alongamento - mobilidade - força. Começo sempre as minhas aulas com um
qualquer alongamento global da cadeia posterior. Depois, efectuo o plano lógico
de alongamento: inicialmente o alongamento das cadeias anteriores e, depois, o
alongamento das cadeias posteriores (ou seja, vou do efeito para a causa). Dentro
dos possíveis tento adequar os alongamentos executados à especificidade de cada
Fig. 44 - Alongamento global do bloco inferior da cadeia muscular
membro do grupo. Só depois realizamos diversos exercícios de mobilidade vertebral
posterior, com controlo das compensações. e das articulações proximais. Só por último é que realizo o trabalho de Pilates, incluindo
os exercícios mais adequados à “dinâmica” do grupo. A “estética” da aula fica para
segundo plano. Primeiro está a metodologia. Não estou flagrantemente preocupado
com a “forma” da coisa, apesar de que é isso que faz com que as pessoas voltem ou
não no dia seguinte.
O método Mézières e os métodos neo-mézièristas lançam-nos uma série de pistas
relativamente a um novo conceito de “cultura física”, menos centrada na performance
e na robustez muscular e mais centrada na estrutura com base na “bela forma”.
Esta “bela forma” nada tem a ver com um corpo “musculado”, um corpo dito
de fitness. Esse “corpo”, dominantemente considerado “belo”, remete-nos para
o já citado exemplo do “açúcar”. O corpo musculado atrai-nos porque a nossa
genética associa esse corpo a uma forma de supremacia biológica. Mas, nos tempos
“racionais” que actualmente vivemos, já não faz muito sentido existir esse género de
corpo. Infelizmente, tal como veremos no próximo capítulo, tanto o fitness quanto
outras indústrias continuam a perseguir um conceito dito “dionisíaco” de vivência e
Fig. 45 - Exemplo de uma postura de Stretching Global Activo. sociedade.

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LUÍS COELHO

Bibliografia (VII)

1. Mézières, F. (1984). Originalité de la méthode Mézières. Paris: Maloine.


2. Massada, J.L. (2006). O homem é um animal assimétrico. Especulação sobre viii - fitness enquantO “indústria
um estudo antropométrico efectuado em jovens atletas. Lisboa: Editorial cultural”
Caminho.
3. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e
tratamento fisioterápico. São Paulo: Summus editora. Independentemente do tipo de sistema teorético ou metodológico que queiramos
4. Coelho, L., Almeida, V., & Oliveira, R. (2005). Lombalgia nos adolescentes. seguir no domínio do trabalho com o utente, é indubitável que a intervenção
Factores de risco psicossociais. Estudo epidemiológico na região da grande individualizada é a que mais se aproxima da utopia que todos desejamos. Uma
Lisboa. Revista Portuguesa de Saúde Pública, 23(1): 81-90. intervenção centrada exclusivamente na realidade idiossincrática do doente é a única
5. Almeida, V., Coelho, L., & Oliveira, R. (2006). Lombalgia inespecífica que permite a adaptação aos problemas presentes e a adequação a uma realidade
nos adolescentes. Identificação de factores de risco biomorfológicos. Estudo de natureza individual.
epidemiológico na região da grande Lisboa. Re(habilitar) - Revista da ESSA, 3, Quando temos um utente em mãos, que tanto pode ser o doente de fisioterapia
65-86. como o utente do ginásio, temos, se munidos das mínimas condições de autonomia
profissional, o poder para modificar o fenotipo desse mesmo indivíduo. Podemos
mexer com os diversos sistemas que integram a sua Pessoa. Podemos moldar todos
os componentes que determinam a sua individualidade psicofísica. E aí, a nossa
intervenção será provavelmente diferente consoante o sujeito que temos em mãos.
Aliás, quando tenho um indivíduo em mãos, quando determinada pessoa se
entrega à minha intervenção, não perco tempo e começo logo a avaliar todas as
componentes fundamentais que integram o processo de intervenção. Avalio todos os
dados que considero relevantes para ter uma ideia da Estrutura dominante do sujeito.
Vejo o indivíduo como um todo e toco-lhe de modo a perceber como o seu corpo
interage com a minha própria práxis. A acção motora só é pedida se for estritamente
necessário. Na maioria das situações, a minha intervenção é fundamentalmente
passiva e envolve tanto o alongamento global adstrito a todo o processo como certas
manobras analíticas de terapia manual.
Considero que poucos mais profissionais do que o fisioterapeuta possuem os
conhecimentos adequados e a práxis necessária para desenvolver este tipo de
intervenção adequada à especificidade problemática de cada indivíduo.

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

O que existe no dia a dia da verdade clínica/fisioterapêutica e na realidade dos mantendo assim tão ignotos, não utilizam a filosofia desses métodos ou, simplesmente,
ginásios é a completa massificação de todo o processo referido. O que significa por falta de tempo ou possibilidade, não utilizam os princípios desses métodos.
que, regra geral, tanto o fisioterapeuta no seu domínio clínico quanto o instrutor de Os poucos terapeutas que tentam utilizar os princípios dos mesmos tendem a
fitness no seu domínio gímnico não dispõem do tempo necessário para realizar uma ser fortemente repelidos pelo Sistema, pois ora são “inteligentes” de mais para o
correcta intervenção dita individuada do utente. mesmo, ora são demasiadamente lentos no tratamento dos doentes, ou porque
Vejamos o contexto dos fisioterapeutas. Como o Serviço Nacional de Saúde simplesmente desrespeitaram “ordens superiores”. A frustração que estes poucos
paga muito pouco pelas diversas intervenções (entendidas formalmente em termos fisioterapeutas sentem é do meu total entendimento. Infelizmente, continuando o
de códigos), realidade abstrusa também generalizável à maioria dos subsistemas e Sistema a funcionar como funciona, tudo permanecerá sem solução...
seguros, para que clínicas, institutos e hospitais possam sobreviver ou mesmo tentar Aliás, a realidade é que o Sistema continua a funcionar de modo a encarar os
ter algum lucro, é necessário que as mesmas preencham as horas de trabalho dos fisioterapeutas como mera força de trabalho, meros trabalhadores manuais,
terapeutas de diversos doentes. Em certas clínicas, o fisioterapeuta chega a tratar dez profissionais sem qualquer possibilidade de agir segundo um processo constante de
doentes por hora. utilização do raciocínio clínico.
Por outro lado, não obstante a realidade numérica dos doentes a tratar terem a Quanto aos instrutores de fitness, podemos dizer que a sua quase totalidade
sua importância, não podemos esquecer que a grande maioria dos fisioterapeutas numérica desconhece os princípios da “teoria das Cadeias musculares”, e assim
permanece num sistema de subsistência técnico-científica relativamente a um médico sendo, nunca irão permitir ao doente que o mesmo seja tratado segundo uma filosofia
fisiatra (ou outro tipo de médico). de “integração estrutural”. Mesmo quando os doentes são tratados pelos personal
Todas estas razões levam a que a grande maioria dos fisioterapeutas trate os trainers, vemos que poucas coisas diferem da realidade já clássica e tradicional da
seus doentes recorrendo ao exercício físico activo (outras abordagens mais analíticas coisa. Ou seja, o instrutor vai induzindo o exercício até que no fim realiza o conjunto
como os agentes físicos, as massagens e a electroterapia, são usualmente realizadas de alongamentos...nunca de natureza global.
por auxiliares de fisioterapia, profissionais sem formação superior, e, portanto, mais É bastante irónico ver que, ultimamente, certos instrutores começaram a
“baratos” para o Sistema). Ou seja, como não há tempo/dinheiro nem autonomia empregar termos como “cadeia muscular posterior” e “alongamento global”. Não
para tratar doente a doente, mediante a utilização de poderosos métodos de perfil tenho muito bem a certeza onde aprenderam tais conceitos, mas a tentativa destes
reeducativo, o fisioterapeuta comummente trata vários doentes essencialmente por profissionais de integrar os citados conceitos na sua prática é, no mínimo, burlesca.
meio de ordens de realização de exercício físico. Para além disso, muitos fisioterapeutas Ainda não vi em toda a minha vida um instrutor a aplicar a um utente (aqui perde-se,
desconhecem, de todo, as leis Mézières. Alguns são conhecedores da Reeducação infelizmente, o termo “doente”) um qualquer alongamento dito “global”. Mas são
Postural Global ou de outros métodos neo-mézièristas; mas a realidade é que a estes mesmos instrutores ou personal trainers que chegam a ganhar financeiramente
grande parte desses terapeutas não chega verdadeiramente a integrar as “lições” que o triplo daquilo que ganha um fisioterapeuta. São estes mesmos profissionais que
esses métodos têm para dar. E uma das lições é precisamente que a intervenção lidam, não raras vezes, com os “senhores do dinheiro”, aqueles que pretendem,
adequada envolve um constante processo de avaliação e intervenção estrutural, coisa sobretudo, ser apaparicados.
que é relativamente demorada e necessariamente individual. De facto, a indústria do fitness é, nos tempos que correm, bastante mais lucrativa
Portanto, os fisioterapeutas mantêm-se ignotos relativamente à dimensão que a “indústria da saúde”. E o mesmo acontece com o Wellness e a estética
interventiva e teorética geral dos métodos de Reeducação Postural, ou, não se em geral. As simples “massagens” vendem e rendem mais do que uma qualquer

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

sofisticada técnica de fisioterapia. Aliás, é costume dizer que “para massagens há este franchising constitui. Esses mesmos instrutores não possuem, na sua grande
sempre dinheiro!”. Portanto, os fisioterapeutas, mesmo sendo profissionais muitas maioria, conhecimentos preliminares e metodológicos suficientes para perceberem
vezes de alto gabarito, possuem muito menos possibilidades de lucrar, isto se a complexidade envolvida na unicidade estrutural de cada utente. Não possuem
admitirmos que se mantêm no mundo da saúde (e esta realidade é cada vez mais capacidades para agirem de diferente forma segundo os diferentes utentes que lhes
acutilante, ainda mais porque o número de fisioterapeutas portugueses tem crescido aparecem. Não podem, portanto, dar uma componente clínica, ou uma componente
exponencialmente... consequência da abertura desregrada de escolas, muitas delas de individuação necessária, aos seus utentes. Não podem agir segundo determinada
com uma qualidade questionável). morfologia. Aliás, é comum os instrutores de fitness ensinarem os exercícios aos
Em termos gerais, e tomando um pouco a temática do início do capítulo, aquilo utentes sempre da mesma maneira, independentemente do tipo de utente que lhes
que a “máquina industrial”, seja do Sistema clínico, seja do mercado do fitness, aparece.
pretende é a completa massificação de todo o processo de lidar com os utentes. Por exemplo, um instrutor de musculação ensina um determinado exercício
Uma intervenção centrada nos pormenores fundamentais da “integração estrutural”, sempre da mesma maneira, independentemente de ter um homem musculoso ou
necessariamente individualizada (e longa), cai para dar origem ao trabalho físico feito um outro homem com uma escoliose. Não se adequa às diferenças, o que é normal,
com turmas de dez, vinte ou trinta indivíduos (ou então a grupos de doentes da pois, não possui o conhecimento necessário para tal tipo de adequação. Está formado
ordem dos seis a dez por hora). E essas turmas fazem todas o mesmo, seguindo apenas para a “metodologia do exercício” não para a visão necessariamente holística
sempre mais ou menos as mesmas premissas de trabalho. e individuada do utente... doente.
Acho graça quando um instrutor diz que, mesmo possuindo uma turma, adapta Mas mesmo partindo do princípio que temos à frente um bom instrutor,
os exercícios à individualidade de cada aluno. Ora, o que os métodos de Reeducação adequadamente formado, e com bons conhecimentos sobre “morfologia”, é
Postural, e outros como os métodos de intervenção neurológica, dizem é que é pouco possível, como instrutor de fitness que é, que esteja bem consciente da
preciso realizar ajustes (corporais) constantes no seio de uma actividade contínua de complexidade da temática postural por que todos nos movemos. Se estiver, estará
observação clínica e avaliação morfológica. Este processo é dinâmico e constante, muito provavelmente a trair uma série de princípios de natureza pessoal.
exigindo uma completa individualização do tratamento. Ora, perante tais factos, É preciso ainda dizer que, visto que o Sistema é muito pouco flexível e que, regra
como é possível defender que a individualidade é respeitada no seio de grupos de geral, os fisioterapeutas não tendem a ser muito bem aceites no mundo do fitness,
utentes?... a tendência é para que estes profissionais se mantenham concentrados no mundo
A “massificação” é, portanto, a palavra de ordem relativamente ao trabalho que clínico. E nesse mesmo mundo, tão massificado como é, numa realidade em que
se realiza na indústria clínica e do fitness. E é essa mesma massificação que permite vários doentes têm de ser tratados simultaneamente, não há grandes possibilidades
que um instrutor ganhe, muitas vezes, 20 euros por uma aula de Pilates. Esse mesmo para que o fisioterapeuta possa mostrar as suas verdadeiras potencialidades; ou
instrutor, o qual nem precisa de ser obrigatoriamente licenciado, ganha mais do dobro seja, como os doentes são muitos, e também porque continua a haver uma certa
do que a maioria dos fisioterapeutas, adequadamente licenciados, ganha numa hora subjugação do fisioterapeuta ao médico especialista, raras são as vezes em que o
de trabalho também ele “massificado”. terapeuta pode empregar técnicas mais sofisticadas, precisamente aquelas que dão à
Em especial, em ginásios como o Holmes Place, é possível encontrar instrutores Fisioterapia o seu estatuto de grande e promissora cientificidade. Assim sendo, pelos
de musculação a ganhar 15 euros à hora. E estes são, regra geral, formados pelo motivos apresentados, as pessoas não chegam, em termos gerais, a conhecer as
próprio Holmes Place, formados para servirem essa grande máquina industrial que verdadeiras potencialidades da Fisioterapia. E assumo sempre a Fisioterapia no seu

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

significado mais lato, o qual é inclusivo de muitas técnicas comummente identificadas Mais uma vez digo que não é minha intenção afirmar o contrário do que milhares
com as terapias não convencionais. O resultado de tudo isto é que, mais cedo ou de estudos e todo um grande Sistema industrial dizem. Não tenho “nome” suficiente
mais tarde, os doentes, ao aperceberem-se das limitações do Serviço Nacional para arriscar tanto. Mais uma vez, digo que é somente na dimensão músculo-
de Saúde, tendem a procurar outras soluções, o que fornece aos profissionais das esquelética que apresento as minhas renitências relativamente às vantagens de
medicinas não convencionais e aos profissionais do fitness uma grande oportunidade determinadas formas de exercício.
de investimento. Como, ao abandonar o SNS o utente já está preparado para gastar Claro que esses mesmos profissionais do fitness nunca aceitarão aquilo que eu
mais dinheiro, acaba mesmo por investir nas exorbitâncias dos ginásios. digo, pois estão de tal forma embrenhados no Sistema que já não há espaço nas suas
O problema da já referida massificação de tratamento dos utentes nos ginásios cabeças alienadas para qualquer outra possibilidade factual.
é bastante complexo, envolvendo uma série de temáticas de ordem económico- Se o mercado do Fitness, assim como as mais variadas “indústrias do corpo”,
financeira que não gostaria de pormenorizar. alimentam o “bem estar” com base numa forma traiçoeira de escapismo mentalista, e
Mas, ainda assim, fico chocado quando me dizem que, em Portugal, o Fitness é se, no fundo, este mesmo mercado poderá ter consequências deletérias dificilmente
um mercado que vale 330 milhões de euros anuais. E este valor nem se aproxima mensuráveis, tal não passa, na perspectiva desses milhares de empregados desse
dos valores relativos a Espanha, país europeu que mais lucra com o Fitness. Voltando mercado, de uma visão alucinada e delirante de alguns “intelectuais”.
a Portugal, saiba-se que há, no nosso país, cerca de 1.400 clubes, os quais mobilizam Aliás, a maioria dos filósofos da Escola de Frankfurt foram, em algum tempo,
cerca de 16.000 colaboradores e 600.000 praticantes. Portanto, mais de meio considerados seres delirantes, quando, no fundo, estes mesmos senhores somente
milhão de portugueses está nos ginásios a preparar-se para constituir o conjunto dos revalorizaram o papel de algo que se pode chamar de “alienação social”.
futuros clientes da Fisioterapia. Pudera! Provavelmente, quando perceberem que a Em especial, Adorno e Horkheimer criaram o conceito, perfeitamente adequado
Fisioterapia ancora num sistema de exercício não muito diferente do que se faz no para a nossa discussão, de “indústria cultural”.
fitness, e que os mesmos fisioterapeutas mal têm tempo para colocar as mãos nos Para compreender estes filósofos, é preciso ter a noção, relativamente sub-reptícia,
doentes, acabarão por voltar para os ginásios, para as mãos dos instrutores. de que, nos tempos actuais, o corpo assume-se como uma “obsessão” com um lugar
Vejamos outros dados. Há cerca de 40.000.000 de praticantes a nível Europeu, central, talvez porque é nele que se inscrevem as possibilidades de “embelezamento”
dos quais cerca de seis milhões são alemães. No Brasil, há cerca de sete mil do self, em condições de debilidade interior.
“academias” e mais de dois milhões de praticantes; aliás, o Fitness constitui um dos Adorno e Horkheimer, ao cunharem o conceito de “indústria cultural”, puderam
maiores centros de negócios do continente americano e o maior centro de negócios revelar o carácter sistémico do mesmo, o qual se engendra com a acção conjunta
da América Latina. e integrada dos vários meios de difusão cultural, que a tudo confere um ar de
Portanto, podemos concluir que o lobbie dos ginásios, assim como o lobbie do semelhança. A medida em que, sob o poder do monopólio, toda a cultura de massas
Fitness, conseguiu passar a sua mensagem. E, junto desse lobbie, temos uma série é idêntica; a indústria cultural impõe às diversas gerações bens padronizados para
de outros negócios, como o Wellness, as medicinas não convencionais, a moda e a satisfação imediata das suas necessidades caracterizadas como iguais e supérfluas.
estética. Tudo negócios que movem milhões e empregam uma série de indivíduos. A educação do corpo realizada pela Educação Física, enquanto disciplina pedagógica,
E, para além do mais, ainda temos uma série de outras indústrias, incluindo certas destinou a sua intencionalidade, tendo a ginástica como conteúdo formativo chave.
universidades, como todas aquelas que estão associadas a esses tão prolíficos estudos Pois, o conteúdo da ginástica fortalecia o seu carácter de “cientificidade” que
que demonstram a vantagem do exercício para a saúde. se constituía numa sólida base para a formação do “homem novo”, necessário à

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implantação e consolidação do capitalismo. Aliás, não é despiciendo o facto de o


exercício físico ser considerado como uma peça fundamental do desenvolvimento
financeiro. Enquanto trabalhadores, o exercício possibilita a melhoria da capacidade
física dos homens-máquinas industriais, para além de possibilitar o lazer, ou seja, a cOnclusãO
alienação relativamente a esse mesmo trabalho. O exercício possibilita também a
formação da disciplina, a qual é necessária à força de trabalho capitalista.
Mas eu não vejo as coisas tanto em termos do exercício favorecer a máquina
industrial. Eu vejo mais as coisas em termos de o exercício físico, e principalmente Chamar ao meu texto “manifesto anti-desportivo” é obviamente um exagero.
o fitness, fazer parte dessa mesma máquina industrial. O Fitness, pela forma como Mas é um exagero necessário! É indubitável que o desporto possui inúmeras
é vendido e praticado, relaciona-se perfeitamente com o poder da forma, da vantagens. Mas, se nos ativermos aos aspectos músculo-articulares, há uma série
imagem, de uma utopia (tendo o corpo belo como inalienável objecto quimérico) de “dados” que devem ser tidos em conta. Pois é certo que não é categórico que o
e do espectáculo (lembremos a “Sociedade do espectáculo” de Guy Debord). É desporto produza só bons resultados. E penso que o demonstrei sem margem para
um fenómeno claramente adstrito às sociedades capitalistas. E enquanto fenómeno dúvidas.
próprio das “sociedades do capital”, a prática desportiva lembra a sempre presente É claro que o meu “discurso” não é nem nunca será aceite pelas maiorias. Pois é
divisão classista da sociedade (afinal de contas, a inscrição em ginásios, as cirurgias certo que essas maiorias irão sempre permanecer um tanto ou quanto alienadas pelo
estéticas, o Wellness, não são para todos!). peso de uma máquina extremamente opressiva que é a do Fitness. E com o Fitness
Em ginásios como o Holmes Place ou o VivaFit, a acção de promoção de vem todo um conjunto de elementos associados à exagerada esteticização de uma
determinada actividade é simplesmente inebriante. E os trabalhadores, em particular sociedade em regressão. Se Nietzsche estivesse por “estes lados”, voltaria a firmar
os instrutores, parecem saídos de uma máquina fotocopiadora ou de clonagem. a diferenciação, já clássica, entre sociedades dionisíacas, levadas pelos impulsos, e as
Agem todos como elementos de uma indústria desumana. E no seio dessa indústria sociedades apolíneas, mais racionais. Devíamos estar a caminho de uma necessária
não há lugar para o Eu se afirmar. É que a verdadeira intervenção dita “física” junto e “humana” racionalização do nosso comportamento global, mas a verdade é que
do doente/utente tem de ser algo muito próprio do terapeuta/instrutor. Um instrutor estamos ainda regidos por muitos impulsos e princípios de vida instintiva. Daí a
igual a todos os outros, a agir como uma cópia de um conjunto de instrutores todos forma como se está a tomar tão a sério o “aparato do corpo” e a necessidade de
iguais, todos formados da mesma maneira e com os mesmos erros, não poderá bem parecer. E nesta mesma sociedade da “forma”, certos métodos mais ligados à
jamais fazer a diferença. Como pode um ser não autónomo constituir a diferença verdadeira globalidade do ser acabam por medrar face ao peso opressivo da Imagem
também ela de natureza autónoma? O acto de “tratar” determinado utente advém relacionada com os diversos métodos da “indústria do corpo”.
de uma sempre necessária capacidade de racionalizar, de pensar para além da “regra”, O Fitness é apenas um dos vários aspectos de “esteticização” da sociedade, pois
de agir para além do “comum”. Se os instrutores de fitness bebem todos “da mesma é bem certo que tudo no Fitness é mais imagem que conteúdo, a começar pelos
cartola”, como é possível dar ao utente dos ginásios a possibilidade de alicerçar a instrutores dos grandes ginásios, formados por uma poderosa máquina de “lavagem
diferenciação e a visão individuada das coisas?... cerebral”.
A Reeducação Postural, enquanto método, e o Anti-fitness, enquanto conceito
por mim criado, constituem elementos de uma sociedade “real”, feita de conteúdo,

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Introdução ao conceito de Reeducação Postural

mas que só é percebida por aqueles que fazem questão de enfrentar todos os “lados” é eficaz. E para o doente acreditar basta o terapeuta ter verdadeira fé no seu acto.
da realidade. Até na ciência essa “fé” interfere, colocando, a meu ver, todo o processo científico
Assim sendo, a Reeducação Postural não é apenas mais um método em que se em questão...
tem formação. É toda uma forma de ver a realidade da actividade física. É todo um O Anti-fitness é sobretudo uma reacção própria da racionalidade humana. É uma
contexto de “desalienação” que poucos atingem, incluindo muitos terapeutas com visão para além do óbvio, para além do que o Sistema nos quer impingir. Aliás, esse
formação na área. Aliás, a maioria dos terapeutas holísticos mais não são do que é o mesmo Sistema que quer afirmar os instrutores de fitness como profissionais
mestres daquilo que denomino de “imagética social”. Por exemplo, as medicinas de saúde. Mas, como o tempo mostrará de forma algo implacável, tenha o fitness o
não convencionais, não obstante a sua grande importância conteudística, estão significado que tiver, este não é, nem nunca será, verdadeiro sinónimo de saúde.
poderosamente associadas a todo um processo de mitificação, quase deificação. Claro que, como muitos dirão, esta é apenas a “minha” verdade, não necessaria-
Também quase deificados têm sido os argumentos de que o desporto é bom para mente mais verdadeira do que a dos outros. Somente chamo a atenção para o
a saúde. São tão reais quanto aqueles instrutores e/ou terapeutas que dizem que facto de que raramente a Verdade está nas mãos do Sistema; raramente a Verdade
o seu método ou terapia não possui efeitos secundários, quando na realidade até está nas mãos da opinião majoritária. Se assim fosse as Elites, não obstante todas as
“beber água” pode possuir efeitos adversos. reticências relativas à sua natureza, não fariam qualquer sentido.
É normal, e isso eu não nego, que as pessoas, regra geral, se sintam melhor com a Esta questão da Verdade é extremamente relevante. Por exemplo, a Reeducação
prática desportiva. Nem que seja pela acção da libertação de determinadas hormonas Postural constitui essencialmente uma grande Teoria, cujo principal postulado
no organismo. É normal que as pessoas sintam que o treino de pesos as ajudem nas poderia ser, por exemplo, o de que “a estrutura e alinhamento articulares dependem
suas lesões articulares. Nem que seja pelo efeito do mero “aquecimento” tecidular. do estado de tensão dos tecidos miofasciais”. Ou, por outras palavras, a saúde
É normal que as pessoas se sintam “levadas” pelos milhares de estudos que dizem articular depende de boas características de flexibilidade miofascial e de tonicidade
bem da actividade física. Nem que seja pelo facto de não serem estudos longitudinais, neuromuscular. E se, por exemplo, encontrar excepções à regra, como indivíduos
atentos ao aparecimento de lesões no longo prazo... Muitas coisas são “normais”. com grandes deformidades articulares, sem possuírem tensão muscular relevante? (É
Também é normal que o meu “método” produza dores e possíveis pioras. Aliás, o caso de muitos indivíduos com formas severas de artrite e espondilite). No fundo,
basta mexer num corpo há muito preso nas suas deformações e adaptado às suas nada muda, pois eu nunca disse que esse postulado servia para todas as situações.
compensações para que o mesmo produza algum género de reacção sintomática. O De facto, a forma e alinhamento das articulações depende grandemente dos tecidos
corpo tem realmente as suas razões!... Mas nem sempre tem razão nas suas razões. moles como os músculos, os quais têm uma função de tirantes mecânicos, mas isso
É preciso lutar contra certas hegemonias, que mais não são do que a razão do corpo não quer dizer que a deformidade articular não possa ter outras causas. Temos,
levada a um exagero que o próprio corpo não consegue medir. E quando se trata igualmente, o exemplo das deformidades congénitas. Porém, a grande maioria das
de perturbar um “equilíbrio” que o corpo atingiu, mesmo que incorrecto, tal pode deformidades associadas ao genético/congénito são, de facto, verdadeiramente
ter um efeito de “crise” maior do que aquela que levou os utentes a procurarem a adquiridas, e de natureza fundamentalmente muscular. E é precisamente nestes casos
nossa ajuda. que faz sentido falar de uma intervenção “reeducativa”.
Em matéria de terapias, devo dizer que todos os fisioterapeutas sabem, bem lá Gostaria de acrescentar algo sobre o conceito “reeducativo”. De facto, ainda mais
no seu íntimo, que muitas terapias, incluindo métodos contraditórios, dão resultados. se tivermos em conta que certos autores consideram que a verdadeira dismorfia
Na realidade, quase tudo dá resultado, basta que o doente acredite que o método está permanentemente estruturada e é inalterável, devemos, se calhar, ter em conta

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LUÍS COELHO

que nem sempre é de Reeducação Postural que se trata o nosso trabalho. Se calhar,
mais importante que o processo reeducativo, é o processo preventivo, e, portanto,
Educativo. Mais do que recuperar uma dismorfia, aquilo de que falamos realmente
quando falamos dos métodos de (Re)educação Postural, desde os mais globais até
aos mais analíticos, é da prevenção da dismorfia (que pode significar o evitar que um
paramorfismo se torne uma dismorfia). No fundo, toda esta conversa do Anti-fitness
assenta precisamente na importância da prevenção. A Educação Postural significa, no
contexto do fitness, uma nova atitude face à actividade física, a qual permitirá, a meu
ver, prevenir muitas lesões futuras. E uma grande discussão poderia sair daqui se
quiséssemos discutir o papel da “prevenção” no mundo da Saúde portuguesa...
Deixo este “manifesto”, o qual não passa de uma introdução geral ao “anti-fitness”.
Poderia, se quisesse, escrever um livro de mil e uma páginas. Nesse livro, procederia
à análise de exercício a exercício, e dos erros neles presentes. Mas essa é uma tarefa
demasiadamente prática, concreta e árdua para ser realizada pela palavra escrita.
Deixo, então, somente um instrumento, mais simples, que tem como função dar a
“outra face” da realidade. Quem quer aceitá-la aceita-a, quem não quiser não é, de
forma alguma, obrigado a fazê-lo.

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