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Resumo Temático
Este não é, formalmente, um manual da UC, mas implica e contém o desenvolvimento dos meus Sumários
académicos, ou seja, a memória das aulas expositivas. Constituem revisões dos títulos da matéria, surgidos a pedido
dos meus Alunos. Em nada substituem a exposição teórica, argumentação crítica e respectiva compreensão
intelectual (que ocorre, como momento genuíno, em sala de aula). No entanto, talvez a leitura e compreensão deste
Resumo facilite (em conjunto com a frequência e registo das aulas, aliada às leituras complementares aconselhadas) o
total aproveitamento da matéria dada pelo Aluno: é esse o objectivo destas linhas. Advirto ainda que, na escrita dos
mesmos, procedi em desacordo com o Acordo Ortográfico.
Introdução
Todas as discussões são formas de poder. Quem melhor discute, mais depressa
convence (sem violência). Quem é convencido, se for intelectualmente honesto, aceita a
supremacia do outro. Assim foi, há 24 séculos, na ágora de Atenas, berço da Filosofia
ocidental, bem no meio da praça pública onde todos discutiam sem regras, mas
apaixonadamente...
A vida é dinâmica. É sábio aquele que se adapta a esse dinamismo sem ceder no essencial.
E o essencial mantém-se pela reflexão, pela ponderação, pela revisão dos passos dados,
pela autoavaliação corajosa…
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INDICE:
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1. Quem somos, enquanto somos «pensantes»?
Iremos agora analisar alguns temas numa perspectiva que pode mesmo contrariar
alguns ditados do senso comum, como por exemplo, o da frase popular «pensamos
com a cabeça» ou ainda a generalizada definição de que «o homem é um animal
racional». Vamos ver como estes provérbios têm na raiz equivocadas concepções
antropológicas (sobretudo: emanam de tradições dualistas ou mesmo dicotómicas,
hoje desfeitas pelas neurociências, além da filosofia).
O ser humano supera a sua definição básica: «animal racional»; ele não é somente
tal. A afirmação exclusiva do ser humano como ser vivo (animal sensorial) pode
conduzir a corte epistemológico da possibilidade que o mesmo ser humano tem de
negar, reconverter, sublimar ou submeter os instintos. O acto de pensar (como acto
completo de conhecimento), se for concebido enquanto desligado do corpo físico,
conduz também a problemas irresolúveis e absurdos (como, por exemplo, negar e
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não explicar o mundo da natureza). Além de que também desliga a acção ética da
sua responsabilidade material…
Por outro lado, a afirmação exclusiva do homem como ser racional e inteligente
pode levar à negação da sua integralidade ou complexidade antropológica (que
inclui a sensibilidade e a voluntariedade). O homem-máquina ou o homem-
processador não precisam da natureza, do corpo físico, do mundo real. A alucinação
e a patologia mental associam-se neste extremo da «desconsideração total do
corpo», obra de um platonismo grosseiro ou de um cartesianismo apressado. Ao
dar-se tal afirmação na História do Pensamento, empobreceu-se durante séculos a
filosofia e, com ela, a cultura, a ética e toda a teoria dos valores.
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2. O ser humano na sua essência tridimensional:
Não raras vezes se afirmou (numa filosofia mesclada de outros saberes menos
autónomos) que o ser humano era uma dualidade, um «dois», uma «díade»:
matéria e espírito, corpo e alma, positivo e negativo. Apresentaram-no como em
permanente estado inatural, desarmonioso, agressivo, desejoso de sair de si,
insatisfeito.
Entre eles, Platão chamou ao corpo «caverna» e «carrasco da alma», num sentido
claramente negativo; Maniqueu afirmou que a matéria corporal era limitativa e
Descartes acentuou a liberdade racional totalmente separada e superior aos dados
dos sentidos.
Estes três filósofos erraram nas suas suposições dualistas, opondo no ser humano
duas partes ou compostos. Esse erro repercute em afirmações do senso comum,
que simplificam e contrariam o conhecimento científico.
Ou seja, a unidade do ser humano não é uma soma de DOIS (que pode ser sempre
vista como oposta divisão), mas sim uma natureza de três dimensões
operacionalmente únicas e unitárias. Quando sente, conhece e actua. Quando
conhece, sente e actua. Quando actua, sente e conhece. Nenhum abismo entre
dimensões, nenhuma divisória ou separação entre mente e corpo. Aliás, este foi «o
erro de Descartes», como escreveu o neurologista António Damásio.
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O modo de ser humano é um modo próprio (ONTOS / essência / em grego),
ontológico, essencial, específico. O seu modo de ser, isto é, a sua ontologia opera a
três dimensões, que o conduzem, em última instância, à sua unidade tridimensional
essencial: é específico do humano sentir, conhecer e agir. Nenhum dos planos é
dispensável ou pode ser omitido na acção humana; todos os planos são
determinantes.
Este modo de ser possui disposições inatas, igualmente essenciais e próprias. São
elas a sensorialidade, a racionalidade e a intencionalidade, unidas e una na
tridimensionalidade do conhecimento humano. O ser humano é sensível, inteligente
e volitivo na sua estrutura ontológica primordial. Se o separarmos de qualquer
desta função não teremos humanidade específica.
Faremos de seguida uma análise das capacidades da pessoa humana no seu corpo
pessoal e tridimensional.
Esta estrutura humana desenvolve-se em três dimensões que formam uma única
unidade indivisível: são elas a dimensão ou capacidade sensorial (básica e inicial), a
dimensão ou capacidade intelectual (que estrutura e vincula à dimensão seguinte),
e a dimensão ou capacidade intencional (que finaliza as dimensões anteriores).
Sentir, entender e querer: eis as três capacidades inatas ao ser humano.
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os dados sensoriais. Esta capacidade ontológica, a razão, é mediadora e dialógica,
estabelecendo uma coerência contínua entre a sensibilidade e a vontade. Os limites
da inteligência ou razão humana são coincidentes com as suas operações próprias.
A razão é finita, relativa aos objectos conhecidos (também finitos). Mas na sua
finitude é, de certo modo, gloriosa e imensa, construindo mundos no mundo. O
conhecimento conceptual é constitutivo do ser humano: o aspecto decisivo da
nossa espécie inicia-se aqui. Porém, os seus limites e falhas são óbvios se for
concebido isoladamente: correntes de pensamento como o idealismo, o
racionalismo ou o logicismo mostram as suas fraquezas quando se desligam do
mundo real e sensorial.
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a). Na dimensão sensorial: o conhecimento empírico inicia-se e constitui-se em
sensações (a recepção organicamente sentida do objecto externo), logo a seguir
em percepções (a «consciência sensorial» da sensação, feita pelo sistema nervoso
periférico pela recepção do objecto externo que é percebido enquanto tal),
seguindo-se as emoções (a reacção sensorial na zona límbica cerebral, enquanto
valorização, positiva ou negativa, da «consciência sensorial» da recepção do
objecto externo, à qual adere por prazer ou recusa por dor) e sedimentando-se as
imagens (a substituição representativa e abstracta do objecto emocional, ou seja,
a posse sem matéria da experiência anteriormente material). Neste caso, se as
imagens são intensamente retidas, ficam presentes pela memória; se as imagens
são projectadas ou pedagogicamente preparadas face a experiências futuras,
tornam-se imaginação ou mesmo criatividade.
Eis aqui a dimensão da acção claramente humana, pelo uso do livre-arbítrio, na sua
expressão intencional e ética completa. Se este passo gnoseológico operacional for
coerente, ou seja, em consonância e equilíbrio com as operações anteriores (da
sensibilidade e da racionalidade), a atitude humana daqui resultante é livre ou
harmónica.
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personalidade livre. A ausência de liberdade compreende-se como presença de um
desequilíbrio operacional, uma incoerência ontognoseológica.
«Assim como somos, assim conhecemos», repete Aristóteles de modo simples. Mas
diz com isso uma verdade imensa: da nossa ontologia decorre a nossa gnoseologia;
das nossas dimensões essenciais decorrem os passos gnoseológicos operacionais
respectivos.
Sumariando:
Por outro lado, uma vez que «o homem é, por natureza, um ser social»
(Aristóteles), essa acção é tão natural quanto social. Essa tripla operacionalidade do
ser humano, que é realizada em unidade ontológica, faz dele quem é: um ser vivo,
inteligente e volitivo, construtor do próprio projecto de vida, portador de
autodeterminação e de autoconsciência. Em última instância, é um ser de escolhas,
um ser que pode escolher: talvez seja esta a melhor das definições para si próprio
(embora a mais perigosa, porque o livre arbítrio acarreta consequências pesadas).
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A importância do equilíbrio de todas as faculdades humanas (sensibilidade,
racionalidade e intencionalidade) é decisiva para a realização de uma personalidade
livre. «Quem mais conhece, a mais se obriga», regista Paracelso.
Bom, então, em que aspectos somos iguais, em que medida somos diferentes?
Somos, de facto, iguais e diferentes. Por diverso prisma se pode afirmar ambas as
coisas em simultâneo, mas por diferente motivo. Como o explicar a algum atleta, a
algum dos nossos formandos, às equipas, aos sócios?
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A natureza humana possui, por dote próprio e inato (in natu), o conhecimento a
priori de algumas noções inegáveis e claras, que lhe são universais. São estes
Princípios apodícticos que, por sua vez, garantem a universalidade do conhecimento
a posteriori ou experiencial. Os princípios universais são aquilo que Noam Chomsky
chamou «gramática inata», algo que os cientistas da cognição denominam
«conhecimento específico».
Os Princípios Inatos são de ordem lógica (3) e também de ordem ética (3),
simétricos entre si.
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Os Princípios Universais da Ética Humana expressam na plataforma comum, a
social, a mesma assertividade natural: cada indivíduo, se não for cognitivamente
incapaz ou culturalmente obnubilado, reconhece de modo espontâneo estas três
indicações que estruturam a mais mínima ética natural:
1. (o princípio da) Identidade ou mesmidade de mim perante mim. O indivíduo
experimenta-se como «si próprio», «eu mesmo», assim que atinge o patamar da
consciência evidente. A expressão «eu sou eu» cunha a consciência da
individualidade, da intimidade, ou foro pessoal. Implica também a defesa natural,
quase instintiva, do que é próprio (o próprio corpo, a própria vida, a própria
dignidade, a própria expressão de si) e manifesta saúde mental;
2. (o princípio da) Alteridade ou heterogeneidade, que é expresso por «tu és
tu», no singular ou no plural, atesta a naturalidade da percepção social.
Percebemos de modo muito evidente o OUTRO quando se confirma o EU; aliás, o
OUTRO vinca mais o domínio do EU e da sua consciência de si; a alteridade é outra
forma de ser EU. Só é social aquele ser humano que, saudavelmente, reconhece no
OUTRO um outro EU. A impossibilidade deste reconhecimento pode implicar um
transtorno neurológico ou uma patologia social.
3. (o princípio da) Comunidade, sociedade ou solidariedade: EU e TU somos
mais EU e TU quando nos reunimos em NÓS. O «NÓS» nasce quando somos
plurais, isto é, quando o conhecimento reflexo (que implica discernir a propriedade
privada da propriedade comum, em sentido amplo), protege essa propriedade com
a mesma determinação pessoal da própria. Referimo-nos à propriedade natural do
corpo, da intimidade, da livre expressão, da consciência da dignidade aqui e agora
DE TODOS PARA TODOS.
Estes três (ou seis, se considerarmos a sua aplicação a campos diferentes da Lógica
e da Ética) princípios ínfimos são, porém, poderosos na estruturação do próprio
conhecimento conceptual, categorias das categorias. Os conceitos e os juízos (os
dois patamares operativos da dimensão racional humana) organizam-se em torno
destes Princípios Universais, sem os contrariar (ou, fazendo-o, atestam insanidade
mental e/ou obnubilação).
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Repare-se que, de modo vulgar, vê-se notória e diariamente a nossa diferença:
basta olhar em volta, sair à rua, abrir a televisão e assistir, com espírito de análise,
a um telejornal. Que mundos diferentes! Que clubes diferentes! No entanto, e ao
mesmo tempo, que grandes parecenças temos, uns e outros...
Gene, meio e opção são os três contextos que marcam as nossas diferenças, isto
é, as situações existenciais privadas e pessoais que nos distinguem uns dos outros.
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3.3. E somos ou não todos livres?
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Portanto, a liberdade real, verdadeira, assume-se no sentido não-absoluto e não
material, ou seja: no sentido interior, na dimensão íntima e subjectiva, onde a
autonomia do sujeito é ou não manifesta, através da eticidade da virtude (força) ou
do vício (ausência de força). Liberdade é poder-ser (ou não-ser, o que seria –pela
ausência- a prova da possibilidade livre). Tanto posso ser como não ser: o possível
(e não o necessário) é que é o reino da liberdade.
Numa segunda acepção, a liberdade relativa permanece como mínima (se bem que
menos determinada) a nível sócio-cultural, ou seja, no património familiar e
educativo: vivemos imersos em redes complexas de significação global, sendo o
nosso passado (sobretudo, enquanto jovens) de avaliação exterior. Pode ser média
se no nosso contexto social começarem a manifestar-se as escolhas autónomas.
Diz-se então que essa liberdade tanto pode ser mínima como média, embora
sempre relativa (na relatividade do que nos constituiu): ninguém pode optar fora do
«baralho de cartas» com que joga (sob pena de parar de jogar).
Porém, a nossa liberdade (a única possível, ou seja, aquela que é relativa a uma
condição humana que é sumamente CONDICIONADA) é uma liberdade relativa
máxima –se e quando vista em relação à autodeterminação activa do sujeito.
Apenas no plano intencional (nas suas três operações: escolha, decisão e atitude)
podemos surpreender a relativa liberdade que possuímos, através de uma acção
livre em situação-limite. Se a liberdade individual corresponder a um intencional e
equilibrado plano de vida, eleito em sentido autónomo (não-reactivo, pensado,
deliberado, comparado, conducente a um estado mais permanente de coerência e
integridade pessoal) então essa é a maior liberdade possível à condição humana.
Portanto, ser livre não é, em sentido pleno «sair da prisão»: isso é a libertação de
uma circunstância física. Ser livre não é «pisar a relva onde está a tabuleta NÃO
PISE»: isso é adolescência e vale uma multa. Ser livre não é nunca um «enriquecer
de um momento para o outro», um «esquecer semáforos para vencer a corrida»,
um «ignorar os outros para beber sem barreiras», uma «violação de regras jurídicas
para ultrapassar a sociedade».
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mortalidade numa tentativa absolutista estéril, que a nível da personalidade a reduz
a uma reactividade extrema, ignorante e insensata. A esse nível, nunca seremos
livres.
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4. O que é «ser ético»?
Porquê?
A origem da palavra ÉTICA advém do complexo termo grego Êthos, que alude
literalmente à casa, à «toca», ao lugar íntimo onde cada um de nós se recolhe e
abriga. Mas o seu sentido total não fica nesta palavra física linear: refere, sim, ao
modo de ser, ao modo essencial e especificamente humano, que o distingue dos
demais modos-de-ser-vivo habitando a terra. Em última instância, indica a
consciência reflexiva, a reflexão sobre si próprio (com-ciência-de-mim), a
consciência como «o lugar onde cada um se recolhe para ser e pensar quem é». Esse
é o traço mais específico do humano: pensar-se.
Mais tarde, na história das ideias e dos conceitos (e num esforço positivo de
helenização/romanização), os legisladores romanos traduziram erroneamente o
ethos grego para o latim mos (ou mores, no plural), que significa (infelizmente)
hábitos e habituação, costume ou costumes.
Claro que tanto uma como outra (ou seja, quer o êthos –como modo de ser ou
carácter essencial-, quer o mores –como costume habitual ou diferenciador-)
pretendem indicar um tipo de comportamento propriamente humano, digno e
orientado, diverso da natureza animal e do mundo material em geral.
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Mas na noção de moral ou costume (de raiz romana) descortina-se um constructo
que não é natural, ou seja, com o qual o homem não nasce (como se fosse um
instinto reflexivo, próprio do sistema neurológico humano), mas sim que é “adquirido
ou conquistado por hábito”. Por isso, pertencem à moral realidades muito diferentes,
dinâmicas e variáveis: códigos de educação, manuais de etiqueta, normas sociais e
grupais, comportamentos financeiros, diplomacias políticas, regras desportivas,
condutas pedagógicas, boas práticas rodoviárias, etc., etc.
Em contraste, a ética (no sentido originário grego) não diz respeito a uma realidade
humana que é construída histórica e socialmente a partir das relações colectivas dos
seres humanos nos contextos onde nascem e vivem. Pelo contrário, a Ética alude ao
permanente traço constitutivo do ser humano, o ontos (ontologia). E este traz
consigo algo radical, inicial, distintivo do hábito acidental meramente possível ou
casual. Ser ético é, em gíria filosófica, uma condição necessária, um hábito entitativo
próprio e indispensável ao ser humano, não apenas acidental, hipotético, possível.
Mais tarde, Aristóteles, discípulo da mesma Escola de Atenas, recolhe esta tradição
redigindo o primeiro documento sistemático («Ética a Nicómaco»), onde todos os
seres humanos são achados livres e iguais perante a lei, a cidadania do intelecto, a
responsabilidade pessoal e o dever consciente de proteger a vida.
É com Aristóteles e as suas obras (a «Ética» e a «Política», entre outras) que vemos
estruturar-se uma matriz que hoje se equivale à educação e cultura ocidental básica.
Esta cultura não depende de factores religiosos, políticos, mitológicos ou económicos
para considerar que «todos nascemos livres e iguais». Vem directamente da
consciência por lei natural.
Segundo Aristóteles, a possibilidade de alcançar uma vida ética não está reservada
só a alguns, mas pertence a todo o género humano: significa a possibilidade da
consciência, a possibilidade de ter consciência de si, dos outros e ainda a
consciência de uma autosuperação, de um «dever-ser» mais e melhor (tendência
universal da humanidade digna, não corrupta).
Porém, ao longo dos tempos, esta claridade e esta exigência serão mitigadas. Com a
latinização da sociedade, o termo ÉTICA vai sendo substituído pelo termo MORAL. A
sociedade divide-se.
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A distinção científica entre Ética e Moral é a mesma distinção que se pode fazer entre
um plano universal e um plano aplicado: a Ética é um conhecimento consciente
transversal e único nas evidências, enquanto a Moral é a casuística normativa
de cada sociedade e seus valores, um património comum de assuntos que podem
ou não advir da ética universal.
Por isso, pode dizer-se, resumidamente, que existe UMA ética da consciência e
MUITAS e diversas morais sociais (todas elas legitimamente apelando a inúmeras
normas, interpretações, melhoramentos, adaptações).
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Conhecemos essas verdades de modo inato, evidente e intemporal: vida, morte,
aborto, eutanásia, suicídio, pena de morte, liberdade de pensamento e de expressão,
eis alguns exemplos. São estes os únicos temas éticos.
Um país moralizado e não ético (tal como um profissional moralizado e não ético)
segue mais a voz social (variável de época para época) do que a voz da consciência
(que tende a proteger bens evidentes e permanentes). Acontece que o indivíduo
cede à pressão daquilo que «toda a gente faz», e não daquilo que, em consciência,
seria justo fazer. Dá-se, então, a subversão: «já que não vivo como penso, vou
pensar como vivo». O declínio pessoal leva a maior moralização subjectiva, leva a
autojustificações cada vez mais indignas e encapotadas.
Por isso, o apriorismo natural e universal dos Princípios Éticos garante a (respectiva)
universalidade ou homogeneidade desse conhecimento. Ou seja, a Ética é uma
ciência universal (não particular nem subjectivada) porque as ilações a retirar dos
três primeiros princípios são iguais para todos. Radicalmente, a Ética é universal e
uniforme: qualquer discussão sobre um caso deve ser resolvida a esta luz, por
dedução lógica dos primeiros princípios. Eles assentam as bases de todos os Direitos
Humanos evidentes.
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Outras vezes, porém, nem o bem ético é moral nem o bem moral é necessariamente
ético. A Ética e a Moral podem realmente separar-se. Há casos de consciência (por
exemplo: a consciência deontológica1, no campo do dever profissional) onde o código
escrito ou a lei positiva escrita prevê uma situação que a consciência daquele
indivíduo não se permite a si própria.
Em caso semelhante, gera-se uma aporia: vale a lei ou vale a consciência? Numa
ordem profissional digna, este dilema não deveria existir. Nenhuma lei escrita
poderia conter o risco de obstar à realização da «liberdade consciente» dos seus
membros. Precisaria, então, de voltar a «escrever-se» (esse código, dessa Ordem
profissional).
Hoje, a temática da eticidade e do código moral profissional levam, de per se, a uma
questionação intensiva do Mundo onde cada um corre o risco da sua liberdade
(directamente proporcional à sua formação e à sua consciência, pois «quem mais
conhece, a mais se obriga», como registou Paracelso).
A ética aplicada não é senão a moral (ou seja, a contextualização da ética, a sua
redução a problemáticas concretas). Nós não vivemos sózinhos nunca: vivemos em
sociedade, vivemos em partilha ou em guerra, vivemos com linguagem. Como disse
1 Deontologia (do grego deon "dever, obrigação" + logos), na filosofia moral contemporânea, é uma das teorias normativas segundo as quais as escolhas são
moralmente necessárias, proibidas ou permitidas. Portanto inclui-se entre as teorias morais que orientam as nossas escolhas sobre o que deve ser feito. O termo foi
introduzido em 1834, por Jeremy Bentham, para referir-se ao ramo da ética cujo objecto de estudo são os fundamentos do dever e as normas morais. É conhecida
também sob o nome de "Teoria do Dever". Pode referir-se, também, uma deontologia aplicada, caso em que já não se está diante de uma moral normativa, mas sim
descritiva e inclusive prescritiva. Tal é o caso da chamada "Deontologia Profissional". A ética, a moral e a deontologia são, tradicionalmente, discursos da filosofia,
procurando dissertar acerca da vertente universal e/ou particular dos valores humanos. A deontologia, como aplicação prática da ética, procura tornar real o discurso
desta. Neste sentido, a deontologia pretende ser o estabelecimento de normas e regras concretas, situadas, que regem uma determinada profissão ou prática laboral,
visando o cumprimento do dever-fazer e do dever-ser.
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Aristóteles, somos eminentemente sociais. Precisamos da linguagem ética para
«dizer» a nossa própria consciência: daí escrevermos «códigos» que nos honram e
outros que nos desonram…
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5. As interpretações do Corpo Pessoal:
Desde sempre, o ser humano, olhando, usando ou experimentando o seu corpo, pensou sobre
ele de muitos modos, interpretou-o, desenhou-o, esculpiu-o, projectou-o. Desta milenária
leitura antropológica têm surgido distintas correntes sociológicas, morais, económicas e, até,
políticas, pois não é indiferente a nossa consideração «sobre nós próprios» na construção de
um mundo humano. Aliás, algumas destas correntes servem ainda hoje (feliz e /ou
infelizmente, nalguns casos) de base a programas ditatoriais, anti-democráticos, de
extremismo religioso ou, pelo contrário, a programas de solidariedade, equilíbrio e justiça
social.
Resumimos em três sentidos principais esse «olhar sobre o próprio corpo»: os dois primeiros
desconsideram a importância da Pessoa no seu Corpo Pessoal. São elas o extremismo material
e, no seu antípoda, o extremismo espiritual. O terceiro sentido, no âmbito do realismo
fenomenológico considera que o Corpo Pessoal é sempre lugar de consciência integrada e que,
por isso mesmo, merece toda a dignidade ética natural.
Nesta consideração da realidade humana como radical «matéria corpórea» podem prevalecer
atitudes como idolatração, veneração e cuidado estético extremo, mas também a sua
exaustão, esgotamento, opacidade, desrespeito ou venda.
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Segundo este materialismo antropológico, o corpo não é locus de dignidade pessoal, nem via
para a consciência de si. A redução da vida humana à vida biológica não específica leva a
comportamentos díspares, ainda hoje visíveis em modas ou factos correntes, que (usando
como máxima um carpe diem quase em desespero) potenciam adições, desequilíbrios
pessoais, vícios sociais, usurpação do corpo de outrem, tráfico humano, modernas formas de
escravatura pelo trabalho físico, narcisismo de si, culturismo exacerbado, enfim: todas elas
triste culto e idolatria de um corpo sem pessoa e sem amanhã.
Nesta filosofia do Corpo, o indivíduo vale o que o seu corpo vale, no mais estrito sentido do
termo, sendo o seu pagamento uma estrita relação comercial (biológica, laboral ou outra). A
instrumentalidade rasa do corpo termina em episódios ou etapas menos felizes, menos belas
ou menos úteis: a velhice, a doença, a morte.
Algumas perspectivas sobre o Corpo ao longo dos tempos (presentes até hoje) preferem
considerar que «a melhor parte» do ser humano está exactamente no não-corpo, ou seja, na
afirmação de que a essência humana não é material nem precisa da matéria, ou que, antes
pelo contrário, as formas corpóreas são provisórias, dispensáveis, erróneas e conducentes ao
erro intelectual. Esta versão sobre o Corpo humano excede ou releva a sua corporeidade
material, biológica e opaca, revelando um certo desejo de ultrapassar os limites e
condicionantes como o tempo, o espaço, a imperfeição ou o erro.
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As atitudes que prevalecem são de rejeição, fuga e negligência da materialidade humana. A
mente deve encontrar forma de subjugação do corpo, mas dificilmente se alia (e nunca se
aceita a unidade natural que é o humano).
5.4. A versão do Corpo como Lugar da Pessoa (ou: a realidade pessoal enquanto
realidade corpórea e digna)
Neste realismo fenomenológico encontramos o Corpo como lugar total da pessoa humana, que
nele alcança consciência e autonomia. Não se concebe o humano como uma dualidade, mas
antes como uma unidade integrada em todas as suas dimensões. O corpo é lugar de
conhecimento e de liberdade. A autoconsciência do ser humano não nega, não idolatra, não
reduz o corpo, mas afirma que todo o ser humano é um corpo sensorial, racional e, sobretudo,
livre, com vontade própria e responsabilidade dos seus actos.
Somos uma UNIDADE TRIDIMENSIONAL com SEDE NO CORPO. O corpo é digno, é local da
pessoa humana, não é de menos qualidade que eu próprio. Aliás, eu não existo sem corpo, o
meu corpo sou eu! Não o possuímos, mas sim SOMOS corpo.
Esta filosofia do equilíbrio ontológico defende o ser humano como um corpo consciente e livre
em unidade tridimensional. Só nesta versão da Filosofia do Corpo se fundamenta a ética como
lei natural, universal a todos os seres pensantes. Só nesta versão do Corpo Pessoal se
equaciona a defesa dos Direitos Humanos que iniciam no direito à vida (e vida num corpo
digno, responsável e livre).
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6. Filosofia e Mentalidades predominantes no Mundo Contemporâneo:
Quase tudo o que hoje pensamos, testamos ou fazemos nasceu ANTES como
hipótese: as grandes teses actuais (as nossas ideias) têm raízes milenárias ou
centenárias. Talvez seja difícil aceitar isso, mas hoje, não há assim tanto pensamento
original ou acção exclusivamente contemporânea (por muito estranha que possa
parecer esta afirmação na gloriosa era digital galáctica). As grandes hipóteses podem
ser muito antigas e ainda funcionais…
Por isso, «quem desconhece, não pode amar (o desconhecido)», afirmou o realismo
filosófico. Temos de conhecer o nosso património humano, a fim de o proteger. O
desconhecido, o ignorado, só absurdamente poderá ser protegido. Portanto, com
Heródoto (o proclamado «pai da História»), afirmamos que conhecer o PASSADO
permite compreender melhor o PRESENTE, e assim prever mais e preparar melhor o
nosso FUTURO. Não defenderemos o que não conhecemos.
Um Humanismo prático, efectivo, próximo à paz dos povos e aos direitos dos mais
frágeis: o âmbito da Educação Física e Desporto tem esse papel facilitador enquanto
instrumento ou via a favor do talento e do mérito sem fronteiras. Nenhum credo,
nenhuma etnia, nenhuma posição social pode ser obstáculo aos Direitos Humanos
Individuais.
Seja na pré-história, seja na história, seja por primordiais fósseis, seja por
manuscritos (sob suportes diversos e todos interessantes), a História é uma ciência
evidente. Todo o pensamento humano no tempo pode nela registar-se. A ciência
nasce aí.
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sociedades humanas, ou mesmo (num indivíduo), a uma especialização, erudição ou
versatilidade pessoal.
Dele herdamos as Questões Primordiais (uma sugestão grega de síntese sapiencial) buscam o
conhecimento profundo das estruturas do universo enquanto correlato de um
autoconhecimento. Visam a sabedoria (não em extensão, o que seria um mero enciclopedismo,
mas sim em verticalidade: sabedoria pessoal). Esta dimensão principal de cultura advém da
universal capacidade humana da autoreflexão (esse pensar sobre si mesmo, o sujeito, e sobre
os outros sujeitos humanos, em ordem a um plano ético final). Ou seja, cada civilização, cada
grupo cultural pensou e tentou responder às Q.P. (Questões Primordiais): tendo isso em
comum, têm depois em separado as diferentes respostas (o que conduz a que se separem e
difiram enquanto culturas diversas, até adversárias, dando respostas adversárias: R: Q.P.).
É convicção de Tales que a História do Pensamento pode ser arrumada em modo sistemático
sob três formas maiores de R.Q.P., ou seja, Respostas às Questões Primordiais: são eles os
três maiores modelos mentais da humanidade, a saber: o paradigma mitológico, o
paradigma religioso e o paradigma crítico.
Damos início, assim, aos seguintes maiores quatro tópicos da matéria, os PARADIGMAS
presentes no Mundo Contemporâneo:
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6.1. O paradigma mitológico: mentalidade, atitude, cultura
«Mito» significa em grego «obscuro», ou seja, aquilo que se considera ser complexo e
incognoscível de modo racional conceptual. Neste caso, para as comunidades mitológicas,
obscura é a natureza material poderosa e desconhecida: todo o mundo físico, das
energias telúricas galácticas, é obscuro, inexpugnável, fechado em si. Não possui uma
causalidade regulada, é instável e como que dotado de um poder imune à Ciência.
Todos os fenómenos da vida material e natural são tidos como emanações de um poder
obscuro, perante o qual o frágil ser humano deve sobreviver ou aprender a fazê-lo. As
narrações das mitologias maiores e das mitologias menores distinguem-se pela
intensidade (maior ou menor) deste sentimento de pertença e dependência, mais ou menos
sangrento, mais ou menos absurdo, mais ou menos imaginativo, mais ou menos hierárquico ou
social.
Após a primeira comunidade humana, quiçá a do Sapiens Sapiens, pode registar-se na História
a tomada de consciência acerca da fragilidade humana, a sua necessidade de sobrevivência, a
sua cultura básica e útil, a sua relação dura com a Natureza desconhecida. O primeiro homem,
pleno de capacidade sensorial (e naquela que se denomina «infância da Humanidade») busca
controlar e prever o obscuro (mythos) através de rituais, objectos e entes mágicos (os
demiurgos) antropomorfizados.
Vejam-se agora as três principais características da mentalidade mitológica (presente quer nas
maiores, quer nas menores expressões da mitologia ancestral, e ainda hoje em vigor nos
novos fenómenos sociais da comunicação mitológica).
29
na matéria natural leva a um foco único nessa relação emocional. São matéria, produto da
natura, e regressam à natura. Segundo a mitologia, a vida humana é naturocentrada
(naturocentrismo).
Por outro lado, dado que o poder da matéria natural é tido como total e interno, dela
imanando, as narrativas mitológicas são também narrativas imanentistas, ou seja: aderem
espontaneamente ao Princípio da Imanência (segundo o qual está dentro da matéria natural
obscura a sua própria gestação e fundamento). O imanentismo mitológico crê que a origem de
tudo o que existe na natureza está contido no próprio poder permanente da matéria, que é
autocausadora de si própria. Segundo a mitologia, a origem da matéria é imanente
(imanentismo) e sem princípio nem fim (eterno, no sentido de causalidade intrínseca).
Para justificar e facilitar a comunicação com a matéria obscura, superior em força e poder, o
ser humano mitológico recorre às imagens antropomórficas de conciliação de dois mundos ou
dois planos contrastantes: ao poder causador da matéria não chega o mais comum dos
mortais, mas sim aquelas figuras heróicas (que a imaginação ajuda a fabular e sobre cuja
existência real ou ideal não importa discorrer) que são os demiurgos.
Os demiurgos são seres intermédios, mesclados, justificados pelas suas tarefas não-humanas,
quase heroicas. São mediadores fictícios, mas emocionalmente eficazes entre o poder da
natureza e a fragilidade humana, e têm a tarefa de veicular informação sensorial rica e
fantástica, que facilite a passagem de testemunho aos mais novos, de modo a que as
comunidades mitológicas cresçam sem perder a noção naturocêntrica e imanentista da vida
humana.
Esta dependência da matéria natural (ou dos elementos naturais) permite que se conclua que,
nas mitologias (passadas e presentes), o sujeito humano possa ter pouca consciência
autónoma de si próprio. A sua autopercepção é limitada pela sensorialidade: ele vive na
dependência da matéria, por ela oprimido, ou por ela seduzido.
30
uma figura que reúna em si própria os dois mundos numa só forma (morfê): o mundo humano
e o mundo natural.
Nas mitologias, o ser humano não tem atitudes decisionais, ou seja, não escolhe nem decide.
Segue as forças do universo desconhecido e instável. A cultura mitológica é rica em
imaginação e criatividade, elabora substituições causais de modo mágico e ficcional, capaz de
aliviar emoções e provocar sentimentos, mas não considera unitariamente o ser humano,
antes o divide e exclui. Para as mitologias, o ser humano vive apenas numa dimensão, a
primeira: a dimensão sensorial e as suas operações próprias, empequenece-se. Tal redunda
num reduccionismo antropológico.
Esta nova tendência pode ser vista como continuidade do poder sedutor da matéria, perante o
qual o indivíduo se anula e perde a autoconsciência livre. Por outro lado, a fragilidade com que
o indivíduo ainda cede ao poder da matéria, mostra que, tanto o consumismo como a
superstição são resultado comum de ignorância, superficialidade, fraqueza intencional ou
insuficiente autoreflexão. O dinheiro, o luxo, a vaidade, a posse, a ostentação de riqueza ou
das marcas é hoje o rosto dessa «mentalidade sensorial», infantil, fantasiosa, um pouco
31
inconsciente de si e das suas competências ontognoseológicas. A escravidão às emoções
permanece hoje de modo evidente.
A vaidade e prazer são a raiz deste traço da mentalidade mitológica. Vaidade e prazer são
emoções naturais que (se permanecerem como núcleo da personalidade na vida adulta) podem
conduzir a um certo infantilismo e inconsequência. Estas emoções levam a outras, registando-
se a sua viralidade em fenómenos de autoadulação como o Facebook (e, em geral, como em
quase todas as redes sociais destinadas à promoção da autoimagem fabulada e
antropomorfizada), ou em outros fenómenos igualmente virais como o culto de si próprio, o
Botox, a correcção cirúrgica constante do próprio corpo, a adoração da própria forma física nos
ginásios, o coaching de imagem, a futilidade, o consumismo, etc., etc.
O culto do prazer (tão antigo quanto actual) regista agora maior rapidez e facilidade de
expansão, numa sociedade mitológica global, que despenaliza e tolera com mais facilidade
comportamentos como a adicção química, a sexualidade irresponsável, a devassa da
intimidade para ganho de audiências televisivas, etc.
É certo que este versátil materialismo gerou textos, narrativas, poesias, pinturas e danças
maravilhosas, que ainda hoje dignificam a cultura estética de vários povos. Enquanto posição
imagética, mágica e ficcional, a mitologia exibe uma maravilhosa criatividade, só possível ao
ser humano. Mas quando este se reduz a essa produção sensorial, anulando deveres e direitos
intencionais, perdendo a autoconsciência, então vive em estado básico quase animal.
32
6.2. O paradigma religioso: mentalidade, atitude, cultura
A palavra «religião» advém de expressões que remetem à noção de laço e de ligação. Define-
se como sendo a crença, sentimento ou convicção de estar ligado a um Ser Superior,
Diferente sem composição material, cuja essência é o espírito (=negação da matéria). A
designação grega Theos e depois latina Deos, ou seja, «Deus» (em português), significará
precisamente esse carácter puramente espiritual de um Ser que não habita a NATURA.
Se (como vimos no ponto anterior) o mito supõe a ligação obscura ao poder da matéria
mundana (materialismo total), a religião (em contraposição total a este) supõe a negação da
matéria, o estado não-material, a presença do espírito não mundano (espiritualismo total).
A ligação ou relação do ser divino espiritual com o ser humano é tida como uma relação
espiritual, profunda e total: relação filial será a que melhor explica a palavra «fides» ou «fé»
(no caso, filiação divina). O Ser Criador é Pai da única criatura (entre todas as criaturas) que
tem a possibilidade de o conhecer e de o reconhecer. O ser humano é filho deste Pai Criador.
Esta relação de filiação divina pode ser apercebida de modo pessoal e intransmissível
(religiosidade individual) ou de modo comunitário (religiosidade eclesial). No primeiro
caso, refere-se o indivíduo que é autonomamente religioso; no segundo caso, alude-se ao
indivíduo que se insere e assim pertence a uma religião comunitária (eclesial / igreja).
A narração religiosa (ou pensamento religioso) assenta, portanto, não numa explicação
humana, mas numa iniciativa divina (a Revelação: o Deus que vem e se revela ou mostra) e
consequente resposta de fé (confiança do homem no Ser Superior, tendencialmente único, e
criador do mundo e da criatura). Portanto, é o Ser Superior quem toma a iniciativa da sua
própria revelação. A resposta do homem será filial, estabelecendo-se entre ambos a relação
criacionista de paternidade / filiação, ou seja, a convicção religiosa de que a vida de cada
homem depende de um Ser Superior. Esta convicção habitualmente existe dentro da religião
oficial ou confessional, mas também pode dar-se à margem da religião –e refere-se então
apenas ao sentimento espiritual da religiosidade, sem pertença ritual a uma grande religião
histórica.
33
na medida em que a teologia considera que a origem de tudo o que existe reside fora (trans)
do mundo e da matéria. A origem de tudo está «fora» e é superior à NATURA (ou seja, é
sobrenatural, é transcendente). O Criador é puro Espírito e a sua criação é acção sobrenatural.
Sendo Deus eterno (permanência sem autocriação), o mundo e todos os seres são temporais,
guiados no tempo por sua vontade. Este transcendentalismo é, portanto, espiritual e eterno.
O pensamento religioso (assente nas grandes religiões universais, seja a animista, sejam
sobretudo as grandes religiões reveladas dos Livros Sagrados: a védica, a judaica, a cristã e a
islâmica) tende a ser monoteísta, transcendente e espiritual. O seu criacionismo não é
antropomórfico, mas sim teocêntrico. O humano é feito à imagem e semelhança de Deus.
Como última nota, deve referir-se que todas as religiões –embora nomeiem os seus ascetas de
modo diferente (umas chamam santos, outras monges, irmãos, faquires, profetas, eremitas,
missionários, etc)– possuem uma característica comum, ou seja, uma proposta de salvação: a
escatologia. Esta realiza-se mediante uma ascese (subida) praticada pelo asceta («aquele
que sobe a Deus, negando a matéria») e que se deve mostrar mediante práticas de vida o
menos mundanas possível. O asceta eleva-se até Deus através dos meios que escolher para
tal: a oração, o jejum, a mortificação, o desprendimento dos seus bens, a solidariedade, o
voluntariado, a pobreza, etc. Estes meios afastam-no da matéria (que não é Deus) e
aproximam-no do espírito (que é Deus).
Ao longo dos tempos, por documentação registada (que as religiões e as igrejas consideram
também fruto de revelação divina, mas que os cientistas da Histórica catalogam de modo
rigoroso e neutro numa cronologia linear mediante provas documentais em laboratório
científico), foram-se conhecendo as maiores concentrações religiosas comunitárias (isto é, as
mais antigas e maiores igrejas confessionais e públicas, entidades claras na história
documental, e que deixaram rasto civilizacional em milénios) através desses escritos tidos por
sagrados.
O vedismo (de inspiração politeísta, baseada nos Sagrados Escritos dos Vedas, e algo
ecléctico ao adoptar figuras do mundo animal e natural como mediadores antropomórficos),
hoje geográficamente contígua ao hinduísmo, seguida do judaísmo (primeira religião de
perfil monoteísta, seguindo a fé dos ascetas Moisés e Abraão, registada na Torah e na Antiga
Aliança que Deus fez com o povo judeu na sua deriva à procura da Terra Prometida, e ainda
esperando o Messias que há-de reparar a separação original do primeiro homem e da primeira
mulher), o cristianismo (igualmente religião monoteísta, que crê que Jesus foi há dois mil
anos o Messias Salvador, e que narra essa redenção nos textos da Nova Aliança –que, unida à
Antiga, perfaz o Livro (Bíblia) do amor e compaixão de Deus pelo seu povo), e por fim, mais
jovem em cerca de 600 anos em relação ao cristianismo, o islamismo (cujo fundador, o
profeta Maomé, se reclama último e definitivo nos mistérios da salvação religiosa, deixando no
Corão o registo das virtudes principais do Islão).
Cada uma das religiões tradicionais e mais antigas tem, depois, as suas derivações sociais e
temporais (fracturas e sub-divisões em igrejas/ comunidades eclesiais). Estas diferenças nas
igrejas nem sempre foram provocadas por motivos negativos, mas sim inevitáveis no tempo e
no espaço dinâmico da vida humana. Tal é visível sobretudo na igreja cristã e nas suas
divergências familiares ao longo de vinte séculos (católicos, ortodoxos, anglicanos e
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protestantes pertencem à mesma tradição revelada por Jesus) e ainda as suas derivações
ascéticas internas. Ou seja, cada proposta escatológica de um santo (asceta) pode ser uma
nova caminhada na fé e uma nova forma exemplar de chegar a Deus, segundo a mentalidade
interpessoal religiosa. De modo simples, comparando metaforicamente a um mapa de uma
cidade, as igrejas são as várias avenidas, ruas ou vielas conducentes a um único monumento
(a religião).
No mundo contemporâneo existe ainda um novo fenómeno poderoso, a proliferação dos NMR
(Novos Movimentos Religiosos) que, por três motivos técnicos principais, não são
considerados propriamente igrejas nem religiões pela História das Religiões, mas sim NMR
(parte ou parcela –seita- do povo de Deus).
Eis os três motivos pelos quais se distinguem das confissões religiosas clássicas:
Em resumo: ao contrário do paradigma mitológico (que reduz o ser humano a UMA dimensão
privilegiada: a sensorialidade e as suas operações –sensação, percepção, emoção e
imaginação), o paradigma religioso abre a uma «quarta dimensão» que julga ser a
determinante, superior às outras três (sensorialidade, racionalidade e intencionalidade), ou
seja, a dimensão da fé ou da filiação divina. Não basta ter atitudes livres e coerentes, para o
religioso. A relação com o Pai Deus eleva o ser humano a um outro campo superior (segundo
os religiosos); será difícil dialogarmos com um crente se não aceitarmos que, quando nos fala,
não está a usar apenas as suas três competências ontognoseológicas, mas «algo mais».
Daí que, como extremo, algumas minorias religiosas possam inclusivamente referir, não sem
certa cegueira (origem de fanatismos e fundamentalismos, no passado e no presente de
muitas religiões) que «a salvação é superior à liberdade», isto é, que a fé vale mais que a
atitude consciente (9ºpasso integral).
Caso se colocasse a pergunta ao religioso («qual a melhor competência do ser humano?», isto
é, qual a sua significação em termos existenciais), teríamos a resposta da ampliação
antropológica: para a mentalidade religiosa, o ser humano vale o que valer a sua Fé. A Fé
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acrescenta uma dimensão ao ser humano. Para um religioso, a consciência da filiação divina (a
Fé, portanto) vai mais além da consciência livre.
Porém, a par disto, permanece uma cada vez maior sensibilidade ecuménica e o respeito
universal pelos credos, sem que este limite a livre expressão. Grandes representantes das
maiores religiões tradicionais fazem constantes esforços por manter a religião no âmbito da
espiritualidade ascética e escatológica.
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Embora completamente opostos nos seus fundamentos teóricos e especulativos, o
paradigma mitológico naturocêntrico e o paradigma religioso teocêntrico possuem
manifestações exteriores semelhantes.
Porém, e a modo conclusivo, diremos –a partir de agora- que, na História das Ideias Humanas,
só no pensamento crítico colocado pelos filósofos gregos (inicialmente. Mas depois também por
outros) vamos encontrar a primeira clara defesa do património comum a que se apelidou a Lei
Natural, património esse onde a Ética reside como evidência universal, transversal a todas as
culturas e religiões, e delas independente.
A vida e o pensamento não são meros valores, são evidências. Assim o postulou o
pensamento crítico, aberto e plural. De modo encadeado, sistemático, abrindo ESCOLA e
depois UNIVERSIDADE de ensinamentos, só no paradigma crítico encontraremos de modo
exigente para toda a humanidade a petição de liberdade e igualdade. Será com Tales de Mileto
e a sua Escola de Atenas, fundação informal desta metodologia e estilo, que ganharemos a
consciência profunda da essência humana.
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Sem este reconhecimento, ciências sociais e humanas não teriam feito a sua história enquanto
reflexão e autorreflexão sobre o comportamento livre do ser humano: estariam presas às
vicissitudes relativas a cada grupo humano e não à Humanidade em geral.
Portanto, o trabalho crítico implica dois momentos: 1) análise da falha, 2) proposta da solução.
Se a proposta não existir, a crítica não é adequada: será mera detecção de problemas sem
construção de alternativa.
No séc.7 a.C, Atenas era o centro geográfico por excelência do mundo então conhecido: a sua
riqueza, a sua arte, a sua estabilidade, o seu desenvolvimento, justificam progressivamente a
sua fama. Ao falar na sua praça pública, Tales aconselhou o seu auditório: «Pensa por ti
mesmo. Nada aceites sem pensar». Inaugurou numa nova atitude de individualismo
crítico, prudente, mas autónomo e livre. E este conselho do filósofo iniciou uma revolução
epistemológica, inovadora e célere.
Gradualmente, nesta escola inicialmente informal, surgirá um novo paradigma mental que
revoluciona a forma de pensar até então estabelecida, provocando uma verdadeira ruptura
epistemológica com o mito e com a religião –ruptura que continua desde há 27 ou 28 séculos
atrás. Todos somos hoje, de um ou outro modo, devedores da «Escola de Atenas», modelo
inspirador ao longo de séculos da mentalidade crítica.
Por causa do seu lema ou divisa, Tales é intitulado «Pai do Ocidente», num sentido figurado,
enquanto inspirador do paradigma civilizacional crítico, transmitido às culturais ditas
ocidentais. Ela motiva há 28 séculos a capacidade de «pensar por si mesmo», demostrando,
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assim, uma inusitada confiança nas competências cognitivas da humanidade. A
autonomia e liberdade individuais são também aqui implícitas, bem como o pedido de nos
atrevermos a pensar (em nove patamares cognitivos até à unidade intencional e livre).
Tudo assenta na atitude, a atitude crítica: «pensa por ti mesmo, nada aceites sem
pensar». Pensa muito, volta a pensar. Sê radical, vai à raiz do problema, não te contentes com
pouco, há muito por saber! Com essa pretensão inovadora, Tales acabava de caracterizar um
novo estilo ou atitude: a filosofia, inicialmente com vocação interrogativa e científica e,
depois, com vocação social e política. A «philo sophia» será essa busca descomprometida da
verdade, essa tendência amigável ao conhecimento amplo, aberto, crítico e imperfeito.
Mas essa imperfeição é característica ou «nota» humana, o que permite dizer que está
garantida a humanidade da procura. Esta atitude humilde e incansável estará na base de todo
o conhecimento humano que se diz «humanista» (tão defendido desde há dez séculos na
universidade europeia), pois é profundamente crítico, criativo, argumentativo, célere,
encadeado, logicamente causal.
Por outro lado, na cidade que é o berço da Filosofia, Atenas, Tales de Mileto apresentou
também ao seu auditório as grandes Questões Originárias de sempre, mas agora conexas de
modo sistemático: quem sou eu (essência humana)? De onde venho (origem
universal)? Para onde vou (finalidade total)? Um primeiro registo desta «aula» ficará para
todo o sempre na história factual e mental graças a um documento da época.
De modo a não errar, Tales pede também aos seus discípulos que utilizem um «methodos»
(via ou caminho) seguro, inspirado no criticismo. Tales ensina os dois primeiros passos deste
processo metódico, e estes serão o início espontâneo daquilo que hoje chamamos «método
científico universalmente aplicado ao saber reflexivo»: este pensamento interrogativo e
problemático começa pela atitude crítica, origem da Filosofia e, um dia, também origem da
Ciência.
Primeiro, determina Tales, há que olhar para todas as coisas por observação directa
(primeiro passo, implicando o conhecimento sensorial, intelectual e intencional humanos), indo
à raiz do que se vê. Sem aceitar nada que não passe pelo próprio pensamento (cepticismo
inicial), só deve aceitar o que seja evidente e ordenado. Apenas depois o sujeito observador
deve formular uma hipótese adequada (segundo passo), ou seja, uma fórmula ou
probabilidade interpretativa que explique o que foi observado. Os fenómenos devem ser
registados segundo estes dois passos: observar criticamente e hipotizar racionalmente.
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sustentado de testes, a conclusão científica, para aprendizagem da comunidade. Este quarto
passo expõe a enunciação do resultado: se a hipótese testada se comprovou nas experiências,
temos uma lei científica nova e deve ser publicitada no meio científico. Se a hipótese testada
foi incorrectamente observada e formulada, deve ser revista, reiniciando-se todo o trabalho do
cientista desde o primeiro passo inicial.
Tales é, não só o inspirador da ruptura crítica com os paradigmas do mito e da religião, como é
ainda o fundador da «mentalidade ocidental» e da sua ciência metódica. O próprio Tales
investigou as Q.P. e deu uma resposta pessoal, registada na documentação que hoje se
conhece como sendo a dos «Sete Sábios» (e primeiros Físicos): para o pensador de Mileto a
respostas às Q.P. reside na água, na molécula de água. A Teoria dos Quatro Elementos
(ar, água, terra e fogo) é expressa pelos seus colegas pensadores, e ainda completada pela
Teoria da Energia (expressão grega –como todas as outras) para designar a primeira e
fundacional noção racional de um dinamismo comum a tudo o que vive e se movimenta,
segundo Heraclito, ou mesmo a Teoria Atómica, como hipótese fundamental da estrutura da
matéria, segundo Demócrito.
Esta Primeira Geração da Escola de Atenas (nos quatro primeiros séculos da sua fundação),
dedicada ao pensamento científico natural, apresenta à cultura contemporânea os primeiros
cientistas, ou seja, aqueles que fizeram ciência sistemática e discutida entre eles, na «escola»:
Anaximandro, Anaxágoras, Pitágoras, Euclides, Ptolomeu, Arquimedes, Hipócrates, Demócrito,
Heraclito, Galeno, etc. deram origem à física, à química, à geometria, à matemática, à
medicina, à astronomia, à cosmologia…
A Escola de Atenas apresentará uma Segunda Geração alguns séculos depois (4 e 3 a.C.),
sempre sob a mesma inspiração crítica e científica: mas agora, os filósofos gregos fundarão
com Sócrates, Platão e Aristóteles, ideias humanas, sociais e políticas fortes, ainda hoje por
cumprir nas sociedades que com eles aprenderam. Devemos a esta Segunda Geração os
documentos que pedem e instauram os fundamentos reflexivos da Cidadania, Democracia,
Política, dignidade humana transversal e, concretamente, a grande ciência normativa
universal da Ética (palavras originárias todas elas da civilização grega ancestral).
O livro de Aristóteles «Ética a Nicómaco» assinala a grande viragem, afirmando pela primeira
vez a igualdade radical dos seres humanos face à natureza, e o poder da consciência
inteligente como única sede da expressiva essência humana. Aí propõe a mais difícil das
conquistas: a felicidade pessoal como um processo de escolha de bens dignos e autónomos.
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(democracias, igualdades, direitos, liberdades), negligenciados ou extremizados
(individualismos, isolacionismos, fátuas rebeldias de espírito).
Portanto, a novidade consiste agora numa nova atitude de resposta (a atitude filosófica
racional integral), chamando-se hodiernamente «ocidente» a esse padrão não-mitológico e
não-religioso. Ficará para trás, como não-ocidental, toda a história das mentalidades que não
for autónoma, crítica e individualista.
Vejamos como.
A Grécia (Helade) educou paulatinamente todo o mundo latino, mediante a helenização. Ela
vem a ser procurada pelos próprios romanos, admiradores da grande capacidade intelectual
dos gregos (helenos). Uma vez instruído e preparado, o fenómeno da romanização explica a
passagem de testemunho agora feito pelo enorme Império Romano através da língua latina,
matriz da cultura europeia. Os povos conquistados pelo império conhecerão a hipótese do
Direito (chamado) Romano (porém grego de raiz), a jurisdição clara e consequente, a
organização social meritória pelo trabalho, a escolarização, a possibilidade de cidadania, etc.
Séculos depois, entrando na nascente Idade Moderna e no, por vezes muito desastroso, cruel e
indigno fenómeno da colonialização, será por sua vez feita a expansão da mentalidade crítica
e antropocêntrica aos povos do Novo Mundo. Protagonista dos Descobrimentos e das
descobertas, o Velho Mundo instruirá a condução de novas nações, desejosas da democracia
(grega) e dos direitos humanos universais (a ética aristotélica, em suma).
Durante todos estes períodos, a Humanidade perdeu e ganhou, isto é, avançou em algumas
áreas, regrediu em outras.
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Como exemplo cabal, basta pensar que apesar de termos hoje mais ferramentas (sobretudo,
as tecnológicas), aumentamos a poluição (e, com ela, doenças associadas e falta de qualidade
do ar). Temos facilidade de transportes, mas temos muito mais stress que alguma vez se teve
na história da Humanidade, o que coloca em causa a saúde mental em muitos países
desenvolvidos. Temos excelentes serviços de saúde, mas temos uma alimentação de
baixíssima qualidade. Os exemplos poderiam continuar…
De facto, não há uma relação directa e perfeita entre história e progresso. Nem sempre há
mais qualidade de vida no futuro, assim como pode não ter havido tanto erro no passado... O
«mito do futuro sempre melhor» ou o «mito dos bons velhos tempos» são ingenuidades
superficiais na consideração da história.
Do ponto de vista das respostas às Questões Originárias o tempo histórico não tem
notoriedade progressiva: a qualidade de vida autoreflexiva pode ter sido maior no passado ou
vir a ser completamente reposta num futuro. Não há previsibilidade cultural absoluta (o que se
explica pela actuação livre dos homens).
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indivíduo moderno julga possível controlar a natureza através da ciência, dominá-la, pô-la ao
seu serviço sem deficit.
Na Idade Moderna, o ser humano confiou exclusivamente na sua racionalidade. Também por
isso se denomina este momento histórico como Iluminismo, Idade das Luzes ou
Ilustração, sendo comum denominador a corrente filosófica do «racionalismo absoluto». È
um período rico em descobertas e revoluções (além das científicas, as sociais como a
Industrial e a Francesa, as políticas como a austro-húngara ou a bolchevique). Tudo será feito
pelo homem a favor do homem. E tudo será feito através da Razão Humana, capacidade em
que se confia exclusivamente (desequilibrando profundamente a proposta helénica da
coexistência harmónica da Sensibilidade, Razão e Vontade). O racionalismo absoluto dessa
época é a forma mais acabada e extrema de antropocentrismo.
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sensorialidade e da intencionalidade, privilegiando as emoções e o livre-arbítrio humano como
expressão livre face aos totalitarismos sistemáticos de Descartes, Kant ou Hegel.
Já durante a Modernidade (ou causando nos seus últimos estertores) alguns pensadores
criticavam os ideais extremos do Racionalismo, acentuando dicotomicamente –por sua vez- as
capacidades esquecidas do homem. Focavam sobretudo as esquecidas ou subvalorizadas
Sensibilidade e Voluntariedade, dando origem a críticas ora sensistas ora volitivas, mas nunca
racionalistas. Nietzsche e Schopenhauer são vozes entre os Românticos –que mostram a
negligência poderosa das paixões, da rebeldia, da angústia e, em geral, todo o mundo interior
e livre do sujeito.
Einstein é um dos maiores críticos da ciência moderna. Com ele e outros epistemólogos, abre-
se, no século 20 e 21 científicos, um clima de maior modéstia para os saberes científicos.
Com este físico, toda a Ciência como CORPO ou ENUNCIADO DE CONHECIMENTOS é posta em
causa: é a terceira ruptura ou avanço na história das ciências, depois de Tales e de Galileu.
Segundo Einstein, após as Grandes Guerras da Humanidade (uma humanidade que comunica
já em «aldeia global», que já fez os Direitos Humanos), entrámos na pós-modernidade: deve
agora fazer-se a ciência em equipa, revendo resultados, aceitando correcções e fracassos, não
transmitindo sistemas fechados, dogmáticos e salvíficos como os do cientificismo moderno
(que não fazem parte dos enunciados científicos). Modéstia, revisibilidade, continuidade,
transparência e abertura, aliados a uma necessária vigilância ética deverão ser
apanágio da ciência actual. É importante repensar a CAU numa linha de equilíbrio, renovando a
importância de uma ciência feita com todas as capacidades antropológicas.
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Ficam longe promessas globais: o único empenho da ciência contemporânea (pós-moderna,
portanto) deve ser deter o aceleramento anterior, procurar preservar o que se está a ponto de
perder: o Mundo, Deus, o Homem, as liberdades, as diferenças.
As ciências sociais e humanas, por “aviso” de alguns pós-modernos como Freud (preconizando
a inconsciência humana), Marx (avisando sobre o materialismo profundo do homem), Sartre
(mostrando a inutilidade da vitória sobre o tempo), demonstram também como o homem é
falível, desintegrado, inconsciente, material, necessitado: decai a visão iluminada do homem-
quase-perfeito da Modernidade. Na Pós-modernidade decai a crença na Razão exclusiva. Morre
o racionalismo, ascende o sensacionalismo e o voluntarismo. Continua desfeita a harmonia
da essência humana (enquanto chave para entender o homem e o seu pensamento
completo).
Nietzsche, Schopenhauer, Wagner, Goethe, Holderlin, Einstein, Freud, Marx.., são, portanto,
vozes de contingentes muito diversos, por vezes mesmo contraditórios, mas com uma nota em
comum: a crença em capacidades desconhecidas do ser humano, que excedem os limites da
razão pura. Será esta Razão profundamente criticada por estes autores, propondo uma nova
temporada, a do pensamento contemporâneo que duvida do papel glorioso da Razão,
propondo outras leituras menos racionais da existência humana.
A educação ou formação mental dos povos distingue-se nas respostas que eles dão às
Questões Originárias comuns. Todos os seres humanos colocam questões e pensam sobre elas.
Desde o primeiro Homem que essas questões são pensadas: nas respostas (ou seja, no seu
nível de profundidade ou de utilidade) é que diferem os seres humanos e os paradigmas que
os unem. As diferentes respostas geraram (como vimos) diferentes civilizações e
mentalidades: mitologia, religião e criticismo.
Será nesta última forma mental, o paradigma da civilização aberta e criativa da Filosofia e das
Ciências em geral que nascerá a semente da Globalização. Por consequência, a semente
ecléctica, em grande e desastrosa presença do mundo contemporâneo.
Por um lado, ainda persistem algumas teses modernas ou racionalistas nas mentalidades
de certos grupos e/ou individualidades científicas: são os resíduos do cientificismo, ainda
confiante no papel absolutista da prática experimental.
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Por outro lado, a rejeição extrema dos ideais modernos também leva o homem contemporâneo
ao extremo do vazio e do niilismo. Não há valores nem ordem visível no mundo real;
generaliza-se um ambiente de contestação, de rebeldia, de perda de sentido, de consumo
desenfreado, de comodismo leviano, de miragens de êxito e autorealização. É a reacção.
Alguns grupos e pessoas julgam recuperar ou preencher lacunas através de práticas de estilo
oriental. O orientalismo em voga no mundo pós-moderno (ginásticas, terapias, leituras
autoajuda ou antistress, músicas, estilos alimentares, etc.) traz consigo algumas perspectivas
místicas e religiosas que integram o curioso puzzle pós-moderno, retomando velhas respostas
às questões originárias. No fundo, a questão seria: se o pensamento crítico não salvou o
homem, voltemos ao pensamento mitológico e religioso.
Por outro lado, desde os anos 60 reina um existencialismo intelectual e social, que –apesar
de algumas respostas válidas e consistentes- acentua o relativismo e a arbitrariedade
existencial. Os anos 80 e 90 sublinham essa mensagem casuística, compreensão parcial da
liberdade (não de cada um, mas de todos os homens).
Realmente, não se pode falar em pensamento contemporâneo pois tudo o que temos (após
os críticos anos das Guerras e pós-Guerras 40, 50, 60, 70, entre outras Revoluções
intermédias) é efeito reactivo a um padrão anterior e, portanto, não um pensamento
activo, criativo, autónomo, consistente e novo. Talvez seja preferível (como aconselham
alguns Teóricos da Cultura) considerarmo-nos apenas pós-modernos, e não exactamente
contemporâneos.
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Assim, é prematuro dizer o que seja o pensamento contemporâneo: uma encruzilhada,
apenas, talvez mais consciente do poder e da miséria humana. Só o futuro o dirá (e aí, já não
seremos contemporâneos…).
O facto é que esta época pós-científica (também denominada criticismo pós-moderno) pôs em
causa a especificidade da Razão e a sua solitária caminhada. O ser humano é visto como um
poder voluntarioso, afectivo, sexual, inconsciente, material, anárquico, frágil, mortal,
desequilibrado... Todos estes autores, nas suas diversas áreas científicas, terão a mesma
intuição: foi esquecida a unidade integral do ser humano (SRV) e está impossibilitada a sua
liberdade.
E, como em todas as reacções calorosas, o exagero também pode acontecer: está então
legitimado o relativismo e a (sua correlativa) moralização: não há uma base única e natural,
cada um pode «desdizer» o outro na sua consciência. Dá-se o último golpe a uma Ética
universal, proliferando os moralismos pedagógicos, sociais, profissionais.
As ordens profissionais postulam nos seus Manuais ou Códigos pensamentos morais mais ou
menos equilibrados, mas de todos desapareceu a exigência primeira do lema: NADA ACEITES
SEM PENSAR E PENSA POR TI MESMO (Tales de Mileto). Os Códigos aligeiram as profissões,
preparam terreno, «facilitam» o encontro com a sociedade e a lei. Somos infantilizados e
desresponsabilizados.
Dar-se-á conta? Dar-nos-emos conta de uma certa (nossa) vida inautêntica, automática, só
reactiva, envolvida em engrenagem e rotina?
Pensamos?
Vivemos? Ou sobrevivemos?
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Ou seja, desde que o ser humano se organiza num território, sob forma de povo,
seguindo uma liderança, fá-lo em três grandes formatos ou matrizes:
Ao longo da História da Cultura Europeia (dita) Humanista, houve uma sequência histórica:
E, em todas estas fases, a mentalidade dita ocidental ganhou e perdeu alguma coisa.. O
ecletismo imperou na medida em que, logo após a fundação da primeira Universidade de
Bolonha, o ambiente derivou novamente no dogmatismo. O Renascimento procurou reavivar o
espírito crítico de Atenas, mas (até Maquiavel, Galileu e outros críticos) o conhecimento ficou
de novo comprometido.
Os episódios imperiais do Velho Mundo foram, eles próprios, episódios ecléticos, por vezes de
verdadeiros atentados aos Direitos Humanos, protagonizados por povos que deveríam ser os
seus defensores. Toda a história contemporânea está entretecida de versões complexas e
ambíguas, opondo-se a ética à moral de modo infrutífero.
E hoje?
Defendeu-se nas linhas anteriores que a expressão Ocidente se refere a uma matriz cultural (e
não territorial) fundada cerca do século 7 a C pelos sábios gregos de Atenas, expandida pelo
império romano e definida em costumes e práticas pelo cristianismo nascente (greco-romano-
cristã). São essas as respostas do Ocidente, com as suas mais-valias e também as suas
evidentes deficiências.
Existe obviamente mais do que um «pensamento» válido e eficaz. Aliás, cada cultura pode
legitimamente reclamar o seu. Mas importa distinguir: este pensamento contemporâneo, a
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partir do qual hoje e aqui avaliamos todos os outros (pensamentos) nasce na Antiguidade
Grega, e depois é espalhado pela Civilização Latina.
Toda a história que não possui esta matriz conceptual pode apelidar-se: não-ocidental (sem
existir atribuição territorial nesta nomenclatura). A história não-ocidental também possui as
suas próprias respostas às universais Questões Originárias (inscrevendo-se prioritariamente
numa linha de pensamento mitológico e/ou de pensamento religioso), gerando igualmente
sólidas e interessantes civilizações.
Por isso, Ocidentalismo e «Orientalismo» (ou cultura oriental e cultura ocidental, assim
simplisticamente apelidadas no nosso tempo) são, na Teoria da Cultura, não dois lugares
geográficos, mas sim duas leituras culturais em registo antípode sobre a existência humana.
No entanto, hoje dificilmente mantemos esses dois pólos de diferença, ou seja, orientalismo e
ocidentalismo. A complexidade do mundo contemporâneo supera, desfaz, esboroa
mentalidades ocidentais e / ou orientais. Afinal, o que é o Oriente e o Ocidente depois da
Sociedade em Rede, que supera distâncias e acentua quer ignorâncias, quer a sua possível
superação?
Como vimos, talvez a fórmula mais lapidar para a contemporaneidade se plasme exactamente
nesta palavra e nesta corrente (o ecletismo) dado que ele é a imensa mistura de conceitos
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contrários e contraditórios, que teoricamente se anulam e repudiam entre si enquanto modelos
opostos, mas que, na vida prática, informal, célere e, por vezes, superficial dos nossos dias,
funcionam mesclados, confusos e… integrados! Uma disfuncionalidade funcional. Por isso e, de
certo modo, todos somos um pouco eclécticos, mesmo os que não sabem que o são.
A grande tendência ao ecletismo propiciou o relativismo moral-social (onde tudo vale tudo
ou vale nada, conforme a ocasião e quem o diz) e este pode levar à passividade e mesmo à
indiferença ética e moral. Hoje, no campo profissional contemporâneo, valores eclécticos e
valores relativistas são o suporte da vida quotidiana. O cidadão e o profissional contemporâneo
tendem a estar mais atentos à situação do que ao conteúdo da situação. O que conduz a erros
de avaliação constantes. Deverá, então, a nossa área científica ser igualmente ecléctica e
relativista? É certo que, se pouco soubermos de modo profundo e rigoroso, tudo tenderemos a
aceitar como igual. O ignorante não tem receio em aceitar qualquer posição, qualquer tema,
qualquer ideia, dado que pensa que tudo é horizontal e indiscriminado…
Se não se puser cobro a esse vazio relativista, poderá o humanismo diluir-se nela? É caso para
recordar que, como afirmado no início, a cultura contemporânea crítica possui todos os
problemas não resolvidos pelas diferentes épocas da sua história (Antiga, Medieval, Moderna e
Pós-moderna). Ou seja, o actual momento da história do pensamento não é simples…
Todas as culturas ditaram as suas morais. Porém, só a cultura independente crítica definiu
uma ÉTICA UNIVERSAL, inata e natural. Por ironia, sabemos que hoje, nem os povos
(inicialmente ditos) ocidentais seguem essa «eticidade», pactuando com poderes instituídos,
mentalidades fechadas e pseudo-qualidade de vida… Como exigi-lo a outros povos, educados
fora dessas premissas? Faltando o exemplo, não se pode fazer a exigência.
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Referências Bibliográficas (suporte e aprofundamento de estudo)
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Esporte». Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Ciências do Esporte 17
GONÇALVES, Raquel (1997) Ciência, Pós-Ciência, Metaciência – tradição, inovação e renovação, Lisboa, Terramar
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KRETCHMAR, R. Scott (2005). Practical Philosophy of Sport and Physical Activity. USA: Human Kinetics
SCHWANITZ, Simon (2003). Cultura.Tudo o que é preciso saber. Lisboa: Dom Quixote
VATTIMO, Gianni (2011) O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, Lisboa, Presença
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