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Resumo
“Is this my body?” Human bodies in/of “¿Este es mi cuerpo?” Cuerpos huma-
sciences nos en/de ciencias
Abstract Resumén
The Science as the socially acceptable discourse is one of La ciencia como discurso socialmente aceptado es uno
the most powerful artifacts within the truths production de los artefactos mas potentes en la producción de
processes. Amongst the truths defended and dissemina- verdades. Dentro de las verdades por ella defendidas y
ted by the Science itself that are found, there are some difundidas están las que marcan nuestros cuerpos pro-
that mark our bodies as produced from the result of the duciéndo los como objetos en el entrecruzamiento de
intersection between different subjects that ranges from diferentes campos disciplinares que van de la anatomía
Anatomy to Aesthetics, by establishing and changing our a la estética, instituyendo y alterando miradas y prácticas
views and our practices throughout history. This paper a lo largo de la historia. El presente artículo tiene por ob-
aims to revisit some important works of the epistemolo- jetivo revisar algunas obras importantes del campo de
gy of science covering the discourse production that are la epistemología de la ciencia recorriéndo las a partir de
‘written’ in our bodies. las marcas que inscriben en la producción de nuestros
cuerpos.
Keyword: Human body; Scientific knowledge; Epistemo-
logy Palabras-claves: Cuerpo humano; Conocimiento cientí-
fico; Epistemología
Geórgia de Souza Tavares; Sílvia Nogueira Chaves 91
Nós temos mesmo o “direito” de sermos o que quere- ta culpa pela espécie Homo sapiens. A “humanidade” de-
mos ser? Quem define esse querer? E quem nos conce- fine normas morais e o controle exercido pela sociedade
de esse direito? Como esses dispositivos nos marcam? O deixa marcas em nossos corpos biológicos, e não é à toa.
que deixamos (ou não) desencadear em nossas ações?
Por que queremos tanto ser “perfeitos e bonitos”? A O controle da sexualidade e da violência possibilita a
quem queremos agradar? Vale tudo pra ser aceito? Por disciplina que Foucault (1976) descreve como uma téc-
nós ou pelo “outro”? nica de gestão dos homens, de exercício de poder, com
o intuito de controlar suas multiplicidades, utilizá-las ao
Diz um ditado que “a única certeza que temos na vida é máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua ati-
a nossa morte”. Será? O ser humano foi construindo sua vidade, graças a um sistema de poder suscetível de con-
história entre a satisfação de suas necessidades biológi- trolar esses homens, com o olhar hierárquico, e sanções
cas, de seu corpo físico, e de suas necessidades cogniti- normalizadoras. As instituições lançam discursos sobre o
vas em dar um sentido para a sua existência. Em todas que é permitido ou não, legitimando os possíveis espa-
as sociedades formadas de que temos conhecimento, ços onde essa energia possa ser vivenciada “corretamen-
o “místico” sempre teve um lugar de destaque (contes- te” (por exemplo, nas igrejas: sexo só depois do casamen-
tado, na maioria das vezes...). Nas civilizações andinas to; lutas: só dentro de rings). Dessa forma, Albuquerque
pré-colombianas, a civilização grega e seu politeísmo, (2005, p. 19) afirma que
com o registro de sacrifícios humanos para a purifica-
ção ou mesmo manutenção de um “corpo social” sau- através dos tempos e das sociedades que se or-
dável e produtivo. ganizaram, o corpo não só se construiu como
possível e passivo espaço de dominação social
e se representou sob diversas formas e identi-
Os exemplos acima são do período antes de Cristo (a/c).
dades, mas também se apresentou como uma
Essa divisão tão banal que carregamos em nosso calen- dinâmica fonte geradora de ideias e estados
dário, que marca nosso “tempo”, marca também nossos somáticos capazes de realizarem grandes trans-
corpos. Os anos que se inauguram depois de Cristo (d/c) formações na sua história.
são de predomínio monoteísta, com um Deus externo à
nós ao qual devemos a nossa própria criação. São mais Como sabemos, a transição entre as formas de se pensar
de mil anos de hegemonia de ideias como a de que que se pretendam hegemônicas não acontecem em har-
nossos corpos estão aqui na terra para aprender a ser monia. Especificamente sobre a passagem entre polite-
um “espírito iluminado”, com passagem garantida para ísmo e monoteísmo se deu em meio a muita violência e
o reino de Deus, caso se cumpra os mandamentos por repressão, assim como a sua manutenção durante todos
Ele estipulado. Os rituais ascéticos, observados em várias esses séculos3. Tanta repressão, em algum momento “ex-
religiões, que incluem autoflagelo, jejum, abstinências, plode”. A era medieval, que dominava a forma de pensar
são manifestações da negação do corpo biológico, ex- o mundo, de produzir conhecimento foi aos poucos sen-
pressam em sentimentos de culpa pelos “desvios” morais do substituída pela ciência, com suas pretensas verdades
praticados (afinal, a carne é fraca!), que marcam bem a absolutas, universais e irrefutáveis, graças ao caminho,
visão dicotômica corpo/alma. que até hoje se pensa de infalível, o método científico.
Assim sendo, nossos corpos biológicos seriam como pri- O contexto histórico é fundamental para que se entenda
sões, e o ambiente natural (e toda a “natureza” presente as mudanças que acontecem, e embora saibamos que
em nossos corpos) deveriam ser negados, pois seriam não se possa creditá-las apenas à nomes específicos,
impuros. Como exemplo temos os impulsos sexuais e para a epistemologia das ciências podemos identificar
de agressividade, encontrados como comportamentos uma tríade que, em meados do século 17 inauguram a
naturais de autopreservação em boa parte das espécies Ciência Moderna, na verdade, o nascimento da Ciência
existentes no planeta, mas que são vivenciadas com mui- como a conhecemos hoje. Vamos conhecer um pouco do
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que três autores, cujas ideias são consideradas pilares da os sentidos julgam somente o experimento e o
ciência moderna, escreveram. experimento julga a natureza e a própria coisa.
(BACON, 1984, Aforismo L)
sutis. Ao corpo estava relegada a função de obedecer às biologia que recai a responsabilidade de se trabalhar
regras e comandos da razão, já que é da natureza do ho- (conceitualmente) o corpo humano. Nesses espaços o
mem ser composto de espírito e corpo. que se verifica é um reflexo de toda essa história, presen-
te no esquartejamento do corpo, tanto separado nas dis-
O pensamento Racionalista, com a razão predominando ciplinas, quanto desconsiderado como parte integrante
na construção do conhecimento científico, já era bem de um indivíduo (o aluno não é só uma mente cognitiva
aceito quando os escritos de Augusto Comte foram lan- que apreende informações). Adad (2004) nos lembra que
çados. Em seu livro “O discurso sobre o Espírito Positivo”, na verdade, conhecemos algo é com o corpo inteiro, que
publicado em 1848, pretendia instaurar uma ordem ao é multirreferencial, usando todos os sentidos (cheiros,
avanço da consciência e da razão humana, aplicando o sons, olhares, toques...). São apenas cinco os nossos sen-
método científico predominante (respaldado pelas ciên- tidos? Estariam eles encerrados em seus respectivos ór-
cias “exatas, duras”) à sociedade, e o caminho para esta gãos? Há gosto no cheiro? Música nos olhares? Sabores
ordenação social estava na educação de massa. nas cores? Nos toques? Se toque!
A razão humana passou a ser considerada o centro, e o na- Mas logo no início do século XX o mundo dá pistas de
tural, algo a ser objetificado e dividido para que com seu que a sociedade “ordenada e iluminada” ainda demons-
domínio se chegasse ao ‘progresso da humanidade’. À luz tra traços de barbárie, com as grandes guerras mundiais
desse contexto histórico percebemos que toda essa frag- que se deflagram, e se reflete no meio acadêmico. Fica
mentação do conhecimento se materializa no processo de claro também a não neutralidade na produção de conhe-
disciplinarização, tanto dos conceitos científicos como do cimento pela ciência, quando avanços são alcançados se
“corpo humano”. Nossa forma de organização dos conte- utilizando como “objetos de estudo” os “corpos com al-
údos e de construção de conhecimento ainda segue essa mas inferiores” dos judeus presos na Alemanha, no jul-
lógica, propõe uma forma mecanicista de ver e se relacionar gamento de Hitler. E a ciência, enquanto prática social
com o mundo, com a mente comandando uma máquina, reverbera esse discurso.
que é o corpo humano. Basta nos lembrarmos das analo-
gias feitas no ensino básico, com a justificativa de que en- Começamos citando Gaston Bachelard, especificamente a
tenderemos melhor como nosso próprio corpo funciona: o obra “Formação do Espírito Científico”, lançado em 1938,
pulmão comparado ao fole, o coração a uma bomba, o cé- que fala sobre os obstáculos epistemológicos que impe-
rebro é o computador que processa as informações, e por ai dem a ciência de progredir, que diferente dos ídolos de
seguimos, maquinizando nossas relações, sempre buscan- Francis Bacon, esses estão dentro da gente, não fora. Um
do referencias fora da nossa percepção de si. desses obstáculos, relevante neste artigo, é do Conheci-
mento unitário e pragmatismo, quando se tinha a crença
Era uma tentativa de ruptura com o domínio do pensa- de uma unidade harmônica do mundo (reinos animal,
mento metafísico, e o sujeito passa a ser ele também ob- vegetal e mineral). No corpo humano ainda se demonstra
jeto, e em relação ao corpo, só se reforça a visão de frag- esse pragmatismo ao eleger funções únicas e definitivas
mentação já presente em civilizações pré-cristãs, apenas para as partes de corpo (exemplos: ouvido serve para escu-
se utilizando de outros argumentos para o domínio dos tar, desconsiderando-se sua participação no equilíbrio e
aspectos naturais. Não é simples superar as ações eclesi- orientação geográfica), e assim aquele corpo do período
ásticas e cartesianas, que durante séculos se voltaram a racionalista cartesiano, que buscava romper com a ideia
fragmentar o mundo e o corpo, no intuito de conhecê-lo de Um Deus, acabava por se aproximar, pois essa máquina
para dominá-lo, em que o conhecimento científico racio- perfeita que era o corpo humano trazia consigo a necessi-
nalista prevaleceu/prevalece sobre a subjetividade. dade de alguém pra dar a partida, acionar o botão.
Quando pensamos no ensino básico, em sua estrutura Os discursos existentes em nossa sociedade ainda refor-
curricular, é sobre as disciplinas escolares de ciências e çam o pensamento moderno, mas como Foucault (2006)
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nos diz, existe uma instabilidade entre as diversas ins- vão inscrevendo em nossos corpos marcas, produzindo
tâncias que permitem que sempre se esteja a construir modos de subjetivação. Foucault (2010, p.16), diz que “o
novos discursos. Como exemplo, temos os discursos pro- meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas
feridos por Ilya Prigogine e seus colaboradores, que ao é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais
descrever o Princípio da Incerteza e as Estruturas Dissipa- ou utópicos”, o corpo é ele mesmo uma construção so-
tivas “materializam” em nível molecular todas as discus- cial, histórica, cultural. O corpo é dito.
sões subjetivas sobre pontos a se romper no paradigma
moderno. Enfatiza que Somos inventados?
Outro autor contemporâneo que nos fala de corpos é Hoje vivemos uma estreita relação com os adventos tec-
Michel Foucault, que, diferente de Descartes, diz que nológicos, não mais como ferramentas, e sim como uma
o corpo não é algo fixo, dado pela natureza. Ele existe extensão de nosso próprio corpo (óculos de grau, marca-
na história, é constantemente produzido, é uma “super- -passo, braços/pernas mecânicas) e indo além, estendemos
fície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a virtualmente nossa vida, nossas relações, nas várias redes
linguagem os marca e a ideias os dissolvem), lugar de sociais que nos possibilitam uma vida paralela, mas nem
dissociação do EU (que supõe a quimera de uma uni- por isso menos real. O filme “Transcendence5” nos põe a
dade substancial) volume em perpétua pulverização” pensar numa outra possibilidade (um pouco assustadora)
(FOULCAULT, 1998, p. 15). A busca por uma “essência do de superação da tecnologia. O corpo biológico volta a ser
humano” não chegará a uma resposta, pois o corpo é in- percebido como um estorvo (se é que deixou de ser), pois
vestido de historicidade. Os dispositivos institucionais é limitado, adoece, fenece. Liberdade para a mente ser eter-
96 “ESSE CORPO É MEU?” CORPOS HUMANOS NAS/DAS CIÊNCIAS
na poderia vir, por exemplo, através de um uploud para o mente (e realmente) pequeno, os corpos são encarados
computador. Ou seja, até a única certeza (a morte, proferida como espaços de criação e demonstração de arte (cor-
pelo ditado popular) está pra nos ser tirada? As ideias secu- pos esculpidos, desenhados, adornados). Ortega (2008,
lares de René Descartes mais vivas do que nunca... p. 13) encara “o que se vem chamando de culto ao cor-
po”, comoum paradoxo “de que o aumento de contro-
A ideia de um ‘ciborgue’(mescla de humano e máquina) lee atenção sobre o corpo produz uma maior incerteza
nos remete à filmes de ficção científica, mas para Kunzru sobre ele”. E você, leitor, está satisfeito com seu corpo?
(2013, p.23) ele está bem vivo, “a era do ciborgue é aqui O que mudaria nele? E por quê? Quem inventou o argu-
e agora, onde quer que haja um carro, um telefone...não mento que sustenta essa vontade?
tem haver com quantos bits de silício temos sob nossa
pele ou com quantas próteses nosso corpo contém”. Tem E aí? Sabemos quem somos? Nós queremos perceber
haver com o fato de olharmos à nossa volta e perceber- essa rede capilar de poder da qual participamos, que
mos que a tecnologia “não existiria sem a ideia do corpo criam discursivamente nossas necessidades e vontades?
como uma máquina de alta performance”. Ou preferiremos o espaço “seguro” possibilitado pelo
benefício da ignorância?O conhecimento científico nos
Busca-se um corpo-padrão-perfeito, nas redes sociais possibilita sapiência? Em que difere um sábio de um ig-
fervilham egóicas fotos de corpos orgulhosamente trans- norante? O que é o “eu”? Se somos permeados por outros,
formados, seja pela atividade física, seja por processos constituídos por outros, quem sou eu? Se não outros? Se
cirúrgicos, ou uso de “alimentos” artificiais (a propósito, não a “digestão” de todos os outros? Seremos esses cor-
por que é tão difícil querer fazer atividade física? Quando pos “loucos, dementes, feios”, que não se encaixam nos
surgiu a necessidade de um tempo específico para movi- discursos proferidos pela maioria? Ou construiremos ou-
mentar o corpo? Será que em comunidades tradicionais tros discursos, no qual as múltiplas possibilidades pos-
há esse tempo? Ou o movimento acontece durante todo sam ter voz? Nosso corpo, nossa casa?
o dia? Com os cuidados de suas próprias necessidades e
das necessidades coletivas?). Quem é você!? Este corpo é seu!?
Toda essa corrida pela perfeição fomenta (ou é ela fo- Você decide! Decide?
mentada?) avanços tecnológicos no qual se observa “de
um lado, a mecanização e a eletrificação do humano; Notas
de outro, a humanização e a subjetivação da máquina”
1 Banda: Cidadão Instigado/ Música: Você e eu/ Álbum: O Ciclo Da
(TOMAZ TADEU p.12). O autor ainda complementa nos Dê.Cadência, lançado em 2002
chamando atenção para um fato irônico,“a existência do
2 Banda: Cidadão Instigado/ Música: O verdadeiro conceito de um pre-
ciborgue não nos intima a perguntar sobre a natureza conceito/ Álbum: O Ciclo Da Dê.Cadência, lançado em 2002
das máquinas, mas, muito mais perigosamente, sobre a 3 Sobre esse tema sugiro o filme Ágora, lançado em 2009, sob direção
natureza do humano: quem somos nós?” (Idem, p. 11). de Alejandro Amenábar.
Se olharmos para homem/máquina, como mais uma 4 Banda: Cidadão Instigado/ Música: O nada/ Álbum: UHUUU, lançado
em 2009.
dualidade, assim como toda dualidade não se encerra nos
5 Filme lançado em 2014, sob direção de Wally Pfister.
pólos, e nem são opostas. Essa é uma realidade de múlti-
plas possibilidades! Assusta, pois nos faz questionar, “nos
estimula a repensar a subjetividade humana; sua realida-
Referências Bibliográficas
de nos obriga a deslocá-la” (Ibidem, p. 13). Pra onde?
Recebido em 09/04/2015.
Aceito em 20/05/2015.