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D a v i d B e r I i n s k i

c / o a / a o f H t / n o

A IDÉIA QUE GOVERNA O MUNDO


“Duas IDÉIAS b r i l h a m sobre o veludo
do joalheiro. A primeira é o cálculo, a
segunda, o algoritmo.” Assim começa
este livro de David Berlinski. O cálculo
é a idéia que tornou a ciência moderna
possível —e o algoritmo, que Berlinski
brilhantemente descreve aqui, é a idéia
de um procedimento efetivo que tomou
possível o mundo moderno. Depois do
bem-sucedido A Tourofthe Calculus, O
advento do algoritmo completa a monu­
mental tarefa de Berlinski: explicar pa­
ra o leitor comum as idéias que criaram
nosso mundo.
Enquanto o cálculo é um assunto
que intimidou gerações de estudantes,
o algoritmo é uma idéia relativamente
nova, virtualmente desconhecida exce­
to pelos amantes da informática. As­
sim, para os milhões de pessoas cujas
vidas são regularmente transformadas,
enriquecidas e reguladas pelos compu­
tadores, aqui temos a história da busca
e a descoberta do algoritmo — o con­
junto de instruções que faz funcionar
os computadores. Tão simples quanto a
primeira receita e tão impalpável quan­
to o quark ou o glúon, o algoritmo foi
descoberto por uma sucessão de lógicos
e matemáticos que trabalhavam sozi­
nhos e na obscuridade na primeira me­
tade do século XX. Esses homens são os
patriarcas dos computadores. Sua his­
tória, contada de modo muito elegante,
e suas descobertas, explicadas de ma-
neira bastante clara, fazem de O adven­
to do algoritmo o livro do Gênesis da
revolução dos computadores. Leibniz,
Gõdel, Hilbert, Turing: mesmo que vo­
cê esteja familiarizado com alguns des­
ses nomes, depois de ler O advento do
algoritmo vai conhecer esses cientistas,
com preender sua genialidade e apre­
ciar a grandeza teórica assim com o a
grandeza prática do algoritmo.

WRITERS HOUSE

D a v id B e r l in s KI é autor de três ro­


m ances e cinco obras de não-ficção.
O mais recente é o best-seller A Tour
o f the Calctáus. Berlinski doutorou-se
pela Universidade de Princeton e con ­
tribui regularmente na revista C om ­
mentary. Seus ensaios sobre o darwi-
nismo e o “big-bang” ficaram famosos.
Também escreve para a Forbes ASAP.
M ora em Paris.
D avid Berlinski

O ADVENTO DO ALGORITMO
A I DÉI A QUE GOVERNA O MUNDO

tradução:
Leila Ferreira de Souza Mendes

©
i im o ií/i
GíOBO
C a p í t u l o 6

Gõdel em Viena, 154

C a p í t u l o 7

A disciplina perigosa, 189

C a p í t u l o 8

Fuga para a abstração, 199

C a p í t u l o 9

A máquina imaginária, 229

C apítulo 10

Pós-escrito, 249

C apítulo 11

O pavão da razão, 258

C a p í t u l o 12

Tempo versus tempo, 269

C a p í t u l o 13

Um artefato da mente, 308

C a pítu lo 14
Um mundo de muitos deuses, 338

C a p í t u l o 15

A via-crúcis das palavras, 374

E pílo g o
A idéia de ordem em Key West, 403

A g r a d e c i m e n t o s , 407

Í n d i c e r e m i s s i v o , 409
Copyright © 2000 by David Berlinski
Copyright © da tradução 2002 by Editora Globo

Título original:
The Advent o f the Algorithm

Nota ao leitor: Esta é uma obra erudita. O autor entrelaçou no texto


histórias que envolvem pessoas e acontecimentos imaginários para que
o leitor possa melhor apreciar as argumentações técnicas. Ou para
que possa suportá-las. Todas essas invenções do autor começam
e terminam com o seguinte símbolo: ü ü S ü

Os algoritmos do programa caixa do capítulo 12 são de A n introâuction to


Computer simulation methoch; applications to physical systems, vol. 2, de Harvey
Gould e Jan Tobochnik, Copyright 1988 por Addison Wesley Longman Inc.
Reproduzido com permissão.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada
ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico,
fotocópia, gravação etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de bancos
de dados, sem a expressa autorização da editora.

Preparação: Maria Sylvia Castro de Azevedo Corrêa


Revisão: Denise Lotito e Beatriz F. Moreira
índice remissivo: Luciano Marchiori
Capa: inc. design editorial
Foto de capa: Detalhe de Retrato de Frei Luca Pacioli
com instrumentos matemáticos, de Jacopo de Barbari
(século XV), Archivo Fotográfico, S/A Corbis

l 2 edição, l - reimpressão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP )


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Berlinski, David, 1942-


O advento do algoritmo : a idéia que governa o mundo / David
Berlinski ; tradução Leila Ferreira de Souza Mendes. - São Paulo :
Globo, 2002.

Título original: The advent of the algorithm


ISBN 85-250 -3 5 3 9 -4

1. Algoritmos I. Título

02-2171 C D D -5 1 1.8

índice para catálogo sistemático:


1. Algoritmo : Matemática 511.8

Direitos de edição em língua portuguesa, para o Brasil,


adquiridos por Editora Globo S. A.
Av. Jaguaré, 1485 - 05346-902 - São Paulo - SP
www.globolivros.com.br
la mémoire de mon ami
M. R Schützenberger
1921-1996
Um amigo visitovi Samuel Johnson, quando ele
estava à morte, e ao ver que ele não tinha apoio,
colocou um travesseiro sob sua cabeça. - Isso só vai fazer -
disse o dr. Johnson —o que vim travesseiro pode fazer.
S u m á r i o

P r e f á c i o

O burocrata digital, 11

I n t r o d u ç ã o

O veludo do joalheiro, 15

C a p í t u l o 1

O mercado de esquemas, 23

C a p í t u l o 2

Sob o olhar da dúvida, 46

C a p í t u l o 3

Bruno, o Meticuloso, 75

Capítulo 4
(l;iiT<‘^:im(*nl<> <• (I(*s;isIr<\ (^S

C a p it u l o ^
I IíIImtI o comnndo, I
C a p í t u l o 6

Gõdel em Viena, 154

C a p í t u l o 7

A disciplina perigosa, 189

C a p í t u l o 8

Fuga para a abstração, 199

C a p í t u l o 9

A máquina imaginária, 229

C apítulo 10

Pós-escrito, 249

C apítulo 11

O pavão da razão, 258

C a p í t u l o 12

Tempo versus tempo, 269

C a p í t u l o 13

Um artefato da mente, 308

C a pítu lo 14
Um mundo de muitos deuses, 338

C a p í t u l o 15

A via-crúcis das palavras, 374

E pílo g o
A idéia de ordem em Key West, 403

A g r a d e c i m e n t o s , 407

Í n d i c e r e m i s s i v o , 409
P refácio

O BUROCRATA DIGITAL

HÁ MAIS DE SESSENTA ANOS, lógicos matemáticos, ao definirem pre­


cisamente o conceito de algoritmo, deram substância à antiga con­
cepção humana de um processo eficaz de cálculo. Essas definições
levaram à criação do computador digital, um exemplo interessante
de pensamento a subjugar a matéria para seus próprios fins.
O primeiro computador surgiu nos anos 1940 e, como certos
insetos em estado de crisálida, materializou-se primeiro como uma
curiosidade e, depois, nos anos 1950 e 1960, como um espectro.
Em uma famosa caricatura no New Yorker, um computador, quan­
do indagado sobre a existência ou não de um Deus, respondeu que
agora existia um. Ainda temos a impressão de que, como o apren­
diz de feiticeiro, apropriamo-nos de um invenlo que não compreen­
demos nem podemos eonl rolar, m;r;, cm iosamenle, a medida que o
computador digital lieava mais podeioso, lambem :;e lomava menos
intimidador. Depois do desapaieeimenlu de varia:; de suas encar-

() ADVI, N'1'o DO ALGORITMO 11


coisa de nossa experiência, se parece com um nnii)>iii:ul<>i no mvcl
da organização molecular. A m etáfora é inevitável r pouco*. Inolo
gos conseguiram resistir a ela, por bons motivos. N d iln m u ouii.i
metáfora transm ite as complexidades da replicação, tmnsci ir.io <•
tradução celulares; e, que saibamos, nada além do algoritmo ron
segue dar conta das m oléculas biológicas.
Essas reflexões podem indicar que o computador digital não
representa a brilhante novidade na experiência hum ana que geral­
m ente se imagina. Em bora verdadeira, esta conclusão é, evidente­
m ente, tranqüilizadora demais para ser totalm ente verdadeira. Há
uma considerável diferença entre a execução de um algoritmo por
uma burocracia social ou mesmo por uma célula bacteriana e a
execução de um algoritmo por um computador digital. Depois de
levarem o conceito de algoritmo à autoconsciência, os lógicos tor­
naram possível a criação de algoritmos de poder, elegância, concisão
e confiabilidade inigualáveis. Um computador digital pode muito
bem fazer o que um burocrata fazia, mas o faz com incrível rapi­
dez, já que possui uma habilidade notável de comprimir o lento
I luxo do tempo. Isto fez toda a diferença do mundo.
Quinhentos anos se passaram desde que Fernão de Magalhães
deu a volta ao mundo, e o sol ainda se levanta como um raio a leste
da C hina; no entanto, a velha e ranzinza percepção física de um
mundo que deve ser circunavegado fisicam ente para que ocorra
uma troca entre seres humanos — isto desapareceu. A aurora beija
os continentes um por um e, ao fazê-lo, uma série de com uni-
r.içõcs codificadas se precipita pela superfície da Terra, retransm i-
licla de ponto a ponto por cabos de fibra ótica, ou saltando sob
forma triangular da Terra para satélites síncronos, serenos no céu
•.cm nuvens. Há boas notícias em Lisboa e más notícias em Seul,
ou vice-versa; m ontanhistas chegam ao cum e do K2, mandam mrn

O ADVENTO 1)0 A I . C O H I I M <» / !


sagens para suas esposas temerosas e depois vão dormir; laptops
emitem sinais até extinguir as baterias (e seus donos); existem
dados por toda parte, e informações sobre todos os assuntos imagi­
náveis: o modo como as passas são feitas no Sudão, a história da últi­
ma dinastia Sung, números de telefone de sadomasoquistas de Los
Angeles, e fotos também. Um homem pode ser açoitado, flagelado
e revistado sem jamais sair do ciberespaço; pode satisfazer a curio­
sidade ou os apetites, 1er muita literatura francesa, declinar verbos
em sânscrito ou examinar uma edição bilíngüe da Ilíada e desco­
brir a palavra grega que significa “greva” ou “afligir”; pode explorar
as águas costeiras de Cap Ferrat —meio acinzentadas por causa da
poluição, pelo que me lembro —ou ver o local onde estão enterrados
tesouros no mar cor de vinho escuro ao longo da costa de Creta.
Pode providenciar sua própria cremação pela Internet ou procurar
remédios para doenças obscuras; pode entrar em contato com assem ­
bléias de bruxas da Carolina do Sul, ou trocar mensagens com gru­
pos de ch at que acreditam que a princesa Diana foi assassinada de
acordo com instruções da Casa de Windsor, e que a própria rainha-
mãe, velha e demente, deu a ordem que selou seu destino. A des­
peito de todos os grandes sonhos investidos em vão no computador
digital, mesmo assim é verdade que, desde que os arquitetos da
Constituição norte-americana levaram a sério a idéia de que todos os
homens são criados iguais, nenhuma outra idéia transformou tanto as
condições materiais da vida, as expectativas da raça humana.

// I hn'iil lU'ilniski
I ntrodução

O VELUDO DO JOALHEIRO

DUAS IDÉIAS BRILHAM sobre o veludo do joalheiro. A primeira é o


cálculo, a segunda, o algoritmo. O cálculo e o rico corpo de análise
m atem ática à qual ele deu origem tornaram a ciência m oderna pos­
sível; mas foi o algoritmo que tornou possível o mundo moderno.
As duas idéias são totalmente diferentes. O cálculo serve à
visão majestosa da física matemática. É uma visão na qual se mostra
que os verdadeiros elementos do mundo são seus componentes
elementares: partículas, forças, campos, ou mesmo uma estranha
combinação amalgamada de espaço e tempo. Usando a linguagem
da matemática, um único conjunto de leis temerosamente com­
primidas descreve sua natureza secreta. O universo que emerge desta
descrição é alienígena, indiferente aos desejos humanos.
A grande era da física matemática acabou. O esforço de trczcMi-
los anos para representar o mundo material em termos matcm.íü
cos se exauriu. A compreensão que devia ter proporcionado

O ADVENTO 1)0 A I.C O IU IM m / '•


infinitamente mais próxima do que estava quando Isaac Newton
escreveu sua obra, no fim do século XVII, mas ainda está infinita­
mente distante.
Uma pessoa envelhece enquanto outra nasce, e se o tempo dei­
xa de lado uma idéia, ele o faz acolhendo outra. O algoritmo agora
ocupa um lugar central na nossa imaginação. É a segunda grande
idéia científica do Ocidente. Não há uma terceira.
Um algoritmo é um 'procedimento eficaz, um modo de fazer
uma coisa em um número finito de passos discretos. A matemáti­
ca clássica é, em parte, o estudo de determinados algoritmos. Na
álgebra elementar, por exemplo, os números são substituídos por
letras para que se alcance um certo grau de generalidade. Os sím­
bolos são manipulados por meio de regras seguras, práticas. O pro­
duto de (a + b) e (a + b) é obtido da seguinte forma: prim eiram ente,
a é multiplicado por si mesmo; como segundo passo, a é multipli­
cado por b duas vezes; e, em terceiro lugar, b é multiplicado por si
mesmo. Os resultados são então somados. O resultado é a 2 + 2ab
+ b 2, e é só. Uma máquina poderia executar os passos apropriados.
Uma máquina pode executar os passos apropriados. Não envolve
perícia. E a perícia não é necessária.
No mundo de onde surge a matemática e para o qual o mate­
mático, como nós, deve voltar, um algoritmo, por assim dizer, é um
conjunto de regras, uma receita, uma prescrição para a ação, um guia,
uma diretiva concatenada e controlada, uma intimação, um código,
um esforço feito para jogar um complexo xale verbal sobre o caos
inarticulado da vida.
M eu caro rapaz, começa Lorde Chesterfield, dirigindo-se a seu
filho morganático, em uma série extraordinária de cartas notavel­
mente detalhadas, sensatas, espirituosas e, vez ou outra, ternas, com
homilias e exortações transmitidas em inglês, francês, latim e grego.

I (> / ) < / r /’</ l í c r l i n s k i


O caro rapaz é exortado a lim par bem os dcnírs, lardi ;i h > u|>:i de
cama, administrar bem suas finanças e a disciplinar seu y;<*mo; r
lembrado de que precisa cultivar as artes sociais c adíjuitii n ;n (<• da
conversação e os elementos da dança; de que deve, acima dr liidn,
aprender a agradar. As elegantes cartas prosseguem interminável
mente, em um tom no mínimo pesaroso, já que Lorde Chcslerfield
devia saber que estava pregando no deserto, pois seu filho era um
jovem estúpido, cheio de acne, um tanto apalermado, cujo desejo
era de que seu refinado pai, pelo amor de Deus, parasse de ficar
martelando persistentemente em meio a seu impenitente silêncio.
O mundo que o algoritmo torna possível é por natureza inver­
so ao mundo da física matemática. Seus objetos teóricos funda­
mentais são sím bolos, e não múons, glúons, quarks ou o espaço e o
tempo fundidos em um nó flexível. Algoritmos são artefatos huma­
nos. Pertencem ao mundo da memória e do significado, desejo e
propósito. A idéia de algoritmo é tão velha quanto as montanhas
erodidas, mas é também astuta e se disfarça sob milhares de formas
protéicas. Com sua inteligência imponente, o filósofo e matemático
do século XVII Gottfried Leibniz penetrou longe no futuro, e viu
maquinas universais de calcular e estranhas linguagens simbólicas
(‘scritas em uma notação universal; mas Leibniz era um escravo do
lempo assim como seu servo, incapaz de aguçar suas visões mais
profundas que, como cidades vistas em sonhos, se elevam, mantêm
Ji lorma por um instante e depois desaparecem irrecuperavelmente.
Apenas no século XX é que o conceito de algoritmo foi levado
totalmente à consciência. A tarefa foi iniciada há mais de sessenta
.mos por um quarteto de brilhantes lógicos matemáticos: o sutil c
e n i g m á t i c o Kurt Gõdel; Alonzo Church, sólido e imponente como
u ma catedral; Emil Post, sepultado, como Morris Raphael Cohen,
no C i t y College de Nova York; e, é óbvio, o excêntrico e t o t a l m e n t e

O ADVENTO DO A I . <’. <> 11 I T M <» /


original A. M. Turing, cujo olhar perdido parece vagar ansioso pela
segunda metade do século XX.
Os matemáticos amam a matemática porque, como as Graças
sobre as quais escreveu Safo, o assunto tem espinhos como as rosas
silvestres. Se a beleza governa a alma dos matemáticos, a verdade
e a certeza lembram a eles seu dever. No fim do século XIX, mate­
máticos curiosos a respeito de seus fundamentos se perguntaram
por que a matemática era verdadeira e se era exata e, para seu
assombro, descobriram que não podiam responder e não sabiam.
Outros matemáticos profissionais continuaram a trabalhar na mate­
mática, é claro, mas o fizeram com a sensação de que havia uma
figura sinistra rastejando às escondidas na escadaria dos eventos.
Vários esquemas redentores foram introduzidos. Alguns matemá­
ticos, como Gottlob Frege e Bertrand Russel, argumentaram que a
matemática é uma forma de lógica e herdeira, portanto, de sua pre­
sumível exatidão; seguindo David Hilbert, outros argumentaram
que a matemática era um jogo formal jogado com símbolos for­
mais. Cada um dos esquemas parecia incorporar uma parte da ver­
dade, mas nenhum deles incorporava toda a verdade. Flagrados
entre a crise e suas várias soluções, os lógicos se viram forçados a
organizar um novo mundo que rivalizasse com o mundo abstrato,
astuto e contínuo das ciências físicas, e o trabalho deles transfor­
mou o conceito de algoritmo, que era familiar e intuitivo, mas irre­
mediavelmente obscuro, em um conceito formal e preciso.
Essa história é rica em imprevistos. Diferentemente de Andrew
Wiles, que passou anos buscando uma prova do último teorema de
Fermat, os lógicos não se propuseram a buscar o conceito que encon­
traram. Foram apenas sensíveis o suficiente para perceber o que en­
contraram. Mas o que encontraram não era exatamente o que
buscavam. No fim, a agenda com a qual se comprometeram não

/ .S’ I Kt \ ' i i l l l r r l i n s k i
foi cumprida. No início do novo milênio, ainda na<> *.al>rm<>'. |><>i <|uc
a matemática é verdadeira e se é exata. Mas sal><*m<>\ qur na<>
sabemos de um modo incomensuravelmente mais rico d<> qur anic.,
E descobrir isso tem sido um feito notável — que csla cniir os
maiores e menos conhecidos da era moderna.

O ADVENTO DO A l . C n l l l I l\|n I 1*
Nas palavras do lógico:
um algoritmo é
um m étodo fin ito ,
escrito em um vocabulário sim bólico fix o ,
regido por instruções precisas,
que se m ovem em passos discretos, 1, 2, 3,
cuja execução não requer insight, esperteza,
intuição, inteligência ou clareza e lucidezy
e qvie mais cedo ovi mais tarde chega a um fim .
1

O MERCADO DE ESQUEMAS

ALGUNS FILÓSOFOS ANALISAM A SI MESMOS, e alguns o tempo em que


vivem; ainda outros forjam uma aliança com o futuro, escrevinhando
seus segredos tarde da noite e sussurrando com as almas insubstanciais e
impacientes que se reúnem à porta de seus gabinetes, loucas para nas­
cer. Os anos passam e a poeira do tempo se acumula. Um novo mundo
é feito. As coisas zunem, estalam e chiam. Há o estrondo de pratos
caindo e risos na escuridão. Calcanhares estalam na calçada. Táxis ro­
dam e buzinam, e caminhões da limpeza urbana percorrem barulhentos
as ruas da cidade. O céu está cheio de pulsos eletromagnéticos. O sol ver­
melho em combustão lenta se insinua no horizonte. Despertadores tocam,
repicam ou soam. Rádios irrompem em palavrório e mesmo assim um
jilamento sedoso de memória prende o presente ao passado para qu<\
parando por apenas um instante, vejamos a nós mesmos refletidos n<>\
olhos de um erudito, o sorriso tranqüilo no retrato consciente e em pu.:.

O ADVENTO DO A I. O <>u | | M . i
O lacaio arranha discretamente a porta da biblioteca. Gottfried
von Leibniz, antes Gottfried Leibniz, e seu pai, muito antes, Leibnütz,
com o von vindo sabe-se lá de onde, pode ser visto agora entrando
na grande sala de audiências da história. Em um gesto fluente de
quem tem prática, inclina-se ligeiramente para a frente, com o pé
direito à frente do esquerdo em diagonal, e faz um meio círculo
com o braço, do ombro até o quadril. Sua tranqüila vitalidade
emana como o calor de um fogão quente.
Leibniz nasceu em 1646, em Leipzig, no que hoje é a Leibniz-
strasse, perto do Rosenthal, o vale de rosas em torno do qual fica
a cidade. Sua alvoroçada entrada em cena aconteceu dois anos antes
que a Paz da Vestfália desse um fim à Guerra dos Trinta Anos; e ao
contrário de tantos de seus conterrâneos, regularmente vítimas aos
trinta ou quarenta e poucos anos de febre tifóide, da varíola ou de
outra medonha infecção ulcerativa qualquer, morreu em sua cama
na idade relativamente madura de setenta anos, depois de passar
as últimas horas de vida discutindo alquimia com o médico par­
ticular. O soberbo retrato pintado por Andreas Scheits que está no
Uffizi, em Florença, apresenta-o em indumentária palaciana, com
a seda brocada da camisa fechada no colarinho por um botão ador­
nado de jóias. Seu rosto é comprido mas não fino. O nariz é m ajes­
toso, vincando o rosto como uma cordilheira. Os olhos escuros são
dignos, ponderados e reflexivos.
A tranqüilidade do retrato destoa, é claro, do exuberante caos
e da desorganização de sua vida. Em seu período no palco europeu,
Leibniz viajou para toda parte e viu todo mundo, cruzando o con­
tinente várias vezes, dando ouvidos à algaravia de seus compa­
nheiros de viagem (quando não estava sendo transportado em seu
coche particular), comendo a comida rústica das tavernas, e per-
imitando em estalagens rudes e enfumaçadas de beira de estrada.
Ouando jovem, morou um tempo em Paris, onde travou relações
rom os filósofos Antoine Arnauld e Nicolas Malebranche e tomou
aulas de matemática com o físico holandês Christian Huygens. Pre­
senteado com aqueles zelosos hors d'oeuvres holandeses, enquanto
limpava os lábios Leibniz deve ter se dado conta de que se quisesse
chegar ao prato principal ele mesmo teria de prepará-lo. Como o
lez, estabelecendo-se em poucos anos como matemático de inco-
inum insight e capacidade. Em 1673, Leibniz cruzou o Canal da
Mancha em um iate para se apresentar à Royal Society, em Londres.
I\le havia dado a saber que sua máquina de calcular belamente feita
(li* madeira e bronze podia fazer multiplicações e divisões, assim como
somas e subtrações. Os ingleses estavam interessados, mas céticos.
A demonstração começou, mas, em um momento crucial, Leibniz foi
visto transportando para a mão o resto na operação de divisão.
Pedro, o Grande recebeu Leibniz na Rússia, e ele estava em
(’asa em todos os Estados e ducados alemães; foi amigo chegado,
ai<5 sua morte, da princesa Sofia da Prússia, tendo instruído a prin­
cesa em afetuosas cartas íntimas sobre as particularidades de seu
sistema filosófico. O cenário é irresistível: Leibniz escrevendo car­
ias com imenso cuidado, a digna senhora saindo apressada da corte
para lê-las em paz, tentando entender as substâncias e mônadas, ca­
tegorias, contingências, e o cálculo, esquadrinhando as cartas em
hiisca de seu calor humano. Escrevendo em francês ou no alemão
que adorava, ou no ágil e elegante latim que ele havia ensinado a
si mesmo aos oito anos, Leibniz manteve correspondência com
mais de seiscentos eruditos e uma vibrante presença no mercado.
( lonhecia todo mundo e todo mundo o conhecia, e se movia com
esl rondo pela matemática, pela filosofia e direito, história e projeto

O ADVENTO DC) A I . C O 11 I ï M ( )
de prensas hidráulicas, mineração de prata, geografia, teoria política,
diplomacia, construção de moinhos de vento, horticultura, organiza­
ção de bibliotecas, submarinos, bombas d*água, relógios e genea­
logia — esta última, uma tarefa que lhe foi imposta pela Casa de
Brunswick, pelo injustificado interesse de sua gorducha e gotosa
princesa pelos mirrados antepassados. Ele escrevia continuamente,
mas raramente para publicação, e embora seus ensaios, epístolas e
anotações noturnas sejam com freqüência espasmódicos e incom ­
pletos, o gênio que revelam tem a lucidez da água corrente.
Junto com seu rival, o reservado e desconfiado Newton, Leibniz
descobriu (ou inventou) o cálculo, a ferramenta matemática indis­
pensável à revolução científica, e inventou também uma notação
brilhante e flexível para suas operações fundamentais. Assim, para
indignação de Newton, ele casualmente colocou uma reluzente refe­
rência a si mesmo no fluxo do tempo. Descobriu a equação cor­
reta para a curva catenária (entre outras), expressando em termos
algébricos o modo sinuoso como um cabo de ferro suspenso entre
dois suportes afunda e se eleva em um arco côncavo; brincou com
brilhantismo com séries infinitas, as jóias da análise; e duzentos
anos antes que Poincaré atacasse os encanamentos e a alvenaria, ele
assentou as bases da topologia matemática, vendo (ou percebendo)
que quando medidas quantitativas de distância e grau são retiradas
da geometria, o que sobra é uma ciência pura da forma, um catálo­
go de deformações contínuas (como quando o rosto de um atleta
coreano é metamorfoseado em uma árvore em floração naqueles
bizarros anúncios de tênis de corrida).
Os filósofos conhecem Leibniz como o criador de um fantás­
tico e elaborado sistema metafísico, em que o universo se reflete
em cada uma de suas mônadas. Esse esquema ainda é de algum
interesse e se livrou de ser considerado uma tolice porque parece

26 D avid B erlin ski


estar sempre se equilibrando na cúspide de alguma rcvelaçno *.<*in
jamais despencar no abismo. Como Kurt Gõdel, o grande lóojeo do
século XX e seu parente ectoplásmico, Leibniz era um otimista, e
sua convicção de que o mundo não podia ser melhorado condita-
va com a opinião generalizada de que não podia ser piorado.
Este é o Leibniz que vemos em retrospecto, uma dinâmica
figura diurna, a maior e mais efervescente personalidade da Europa
continental de sua época, mas, diferentemente de Newton, na ver­
dade diferentemente de qualquer pessoa, Leibniz tinha uma
capacidade incomum de perceber as sombras por trás da substân­
cia de seus pensamentos; seus cadernos de notas revelam um
homem que lidava com problemas que mal conseguia descrever,
com a atividade de uma aguçada inteligência que adeja entre o
século XVII e o futuro distante. Eles revelam suas obsessões, os
assuntos aos quais voltava repetidamente conforme sua mente se
expandia e se desenvolvia. A idéia de algoritmo toma forma naque­
les cadernos, espanando a poeira dos séculos quando pela primeira
vez se move para o átrio da consciência humana.

O T O R N IQ U E T E DO LÓGICO

Curiosamente, é a lógica que atrai e prende a atenção de Leibniz,


e eu digo “curiosamente” porque no século XVII a lógica havia se
(ornado uma disciplina enclausurada no hábito e na conveniência,
uma ferramenta intelectual quase desapercebida, com os osso:;
embranquecidos pelo tempo. A lógica é a ciência do raciocínio eoi
reto —correto, como em certo, apropriado, indubitável, inevitável,

O ADVENTO DO A I. C <> lt I I M ' *


irrefutável, necessário, categórico; e ra c io c ín io , com o na passagem
de prem issa para conclusão, do que é pressuposto para o que é
inferido, ou do que é dado para o que é demonstrado. Foi
Aristóteles quem , no terceiro século antes de Cristo, observou e
depois deu nome às formas de argumentação, codificou inferências
e deu ao assunto sua forma característica — a obra da civilização.
A lógica aristotélica é categórica e, portanto, reflete a in te­
ração entre “todos” e “algum”, os dois term os de quantificação que
dão origem a quatro formas de enunciados:

Todos os As são B
N enhum A é B
Alguns As são B
Alguns As não são B .

As letras A e B funcionam com o sím bolos com uma m ensa­


gem variável, substituindo indiferentem ente qualquer objeto sen ­
sível: todos os h om en s são m ortais; nenhum a b a leia é p eix e; alguns
segredos são sinistros; alguns sinais não são vistos. N a lógica aris­
totélica, enunciados categóricos são organizados em silogism os, argu­
m entos em que a conclusão se segue de uma prem issa maior e de
uma menor. Todos os m am íferos são de sangue quente; mas, por
outro lado, todos os cães são mamíferos. Segue-se que todos os cães
são de sangue quente. O ritmo desses três quantificadores leva este
argumento dos m am íferos até os cães.
Em bora escolásticos medievais e lógicos árabes tenham rem e­
xido no sistem a, a lógica aristotélica não vai muito além do silogis­
mo — na verdade, não vai m esm o além do silogismo — e, portanto,
não pode descrever o movimento da m ente quando ela passa da
prem issa de que um cavalo é um animal para a conclusão de que

2<X D av id B erlin ski


a cabeça de um cavalo é a cabeça de um animal. Esta é uma infe­
rência que não pode ser encaixada em um silogismo, não importa
o modo de encaixar, nem qual o silogismo.
Mesmo assim, apesar de suas óbvias limitações, a autoridade da
lógica aristotélica sobre as gerações seguintes foi poderosa e inin­
terrupta. A cultura brilhante e única dos gregos antigos se exauriu
quando o sol ainda brilhava. Os bárbaros começaram a vagar pelas
margens rotas e esfarrapadas do Império Romano. Uma sofisticada
cultura cristã surgiu na Europa, muito longe do mar Mediterrâneo.
Arquitetos e construtores anônimos construíram catedrais assombro­
sas nos campos onde cresciam flores-do-campo. O mundo medieval
desapareceu em uma curva do rio do tempo, substituído finalmente
por uma cultura reconhecidamente contígua à nossa, e, enquanto
isso, com o sol nascendo sobre brilhantes cidades guerreiras emer­
gentes e se pondo sobre château em ruínas empoleirados em solitá­
rios morros de pinheiros e juníperos, a lógica de Aristóteles persistiu
sendo referência e padrão. Homens e mulheres que falavam alga­
ravias estrangeiras tentavam organizar os pensamentos em premissas
maiores e menores, preocupados com a distribuição dos termos, com
as solenes formas antigas dominando sua imaginação.

O CAMPO MINADO DA MEMÓRIA

■ ■ ■ ■ Amigos e alunos se reúnem vindos de vários escritórios


d e advocacia, prontos-socorros e casas de câmbio para se espa­
lharem à minha frente. Fico contente em vê-los. Ainda são jovens e
eu também. Estamos andando a passos rápidos pelos campos mina­
dos da memória.

O ADVENTO DO ALGORITMO 29
— Bowser não voa —digo eu, convicto - porque cães de verdade
na verdade não podem realm ente voar. —Não importa o que os cães
possam desejar (asas, hidrantes que alcancem as nuvens, um pouco
de água tirada com o balde celestial), a verdade é um feitor severo.
Com os olhos castanho-escuros ainda brilhando, Jacqueline
Hacquemeister (antigamente Jackie), bacharel em Direito, levanta-
se para logo em seguida se deixa cair de volta: é inteligente demais
para ser enganada e naquela altura já tinha adquirido equilíbrio.
A questão está decidida. Bowser não pode voar.
Mas o lógico, prossigo dizendo, sem na verdade dizer coisa
alguma em voz alta (e desta forma me comunicando como sempre
desejei fazer), está preparado para aceitar mundos onde cães podem
voar, porcos podem falar e mulheres, como as flores em seus cabe­
los, podem ficar jovens para sempre.
A sra. Hacquemeister bufa o bufo faríngeo que costumava
bufar, baixo, forte, devastador, e não obstante estranhamente descon­
certante.
Não, realm ente. A inferência prossegue de modo hipotético.
Se todos os cães podem voar —e daí se segue uma cascata de con­
seqüências caninas. Em tudo isto, a verdade representa um papel
subsidiário. Um argumento é avaliado por meio da validade de sua
inferência, e não pela verdade de suas premissas. No âmbito de
um argumento válido, se as premissas são verdadeiras, a conclusão
tem de ser verdadeira também, com o torniquete do lógico fixando
as proposições em uma matriz indissolúvel.
Ronald Kemmerling, médico, olha para mim com olhos can­
sados de quem dormiu pouco. Lembro-me de que ele costumava
dormir profundamente na sala de aula, a cabeça caía até o peito e
depois se levantava bruscamente. (Ele hoje dirige o Centro de Trans­
plantes Nathan P. Memorial no Centro Médico Mount Christopher

30 D avid B erlinski
c m Yonkers, Nova York. Deus pune a cada um de a c or d o c o m nm
plano especial.)
— Cães que voam? — resmunga ele, deixando a cabeça pcn
<lcr para lembrar os velhos tempos.
Estou falando hipoteticamente, doutor. E não me imporlo
que o senhor tire uma soneca. Posso vir a precisar mais do senhor
do que o senhor precisa de mim. Mas, veja, os cães não são real­
mente a questão aqui. A lógica é uma disciplina formal. Os cães só
apareceram nesta história como um exemplo. Como muitas vezes
acontece na vida real, eles só aparecem por acaso.
O torniquete do lógico se aperta sozinho em torno de propo­
sições, mas sentimos o torniquete e ficamos limitados por seu poder
porque a inferência é um movimento mental, movimento que se dá
por meio do estalo felpudo e suave da intuição. Testemunhemos
assim a promoção aeronáutica de Bowser: Todos os cães podem voar.
I 'Istalo. Bow ser é um cachorro. Estalo. Ei! Veja só —o m aldito cach or­
ro está voando. Fora o fato de que Bowser é um cachorro, essas pe­
quenas explosões são contrafactuais. Não tem importância. O torni­
quete do lógico se apertou, e o fluxo de inferência só é comparável
ao fluxo da paixão amorosa, quando as atividades humanas caem
sob o controle do inexorável.
A sra. Hacquemeister repentinamente fica radiante, dividin­
do o ar com seu adorável sorriso; lembro-me de quando ela trouxe
o cachorro para a aula, um amigável labrador malcheiroso.
Arnau de la Riviere (anteriormente Arnie Kahane, o cara que,
cin uma festa da turma em um restaurante francês pediu bifteck
lartare très saignant) alisa os cabelos grisalhos, como se para me
lembrar de que ele deve estar em breve na embaixada francesa,
onde representa os interesses comerciais norte-americanos com um
IVancês perfeito.

O ADVENTO DO ALGORITMO 1 I
M as além de dizer que aquele torniquete ficou mais aperta­
do, sou pressionado a dizer p or qu ê. E ao mesmo tempo em que
todos na sala de aula podem ver a inferência, ou senti-la atraves­
sando os músculos de suas mentes, ninguém sabe explicar o que vê;
e ninguém — em especial Jacqueline H acquem eister, que já apre­
sentou argumentos aos juizes da Suprem a C orte — está preparado
para confiar no que é mero pressentim ento, em uma impressão de
que as coisas estão corretas.
Amigos e alunos arrastam os pés im pacientes, as mãos se es­
tendem na direção de seus telefones celulares. Estão atrasados. E eu
tam bém . A turma é dispensada.
B B B S

A CORDA V IBR AN TE
DA IN SATISFAÇ ÃO

Ú nico entre seus grandes contem porâneos, Leibniz colocou um


gordo dedo indicador sobre a corda vibrante da insatisfação.
E único entre seus grandes contem porâneos, ele viu — ao menos
em seus delineam entos — a estrutura de um sistem a no qual o
movimento m ental envolvido na inferência poderia ser explicado
e ratificado por um procedim ento simples — m ecânico. Um a afir­
mativa universal diz que todos os As são B , os cães ficando entre
os mamíferos, os poetas entre os escritores, a truta entre os peixes.
M as o fato expresso quando se diz que todos os As são B pode ser
tam bém expresso dizendo-se que tanto A qu an to B são A.
Isso não é óbvio, mas é desta forma. Se todos os cães são ma­
m íferos, então as únicas criaturas que são tanto cães quanto m am í­
feros são precisam ente os cães.

32 D avid B erlin ski


< ) I•i(o de todos os As serem B poder ser expresso dizem lo *.<•
<j 11<■ l.inlo A quanto B são A sugere uma nova possibilidade de ie
pi«••.eiilaeao, com “todos os As são B ” expresso como a i dent i dade
íiljjeln iea A—AB. Aqui AB designa itens tanto em A quanto cm />,
o que lógicos posteriores chamariam de interseção de dois conjun
to*, (o*; eães e os mamíferos).
( ) fortalecimento algébrico de uma proposição categórica agora
o-.ull.i (‘in uma interpretação algébrica do silogismo categórico:

Todos os As são B —> A = AB


Todos os B s são C —> B = B C
Todos os As são C —> A = A C

l\ o fortalecim ento algébrico que oferece a perspectiva total-


mente inesperada de subordinar a inferência a uma lista de itens a
\ei <*m conferidos, dependente apenas de operações definidas para
Jm holos.
Na seqüência, o silogismo categórico está à esquerda, a versão
.ilgebrica à direita (observações entre parênteses oferecem uma
explicação para a transformação):

Iu< los os cães são mamíferos 1. A = A B Confere (isso é cfque nos é dado)
1« k I o ü os mamíferos são animais 2. B = BC Confere (isso também é dado) j
3 . A = ABC Confere (B foi substituído por SC_
na linha 1) ^
1«»loi» os cães são animais 4. A = AC Confere (AS foi substituído por A
na linha 3)

No silogismo categórico, a linguagem comum representa o


I luxo comum de inferência. Duas premissas são dadas; há um esta­
lo de insight, e um passo é dado. A m ente salta junto, sem saber

O ADVENTO DO A L C O lU T M n
muito bem para onde está indo, mas mesmo assim chegando lá.
À direita, a lista de itens a serem conferidos faz o seu trabalho.
O torniquete do lógico retem a força de outrora, mas os passos
dedutivos não envolvem mais do que a substituição de símbolos por
símbolos, com a âncora da inferência embutida nas identidades.
A inferência agora segue de uma identidade à próxima; não é neces­
sário nenhum estalo de insight, apenas o som compacto e satis­
fatório de encaixe de símbolos sendo substituídos por símbolos.
Qualquer que seja seu mérito como esquema de inferência,
aquela lista de itens a conferir agora alcançou uma forma estra­
nhamente inquietante de familiaridade genérica. Se você quer des­
cobrir seu saldo atual, aperte um; se você ganhou menos do que 23
mil dólares no último ano fiscal, mas mais do que 14 mil, então
some as linhas dois e três; se você sofre de suores noturnos e de
coceiras peculiares...; se quem está ligando é o Ralph, desligue e
morra... Mãe, se é você, estou no cabeleireiro... se é o Bob, estou
feliz que você tenha ligado, muito feliz.

VAMO S CALCU LAR

m m m m John Frederick, duque de Brusnwick, sofre de hemorrói­


das, de reumatismo e frieiras. Uma ferida do lado de dentro da
bochecha se recusou a sarar. Há rachaduras vermelhas e inflamadas
na pele entre os dedos dos pés, e quando o vento noturno sacode
os caixilhos das janelas de seu quarto, ele se sente incapaz de dormir
por mais de duas horas antes que a pungente premência de sua be­
xiga o force a voltar a atenção para a comadre de porcelana.

v/ Duviri B erlinski
Está sentado à sua imensa escrivaninha, cujo tampo «**.1.1 Imu
do de folhas de papel-pergaminho, livros-razões, pctla^os do pap< I,
mapas enrolados, um tratado sobre hidrologia, tinteiros e uma <\u\.i
de madeira trabalhada com uma coleção de penas.
Gottfried Leibniz está sentado do outro lado da escrivaninha
John Frederick levanta a cabeça em formato de pêra, as bochecha*,
pendendo como dois sacos e, com uma sensação muda dc desâ
nimo, lembra-se de que concordou em receber seu conselheiro r
historiador da corte.
— M eu caro camarada — diz ele, afável. O relógio de pêndulo
na parede oeste da biblioteca solenem ente faz soar a hora.
Leibniz tosse para limpar a garganta, levando delicadamente
o pulso à boca. Deram -lhe quinze minutos para explicar seu novo
sistema.
—Há não muito tempo, Excelência —diz ele —, uma certa pes­
soa distinta projetou uma certa linguagem ou C aracterística U ni­
versal na qual as noções e as coisas ficam esmeradamente orde­
nadas, uma linguagem com a ajuda da qual diferentes nações podem
comunicar seus pensamentos, e cada uma, em sua linguagem, 1er
o que a outra escreveu.
O duque enruga a espessa pele da testa, num gesto que dá a
impressão de que suas bochechas gordas estão sendo puxadas por
cordões; pensa que nunca teve a menor dificuldade em comunicar
seus pensamentos contanto que as pessoas compreendam alemão
ou falem um francês adequado. Uma familiar plenitude em sua
bexiga lembra ao duque que ele deve se aliviar em breve.
— Mas ninguém — continua Leibniz — apresentou uma lingua­
gem ou Característica Universal que incorpore, ao mesmo tempo,
tanto a arte da descoberta quanto a arte do juízo.

O ADVENTO DO A I. <: <> III I M ‘ »


Quando Leibniz faz uma pausa e levanta os olhos, o duque
procura uma resposta ao seu redor. Ele não consegue pensar em
coisa alguma para dizer.
— Se a tivéssemos — prossegue Leibniz, com a voz baixa,
premente, mas curiosamente sem inílexão —, seríamos capazes de ra­
ciocinar em m etafísica e na ética do mesmo modo como na geome­
tria e na análise. Se controvérsias surgissem, não haveria mais
necessidade de debate entre dois filósofos do que entre dois con­
tadores. Porque seria suficiente que pegassem os lápis, as lousas,
e dissessem um para o outro (com um amigo como testemunha, se
quisessem): vamos calcular.
O duque de Brunswick, cuja prole se destina à Coroa britânica
mas cuja atenção fatalmente se distrai com a bexiga esbravejante,
agita as palmas das mãos vermelhas, levanta-se rapidamente da ca­
deira, e sem uma palavra se precipita pelo longo corredor da biblio­
teca até as m aciças portas duplas de madeira onde, depois de dar
um puxão na corda vermelha ornada com bolas de um sino, espera
impaciente que um lacaio apareça.
Imperturbável, Leibniz continua sentado como antes, com os
pés adequadamente estendidos, as nádegas encarapitadas com de­
coro sobre a quina da cadeira de cetim vermelho.
B B B H

U m e s q u e m a

Além do que disse, Leibniz tem um esquema, é claro. Todo mundo


no século XVII tem um esquema, eles proliferavam como cogume­
los depois da chuva! Por azar, não conseguiu pedir fundos a seu
benfeitor para colocar esse esquema em prática. Como quase todo

>6 D avid Berlinski


mundo, Leibniz pensa em seu esquema em termos de uin.i em i
( lopcdia, sua inteligência onívora exigindo continuam ente <|u<* <»
ambito total do conhecim ento humano seja difundido sobre a pá<’i
na impressa, compilado em livros, reunido em bibliotecas, acumu
lado cm instituições. Mas enquanto o homem comum estava inte
icssado em enciclopédias comuns, Leibniz estava interessado cm
a 1^0 mais, uma enciclopédia de conceitos humanos, um alfabeto
<le pensamentos humanos —humanidade, vingança, devoção, béíeza,
Iclicidade, bondade, prazer, verdade, ganância, higiene, procedimen­
to, racionalidade, decoro, vigor, movimento, mau humor, m alea­
bilidade, civilidade, justiça, cortesia, com petência, guerra, arte,
cômputo, dever, trabalho, linguagem, refugo, informação, feminino,
eqüidade —, que contivesse todos os conceitos humanos e, portanto,
Iodos os pensam entos humanos.
A idéia de um grande e completo alfabeto do pensamento
humano sugere que, neste aspecto, como em tantos outros, Leibniz
e s t a v a buscando os fundamentos; como quer que ele pudesse ter
posto em prática sua idéia —na verdade, ele não foi mais longe com
•aia idéia do que a própria idéia —, algo como um alfabeto deve exis-
I ir se a m ente algum dia quiser vir a ser um órgão acessível a si
mesma. Sua grandiosa, embora não realizada, visão repousa sobre
dois soberbos insights básicos. Por mais que possam existir muitos
conceitos complexos, o número de conceitos simples deve ser fini-
lo (eles chegam a um fim, esses conceitos simples) e mais, discre-
los (diferentem ente da névoa ou das disposições de ânimo ou da
I ,ua vista através das nuvens, eles têm limites naturais).
Se existe um número finito de conceitos simples, deve haver no
pensamento algum princípio de organização, que orquestre o modo
como eles são combinados. Se assim não fosse, a fala comum seria
apenas uma questão de falar os nomes dos conceitos elementares,
<‘ a linguagem nada mais seria do que uma série de etiquetas verbais.

O ADVENTO DO A I. <: <> Kl T M <»


Os objetos físicos sugerem um princípio óbvio. O todo tem
partes, a rosca se decompõe em partículas de farinha e manteiga;
/
o prédio, em tijolos e o livro, em páginas. E precisamente a relação
da parte com o todo que Leibniz viu como sendo o que coordena
a construção dos conceitos. C onceitos, e não coisas. Vichyssoise é
uma sopa fria. Ser fria e ser uma sopa são apenas os componentes
envolvidos em ser uma vichyssoise. Por sua vez, ser fria se decompõe
em partes, e o mesmo para ser uma sopa. Essas partes se de­
compõem ainda mais, e a dissecação dos conceitos prossegue até
que o dissector chegue a conceitos que não podem ser mais dis­
secados em partes porque, como os elétrons na física de partículas,
são absolutamente simples.
Em última instância, argumentou Leibniz, existem apenas dois
conceitos absolutamente simples, Deus e o Nada. Deles, todos os
outros conceitos podem ser construídos, o mundo, e tudo o que há
nele, surgindo de alguma discussão primordial entre a divindade e o
Nada absoluto. E depois, em uma inescrutável e incandescente pers­
picácia, Leibniz viu que o crucial no que havia escrito é a alternân­
cia entre Deus e o Nada. E para isso, os números 0 e 1 bastam.
Com salgadinhos e refrigerante diet em mãos, programadores
de computador podem hoje ser observados fazendo uma pausa,
pensativos, diante de seus consoles.

L ista d e i t e n s

A SEREM C O N FER ID O S

m m m m Vivemos em meio a uma barafunda infernal de coisas (eu,


especialmente, por falar nisso, onde estão meus cigarros?), mas faze­
mos juízos dos fatos. Uma tigela de vichyssoise se encontra entre as

>.S David Berlinski


í <H*ijr», mas o juízo de que a vichyssoise c Iria se <.‘ik*c>i 111.i cnli I I I
l a t o s . I)a mesma maneira, o juízo de que a bala é doce, a a^u.i I**i \«

.1 cem ^raus e de que os faraós partiram desta vida para a elci iikI.k I«*
embrulhados em trezentos metros de linho tratado.
A validade é a pedra de toque da inferência e a verdade, do
1111/.<>: o lato de que a vichyssoise é fria ratifica o juízo de que a
\'n'liyss()ise é, de fato, fria, e o juízo de que a vichyssoise é fria cxpres
•..i o lato de que a vichyssoise é fria.
Lssas modestas observações, que como se sabe enredaram
departamentos de filosofia em discussões por décadas, sugerem o
q u e os juízos fazem, mas não o que são. Leibniz está convencido
d e que, ao saber o que os juízos fazem, ele sabe o que são; e sua
avaliação do juízo, curiosamente, é totalmente consistente com
•aia avaliação da inferência.
— Os conceitos —lembra-me ele, depois de se sentar à minha
escrivaninha tarde da noite (sua exuberante peruca antiquada pare­
c e u irresistível a meus gatos, que saíram furtivamente de seu refú­
gio para brincar com ela) —têm partes.
O juízo não passa de um ato de revelação que mostra que,
romo uma daquelas bonecas russas malvestidas que fica dentro de
outra boneca russa malvestida, um conceito está contido dentro do
outro. Dizer que vichyssoise é fria é dizer apenas que o conceito de
ser frio é uma parte do conceito de ser vichyssoise.
A análise agora prossegue por meio de uma corrente de im­
pulsos. Primeiramente, a enciclopédia de conceitos humanos é posta
em funcionam ento (alguns séculos antes de sua conclusão), com
1 ,eibniz seguindo os verbetes com o dedo em meu benefício. Tendo
terminado a dissecação de “vichyssoise * em partes (esta é uma 'pres­
suposição), Leibniz só precisa procurar nos Vs — “vários”, “velo­
cidade”, V enial” e assim por diante até ‘ vichyssoise' —para ver seus
componentes conceituais.

O ADVENTO DO ALCODITMO
— Aqui está — com enta ele, com satisfação, em um inglês
lindam ente entoado, já que o talento para línguas sempre lhe foi
vantajoso.
O verbete da enciclopédia e a própria brevidade (estou trans­
crevendo as coisas por meio dc uma forma de memória que exa­
mina o futuro):

V elocidade...
Vichyssoise: fria, com consistência de sopa
V ítim a...

Em uma edição posterior da enciclopédia (a vigésima ter­


ceira), a exposição é ainda mais comprimida:

V (elocid ad e)...
V: F + S
V iítim a)...

O sinal de adição indica que a enciclopédia n ão é um dicio­


nário, em que vichyssoise é definida como uma sopa fria. Os ver­
betes na enciclopédia são listas denotando que esses conceitos são as
partes daqu ele conceito. Estes representam precisamente o mesmo
papel na econom ia do juízo que as listas que identificam os com ­
ponentes do cereal do café-da-m anhã. Eles dizem ao leitor (da en ­
ciclopédia) ou ao consumidor (de toda aquela gororoba) exata­
m ente de que é feito o conceito, ou o cereal.
O juízo prossegue ainda por meio de outra lista de itens a serem
conferidos:

*10 D avid B erlin ski


1. Considere: “ Vichyssoise é fria" Confere
2. Procure: “ vichyssoise” Confere
3. Verbetes da lista: “ vichyssoise” Confere
4. Se “ frio ” é um verbete então
5. Aceite: “ Vichyssoise é fria” f Confere
6. Se não, então
7. Rejeite: “ Vichyssoise é fria ” ^Confere

I )eixe-m e narrar esta cen a m eio tum ultuosa. C hega a sopa


\í('hyssoise. E v e ja , a coisa é fria! Sem hesitação ou pânico, a m cn-
I<* prossegue a partir do que o palato p ercebe. A vichyssoise é fria.
A introspecção reco n h ece apenas um m isterioso borrão azul, e a
.m io inspeção causa o próprio fracasso neste caso, com o em
ii mil os outros. Agora dê um passo para trás: ignore o borrão. O s
|iiixos podem ser retratados a distância por meio de um jogo de
sím bolos, com o fato de que a vichyssoise é fria tanto explicado
quanto ratificado — exatam ente o que a lista in feren cial de itens a
serem conferidos faz, lem bre-se —pelo fato de que ser fria faz parte
de ser vichyssoise. O que quer que a m en te esteja fazendo — co ça n ­
do se, preocupando-se com o mal de Alzheimer, preparando-se
para tirar um coch ilo —, a lista é sim ples, direta e objetiva, assen-
l.indo-se sobre nada mais sutil do que o princípio que anim a aque­
las bonecas russas a saírem uma de dentro da outra.
M ais tarde, penso em perguntar a Leibniz pela fonte desta con-
I lança em seu esquem a. Sem uma palavra, ele se dirige novam ente
.1 enciclopédia, colocando o dedo na terceira linha, da qual retira:

Ja c tâ n c ia ...
Je ju m ...
Ju íz o : parte, todo
Ju stiç a ...

O ADVENTO DO AI . COH I TM( ) '/ /


Fico por um instante (mas apenas por um instante) sem pala­
vras. Depois me recomponho e Falo com veem ência:
—Tudo o que você mostrou é que este seu esquem a justifica
a si mesmo.
Leibniz sorri um sorriso inefável.
— No fim — diz ele —, todo esquem a e toda ciên cia é ju s tifi­
cado por si m esm o ou não é de todo justificado.
Contra todas as expectativas, Leibniz prefigurou sua en ci­
clopédia como um dispositivo prático satisfatório, uma ponte de
irmandade; ele imaginou que com a enciclopédia completa, a todo
conceito humano seria atribuído um símbolo, um tipo peculiar de
glifo, tal que ao olhar para o símbolo # poder-se-ia ver de im edia­
to que designava um floco de neve. (C ertas línguas, como o chinês,
são organizadas de acordo com este princípio.) Com os glifos deste
sistem a em seus devidos lugares, todas as formas de com unicação
humana se tornam totalm ente m ecânicas.
Só fica faltando imaginar o esquem a em ação. D e partida,
Leibniz se vira para acenar: O.
Com preendendo de primeira, digo que sim com a cabeça: © .
Ele dá um sorriso triste: 3.
Aceno: + .
E depois, quando a luz se aproxima, ele se vira e vai andando
pelo corredor do tempo arrastando ligeiramente o pé direito porque
sofre de gota.
m m @ m

C o n f e r i n d o

Ao final do século XX, Isaac Newton e Gottfried Leibniz podem ser


discernidos sentados no coch p it da mudança, um tentando ar-

•/.! Ihiviri B erlin ski


d i i a m c n t e remover a mão do outro dos controles. /\ origem d.i T< «>
ria da Gravidade de Newton tornou-se um mito, no qual ;i
venerável com binação de árvore, maçã e queda levou Newlon .1
iiuTÍvcl e abrangente hipótese de que uma única força c o n t m l a <>
comportamento dos objetos em movimento, do local onde as Nu
vens de Magalhães se acumulam à fraca luz do espaço e à própria
superfície da Terra, onde maçãs, mercados de valores, bustos, arcos
e glicínias mais cedo ou mais tarde murcham ou caem. Newton
forneceu uma explicação para a gravidade em termos de uma lei de
atração universal, que liga todas as partículas materiais do univer­
so, expressando matematicamente a atração da matéria pela matéria.
Mas a grande visão arrepiante daquilo que no P rin cipia ele cha­
mou de “o sistem a do mundo” vai muito além da m ecânica, e seus
obsidianos olhos m eticulosos buscavam um esquema por meio do
qual cada aspecto do mundo físico pudesse ser explicado em ter­
mos de um conjunto completo e consistente de leis m atem áticas.
() esquem a ainda está além do nosso alcance, mas não a busca:
físicos contem porâneos, como Newton antes deles, caminham a
passos rápidos incansavelm ente pela mesma paisagem conceituai,
ladrando às sombras escuras da noite.
Se Newton se propôs a construir um sistema do mundo, Leibniz
se propôs uma alternativa — mas, veja bem, não há uma alternativa.
( )s interesses dos dois são simplesmente incomensuráveis.
Comparado ao soberbamente concentrado Newton, Leibniz pa­
rece às vezes estar seguindo uma agenda que não podia articular
por completo. Não é de espantar que suas idéias saltem por sobre
os séculos intervenientes e caiam em algum lugar além. Se não
existe nenhum esquema grandioso funcionando (pelo menos na
lógica), há, no entanto, uma progressão de seu pensamento, na di­
reção de uma crescente abstração, tal que, no fim, como um pin

O ADVENTO DO ALCOItlTMn
tor japonês que vai eliminando todas as cores de sua paleta com
exceção do preto (e confiando que o próprio papel forneça um
branco que sirva de contraste), Leibniz purgou de sua enciclopé­
dia todos os vestígios de seu conteúdo e entregou-se apenas ao que
sobrou: um sistema de símbolos e formas puras. “A Combinatória”,
escreveu ele, “trata do cálculo em geral, ou de sinais ou caracteres
gerais (como A, B, C, onde qualquer um deles pode ser usado no
lugar do outro à vontade) e das várias leis de arranjos e transições,
ou de fórmulas em geral.”
Com essas palavras, uma organização diferente da experiên­
cia se insinua furtivamente e se anuncia. O mundo material recua:
os sím bolos vão para o centro do palco e assumem o comando. Ao
meditar sobre o significado de certos movimentos mentais que
rugem muito abaixo do limiar da consciência, Leibniz procurou dar
uma exposição da inferência e do juízo que estão envolvidos no
jogo mecânico de símbolos e muito pouca coisa além disso. As listas
resultantes são os primeiros artefatos intelectuais da humanidade.
Elas expressam, explicam, e assim ratificam um poder da mente.
E, obviamente, são artefatos em processo de se tornar algo­
ritmos.

Leibniz sofria de gota e de colite e da convicção devastadora


de que havia se transformado num anacronismo — até a peruca
exuberante e as roupas rebuscadas estavam deslocadas na corte
alemã. Recolheu-se à vastidão de seus pensamentos. Finalm ente o
nó da vida ficou apertado, e Leibniz se recolheu à cama. Recusou
a atenção profissional de seu médico, sabendo que o sujeito não
tinha nada melhor do que sangrias e sanguessugas a oferecer. Sua
mente ficou lúcida até o fim. Virando o rosto para a parede quan­
do a morte se aproximou, colocou sobre os olhos a touca bordada

II D avid B erlinski
que usava ao se deitar, uma respiração áspera se a^armii e>n mm
f;;ii^anta e depois ficou em silêncio.
Certa noite, tendo chegado tarde ao norte da N om eia, ilep.i
i<1i em meu quarto de hotel com um daqueles soberbos programas
de ciência da BBC nos quais cientistas discorrem sobre seus iral>a
llios. Vários cosmólogos estavam discutindo as origens do uni ver
só. É o que eles sempre discutem, e as discussões são s e m p r e
fascinantes, embora inconclusivas. Em seus argumentos, prevalece»
Isaac Newton, cuja inteligência profunda, poderosa, convincente
submete cada vontade à sua própria. E então uma observação
curiosa. “Existem receitas”, disse um cosmólogo, “equações que
parecem reger o mundo/'
Receitas? Equações? Algoritmos?

O ADVENTO DO ALCOItlTMn */' »


2

S ob o o l h a r da d ú v i d a

O SÉCULO XVII É PASSADO, Leibniz e Newton foram para onde vão os


grandes homens; o século XVIII também se foi, várias cabeças cober­
tas de rendas mas infestadas de piolhos tombaram em diversas ces­
tas revolucionárias com um horrendo baque úmido. O Congresso de
Viena, as revoluções de 1848 e a Guerra Civil norte-americana en­
tram em cena e desaparecem. Uma palavra de louvor ao láudano e
às tinturas de opiatos, tomadas com gratidão por mulheres amadure­
cidas no parto e para sempre presas a locais onde o vento das planí­
cies sopra tarde da noite. Novos governos na França e na Alemanha.
O século XIX dá a volta em torno de si mesmo, como um grande
clíper submetendo-se ao vento. Em um congresso internacional
realizado em Lausanne em 1881, um grupo de físicos barbados se
reúne para um retrato formal. Estão vestidos com engomadas sobre­
casacas de gabardina preta e olham fixo para a câmera com uma

■I (> I Berlinshi
expressão de tola confiança. Céus azuis prevalecem; ha por lod:i
p:irle o cheiro de limões. v
Sabemos hoje que frias nuvens cinzas estavam escaladas para
virem rasantes por sobre aqueles céus ensolarados, nuvens destina­
das a descarregarem seus fardos sobre a ciência, assim como sobre
a vida. Em 1887, os físicos norte-americanos Albert M ichelson e
Kdward Morley observaram em experimentos que a velocidade da
luz parecia não ser afetada ao passar através do éter luminífero,
uma conclusão que discordava da física newtoniana e do senso
eomum e, que era, na verdade, incompatível com a existência do
éter luminífero. Dezoito anos depois, Albert Einstein solucionou a
contradição a favor dos fatos, demonstrando brilhantemente que
o próprio espaço e o próprio tempo eram relativos, que o tempo
passava mais devagar e o espaço se contraía quando a velocidade
dos objetos aumentava. No mesmo ano, ele demonstrou que a luz
viaja em pacotes quânticos, como os vagões de carga de um trem.
Depois disso, a física se arrasta para seu desfiladeiro escuro, dis­
cordando do senso comum a cada passo do caminho. Mas há
nuvens e nuvens, e aconteceu que as carregadas da chuva mais
pesada cobriram a matemática e não outra coisa qualquer.
A matemática?

E ntra em cena
G iu s e p p e P eano

Vamos aos fundamentos. Um duro rosto cor de nogueira, pequenos


olhos pretos astutos e vigilantes de camponês, nariz fino e compri­
do com uma protuberância, o queixo coberto com a barba desali­

O ADVENTO DO ALGORITMO 47
nhada de Lenin, como se os personagens famosos do cenário euro­
peu tivessem o hábito de emprestar os pêlos faciais uns aos outros.
Peano nasceu em 1858, perto da aldeia de Spinetta, que fica na
província de Cuneo, na Itália. No Piemonte. Há por toda parte nessa
região rural vestígios da Antigüidade, do estilo de vida romano e o
ar livre reverbera com o retumbar de legiões imperiais a pisotear os
campos antes de subir em direção à Gália transalpina. Cultivam
trigo e arroz nas terras baixas, e produzem manteiga, queijo e leite
nas campinas subalpinas. Como os banhados da Carolina do Sul,
esta terra é rica sem ser bonita, com grandes campos abertos par­
dacentos entrecruzados por canais de irrigação, e o sol trigueiro bem
alto no céu enfumaçado.
Peano era filho de camponeses, de uma família havia muito en­
raizada nos morros umbrosos e se tivesse nascido cem anos antes, só
poderia ter tido a expectativa de, com o tempo, poder tomar o lugar
do pai, casar-se com uma garota de ancas largas de uma das aldeias
locais, viver uma vida sossegada de prosperidade rural, com as
cabras balindo nas encostas e a sede de pedra da fazenda exalando
um odor de pão e suculentos guisados no meio da tarde. M as Peano
foi beneficiado por um extraordinário sistema educacional que
oferecia à classe camponesa italiana oportunidades de promoção
social através de um corredor estreito, mas não obstante suave, de
realização profissional. Seu irmão mais velho se tornou agrimensor
e próspero pai de sete filhos; outro irmão se tornou padre, na época
uma sinecura sem rival na Itália, como hoje; uma irmã se casou
bem e desapareceu no oblívio doméstico com as crianças agarradas
às saias e acenando com timidez; apenas o irmão mais novo voltou
para casa depois de cursar a escola da aldeia e foi andar atrás das
mulas rabugentas da fazenda e trabalhar os campos perfumados.

'/<S I )avi(l B erlin ski


Quando garoto, Peano passou pela escola chi aldeia; Jejuns,
quando rapazola, pelo Liceo Cavour; e depois disso, quando aJ«»
lescente de voz indefinida, pelo Collegio delle Provincic, um;i ex
tensão da Universidade de Turim, uma daquelas instituições c*si;i
helecidas pelo Estado italiano especificam ente para atender aos
estudantes talentosos das províncias. Teve aulas cinco dias por
semana, quase todas de ciências e matemática, competições, testes,
severas provas orais, estas seguidas de uma menção honrosa depois
do primeiro ano. Uma menção honrosa? Provas novamente, desta
vez apenas em tópicos matemáticos e depois disso, Peano, refeste­
lado agora na própria Universidade de Turim, com a qual manteve
libação profissional até sua morte em 1932, torna-se professor
assistente, professor extraordinário, professor titular, Figura Em inen-
. le, conhecida por outras Figuras Eminentes — todos os passos,
um depois do outro, sendo dados até que eles revelam a emergên­
cia inconfundível da Em inência Histórica, que com seu selvagem
rosto magro se dirige aos alunos na sala de aula, a matemáticos em
conferências internacionais e ao futuro à noite, com a voz curiosa­
mente rouca, tendo apresentado uma enternecedora lalação a vida
toda, pois não era capaz de pronunciar direito o r italiano, pronun­
ciando-o como o l líquido italiano.

R a psó d ia em n ú m e r o s

As experiências dos matemáticos são às vezes extáticas como as


rapsódias, sendo, portanto, sempre trágicas. Os matemáticos en­
velhecem rápido e alcançam a maturidade m atem ática antes que
tenham aprendido a olhar dentro dos olhos de uma mulher e decaem

O ADVENTO DO ALCOlUTMn * /^
depois disto a uma velocidade terrível e sem piedade. A Medalha
Fields (o equivalente na matemática ao Prêmio Nobel) só é con­
cedida a matemáticos com menos de quarenta anos; numa idade
em que os estagiários de cirurgia ainda estão aprendendo a anato­
mia exata da crista do ilíaco, os grandes matemáticos já sentiram
ventos frios descendo do mar de Arai.
Em sua maior parte, é verdade, as pessoas comuns vêem a
matemática com forte aversão, considerando seus conceitos tão
emocionantes quanto couves-flores. Isso é um erro —não há outra
palavra. Onde mais pode a inquieta mente humana encontrar o meio
para prender o infinito em um arco finito? Em algum momento do
século XVII, por exemplo, os matemáticos descobriram que a adição
podia ser estendida para somas infinitas. Por soma infinita enten­
da-se uma soma infinita. Os números são acrescentados, e acres­
centados, e mesmo assim de alguma forma chega-se a uma soma:
oo

U\ + U2 + •** “t" du "t“ •** —


i =1
As letras minúsculas em itálico nesta expressão representam
números; os subscritos servem para rotular os números de uma
seqüência (o primeiro número, o segundo e assim por diante), e o
grande sigma grego indica que a soma é feita a partir de um número
inicial até o infinito.
O conceito e a notação podem ser vistos na série a seguir:
00
, 1 1 1 I V 1
1 “h — + — + — + •* * + ------ — / Æj,
2 4 8 2”-1 "t =1

com os símbolos encorajando o matemático a tomar os números do


modo como estão escritos, imagina-los prosseguindo indefinidamente
daquela exata maneira peculiar, com o denominador de cada fração

SO David Berlinski
•!<•(ei minado totalm ente por sua localização na-seqüencia (lal que
'/h <; 'h" 1 , que por sua vez é V23 , que por sua vez é Vs) e depois dcs-
cnUiir a soma deles.
Essas solicitações — tom ar; im aginar; descobrir — estão expres­
sas em linguagem comum e pedem que algo seja feito: isto está
claro; mas ao pretender que a soma seja feita indefinidam ente, a
mente de repente patina sobre gelo onde antes havia um caminho
solido e escorrega sem parar e sem ponto de apoio.
A soma infinita requer que o infinito seja domesticado, e o
d eito requerido é alcançado por meio de dois ganchos m atem áti­
cos. O primeiro envolve a separação das séries em somas parciais
finitas (finitas, parciais e, portanto, ordinárias); o segundo, o con­
ceito de lim ite.
Dado que

1 = 0i,

11 H-----
1 h—
1 —a^y
-

2 4

a soma da série enquanto um todo infinito é definida ao se per­


guntar se a h a 2, a 3,... tendem a um número determinado qualquer
no limite. Se tendem, esta é a soma; se não, não. Somas parciais e
limites bastam para fazer o infinito entrar na linha na linha do
número 2, neste caso.
Nisto não há qualquer sinal de emoção, mas séries inlinitas
são em grande parte como pedras preciosas e uma pequena rota­
ção que seja do assunto sobre a palma da mão revela uma lace
maravilhosamente relampejante.

O ADVI-NTO 1)0 ALGORITMO 51


A serie

1+— +— +— +
2 32 42

parece sob todos os aspectos como se pudesse convergir para um


número familiar qualquer; mas Leibniz não conseguiu determinar
sua soma, nem Jacques Bernoulli (e nem eu, por falar nisso). A ques­
tão permaneceu em aberto até Leonhard Euler seguir o rastro da­
queles relampejantes raios de luz e descobrir as somas parciais que
convergiam para ^/ó.
O número 7U representa a razão entre a circunferência de um
círculo e seu diâmetro e desta forma é uma constante matemática,
cujo valor fica um pouco ao norte do número 3. A série em si é
composta de frações de aparência simples. E, no entanto, esses
números convergem para a razão entre K2 e 6, revelando desta
forma uma conexão cintilante entre a geometria e a aritmética,
conexão ainda mais cintilante porque ainda mais arbitrária. Por
que 7t ? Por que n2 7 Por que 6 ? Por que a razão entre n 2 e 6 ?
De fato, por quê?
Ouço a mim mesmo fazendo essas perguntas em sala de aula
e depois tarde da noite e as faço porque eu não sei as respostas,
nem sabia na época, nem sei agora. Tudo o que o matemático em
mim pode ver é a pedra preciosa.

NO LIMITE

Devo agora permitir que caia um pouco de chuva nas chamas de


minha prosa. Não importa o tempo que passou deslizando, o mate­

52 D avid Berlinski
mático, como o lepidopterolcgista, está 'profissionalmente engajado
cm um esforço para descrever a beleza do que vê — o m atem ático
l ixando em fórmulas o que o lepidopterologista fixa em formol.
Mas o desejo de ver e o desejo de ratificar o que se viu são desejos
incompatíveis, no mínimo porque vêm de locais distintos na im a­
ginação. Um as poucas primeiras gotas acabaram de cair.
Depois de séculos durante os quais a pedra preciosa da m ate­
mática emitiu apenas raios pálidos, a m atem ática irrompeu para a
luz no século XVII com a descoberta do cálculo e daí em diante con-
linuou a reluzir furiosamente à medida que a análise m atem ática,
a álgebra, a aritm ética, a teoria dos números e geometrias não-
cuclidianas nasceram ou alcançaram uma repentina e perturbado­
ra maturidade. Um universo foi criado a partir daquela irrupção
nos séculos XVII, XVIII e XIX, repletos de poeira cósm ica, treme-
luzentes estrelas distantes, estranhas galáxias e planetas que se
parecem muito com o nosso.
Mas junto com o êxtase intelectual engendrado pela criação
também veio a apreensão intelectual, que se acelerava à medida
que as décadas se levantavam, se sacudiam e esmagavam o campo
da história, a percepção de que ninguém sabia muito bem por que
a m atem ática era verdadeira e se era exata. Os conceitos n e­
cessários para a expressão do novo corpo da m atem ática eram fre­
qüentem ente incoerentes. O cálculo, observaram os filósofos (não
sem satisfação), se reduzia ao absurdo ao invocar infinitesim ais,
números m enores do que quaisquer outros números, mas dife­
rentes de zero. As trabalhadas definições introduzidas com propósi­
tos profiláticos eram alarm antem ente complexas. Escrevi sobre
limites em termos de tendências e para amadores (como nós), isso
basta. Bastava tam bém para os m atem áticos do século XVIII. Não
bastou mais dali em diante. Os m atem áticos agora calculam os

O ADVENTO DO ALGORITMO 53
limites — em sala de aula e na vida — apelando para a seguinte
definição:

Uma série (aquelas somas parciais, por exem plo) a ly


a 2,..., a n,... converge para um limite L , se, para todo nú­
m ero positivo e , existe um valor de n (que por sua vez
depende de e) tal qu e para a n, e para todos os números
mais acim a na cadeia, a distância entre a n e L é m enor
do qvie e.

O número 2 é o limite da série


oo
i 1 i i
1 + — ~f* — + —+•••+----- — ^ a
2 4 8 2”-1 t =i'

porque não importa quão pequeno seja o número e (digamos que


seja 1/269.000), existe um número an na seqüência, tal que a dis­
tância entre a n e 2 é menor do que 1/269.000 e permanece menor
do que 1/269.000 independentemente de quão grande n se torna.
Isto dificilmente tem a ver com a intuição e a intuição difi­
cilmente está preparada para lidar com isto (como muitos estudan­
tes do século XX vão atestar). Os matemáticos do século XIX des­
cobriram para o próprio desconforto que à medida que a maquinaria
conceituai da matemática ficava mais precisa, ficava mais difícil.
Descobriu-se que definições que haviam sido copiadas de livro-texto
para livro-texto estavam incorretas, e incorreções foram detectadas
em provas famosas, com as expectativas radiantes de um professor
de Basiléia tendo sido destruídas porque um professor de Kiel
descobriu que o professor de Basiléia havia, em sua célebre demons­
tração, pressuposto que certas funções podiam alcançar suas ca­

54 Davicl B erlin ski


beças para coçar suas orelhas direitas com as mãos direitas quan­
do na verdade só conseguiam alcançar os narizes.
A confusão não se restringiu ao cálculo. Ninguém conseguiu
escapar do olhar da dúvida. A história de Évariste Galois já entrou
no reino do mito matemático e romântico. Nascido em 1811 no in­
terior da França, Galois era um matemático entusiasta e sua mente,
desde a infância, era totalmente desanuviada, tal que, como tantos
grandes m atemáticos, ele parecia pegar as cores da matemática em
pleno vôo. Indisciplinado e imoderado, Galois antagonizou seus exa­
minadores na École Polytechnique. Seu grande trabalho sobre teo­
ria de grupos foi feito antes dos vinte anos, na noite anterior à sua
morte, na verdade, porque morreu em um duelo idiota por causa
de uma mulher na aurora do dia seguinte, ao levar uma bala no
estômago e expirar em agonia algumas horas mais tarde. Na época
em que seu gênio floresceu e foi depois apagado, os matemáticos
da França, embora cientes de sua capacidade, não sabiam deter­
minar — não sabiam decidir — se seus primeiros trabalhos tinham
sentido. “Sua demonstração”, escreveram membros da Academia
de Ciências, “não está suficientem ente desenvolvida nem é sufi­
cientem ente clara para permitir que julguemos seu rigor.”
Seu rigor. Querendo dizer se estava certa. Significando, que
I )eus nos ajude, que nós não sabemos discernir e nós não sabemos.

U m a c h u v a f o r t e e s t á c a i n d o

<) título de dottore em matemática foi concedido a Giuseppe Peano


em 1880 e, apesar de todo aquele cerimonial sem sentido de sua
investidura na vida universitária —becas brocadas, pendões, barretes

O ADVENTO DO ALGORITMO 55
de formatura, barretes acadêm icos estranhos e juras em latim —,
a profissão de matemático só existia havia pouco mais de duzentos
anos. Isaac Newton assistiu a aulas dadas pelo primeiro catedráti­
co de matemática de Cambridge, Isaac Barrow, em meados do
século XVII, mas o que Barrow sabia de matemática podia facil­
mente ter sido inscrito em uma pequena brochura —umas cinqüenta
fórmulas, os axiomas e teoremas da geometria euclidiana, rudimen­
tos de álgebra (que Newton imponentemente descartou como
sendo “a análise dos relapsos”), alguma coisa do novo sistema carte­
siano de geometria algébrica e, além disso, uma miscelânea de idéias
confusas e imprecisas sobre rigor, definição e prova.
Além disso, nada.
No entanto, quando Peano subiu os gastos degraus de madei­
ra até a tribuna dos conferencistas, os amadores geniais, que haviam
usado penas para escrever e perfumado as perucas, haviam feito
algum trabalho. A matemática havia se transformado de um assun­
to que palpitava em mil cartas cheias de vida em algo mumificado
e monumental, sepultada na Royal Society ou nas várias academias
francesas e depois sepultada novamente nas grandes universidades
européias. Peano é um professore; existiram professores antes dele.
E há perguntas que os professores fazem que os amadores geniais
não fazem. Como se tiram conclusões sobre conceitos terrivelmente
abstratos e sutis tal que o próprio modo de chegar a essas conclu­
sões tenha o caráter de uma prova? Não é fé o que se quer; nem pers­
picácia ou intuição.
É a certeza propriamente dita, já que o matemático, como o
amante, precisa mais da certeza do que de ficar feliz.
A chuva agora é geral.

56 D avid B erlin ski


A T R IBU N A DA GRANDE SALA
DE C O N F E R Ê N C I A S DA HISTÓRIA

Pcano com eça sua carreira como professore de cálculo infinitesi­


mal, e suas contribuições à disciplina foram elegantes, influentes
e importantes. E le elaborou uma prova do teorema de unicidade e
de existência para equações diferenciais de primeira ordem, ratifi­
cando a expectativa m atem ática de que, no que diz respeito a estes
instrumentos cruciais de descrição e descoberta, as soluções exis­
tem e são únicas. M as Peano desde o início foi incomodado pelo
olhar da dúvida, aquela coisa gordurosa que o encarava por debaixo
de pálpebras semicerradas e sobrancelhas bastas, uma sensação
desgastante e incômoda de que os fundamentos da m atem ática
estavam de alguma forma infectados; e daquele modo estranho que
as grandes figuras da história do pensamento têm de falar umas
com as outras através do tempo, parece que ele se dispôs a se acon­
selhar com Gottfried Leibniz, o rubicundo cortesão elegante de
maciça peruca e nobre nariz, que sussurrou no ouvido do tenso
matemático italiano, feito dottore recentem ente.
Se há alguma parte da m atem ática que parece livre de hesi-
tações é a aritm ética, assunto tão familiar quanto a infância, a única
parte da m atem ática que fica na memória (junto com números de
telefone, senhas e o cheiro das rosas na chuva). Na verdade,
ninguém em seu juízo perfeito questionaria a passagem aritm ética
ordinária na qual dois m atemáticos e dois m atemáticos se com bi­
nam para totalizar quatro professores. Nossa certeza quanto a isso
c absoluta, por mais penetrante que seja o olhar da dúvida. M as,
como tantos intrusos perniciosos, a dúvida entra pela janela do se­
cundo andar, evitando a salá de visitas, onde há luzes brilhantes e
musica de câmara. A aritmética não é apenas uma série de passagens

O ADVENTO DO ALGORITMO 57
aritméticas ou aforismos infantis; os números naturais, 1, 2, 3,...
prosseguem indefinidamente, e então nossa confiança na aritmética
com o sistema vai além —muito além —da confiança de que podemos
repousar em qualquer uma de suas partes finitas.
O mundo das formas, linhas, curvas e sólidos é tão variado
quanto o mundo dos números, e é apenas o fato de termos há tanto
tempo a geometria euclidiana que nos dá a impressão, ou a ilusão,
de que este mundo já foi incluído em uma estrutura intelectual
manuseável. As características dessa estrutura são bem conhecidas:
como no resto da vida, algo é dado e algo é obtido; mas a lógica por
trás dessas características tende a passar desapercebida, e é a lógi­
ca que controla o sistema.
A geometria euclidiana parte de um conjunto finito de axio­
mas; destes, o m atem ático deriva várias conclusões geom étricas
ou teoremas. A soma dos ângulos internos de um triângulo é 180°.
O agrimensor sabe disso na prática e sabe o que sabe apenas para
o caso em questão. O matemático sabe o que sabe por meio do
pensamento puro, e já que tem acesso aos axiomas da geometria
euclidiana, o que sabe, sabe para todos os casos concebíveis. Mas
se o matemático tem acesso a todos os triângulos, não tem acesso
a todos os teoremas da mesma maneira; porque não importa quan­
tas deduções tenham sido feitas, há infinitamente outras para se
fazer. A verdade simplesmente não tem um fim. Isso pode sugerir
que a geometria euclidiana não só é difícil como também está con­
denada. Mas, não. Há em funcionamento um processo de subli­
mação, no qual o matemático faz uma parte do trabalho envolvido
em abarcar o. infinito sem jamais fazer tudo. Embora os axiomas
sejam finitos, são também inexauríveis, permitindo que o m ate­
mático continue pelo menos enquanto conseguir continuar.

58 D avid B erlin ski


aritméticas ou aforismos infantis; os números naturais, 1, 2, 3,...
prosseguem indefinidamente, e então nossa confiança na aritmética
com o sistema vai além —muito além —da confiança de que podemos
repousar em qualquer uma de suas partes finitas.
O mundo das formas, linhas, curvas e sólidos é tão variado
quanto o mundo dos números, e é apenas o fato de termos há tanto
tempo a geometria euclidiana que nos dá a impressão, ou a ilusão,
de que este mundo já foi incluído em uma estrutura intelectual
manuseável. As características dessa estrutura são bem conhecidas:
como no resto da vida, algo é dado e algo é obtido; mas a lógica por
trás dessas características tende a passar desapercebida, e é a lógi­
ca que controla o sistema.
A geometria euclidiana parte de um conjunto finito de axio­
mas; destes, o m atem ático deriva várias conclusões geom étricas
ou teoremas. A soma dos ângulos internos de um triângulo é 180°.
O agrimensor sabe disso na prática e sabe o que sabe apenas para
o caso em questão. O matemático sabe o que sabe por meio do
pensamento puro, e já que tem acesso aos axiomas da geometria
euclidiana, o que sabe, sabe para todos os casos concebíveis. Mas
se o matemático tem acesso a todos os triângulos, não tem acesso
a todos os teoremas da mesma maneira; porque não importa quan­
tas deduções tenham sido feitas, há infinitamente outras para se
fazer. A verdade simplesmente não tem um fim. Isso pode sugerir
que a geometria euclidiana não só é difícil como também está con­
denada. Mas, não. Há em funcionamento um processo de subli­
mação, no qual o matemático faz uma parte do trabalho envolvido
em abarcar o. infinito sem jamais fazer tudo. Embora os axiomas
sejam finitos, são também inexauríveis, permitindo que o m ate­
mático continue pelo menos enquanto conseguir continuar.

58 David Berlinshi
Os axiomas de um sistem a m atem ático estão entre os arte-
falos da civilização, e foi para o trabalho sem fim de cultivar e cons-
Imir que Peano deu sua extraordinária contribuição. Em 1889, ele
publicou um conjunto de axiomas para a aritm ética, propondo,
pela primeira vez desde os gregos, incluir outro aspecto do infinito
no mundo puram ente humano de símbolos, axiomas, inferências,
provas, lápis, papel e o que mais for necessário para levar um
m atem ático de um lugar para o outro.
São cinco os axiomas:

1. 0 é um número
2. O sucessor de qualquer número é um número
3. S e a e b são números, e se seus sucessores são iguais,
então a e b são iguais
4. 0 não é o sucessor de qualquer número
5. Se S é um conjunto de números que contém 0, e se
o sucessor de qualquer núm ero n de S está tam bém
contido em S, então S contém todos os núm eros.

■ ■ ■ ■ E eis o próprio Giuseppe Peano andando lentam ente até


a Iribuna na grande sala de conferências da história. Está usando
habitual terno marrom surrado. Fala em seu curioso modo
i.m/.in/a, áspero e baixo. Está se dirigindo a m atem áticos do mundo
iodo, que estão sentados na platéia, mas, como todos os grandes
lionuMis, ele está se dirigindo ao futuro. Sente o ônus da explica­
r ã o . I lá em sua testa rugas, linhas profundas de concentração. E le
ap on ta um dedo curto para o ar.
() zero — diz ele — é um número.
Exatam ente — dizem os m atem áticos. — Exatam ente.

O ADVENTO DO ALGORITMO 59
— Qualquer que seja o número — diz Peano —, o próximo nú­
mero também é um número.
Ele faz uma pausa para ver se todos estão entendendo, depois
acrescenta:
— Os números formam uma sucessão interminável. — Outra
pausa. — Eles continuam indefinidamente.
— Exatamente —dizem os matemáticos. —Exatamente.
— Quaisquer que sejam os números —prossegue Peano —, se
os mesmos números vêm depois deles, os números são iguais.
Os matemáticos tossem, resmungam e batem os pés.
—Não há números antes do zero —diz bruscamente Peano. —
Os números podem continuar indefinidamente, mas, como o cosmo
—e aqui ele faz um gesto com as mãos apontando para o céu —, que
adivinhos dizem que nasceu de uma explosão, eles têm um início.
E, finalmente —completa Peano —, as propriedades dos números são
indutivas. Elas se espalham para cima como uma mancha se moven­
do passo a passo. Se o zero tem uma certa propriedade, e se o fato
de que qualquer número tem essa propriedade significa que o nú­
mero depois dele tem a mesma propriedade, então todos os números
têm essa propriedade.
Finito.
MMMM

A ESCADARIA DA ADIÇÃO

Os axiomas de Peano propõem a substituição de um número


infinito de números por um número finito de símbolos. A substi­
tuição é suficientem ente generosa para abarcar todas as operações
aritméticas ordinárias. A adição é um exemplo. Se b é o número 1,
a + b é definido como o sucessor de a. A definição e os fatos estão

60 D avid B erlinski
de acordo. A soma de 3 e 1 é o sucessor de 3. Eu poderia muito
bem chamar a definição de regra — regra número 1, na verdade —
);i <|ue o maquinismo verbal no qual é expresso é essencialmente
imperativo, servindo para fazer com que alguém faça alguma coisa.
A operação que funcionou tão bem para 3 + 1 funciona bem no­
vamente para 3 + 2. Sabemos, porque os axiomas de Peano nos asse­
guram disso, que 2 é o único sucessor de algum outro número —de 1,
nesle caso. Dado o valor de 3 + 1, o valor de 3 + 2 pode ser computado
Klicionando-se 1 a 3 +1. A soma de 3 e 2 é o sucessor de 3 +1.
A operação que agora já funcionou tão bem duas vezes, fun­
ciona por uma terceira vez com 3 e qualquer número. A soma de 3
i (f ualquer número c é o sucessor de 3 + um número by onde c é o
micessor de b.
Com a âncora do número 3 bem levantada e descartada, a
mesma operação que funcionou tão bem funciona com quaisquer
dois números. A soma de quaisquer dois números a + c é o suces-
*.or dc a + Z?, onde c é o sucessor de b.
E esta é a regra número 2.
As regras 1 e 2 têm um efeito de escada. O matemático compu-
la a soma de dois números primeiro descendo até o porão aritmé-
I ieo, onde ele consulta a regra número 1, e depois vai subindo com
dificuldade de volta até chegar à soma desejada. Querendo saber a
\oma de 3 e 7, ele segue a seguinte escadaria:

3 + 7 = o sucessor de 3 + 6 3 + 7 = 10
3 + 6 = o sucessor de 3 + 5 3 +6=9
3 + 5 = 0 sucessor de 3 + 4 3 +5= 8
3 + 4 = o sucessor de 3 + 3 3 +4= 7
3 + 3 = o sucessor de 3 + 2 3 +3= 6
3 + 2 = o sucessor de 3 + 1 3+2= 5
3 + 1 = o sucessor de 3 3+1=4
—> o sucessor de 3 = 4 —>

O AD VEN TO DO A L G O R I T M O 61
Cada descida e cada subida de degrau é mediada pelas regras
1 e 2; e o uso delas vai se dando a seguir por meio apenas de uma
troca de identidades.
Todo truque de mágica depende de desviar a atenção. Este tam­
bém. Depois de ter contado nos dedos até dez, qualquer estudante
que não está preparado para contar além disso pode muito bem se
perguntar por que será necessária uma definição complicada para
determinar algo que já foi determinado. Enquanto o lenço do mágico
flutua por sobre sua cartola surrada, o verdadeiro coelho pode agora
ser visto pulando na direção das cenouras. Deixemos o coelho de
lado: aqui estão as cenouras. Algo complicado — a adição —foi defi­
nido em termos de algo simples —a sucessão. Algo mental —a adição
—foi definido em termos de algo mecânico —a sucessão. Algo infini­
to —a adição —foi definido em termos de algo finito —a sucessão. Algo
derivado — a adição — foi definido em termos de algo primitivo — a
sucessão. Não é necessária a intuição e se não fosse pelo fato de que
aqueles passos estão sendo dados no contexto dos axiomas de Peano,
que conservam vestígios úmidos de sua poderosa inteligência, o ma­
temático poderia facilmente se convencer de que por um ato de sin­
gular prestidigitação, ele ganhou alguma coisa a troco de nada.

U MA LISTA DE ITENS
A SEREM CONFERIDOS

Leibniz se voltou para sua Característica Universal e para uma lista


de itens a serem conferidos para ratificar juízos ordinários sobre
conceitos ordinários. Os axiomas de Peano e a definição de adição

62 David Berlinski
n |K)ssibilidade de subordinarmos somas à mesma lista, o
|ui/,o de (|ue 3 + 2 = 5 exigindo treze passos para que surja no
« sdcmo sul — o lado ensolarado — da certeza:

1. Considere: “ 3 + 2 = 5” 1 Confere |
2. Procure: “ axiomas de Peano” Confere
3. Considere: “ 3 + 1 ” — - Confere ;
4. Procure: “ regra 1” ' Confere
5. Aceite: “3 + 1 = o sucessor de 3 ” 1 Confere
6. Aceite: “o sucessor de 3 = 4” - “Confere
7. Aceite: “3 + 1 = 4” Confere
8. Procure: “ regra 2 ” „C o n fe re 1
9. Aceite: “3 + 2 = o sucessor de 3 + 1” Confere |
10. Procure: “ linha 6” Confere ,
11. Aceite: “3 + 2 = o sucessor de 4” ! Confere
12. Aceite: “o sucessor de 4 = 5 ” r Confere i
13. Imprima: “3 + 2 = 5 ” Confere

A lista representa a escadaria de adições, é claro, mas vai mais


longe, abarcando, em pequenos passos discretos, a totalidade de um
processo que vai de Considere : “3 + 2 = 5” a Im prim a : “3 + 2 = 5”,
<• desta forma vai seguindo seu caminho da contemplação até a
<onvicção.

m m m m Gottfried Leibniz agora aparece no palco. Com um tosco


MMiuíforo na mão, ele está sinalizando freneticamente para Peano,
n quem ele vê a grande distância no futuro. Peano coloca a mão em
concha sobre a orelha e tenta ouvir. “Leibniz’, diz ele com afabili­
dade, “formulou há dois séculos o projeto de criação de uma escri-
i.i universal na qual todas as idéias compostas seriam expressas por
meio de sinais convencionais para idéias simples, de acordo com
içaras fixas.”

O A DV E NT O DO A L G O R I T M O 63
Sinais, símbolos, regras —uns sessenta anos antes que os lógi­
cos finalmente fixassem o conceito em formol, um aspecto da
mente humana havia sido retratado como um algoritmo.
m m m m

O MERCADOR DE SONHOS

m & ü m Em alguma parte, tenho certeza, Juvenal relata a mara­


vilhosa história de um quarteirão que já era antigo quando Roma
era nova, onde uma antiga família judaica ganhava a vida venden­
do sonhos. Curiosos entravam e saíam da estrebaria do mercador,
passando o tempo, falando de sonhos que pudessem comprar. Traba­
lhadores e escravos encurvados pelo trabalho duro pediam timida­
mente sonhos de vida mansa. As mulheres pediam sonhos de amor,
e os homens, sonhos com mulheres. Senadores se empurravam no
exíguo espaço de modo ostensivo e exigiam sonhos de eloqüência e
poder, enquanto seus lacaios tiravam do caminho as cabras que ainda
andavam aos bandos pelas ruas a comer a grama entre as pedras do
calçamento. Tarde da noite, quando Roma estava às escuras, os inso­
nes se esgueiravam pelas vielas estreitas que levavam à estrebaria
do mercador de sonhos, segurando suas lanternas e batendo com o
nó dos dedos na janela do mercador de sonhos.
— Quem é? — sibilava ele, indignado. —A esta hora!
— Não consigo dormir, preciso de um sonho.
Entre o mercador procurando sua túnica e o barulho que se
seguia havia um intervalo de tempo. A porta se abria. Lá estava ele,
com a lanterna lançando uma luz tremeluzente sobre seu rosto
fino, arrasado.

64 David Berlinski
— Você quer um sonho? Que tipo de sonhoí
— Qualquer sonho. Qualquer um.
— Por quatro denários você pode sonhar com leite e mel.
— Tenho só dois.
Sonhos com cabras e mulas, então — dizia o mercador, fe ­
chando um pouco a porta.
— E por três?
— Por três denários? Pode sonhar com Jerusalém.
— Não sou judeu.
— Quem pede não escolhe — observou o mercador.
— M uito bem. Que eu sonhe com Jerusalém.
O tilintar de moedas invadia a noite, e depois o mercador fecha
va a porta.
Em um dia de inverno, quando as ruas de Roma estavam
cobertas por um nevoeiro e os homens saíam apressados das ter­
mas com suas túnicas seguras contra o pescoço, um homenzinho
moreno vestido à moda grega bateu na porta da estrebaria do mer­
cador de sonhos.
— Estou aqui da parte de meu senhor — disse ele, com o
solaque ridículo de alguém cuja língua nativa não era o latim.
O mercador de sonhos cofiou a longa barba branca como a
i ícve.
— Que está aqui, posso ver por mim mesmo — disse ele. —
< ) que quer seu senhor?
— Um sonho.
— Eu tenho sonhos e sonhos.
— M eu senhor é rico.
— Que ele sonhe com beleza, então — disse o mercador de so­
nhos. — Por cem denários ele pode sonhar que ocupa um palácio
Icilo de ouro forjado. Há um cheiro de incenso no ar. Ele se deitará

O ADVENTO DO ALGORITMO 65
em uma cama de seda, sob violetas trituradas, e mulheres de mis­
teriosos olhos negros abanarão o ar perfumado e cantarão para ele.
O lacaiozinho moreno tirou um saquinho de couro de sua túni­
ca e cuidadosamente contou cem denários. O mercador de sonhos
aceitou o dinheiro, levantou um dedo e sumiu no sujo interior da
estrebaria. Em instantes, voltou, trazendo o sonho de beleza.
O dia seguinte era o sabá. A estrebaria do mercador de sonhos
estava fechada e com os postigos cerrados, mas, no dia seguinte a
esse, o homenzinho estava de volta. Bateu novamente à porta da
estrebaria. O mercador de sonhos olhou para ele com os traqueja­
dos olhos semicerrados.
— E então?
— Meu senhor ficou muito satisfeito — disse ele —, mas agora
que sonhou com a beleza, ele quer sonhar com o amor.
O mercador de sonhos sabiamente assentiu com a cabeça e
disse:
— Por duzentos denários, seu mestre pode sonhar que passou
a noite no Templo do Amor, onde a própria deusa Afrodite vai
enfeitiçá-lo com seus encantos. Ele vai repousar aos suspiros da
primavera e provar os frutos do paraíso.
Novamente o homenzinho moreno pegou sua bolsa de sob a
túnica e de novo o mercador de sonhos trouxe um sonho.
Uma semana se passou, durante a qual o mercador de sonhos
vendeu sonhos para soldados, doídos das batalhas, e para mu­
lheres, que haviam dado à luz natimortos, e para adivinhos, opri­
midos pelos sinais e símbolos.
E então o homenzinho moreno estava de volta. O mercador
de sonhos olhou para ele com os traquejados olhos semicerrados.
— E então? — disse ele, novamente.
— Meu senhor ficou muito satisfeito — disse ele. — Mas agora
que sonhou com a beleza e o amor, ele quer sonhar com a verdade.

66 David Berlinski
Ali disse o mercador de sonhos. — Este é meu sonho mais
• aio, I’o u r o s querem sonhar com a verdade e um número ainda
NHMioi |)ode pagar por ele.
(Juanto custa sonhar com a verdade?
( ) mercador de sonhos fez uma pausa como se estivesse cal-
« o laudo o valor. Depois disse, bruscamente:
Se seu senhor quiser sonhar com a verdade, ele mesmo deve
vii aqui, e então entrego a ele o sonho.
( ) lacaio se retirou.
No dia seguinte, houve um tumulto no quarteirão quando um
pal anqui m, precedido por quatro guardas armados, abriu caminho
P< l o bairro, fazendo com que as cabras e as galinhas se espalhas-
■.«■m |>or todas as direções. O palanquim parou diante da estrebaria
do mercador de sonhos, e dele saiu um homem alto e gordo de uns
• 11 »<11KMita anos, trajando uma túnica imaculada, que, depois de
fM*\i irular para um dos guardas para que batesse na porta do mer-
« ador de sonhos, ficou esperando solenemente à brilhante luz do
.«11de inverno.
( ) mercador de sonhos saiu, esfregando os olhos.
Sou Aristarco — disse o homem, em grego. — Estou aqui por-
qi h• desejo sonhar com a verdade.
( ) mercador de sonhos deu de ombros e depois esfregou o dedo
indicador no dedão da mão direita.
Aristarco ergueu as sobrancelhas a perguntar pelo preço.
M il denários — disse o mercador de sonhos.
Aristarco pareceu hesitar, de modo que o mercador de sonhos
• o m e ç o ii a fechar a porta da estrebaria.
Veja bem — disse rapidamente Aristarco. — Não é pelos mil
di naiios. — Ele gesticulou apontando o caro palanquim e os guarda-
• o‘.Lr: parados pacientemente ao lado dele.

O ADVENTO DO ALGORITMO 67
— Por quê, então?
- L i os filósofos —disse Aristarco lentamente —, e ouvi os adi­
vinhos e falei com os sacerdotes que conhecem os mistérios de
Eleusis, mas nunca vi a verdade. Eu vou ver a verdade se eu sonhar
este sonho?
O mercador de sonhos ergueu os magros ombros por baixo d
túnica.
— Mesmo em sonhos, ninguém vê toda a verdade.
— Que parte eu vou ver? —perguntou Aristarco.
—A parte que você consegue ver — respondeu o mercador de
sonhos.
Aristarco ficou por um instante perdido em pensamentos e,
depois, decidindo-se, gesticulou para o lacaio, que estava o tempo
todo quieto ao lado do palanquim, que fosse pegar os mil denários.
O mercador de sonhos aceitou as moedas circunspecto
desapareceu dentro da estrebaria. Quinze minutos se passaram
quando finalmente ele saiu com o sonho sobre a verdade, que colo­
cou nas mãos do lacaio. Aristarco cumprimentou-o com a cabeça
e entrou no palanquim.
Um dia se passou e depois uma semana. N o dia seguinte às
celebrações no Templo de Júpiter, novamente houve um tumulto
no quarteirão onde o mercador de sonhos tinha sua estrebaria e de
novo o palanquim de Aristarco, cercado por seus guardas pessoais,
abriu caminho pelas ruas estreitas.
O palanquim parou com um estalo diante da estrebari
Aristarco saiu, precedido pelo lacaio. Gesticulou para o lacaio que
fosse buscar o mercador de sonhos.
Em poucos instantes, o mercador de sonhos apareceu. Ele olhou
para Aristarco parado à luz do sol e disse calmamente:
— Bom dia.

68 David Berlinski
Ai i*;tarco disse:
Sonhei o sonho da verdade por sete noites.
K?
'Iodas as noites eu sonhei que estava subindo uma série de
Ltifos degraus brancos, como os do grande Templo de Júpiter.
Aristarco fez uma pausa, como se estivesse reunindo os pen-
'uimrnios. Depois continuou:
A princípio, meu coração batia violentamente em meu peito.
I mlu ver que a cada degrau eu ia ficando cada vez mais perto da ver-
•I•hI<*. líu estava com um grande desejo de ver o sol.
( ) mercador de sonhos olhou com ironia para Aristarco.
I'iii subindo cada vez mais alto até minhas pernas começa-
n ui a doer.
*
I )as ruas estreitas em torno da estrebaria do mercador de so-
nIn>*, vinha o rangido de uma manhã romana. As mulheres grita-
nnii umas com as outras e os gritos das crianças e das galinhas
• tu hiam o ar.
Aristarco olhava para o mercador de sonhos.
Knquanto eu subia — disse ele —, eu podia sentir o calor do
=mI que surgia. A luminosidade vinha do alto. Os próprios degraus
1.11*•i iivani sob meus pés. Uma grande sensação de felicidade se espa­
lhou por meus membros.
( ) mercador de sonhos continuava a olhar para Aristarco com
• traquejados olhos semicerrados, mas não disse coisa alguma.
roi então que acordei — disse Aristarco. — O dia estava cin-
• nin e eu me senti como se estivesse entrando num banho frio.
I J.i noi t e seguinte, sonhei novamente o sonho da verdade, e nova-
t
mente me vi subindo a mesma série de degraus. Desta vez fui mais
*11«» do que antes e vi que a luminosidade vinha do alto.
Hm sorrisinho irônico brincava no rosto do mercador de sonhos.

O ADVENTO DO ALGORITMO 69
— E novamente acordei — disse Aristarco —, e novamente a
aurora estava cinzenta. Por sete noites sonhei o sonho da verdade,
e por sete noites eu subi sem parar até acordar, e por sete noites a
aurora estava cinzenta.
— E? —perguntou o mercador de sonhos.
— Não estou agora mais perto da verdade do que estava antes
—disse Aristarco. — Sinto sua radiância, mas não consigo alcançá-la.
—Você deve sonhar o sonho novamente —disse o mercador de
sonhos.
— Meus sonhos são valiosos — disse Aristarco, impaciente. —
Se eu sonhar o sonho novamente, quando irei alcançar a verdade?
—Quando tiver subido todos os degraus —disse o mercador de
sonhos.
— E quando terei subido todos os degraus?
— Quando tiver alcançado a verdade.
Aristarco ficou parado indeciso à luz do sol que se alastrava.
Finalmente, disse:
— Esta não é uma resposta muito satisfatória.
— Sua pergunta não foi muito satisfatória — replicou o mer­
cador de sonhos.
— Não foi o sonho que pensei sonhar — disse Aristarco.
O mercador de sonhos abriu os braços em um gesto amplo.
— Mesmo assim — disse ele —, foi o sonho que sonhou.
Por um longo momento Aristarco ficou quieto à luz do sol, como
se estivesse pensando no que dizer. Por fim, acenou para seu lacaio,
que o tempo todo esteve quieto junto ao palanquim, e, em grego,
disse a ele que fosse pegar o sonho.
— Imediatamente, meu senhor —disse o lacaio, que desapare­
ceu no palanquim e reapareceu com o sonho.

70 David Berlinski
Estou devolvendo seu sonho — disse Aristarco, circunspec-
i" K mn sonho que não quero mais sonhar.
< ) mercador de sonhos meneou a cabeça como se para dizer
•|ii<* <ompreendia que Aristarco quisesse seu dinheiro de volta mas
••1*1 <h ilh o s o demais para pedir.
E caro sonhar com a verdade — disse ele. — Por comparação,
d IM•!(•/,'i c o amor são baratos.
Pc*la primeira vez, Aristarco deu um largo sorriso, revelando os
h yiil.ircs dentes brancos. Ele falou algo em grego rapidamente com
•» Lm .'lio, q u e então presenteou o mercador de sonhos com o sonho
•lii verdade.
Afinal — disse ele —, dinheiro é só dinheiro.
E a verdade é apenas a verdade —disse o mercador de sonhos.
Sim — disse Aristarco.
I\ com isso, ele se virou e voltou para seu palanquim, encur-
\ hm lo se para que sua cabeça não batesse no teto do coche. Um es-
IiiImIo , e o palanquim desceu a viela estreita em frente da estrebaria
•lo mercador de sonhos, precedido por seus guardas, que botavam
p’ 1111 eorrer as crianças, as galinhas e uma ou outra cabra que esti­
ve v,e no caminho.
( ) mercador de sonhos ficou observando a procissão se afas-
i>u .ile ler desaparecido da vista. Exatamente nesta hora, um jovem
\e\i ido com uma túnica imaculada saiu da viela que levava à estre-
l».n i.i do mercador de sonhos. Os notáveis olhos reluzentes em seu
(■••.to escuro eram emoldurados por um espesso cabelo oleoso. Era
o poet a Catulo.
Ele inclinou a cabeça educadamente, cumprimentando o mer-
• idor de sonhos, a quem conhecia muito bem, e disse:
Minha Lesbia, quero sonhar com ela de novo.
( )s jovens — disse ele —, sempre querem sonhar com o que
p* i d<*ram.

O ADVENTO DO ALGORITMO 71
Catulo olhou-o com curiosidade.
— E os velhos?
—Com o que ainda não encontraram —disse o mercador de so­
nhos, virando-se sobre os calcanhares para ir buscar o sonho do
poeta.
i i i B

E n c o n t r o m a r c a d o e m T u r i m

Peano era um professor talentoso, mas sua carreira foi marcada por
tumultos estudantis do tipo que poderiam ter acontecido em
Berkeley ou, mais tarde, na Sorbonne. Os relatos são deliciosos, já
que os tumultos foram precipitados, como essas coisas freqüente­
mente o são, por algum estorvo trivial. No ano de sua promoção
oficial a professor titular de matemática, os estudantes foram para
as ruas no início e no fim do ano, invadindo os prédios da univer­
sidade, quebrando portas e saqueando arquivos. Pelo que pude
descobrir, nunca foram criticados ou punidos, já que os fun­
cionários da universidade e do governo de Turim eram da opinião
bem-humorada mas obviamente lunática de que os estudantes são
mais bem treinados pela indiferença.
Ele gostava de voltar à aldeia onde nascera. A fazenda ainda
está no nome da família. Seu corpo esguio e o selvagem rosto magro
sugerem o aspecto imemorial do camponês, que hoje pode ser
encontrado apenas nas aldeias esturricadas da região de Abruzzos.
Era um matemático sofisticado e membro da ampla e generosa
cultura européia que, para os que viviam em seu âmbito, parecia
genuinamente marcada pela imortalidade. Logo estava em ruínas,
e a cultura que havia expressado, irremediavelmente esmagada.

72 David Berlinski
Vano viveu até 1932 e envelheceu sob o regime de Mussolini. Como
,cibniz nunca perdeu o poder sobre sua imaginação, ele se envolveu
*m vários esquemas para uma linguagem universal. Foi produtivo
|tiase até o fim, mas muitas pessoas se tornaram um anacronismo, e
.11 ponho que Giuseppe Peano tenha sido uma delas. Sua tosse crôni-
a licou pior, sua voz foi ficando mais áspera até virar um grasnido.
Mesmo assim, ele foi vivendo, comendo as mesmas refeições todos
>s dias e todos os dias subindo com dificuldade os degraus para seu
ipartamento, cujo corredor cheirava a alho e fumaça.
Segui seu caminho apenas uma vez. Eu havia dirigido o dia
<>do e a noite toda, vagando sem destino pelo sul da França e
lepois pela parte central da Itália, cruzando a fronteira em algum
ti^ar ao sul dos Alpes e depois cruzando a suave e longa autostra-
l<iy com uma fita da N on a Sinfonia de Beethoven no toca-fitas do
><*queno conversível BMW que eu estava dirigindo. Caminhões pe­
didos percorriam a estrada. O cheiro de gasolina e asfalto, de algo
lesagradável vindo de longe, e campos de arroz sendo cultivados.
)(‘pois a autostrada desembocou em uma rede de rodovias subur-
»iinas que de vez em quando davam passagem a ruas de cidades.
',ii estava em Turim. A chuva caía leve sobre a cidade curtida e
narrom. Longos bulevares, cafés e bistrôs caindo aos pedaços, onde
>*. homens se debruçavam sobre mesas de carteado, e bebiam Pernod
o m água; aqui e ali uma mercearia e até uns poucos restaurantes,
• o bulevar que terminava em um cruzamento circular em cujo
entro estava uma estátua de Garibaldi. Passei a noite no H otel
I.isanova, um lugar muito pouco romântico, de teto baixo e chei-
,indo estranhamente a pó de serragem, imagino que resíduo do
nehimento das paredes.
Iiirim foi a cidade de Peano, mas foi também a cidade de Primo
I ,evi, o local onde ele se matriculou em química e de onde foi man­

O ADVENTO DO ALGORITMO 73
dado para Auschwitz. O prédio de apartamentos onde morava não
fica muito longe do prédio onde Peano morou e morreu. Eu co­
nhecia a rua e fiquei perambulando por ela na chuva rala; empurrei
as pesadas portas de madeira, fazendo as luzes do corredor se
acenderem. Dava para ver a escadaria central em espiral de onde
Levi havia se jogado para morrer. Logo depois, as luzes do corredor
se apagaram sozinhas.
Os gregos estavam certos sobre isso, como estavam certos
sobre tudo. Não há escapatória.

74 /)avid Berlinski
3

B r u n o , o M e t i c u l o s o

I IÁ ALGUMA COISA NO UNIVERSO que estabelece —que garante — que


<>s problemas banidos de um local mais cedo ou mais tarde apare-
<<‘in em outro, com os dentes à mostra e inextirpáveis. Cansado
*l<>s dissabores domésticos, um homem descobre, depois do divór-
» lo, que a solidão é insuportável; a dor que há pouco sumiu do
«ledão do pé encontra moradia na região lombar, onde de alguma
loi ma parece ainda pior. Estou dando exemplos de uma lei da
n.itureza tão implacável quanto a gravitação. Os axiomas de Peano
pioporcionam uma rota para o infinito. Mas se os axiomas são finitos,
« (l(* fato, também, cada degrau da escadaria aritmética, o número
«l<- teoremas, degraus e conclusões que podem ser inferidos dos
imoi nas é em si novamente infinito, no mínimo porque existe uma
qu.ml idade infinita de números e, portanto, inevitavelmente ques-
inrs sobre um sistema aritmético reaparecem disfarçadas como
qucslões sobre um sistema axiomático.

O ADVENTO DO ALGORITMO 75
Será o sistema axiomático consistente? Pode o matemático ter
certeza de que em alguma altura do século XXXIII algum estudante
engenhoso em Calcutá, ao subir a escadaria aritmética, não vai
descobrir que enquanto “3 + 2 = 5” resulta dos axiomas de Peano,
“3 + 2 = 6” também, reduzindo assim o feito à incoerência? Pode
o matemático ter certeza, por falar nisso, de que o sistema arit­
mético é completo ? A escadaria da aritmética é interminável, é ver­
dade, mas como uma jovem de Xangai está destinada a escrever
(por acaso, em chininglês)1: É m uito estranho que existam certas
verdadezonas aritméticas que a escadaria nunca alcança —o fato de que
3 4- 17.293.456 = 3 + 17.293.459, para ser muito preciso. Segue-se
o sinal em chininglês para hein?
Sinal, símbolo e escadaria servem de refúgio contra dúvidas
aritméticas; e os exemplos que eu inventei são absurdos, no míni­
mo porque sabemos, e sabemos com total confiança —certo? —que
a soma de 3 e 2 não é 6, e que 3 somado a 17.293.456 é exata­
mente o que se supõe que seja, pelos axiomas de Peano, e, pelo
senso comum, resulta em 17.293.459.
Mas se os exemplos são absurdos, não o é a insegurança que
eles engendram. Essa fica, como o gosto do chá. Esses exemplos
são absurdos. Muito bem. E há outros? Quem sabe que Trôpego
Outro pode muito bem estar subindo aos tropeções a escadaria
aritmética? Ou descendo aos tropeções a escadaria?
O olhar da dúvida mudou de foco, retirando sua atenção d
sistema aritmético, e com a mesma intensidade diabólica começou
a examinar o sistema axiomático.

1. Língua muito usada nos chats da Internet, uma mistura de chinês com inglês.
(N . da T.)

76 David Berlinski
O G N O M O DA LÓ G ICA

\ Indica aristotélica é maciça e marmórea, mas todo monumento


m1111111 la grafites e o silogismo não é uma exceção. Eruditos
medievais descobriram sutilezas no sistema e escreveram seus no-
III«". com giz para contar ao mundo o que descobriram. Abelardo
I<*i mui lógico, além de amante, e enquanto a ralé nas tavernas
I»iii i‘.icMises do século XII cantava canções de amor, batendo as
• ii i<*<*«is nas mesas a cada estribilho, ele estava engajado em deba-
1«•*. quando não estava ocupado beijando Heloisa —, dando palestras
mm*, lopos dos morros de Paris, onde os estudantes se reuniam a
pés.
I ,eibniz ampliou as margens do sistema aristotélico, e, dois
* * 1 1 1<>s mais tarde, o mesmo o fizeram os.lógicos ingleses George
Mnnlr, Augustus De Morgan e John Venn, tendo Venn em especial
l«»i nccido uma série muito elegante de diagramas. Ele mostrou que
< o círculo de cães está contido dentro do círculo de mamíferos e
mi ii eu lo de mamíferos está contido dentro do círculo de animais
c\tou esboçando isto no quadro-negro agora, e quem estiver
Ui.indo uma soneca na fila de trás é melhor parar — olha só isso, o
« In ulo pequeno está dentro do grande círculo e o grande círculo
•■\Li dentro do círculo ainda maior e todos os cães são animais...
I )eixa para lá. É a lógica moderna que interessa, e o que int
M-v..i ó em sua quase totalidade criação de Gottlob Frege, o gnomo
d i lógica.
Sua vida foi lúgubre. Frege nasceu em 1848 em Wismar, que
lh .i na província de Mecklenburg-Schwerin. Lúgubre o bastante.
I ti a no norte da Alemanha, no território que dá para o mar Báltico.

O ADVENTO DO ALGORITMO 77
Lúgubre mesmo. É uma zona rural de florestas escuras e umbrosas,
com bruxas, elfos, duendes e homens parecidos com sapos que se es­
condem por trás de árvores sombrias. À noite, os mochos orelhudos
piam, lobos de pés pretos trotam irrequietos pelas trilhas da floresta
e corcundas se reúnem cm ravinas sombrias para tocar clarinete.
Frege passou toda a sua carreira acadêmica na Universidade
de Jena, subindo com dificuldade, como Peano na Itália, os degraus
obrigatórios da escadaria acadêmica: Privatdozen em 1871, e por­
tanto autorizado a aceitar alunos de graça, Ausserordentlicher
Professor em 1879, Professor em 1896, e depois disto Herr Professor,
com a vogal aberta de Herr seguida nas conversas pelas três bati­
das regulares de Professor.
Ficou casado por muitos anos — e feliz, que eu saiba —, tendo
D ie Gnädige Frau Frege morrido junto com a Europa durante a Pri­
meira Guerra Mundial, o que anuviou uma personalidade que já
era melancólica, solitária, rabugenta, anacoreta e introvertida.
E parece que era — de fato, era —um feroz anti-semita, vendo
nos tristes, condenados e refinados judeus alemães uma presença
estranha indesejável e, sem dúvida, encarando a turbulenta onda
de judeus da Europa Oriental — que havia varrido a Alemanha no
início do século e que com assombrosa falta de discernimento havia
se estabelecido em Leipzig, Dresde ou na própria Weimar — com
sentimentos explícitos de repugnância. Não gostando de judeus,
Frege também não gostava de católicos, a marca de sua indignação
tendo uma natureza ecumênica. Era profundamente devotado à
monarquia alemã, e seu grotesco e perigoso kaiser recebia de Frege
os sentimentos respeitosos que ele não tinha a quem mais dispen­
sar. Com as exceções de Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein e,
até certo ponto, Edmund Husserl —um trio e tanto, é claro —, seus
contemporâneos não conseguiram fazer a menor idéia de seu tra-

7H David Berlinski
Ii.ilho. Foi ignorado quando apareceu, e se filósofos e lógicos hoje
• nncordam que Frege foi o maior de todos os lógicos matemáticos,
.n> menos porque foi o primeiro, seus panegíricos chegaram tarde
demais para servir-lhe de refrigério. Morreu em 1925.
E morreu só.

U m c á l c u l o de f o r m a s

I lin sistema axiomático estabelece uma relação que reverbera


enire o que um matemático pressupõe (os axiomas) e o que ele
I m>de inferir (os teoremas). N a melhor das circunstâncias, a relação
e clara o suficiente para que o matemático possa submeter seu
i .iriocínio a uma lista informal de itens a serem conferidos, indo de
degrau em degrau com a tranqüila confiança de que os degraus são
I »rquenos o bastante para que ele não se atrapalhe nem tropece. É no
» milexto da lista que o conceito de algoritmo se move como um
<.mmguejo até a tela da consciência, mas ainda cinza, parcialmente
Immado, ainda impreciso e indistinto. Essa lista, afinal, é um expe­
diente meramente retórico de minha lavra, e o lógico que está pre-
I».nado para hesitar ante qualquer alegação aritmética ou lógica di-
licilinente vai ser tranqüilizado pelos meus gritos de “confere”.
—O que você que dizer com confere? Vá conferir você mesmo.
A objeção do matemático é, obviamente, que eu deixei coisas
demais sem serem especificadas, e que o barulho de chicote dos
meus confere eram programados para soar quando eu mais precisa-
v.i <1 1 ie soassem, o que é muito suspeito.
E no contexto de um sistema form al que a própria lista de
iiens a serem conferidos é absorvida na estrutura do sistema, como

O ADVENTO DO ALGORITMO 79
tinta se infiltrando na parede, e a especificação de um sistema for­
mal é o primeiro exemplo claro de algoritmo, trazendo assim um
velho conceito à vida.
Um sistema axiomático compreende axiomas e teoremas e
requer uma certa coordenação entre a mão e o olho para funcionar.
Um sistema formal compreende uma lista explícita de símbolos,
um conjunto explícito de regras que governam a convivência entre
ele, uma lista explícita de regras que governam explicitamente os
passos que um matemático pode dar ao ir das pressuposições para
as conclusões. Não há nenhum apelo ao significado ou à intuição.
Os símbolos perdem seus poderes referenciais; as inferências se
tornam mecânicas.
O cálculo sentenciai é o sistema formal mais simples que se
pode imaginar, e, como seu nome sugere, é um sistema no qual pro­
posições inteiras (ou sentenças) têm relações umas com as outras.
O sistema é frugal o suficiente para que apenas uma mancheia de
símbolos baste.
Um conjunto ou coleção de símbolos sentenciais:

p, a r, s,..

para começar. Eles representam sentenças, com P representando


impassivelmente “O fígado é um órgão grande”, ou “Varsóvia fica na
Polônia”, ou qualquer outra proposição. Não é permitida a decom­
posição de proposições em suas partes. “O fígado é um órgão
grande” e “Varsóvia fica na Polônia” vão em frente como múmias
que se movem rigidamente, e os lógicos ficam indiferentes à subs­
tância por baixo das mortalhas. Com as configurações internas
removidas ou ignoradas, tudo o que resta para distinguir as pro­
posições é a verdade ou a falsidade delas.

80 David Berlinski
A seguir, uma coleção de símbolos especiais:

&,V, D

~ u » / - ' ‘L I « ~ >>\ «o » / ' 1 1 << ” \ “ »


Sao — (o sím bolo para nao ), & (o sím bolo para e ), v
(n símbolo para “ou”), e “D ” (o sím bolo para inferência, que se lê
"se... então”); o propósito deles é o de servirem de sentinelas entre
nu na trente de símbolos sentenciais.
Finalmente, dois sinais de pontuação:

um parêntese à esquerda e um à direita.


A camada externa da proposição “O fígado é um órgão grande”
mi "Varsóvia fica na Polônia” emerge do lado de cá da sanidade
« umo ( P v Q ) .
Nada até aqui é ainda especialmente formal, ou, por falar
nisso, especialmente interessante; os símbolos foram criados para
n picsentar as camadas externas das sentenças. Mas, com os sím­
bolos em seus lugares, o lógico agora se incumbe do que vai se
loi nar uma manobra característica, subtraindo do sistema todos os
vsií^ios de seu significado ou de sua interpretação. O que resta é
um sistema formal, um esquema de símbolos cuja identidade não
v.ii além de suas formas.
Aquela voz brilhante, profética, agora soa novamente, agitan-
•ln st» pelos séculos afora. “A Combinatória”, escreveu Leibniz (em
bsrrvações que já citei), “trata do cálculo em geral, ou de sinais
n caracteres gerais (como A, B, C, onde qualquer um deles pode
< i usado no lugar do outro à vontade), e das várias leis de arran-
|os c transições, ou de fórmulas em geral.”

O ADVENTO DO ALGORITMO 81
C e r t o , B r u n o ? C e r t o ?

A especificação de um sistema formal continua como se o lógico


estivesse explicando as coisas para um interlocutor capaz mas
malevolamente escrupuloso —alguém chamado, digamos, Bruno.
Tendo já apresentado a lista de símbolos primitivos para Bruno,
que, suponho, os aceitou com um grunhido de relutância, o lógico
a seguir se encarrega das regras gramaticais que governam a for­
mação deles. Há apenas três. (Letras latinas maiúsculas em negrito
como “A ” ou “B” são usadas para se falar sobre fórmulas e repre­
sentar um dispositivo explanatório. Elas mesmas não fazem parte
do sistema formal.)

1. Um símbolo sentenciai sozinho é gramatical ou bem


formado.
2. Se qualquer fórmula A (tal como (P v Q )) é bem for­
mada, então também o é sua negação ~ A (~(P v Q )
neste caso).
3. S e A e B são fórmulas bem formadas, então também
o são (A & B), (A v B) e (A D B).

Estas fórmulas lembram a Bruno, e deveriam lembrar a você,


a escadaria aritmética na qual a ação se dá por meio do gatilho
duplo de descida e verificação.
Bruno interrompe para pedir uma demonstração. Fico feliz
em agradar.

H2 David Berlinski
1. ((P v Q ) &f?) <— (Esta fórmula é gramatical?)
((P V Q) & R) <- (Sim, se esta fórmula é gramatical, pela regra 2)
: i. ( ( P v Q ) & f l) < r- (Esta fórmula é gramatical?)
'1. (/’ v Q ) <— (Sim, se esta fórmula é gramatical, e
!..// < - esta fórmula é gramatical também, pela regra 3)
u. (P V Q) < - (Esta fórmula é gramatical?)
/. P ^— (Sim, se esta fórmula é gramatical, e
H. Q ^— esta fórmula é gramatical também, pela regra 3)
11. P ^— (Esta fórmula é gramatical, pela regra 1)
0. Q <— (idem)
\.H (idem)
—> e assim por diante subindo a escadaria para verificar a linha 1 —>

Interpolei minhas próprias observações parentéticas estrita-,


mente para a comodidade de Bruno. A questão quanto a se uma
«Lula formula é bem formada é decidível em um número finito de
p.r.sos e decidível por meios mecânicos e decidível por meio de um
pmcedimento que desafia até a capacidade de Bruno de hesitar e
duvidar.
Certo, Bruno? Certo? Certo.

P r o v a a l é m d e q u a l q u e r d ú v i d a

\ iiiii sistema formal foram dados mãos, olhos e orelhas; nenhuma


membrana entre os dedos dos pés — confere. Nenhum dedo extra
>
•■ui parte alguma — confere. Mas antes que a criatura novinha em ^
Iniba possa ir de axiomas a teoremas, primeiro deve ter um con-
|iml<> de axiomas com o qual possa trabalhar e regras explícitas
p.na manipulá-los. Se não, o sistema não seria formal.
I lá três axiomas.

O ADVENTO DO ALGORITMO 83
1. P D ( Q D P )
2 . S D ( P D Q ) D ((S D P) D (S D Q ))
3. (~ P D ~ Q ) D (Q D P )

E não há motivo —absolutamente nenhum — para perguntar o


que estas fileiras de símbolos significam .
Elas não significam coisa alguma. Funcionam como formas e,
portanto, como símbolos reduzidos às suas essências.
A seguir, as regras de inferência. Há apenas duas, mas a segun­
da requer uma digressão explanatória. A seqüência de formas

(P D Q )

consiste de cinco símbolos; a seqüência de formas

(fi D S) D (T D W ),

de onze. Mas, francamente, estas duas fórmulas têm a mesma


forma, a ferradura da inferência (“D ”) nos dois casos ficando entre
duas fórmulas distintas. A segunda fórmula, dizem os lógicos, é
obtida da primeira por substituição, com “R D S” substituindo “P”
e “T D W ” substituindo “Q ”. A substituição prossegue a passo ace­
lerado apenas quando fórmulas semelhantes substituem símbolos
sentenciais semelhantes e fórmulas diferentes substituem símbo­
los diferentes.
Com a substituição em mãos, o lógico agora está preparado
para expressar as regras de inferência.

84 David Berlinski
1. Se as fórmulas A D B e A são axiomas ou teoremas,
então a fórm ula B tam bém é um teorema.
2. Se a fórmula A é um axioma ou um teorema, e se a
substituição leva A para B, então a fórm ula B tam­
bém é um teorema.

I )epois de acalmar Bruno, o sistema formal agora está termi-


n.nln c pronto para ser posto em uso, digamos, provando que P D P.
li eu quero dizer prova , ou ingresso no absoluto, investindo a
p.iLivra não apenas de seu significado comum, mas tam bém de todo
»»I)<•*>() da convicção — convicção além de qualquer dúvida, convicção
■ilem da possibilidade da dúvida, e convicção além até da possi­
bilidade da possibilidade de dúvida.
A prova é feita passo a passo, tal que cada linha é um axioma, ou
h m illa de um axioma, ou resulta do que resulta de um axioma. Tendo
pmeedido de acordo com a regras da inferência, um a dem ons-
ii.ieao consiste na prova de sua última linha.

„ -- - -%\ t _
i ò ' d ( p d Q ) d ((s d P) d (S d Q)) 5 (axioma 2) > -
r ) (Q D P) D ((P D Q) D (P D P)) (substituição de P por S, Q por P e P por Q)
t / ’ D (Q D P) _ (axioma 1) " : _ _
•1 ((/> D Q) D (P D P)) k (deduzido das iinhas 2 e 3 pela regra 1)
'» r (Q D P) D (P D P) r{ ~ (substituição de (Q D P) por Q)
n /* O (Q D P) ^: (axioma 1)
f r DP (deduzido das linhas 5 e 6 pela regra 1)

lí isto é tudo, a fórm ula P D P é demonstrável. Toda pro-


poMefio im plica em si mesma, e conquanto isto seja algo em que
indo m undo acredita previamente, agora é algo conhecido. Eu
m.1 1»<*i de prová-lo.
I\ Bruno? Bruno está satisfeito.

O ADVENTO DO ALGORITMO 85
V i s ã o d u p l a

Vou confessar. Nós, os lógicos, nos levantamos pela manhã,


resmungamos de insatisfação, escovamos os dentes e penteamos o
cabelo, depois vamos gingando como patos enfrentar o jornal, o
café, e aqueles malditos bolinhos de farelo de trigo que, sem entu­
siasmo, nos propomos virilmente a empurrar goela abaixo em uma
tentativa de baixar o colesterol. Vivemos em um mundo de signifi­
cados, propósitos, intenções e compromissos, onde cada símbolo
que usamos, o fazemos com alguma interpretação em mente. “Eu
a amo, Dafne”, significa que eu amo você , Dafne, incluindo aqui
mais do que uma seqüência de quinze formas ++. M u ito mais.
A interpretação pretendida do cálculo sentenciai não é um
mistério. Um único símbolo sentenciai é verdadeiro ou falso, e a
panóplia de possibilidades é mostrada em uma tabela de valores:

Para fins de demonstração, um símbolo requer duas linhas;


dois símbolos, quatro; três, oito; quatro, dezesseis; e n símbolos, 2n
linhas.
Contendo apenas dois símbolos sentenciais, a disjunção assim
precisa de uma tabela de valores de quatro linhas:

86 David Berlinski
< '.ida uma delas é expressa como uma condicional: se P é ver-
ilndriro (ou falso) e Q é verdadeiro (ou falso), então P v Q é verda-
*I<*11 <> (ou falso).
/\ negação de uma proposição P é verdadeira se e apenas se P
« l.ilso, e vice-versa. Isso não é nenhuma surpresa. Também não é
Miipivsa quando chegamos à conjunção: P & Q é verdadeiro se P
•■verdadeiro e Q é verdadeiro.
Quanto ao mais, a estrutura sem percalços desta análise encon-
n.i uin empecilho na ferradura da inferência:

O ADVENTO DO ALGORITMO 87
A primeira e a segunda linhas são fáceis de compreender, mas
a terceira e a quarta engendram uma hesitação de dúvida. Por que
deveria o lógico considerar a proposição “Se Varsóvia fica na China
então o fígado é um órgão grande” verdadeira simplesmente sob o
pretexto de que Varsóvia não fica na China? Por que concordar com
a condicional se Varsóvia fica na China então o fígado é um órgão
pequeno}
De tempos em tempos, os lógicos tentam explicar a si mes­
mos a este respeito, mas inutilmente. A tabela de valores para este
conectivo é simplesmente arbitrária, e o lógico tomou uma decisão
em vez de fazer uma descoberta.
Não há mais nada a esse respeito. Pode acreditar em mim.

V e r d a d e a b s o l u t a
ABSOLUTAMENTE

Tabelas de valores e as conexões que revelam pertencem ao mundo


além do mundo dos símbolos; e à parte seus encantos como dis­
positivos pequenos, compactos, elegantes e brilhantes como dia­
mantes, são úteis na criação de um novo conceito. Em sua maior
parte, as fórmulas do cálculo sentenciai são verdadeiras para
alguns arranjos de valores-verdade de seus componentes e falsas
para outros —que o diga P v Q ; mas as tautologias são verdadeiras
qualquer que seja o arranjo e, portanto, absolutamente verdadei­
ras. A fórmula verdadeira P D F , há pouco a conclusão de uma
prova, também é uma tautologia, uma circunstância que é revela­
da por outra tabela de valores:

88 David Berlinski
PDP

V V r. V
•2+ ■
1KP11

f-TÍSi^"' ?5-"=*ír > <• - - 'J

N F~ F *f£ V -
fe-r>r:;*H^g r-=-^
2 3
? tSsKr=;.-^.'K^C P^<«-

1. jcar
«** — impossível

Simplesmente não há como atribuir valores-verdade a P que


rapazes de falsificar P D P; se o absoluto parece um tanto
mi« nos impressionante do que se poderia desejar, é apenas porque,
• iiiiin Iodas as divindades, esta escolheu se revelar por meio de
•i ivmlidades.
As lautologias estão além do alcance de um sistema formal; as
pnivas, dentro. O lógico tem acesso aos dois conceitos e, portanto,
d. ‘.Iinia de uma posição de onde pode considerar dois mundos.
Ainda assim, se a idéia de uma prova incontestável se encontra den-
ini de um sistema formal, algo que se pareça com uma prova está
**1* 111, e essa é a prática humana corriqueira de mostrar que algo deve
*4* i verdade, porque, veja bem, se isso é verdade, então isto deve ser
veid.idc, e isto é verdade e, portanto, isso também é verdade.
Teorema e prova aparecem neste discurso informal, mas
h |». ii eeem em seu sentido comum, onde uma prova vem a significar
ti|Mn\imadamente o que o lógico pode fazer impunemente, e um
lei.icma, o que ele fez impunemente. Isto dificilmente é motivo para
» mi i< a. ( ) lógico faz o que pode.

O ADVENTO DO ALGORITMO 89
E o que ele pode fazer é abrir a cortina de uma conexão entre
os dois conceitos, estabelecendo em seu próprio vernáculo — e no
nosso —que todo teorema é uma tautologia e toda tautologia é um
teorema. Note a ponte de mão dupla: todo teorema é uma tautolo­
gia e toda tautologia 6 um teorema. Uma parte da demonstração do
lógico é simples e admirável, embora dificilmente seja uma prova
contra qualquer forma concebível de dúvida (calma, Bruno, calma).
Os axiomas do cálculo sentenciai são todos eles tautologias. Confere.
As regras de inferência levam de tautologias a tautologias e nada além
disso. Demora um pouco, mas depois de alguma reflexão, o confere
do lógico está próximo. Chame-o de nota promissória, que promete
provar contra apresentação que todo teorema é uma tautologia.
É um tanto mais difícil construir uma demonstração que
mostre que toda tautologia é um teorema, mas isto pode ser feito
e eu posso fazê-lo. Minha nota promissória está no correio.
Com aquelas notas promissórias em mãos ou a caminho, o
lógico tem tudo de que precisa para terminar a demonstração, e o
cálculo sentenciai está completo.
A consistência do cálculo sentenciai resulta de sua comple-
tude. Se o cálculo fosse inconsistente, poder-se-ia provar absolu­
tamente qualquer coisa. Um sistema inconsistente é intelectual­
mente pródigo. Mas a fórmula P D ~P não é uma tautologia e,
portanto, não é um teorema. São necessários apenas dois “confere”
para conferir isto.
E mais. O cálculo sentenciai é decidível, assim como com­
pleto e consistente. No mundo além do sistema formal, existe um
esquema finito, explícito e efetivo para determinar se uma fórmu­
la arbitrária é um teorema que pertence a um sistema formal.
A fórmula é uma tautologia? Porque se o for, pode ser provada, e
se não, não. O lógico não precisa derivar P D (P v Q ) dos axiomas

()() David Berlinski


piovar (|iie P D (P v Q ). Uma tabela de valores basta, e nada
*In« 11 ii*lc* negócio de descer e verificar. Diferentemente dos axiomas
•I* iV.ino, que, a despeito do que eu possa ter dito, não são com-
1 *1* lo*., consistentes e nem decidíveis, o cálculo sentenciai tem
i«hL\ as facilidades modernas.

O B r u n o e p ô n i m o

m ■ ■ ■ Bruno representou um papel meramente retórico nesta


•li*.« ussão, ao mesmo tempo uma figura cômica e um foco de dúvi-
»I r,, mas não muito tempo depois de me divertir com sua criação,
« u me dei conta, após fazer uma certa reorganização de minhas
Ifi ui »ranças, de que Bruno tinha um modelo vivo: um aluno de
|mi*. graduação de Princeton, chamado Daniel Mesmeister. Pare-
• * ik Io um cruzamento de Ichabod Crane2 com Basil Rathbone3,
McMiieister inspecionava o refeitório e a própria sala de jantar com
mIIius escuros, penetrantes, extraordinários. Ele não tinha nenhum
» ihcdal especial de conhecimentos: nenhum dom notável para a
H^umentação, nem nenhuma fonte particular de magnetismo pes-
•**11• Seu grande talento era a habilidade de transmitir uma sen-
i^.io primitiva de ceticismo por meio de uma atitude que se reduzia
• um modo de olhar fixo.
Karamente tinha alguma coisa interessante para dizer e quan­
do dizia alguma coisa o fazia de modo a rejeitar os dois lados da dis-

. ' I '••ii.onagem de Washington Irving em The secret o f sleepy holow , e também de


|•»! 111ny Depp em Sleepy hollow, filme de Tim Burton. (N . da T.)

i Alor lamoso de Hollywood que, entre muitos outros trabalhos, representou


’•Im dock I Iolmes na década de 1930. (N . da T.)

O ADVENTO DO ALGORITMO 91
cussão, criticando a intervenção norte-americana no Vietnã e com
um riso de desdém fazendo objeção à retirada norte-americana tam
bém. Depois vinha aquele olhar fixo, vazio e intimidador. Imagino
que toda pós-graduação tenha seu próprio Mesmeister, mas o nosso
era singular em sua determinação calculada de ocupar desafiado-
ramente todo o espaço cético que o resto de nós se contentava em
explorar apenas de tempos em tempos.
Certo dia, Mesmeister desapareceu ua pós-graduação. Eu
não fazia idéia para onde ele tinha ido ou do que havia acontecido
com ele. Tendo se ressentido com sua presença, ninguém lamen­
tava sua ausência. Anos mais tarde, um velho amigo da pós-gradua­
ção me mandou o seguinte conto, com a recomendação de que eu
entendesse como quisesse.

A janela por algum motivo não tinha sido aberta; o quarto


estava úmido e o ar tinha o cheiro doce, pegajoso e sem atrativos
peculiar às últimas horas da noite. Leo Rubble, com as pernas aber­
tas na forma de um triângulo, a sola de um dos pés sobre o joelho
da outra perna, dormia de costas, com as mãos em concha no baixo-
ventre e um sorriso ligeiramente infantil nos lábios. Uma jovem
dormia na quarta parte da cama onde ainda era possível deitar.
Estava encolhida em posição fetal, com a palma das mãos juntas
entre as coxas. O cabelo louro muito fino havia caído de lado sobre
seu rosto, escondendo suas feições. Embora não roncasse de fato,
sua respiração tinha uma espécie de umidade, o som começava
com uma inspiração aos trancos e terminava com uma baforada
abafada, mas explosiva.
A luz do telefone branco ao lado da cama se acendeu por um
instante; o telefone tocou.

92 David Berlinski
I ,<•<> ressonou e se sentou parcialmente, com o tronco apoia-
>!*» im*. ( <>(<>velos.
Telefone — disse ele, com a voz abafada.
\ jovem se sentou na cama em um amplo movimento leve.
K o Richard — disse ela. —Você atende. Eu não estou.
< > telefone havia tocado duas vezes. Leo atendeu o telefone,
rioMi o eorpo e ficou deitado de lado. Pigarreou para limpar a gar-

A jovem se esticou para colocar a mão esquerda no antebraço


*1. 1« , ela formou em silêncio a palavra “quem”.
I )anny! —disse Leo, sentando-se em seguida com o telefone
MM 4<>lo.
A jovem moveu-se rapidamente e deitou na cama com os
•»II m*. fechados e as mãos no rosto. Apertou os lábios e os mordeu
ih o sangue sumir e deixá-los lívidos.
( )lhe para mim — disse ela, tirando as mãos do rosto e as
• lendendo à frente. — Estou tremendo como vara verde.
I ,eo sacudiu a cabeça vigorosamente de um lado para o outro
I'.na mdicar que sua atenção estava sendo distraída.
A jovem se virou na cama para olhar o relógio apoiado no rádio.
Ele tem mesmo que ligar no meio da noite?
I ,eo cobriu com a mão o bocal do telefone e sussurrou “des-
» iilpe” para a jovem; depois fez o gesto de escrever para indicar que
pie< isava de papel e lápis. A jovem, que havia permanecido deitada
de eoslas, com os olhos abertos e fixos, virou de lado e pegou a
if.enda cm espiral que estava na mesinha-de-cabeceira. Uma cane-
i i «’sferográfica havia sido enfiada dentro da espiral.
I ,co abriu a agenda.
O quê? — disse a jovem.
I ,eo sacudiu a cabeça.

O ADVENTO DO ALGORITMO 93
A jovem se sentou; pegou o travesseiro e o colocou no colo.
Começou a afofá-lo.
Leo cobriu o bocal novamente e sussurrou “espera”.
—Estou prestando atenção — disse ele, para o telefone.
—Estou prestando atenção —choramingou a jovem, imitando-o.
—Danny —disse Leo. O som de sua voz estava pesado. Por ins­
tantes ele ficou em silêncio. Depois, disse novamente “Danny” e
depois “sim”.
Ele colocou o telefone no gancho e entrelaçou os dedos.
A jovem, que ainda estava sentada com o travesseiro afofado
no colo, olhou-o com os olhos ligeiramente apertados.
— O quê? —disse ela.
Leo Rubble estava sentado com os dedos ainda entrelaçados,
com o telefone ao lado dele sobre a cama.
— Bem? — disse a jovem.
— Ele está ligando para todo mundo — disse Leo.
— Por quê?
— Para contar.
— Contar o quê?
—Que estão planejando roubar os olhos dele. Tem umas pes­
soas planejando roubar os olhos dele.
Por um instante a jovem não disse coisa alguma.
—Ah, meu Deus —disse ela, finalmente.
mmmm

94 David Berlinski
4

C a r r e g a m e n t o e d e s a s t r e

I MAGI NE U M A L IN H A RETA indo na direção do futuro, transportan­


do um carregamento de idéias aceleradas de mais ou menos 1890
alé 1931, entre elas o algoritmo. Esse carregamento em breve vai
solVer um desastre, mas não antes que o algoritmo tenha pulado
I>ara fora, são e salvo, embora inevitavelmente contundido. Esta é
uma grande e trágica história humana e, como todas as grandes
histórias, contém elementos de arrogância e desaprovação, crime e
castigo, uma expectativa totalmente humana de que ao estabelecer
:i certeza matemática o coração humano não apenas encontraria
alívio, como também teria um embate com o absoluto. Mas, por
enquanto, isto está no futuro. Ainda é mais ou menos 1900.
Ninguém sabe o que está por vir.

O ADVENTO DO ALGORITMO .9 5
O MESTRE DA INFERÊNCIA

O cálculo sentenciai é um exemplo de sistema formal e, portanto,


um exemplo de algoritmo. Mas um exemplo não é uma explicação,
ainda menos uma definição e, de qualquer forma, o cálculo sen­
tenciai é um instrumento de vibrante trivialidade. Era a própria
aritmética que Frege tencionava dominar e, para este fim, um cál­
culo de formas sentenciais é totalmente irrelevante. Qual é a uti­
lidade, afinal, de um sistema no qual “2 + 2 = 4” e “V36 = 6” são
simplesmente engolidos como P e Q } É melhor eu mesmo respon­
der: nenhuma utilidade.
E o silogismo aristotélico também não é de muita utilidade,
por mais que possa ter ingressado no fim do século XIX enfeitado
por diagramas. Os axiomas de Peano falam de números, alguns
números, todos os números, e das propriedades dos números; a
metamorfose da linguagem matemática de Peano em um sistema
formal requer um sistema de notações e um esquema de inferên­
cias que simplesmente não existem no âmbito da lógica aristotélica.
Este sistema de notação que Frege criou é o que mais tarde veio a
ser chamado de cálculo de predicados. E ele também sobreviveu
ao desastre que viria. É hoje o monumento em sua memória.
O cálculo de predicados tem início com um aceno pro forma
na direção da antiquada análise gramatical, na qual sentenças sim­
ples como “J°lm está rezando” são decompostas em sujeito —“John”
— e predicado — “está rezando”. Por mais pro forma que o aceno
possa ser, mesmo assim representa um potencial que vai além do
cálculo sentenciai. O cálculo sentenciai só trata de proposições; o
cálculo de predicados divide as proposições em seus componentes
e depois disso parte para regiões totalmente novas.

96 David Berlinski
Na álgebra elementar, a matéria que mais provoca queixumes
no <»usino médio, variáveis como x, yy z,... são usadas para designar
iiiiincros tal que a dona Mariquinha, hoje e sempre a encarnação
do*; professores de ensino médio em toda parte, pode afirmar não
apenas que 5 x 5 = 25, como também q u ex 2 = 25, o n d ex 2 tem algo
«l.i força de um pronome demonstrativo — isso vezes isso é 25. A es­
pecificidade do número 5 se perde na expressão x 2 = 25, mas é
i ccapturada nas manipulações, e a identidade do número surge de
uin alambique de vínculos algébricos. Isso é aquele número qu e ...
li daí em diante a dona Mariquinha alisa a gola amassada de sua
blusa e suspira.
Por mais de trezentos anos, a álgebra elementar se dedicou a
manipulações numéricas elementares; mas não há razão — há? —
para que as variáveis devam ficar presas aos números. As variáveis
,\\ y z,... agora aparecem individualmente de um modo semiformal,
representando na lógica a função que os pronomes representam
<*m português, sendo a sentença “Ela é loura” cognata da propo­
sição “x é loura”, tanto ela quantos especificando algo, mas especi­
ficando este algo de modo indeterminado.
As variáveis individuais representam homens ou mamíferos,
asteróides ou astronautas, políticos ou puritanos, os elementos, de
lato, de qualquer universo de discurso, com a própria expressão
“universo de discurso” significando uma nova direção de pensa­
mento, na qual o antiquado universo dos astrônomos e astrólogos
é substituído por um novo universo de sinais e símbolos e pelas
coisas que estes sinais e símbolos significam.
As variáveis individuais constituem um terço de um esquema
conceituai; símbolos predicado, o segundo terço. Estes são desig­
nados por letras latinas maiúsculas, F, G, H,... , e correspondem
aos predicados ordinários em português — ...é loura, ousada, linda ,

O ADVENTO DO ALGORITMO 97
condenada. A proposição de que x é loura agora se transforma em
símbolos junto com aquela loura: L x .
Agora, ser loura é algo que uma pessoa é ou ostenta: o predi­
cado tem um lugar reservado para um indivíduo; mas amar ou
abandonar são relações entre dois indivíduos, e os predicados
necessários requerem dois objetos: Irma ama Philip, em conse­
qüência do que x ama y, donde Ama (x, y), em conseqüência do
que Irma abandona Philip, donde x abandona y, donde Abandona
(x, y). O cálculo de predicados engloba relações assim como pre­
dicados, e uma série adicional de símbolos representando relações
diádicas (amar, abandonar), relações triádicas (estar entre fulano e
sicrano, como quando Robert está entre Philip e Irma), e assim por
diante até relações n-á dicas, onde um número qualquer de indiví­
duos é coordenado por uma única relação de muitas cabeças,
como em um clã aborígine. Com as variáveis individuais e toda a
coleção de símbolos predicado em seus lugares, o cálculo de pre­
dicados é capaz de representar o interior escuro de muitas sen­
tenças previamente inacessíveis. Aquela cabeça de cavalo que fez
o silogismo empacar? Nada mais do que y é um cavalo & x é a
cabeça de y.
O bang da criação ribombou duas vezes, e, sim, a construção
do cálculo de predicados é um ato de criação, com o lógico logran­
do, por meio da especificação e da estipulação, dotar partes de sua
própria mente — símbolos, afinal — de toda a energia lunática da
própria vida. Aquele misterioso bang precisa ribombar mais uma
vez. Os quantificadores agora entram em cena. Em português, a
quantificação é expressa por “algum” e “todos”. Todos os homens
vivem com medo, mas alguns vivem apavorados. Esses obscuros
advérbios são simbolizados no cálculo de predicados pelo quantifi-
cador universal, V, e pelo quantificador existencial, 3. Eles fun-

98 David Berlinski
< lonam operando sobre variáveis (daí sua descrição técnica como
operadores que ligam variáveis). Alguém comeu um albatroz? M uito
l>em. Existe um x tal que x com eu um albatroz. Em símbolos:
l.vAx:. Todo mundo comeu aquele albatroz? Para todo x, x comeu
um albatroz. Novam ente em símbolos: VxAx. Nessas construções,
o quantificador liga a variável, exercendo sua atração e seu poder
•.obre a variável que flanqueia, e isso vale para toda fórmula que
vem depois do quantificador. A variável x é ligada em VxAjc; tam-
brm é ligada em V x (A x & Gy), mas a variável y flutua desampara­
da e livre na mesma fórmula, além do alcance do quantificador
universal, que está ocupado com x. Onde necessário, parênteses
marcam os limites do poder de ligar do quantificador.
O aparato de quantificação leva a uma interpretação da gene­
ralidade que vai além do silogismo aristotélico. O silogismo coloca
a proposição de que todos os cães são animais em algo como uma
concha genérica: todos os A são B. O cálculo de predicados abre a
concha e revela seu condicional oculto: Se algo é um cão, então
esse algo é um animal, j^o usarmos quantificadores, variáveis e um
conectivo sentenciai, o condicional emerge: \ fx(D x D A x ).
Os quantificadores universal e existencial dão ao lógico o con-
irole sobre a generalidade múltipla. Todos os homens amam algu­
mas mulheres? Se esse é o caso, então V x3 y (x ama y). Alinhe os
homens no balcão de bar de solteiros do mundo e, para cada um
deles, há alguma mulher a quem ele ama (geralmente não aquela
com a qual ele está, é claro). Para cada homem, aquela outra espe­
cial pode muito bem ser diferente; Philip pensa em Irma com um
sorriso de arrependimento, enquanto Harry está ocupado lem ­
brando a Daphne, ao telefone, que ele a ama e que é claro que ele
ainda está no escritório. Todo homem é tal que ele ama alguma
mulher.

O ADVENTO DO ALGORITMO 99
A inversão de posição dos quantificadores existencial e uni­
versal dà uma fórmula que expressa a proposição de que alguma
mulher é tal que ela é amada por todos os homens: 3 x\/y(x ama y).
Isto é um negócio muito diferente. Não importa que declarações
ou explicações Philip, Harry e os outros caras do bar possam estar
dando a várias mulheres indecisas ou descrentes, existe ao menos
uma mulher, seja ela Madre Teresa, Helena de Tróia ou Sophia
Loren, tal que cada um e todos os caras amam a ela .

O cálculo de predicados de Frege apareceu na tela do pensa­


mento no fim do século XIX, quando foi contemplado e moderada­
mente apreciado por um ou dois lógicos, já que os matemáticos, é
claro, estavam ocupados demais assistindo a Poincaré e outros fi­
gurões na tela do multiplex ao lado para prestar muita atenção a
Frege.
O cálculo de predicados sobreviveu à indiferença deles; hoje,
é a Característica Universal de matemáticos de todo o mundo, já
que Leibniz e Frege conseguiram impor sua visão de um mundo
simbólico sobre todo mundo.

OS VIVOS E OS MORTOS

m m m m Eu havia ensinado lógica matemática em Stanford, em


Rutgers e também em Paris, e depois disso eu me encontrei preso
em um buraco de verm e1acadêmico que, fizesse eu o que fizesse,
parecia inevitavelmente desaguar nos gramados de várias facul-

1. W orm hole, buraco de verme, é um constructo da física teórica. (N . da T.)

100 Daviâ Berlinski


d.ules ensolaradas da Califórnia. N o fim do verão, quando o ano
in .k ITmiiíco começou, os gramados estavam secos, exceto por umas
pailes que eram mantidas úmidas na frente dos prédios da admi-
n!\l ração, e a luz pardacenta cobria o campus em um brilho pul-
♦.anle, deixando fantásticas sombras azuladas nos caminhos entre
<»\ prédios e penetrando em cada sala de aula e estante da biblio-
leea. Meus alunos eram principalmente vietnamitas e, tendo vindo
«lo Vietnã para a Califórnia pelo mar da China Meridional, eles não
•’•.lavam preparados para ver na lógica matemática mais do que um
pequeno empecilho para o que seria sua ascensão direta da base
<la estrutura social norte-americana — onde trabalhavam como
loucos em restaurantes e lavadoras de carros — para algum lugar
pióximo do meio, onde viam a si mesmos como advogados, oca-
Monalmente como médicos, enfermeiros, contadores, técnicos em
computador e, de vez em quando, curiosamente, como políticos,
c o m os equipamentos comuns da vida norte:americana, tais como
microondas, torradeiras, carros populares, equipamentos de som e
lêuis de corridas, comprados graças ao milagre do crédito, que
licava entre eles e as coisas terríveis que haviam deixado para trás.
Meus colegas, por outro lado, eram uma série de nítidas cari-
caluras, quase como se cada um houvesse lido um romance acadê­
mico antes de conseguir a própria identidade — o alto e desajeitado
professor de estatística, sempre trêmulo a ponto de ter um colapso
nervoso e que de repente tem mesmo um ataque histérico na reu­
nião do corpo docente ou ao ver um grafite maldoso no banheiro
dos professores; o esperto dialético, que anda pisando duro pelo
campus em pesadas botinas com ponta de metal e calças do Horte-
lino Troca-Letras, ainda defendendo Stalin e a classe trabalhadora
(lepois de todos esses anos; e inevitavelmente vários matemáticos
e físicos de intelectos de fato poderosos que, por causa do medo

O ADVENTO DO ALGORITMO .101


ou de uma sensação de que simplesmente não valia a pena, desis­
tiram de esperar por uma grande chance e foram se dedicar a ou­
tras idiossincrasias — o mercado imobiliário, em sua maioria, uma
atividade para a qual eles eram extremamente inadequados, de
modo que todos os candidatos a magnata que eu conhecia con­
seguiram perder dinheiro em uma época em que todo o resto do
mundo estava ganhando.
N o outono de um ano glorioso, dei aula de cálculo; e na pri­
mavera de outro ano glorioso, Gottlob Frege e eu demos juntos aulas
de lógica matemática. Nossas aulas tinham sempre um bom número
de alunos porque a lógica era pré-requisito para a Engenharia e
eram, devo dizer, bem recebidas. Frege e eu recebemos avaliações
excelentes dos alunos, se bem que um tanto padronizadas e ino­
centes. Um número razoável de alunos por algum motivo disse a
mesma coisa: que o sr. Berlinski devia aprender como combinar as
gravatas com os ternos e o sr. Frege é m u ito legal. N ão é de espan­
tar que nunca tenham reclamado das roupas dele. Frege se vestia
de modo circunspeto, por mais forte que estivesse o sol, que mesmo
em fevereiro parecia iluminar cada canto do campus, usando a
mesma sobrecasaca preta e colarinho asa de morcego que, sem
dúvida, usara na Alemanha. Imagine o sujeito ao quadro-negro, com
o grosso giz alemão entre os dedos, sempre de costas para os alunos
enquanto os símbolos lógicos subiam e desciam pelo quadro-
negro, e as diferentes etapas eram separadas, quando necessário,
por linhas grossas.
Terminamos nossa introdução ao cálculo de predicados no iní­
cio de março e, pouco antes das férias de primavera, eu me peguei
em dificuldades para expressar o ponto mais importante do curso —
e deste livro, é claro — a alunos já confusos com tantos símbolos.

102 David Berlinski


—O movimento da mente se dá junto com uma nuvem de sig-
mfícados.
Que quer dizer isso?
Não sei, me ajude com isso.
— Existe o paradoxo de que chegamos ao significado apenas
quando tiramos o significado dos símbolos... Certo?
Meus alunos levantam os olhos, prontos para concordar com
absolutamente qualquer coisa, com a emocionante luz do sol agora
ocupando toda a sala de aula, encobrindo minhas palavras com um
lampejo.
E Frege? Ele está junto ao quadro, segurando o giz, mas, como
c de seu hábito, não diz coisa alguma.
Absolutamente nada.
m m m m

R E C^O N D U Ç Ã O

/\ recondução do cálculo sentenciai a sistema formal exigiu uns


poucos modestos ajustamentos na distância focal, e o sistema de
Minbolos emergiu claramente com o um sistema de símbolos depois
do apenas umas poucas giradas no foco do microscópio. O cálculo
de predicados é um sistema simbólico incomparavelmente mais
i iro, e o mecanismo necessário para colocá-lo em termos pura­
mente formais é similarmente muito mais detalhado.
O sistema formal do cálculo de predicados engloba todo o
ralculo sentenciai, e eu presumo que está a postos e que, de toalha
cm punho, está preparado para ser útil. Os símbolos primitivos do

O ADVENTO DO ALGORITMO 103


cálculo de predicados vão mais longe do que o cálculo sentenciai
na medida em que contêm:

Variáveis individuais: x, y, z,...


Símbolos predicados: F, G, H,...
Símbolos de várias relações: R, S, T,...
Símbolos de quantificação: V, 3

D e fato, apenas um quantificador precisa se candidatar à


posição de primitivo; os dois quantificadores estão ligados pela
definição, e \/xFx diz nada mais, nada menos do que —3 x ~ F x — se
tudo é F, nada não é, e vice-versa.
Todo um universo de símbolos agora ocupa espaço à luz do
sol que se espraia. Regras gramaticais a seguir atuam para especi­
ficar as fórmulas gramaticais e, ao fazê-lo, dão aos símbolos sua forma
característica. Apenas duas regras devem ser acrescentadas às regras
que já regem o cálculo sentenciai. Letras em negrito indicam que
os lógicos estão falando a respeito de predicados (F, G, H ,... ), de
variáveis individuais (x, ou de fórmulas inteiras (A, B, C,...).

1. Se F é um símbolo predicado, e^cé uma variável indi­


vidual, então F x é bem formada.
2. Se A é bem formada, e x é uma variável individual,
então V x A também é bem formada.

As regras levam ao que eu espero seja a agora familiar subida


penosa pela escadaria inferencial, já que especificam se uma fór­
mula é bem formada em termos de se a fórmula que ocupa o degrau
de baixo é bem formada, e assim colocam o lógico em sua jornada
habitual:

104 David Berlinski


1. VxFx & VyGy ^— (Esta fórmula é gramatical?)
2. VxFx <— (Sim, se esta fórmula é gramatical, e)
3. VyGy <— (se esta fórmula é gramatical.)
4. VxFx ^— (Esta fórmula é gramatical, se)
15. Fx ^— (esta fórmula é gramatical, e)
6. VyGy <— (esta fórmula é gramatical, se)
7. Gy <— (esta fórmula é gramatical, mas)
8. Fx <— (esta fórmula é gramatical.)
9. Gy <— (Idem.)
—> e assim por diante subindo a escadaria para verificar a linha 1 —>

Depois de ter concluído a gramática, é necessário acrescen-


lar axiomas e regras de inferência às regras de formação para fazer
o sistema vibrar. O esboço dos axiomas requer — não tem esca­
patória — um desvio conceituai. N o cálculo sentenciai, os axiomas
‘.urgem como formas do próprio sistema. Um procedimento de subs-
iituição, expresso pelas regras de inferência, então permite que o
Ingico faça malabarismos com formas semelhantes para que possa
v<t a alma de (R D S) D (T D W ) na concha de (P D Q ).
O mesmo procedimento pode ser utilizado no cálculo de
publicados, mas é complicado, enfadonho e deselegante. É por
«*\!a razão — e a mais pura preguiça, também —que o lógico recorre
a csíjuemas axiomáticos em vez de recorrer aos axiomas quando for­
maliza o cálculo de predicados. Os esquemas axiomáticos não
aparecem no sistema formal. Fazem parte da linguagem própria do
I« »gico, são expressos na mesma linguagem que ele usa para falar sobre
loi mulas e símbolos predicados. Cada esquema axiomático especi-
lica a forma de uma fórmula, e cada axioma do sistema é obtido a
pailir da forma como um exemplo.
Os esquemas axiomáticos admitem um número infinito de
< \nnplos e isto pode parecer —e, na verdade, parece —como se em

O ADVENTO DO ALGORITMO 105


um momento crucial o lógico voltasse precisamente aos conceitos
que há pouco havia abjurado, como alguém levantando um copo
numa reunião dos AA; mas os esquemas axiomáticos são con­
veniências, e nada mais.
Ou nada menos.
Então, vamos a esses esquemas axiomáticos2. Só há dois que
vão além do clã do cálculo sentenciai. E os dois requerem certas
restrições, que eu coloquei entre parênteses.

1. V x A D B é um axioma ~ (se B é a mesma fórmula


que A, ou se sempre que A tem uma ocorrência livre
da variável x , então B tem uma ocorrência livre de
alguma outra variável y).
2. \/x(A D B ) D (A D V*;B) é um axioma — (desde que
A nao contenha uma ocorrência livre da variável x ) 3.

Agora, duas regras de inferência:

1. S e A D B é um axioma ou um teorema, e A também,


então B é um teorema.
2. Se A é um axioma ou um teorema, então V%A tam­
bém o é.

O sistema está concluído e, embora sempre valha a pena ten­


tar descobrir o que esses estranhos símbolos significam (e eles, é

2. Este é essencialmente o sistema que aprendi com Alonzo Church há muitos


anos.

3. As restrições estão explicadas mais a fundo no apêndice deste capítulo.

106 David Berlinski


<laro, significam alguma coisa), para os nossos propósitos também
vale a pena tirar questões de significado da consciência, sendo a
manobra dupla de esquecer e lembrar não apenas uma prerrogati­
va do lógico como também uma atividade humana indispensável,
\rm a qual estaríamos todos perdidos.

Só falta o pequeno detalhe da demonstração, como dizem os


vmdedores de carros. O lógico quer estabelecer que V;xA D 3 x A .
I\slabelecer — quer dizer, provar de uma vez por todas. Afastando-
nos por um instante dos símbolos, vemos que o que esta afir-
maçãozinha de fato afirma — e como afirma pouco — é que se algo
vale para tudo, então certamente vale para algo. É difícil criticar
<*sla alegação enquanto alegação, mas nosso negócio é provar , e
para isso não há sensação de satisfação que baste.
A argumentação se dá em oito passos:

1. VxA D A lesquerria axiomático)


2. Vx~A D - A í, com - A em vez de A)
‘ i- •-''.’■'S IZ‘- r ■ — •• -

3. Vx~A D - A D A D ~Vx~A E (tautologia)


4. A D ~Vx~A - (regra 1, linhas 2 e 3)
5. A D HxA (por definição com 3xA
.......... ' — -a®!

6. VxA D A D A D 3xA D VxA D BxA (táutoiogi


7. A D 3xA D VxA D BxA
8. VxA D 3xA4 ^(idérri, linh

Não há como negar que esta demonstração, embora trivial, é


difícil de compreender. Os símbolos são estranhos e os passos
dados canhestros, tal que o lógico parece estar indo de pressupos-

I. Não pontuei totalmente estas linhas; a pequena ambigüidade resultante é mais


iViril de aceitar do que o necessário cipoal de parênteses.

O ADVENTO DO ALGORITMO 107


tos para conclusões com muito pouca elasticidade. M esm o assim,
a demonstração vai passo a passo, de um modo totalmente à prova
de dúvida, cada passo resultando explicitamente do anterior, per-
mitindo-se apenas apelos explícitos a esquemas axiomáticos explici­
tamente formulados e regras de inferência explicitamente formu­
ladas. Uma máquina poderia fazer esta demonstração, imprimindo
linhas e as checando, embora sempre se deva lembrar que qual­
quer que seja a verificação que esteja sendo feita, ela está sendo
feita contra um pano de fundo de interesses humanos.
Além dos detalhes da inferência, há também um estilo. Quan­
do Frege chamava a atenção para sua magnificamente detalhada
criação, os matemáticos não faziam a menor idéia das nuanças que
eram exigidas pela precisão formal. O estilo foi adotado pelos pro­
gramadores de computador. Ainda está sujeito a incompreensões e
a uma irritada indiferença, e é apenas o fato de que essas pessoas
parecem emergir de seus consoles de computador a fim de sair a
toda em suas Ferraris vermelhas que convence ao resto de nós de
que pode ser que haja algo em todos esses detalhes. Mas para
apreciar o estilo em si, vale a pena contrastar a cadeia de inferên­
cias exigida pelo lógico com o vaivém comum em outras disciplinas
— na advocacia, digamos.
Com o iriam os advogados interrogar a proposição de que se
todos são louros, alguém também é louro? O padrão de prova deles
é a dúvida razoável.

A Corte agora vai ouvir argumentos a respeito de


V^B D 3%B.
Excelência, neste m om ento a defesa faz uma moção
de julgam ento sumário.

108 David Berlinski


Devidamente anotado. Indeferido. O queixoso pode
;prosseguir,;
O queixoso chama a srta. M un d o L o u ro , 1995.
Levante sua mão , Jiga o nome com pleto e declare
sob juram ento se isso é verdade.
Juro.
Srta. M u nd o L o u ro , para constar nos autos, a se­
nhorita poáe nos dizer se é loura?
Objeção. Isso exige testemunho de perito.
M antido.
Vou reformular. A senhorita já fo i chamada de loura?
Objeção. Especulativo.
M antido.
E u retiro a pergunta. Q ue a senhorita saiba, alguém
já a chamou de loura?
A h, muitas vezes.
E para os autos, a senhorita é alguma loura.
Irrelevante. A defesa está disposta afazer um acordo.

Isto é, obviamente, uma paródia, mas tem lá seu fundo de ver-


(hide, e o toma-lá-dá-cá dos advogados é absurdo, no mínimo porque
riivolve questões que eles não sabem formular e que não sabem
c o m o responder. M eu objetivo ao introduzir uma paródia é outro.
( > estilo do lógico pode facilmente ser confundido com uma preo­
c u pa ç ã o exagerada. Pensar assim reflete um erro de percepção.
( ) aparato que ele tem à disposição permite ao lógico um raro grau
de independência, poder e mobilidade intelectual, permitindo-lhe
no caso em consideração o poder de dominar absolutamente o
absoluto em apenas oito linhas, enquanto os advogados ainda estão

O ADVENTO DO ALGORITMO 109


ocupados discutindo a respeito de demandas e intimações, ten­
tando estabelecer se a louríssima srta. Mundo Louro é loura e, se
for este o caso, com que propósito.

E AGO RA A V E R D A D E

O cálculo de predicados é um instrumento de sutileza incom­


parável, mas, como um desses relógios que podem simultanea­
mente dizer que horas são em quatro continentes, determinar as
fases da Lua e predizer eclipses solares até o próximo milênio, o sis­
tema simbólico a que Frege deu forma, e que gerações de pacientes
lógicos aperfeiçoaram, leva à pergunta sensata, ainda que cética,
quanto a se o sistema tem realmente alguma utilidade. Estou
falando de utilidade em um sentido independente da encarnação
futura do sistema na programação de computadores. Uma respos­
ta está disponível, é claro, mas depende, a resposta, da manobra
característica do lógico na qual os símbolos ganham e perdem seus
significados com uma velocidade às vezes estonteante. Considerada
apenas como uma série de formas, quando V x A Z) 3 x A aparece na
conclusão de uma prova, a resolução da dúvida é algo especiosa
porque, no que diz respeito a essas formas, a dúvida nunca foi um
problema. Por outro lado, considerando o significado pretendido,
essas formas voltam com a mensagem de que o que vale para tudo
certamente vale para algo, e essa é uma notícia que, apesar de ver­
dadeira, não é nova.
Parece que eu me enfiei entre duas formas de trivialidades.
Esta dificilm ente é uma reposta adequada à minha pergunta.

1 10 David Berlinski
A pergunta pede uma resposta mais séria, uma resposta que
a^ora está disponível. A proposição de que \/xA D 3xA , quando lhe
<* dado seu significado ordinário e pretendido, é não apenas ver­
dadeira como é também logicamente verdadeira. A verdade lógica
|a apareceu na tenda do lógico sob a forma de uma tautologia; mas
no caso do cálculo de predicados, a tenda tem de ser aumentada.
/\ proposição de que V x A D 3;x;A não é uma tautologia na medida
/
cm cjue tem a simples forma sentenciai P D Q. E, no entanto, uma
verdade lógica.
É este conceito que deve ser definido. Agora, o cálculo de
predicados depende de todo um aparato de variáveis, quantifica­
dores e predicados. As variáveis e os quantificadores dançam um
laiigo perpétuo; mas os predicados não variam nem caem sob o
controle dos quantificadores. São marcadores de lugar, com o L em
I representando em ocasiões diversas ser lindo, ser louco, ser
Inc ido e assim por diante, como antes, até ser louro; o D em D x
icpresentando ser dócil, doméstico, direito, demente e assim por
diante, como antes, até ser divino. As verdades lógicas são verdadeiras
quanto a isso, não há dúvida; elas continuam verdadeiras qualquer
<|ue seja a interpretação de seus predicados, tal que \/xhxZ)3xL,x
c verdadeiro, represente L ser louro, ser lúcido ou ser uma
astrofísica chamada Lúcia.
As verdades lógicas, dizem os lógicos, recorrendo a um vocabu­
lário muito mais antigo, são não apenas verdadeiras como também
verdadeiras em todos os mundos possíveis.
Esta não é uma noção que pode ser encontrada dentro do cál-
ciilo de predicados; mas é uma noção que devolve o cálculo de pre­
dicados a um grupo mais antigo de conceitos. Um argumento válido
e um argumento no qual se as premissas são verdadeiras a con­
clusão tem de ser verdadeira. O nexo entre premissas e conclusão

O ADVENTO DO ALGORITMO 111


é precisamente e inalteravelmente o nexo da verdade lógica, tal que
se todos os homens são mamíferos, e todos os mamíferos são animais,
então todos os homens são animais, e a condicional emerge como
verdade lógica e, portanto, como algo verdadeiro em todos os
mundos possíveis. É este nexo que a definição de validade capta, re­
movendo parte, mas não todo, do mistério inerente à inferência.
Depois de apresentar as verdades lógicas como estranhas um
tanto malvestidas, o lógico está naturalmente obrigado a vesti-las
bem. As tautologias só precisaram de uma definição fácil; mas não
as verdades lógicas. Para apreender seu conteúdo, o lógico deve se
envolver em um ato de criação múltipla.
Por mundo (ou d om ín io ) , ele se refere a um conjunto de indi­
víduos ou coisas —o conjunto de todos os cães, ou de todos os pratos
ou de todos os desastres (com a associação livre emparelhando
Bowser, aquele tentador serviço de jantar, e o desastre que estava
por acontecer). Esses mundos agora passam a existir, como as estre­
las que repentinamente são vistas a brilhar.
A fórmula Fx emparelha uma variável individual e um símbolo
predicado; com um domínio fixado, ambos recebem uma interpre­
tação, com a variável individual, x, emparelhada a, digamos, Bowser;
o predicado F, ao conjunto de todos os indivíduos que por acaso
são cães. Nesta interpretação, Fx simplesmente diz o que espe­
cialistas poderiam esperar que dissesse: Bowser é um cão.
Existem interpretações para todos os gostos. Algumas trans­
formam Fx em algo verdadeiro; outras, não. Atribuir o distinto físi­
co Murray a x leva ao absurdo de que Murray é um cão; a interpre­
tação que atribui o físico a F cancela o absurdo. Murray é físico.
As atribuições são de natureza estroboscópica; elas iluminam
o aparato de quantificação em uma breve explosão de significado.
Diz-se das atribuições que colocam os indivíduos dentro dos pre-

112 David Berlinski


<1irados apropriados — Bowser e os cães, Murray e os físicos — que
elas satisfazem à fórmula. Ou não: que o digam Murray como cão
nu Bowser como físico.
Os conceitos de atribuição e satisfação bastam para definir
um conceito de validade lógica. O procedimento novamente envolve
.1 suBida da escadaria inferencial. Uma atribuição satisfaz a uma
lõrmula da forma VxFx sob exatamente as condições previstas.
I )eve satisfazer a Fx — primeiro passo; e deve continuar a satisfa­
zer a Fx para todo valor de x — segundo passo. Em um mundo de
raes (e apenas de cães), uma atribuição que leva Bowser aos cães
satisfaz a Fx. Primeiro passo. Ao satisfazer a Fx, satisfaz a VxFx
lambém, não importando qual cão x possa ser. O que mais existe
neste mundo além de cães? Segundo passo.
Uma fórmula arbitrária do cálculo de predicados é válida em
uin mundo específico se for satisfeita para todas as interpretações,
Em um mundo de cães e físicos, VxFx não é válida. Qualquer que
seja a interpretação da letra predicado, há algo flanando lá fora que
tende a estragar a satisfação. Digamos que F designe os físicos, e
Bowser não vai servir; digamos que F designe os cães, e Murray
não vai servir.
Mas a fórmula de que VxFx D 3xFx é válida neste mundo,
qualquer que seja a interpretação de F e mesmo que F tenha ido
para os cães e x para um físico. Esta fórmula é um condicional, e a
ferradura média entre todos os F são x e alguns Fs são x. Uma
atribuição que satisfaz ao antecedente deve satisfazer ao conseqüen-
te também. A interpretação de x como Bowser e F como a agradá­
vel comunidade de físicos não consegue satisfazer a Fx e, portanto,
não consegue satisfazer a VxFx. Ao não satisfazer ao antecedente,
a atribuição satisfaz à fórmula como um todo. Condicionais são
verdadeiros se seus antecedentes são falsos.

O ADVENTO DO ALGORITMO 113


E assim para todas as outras atribuições em um dado mundo.
E assim finalmente para todos os outros mundos. Uma fór­
mula do cálculo de predicados é válida se for verdadeira em todos
os mundos.
O objetivo do mecanismo do cálculo de predicados é captar
as verdades lógicas em seus teoremas e vice-versa. Tal é, pelo
menos, o que se espera. Mas não é uma esperança que eu já tenha
realizado. Eu ainda não disse se o cálculo de predicados é com ­
pleto, ou se é alguma outra coisa.
Estudantes de Calcutá ou de Xangai, tomem notas.
E o resto de nós poderia pensar nisto: toda vez que o cálculo
de predicados está em movimento, o conceito de algoritmo está
prestes a saltar fora.

C r ô n i c a d e u m a

MORTE A N U N C IA D A

O cálculo de predicados é um sistema formal que durante o


recreio também dá uma de sistema simbólico. Captando a ligação
entre premissas e conclusões dos argumentos válidos, o sistema pa­
rece ao mesmo tempo ser sobre tudo e nada, com a verdade em todos
os mundos possíveis se estreitando e virando proposições cujo poder
é alcançado por uma evacuação de seus conteúdos. O interesse de
Frege era a aritmética e, seja ela o que for além disso, a aritmética
parece ser mais rica do que a trivialidade.
Um fértil paradoxo pode agora ser visto na história do pensa­
mento. O conteúdo está na aritmética, e não na lógica; mas é a ló­
gica que leva à certeza, e não a aritmética. Os conceitos escorre-

114 David Berlinski


uns contra os outros, e a fricçã o desta form a en gendrada
iirriu lc um b rilh o in term iten te na m atem ática do sécu lo XIX e, de
l.ilo, na vida do fim do século XIX.
Sabemos o que sabemos em termos do que pensamos que sa-
IHinos, cada alegação de certeza se assenta sobre ainda outra ale-
Kiiçno de certeza, até que a cadeia de alegações simplesmente pára,
como no caso de um sistema de axiomas, ou no caso de coisas que
simplesmente estamos dispostos a aceitar sem discutir e, portanto,
•.<‘ 111 motivo.
A ambição secreta de Frege era romper esta cadeia de con-
imgencias descobrindo na própria lógica um poder suficiente para
.ibarcar a aritmética. Isto não é apenas uma idéia interessante: é
uma idéia densa, poderosa, grandiosa e, de fato, é uma das grandes
nléias, pois mantém a promessa de ancorar um antigo sistema de
pensamento humano — a aritmética — no alicerce de um lugar que
11:k) exige nenhuma justificativa adicional porque não admite ne­
nhuma dúvida adicional. Frege publicou sua obra-prima, Os fu n ­
damentos da aritm ética , em 1884; em suas páginas, a aritmética é
«•xpressa no que Frege considerava ser termos puramente lógicos.
A história do empreendimento de Frege tem uma peculiar
qualidade literária, quase como se estivesse sendo contada por um
<los fabulistas sul-americanos, tal que Os fundamentos da aritméti-
t'n aparece na história do pensamento como se fosse uma crônica
de uma morte anunciada, algo que eu mesmo pareço ter profetiza­
do também.

m m m & Ao viajar de Santiago a Buenos Aires, dom Pedro de Los


Angeles levou com ele um papagaio verde, um macaco e um baú de
viagem trancado. Sua esposa, a linda seííora Sabrina, cujos olhos
verdes eram tão profundos quanto o mar, acolheu o papagaio e o

O ADVENTO DO ALGORITMO 115


macaco com gritinhos de júbilo, mas quando perguntou o que
havia no baú, dom Pedro ficou em silêncio, sacudiu a cabeça e deu
ordens para que os criados levassem o baú para um armário que
ficava em seu gabinete no terceiro andar. Dias e anos se passaram.
A cheia barba preta de dom Pedro ficou branca e cataratas escon­
deram seus olhos. Ele andava lentamente com a ajuda de uma ben­
gala. A linda senora Sabrina havia muito ficara corpulenta, suas
carnes tremiam quando andava e a adorável voz grave com a qual
ela cantara canções de amor ficou rouca com a idade. Certo dia,
dom Pedro caiu doente com malária e, sentindo que seu fim esta­
va próximo, retirou-se para o quarto no terceiro andar da casa de
campo branca de postigos cor de turquesa. Sofreu por quatro dias,
mas, no quinto, sua mente estava clara. Depois que os criados
saíram, a esposa se aproximou de sua cama.
— Dom Pedro — disse ela — nunca pedi a você outra coisa que
não o amor a que eu tenho direito, mas eu gostaria de pedir um
favor.
Dom Pedro ficou em silêncio.
— Dom Pedro, há quarenta anos desejo saber o que estava no
baú que você trouxe de Santiago. Satisfaça a minha curiosidade, por­
que você sabe que eu nunca vou abrir o baú sem a sua permissão.
— Senora Sabrina — disse dom Pedro —, há um manuscrito den­
tro do baú. A capa é de papel velino. As folhas são de pergaminho.
É muito antigo, mais antigo do que a aurora do tempo, e uma cópia
do manuscrito sobreviveu ao grande incêndio que iluminou os
céus do Egito e consumiu as bibliotecas de Alexandria.
— Um manuscrito? — A senora Sabrina perguntou, atônita. —
Por todos esses anos você manteve escondido um manuscrito?
— Foi — disse dom Pedro.
— Ele contém segredos, dom Pedro?

116 David Berlinski


— Não sei. N ão o li. Está profetizado que todos aqueles que o
líMcin (icarão cegos.
A senora Sabrina olhou para os olhos cegos do marido em
alrncio.
— Mas você deve saber alguma coisa sobre esse manuscrito —
yt\iloii a senora Sabrina, irritada, com uma gota de perspiração cain­
do entre seus seios como água a escorrer entre duas montanhas.
— A mera posse do manuscrito é em si uma bênção — disse
dom Pedro. — Ele não curou Ramón Fernández de uma melanco­
lia insuportável muitos anos atrás?
— Sim, ótimo, mas o que diz ele?
—O manuscrito contém uma série de proposições numeradas,
rscTitas com muito cuidado. Dizem que cada proposição tem o
l>oder singular de expressar e expor a verdade, tal que, ao ler essas
I >mposições, uma pessoa saberia para onde vai o jaguar ao nascer do
dia, qual será a data de sua morte, e porque a baleia canta à noite
no mar.
— E você sabe a data de sua morte, dom Pedro?
— Sei.
Naquela noite, dom Pedro morreu em paz, dormindo. A senora
Sabrina ficou sentada por dois dias ao lado de seu corpo, como era
o costume, e, no terceiro dia, tirou a chave do baú da caixa de
mogno que ficava na escrivaninha de dom Pedro. Levando uma vela,
j;i que o gabinete não tinha janelas, ela se inclinou com dificuldade,
soprou a poeira dos anos da tampa do baú e, com dedos trêmulos,
y»irou a chave. Um cheiro carregado, forte, saiu do interior. A senora
Sabrina aproximou a vela e deu uma olhada no interior do baú.
Não havia nada lá.
mm m m

O ADVENTO DO ALGORITMO 117


A grande ambição de Frege era mostrar que, contrariamente
a toda expectativa natural fácil, a aritmética compartilhava da certeza
que a lógica pura proporcionava ao lógico, sendo a catedral de infe­
rência aritmética no fim das contas de natureza lógica e, portanto,
resumia-se a sacramentos muitos simples.
A idéia de que a aritmética é uma forma de lógica não é de
forma alguma óbvia, mas, como acontece com muita freqüência na
história da matemática, os pensamentos de Frege foram robusteci­
dos pelo trovão ribombando em morros próximos, o conceito de
con ju n to , o tema de uma teoria nova, forçada mas de longo alcance,
que parecia combinar certeza e conteúdo lógico em uma poderosa
estrutura formal.

O T á r t a r o d o s m a t e m á t i c o s

Deixe-me invocar por meios e manobras puramente verbais uma


seleção de coisas do mundo — uma maçã, um cachimbo, uma rosa
caída. Depois de invocados, esses itens se desprendem de seus
locais costumeiros (uma tigela de frutas, um porta-cachimbos, um
vaso de cristal) e, assim soltos, podem ser incluídos em um con ­
ju n to — {maçã, cachimbo, rosa} —com as chaves servindo para solidi­
ficar um ato de inclusão intelectual tão primitivo que é patrimônio
da espécie. É inútil perguntar o que é um conjunto ou como a
mente coleta objetos para inclusão; as perguntas levam apenas às
respostas óbvias: Quem sabe?, e simplesmente o faz. Se os con­
juntos são primitivos demais para ser definidos, eles podem , ao
menos, ser distinguidos de outras coisas. Não são montes, é claro,
porque não tem sentido falar de um monte de números e, no entan-

118 David Berlinski


lo, os números de 1 a 5 formam um conjunto perfeitam ente
mriiável —{ 1 , 2 , 3, 4, 5}. E os montes também não são conjuntos.
Um monte de areia não forma um conjunto de areia. Os montes
icm a ver com amontoados, montões, pilhas, volumes e porções; e
<>\ conjuntos são outra coisa — distantes, desprendidos, abstratos,
liin matéria de montes, um monte de areia nunca vai ser mais que
um monte de areia. Não existe nenhum monte que contenha o mon-
u* de areia propriamente dito. Mas não os conjuntos. O processo
dc formação de um conjunto pode ser aplicado a si mesmo. O con-
imito que consiste de cinco números {1 , 2, 3, 4, 5} pode ser colo­
ri ido em um conjunto — {{1 , 2, 3, 4, 5 }}, e este conjunto consiste
J c um objeto, o conjunto {1 , 2, 3, 4, 5}. O curioso sobre os con­
juntos é que ao mesmo tempo que servem para colecionar vários obje-
los, também servem simultaneamente para aumentar e, portando,
para mudar o estoque de objetos disponível, um exemplo interessante
do um efeito quântico no pensamento puro. Esse processo pode
ser continuado indefinidamente; os processos inocentes de sepa-
r;ir e incluir disparam, com o resultado de que o tripleto maçã,
cachimbo e rosa repentinam ente parece ser a fonte de um número
infinito de novos objetos; {m açã, cachimbo, rosa}, {{m açã, cachim ­
bo, rosa}J, {{{m açã, cachimbo, rosa}}}, e assim por diante até a
estratosfera da teoria dos conjuntos.
A transformação da teoria dos conjuntos de passatempo m eta­
físico em atividade matemática foi feita por Georg Cantor no fim
do século XIX e, diferentem ente do melancólico Frege, que con­
seguiu com muito cuidado alimentar e circunscrever o fogo de seu
gênio criativo, Cantor alternava entre o entusiasmo da criação m ate­
mática e evidente doença mental, internando-se a intervalos estra­
tégicos em vários sanatórios.

O ADVENTO DO ALGORITMO 119


Cantor nasceu em São Petersburgo em 1845, mas quando seu
pai ficou doente, ele se viu transplantado para o solo alienígena de
Frankfurt, e, muito embora tivesse se integrado totalmente à cul­
tura alemã, um traço exótico irredutível ficou em sua personali­
dade. Seu talento matemático era evidente desde cedo; como todos
os grandes matemáticos, ele conseguia pegar de ouvido melodias
complicadas em um piano mental depois de ouvi-las apenas uma
vez. Estudou na Universidade de Zurique e depois na Univer­
sidade de Berlim, onde ficou sob a influência de Karl Weierstrass,
Ernst Kummer e Leopold Kronecker, celebridades do universo
matemático alemão, sendo que o último estava destinado a ator­
mentá-lo com dúvidas céticas. Por certo tempo, Cantor deu aulas
em uma escola particular para moças em Berlim. Eis uma cena
saborosa demais para ser relegada ao esquecimento: Cantor, vesti­
do sobriamente de preto, uma sala cheia de mãdchens adolescentes
alemãs, chilreando quando ele entrava na sala. Depois disto, Cantor
entrou para o corpo docente da Universidade de Halle, tendo fica­
do na Saxônia pelo resto de sua vida produtiva.
A teoria dos conjuntos é, obviamente, sua maior criação; a
história de sua descoberta é saborosa e fascinante, mas não é a minha
história — ao menos não no contexto deste livro — e eu só tenho
espaço para deslizar por sua superfície.
Separar e incluir são os movimentos mentais fundamentais
dos quais depende a teoria dos conjuntos, a separação servindo
para escolher objetos, coisas ou números, e a inclusão para incluí-
los em algo que por sua vez pode servir como objeto de separação.
A teoria dos conjuntos se ocupa de conjuntos de números na maior
parte do tempo e, com conjuntos disponíveis, a teoria torna plau­
síveis uma variedade de processos combinatórios nos quais os con-

120 D av id B erlin ski


jimlos se encontram, se fundem, se separam, dão pulinhos, ou
«•nlao fazem o que mandam que façam. Ou o que querem fazer.
A operação mais fundamental é pertencer a um conjunto, ser
membro dele; o número 8 pertence ao conjunto que consiste dos
mimcros 2, 4, 6 e 8 . Assim, 8 G {2, 4, 6 , 8}, do mesmo modo como
t I('*sar EE {os generais}, Marilyn EE {as louras} e dom Pedro EE {os
mo r t os} .
A inclusão, na teoria dos conjuntos, coloca um conjunto
dentro de outro — {2, 4, 6} dentro de {2, 4, 6 , 8 , 10} ou {2, 4, 6}
i ( 2 , 4, 6 , 8 , 10 }. Mas a inclusão pode ser definida em termos de
\er membro. O conjunto de jibóias está incluído no conjunto de
robras. O que quer que pertença ao conjunto de jibóias pertence
ao conjunto de cobras. A inclusão desapareceu a favor de ser mem­
bro do conjunto e de um certo elegante deslocamento da atenção.
A união de dois conjuntos { 1 , 2 , 3} U {3, 4, 5, 6} é selecio­
nada a partir dos dois conjuntos; a interseção deles, {1 , 2, 3} H
(3, 4, 5, 6}, é selecionada a partir apenas dos membros comuns
aos dois: neste caso, apenas {3 }. (A enganosa simplicidade dessas
operações convenceu os matemáticos no fim dos anos 1950 a ten-
lar ensinar teoria de conjuntos a criancinhas, com previsíveis resul­
tados desastrosos.)
Deíitro da teoria de conjuntos propriamente dita, existem con­
juntos, e conjuntos de conjuntos, e conjuntos de conjuntos de
conjuntos e, no outro extremo dessa escadaria, o conjunto vazio { 0 },
que não contém absolutamente coisa alguma, com seus colchetes
vibrando agourentamente em torno de algo parecido com o falso
vácuo dos físicos.
Há um número infinito de conjuntos, obviamente, como o con­
junto de todos os números naturais, e há conjuntos ainda maiores,
como o conjunto de todos os números reais.

O ADVENTO DO ALGORITMO 121


m m m m Conjuntos ainda maiores? Lem bro-m e de ter feito esse
comentário para companheiros de mesa no sul da França —. um
advogado californiano de olhos escuros e um bronzeado inconce­
bível e sua bela mulher, que dizia ser atriz e ficava o tempo todo
fazendo biquinho ou colocando o cabelo curto atrás das belas ore­
lhas em forma de conchas. Estávamos jantando em um restaurante
chamado A Vela Dourada. O mar se espraiava à nossa frente.
— Espera aí — disse o advogado. — O infinito é infinito, não
estou certo?
—Claro, você está certo, fofinho —disse a esposa. —Certíssimo.
Então com ecei a mostrar aos quatro — um outro advogado
estava espreitando ao fundo, junto com sua esposa — a engenhosa
demonstração em diagonal de Cantor.
Dois conjuntos têm o mesmo tamanho se puderem ser empa­
relhados membro a membro. Os números pares e os números ímpa­
res são sem elhantes em termos de tamanho de acordo com esta
definição, com cada número par emparelhado ao número ímpar
que ele sucede, tal que 2 é emparelhado a 1; 4 a 3; e assim por
diante. Tudo parece ter sentido.
Mas e os números reais? Estes são números que devem ser
representados por suas partes decimais, como quando 71 é expres­
so como 3 ,1 4 1 5 9 ... as reticências depois do 9 significando que a
parte decimal é infinita.
Todos haviam por um momento parado de comer, e a ocasião
assinalava um zénite estonteante em minha capacidade de prender
a atenção de qualquer pessoa.
Suponha agora que os números reais sejam representados em
uma matriz. Lendo-se a matriz da esquerda para a direita, temos a
parte decimal de um determinado número real. Os números subs-

122 D a v id B e r lin sk i
c ritos indicam a linha e a coluna. O primeiro item da primeira
parle decimal do primeiro número real é au; o segundo, a 12, e o ter­
r ei ro a 13,... Para propósitos de ilustração, coloquei 71 como o pri­
meiro número real na matriz, axl — 1, a l 2 = 4; a J3 = 1; a l4 — 5...

—Agora, suponhamos que esta lista — continuei, enquanto ao


nosso redor o mar Mediterrâneo se banhava de luz —contenha todos
os números reais.
— E isto significa o quê? — disse o Coppertone, bacharel em
«lircito.
— Significa que muito embora a lista seja interminável, mais
«(‘do ou mais tarde vamos encontrar todos os números reais, mesmo
•i(‘ t ivermos que andar dez bilhões de posições para encontrá-lo.
li sc todo número real está na lista, os números reais podem ser
enumerados.
—E isto significa o quê?

O ADVENTO DO ALGORITMO 123


— Significa que eles podem ser postos em correspondência
com os números naturais, tal que podemos falar do primeiro
número real, do segundo número real, e do terceiro número real.
— E?
—Então, se podemos pôr os números reais em correspondên­
cia com os números naturais, então eles são do mesmo tamanho e
tudo o mais.
— Mas não se pode, certo? —disse a esposa do advogado, que
tinha parado de se ajeitar e olhava fixo para o guardanapo no qual
eu havia escrito a matriz de números reais.
— O que você quer dizer com não se pode? —disse o advoga­
do. —Quer dizer, ele acabou de fazer isso. Olha só a lista.
— O que eu quero dizer é que por maior que seja a lista, eu
sempre posso apresentar um número real que não está na lista.
—Então você apresenta um número, e como eu vou saber que
você não vai encontrá-lo daqui a dez anos, em algum lugar mais
embaixo na lista?
— Presta atenção, fofinho.
— Não, eu estou prestando atenção, quer dizer, eu quero
entender.
— Você não precisa se preocupar com o que vai acontecer
daqui a dez anos. Eu vou mostrar a você um número real que sim­
plesmente não pode estar na lista.
— Então, mostra.
—Gracinha!
— Olhe para a diagonal que eu desenhei na matriz.
Eu toquei nas setas com a ponta do garfo, uma após a outra.
—O que eu vou fazer agora é que eu vou dar a você uma regra
simples para gerar um número real que só envolve olhar para as
setas. Está me acompanhando?

124 D avid B erlin ski


—Até aqui, estou.
—O primeiro número é 1 , o segundo a22 , o terceiro a33, o quar-
i<> íí.,4 e assim por diante matriz abaixo. As setas deixam bem claro o
que está acontecendo. Então, usando esta regra, eu posso construir
i parte decimal de um determinado número real R: 1 , a22, a33, a44,...
—Isto eu entendo, mas como você sabe que este número não
está na lista?
—Não sei.
— Então, qual é? Que eu saiba, estamos onde estávamos.
—Gracinha!
— Não, não, tudo bem, mas o que eu vou fazer agora é cons-
1ruir um número que não pode estar na lista.
—Então construa —disse o advogado, sorrindo com os dentes
brancos contra o pano de fundo de seu rosto bronzeado.

— E muito simples. Somo 1 a todo número na parte decimal
«leste número em particular. Isto me dá um número novinho em
lolha R *: 1 ■+• 1, U22 1>^33 “f- 17 ^44 "+T...
—Mas este não é exatamente o mesmo número velho?
—Não, não é. Este número não pode estar na lista.
—Por quê?
—Porque é diferente de cada número da lista. É diferente de
]i porque tem 2 onde n tem 1 , certo? E é diferente de R 2 porque
leni a22 +1 onde R 2 só tem a 22, certo? E é diferente de R 3 porque...
Parei de falar. O advogado ficou parado, concentrando-se,
com a testa franzida pela primeira vez.
Depois, por acaso, vi os olhos da esposa dele. Estavam ilumi­
nados de prazer.
—Isso é lindo —disse ela, suavemente. —Lindo, lindo, lindo.
■ ■RH

O ADVENTO DO ALGORITMO 125


O BREVE ADEUS

O universo que Georg Cantor criou era simultaneamente o uni­


verso onde ele vivia, sua m ente ininterruptamente se expandindo
dentro das estranhas estruturas singularmente pululantes que ele
imaginava e então trazia ao mundo — conjuntos, conjuntos de con­
juntos, conjuntos infinitos, conjuntos infinitos ainda maiores, com
o sistema começando a partir de uma sem ente e crescendo daí em
diante com toda a energia do gênio.
Quaisquer que fossem as estranhas estruturas que Cantor
imaginava enquanto suas enfermeiras colocavam panos frios em
sua testa afogueada, a sem ente do sistema parece ter uma simpli­
cidade que é totalm ente pura e portanto totalmente simples. Essa
sem ente é simplesmente o próprio conceito de conjunto. Não há
nada de mais fundamental em termos do qual ele possa ser expli­
cado e, portanto, parece oferecer ao lógico um conceito primitivo
adicional em termos do qual a inferência lógica pode ser definida.
Como o próprio cálculo de predicados, a teoria dos conjuntos
parece ao mesmo tempo ser sobre tudo em geral e sobre nada em
particular.
Foi assim que Frege se sentiu tentado a dar um passo fatídi­
co e se empenhou em incorporar a própria aritmética, e tudo que
se seguia à aritmética, em uma forma de lógica que incluía os con­
ceitos elem entares da teoria dos conjuntos. Os detalhes da labo­
riosa reconstrução da aritmética feita por Frege de acordo com a
lógica não é do nosso interesse, mas a idéia essencial transmite
a essência do todo. O cadeado da aritm ética é aberto, obviamente,
com a chave dos números naturais, e estes simplesmente são infini-

126 D avid B erlin ski


lo*;. Mas os conjuntos também. O número 0 pode ser assim iden-
iilirado com o conjunto vazio { 0 }, o número 1 com o conjunto
q u e contém o conjunto vazio { { 0 }}, o número 2, com o conjun-
lo que contém o conjunto que contém o conjunto vazio { { { 0 }}},
c assim por diante seguindo a corrente interminável de números,
<ada número emparelhado a um conjunto capaz de dizer precisa­
mente — e apenas — sua posição nessa cadeia ascendente, com os
iui meros desaparecendo em uma explosão de fumaça, e a arit­
mética se revelando finalm ente parte dos aspectos logicamente
inelutáveis do pensamento humano.
Quando Leibniz imaginou o universo nascendo como resulta­
do de uma interação entre 0 e 1, ele poderia ter levado o sonho
amda mais adiante. No esquema de Frege, o universo nasce como
lesultado da interação entre nada e uma única operação; o con-
1111ilo vazio e o processo de formação de conjuntos trazem a grande
»ascata de números à sua vida oficial.
O desastre está chegando; chegou. Em 1893, Frege havi
expandido as idéias apresentadas em Os fundamentos da aritmética
«•m um volume intitulado As leis fundamentais da aritmética . Em
I'>03, ele estava decidido a publicar o segundo volume de As leis
Ini/damentais da aritmética . O livro já estava no prelo quando ele
lercbeu urría carta do jovem Bertrand Russel. A carta era cortês,
irspeitosa — e devastadora. O próprio conceito de conjunto, reve­
lava Russel, era inconsistente. Seu argumento era simples demais
para ser ignorado e os conjuntos eram fundamentais demais para
•.erem substituídos. Russel pediu a Frege e, por meio da buzina de
nevoeiro da história, pede a nós que consideremos os conjuntos que
n.io contêm a si mesmos como membros. Estes são os conjuntos
normais. O conjunto de todos os cães não é um cão, nem o con­
j u n t o de todos os números é um número. Por outro lado, existem

O ADVENTO DO ALGORITMO 127


conjuntos que contêm a si mesmos como membros. Se conside­
rarmos conjuntos como coisas, o conjunto de todas as coisas é uma
coisa. Conjuntos como esse são anormais.
E o conjunto de todos os conjuntos normais? Os conjuntos
normais incluem o conjunto de cães, conjunto de físicos, conjun­
to de louras, conjuntos do que quer que seja, e o conjunto que con­
tém todos eles é composto de conjuntos de conjuntos, incluindo
pelo menos:

{{cã e s}, {físicos}, {louras}, {todo o resto}}.

Vamos cham á-lo de conjunto N.


N é normal? Esta é a pergunta de Russel. Se é, N pode ser
encontrado entre os conjuntos normais e N é pelo menos:

N = {N , {cães}, {físicos}, {louras}, {e todo o resto}}.

Mas se N aparece em N, N é um membro de si mesmo —


olhe só! —e, por definição, anormal. Segue-se que N é no máximo

N = {{cã es}, {físicos}, {louras}, {e todo o resto}}.

Agora, por definição novamente, os conjuntos normais contêm


todos os conjuntos que não são membros de si mesmos. Retire N
como membro de si mesmo, e N volta a ser normal, e não anormal.
Mas N tem de ser ou normal ou anormal e, no entanto, pelo
argumento oscilante apresentado, pareceria que ele é as duas
coisas, ou nenhuma.
Chegamos a um paradoxo.

128 D avid B erlin ski


“Dificilmente algo mais importuno pode acontecer com um
autor científico”, escreveu Frege em um apêndice de seu livro,
do que ter os fundamentos de seu edifício abalados depois da
obra terminada. Fui colocado nesta posição por uma carta do sr.
I>ertrand Russel...”

A MORTE VEM
BUSCAR O LÓGICO

m m m ® Em algum momento do outono depois da primavera em


que Frege e eu demos juntos um curso de lógica na Califórnia,
meu grande amigo, o lógico DG, cometeu suicídio. Ele havia amado
muito alguém, e por muito tempo, e quando acabou, só lhe restou
a lógica e a lógica não bastava. Foi cremado em Colma a pedido da
esposa; assisti quando a esteira transportadora levou seu ataúde na
direção das luzes vermelhas que piscavam; ouviu-se um bramido a
distância quando os jatos de gás se inflamaram, e duas horas depois
me deram uma caixa de madeira simples com suas cinzas.
Levêi a caixa para um dos morros com pouca vegetação da
CJalifórnia, que são cobertos por moitas e têm uns poucos carvalhos
americanos anões nos capões.
Estava prestes a espalhar as cinzas quando percebi que Frege
havia se aproximado. Ele estava vestido, como sempre, de preto.
Abri a caixa e deixei que o vento com cheiro de sal levasse as cin­
zas embora.
Frege olhava a meia distância. Achei que ele fosse ficar em
•.ilôncio.

O ADVENTO DO ALGORITMO 129


— Sempre venho buscar os meus — disse ele, pouco antes de
desaparecer, deixando-me só com o cheiro de artemísia silvestre.
M n II B
»W H MBMi mtmSm ttn rt'

A p ê n d i c e :
T alvez haja r e s t r i ç õ e s

Os detalhes precisos da inferência no cálculo de predicados ten­


dem a ser onerosos. Dois pontos merecem ser comentados. Pri­
meiramente, os detalhes, embora onerosos, são não difíceis, e só
exigem papel, lápis e paciência para ser dominados. O cálculo, em
contraste, contém conceitos de verdadeira dificuldade intelectual.
Em segundo lugar, os detalhes estão a serviço de um sistema de
pensamento muito poderoso, já que a inferência no cálculo de pre­
dicados representa uma maciça ampliação do pensamento anterior,
e não apenas uma modesta ampliação, fazendo com que até os
mais sofisticados sistemas lógicos de Boole ou de Venn mais pare­
çam trenzinhos de brinquedo se comparados com as máquinas a
diesel que deslizam suaves do expresso da meia-noite que é o sis­
tema de Frege.
Então, os detalhes: lembre-se do esquema axiomático apre­
sentado antes. O primeiro esquema axiomático diz que qualquer
exemplo de uma fórmula da forma V x A D B é um axioma com as
seguintes restrições: Ou (1) B é a mesmíssima fórmula que A ou (2)
toda vez que A tem uma ocorrência livre da variável x , B tem uma
ocorrência livre de alguma outra variável y. O axioma VxAlDB é
suficientemente verdadeiro se x = x , B = A, e A é Fx, donde
V x F x D F x é um exemplo. E novamente suficientemente verdadeiro

130 D avid Berlinski


*.e x —x yA = 3yB(x, y), e B = 3yB(x, y). Assim, V x3y(x é mais loura
<l<> que y) D 3y(.x é mais loura do que y) é um exemplo de V:xAD
K, mas, também, Vx3y(^c é mais loura do que y) D 3y(z é mais loura
do que y), com z ficando no lugar de x em 3 y(x é mais loura do que
y). A substituição de x por z perm anece dentro dos limites da
restrição. A variável x é livre em 3yB(x> y), embora seja ligada em
Vx3y B (x, y), e a variável z é livre exatam ente no m esm o lugar
em 3y(z é mais loura do que y).
A substituição de x por y, no entanto, envolve a violação da
lestrição e leva ao absurdo de que Vx3y(x é mais loura do que y)
) 3y(y é mais loura do que y). Nenhuma loura é mais loura do que
ela mesma. Variáveis ligadas entram em choque nesta fórmula, como
dizem os lógicos. A restrição é criada para impedir o choque.
As restrições no segundo esquema axiomático seguem o m es­
mo padrão.

O ADVENTO DO ALGORITMO 131


5

H i l b e r t a s s u m e o c o m a n d o

C om a Coisa que estava


O SURGIMENTO DO PARADOXO DE R U S S E L ,
esperando para atacar atacou. Os próprios fundamentos da m ate­
m ática foram infectados e a tentativa de derivar a aritm ética de
uma forma intuitiva e plausível de lógica, condenada. Russel com u­
nicou seu paradoxo a Frege em 1903 e, depois disso, os m atem áti­
cos da Europa podem ser vistos levando as mãos à cabeça em um
gesto de refinado desânimo. Para todo mundo, exceto os poucos
descontentes que haviam zombado do assunto desde o início —
Leopold Kronecker, obviamente, que ainda hoje podemos ouvir a
casquinar —, a teoria dos conjuntos parecia ao mesmo tempo sim­
ples demais e profunda demais para ser descartada. Como os
elétrons na física de partículas, os conjuntos são estruturas sim­
ples, indefiníveis em termos de qualquer coisa mais simples; como
a eletrodinâmica quântica, a teoria dos conjuntos representa um
corpo de insights rico, intrigante e belíssimo, o próprio “paraíso”,

132 D avid B erlin ski


nas palavras exaltadas de um matemático. Mas o paradoxo de
Hiissel fazia parte de um grupo maligno de paradoxos, todos de na-
lure/a similar, e juntos eles penetraram muito fundo na confiança
<oletiva dos matemáticos, que aprenderam a lição que todo mundo
«leve mais cedo ou mais tarde aprender: o que é simples não é ne-
* essariamente seguro e o que é belo não é sempre verdade.

C rise e r e c u p e r a ç ã o

Pesarosos, ressabiados, mas combativos, os matemáticos que se


preocupavam com a certeza puseram-se a consertar os fundamen-
los infectados de seu tema nas primeiras duas décadas do século
W. Na Europa continental, o matem ático holandês Luitzen Brower
depositou sua confiança em uma forma de intuição, uma facul-
*l.tdc da m ente que reflete a progressão dos inteiros. A própria idéia
de <iLie a m atem ática precisava de um fundamento desapareceu do
ml nicionismo, e foi substituída pela interação entre um farol men-
i.il e uma série matemática, uma interação que, nem é preciso
di/cr, Brower não podia justificar e muito menos explicar.
A reconstrução mais sistem ática e inteligente da m atem ática
loi empreendida como uma forma específica de construção. Ao estu-
dnr os paradoxos, os matemáticos se deram conta de que eles pare-
•mm envolver auto-referência, um velho e incômodo intruso co­
nhecido desde os gregos. O paradoxo do mentiroso é um exemplo;
o mentiroso que diz, “Estou mentindo”, parece dizer o que é ver-
d.ulc apenas se o que ele diz é falso e parece dizer o que é falso
a p e n a s se o que diz é verdadeiro. O paradoxo de Russel também
y,ira em torno de auto-referência, surgindo no instante em que algo

O ADVENTO DO ALGORITMO 133


se dobra sobre si mesmo, os conjuntos normais tentando parecer
normais e se descobrindo anormais, e vice-versa. Isso sugeriu aos
m atem áticos que a teoria dos conjuntos poderia ser resgatada, se
não redimida, se a máquina conceituai da teoria dos conjuntos
fosse refeita.
Em 1908, o matemático suíço Ernst Zermelo publicou um
novo conjunto de axiomas para a teoria dos conjuntos. Há dez axiomas
no que veio a ser conhecido como a teoria dos conjuntos de Zermelo-
Fraenkel (o Fraenkel sendo Abraham Fraenkel, que contribuiu para
a formação dos axiomas um pouco mais tarde). Alguns simples­
mente fazem a mesma coisa que faziam na teoria ingênua de Cantor
(que escolha soberba de palavras!), especificando os modos como
os conjuntos podem ser juntados e fundidos, mas outros são cons­
truídos muito cuidadosamente para dificultar, restringir, confinar
ou sim plesm ente impossibilitar a auto-referência. Críticos obser­
varam que uma disciplina básica que precisa de tanto apoio mais
parecia um atleta corajosam ente brandindo muletas; mas com
esses paradoxos à vista, muitos m atemáticos se convenceram de
que era melhor ter muletas do que nada. Até hoje, ninguém sabe
muito bem se a teoria de Zermelo-Fraenkel pode fazer o que ela pre­
tende fazer, evitar os paradoxos; na época, como hoje, o máximo
que se pode dizer é que até aqui, tudo bem.
Não querendo abandonar o projeto de Frege, Bertrand Russel
e Alfred North W hitehead se puseram a fazer consertos seguindo
uma linha ligeiramente diferente, criando o que chamaram de uma
hierarquia ram ificada nos três grossos volumes de seu Principia
Mathematica . Os conjuntos andam para cima nessa hierarquia rami­
ficada e vão ficando maiores ou mais gordos (conjuntos de con­
juntos de conjuntos...), mas não para baixo; dessa forma, o para­
doxo de Russel é cancelado porque em larga medida os conjuntos

134 D avid B erlin ski


« %lao proibidos de ser membros de si mesmos (como quando o
«mi junto de todos os conjuntos normais se contorce todo para entrar
« in si mesmo). Russel e W hitehead conseguiram derivar a arit-
in<*1ica da lógica e, com uma promessa de coisas futuras, toda a m ate­
rnal ica da mesma fonte (as definições, teoremas e provas nume-
i ndas convenceram os filósofos de que o que Russel e W hitehead
I inham a dizer devia ser verdadeiro porque o Principia Mathematica
mi longo demais para ser falso). Alguns matemáticos concorda-
liiiii, mas outros observaram que uma teoria de conjuntos ramifi-
* ada dificilm ente tinha como recomendar a si mesma como logica-
m<*nte indubitável, tendo o Principia prevalecido apenas porque
Kiisscl e W hitehead haviam, ao ramificar a hierarquia de conjun-
los, inadvertidamente rebaixado o padrão de êxito.
Mas, como acontece com tanta freqüência na história do pen­
samento, esses esforços de reconstrução estavam sendo desbanca­
dos pelos acontecimentos ao mesmo tempo em que estavam sendo
Irilos, e os barulhos de pancadas e marteladas ouvidos naqueles ten­
sos primeiros anos do século foram abafados por outros sons.

C apitão na p o n t e

I >avid Hilbert foi um dos dois grandes matemáticos cujas carreiras


il>;ircaram os séculos XIX e XX; Henri Poincaré, por consenso geral,
o outro. Hilbert nasceu em 1862 em Königsberg, capital do que
<*ra então a Prússia Oriental, onde nasceu também Immanuel
Kant, cuja influência intelectual parecia tranqüilamente se irradiar
P<*las ruas, praças públicas, universidade e depois pelo interior
<licio de colinas (que, em 1944, foram achatadas por uma coluna

O ADVENTO DO ALGORITMO 135


avançada de tanques russos). A subida de Hilbert da sala de aula
para a ponte da matemática como seu capitão se deu com a mesma
calma e serenidade com que um peixe muito grande passa pelo mar.
Desde o início, ele tinha capacidade de comando, seu método mate­
mático e a disposição de ânimo eram majestosos, tal que quando li­
quidava com um problema, ele havia não apenas resolvido a questão
como também esgotado o campo em que o problema estava inseri­
do, deixando apenas umas poucas migalhas para trás. E depois disso,
ele seguia em frente, organizando ou reorganizando um ramo da
matemática depois do outro, traçando linhas de influência, desvian­
do a atenção dos matemáticos, exercendo sua autoridade por todos
os lados e enviando ondas de espuma que se moviam em todas as
direções.
Se realizações servissem para alguma coisa, o nome de Hilbert
seria tão conhecido quando o de Einstein e, entre os matemáticos,
o é. Existem espaços de Hilbert de dimensões infinitas na física
quântica, onde representam um papel arquitetônico indispensável,
e bases de Hilbert, invariantes de Hilbert e integrais de Hilbert na
própria matemática. Hilbert revolucionou a geometria elementar e
unificou a teoria analítica de números, convencendo os matemáti­
cos de todo o mundo de que, para a surpresa deles, eles não passa­
vam de cópias dele mesmo, pensando seus pensamentos, seguin­
do sua liderança.
Mas Hilbert fez mais do que controlar sua época e o lugar onde
viveu; como Einstein, ele veio a controlar o futuro também.
No Segundo Congresso Internacional de Matemáticos que
aconteceu em Paris em 1900, Hilbert presenteou a comunidade de
matemáticos com uma lista de vinte e três problemas em aberto.
Ele estava então no início da meia-idade, era um homem franzino
de altura média e cabelo ruivo rareando. A empoeirada sala de

136 D avid Berlinski


seminários da Sorbonne estava abafada. Hilbert falou em alemão,
mas suas observações haviam sido traduzidas para o francês com
antecedência. “Podemos ouvir dentro de nós a eterna chamada”,
disse ele. “Ali está o problema. Busque a solução.” As declarações,
mjunções, questões e exortações são intermináveis, e a voz calma
e estridente percorre com facilidade quase tudo que em 1900 já
era uma disciplina abrangente demais para ser abarcada por um
matemático só. Algumas das questões que Hilbert colocou eram
específicas, duras como a broca do dentista. Ao pedir aos matemáti­
cos que encontrassem uma prova da hipótese de Riemann, ele lhes
estava pedindo que fizessem o que habitualmente faziam, e o fato
de que ninguém conseguiu ainda é prova de que Hilbert tinha
noção da profundidade do problema. Mas outras questões eram
piogramáticas. Quando Hilbert pediu aos matemáticos que ata-
•nssem o problema geral de valores de contorno, ele os estava con­
vidando a que reorganizassem um território que ele podia sentir que
eslava pronto para ser retomado. A tarefa podia envolver um pelotão
tle matemáticos, dando tapinhas uns nos ombros dos outros e seguin­

do adiante com entusiasmo. E ainda outras questões eram ardilosas,


lendo Hilbert dividido o fluxo do tempo com tímidos gestos matrei-
i o s , como quando, em sua segunda questão, ele pediu aos matemá-

iieos que determinassem a “compatibilidade dos vários axiomas


imI méticos”.
A compatibilidade —e isso significa o quê? Vários axiomas arit-
III*‘ticos? Significa o quê? Estas questões eram endereçadas ao
Iui uro.
Não é de espantar que a comunidade matemática que Hilbert
estabeleceu na pequena cidade alemã de Gõttingen tenha se tor­
nado objeto de veneração retrospectiva na história da ciência, e
<111;iso todos os grandes matemáticos do século XX se lembram (ou

O ADVENTO DO ALGORITMO 137


gostariam de lembrar) de que quando eram jovens assistiram a um
seminário do grande homem, e depois ficaram sentados em cafés
conversando noite adentro.

H E R R H .

S I I I Se o otimismo com o qual Hilbert encarava o futuro era


su ficiente para convencer seus colegas, olhando para trás,
percebem os que ele devia botá-lo para fora a fim de convencer a si
mesmo. Podemos imaginar o drama de suas próprias dúvidas e mór­
bidos descontentam entos sendo despejados no divã do analista,
um material rico para a análise do próprio analista.

Nos casos que apresentam certos aspectos neuróticos, que


podemos cham ar de exemplos de histerese devido à característica
peculiar de persistente alternância entre duas fontes de energia, o
andamento da análise é difícil, de fato, e com freqüência problemá­
tico, porque o analista deve não apenas interpretar corretam ente
os sintomas, como também ajudar o paciente a resolver a contradição
que está no fundo de sua neurose. Nesses casos, o paciente parece
oscilar entre estados mentais que refletem a influência de seus
desejos conflitantes, muitas vezes com grande rapidez, tal que o
analista freqüentem ente fique com a errônea impressão de que
está lidando com um tipo de mania, seguida de depressão quando,
na verdade, os sintomas refletem apenas as oscilações do ego à
medida que ele é movido para lá e para cá por desejos incons­
cientes a se mover em direções opostas.

138 D avid B erlin ski


No outono de 19—, fui chamado a atender H err HL, membro
de uma fam ília prussiana que havia alcançado certo sucesso
est Lidando difíceis questões científicas. H err H. era de compleição
pequena e altura mediana, tinha testa alta, cabelo rareando e um
.ispccto de erudição. Parecia um pouco nervoso, falando a princí­
pio em um tom de voz tímido, atitude que mudou caracteristica­
mente no decurso da análise, quando então se alternava entre pro­
lixo, exigente, defensivo e depois hesitante e ambíguo.
Segundo dizem todos, sua infância foi tranqüila. O pai, H err
<)., era juiz e homem que exemplificava as virtudes prussianas de
l>íiicimônia, senso do dever, disciplina e obediência —virtudes que
.1 ;málise revelou estarem associadas a um estágio definido de
desenvolvimento psicossomático, um estágio, podemos especular,
que ocasionalmente caracteriza não apenas um indivíduo, mas toda
uma cultura também. Sua mãe, M .T., era considerada uma mulher
meomum, interessando-se por filosofia, música e numerologia.
<loino acontece muito nesses casos, a mãe de H err H. tentou com ­
pensar o alheamento e o distanciamento do pai com um excep-
» lonal senso de devoção ao filho, chegando a escrever suas disser­
tações escolares. É óbvio, H err H. foi sempre o foco da atenção da
mac, a ponto de sua irmã E., a quem ele mencionou apenas breve-
mente, ter sido virtualmente invisível no contexto do lar de H.
H err H. recebeu a educação tradicional dada às crianças da
■lasse média prussiana, tendo freqüentado o primeiro e o segundo
Kiau. Curiosamente, Herr H. se lembra de seu desempenho acadê­
mico no colégio como nitidamente medíocre, muito embora tenha
lido excelentes notas em todas as matérias; ele tinha, segundo con­
tou, o hábito de recusar o que lhe era ensinado no sentido de não
mcitar uma idéia ou um princípio novo até que tivesse elaborado
<>•. detalhes por si mesmo em sua mente, um traço que seus pro­

O ADVENTO DO ALGORITMO 139


fessores atribuíam a uma perversa obstinação, mas que os analistas
reconhecem como uma rejeição precoce da influência do pai despóti­
co. No entanto, H err H. se lembrava, com certo orgulho, quando
havia elaborado os detalhes de um problema difícil, de que seu co­
nhecim ento do problema excedia o de seus professores, fatos que
de novo devem ser lembrados no contexto das relações familiares.
No início da adolescência, H err H. reconheceu o que ele des­
creveu como uma 'Vocação”. Foi difícil determinar se essa lembrança
era um reflexo preciso de seu estado de espírito ou se era um cons-
tructo posterior, imposto sobre uma lem brança mais antiga que
havia por alguma desconhecida razão psíquica sido deslocada. Mas,
durante a análise, H err H. revelou que tinha consciência de sua
vocação desde uma idade muito tenra e, de fato, descuidou delibe­
radamente de alguns de seus estudos devido à crença de que mais
tarde viria a ter domínio sobre sua disciplina por conta própria, um
interessante exemplo de delírio imaturo.
De início, H err H. se queixou de insônia e de uma ansiedade
agitada, das quais sofria intermitentemente havia anos, uma combi­
nação que os analistas sabem muito bem ser particularmente difí­
cil de resolver na medida em que a própria insônia provoca ansie­
dade, que por sua vez provoca insônia. A despeito de sua aparência
dócil e discreta, durante sua breve análise, H err H. revelou sofrer
de certas distorções de personalidade bem conhecidas, consis­
tentes com a sua vocação de infância, que se enquadram na descri­
ção genérica de folies des grandeurs.
Alguns anos antes do início da análise, H err H. havia se casa­
do muito bem e depois tido um filho único. No início da carreira,
H err H. havia resolvido um importante problema, descobrindo, como
ele revelou durante a análise, que a solução do problema devia exis­
tir, em vez de demonstrar de fato a solução. H err H. se referiu à

140 D avid B erlin ski


u i descoberta como uma prova da existência, e ficou surpreso, na
v. nl.ide, ficou bastante agitado, quando lhe foi salientado que a
•sKtencia raramente precisa ser provada para se fazer valer, tendo
I li'n II. sentido em minha censura a crítica do pai distante que
I i L i v . i , como reconhecia Herr H, “pouco e só de vez em quando”.

A despeito da aparente tranqüilidade de sua vida doméstica e


I *•<»1issional, H err H. havia, por muitos anos, sofrido a influência de
dm*, impulsos psíquicos contraditórios, que ele mesmo descreveu
..... . uma busca da certeza e uma concomitante e profundamente
npiivorante sensação de dúvida. Como seria de esperar, os senti­
mentos associados à certeza eram invariavelmente a fonte de intensa
m.r» temporária euforia, que insidiosamente, como ele descreveu,
•i.i minada por uma insinuação de dúvida, que crescia de modo
inevitável até tomar posse de suas faculdades sob a forma de
•Impressão.
Sua vida mental assim se alternava entre a euforia e a melan-
•oliíi, com a peculiaridade clínica adicional de que ambos os esta­
do*. de espírito tinham conteúdos manifestos fixos, mas conteúdos
I itentes ocultos. O fato de que tanto a certeza quanto a dúvida ti-
nli.im óbvios componentes psicossexuais, advindos da euforia da
Im>1ència e do medo da impotência —que provinha em última instân-
•hi do complexo de castração que havia contraído devido ao com­
portamento severo e distante do pai —, Herr H. os rejeitou indig­
nadíssimo, rejeição muito comum entre eruditos cultíssimos.
Herr H. contou um sonho recorrente no qual, depois de uma
lon^a e difícil jornada por um território densamente arborizado,
•he^íi aos portões de uma esplêndida casa de campo construída à
m.incira italiana. A visão da casa em seu sonho provocava senti­
mentos de profunda satisfação e a sensação de que a longa busca
l e i minara. Ele andava pelos jardins rebuscados com imenso prazer,

O ADVENTO DO ALGORITMO 141


mas gradualmente, conforme o sonho progredia, tinha a desagradá­
vel sensação de que não estava só, e que a casa era destinada a outra
pessoa. A sensação de ansiedade aumentava à medida que inevi­
tavelmente seus passos o levavam para o pórtico da própria casa.
Então, ele sentia uma sensação que exprimia como “o mesmo
pavor'. Tinha consciência de que havia algo atrás dele e por longos
períodos não conseguia se virar para olhar. Quando finalm ente reu­
nia a coragem para se virar, arrepiava-se ao ver que havia o corpo
de um homem pendurado pelo pescoço em um teixo conspícuo no
terreno da casa. D escendo os degraus, H err H. se aproximava do
corpo, quando então descobria horrorizado que o enforcado era ele
mesmo. Ele via com particular repugnância que as lentes de seus
óculos haviam sido quebradas.
Logo depois de contar o sonho, H err H. deu por terminada a
análise, apesar dos meus protestos. Em casos como este, o analista
deve aprender hum ildem ente a aceitar a derrota, reconhecendo a
existência de sintomas que, devido à sua natureza inerentem ente
conflitante, são clinicam ente intratáveis.
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ggg SüSs
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ggt «£6is
38

O P R O G R A M A DE H E R R H.

Deus pode muito bem ter feito o universo por meio de leis m ate­
máticas, e presume-se que foi poupado de dúvidas enquanto, res­
mungando com terrível e implacável concentração, dava prosse­
guimento à obra em questão, espalhando poeira espacial ao vento
e permitindo que as galáxias desabrochassem na noite. Os m atem áti­
cos são pessoas limitadas pelas peculiaridades e pelas contingên­

142 D avid B erlin ski


cias de seu talento. Em sua maior parte, seu trabalho é rotineiro.
I hna conjectura é apresentada. E resolvida. Ocorre a alguém per­
guntar se, e se este é o caso, como. Uma parte do edifício imemo-
i i:il é colocada no lugar; outra parte é jogada fora. O sol se hasteia
no céu; o bombeiro vem consertar a privada que está vazando, o
cachorro do vizinho corre atrás de um carro. Depois, chove. É à
noit e que a grande Coisa sem pêlos aparece.
Os m atem áticos são tão com petentes quanto qualquer um
cm se esconderem de si mesmos, e a sensação de pavor, que não
passa, obviam ente, do outro lado da alegria, tende a desaparecer
«■om a aurora. M as quando os matemáticos se envolvem com a
«luvida, eles têm de se encarregar da difícil tarefa psicológica de per­
mitir que o eu se torne assunto de si mesmo.
A tentativa de ancorar a matemática na certeza lógica havia
I« t i ninado inconclusivam ente em 1918, e embora os m atemáticos

achassem que tinham uma forma de teoria dos conjuntos que fun­
cionava, não sabiam que funcionava e, o que é pior, não podiam
apelar para os axiomas de Zermelo-Fraenkel com uma sensação
ntlida de que ali sim era o lugar onde poderiam depositar a certeza.
Trabalhando com outros matemáticos, mas também domi­
nando a imaginação deles, Hilbert se recusava a tomar parte em
\a rios esquerfías de reconstrução, tentando, pelo contrário, chegar
a uma posição vantajosa que abrangesse e subsumisse todos os
esforços parciais de conserto e reconstrução. Essa é a ambição que
cm 1918 veio a ser conhecida como o programa de Hilbert, cuja
natureza epônima transmitia um débil guincho de aviso de que se
I lilbert estava disposto a viver de acordo com os preceitos de seu
programa, ele teria que estar disposto a morrer por eles também.
O programa de Hilbert é tão psicológico quanto matemático
c, portanto, envolve um modo de ver e de conseguir uma pers­

O ADVENTO DO ALGORITMO 143


pectiva múltipla na qual o matemático contrasta o que vê com o que
ele vê como vê. Na literatura, na arte, na m atem ática e na vida, o
olho é a nossa metáfora indispensável. Normalmente, enquanto
trabalha, o matemático vê os objetos familiares de sua especialidade:
números, grupos, anéis, o cálculo, equações diferenciais. Dando um
passo para trás, ele vê a si mesmo provando coisas; é esse compro­
misso absoluto com a prova que distingue o matemático do místico,
do psicólogo, grandes juristas, físicos, químicos, biólogos, escritores,
escultores, magnatas, maníacos, de fato, de tudo e de todos. A prova
é a moeda do matemático, aquela a que ele deve se aferrar.
Qualquer prova específica faz parte de um sistema de provas;
o sistema com muita freqüência fica fora da vista enquanto o ma­
temático se ocupa de seus negócios. Mas todos os sistemas m ate­
máticos têm uma mesma estrutura. Dependem de um determina­
do estoque de símbolos (o que mais?), de determinados modos de
combinar esses símbolos (sem os quais, algaravia), determinadas pres­
suposições (sem as quais, o nada) e determinadas regras de infe­
rência (sem as quais, o caos).
Os sistemas m atem áticos se tornam formais quando o lógico
impõe restrições à estrutura frouxa da prática m atem ática usual, da
mesma forma como uma promessa fica formal quando o advogado
congela o toma-lá-dá-cá da vida normal em um contrato. Sistemas
formais requerem uma lista finita explícita de símbolos primitivos;
uma lista explícita e finita de regras que determinam quais fórmu­
las são gramaticais; um conjunto explícito e finito de axiomas ou
esquemas axiomáticos; e regras explícitas de inferência que gover­
nam os passos que o m atemático pode ou não pode dar. Não são
permitidos a adivinhação, a intuição ou palpites. O sistema é de
natureza m ecânica, embora, como qualquer máquina — qualquer
máquina —, impregnado com a inteligência de seu criador.

144 D av iâ B erlin ski


Acima de tudo, os sistemas formais requerem aquela atitude
peculiarmente lógica de ardilosa renúncia na qual o lógico simulta­
neamente remove o significado dos símbolos de um sistema ao
mesmo tempo em que retém em algum nível de consciência uma
In me compreensão do significado desses símbolos.
É essa atitude de renúncia que levou Hilbert a uma astuta ma­
nobra psicológica. Temos o ansioso tagarelar noturno do matemáti-
»o, interrompido agora pela voz clara e neutra do analista.

—Com o significado removido dos símbolos, o que sobra?


—Os próprios símbolos, os movimentos que eles podem fazer,
o jogo que jogam.
—Esse jogo tem qual propósito?
—Qual o propósito de qualquer jogo?
—Mas o que tem um jogo a ver com a dúvida?

Depois do que Hilbert responde: “Tudo”, tendo evidentemen-


le aprendido alguma coisa com a sua análise.

Se — Sim? Se o quê? Se alguém — se nós —pudéssemos esta­


belecer algo sobre o jogo, então a dúvida seria rejeitada. O primeiro
passo foi dado. O jogo agora é visto tal como ele sempre foi. E da
mesma forma que repentinamente ver o rosto de uma mulher surgin­
do de uma delicada teia de pinceladas pretas cria um novo objeto,

ver o jogo tal como ele é introduz um novo objeto no universo do


matemático. Onde antes havia números, equações, grupos, con­
juntos, campos, anéis e estranhas topologias, agora há, além disso,
n próprio jogo.
Mas para ver algo é necessário ver esse algo de algum lugar, e
o próprio ato de ver desloca o matemático de sua posição habitual

O ADVENTO DO ALGORITMO 145


dentro do jogo; deslocado e, portanto, meio desconcertado, ele ve
o jogo tal como ele é, o significado dos símbolos, e vê tudo isso no
universo familiar no qual ele pode fazer tudo, menos, obviamente,
se pegar vendo o que viu.
O estádio do jogo é a matemática comum; mas o ponto de obser­
vação, que é a ra^tomatemática, e a distinção entre as duas, que era
unicamente de Hilbert, organizaram pela primeira vez aquelas con­
fusas e ansiosas vozes lógicas em um todo coerente. O fulcro da
certeza se apoia em uma distinção. A matemática é um jogo de sím­
bolos. E a metamatemática é onde o jogo ganha significado.
Confrontando o caos dos anos que haviam acabado de passar,
Hilbert determinou — na verdade, proclamou — que a matemática
encontra refúgio da dúvida na metamatemática, no que os m atem áti­
cos podem provar, demonstrar ou então indicar a respeito daquele
jogo fabuloso de símbolos que ele criou e que ele tenciona agora
confirmar e redimir.

A A R I T M É T I C A R E V I S I T A D A

Os axiomas de Peano expressam as propriedades dos números na­


turais (0, 1, 2, 3,...); mas a aritm ética de Peano não é um sistema
formal, no mínimo porque o próprio Peano está perfeitamente prepa­
rado para se apoiar sobre vários ombros e, falando em seu italiano
ciciante, explicar seus axiomas na linguagem da matemática comum.
Na aritm ética formal, a concha dos axiomas de Peano perm anece
como um conjunto de símbolos, mas, junto com o significado des­
ses símbolos, permitiu-se que Peano recatadamente desaparecesse.

146 D avid B erlin ski


A aritm ética formal envolve o cálculo de predicados e suas
regras e símbolos, indo além deles de várias maneiras. C inco novos
símbolos aparecem em seu vocabulário primitivo:

=, S, +, x, 0,

n símbolo “=” (para a igualdade); outro símbolo “S ” (para su­


cessão); outro “4-” (para adição); outro “X ” (para m ultiplicação); e
ninda outro “0 ” (para o zero). Na aritmética formal, esses cinco
símbolos funcionam como formas; minhas explicações entre pa-
ienteses de seus significados vêm de uma perspectiva além da arit­
mética formal.
O cálculo de predicados não diz coisa alguma sobre a igual-
d:ide ou seu sinal, e assim alguns axiomas adicionais devem
ser acrescentad os ao sistem a que já existe, especificam ente
l>l:mejados para controlar o com portam ento desta partícula sim ­
bólica. E sses axiomas fazem precisam ente aquilo para o qual
l u r a m . projetados. Não oferecem nenhum a surpresa. Suponha
que eles são dados. O resultado é o cálculo de predicados com
igualdade.
Agora, os axiomas puramente aritméticos:

1. V x~(Sx = 0)
2. VxVy((Sx = Sy) D x = y)
3. Vx(x + 0 —x)
VxVy(x+Sy = S (x+y))
4. Vx(x x 0 = 0)
VxVy(xxSy = (x xy )+ x )

O ADVENTO DO ALGORITMO 147


Esses axiomas dizem — mas, obviamente, eles não dizem coisa
alguma. O lógico é quem diz; o símbolo simplesmente fica lá, ocu­
pando espaço na página impressa. O que o lógico diz é direto e em
nada diferente do que Peano teria dito, na verdade, do que Peano
disse. O primeiro axioma? Não existe um número cujo sucessor é 0.
O segundo? Dois números têm o mesmo sucessor quando são
iguais. O terceiro e o quarto? Soma e multiplicação na escadaria
inferencial.
Além desses quatro axiomas, uma regra de inferência adicional,
que seja planejada para abranger na aritmética formal o princípio da
indução matemática, é necessária. Agora, na aritmética comum, a
indução matemática funciona como outra escadaria inferencial. Se
0 tem determinada propriedade, e se toda vez que um número arbi­
trário tem essa propriedade, seu sucessor também tem essa pro­
priedade, então todos os números têm essa propriedade. Com eçan­
do em um lugar específico, uma coluna de dominós pretos de pé se
estende até os confins do espaço, junto com a mesa sobre a qual
foram cuidadosamente arrumados. Cedendo à tentação, um adoles­
cente audacioso dá um tapinha no primeiro dominó. Ele cai com um
estalo seco. E os outros? Estarão eles também destinados a cair
quando chegar a sua hora? Sim , qualquer que seja o dominó e onde
quer que esteja, se ele cai, então também cairá seu vizinho mais
próximo.
Nos axiomas de Peano, o princípio aparece como um axioma
em separado. Não aqui. A indução m atem ática se m ete na história
vinda de cima, como uma ordem sobre a aritm ética formal, uma
regra que governa a inferência. Recorre-se ao aparato comum c
familiar do cálculo de predicados, a fórmula A(0) dizendo simples-

148 D avid B erlin ski


mente que 0 tem uma propriedade que o predicado A expressa.
Aj^ora, essa regra de inferência1:

3. Se A (0) e se \fx(A(x) Z) A(S%)) são teoremas, então


V%A(^c) também é.

A tradução dos símbolos: Se 0 tem uma determinada proprie­


dade, e se sempre que um número arbitrário tem essa propriedade,
‘•eu sucessor também tem essa propriedade, então todos os números
l(‘in essa propriedade.
Nada mais. A aritmética formal adquiriu a misteriosa capaci­
dade de zumbir e sibilar e se engajar na inferência. As inferências
da aritmética ordinária, que por séculos haviam ficado por baixo
das dobras do pensamento consciente, agora emergem para a luz
»lo sol, piscando debilmente, com suas mãos ossudas levantadas
Immii alto. Somar 1 a um número, por exemplo, leva você a nada
mais do que o sucessor do número. Em símbolos: \fx(x + 1 = S(x)).
I >M/,entos e trinta e um mais 1 é o sucessor de 231 —2 3 2 , por falar
i »isso. E o mesmo vale para qualquer número. A prova é totalmente
mecânica. A máquina com eça com uma definição: 1 é o sucessor
«lr 0. E depois disso, escreve as seguintes quatro linhas:
'N

1. Vx(x + S(0) = S(x + 0))


2. Vx(x + 0 = x)
3. Vx(x + S(0) = S(x))
4. Vx(x + 1 = S(x))

I I .rmbre-se que a primeira e a segunda regras de inferência foram dadas no


» •«|»11111<> 3 .

O ADVENTO DO ALGO RITMO 149


A n n a d a a r i t m é t i c a

Ao ler um romance com olhos inocentes, os estudantes muitas


vezes se perdem em suas páginas e chegam a uma conclusão sobre
o rom ance tomando como base aquilo que o mundo do romance
fez com que sentissem , confortáveis ou familiarizados, com muita
freqüência identificando o autor com o protagonista, e todo nove­
lista recebe de tempos em tempos cartas endereçadas a suas cria­
ções —Querida Anna, não faça isso. Tal é o triunfo da arte. M as tal
é o triunfo da ilusão, também.
Depois de alguma vivência, o estudante aprende a dar um
passo atrás, e reconhece que A nna , ela tem de fazer o que ela tem de
fazer , e isso é assim porque o que ela tem de fazer é artisticamente
necessário. Ninguém que leia Anna Karenina está realmente dis­
posto a vê-la sair do romance, com um terapeuta à disposição, e
rapidamente dar um jeito em sua vida. Uma sensação de sofisti­
cação literária tem início quando padrões estéticos tomam o lugar
de julgamentos morais. Isto torna a arte um empreendimento pro­
fundamente amoral, mas também profundamente interessante.
A m atem ática é, dentre outras coisas, uma forma de arte.
Antes de Hilbert, os matem áticos e os lógicos haviam se debatido
dentro dos limites de vários sistemas m atem áticos, na esperança
desesperançada de arrumar o sistema tal que ele parecesse total­
m ente seguro, sendo esse esforço tão condenado quanto o esforço
correlato de convencer Anna Karenina a fazer terapia.
Hilbert convenceu todo mundo a dar um passo atrás. Ao dar um
passo para trás, os matemáticos viram o que a matemática poderia ser,
um jogo formal, uma perspectiva fria, mas libertadora. Distantes assim
do que habitualmente faziam, os matemáticos, como os estudantes

IS O D avid B erlin ski


de literatura, foram forçados a perguntar não se a Anna da aritmética
p.necia boazinha, amiga, um tanto arrogante, confusa ou então irri-
i.mle, mas se ela fazia sentido artística ou matematicamente. Uma
qnestão de juízo havia substituído uma questão de certeza.
Ii com os juízos vêm os padrões. Eles devem, esses padrões,
■cr escolhidos de modo que reflitam o impulso original que produziu
ii decisão de distinguir a matemática da metamatemática. E eles de­
vem, também, ser padrões que possam ser provados, mesmo que
•.cj.i uma prova feita na metalinguagem, porque, sem prova, a mate-
m.ilica simplesmente não existe.
Os padrões de satisfação de Hilbert eram simples, diretos,
indicais e audaciosos. Um sistema formal em geral, e a aritmética
Inimal em particular, deve em primeiro lugar ser consistente. Sem
«onsistência, o próprio jogo da matemática perde o objetivo. A ma­
nivela da máquina de provar não pode ser girada e dar 2 + 2 = 4 e
«lepois ser girada mais um pouco e dar 2 + 2 = 5. O matemático
deve ficar em posição de estabelecer que em parte alguma da
infinidade de teoremas gerados pelo sistema formal ele poderia
encontrar um enunciado da forma P e outro da forma ~P. O padrão
de consistência impede que símbolos apareçam em justaposições
pioibidas. Claramente, se certos símbolos são proibidos de se jus-
i.ipor, não pode surgir nenhuma contradição, porque o sistema sim­
p l e s m e n t e não tem o poder de expressar a contradição.
O sistema formal deve em segundo lugar ser completo. E esta
i.imbém é uma exigência metamatemática, uma ordem dada pelo
’.enhor do símbolo. A aritmética formal tem por objetivo captar
indo o que é verdadeiro sobre a aritmética, e nada mais. O jogo
perde seu objetivo se o que é verdadeiro sobre a aritmética e o que
pnde ser demonstrado na aritmética formal não coincidem.

O ADVENTO DO ALGORITMO 151


E finalmente, exortou Hilbert, o sistema formal deve ser
decidtvel. Deve existir um procedimento finito e mecânico tal que
determine para cada alegação feita pelo sistema formal se essa ale­
gação pode ser provada dentro do sistema formal.
Um sistema que é consistente, completo e decidível é à prova
de dúvida. Que o diga o cálculo de proposições.
Há mais um pormenor, o último. O que quer que seja que o
matemático prove sobre o sistema formal, a prova deve ser feita usan­
do ferramentas que não sejam essencialmente mais fortes do que as
ferramentas encontradas dentro do sistema formal. Senão, a iniciati­
va novamente não teria propósito, e a dúvida se insinuaria no nível
metamatemático justamente quando foi banida no nível matemático.
E assim foi, quase até o advento do algoritmo, pois Hilbert
estava pedindo nada menos do que a subordinação de toda a mate­
mática, com seus conceitos abstratos e sutis, a uma rotina mecânica
—mecânica em suas regras de formação e regras de inferência, me­
cânica na verificação de suas provas, mecânica em sua capacidade
de decidir questões matemáticas sem pensamento, intuição, sig­
nificado ou deliberação. M ecânica como em uma máquina.
E mecânica, deixe-me acrescentar imediatamente, de um
modo que parece quase inumano.

A DESORDEM E O
DESFILADEIRO ESCURO

Hilbert prosseguiu em sua agenda metamatemática com o que um


lógico descreveu como “toda a sua autoridade de grande matemático”.
Em 1930, ele tinha todos os motivos para acreditar que a comunidade

152 D avid Berlinski


«Ir lógicos estava concluindo a tarefa que ele lhes havia dado. Os
In^icos haviam obtido vários resultados parciais; Presburger, em
particular, havia demonstrado, por meios metamatemáticos impe­
ráveis, que uma versão mais fraca da aritmética (adição, mas não
a multiplicação) era de fato consistente e completa.
Ao voltar ao lugar onde nascera, Königsberg, a fim de dar um
seminário, Hilbert deu por encerrada sua palestra com palavras
que mais tarde foram inscritas em seu túmulo: “Wir müssen wissen .
Wi r werden wissen \
Temos que saber. Vamos saber.
Nós nos damos conta hoje de que aquela foi a última vez que
aquelas palavras podiam ter sido ditas sem ironia.
Hilbert ainda estava vivo enquanto a magnífica instituição
que ele havia criado era esvaziada de seus eruditos judeus por cons­
cienciosos burocratas nazistas. Ele envelheceu enquanto, ao seu
redor, um monstruoso regime político se estendia ao sol com sua
língua de lagarto adejando. Ele continuou a trabalhar, orientando um
punhado de estudantes no doutorado, mas, falando francamente,
íi enorme sensação de autoridade que o havia amparado por anos e
depois décadas havia escapulido de suas mãos. Ele andava vacilante,
c embora às vezes fosse perspicaz, outras vezes parecia divagar. Liam
os poemas de Schiller para ele à noite; ele bebericava sua sopa.
E então, em 1943, depois de sofrer uma queda, morreu na
Alemanha, sozinho; os matemáticos que haviam ouvido sua voz e
sido influenciados por ele haviam se dispersado, alguns indo para
os Estados Unidos, ou para América do Sul ou até mesmo para a
China; outros, apesar de toda a sua sofisticada e intelectual astú­
cia, foram socados em trens de carga que rangiam pelo caminho
rumo à algum lugar a leste.

O ADVENTO DO ALGORITMO 153


6

G ö d e l e m V i e n a

T e n d o s a í d o d e P a r i s a fim d e s a i r d e P a r i s , fui morar em Viena


no outono de certo ano, e saí na primavera de outro ano. Parece que
eu gostava de sair dos lugares. Mas, enquanto eu estava lá, bem que
gostava de Viena. Era marrom-escura, sépia e fuliginosa e os garçons
pareciam deslizar entre as mesas nos cafés à noite. Morei em um
apartamento na Oberdonaustrasse, e da minha janela dava para ver
os campanários de várias igrejas barrocas cutucando a névoa da
manhã ou o crepúsculo. Os fantasmas estavam lá para me fazer
companhia, sentados nos cafés ou passeando em grande estilo ao
longo da Kärntnerstrasse. Uma vez eu vi o príncipe herdeiro Rudolf se
afastando apressado da corte em um fiacre, com seu cocheiro
Bratfisch assobiando “Wo bleibt die alte Zeit?”, enquanto em alguma
parte a leste da cidade, em um castelo campestre, sua amante espe­
rava, de olhos de abrunheiro, lábios de pêssego e uma rosa solitária
presa em seu cabelo castanho-avermelhado. O tempo agora andou

1 54 D avid B erlin ski


I».ira trás. A cidade pertence a outros, apenas os fantasmas andam
por lá esperando que a roda do tempo gire. Agora é 1931. E eu
mi ponho que estou lá aguardando com os outros fantasmas.
Sete anos mais novo do que o século, o matemático vienense
kurt Gõdel é de estatura mediana, franzino, tem um agradável
iusIo simétrico e o cabelo arrumado para trás ao estilo da Europa
<’.(Mitral. Usa óculos com aro de casco de tartaruga que aumentam
*.<‘iis olhos. Já estabeleceu sua reputação demonstrando, em sua
lese de doutorado na Universidade de Viena, que o cálculo de
predicados —o sistema de inferências que Frege idealizou —é com ­
pleto. Por meio do cálculo é possível demonstrar todos os enun-
<i:Icios logicamente válidos e apenas os enunciados logicamente
v.ilidos. Esta é uma prova inspiradora de que por meio da seleção
<l ileriosa de axiomas e regras de inferência é possível construir um
msIema formal que capte, e capte completamente, intuições a res­
peito dos conceitos básicos da lógica e da inferência. A prova fun­
ciona como uma defesa do programa de Hilbert.
O tempo avança pouco a pouco. Gõdel comparece discreta­
mente a vários seminários de matemática e filosofia; está sempre
presente em reuniões do círculo de Viena, onde fala pouco, mas dá
a inefável impressão de superioridade intelectual; é inabalavel-
mente prestativo e gentil para com outros matemáticos, que
muitos anos mais tarde irão comentar sobre sua extraordinária
ejipacidade de avaliar um problema matemático rápida e clara­
mente e indicar de imediato as linhas principais de sua solução.
K reservado mas não insociável, equilibrado e contudo curiosa­
mente distante. Parece que gostava das mulheres, tendo levado
\.irias à ópera ou a concertos. Tem a reputação de um jovem de
grande capacidade analítica e que dissimulava uma forte sensuali­
dade. É obviamente excitável, nervoso e com freqüência ansioso.

O ADVENTO DO ALGORITMO 15 5
No outono de 1931, Gõdel publicou um artigo de vinte v
cinco páginas intitulado “Sobre proposições formalmente inde-
cidíveis do Principia Mathematica e sistemas relacionados”. A refe­
rência ao Principia de Russel é, na verdade, uma manobra diver-
sionista; o artigo de Gõdel é sobre qualquer sistema axiomático em
que os números naturais possam ser descritos. É portanto um arti­
go que versa sobre a mais antiga das idéias matemáticas: o sistema
de números inteiros.
Nos limites daquelas vinte e cinco páginas, Gõdel estabeleceu
que a aritmética é incompleta, que o programa de Hilbert estava
condenado. E mais, demonstrou que a consistência da aritmética
não pode ser demonstrada por meio de raciocínio que seja tão sim­
ples quanto a própria aritmética. Apenas os sistemas problemáticos,
quando livres de contradição, conseguem ser livres de contradição.
E ao provar isso, ele também causou o advento do algoritmo,
dando, pela primeira vez, uma descrição matemática precisa de uma
antiga mas misteriosa idéia.

P r o v a e p a r a d o x o

O teorema de Gõdel se baseia em um paradoxo, aquele que foi


descoberto pelo matemático francês Jules Richard em 1905.
Com o o paradoxo de Russel, este gira em torno da auto-referência,
sacrificando-se sobre si mesmo. O português comum é geralmente
usado para dizer coisas comuns sobre números comuns — que o
número x é primo; que x é par; que x é maior do que y; que x não
traz sorte ou y traz. Essas expressões definem ou especificam pro­
priedades dos números naturais. Já que as expressões são compostas

156 D avid B erlin ski


«!<• pnlavras, e as palavras por sua vez de letras, não há dificuldade
« mi nrrumá-las em uma lista. A lista é infinita, é claro; não há limite
|mi:i o que se pode dizer sobre os números, mas cada expressão da
li*.i:i se reporta às letras, finitas, do alfabeto.
Suponha, então, que estas expressões definidoras estão lis-
i.id:is de modo simples: E ( l) é a primeira, E(2) é a segunda, E(3)
• .1 terceira, e E (n) é a enésima, qualquer que seja o número n.
N.ida está escondido pela lista. Ela é o que parece ser.
Agora, escolha qualquer número natural — digamos, 27 — e
qimlquer expressão da lista — digamos, a terceira — e suponhamos
que E(3) diz que x é um número primo. Há duas possibilidades:
I .( J>) é verdadeira s e x = 27, ou não. N este caso, não. O número 27
i mo é primo.
O argumento agora ganha ímpeto. Suponha que para qualque
iminero natural n, o lógico pergunte se a enésima expressão da lista
« verdadeira para n. Digamos que n seja novamente 27. A vigésima
•»eiima expressão da lista é E (27). Ela diz, é o que eu estou supon­
do, q u ex é múltiplo de 3. Exatamente. O número 27 é múltiplo de
• l\(27) é verdadeira para 27. Com outros números, a situação é
diferente. Digamos que n é 14 e que a décima quarta expressão da
Ir.lJi é verdadeira para um número apenas no caso desse número
**er ímpar. E (1 4) não é verdadeira para 14.
Considere a seguir uma nova propriedade dos números natu-
i.lis, que é verdadeira para qualquer número n apenas no caso em
que E (n) não é verdadeira para n. Essa é uma propriedade per-
leihunente razoável dos números naturais, se bem que um tanto
l»i/.:irra; a única coisa que faz é selecionar os números naturais para
n*. quais suas expressões correlatas não são verdadeiras. A expressão
que designa essa propriedade deve aparecer na lista, em algum
lu^íir mais embaixo, talvez, entre números muito grandes. Digamos

O ADVENTO DO ALGORITMO 157


que sua posição é a q y E (q) dizendo que qualquer que seja o
número n y E (n) não é verdadeira para n.
Temos agora um paradoxo em vista, e, como todos os para­
doxos, este tem dois lados. Suponha que n = q. Por um lado, supo­
nha que E (q) é verdadeira para q. Segue-se que E (n) não é ver­
dadeira para n yo que neste caso significa que E (q) não é verdadeira
para q . Por outro lado, suponha que E (q) não é verdadeira para q.
Então E (n) deve ser verdadeira para n y o que significa que E (q) c
verdadeira para q. Resumindo, o número n satisfaz à enésima
expressão da lista se e somente se não satisfaz à enésima expressão
da lista.
Parece que o intelecto deu com a cara na parede, usou mais
letras do que as do alfabeto, uma espécie de lista, e teve um romance
fatal com a auto-referência.

O CÓDIGO

É o conceito de prova que está no coração do teorema de Gõdel e,


como o argumento que acabei de dar, o de Gõdel envolve auto-
referência, onde uma sentença aparece sabe-se lá de onde e diz
sobre si mesma:

Não posso ser demonstrada.

Poderia parecer que um paradoxo se seguiria imediatamente.


Se esta sentença pode ser demonstrada, então o que ela diz é falso,
e neste caso ela é indemonstrável. Por outro lado, se esta sentença
não pode ser demonstrada, então o que ela diz é verdadeiro, e o

158 D avid Berlinski


I Ho de que é indemonstrável indica que pode ser demonstrada.
Al mal, a última sentença que eu escrevi dá precisamente essa
•!< i nonstração.
Mas com a verdade e a demonstrabilidade mergulhadas em
I» uadoxo, ainda sobra uma sentença nas margens da falta de senti­
do que consegue se referir a si mesma sem se reduzir ao absurdo:

Não posso ser demonstrada em um sistema formal


específico.

lista sentença pode muito bem ser indemonstrável no sistema


Inimal e mesmo assim ser suficientem ente verdadeira, a demons-
u.ieao de sua verdade acontecendo além do sistema formal, nas
illuras da metamatemática.
Surpreendentemente, nada de paradoxo. Não há motivo por que
«» enunciado não possa ser verdadeiro, já que, de fato, é verdadeiro.
\ verdade continua inviolável. Mas não a prova.
O teorema de Gõdel é a respeito da aritmética formal, e a arit-
meiica formal é apenas um modo logicamente conciso e maravi-
llmsamente detalhado de empacotar os axiomas da aritmética tal
que o esqueleto da inferência é posto a nu, por meio de um proces-
o de diafaneidade alcançada de modo imaginativo. Há axiomas e
leoremas, como na aritmética comum, mas os teoremas se seguem
lo*, axiomas por meio da intervenção de regras de inferência, e os
im bolos são especificados com um cuidado incomum. O signifi-
•ado foi evacuado do sistema, a palavra formal significando, como
icm significado o tempo todo, que o lógico fez o já habitual exer-
» leio de distanciamento e de aceitação de coisas contraditórias.
Mas se o significado pode ser retirado da aritmética formal,
l»odo ser igualmente reintroduzido quando os símbolos do sistema

O ADVENTO DO ALGORITMO 159


são fortalecidos pela compreensão do lógico de maneira sistemáti
ca. Retirar e reintroduzir constituem um processo de vaivém.
Desta forma, o teorema familiar,

1= S(0),

que significa, é óbvio, que o número 1 é o sucessor do número 0,


perde seu significado aritmético na aritmética formal e ganha uma
interpretação primária que diz que

.1 =,3ÍP)„

é uma seqüência de seis formas, com a linha que sublinha os sím


bolos servindo para chamar a atenção para os próprios símbolos, as
formas em si, e não para seus significados.
Com um movimento de cabeça, a mesma seqüência de seis
formas readquire seu significado normal e pretendido de enuncia
do da aritmética. O número 1 —o núm ero , note bem, não o nume
ral, que é apenas um sinal —é de fato o sucessor do número 0.
Se o lógico tem a capacidade de infundir nos símbolos seus
significados e depois retirar dos símbolos seus significados, é uma
capacidade que ele exerce de uma perspectiva ampla o suficiente
para abranger tanto a aritmética formal quanto a ordinária. Quanclo
ele vê os símbolos e brinca com seus significados, o ver e a brin
cadeira acontecem de uma perspectiva metamatemática. Ao obsci
var que 1 — S(0) são os símbolos ou as formas que expressam o que
1 = S(0) significa, segui a liderança do lógico, subindo mais uma
vez à metamatemática, de onde tanto os símbolos como suas loi
mas são observados, os olhos absorvendo tudo o que está abaixo.

160 D avid Berlinski


( ) teorema de Godel com eça com a descoberta de um esquema
d«» i nni dcMiação por meio do qual se pode dar à aritm ética com um
»» |M>d(*r de falar sobre si m esm a, e este esquem a lembra a versão
d«« I )rscartes da geom etria analítica, na qual pontos do plano são
«iv^uriados a pares de números. O vocabulário primitivo da arit-
Mirlira lormal inclui o vocabulário primitivo do cálculo de predi-
•iidos, mas vai um pouco além. A seguir, a lista com pleta dos sím-
IhiIos organizados em aglomerados.

Símbolos lógicos: —, V, D ,v, &, (, ), S, 0, =, ., +,


Símbolos sentenciais: P, Q, R, S,...
Variáveis individuais: x, yy z,...
Símbolos predicados: E, F, G, H ,...

Esses símbolos pertencem à aritm ética formal, e todos car-


impressões digitais latentes que indicam que sim plesm ente
i iiio lôm nenhum significado, mas eu parei de sublinhar para poupar
m lipógrafo. Q uando eu quero cham ar a atenção para os símbolos
em si, volto a sublinhar.
Números são agora atribuídos aos símbolos deste sistem a. Os
Mmbolos lógicos recebem os números de 1 a 12.

Símbolos lógicos
V, D , V, &, (, ), S, 0, =, ., +
^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12

Aos símbolos sentenciais são atribuídos números maiores do


que 10 mas divisíveis por 3.

O ADVENTO DO A L G O R IT M O 161
Símbolos sentenciais P, Q, R, S,...
t T T t
12, 15, 18, 21,...

Variáveis individuais? Um número maior do que 10 que deixa


resto de 1 quando dividido por 3.

Variáveis individuais v, x, y,...


T t T
13, 16, 19,...

Aos símbolos predicados, finalmente, são atribuídos números


maiores do que 10 que deixam resto de 2 quando divididos por 3.

Símbolos predicados E, F, G,...


T T T
14, 17, 29,...

Cada símbolo do vocabulário primitivo agora recebeu uma


etiqueta, ou número de Gõdel, como passou a ser chamado.
Do ponto de vista da aritmética formal, os símbolos vêm ju n­
tos de modos específicos e determinados. Podem formar fórmulas.
Ou podem se combinar para formar seqüências de fórmulas, uma
fórmula vindo depois da outra como em uma prova. O sistema de
atribuição de números não atribui etiquetas apenas aos símbolos,
atribui etiquetas a fórmulas e seqüências de fórmulas também.
A fórmula P D P foi de muita utilidade no passado como ilus­
tração. Aqui é posta para trabalhar novamente. Os números que
correspondem aos símbolos nesta fórmula são 12, 3, 12. A fórmu-

1 62 David Berlinslú
In como um todo agora recebe o número 2 12 3 3 5 12 , onde 2, 3 e 5
ním os Ires primeiros números primos. Este número agora é atribuí-
.lo u l> D P como um todo.
Seqüências inteiras de fórmulas aparecem em provas formais,
•oi no no exemplo do capítulo cinco:

1. Vx(x + S(0) = S(x + 0)) m,


2. Vx(x + 0 = x) m2 -
3. Vx(x + S(0) = S(x)) m3 ,
4. Vx(x + 1 = S(x)) m4

0 número à direita de cada uma das fórmulas é seu número


de ( Iodei. À seqüência de quatro fórmulas agora é atribuído o
numero 2tn,3rn25tM37w4. Este é novamente um número muito grande,
nms perfeitamente determinado, que capta informação de um pode-
io',o e com pacto modo aritmético.
1 lá duas virtudes neste sistema de atribuição de números. Ele
deiermina que cada símbolo, fórmula e seqüência de fórmulas tem
um número de Gõdel específico só para si, e determina que cada
numero de Gõdel determina de forma única uma seqüência, fór­
mula ou símbolo do sistema. O intermediário entre o que o sistema
Ji/,, o que faz e o que pode fazer é o teorema fundamental da arit­
mética que diz que cada número pode ser univocamente expresso
de forma única como uma soma de números primos positivos.
I >.ulo o número de Gõdel atribuído a P D P, quando o decompo­
mos, surge 2 12 3 3 5 12 e apenas 2 12 3 3 5 12. E de 2 12 3 3 5 12 e da lista ori-
Hln.il, o lógico pode determinar qual a fórmula que o número re-
piescnta. É a fórmula P D P, como anunciado.
() que é inesperado em tudo isso é que foi encontrado um
jciio de enunciados da aritmética fazerem comentários sobre si m es­
mos. Isso não é apenas uma questão de esperteza, embora a idéia

O ADVENTO DO ALGORITMO 163


para o esquem a seja mais que esperta. O processo de atribuir eí i
quetas aos símbolos dota a aritm ética de uma segunda voz. A pri
meira fala diretamente com os números e suas propriedades; a se­
gunda fala com os fatos sobre os números e suas propriedades, tal
que, de modo único entre as disciplinas, a aritm ética elem entar se
revela uma disciplina polifônica, com seus símbolos concisos de
repente ganhando uma tonalidade distante mas distintiva.
O m etam atem ático agora assume o controle das coisas. A se­
qüência formal de fórmulas,

1. Vx(x + S(0) = S(x + 0)) m,


2.Vx(x + 0 = x ) m2
3. Vx(x + S(0) = S(x)) í m3
4. Vx(x + 1 = S(x)) m4

com enta ele, é uma prova da fórmula V x(x + 1 = S(x)).


O que ele tem a dizer, ele poderia dizer com o mesmo res
tado usando os números de Gõdel em vez de palavras:

2mi3nt25m3'7m4é uma prova de ra4.

Mas até agora, é claro, o que ele tem a dizer continua dentro
da m etam atem ática. As palavras “é uma prova de” não são palavras
da aritm ética, mas palavras sobre a aritm ética. Todavia, o discurso
sobre a aritmética pode ser representado dentro da própria aritméti­
ca. Afinal, as palavras “é uma prova de” expressam uma relação
aritm ética entre dois números, uma relação que vale apenas no
caso em que o primeiro número corresponde a uma prova da fór­
mula designada pelo segundo número. Esta relação aritmética
pode ser extraída com pletam ente de dentro da aritm ética ordinária
por um predicado aritm ético —vamos chamá-lo de PR — tal que:

164 D avid B erlin ski


2 wi3 w2 5 w3 7 m 4 P R m 4

nu, voltando à notação clássica,

P R (2m,3W25m37w4y to4).

Iv.Iíi 6 uma sentença indistinguível quanto à forma de

Maior (7, 5),

que diz que 7 é maior do que 5. Ambas as sentenças são sentenças


iltt iiritmética. Elas tratam de números, mas, por meio do código, a
pnmcira sentença trata de outras coisas também — de prova, mais
••sprcificamente.
Resta um terceiro passo, que envolve visão dupla, à medida
i|iie

PR(2"‘i3",25m*7w\ m 4)

é esvaziado de significado tal que se torna simplesmente uma expres-


\/
uno entre as infinitas expressões da aritmética formal, agora uma
série de formas, e não um enunciado da aritmética:

P R ( 2w»3m25m37m4, m A).

O mecanismo necessário para uma forma precisa de auto-


leferencia agora está à disposição.

O ADVENTO DO ALGORITMO 16 5
R e c u r siv id a d e

É comum que idéias importantes sejam encontradas flanando pela


história das idéias sem que ninguém se dê conta de como elas são
importantes, na verdade, cruciais. A recursividade é um exemplo.
Em sua roupagem informal e habitual, a recursividade designa um
processo passo a passo, de um tipo que já é familiar, por meio dc
exemplos, já que várias definições especificam as fórmulas gra­
maticais subindo a escadaria inferencial. É no contexto de seu
grande argumento que Gõdel reconheceu o que exatamente é a
recursividade, uma expressão, em termos matemáticos, da própria
essência de um algoritmo.
Predicados (x é loura) e relações (x é mais loura do que y) já
apareceram formalmente em uma linguagem formal. Uma terceira
classe de entidades matemáticas agora é necessária, a classe das
funções. As funções são os nervos sensíveis da matemática, levan­
do objetos a outros objetos, formando associações e ligando ele­
mentos de um conjunto a elementos de outro. O matemático que
tenta ser claro sobre a natureza das funções se vê seguindo uma
espiral de definições, e a impressão de ter resolutamente chegado
ao alicerce quase sempre é desafiada por uma sensação sombria c
inflexível de incerteza. Como o comum dos mortais ao tentar explicar
os conceitos mais simples, o matemático constata que a melhor
solução é recorrer a um exemplo. Nosso domínio é o mundo dos
números naturais. Todo número natural pode ser multiplicado por
si mesmo, 2 passando a 4; 4 a 16; 3 a 9; 5 a 25; e 50 a 2.500. Algo
é dado e algo é feito, com o resultado de que algo é encontrado.
O que é dado é um número; o que é feito é a multiplicação; o que
é encontrado é o quadrado do número. O movimento tríplice da

166 David Berlinski


mente ao pegar um número e o elevar ao quadrado é representado
m atem aticam ente pela ação de símbolos sobre si m esm os. Assim,

/(2) = 4
/(4) = 16
/(5) = 25

nervem todos para expressar o movimento de um núm ero até seu


<|i ladrado, que já foi descrito em português e agora é descrito nova­
mente de modo simbólico, com / designando a própria função, o
Mimbolo inclinado aplicando pressão sobre um número a fim de
I»induzir outro número.
E os números tam bém não precisam ser especificados. C om
uma variável no lugar de um numeral específico, o resultado é

f(x ) = x\

uma estrutura de comando genérica de múltiplas finalidades na qual


h m atem ático registra inúmeras operações m entais, com a textura
aberta da expressão registrando sua decisão de tom ar qualquer
numero e elevá-lo ao quadrado.
As funções aritm éticas, com o o nome poderia sugerir, estão
»«nvolvidas no funcionam ento da própria aritm ética. A adição é
nma função aritm ética que leva dois números à soma deles; o
mesmo para a m ultiplicação; o m esm o para a divisão; e o m esm o
ptua lodo o resto.
Ao forjar sua prova, Gõdel introduziu uma nova classe de
Iunções no firm am ento m atem ático — as funções que são recursi-
nr. \nimitivas. O utros lógicos haviam percebido a existência delas,
•na*. ( !õdel ratificou sua im portância. As funções recursivas primi­

O ADVENTO DO A L G O RITM O 167


tivas são uma classe especial de funções em geral; são de muito
interesse na medida em que são mecânicas no sentido de m ecâni­
co que Gõdel pela primeira vez tornou preciso.
Temos aqui um exemplo:

/(O) = 1
/(D = 1

f(x + 2) = f{x + 1) + f{x )

Cada número na seqüência gerada por esta função pode ser


derivado da função anterior, com o elefantes segurando uns os rabos
dos outros. A seqüência com eça com os números

1, 1,

obtidos por meio das duas primeiras funções. A função que se segue*
nos permite determ inar o próximo valor na seqüência, /( 2 ) . Mas
/( 2 ) é na verdade apenas/(O + 2), que é / ( l ) + / ( 0 ) . Esses valores
nós já conhecem os. O valor da função em 2 é 2. E em 3? Não ha
motivo para perguntar. Todos entenderam.
A definição de Gõdel simplesmente coloca este exemplo óbvio
no contexto mais geral de todas as funções que de alguma forma
mapeiam os números em números. A genialidade da idéia está em
seu método. Em vez de falar sobre um objeto infinitamente grande,
a recursividade permite que o matemático fale sobre uma regra fini­
ta de construção. Temos uma definição recursiva de uma seqüência
numérica se em primeiro lugar o matemático puder especificar o
primeiro número da seqüência e, em segundo lugar, ele puder forne
cer uma regra que define o (k + l)-ésim o número em termos d«>
fe-ésimo número. Este é o loop familiar da recursividade.

168 D avid B erlin ski


Podemos dar uma definição mais formal da idéia de recursivi-
dadc. As funções recursivas primitivas com eçam com três funções
simples.

1. A fu n çã o zero, Z: Qualquer que seja o número dado a


Z, a função zero dá 0: Z (0) = 0, Z( 1) = 0, e Z( 1 0 .0 0 0 )
= 0 tam bém .
2. A fu nção sucessor, S: Qualquer que seja o número
dado a S, a função sucessor dá o sucessor daquele
núm ero: S (0) = 1, S (l) = 2, e S (1 0 .0 0 0 ) = 1 0 .0 0 1 .
3. A função identidade, I: Qualquer que seja o número
dado a I, a função identidade dá precisam ente o m es­
mo número: 1(0) = 0, 1(1) = 1, e 1 (1 0 .0 0 0 ) = 1 0.000.

Essas funções formam o núcleo da recursividade.


Agora, tem os um a definição:

As funções recursivas 'primitivas são precisam ente aque­


las funções aritméticas que podem ser derivadas do
núcleo da recursividade por meio de um núm ero finito
de operações mecânicas específicas'.

Tom em os, por exemplo, a fu n ç ã o /(x ) = x + 2. Q ualquer que


í'|.i o número x> esta função soma a ele o número 2, tal q u e /(4 ) =
í», <• /(2 8 ) = 3 0 . E sta função é recursiva primitiva?
K. Pode ser derivada da função sucessor: f(x ) = S(S(x)). A fun-
\in> /(.v) = x + 2 é exatam ente a função que dá o sucessor do suces-
hii do número que lhe foi dado.

I \V|,i <> apêndice para detalhes.

O ADVENTO DO AL GO R IT M O 169
Algo foi dado, e algo definido. Aqui, pela primeira vez, uma
idéia que se moveu furtivamente pela história, tendo na verdade
partido dos gregos e passado furtivamente pelas m entes de Leibniz
e Peano, e depois entrado furtivamente no século XX, irrompe pela
primeira vez à luz do dia. O loop da recursividade ganhou uma del i
nição formal.

O CARDEAL CONTEMPLA
A RECURSIVIDADE

■ ■ ■ ■ C erta vez, enquanto morava em Viena, recebi uma carta


do secretário do cardeal. Havia sido escrita no lindo papel de carta
gravado em relevo que a Igreja usa em sua correspondência oficial
e estava endereçada ao “H err Dr. Professor”. Sabedor, escreveu o
secretário em elegante alemão, de minha profunda compreensão
da lógica m atem ática, estaria eu, perguntava ele, disposto a explicar
a idéia de recursividade ao cardeal? De tempos em tempos, os m em ­
bros do instituto onde eu trabalhava eram convidados a falar em
particular com o cardeal; mas em geral o cardeal preferia ser instruí­
do pelas celebridades da comunidade científica, e eu só conseguia
explicar a carta do secretário como sendo o resultado de uma incor­
reta avaliação sobre minha pessoa.
M esmo assim, aceitei o convite. Quem não aceitaria?
Encontrei-m e com o secretário do cardeal na antecâm ara do
escritório do cardeal na legação papal, que ficava em uma char­
mosa rua arborizada transversal à Kãrntnerstrasse. O secretário
vestia o manto dos jesuítas; tinha um rosto pequeno quase que
totalm ente simétrico, com as feições desenhadas em cores escuras:

170 D avid B erlin ski


MtUnmcelhas grossas mas perfeitam ente retas sobre olhos pretos;
ihiiiz afilado que descia até volutas dram aticam ente em leque; e
liihios finos. Sua barba era tão cerrada que a despeito do fato óbvio
■le que havia feito a barba havia pouco, uma sombra azul cercava
ui,is bochechas e queixo.
A antecâm ara era barroca até pelos padrões de barroco de
iiniíi cidade muito barroca. Havia figuras celestiais cor-de-rosa e
ii ui Iva saracoteando no teto semicircular, que tinha um a clarabóia,
iiui pálido papel de parede rebuscado nas paredes e um elegante
unia estilo império vermelho diante de uma linda escrivaninha esti-
ln império. O tapete crem e desbotado retratava um unicórnio de
ullios tristes atrás de um portão; parecia velho o suficiente para ser
nil^ntico. Havia um retrato do papa João XXIII em uma parede e na
miira, um magnífico Giotto tardio — aquele que aparece em todos
H». livros de arte. A sala estava iluminada pela clarabóia e por um a
nei ie de luminárias de cúpulas vermelhas colocadas sobre mesas
<<>m tampo de parquete.
O secretário estava sentado à escrivaninha estilo império e
«•vplicou por alto o protocolo da entrevista.
— Sua Em inência — disse ele — deseja com preender os funda­
mentos. Os detalhes, obviamente, o distraem com facilidade. Ele
V /
deseja que o senhor apresente as idéias com clareza e concisão.
Kle pode fazer perguntas ao senhor, mas não é permitido que o
nenhor faça perguntas a ele.
— Por que, se posso perguntar, ele deseja com preender a
leeursividade?
O secretário deu de ombros por baixo de sua batina muito
liem talhada.
— Sua Em inência — disse ele — é um homem de vasta curiosi-
il.ule.

O ADVENTO DO A L G O R IT M O 171
O elegante relógio de pêndulo começou a soar a hora. Soou
três vezes e depois trinou umas poucas notas.
O secretário se levantou e me levou até o escritório particular
do cardeal, segurou a porta de madeira entalhada aberta para mini
e então imediatamente se retirou, fechando a porta atrás de si.
Se a antecâmara era esplêndida e barroca, o escritório parti­
cular do cardeal era um protótipo de sobriedade e discrição. Todas
as paredes eram forradas com antiquadas estantes embutidas, e os
livros eram quase todos encadernados em couro ou papel velino,
com títulos, dava para ver, em quase todas as línguas européias.
O cardeal estava sentado à escrivaninha.
Levantando-se como uma majestosa foca em manto vermelho,
ele se inclinou para pegar minha mão com as suas duas mãos e, com
um largo sorriso, disse que era um grande prazer me ver de novo.
Fiquei estupefato. Com um gesto, convidou-me a sentar em uma
cadeira de madeira de espaldar alto à frente de sua escrivaninha.
— É gentileza sua me lisonjear com sua atenção — disse ele,
com suavidade, com os dedos grossos cruzados sobre o terço. —Já
passei da idade em que aprender é fácil, e embora eu tenha curiosi­
dade, falta-me, ai de mim, a disciplina para prosseguir os estudos
sem a intervenção de um interlocutor.
Permiti que meus olhos percorressem a sala, os livros pare­
cendo sugerir de tudo menos falta de disciplina.
—Eu não diria isso, Eminência —murmurei.
— Mas é a verdade — disse o cardeal, endurecendo ligeira­
mente o tom de voz. —Nesta cidade onde Gõdel nasceu, é um escân­
dalo que eu saiba tão pouco das realizações dele.
—Pouquíssimas pessoas sabem, Eminência, mesmo hoje. É fácil
deixar passar o momento quando a roda da história intelectual gira.
—De fato —disse o cardeal. E então ele pareceu estar esperando.

1 72 David Berlinski
liii havia memorizado um discurso.
—O teorema de Gõdel mostrou que a aritmética é incompleta e
iumbém que uma prova de sua consistência está além do poder da
li Uinética. Alguns matemáticos —John von Neumann, por exemplo
compreenderam imediatamente a prova e suas implicações, mas o
uiciocínio de Gõdel foi tão sutil, e sua prova tal obra-prima de con-
•isiio c paradoxo, que pelo menos trinta anos iriam se passar antes
•|iir a comunidade matemática em geral compreendesse que algo
noiílvcl havia sido realizado, que uma profunda reorganização da
i c»iIidade havia sido feita.

O cardeal deu um largo sorriso, movendo as gordas boche-


« li.is como se as estivesse içando.
— Colocação muito interessante — disse ele. — Eu não tinha
uo^flo de que a realidade podia ser reorganizada.
— Eu me referi à nossa percepção da realidade, Eminência.
— Entre o que queremos dizer e o que dizemos há sempre
mim diferença fatal. Não concorda?
— Evidente, Em inência — disse eu.
— Mas agora o senhor deve realmente me contar sobre a
iccursividade. O próprio Von Neumann explicou a conclusão do
icorcma para o meu predecessor neste cargo. Lembro-me bem da
ncnsião. O senhor é, obviamente, jovem demais para ter conhecido
Von Neumann. Ele falava oito línguas, todas com um atroz sotaque
húngaro. Foi, apesar disso, lúcido e sereno. Talvez o senhor não
•**iil>a que ele teve muito medo da morte. No final, ele aceitou os
»•»irramentos. Mas não conseguiu explicar a recursividade em sua
p.destra, e, depois de ler isto — o cardeal apontou para um exem-
pl.ir de Gõdel, Escher ; Bach2 que estava sobre sua escrivaninha —
iuo estou certo de sua importância.

• Livro de Douglas R. Hofstadter. (N. da T.)

O ADVENTO DO ALGORITMO 173


—A recursividade —disse eu — é um modo humano de com­
preender uma totalidade infinita.
O cardeal olhava para mim com firmeza.
— É preciso uma mente infinita para compreender uma total­
idade infinita. Não é verdade?
—O próprio Gõdel se perguntava —disse eu, cuidadosamente
—se a mente humana não seria infinita.
O cardeal sorriu de novo.
—Se este é o caso, por que ele achou necessário encontrar um
modo humano de compreender uma totalidade infinita?
Era uma boa pergunta; era também irrespondível.
O cardeal disse:
— Talvez devamos deixar a compreensão do infinito para o
Espírito Santo. É o modo humano que me interessa. Eu sou, afi­
nal, apenas um homem como qualquer outro.
— Os números naturais — disse eu — prosseguem indefinida­
mente.

— E o que parece.
—A recursividade é um modo de permitir que nós também
prossigamos indefinidamente.
—Quem sabe, um exemplo?
— É claro, Eminência. — Dei início a meu segundo discurso
memorizado. —A seqüência de Fibonacci é uma das misteriosas as­
sociações de números que aparecem na matemática e que, depois
que as percebemos na matemática, percebemo-nas na natureza
também. Os padrões em espiral das conchas, por exemplo, obede­
cem a uma seqüência de Fibonacci; assim como muitas outras
coisas. A seqüência começa com os seguintes números

1, 1, 2, 3, 5 , 8 , 13,...

174 David Berlinski


» e obvio que os números na seqüência são gerados somando-se os
•lois números anteriores: 1 é o primeiro número; 1, o segundo por­
que | -f 0 = 1; 2, o terceiro, porque 1 + 1 = 2; 3, o quarto, porque
1 i I = 3, e assim por diante.
—Acredito —disse o cardeal —que é o “e assim por diante” que
»nusa hesitação. E assim por diante como?
— Há duas maneiras de dar conteúdo a “e assim por diante”.
I hna delas é por meio da recursividade. — Coloquei sobre a
enerivaninha do cardeal o bloco de papel que eu havia levado comi­
do e escrevi os seguintes símbolos:

/(O) = 1
/ (1 )= 1
f (x + 2) = f(x + 1) + f(^c).

—Estes símbolos funcionam como uma receita ou um roteiro.


I'lies dão à mente humana um modo de construir a seqüência de
Hlíonacci passo a passo, começando com o 0 e subindo. Eles per-
milem que se forme uma torre, construída de baixo para cima.
O cardeal aprovou com sua pesada cabeça.
— O segundo método é definir a seqüência de Fibonacci
e\|ilicitamente, por meio de uma definição algébrica. — Escrevi a
I<>i mula padrão:

O cardeal pegou o bloco e estudou as duas fórmulas, e suas


sobrancelhas foram se retesando à medida que lia cada símbolo.
—As duas equações têm a mesma solução, é claro. Parax = 1,
/(\) 6 1, exatamente como na equação recursiva. E apenas uma
questão de umas poucas manipulações algébricas.

O ADVENTO DO ALGORITMO 175


O cardeal levantou a mão.
—Acredito que sim — disse ele. — Suponha que x fosse um
número muito grande —um milhão, digamos.
—A equação algébrica daria a solução sem demora —disse eu —,
mas o cálculo seria cansativo.
— E a equação recursiva?
—Não daria a solução, a menos que o senhor já soubesse que*
x = 9 9 9 .0 0 0 e x — 9 9 8 .0 0 0 também são soluções.
—Oh —disse o cardeal —, então, qual é a utilidade da equação
recursiva?
— Suponha que não existissem equações algébricas ou que o
mecanismo de resolver a equação fosse difícil demais. Sempre há
o processo de recursividade, que permite que se chegue a um núme­
ro muito grande por meio de passos simples, repetidos de novo e
de novo.
— Parecido com as orações —disse o cardeal para si mesmo.
— Mas há mais uma coisa —disse eu, timidamente.
— Diga-me.
—A recursividade é um exemplo de um processo mecânico.
Os passos são decompostos de modo tão simples que não é neces­
sário pensar para dá-los. É só somar os dois números anteriores e
a seqüência vai se construindo sozinha.
— E qual é a importância disto?
— Dá um significado preciso à idéia intuitiva de computabili-
dade efetiva.
— E o que isso significa?
—Algo que pode ser feito em um número finito de pequenos
passos discretos, que vão na direção de uma conclusão específica.
— Em outras palavras, mecânico?

176 D avid Berlinski


— Em outras palavras.
— Parece que estamos andando em círculos.
— É o que parece, Em inência, mas mecânico, efetivo e com-
fmtíível são termos da linguagem comum e conseqüentemente vagos
nu no mínimo nada claros. A função recursiva que eu defini é clara
•nmo cristal.
— Mas sua importância só é clara para alguém que já conheça
pieviamente a importância de m ecânico, efetivo e computável?
C om ecei a dar de ombros e me dei conta de que era um gesto
insolente. Consegui que os ombros ficassem quietos.
—Temos de com eçar por algum lugar.
— Por algum mistério?
s

-E .
—Para mim estava claro —disse por fim o cardeal —que a recur-
nividade seria um assunto do meu agrado.
Naquele momento, ouvi o relógio na antecâm ara dar a hora e
depois tilintar sua musiquinha. A porta atrás de mim se abriu e o
secretário do cardeal ficou parado no espaço entre as salas, espe-
i.milo respeitosamente. O cardeal novamente se levantou e esten­
deu a pesada mão. A entrevista terminara.

O RESTO DA PROVA

l\ o que tem a incompletude com isso? Até agora, não foi men-
i lonada, em bora eu tenha gasto um bom tempo me aquecendo.
I\ aqui, onde esta pergunta interrompe os devaneios da minha
leeapitulação, que as funções recursivas primitivas aparecem no

O ADVENTO DO ALGORITMO 177


palco histórico da m atem ática. No decorrer de quarenta e cinco
definições, Gõdel estabeleceu que as operações aritm éticas essen­
ciais são recursivas primitivas e que quase todas as operações
m etam atem áticas sobre o sistema formal também são recursivas
primitivas. Quase todas. Não todas. Quando eu digo que as ope­
rações m etam atem áticas sobre o sistema formal são recursivas, eu
quero dizer, obviamente, que elas se tornam recursivas quando são
codificadas pelos números de Gõdel e depois expressas dentro da
aritm ética.
O resultado é um teorem a preliminar. Uma proposição recu
siva sobre os números é aquela na qual aparece uma função recursi­
va ou um predicado recursivo. Não há nada de misterioso nisso.
A proposição de que 2 + 2 = 4 envolve o predicado recursivo de
adição, e a adição é recursiva porque, dentro dos limites da arit­
m ética, a adição recebe uma interpretação ao longo da familiar
escadaria inferencial. Agora, o teorem a:

Toda proposição recursiva sobre os números naturais


pode ser expressa na aritmética formal por tima
fórm ula, e essa fórm ula é demonstrável se e somente
se a proposição é verdadeira, e refutável se e
somente se é falsa.

O enunciado simples de que 5 é um número primo diz al


sobre os números, a saber, que 5 é primo. A contece que é verdade.
Segue-se que existe uma fórmula demonstrável na aritm ética for
mal que expressa essa verdade. E o mesmo vale para os conceitos
aritméticos ordinários, e também para os conceitos metamatemáti
cos ordinários, tal com o o próprio conceito de prova.

178 D avid B erlin ski


Com este teorema, Gõdel ligou a recursividade diretamente ao
•nnceito de prova, estabelecendo, para todos os propósitos práti-
»ns, que a aritmética, concebida apenas como um sistema recursivo,
«■' totalmente completa, exatamente como Hilbert esperava.
E agora vamos àquela proposição indecidível. Gõdel propôs
•nnstruir uma sentença da aritmética formal que, quando lhe dão
•Msignificado ordinário, diz de si mesma que não é demonstrável.
kl o é feito em três etapas. A voz do lógico deve primeiro se enter-
i tu na aritm ética por meio do código; depois a aritmética deve ser
despida de significado por meio da capacidade de aceitar coisas
•untraditórias; e depois esta capacidade deve ser invertida, tal que
uma sentença da aritmética formal venha a dizer de si mesma:
<>lhe aqui, não há como me demonstrar. Essa é uma performance
IM>1ilônica extraordinária.
A seguir, os detalhes.
Vamos considerar fórmulas A(v) da aritmética formal nas quais
npnrece apenas uma variável livre v. A fórmula ou expressão “v é
iiin número primo” é um exemplo, verdadeiro se v recebe a inter-
Iuri ação de 3 ou qualquer outro número primo, e falsa em qual-
•111c•r outro caso. Mas v é livre em A(v) e, portanto, não sabemos a
piofundidade de sua generalidade ou se é projetada para ser válida
pura todos os números, ou para alguns, ou para nenhum.
Essas fórmulas, com sua variável livre vaga, podem ser arru-
m.idas em uma lista, do mesmo modo como no paradoxo de Richard.
l«*mos a primeira desse tipo de fórmula, a segunda, a terceira, e
•issiin por diante até a 2 2 3 - fórmula e daí por diante. Essas são fór­
mulas da aritmética formal. Elas até aqui não exprimem nenhum
»»l^nil icado. São formas do sistema e nada mais.
A toda fórmula da lista é atribuído seu próprio número de
•Ir»del, tal que ao olhar para a lista, de cima, o lógico vê

O ADVENTO DO ALGORITMO 179


fórmula (1) número de Gõdel para a fórmula 1
fórmula (2) <— número de Gõdel para a fórmula 2
fórmula (3) <— número de Gõdel para a fórmula 3

fórmula (223)<— número de Gõdel para a


fórmula 2 2 3 ,

e a lista simplesmente prossegue indefinidamente, ou indefinida­


m ente para baixo.
Se a fórmula 13 é Fv, então seu número de Gõdel é 2 173 13.
Um predicado novo em folha, A(v, x ) y agora aparece no campo
do argumento, contendo dois números, v e x. N úm eros, veja bem.
Esse é um predicado da aritm ética ordinária, uma relação fofinha
perfeitam ente ordinária.
O predicado contém dois números quaisquer sob duas con
ções. A variável v deve representar o número de Gõdel de uma fór­
mula A(v) qualquer da lista, uma fórmula na qual v é livre. Essa c
uma relação indefinida. O lógico ainda não faz idéia de que número
é v. E x deve ser o número de Gõdel de uma prova dessa fórmula
quando a variável livre v é chutada dessa fórmula e substituída por
um numeral que expresse o número denotado por v, qualquer qtir
seja ele.
Suponha, por exemplo, que a 9 3 - fórmula da lista seja Ev —e só.
Seu número de Gõdel é exatam ente 2 143 13. O lógico agora dá a essa
fórmula seu significado usual, descobrindo que Ev expressa a
proposição aritm ética de que v é um número par. Sem saber o que
v é, a fórmula é indeterminada.

180 D avid B erlin ski


O predicado A(v, x) é posto em ação. A variável v é o número
<lc ( lõdel de alguma fórmula da lista na qual v é livre. Nesse caso,
I» 2 I43 13. E a variável x é o número de Gõdel de uma prova dessa
Inrmula quando v é removido da fórmula e substituído por 2 ,43 13.
N rssc caso, A(v, x) diz que x é o número de Gõdel de uma prova
il.i fórmula a que se chega quando os numerais que expressam o
numero 2 143 13 são colocados no lugar de v. (Dificilmente se chega
li relação A(v, x) por meio da intuição.)
A contece que o predicado A(v, x) é recursivo primitivo. E por-
t.mto pode ser representado em um sistema formal simplesmente
|M>r símbolos formais — A(v. x ). que espia de dentro da aritmética
lormal para dizer, quando lhe é dado significado, o que A(v, x) diz
nlrin da aritm ética formal.
O lógico a seguir aplica a quantificação a esta fórmula per-
Irilíimente com um da aritmética formal, obtendo Vx~A(v. %). Essa
Inrmula, quando interpretada de modo apropriado (quando o lógi-
•n insufla vida aos símbolos), diz exatamente o que ela parece
1 /,er. Nada é uma prova da fórmula cujo número de Gõdel é v
1 1

quando a variável livre nessa fórmula é substituída por um nume-


i.il que designa o número de Gõdel dessa fórmula.
Mas agora, vamos à parte infinitamente astuta da prova. A fór-
mula V:x~A(V. x) tem apenas uma variável livre. Segue-se que ela,
i.imbém, deve aparecer na lista principal de fórmulas com apenas
uma variável livre. E é o que acontece, na 9 3 3 § posição, digamos,
»m para tornar seu aparecimento específico. Já que aparece na lista
piincipal, deve ter seu próprio número de Gõdel. E tem. Digamos
que seu número de Gõdel é P, e digamos também que P é o sím-
IM»lo na aritmética formal que designa P.
E agora, seguindo a receita que tem governado a construção
•In predicado A, vamos substituir v pelo numeral que designa P em

O ADVENTO DO ALGORITMO 181


V%~A(v, x ) . o que dá V x~A (R x ) . Ou, o que vem a dar no mesmo,
vamos fazer A (P) ficar no lugar de A(v) na lista principal. [A(v) é ;i
m esm a fórmula que V:x~A (v. x) e A(P) é a m esma fórmula que
V:x~A(R x ) .]
O lógico agora deve fazer com que essas fórmulas falem, ass
biem, gritem ou então sigam em frente. E o que diz V:x:~A(P. x)
quando o lógico dá significado a seus símbolos formais? Diz que
não existe uma prova de uma certa fórmula A(v) a que se chega
quando da substituição de v pelo número de Gõdel de A(v). Muito
bem. Que fórmula? E com essa pergunta, o teorem a de Gõdel e o
paradoxo de Richard se encontram , cumprimentam-se cordialmen­
te e seguem cada um o seu caminho.
A fórmula V x~A (R x) diz que nada é uma prova da fórmula a
que se chega quando v é substituído por P na fórmula Vx~A(v. x ) .
Mas a própria Vx~A(P. x) é precisam ente a fórmula que resul­
ta quando v é substituído por P em V,x~A(v. x ) . E, portanto,
A(P. x ) , quando interpretada, diz a respeito de si mesma que não
é demonstrável.
Segue-se que se a aritm ética formal é consistente, existe ao
menos uma sentença na aritm ética formal que não pode ser de­
monstrada. E o que é pior, essa sentença é verdadeira. Pense no
que isso diz.
Existe nisso tudo um sinal fortíssimo de paradoxo, mas no fim
não há nenhum paradoxo. A verdade e a prova divergem. Não há
motivo, só o nosso desejo, para que todas as verdades da aritméti­
ca fossem demonstráveis dentro da aritm ética.
O programa de Hilbert está condenado. Agora está morto.
partes mais elem entares da nossa experiência intelectual são in­
com pletas.

182 D avid B erlin ski


Isto é, em si, um fato assombroso e surpreendente, uma críti-
♦ .1 eontundente ao otimismo intelectual. Do modo curioso como as
hiii presas parecem gerar surpresas, um fato ainda mais assombroso
«••»lá esperando nos bastidores. Poucas semanas depois que Gõdel
«nncluiu sua prova da incompletude, ele percebeu que suas con-
i liisões punham em perigo a consistência, além da completude.
\ (rilha inferencial agora se estreita, mas é fácil segui-la. O teore-
m,i tia incompletude gira em torno da suposição de consistência,
obviamente; em um sistema inconsistente vale tudo e, portanto,
n.ida tem importância. A prova de Gõdel —a que acabei de descre-
vei em linhas gerais —portanto contém uma forte suposição central:
‘»V i\ aritmética é consistente, então ela é incompleta. A suposição
vem embrulhada como uma condicional e, portanto, envolve duas
'irnlenças. Digamos que a consistência seja expressa pela fórmula
\ Aritmética Formal É Consistente, e depois vamos encurtar essas
« ineo palavras numa abreviatura — A A FEC . A segunda sentença
«neolhe novamente e vira uma única fórmula Vx~A(P, x ), que diz
ii respeito de si mesma que é indemonstrável. A condicional que
«Li lorça ao argumento de Gõdel assim tem a forma geral:

A A FEC D A(P, x).

Essa ainda é uma versão lógica do português comum, algo


nieontrado na metalinguagem do lógico. Mas não há nenhum
h m >l ivo para que o mesmo código que serviu para expressar a meta-
mnfeinática em um sistema formal não possa ser usado para
» \pressar essa sentença em um sistema formal também, donde

A A FEC D V;x~A(R x ) .

O ADVENTO DO ALGORITMO 183


As inferências agora têm início. É a consistência da aritmeti
c a .demonstrável dentro da aritm ética? Caso seja, A A F E C deve ser
demonstrável. Ela diz, afinal, que a aritmética é consistente. Mas se
A A F E C é demonstrável, então V;x;~A(R ,%) também é, e isto em um
único passo. Mas Vx~A(R x) é indemonstrável. Eis o sentido do pri­
meiro teorem a da incompletude de Gõdel. Segue-se que AAFEC 1
deve tam bém ser indemonstrável.
E eis o sentido do segundo teorema da incompletude de
Gõdel. A consistência da m atem ática não pode ser demonstrada
dentro da aritm ética. M étodos mais fortes são necessários, as dúvi
das levantadas, mas não vencidas.
Gõdel descobriu seu segundo grande teorem a logo depois de
ter concluído o trabalho sobre o primeiro. Ele havia discutido su;is
conclusões com Von Neumann e, poucas semanas depois, Von Neu
mann percebeu a trilha inferencial da incompletude para a incon
sistência que Gõdel já havia percorrido. Ele escreveu para Gõdel
im ediatam ente para contar o que havia descoberto, mas Gõdel j:i
estivera lá e já vira o que Von Neumann havia visto.

P R I N C E T O N NO INVERNO

Um vento frio, perverso e úmido sopra pelas ruas de Princeton no


fim de janeiro. O céu fica baixo e cinza, mas a luz am biente é azul,
e no crepúsculo o céu ao norte às vezes é cortado por estranhas
riscas amarelas. Raramente neva. Isto faz o inverno parecer em
carne viva, com o as bordas de uma ferida, Eu andava por essn:.
ruas; eu me lembro com o eram.

184 D avid B erlin ski


l;oi em um inverno que Kurt Gõdel se matou de fome, e os
do hospital registram laconicamente a causa da morte como
hunição”. Ninguém ficou surpreso. A loucura era uma velha
• que o havia reencontrado. “Perdi”, disse ele, “a capacidade
de lomar decisões positivas. Só consigo tomar decisões negativas.”
I v.a <5 uma observação que só pode ser compreendida por alguém
•pie |7í sofreu de depressão. Portanto, pode ser entendida por todo
mundo. Ele sempre fora hipocondríaco, usava casacões pesados
•m pleno verão em Nova Jersey, queixava-se o tempo todo de sua
nude. Existem maravilhosas fotos de Gõdel na companhia de seu
yi imde companheiro Einstein, sentados em uma varanda qualquer,
i.ilvez na rua Mercer. Einstein está em mangas de camisa, gordu-
•lio e amarrotado; Gõdel está sentado ao lado de Einstein, seco,
■ilmhado, com o cabelo puxado para trás, os óculos escondendo
n*iis olhos da câm era. E, é claro, de sobretudo.
Ele acreditava que seus inimigos estavam tentando matá-lo
envenenando sua comida; tinha consciência de seu delírio, mas não
»nnseguia controlá-lo. Ele chegou à inevitável, lógica conclusão —
i paranóia o forçava a completar o padrão fatídico que ele podia ver
i envolvê-lo, mas do qual não conseguia escapar.
Parou de comer. Deu entrada no hospital de Princeton no fim
de dezembro de 1977. Tinham falado de um tratamento na Pensil-
\tinia; ele recusou os médicos. E por que não? Einstein havia mor-
ildo havia mais de vinte anos; ele tinha sido uma figura tremenda­
mente tranqüilizadora, benevolente e compreensiva. Seu amigo e
•olej»a Oskar Morgenstern havia morrido no início do ano. A mãe
eslava morta, enterrada em terra estrangeira. A esposa, a quem era
dedicado, estava doente. Não queria viver só. Os últimos elos vivos
« om a língua alemã tinham morrido. Ele havia confessado muitos
mios antes que não conseguia mais acompanhar, ou acompanhar

O ADVENTO DO ALGORITMO 185


totalmente, os novos resultados na lógica matemática. Seu corpo
estava definhando, e os ossos hirtos de seu rosto lhe davam uma
aparência de coruja. Ele falou educadamente com Hao Wang ao
telefone em meados de janeiro. Wang mais tarde comentou que
ele parecia estar falando de uma grande distância, como se já hou
vesse passado para o outro lado.
Pesava então muito pouco, talvez vinte e cinco quilos. Níío
sentia mais fome; nunca acreditara no tempo e agora vivia além do
alcance dos relógios. Sua pele ficou fina, translúcida. E então um
dia, sentado em sua cadeira, enquanto o céu ia baixando na tarde
fria, ele estendeu a mão e morreu.

A p ê n d i c e :
OS DETALHES

A fim de tornar esta definição inteiramente aceitável para espe­


cialistas como nós, o lógico precisa apenas especificar as operações
mecânicas às quais me referi rapidamente no texto. Aussitôt dit,
aussitôt fait. A primeira é a composição, a segunda, a recursividade
primitiva. As palavras “recursividade primitiva” agora funcionam com
dois sentidos, descrevendo como adjetivo a classe de funções
recursivas primitivas, e designando como substantivo a operação
de recursividade primitiva.
Com a atuação da composição, a função h é derivada de duas
outras fu n çõ es,/eg , apenas no caso em que h(x) =f(g(x)). A função
h(x + 2) é derivável desse modo da função f(g (x ))y onde g{x) é o
sucessor de x 9 e f(x ) é o sucessor do sucessor de x.

186 David Berlinski


A recursividade primitiva é ligeiramente mais complicada.
Au 'i^ora, falei apenas em termos de uma única variável, a função
/(*) a* l- 2 que pega um número e dá de volta outro número. A ope-
lei ta por uma função pode também envolver duas variáveis
i |»niianto, dois números. A fu n ção/(x, y) = z representa a forma
• d l unção A dd(x, y) = x + y> um exemplo, no qual Add pega dois
n ú m e r o s e dá de volta a soma deles.
A recursividade primitiva governa a geração de funções desse
ii|in cie acordo com o seguinte esquema. Uma função h é derivável
I»mi recursividade primitiva da fu n ção/ap en as quando 1) h(0) = c,
«’ -i) //(S(n)) = f ( n , h(n)).
Isto não é de modo algum tão ruim quanto parece. As con-
•li^nes, em português claro: o valor de h em 0 é fixo, a letra c desig-
ünnclo uma constante e, portanto, um número específico; e o valor
•le // no sucessor de um número qualquer n é determinado pela
•Viu dupla de / sobre n e sobre o valor de h em n. É fácil mostrar
•11 ie ;i soma é uma função recursiva primitiva usando as operações
de e<>mposição e recursividade primitiva. E é fácil mostrar que
•*mLis as operações aritméticas ordinárias também são recursivas
Imunitivas.
<
As funções recursivas primitivas dão expressão precisa à idéia de
.»lynritmo. Mas existem funções, como o exponencial de Ackermann
hi.io pergunte o que é), que são computáveis, e obviamente com ­
putáveis, mas não recursivas primitivas.
Foi essa circunstância que levou os lógicos à definição de uma
•Insse mais ampla de funções recursivas. Para isto, um procedi­
me nt o mecânico adicional é necessário, o de minimizar. Uma função
j;(\\ y) é dada. U m a função / é derivável de g por minimização
apenas no caso em que f(x ) = y, onde y é o menor número tal que

O ADVENTO DO ALGORITMO 187


g(x, y) = 0. E se não existe tal y> e n tã o /n ã o é definida e mergulha
na irrelevância.
Assim, seja g(x, y) a função A dd{x, y).
A dd(x, y) = 0 quando tanto x quanto y = 0, já que claramentr
0 + 0 = 0, e não outra coisa. 0 é assim o menor y que faz A dd{xy)')
dar 0.
Segue-se, pela definição, que a função f é derivável de Add(x,
y) por minimização apenas s e /(x ) = 0. Da mesma m aneira,/(x) = 0
apenas se x = 0 também. Para qualquer outro número z, f(z) não

tem nenhum significado.


As definições de composição, recursividade primitiva e mini
mização que eu dei precisam ser colocadas em termos mais gerai:,
antes que possam fazer tudo que se quer que façam. Em particular,
deve-se permitir que as funções tenham qualquer número de argn
mentos, tal que as definições contenham /(x,, x 2,...,x n) assim como
/(x ). Os detalhes podem ser encontrados em qualquer livro-texto
Computability and Logic, de Geoge C. Boolos e Richard Jeffrcy,
por exemplo.
Mas, quaisquer que sejam os detalhes, é a idéia de recursivi
dade que é importante, a escadaria inferencial que com eça em
algum lugar e vai subindo em estágios finitos; e mesmo quando os
detalhes foram dominados, ou ignorados, a idéia permanece, trans
formando-se, como todas as grandes idéias, em uma vívida imagem
dessa escadaria, desses degraus, e da tentativa imensamente cansati
va de subi-los.
Em tudo o que se segue, quando me refiro às funções recur
sivas, eu me refiro a toda a classe de funções recursivas, e não ape­
nas às funções recursivas primitivas.

188 David Berlinski


7

A D I S C I P L I N A P E R I G O S A

■ ■ ■ D A HISTÓRIA a SEGUIR m e FOI CONTADA por Irving Bashevis


'iln^cr em um café na Broadway com a Rua 85; era tarde da noite e
|M>r algum motivo eu mencionei o famoso comentário de Gõdel de
•|iic a lógica era uma disciplina poderosa.
—Bem —disse Singer —, poderosa, talvez; perigosa, com certeza.
— Perigosa? Mas como?
—Vou contar uma estória — disse Singer. E isto foi o que ele
ii\r contou. Traduzi o que ele me disse em iídiche:

Havia um certo rabino na cidade de Yehupetz. Ele tinha um


11,11 i/. comprido e fino que estava sempre pingando e uma barba
1«mira emaranhada que ia até a cintura. Às suas costas, a garotada da
« idaclezinha o chamava de Rabino Boca Fechada por causa de seu
luil)i(c) de quase nunca falar. Os rapazes que estavam para casar cos­
tumavam procurá-lo para pedir conselhos. O rabino dava um suspiro

O ADVENTO DO ALGORITMO 189


profundo, olhava para o teto de seu gabinete, cruzava os dedos <•
resmungava zangado sem dizer coisa alguma. Quando os velho:;
sentiam as asas do Anjo da Morte adejando perto da cama, man­
davam chamar o rabino. Ele se sentava em silêncio à cabeceira cia
cama, mas, além de entoar as bênçãos, ele se recusava a dizer qual
quer outra coisa.
Em casa, sua esposa havia muito perdera a esperança de ouvir
o rabino tendo uma conversa normal. “Aquele ali”, dizia ela,
dando tapinhas na testa significativamente, “o próprio coisa-ruim
em udeceu.”
Não fora sempre assim. O rabino fora famoso por suas inter­
pretações originais do Talmude.
Ele lia uma seção do tratado Bava Metzia, que versa sobre o
dar presentes, e perguntava aos alunos se a mão direita podia dar
um presente à mão esquerda.
—N u ? — perguntava ele, com os olhos brilhando.
Seus alunos ficavam se concentrando na pergunta, mas, antes
que algum deles conseguisse responder, o rabino argumentava que
se podíamos dar aos outros, então certamente podíamos dar a nós
mesmos. Os alunos diziam que sim com a cabeça. Então, no minu­
to seguinte, o rabino argumentava que esta opinião na verdade
estava totalmente equivocada.
— N u y cabeças-duras — dizia ele. — Pode um homem ser mais
alto do que ele mesmo? Então, como é que ele pode dar a si mesmo
um presente?
Seu raciocínio era tão sagaz e a voz de tenor tão convincente
que os alunos eram forçados novamente a concordar com a cabeça.
Mas então o rabino dizia “Por outro lado” e mostrava que tudo
o que havia acabado de dizer estava errado também. Transferindo o
peso de um pé para o outro em sinal de impaciência, fazendo os ca-

190 D avid Berlinski


•Iiinhos junto às orelhas adejarem ao mexer a cabeça vigorosamente,
m i.ihino explicava que, mesmo que alguém desse a si mesmo, um
i••ui|X) iria se passar entre o dar e o receber o presente, e nesse tempo,
uiii.i pessoa se transforma em algo diferente do que era.
Na verdade, o coisa-ruim, maldito seja seu nome, corrompe
•iid.i um de acordo com um plano especial. Um dia, no fim da tarde,
ip.nvceu em Yehupetz um m ascate carregando um saco. Era baixo,
di* ombros largos, meio corcunda de tanto carregar seu saco pesado.
Nilo havia mais cabelos em sua cabeça do que em uma abóbora,
ui,is havia cabelo suficiente crescendo em seu nariz e orelhas para
i ol>rir duas cabeças. Ele jantou na kretchma uma tigela de trigo-
»iiii iaceno e sêmola misturados com coalhada e depois foi à casa de
bunhos. Suas unhas eram longas e amarelas e, quando tirou os sa-
Imios, os homens de Yehupetz perceberam que seus dedos dos pés
•i<1111 longos e parecidos com os dos m acacos. Naquela noite, ele
doiniiu com os outros aproveitadores em um banco de madeira na
atiil.i de estudos.
No dia seguinte, ele foi vender suas mercadorias. Diferente­
mente de outros m ascates, não parava para conversar fiado com as
m.irs de família que atendiam à porta quando ele batia.
—Tenho panelas, dois groschen — dizia ele, bruscamente.
—A sua língua não vai se partir em duas se você disser mais
umas palavras — a dona-de-casa retrucava.
— Se a língua tivesse asas, os mascates voariam.
Para as devotas donas-de-casa judias de Yehupetz, que cobriam
*iii.is cabeças com xales, o m ascate vendia panelas de lata, facas de
•n/.inha, agulhas de cerzir, linha e giz de alfaiate; mas quando ele
balia cm uma porta e uma empregadinha polonesa atendia, ele mer-
milliava as mãos de m acaco em seu saco e tirava fitas coloridas,
mil<*s bordados ou pentes de tartaruga.

O ADVENTO DO ALGORITMO 191


A empregadinha olhava para aqueles tesouros e sacudia ;i
cabeça.
— Mas querida, há muitos modos de me pagar — respondia o
m ascate em um polonês perfeito.
Seu saco parecia sem fundo. Para os homens de Yehupetz, eIr

tinha um dispositivo de remover cera de ouvido, uma bola de


bronze com a forma de uma cabeça de leão que podia ser colocada
no cabo das bengalas, luvas quentes forradas com pele de coelho <•
uma variedade de ungüentos para frieiras, suores noturnos e hemoi
róidas; para os jovens da cidade, ele tinha apitos, açúcar-cand c <•
pequenas contas e, para as jovens, sinos de prata, bonecas com
olhos de madeira e espelhinhos feitos de latão polido.
E para os alunos de Talmude do rabino cujas vozes estavam
com eçando a falhar, ele tinha algo especial. Ele os abordou na ru;i
poeirenta quando estavam a caminho da sala de estudo à tarde.
Levantando a mão, ele disse:
— O Messias já esperou até aqui, então pode esperar mais um
pouco.
Os alunos pararam. O m ascate enfiou a mão no saco e tirou
um baralho. O aluno mais velho do rabino, um jovem alto cham a­
do Itche Bunzel, que tinha um pomo de Adão proem inente e uni
nariz comprido e fino com o o do rabino, deu uma olhada no bara­
lho e cuspiu na rua.
— Meu bom jovem —disse o m ascate —, este baralho é especial.
—O próprio diabo joga com cartas assim na geena —disse Itche
Bunzel.
— O baralho do diabo pode fazer isto? —perguntou o m ascate,
e embaralhou as cartas. À medida que as cartas saltavam sob seus
dedos, uma mulher gordinha completamente nua apareceu nas cos­
tas das cartas, com o se por mágica.

192 D avid B erlin ski


Um rubor repentino passou pelo rosto de Itche Bunzel. Ele se
virou sobre os calcanhares e se afastou em silêncio, com os outros
tilunos atrás. Mas, mais tarde, Gimpel, o pastor de cabras, viu
llche Bunzel sentado em uma pedra no terreno acima do moinho
<Li cidadezinha. Ele estava tentando embaralhar as cartas de um
baralho.
No fim da semana, o m ascate já conseguira, como diz o dita­
do, manter dois copeques nos bolsos. Na manhã de domingo, ele foi
no culto e colocou cinco groschen na caixa de esmolas. Depois de
icjuar o dia inteiro, foi jantar na kretchma, onde pediu cabeça de
carpa cozida com nabos, beterraba em conserva, cebolas cozidas
cm fogo brando e peras no mel com amêndoas. Os alunos do rabi­
no contaram a ele que o m ascate não dormia mais com os outros
aproveitadores nos bancos da sala de estudos, pois havia requisi­
tado uma cam a na kretchma.
O rabino pediu a Reb Avigtor que chamasse o m ascate a seu
gabinete.
—Imediatamente, rabino —disse Reb Avigtor, e saiu apressado.
O rabino estava sentado junto à longa mesa de madeira em
seu gabinete fumando seu cachimbo quando Reb Avigtor bateu e
abriu ligeiramente a porta.
— Estamos aqui, rabino —disse ele.
— Estou vendo.
O rabino indicou uma cadeira ao mascate. O m ascate se sen-
lou diante do rabino, cofiando a barba e cutucando as orelhas. O ra­
bino tossiu decorosam ente.
Com o se estivesse lendo os pensamentos do rabino, o mas­
cate perguntou abruptamente:
— Então, onde está escrito que se deve ser pobre?
O rabino disse:

O ADVENTO DO ALGORITMO 193


— Onde está escrito que as vacas devem andar de qual ror
Apesar disso, as vacas não voam.
O mascate ficou em silêncio, mas parecia ao rabino que havi
algo de debochado em seu sorriso fino. Então o mascate enfiou a
mão no saco e tirou um livro de capa de couro e o colocou sobre a
mesa do rabino.
A chama na vela crepitou devido a uma repentina rajada de
vento. O rabino sentiu uma dor no nariz e depois uma dor nos ouvi
dos. Suas mãos e pés formigaram. Sentiu um ímpeto de tossir;
pegou o lenço e, em vez de tossir, espirrou. O rabino ficou ima^i
nando se um diabinho se apoderara de sua alma. E então, em um ins
tante, as dores no nariz e nos ouvidos passaram. Foi revelado a ele
que tudo estava como devia ser. Uma sensação de alegria inundou
sua alma. O mascate continuava sentado onde estava.

No dia seguinte, o mascate foi visto partindo de Yehupetz com


seu pesado saco pendurado dos ombros. Uma semana se passou e
depois outra. Quando o rabino voltou a dar aulas, ele percebeu um
novo poder de análise em si mesmo. Passagens dos tratados que
tinham sido sempre misteriosas estavam repentinamente claras.
Ele via significados por trás de significados. As palavras se organi­
zavam e reorganizavam nos textos. Argumentos jorravam de sua
boca como dentes. Parecia que Jonas havia engolido a baleia e que
havia uma mensagem secreta codificada no Cântico dos Cânticos.
Passagens que seus alunos haviam pressuposto serem sobre as mu­
danças de estações ou as leis para o abate ritual dos animais, o rabi­
no mostrou serem importantes para o propósito do universo ou então
que continham planos secretos para a construção da geena.
Os alunos mal conseguiam seguir a complexidade de seus pen­
samentos. Ele colocava uma questão das mais simples e então reve-

194 D avid Berlinski


I in .I complexidades por trás do significado manifesto das palavras
•mi hebraico.
-Por que está escrito que os anjos têm duas asas? Por que não
»|ii.il ro?
Os alunos tentavam em vão encontrar uma resposta. O rabi­
no os interrompia.
—Cabeças-duras —gritava ele —, não vêem que o Todo-Poderoso
•i loti o ser do nada com apenas dois números?
Com o tempo, a notícia dos poderes do rabino se espalhou
pura muito além da cidade de Yehupetz. Com eçaram a vir estu-
dnnles de tão longe quanto Chelm, e até de Varsóvia, para ouvir seus
icimfíes. Ele não debatia mais com estudantes, mas levava avante
o», dois lados das argumentações sozinho, dizendo “Por um lado” e
l’oi outro lado” como se fosse duas pessoas e não uma. Cada vez
ui,lis, o rabino estudou o Talmude a fim de poder formular argumen­
tos, ao invés de formular argumentos a fim de estudar o Talmude.
IJe designou alguns de seus alunos para estudos especiais. Reunin­
do se com eles na casa de estudos depois de ter dispensado os ou-
11 os, ele demonstrava todo tipo de proposição incomum, mostran­
do como, por meio da lógica, as palavras podiam ser levadas a negar
o que pareciam afirmar e afirmar o que pareciam negar. Com os ami-
yos íntimos, ele era mais do que brilhante. Seus olhos pareciam
queimar com um fogo estranho.
Uma noite, foi andando para casa pelas ruas poeirentas de
Ycluipetz. Como era seu costume, comeu apenas pão e uma maçã
»om mel no jantar. Depois, subiu os estreitos degraus de madeira
uicfr seu gabinete. Sentou-se à mesa, acendeu o cachimbo. Uma
grande nuvem de fumaça inundou a sala e fez cócegas em seu nariz.
Além da janela do gabinete, árvores frutíferas estavam florindo.
IVíssaros cantavam no pomar. Insetos zumbiam e pipilavam no ar
quente da noite.

O ADVENTO DO ALGORITMO 195


O rabino examinou o ambiente familiar de seu gabinete: as
estantes com os livros encadernados em couro, os castiçais de prata,
os castiçais de madeira sobre sua mesa, onde sua esposa havia accn
dido um círio que espirrava cera, o tapete gasto sobre o piso de cai
valho. Ele sentiu uma dor no nariz e depois nos ouvidos. Estava com
uma queimação por baixo do coração. Os castiçais de prata que s cmi

pai, rabino de Yehupetz antes dele, havia deixado para ele pareciam
sentinelas. Parecia-lhe que todas as coisas do mundo não passavam
de símbolos, e que o universo estava organizado como um gigantesco
argumento. As estrelas pálidas no céu além da janela de seu gabinete
estavam afirmando “Por um lado...”, e a meia-lua estava replicando
“Mas por outro lado...”. Os livros encadernados em couro das
estantes estavam matraqueando uma alegação, e a fumaça no ar esta
va respondendo com outra. Por toda parte coisas estavam sendo dis
cutidas e por toda parte havia um debate, cada parte do firmamento
falando, fazendo uma observação, contradizendo, definindo, zom­
bando, olhando ao redor dissimulando espanto, apontando coisas.
Quando o rabino acordou, a vela havia se extinguido.

Na manhã seguinte, o rabino reuniu seus iniciados.


—Não existe verdade — disse ele —, só argumento.
Seus alunos olharam para ele apreensivos.
— Onde está escrito — perguntou o rabino — que tem que exi­
stir verdade?
O rabino então passou a argumentar que só poderia haver ver­
dade no mundo se fosse verdade que há verdade no mundo.
Os alunos disseram que sim com a cabeça.
—Cabeças-duras —disse o rabino —, de que serve a verdade sc
precisamos da verdade para encontrá-la? Por que alguém iria pescar
carpas se precisasse de uma carpa para pescar?

196 David Berlinski


Os alunos concordaram novamente.
Daquele dia em diante, o rabino se devotou por inteiro a argu­
mentar contra cada interpretação aceita do Talmude. Não havia o que
«•Ir não pudesse fazer, nenhum ponto de vista que ele não pudesse
■lelender. Toda vez que ele chegava a uma interpretação particular-
mente confusa, ele mostrava que, contrariamente às expectativas,
iui verdade ela estava de acordo com o texto e com o que rabino
Akiba ou outros comentadores queriam dizer. Ele mostrou como
iiulo resultava de contradições, e como as contradições resultavam
«!<• tudo. Enquanto falava, ficava andando de um lado para o outro
n.i sala de estudos, os cachinhos junto às orelhas adejando, o casaco
«l<* gabardine aberto. Dava estocadas no ar com seu dedo indicador
«• puxava os lóbulos das orelhas. Falava tão rápido que em várias
neasiões parecia estar correndo o risco de engolir a própria língua.
Seus argumentos foram ficando cada vez mais chocantes. Era
«nino se estivesse possuído por um diabinho ou por um demônio.
Argumentava que ninguém era obrigado a guardar o sábado e que
I )rus nunca fizera uma aliança com Moisés. Argumentava que as leis
dietéticas haviam sido instituídas para ser violadas e que o Todo-Pode-
mso queria que o homem comesse carne de porco e que era para a
( ni ne e o leite serem ingeridos juntos. Argumentava que as mulheres
que não eram puras eram puras e que as mulheres que eram puras
iiíio eram puras.
Seus discípulos e iniciados foram ficando preocupados, mas
tinham medo de ser ridicularizados por ele e do poder de sua língua.
Ueb Avigtor disse a ele: “Há coisas que nos é dado saber e coisas
que não nos é dado saber.” O rabino se virou e em uma torrente de
palavras argumentou que o que era sabido era falso e o que não era
sabido era verdadeiro. Reb Avigtor empalideceu.

O ADVENTO DO ALGORITMO 197


Na verdade, o rabino vivia em função do momento em c|iic
podia ficar na presença de seu círculo de iniciados. Dormia pouen
e se alimentava apenas de umas poucas porções de trigo-sarracen<>
Sua barba ficou emaranhada e as sobrancelhas, cerradas. Apare
ceram pequenos insetos nos bolsos de seu casaco de gabardine.
Quando andava pelas ruas de Yehupetz, os gatos se esquivavam
dele, silvando. À noite, um estranho fogo parecia brilhar em seu
gabinete ante os iniciados; ele agora argumentava que os devolos
eram iníquos e os iníquos, devotos. Argumentava que se nada era
proibido, tudo era permitido, e então demonstrava que na verdade
nada era proibido. Argumentava que Deus fez o mundo para debo
char dos homens, e que aos homens não restava outro remédio senão
debochar de Deus. Argumentava que o prazer era o maior bem e
que a auto-indulgência era uma forma de integridade. Argumentava
que o Messias já tinha vindo, e que o Messias nunca viria. Que a
Torá havia sido escrita por homens e que os homens podiam fazer
qualquer coisa que o Todo-Poderoso podia fazer. Ele argumentava...

E aqui, Irving Bashevis Singer parou. Esperei que continuasse.


— Não tem mais nada —disse ele. —Um homem tem que saber
quando ficar em silêncio.

198 D avid Berlinski


8

F u g a p a r a a a b s t r a ç ã o

A LÓGICA SEMPRE FOI UMA DISCIPLINA PERIGOSA, e muitos lógicos


enlouqueceram depois que se viram irremediavelmente perdidos
na selva dos próprios pensamentos. Quando, anos depois, são resga-
lados pelo imenso helicóptero do senso comum, comem agradecidos
.is rações de emergência e sorriem para as câmeras, mas, quando
lhes perguntam o que diabos achavam que estavam fazendo, podem
lazer pouco mais do que menear os ombros magros e dizer, quando
«li/em alguma coisa, que, como o próprio Gõdel, estavam procuran­
do por algo que não conseguiram encontrar. Os grandes lógicos
eontiveram esses ímpetos de loucura, e viveram mantendo o equi­
líbrio a duras penas. Como a própria filosofia, a lógica continua
sendo hoje e sempre uma estranha atividade; os símbolos da disci­
plina são estranhos, até para os matemáticos, e o uso que é dado a
eles os deixam ainda mais estranhos — delinear as leis do 'pensa­
mento. Esta última expressão deve ser comparada com as leis da

O ADVENTO DO ALGORITMO 199


natureza dos físicos, o negócio de descobrir como funciona um
semicondutor, a queda de uma maçã ou o universo, enquanto o ló^i
co investiga as leis por meio das quais as leis da natureza funcionam,
perseguindo-se a si mesmo sozinho na noite sem fim.

E contra este pano de fundo que o grande teorema de Gõdel
decolou com um silvo sibilante em 1931, e a força total de seu podei
de intimidar estava destinada a não ser sentida plenamente por pelo
menos sessenta anos; e é este ar de ameaça e mistério intelectual
que deve ser contrastado com o meio físico em que foi improvável
mente revelado — Princeton nos anos 1930. Gõdel deu a conhecei
seus resultados em Viena, obviamente, e um punhado de lógicos com
preendeu de imediato a profundidade e a natureza de seus resul
tados, tendo Von Neumann em especial saído de sua suíte de núp­
cias para conversar com Gõdel (a noiva sem dúvida ficou surpresa
com esse estranho compromisso com Coisas Mais Elevadas). Mas
foi o recém-formado Instituto de Estudos Avançados de Princeton
que Gõdel visitou várias vezes naqueles dez anos antes de se esta
belecer nele definitivamente em 1940. Devido às circunstâncias
da grande diáspora intelectual européia que ganhara força nos anos
1930, era inevitável que o peso de seus insights fosse sentido mais
profundamente nos Estados Unidos.
Não creio que Princeton fosse então muito diferente do lugar
que eu conheci trinta anos mais tarde. Grandes olmos por toda
parte, uma sensação de generosa frondosidade; prédios velhos, ver­
melhos e vagamente góticos, alguns datando do século XVIII; am­
plos gramados verdejantes; alunos louros de olhos azuis parecendo
perturbadoramente adultos entrando e saindo de elegantes restau­
rantes exclusivos cheios de colunatas, com roupas de flanela e
paletós comprados na J. Press; e, além do campus, a plácida pelú­
cia comida por traças e infestada de mosquitos da zona rural de

200 David Berlinski


Nova Jcrsey, pantanosa nas terras baixas, coberta de bosques nas
mitras partes; umas poucas pálidas cidades pobres dispersas ao
Inn^o do trajeto do ônibus, apenas o bar e um único restaurante
ím tsos à noite como num quadro de Edward Hopper; Trenton ao
n11 1; e, a uma distância inconcebível, Nova York, as luzes da vida, a
duas horas de distância.
O instituto ocupava um terreno ao norte do prédio da pós-
^i.iduação. Einstein esteve lá, e também John von Neumann e Oskar
Mnrgcnstern, pelo menos temporariamente; o local tinha por obje-
i ivo acolher a nata dos refugiados europeus; mas qualquer que fosse
n atmosfera no instituto, era ainda assim um instituto de Princeton
I* ainda uma coleção enfadonha de estruturas de madeira nas quais a
nlmosfera germofônica da Mittleleurapa se fundiu de maneira impro­
vável com uma cidade universitária que pouco mais de dez anos antes
havia testemunhado as idas e vindas de F. Scott Fitzgerald.
Gõdel deu seminários sobre seus resultados, obviamente, e
enquanto os matemáticos (e filósofos) de Princeton em sua maior
parte não conseguiam entender uma palavra do que ele dizia, um gru­
po de jovens lógicos americanos —Alonzo Church, Stephen Kleene,
|. \i. Rosser e uns poucos outros —, estava sentado na platéia toman­
do notas. Gõdel, de olhos de coruja, ia escrevendo no quadro-negro
os detalhes de seu grande teorema, respondendo às perguntas
sobre a notação e os sutis detalhes de sua prova, enquanto os mes­
mos homens que mais tarde iriam transformar a lógica matemática
cm uma disciplina majestosa — sentados em apertados assentos de
madeira, por serem grandes demais em seus acolchoados trinta anos
para cadeiras feitas para alunos de faculdade de quadris estreitos —,
olhavam para o quadro-negro, conscientes, como deviam estar, de
que o que quer que fosse acontecer com eles mais tarde na vida,

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 01
naquele exato momento eles podiam ver a cham a do gênio arder «•
bruxulear furiosamente.
Os teoremas da incompletude de Gõdel foram o que foram
absolutamente decisivos. Ao mesmo tempo deram à lógica matemál i
ca uma completa maturidade m atem ática e despiram do programa
de Hilbert o seu interesse conceituai. Por meio de talento e senso
de oportunidade, Gõdel havia comprimido o estágio costumeiro no

qual uma nova disciplina se desenvolve em questão de uns pouco*,


anos, levando a lógica m atem ática quase que instantaneam ente do

limiar de excitação frustrada e sondagem para um nível totalmente


novo de sofisticação.
Com o anúncio e a com unicação dos resultados do teorema
da incompletude, o eixo de interesse ao longo do qual os lógicos ma
tem áticos haviam caminhado com eçou a girar no espaço. Gõdel
havia mostrado que a aritm ética era incompleta e havia mostrado,
além do mais, que a prova de sua consistência estava além da arit­
m ética em si. Essas demonstrações faziam parte da estrutura inte­
lectual do século tanto quanto a relatividade geral.
Mas eram demonstrações; mostravam o que haviam mostrado, c
isso além de qualquer sombra de dúvida. Considerando que a inten­
ção do programa de Hilbert era ratificar a confiança dos matemáticos
na matemática, é irônico que o teorema que deu um fim a essas ex­
pectativas fosse um exemplo soberbo, irrefutável, da certeza matemá­
tica; o teorema, ao fazer o que fez, conseguiu dizer o que disse de
duas formas diferentes. Quase que imediatamente e quase imper-
ceptivelmente, o interesse se voltou do que estava terminado e era
definitivo para o terreno inexplorado revelado pela prova de Gõdel.

202 D avid B erlinski


A l o n z o C h u r c h em P r i n c e t o n

<) movimento das idéias deve algo às singularidades da personali-


dmle. Tarde na vida, Gõdel com entou, cheio de modéstia, com o
Indico Geòrg Kreisel, que ele tinha certeza, quando descobriu os
m<»remas de incompletude, que era apenas uma questão de tempo
Mlé que outra pessoa os tivesse descoberto. Ele estava quase certo.
<>s fatos fundamentais sobre a incompletude da aritmética se
neguem do trabalho de Alfred Tarski sobre o conceito de verdade
r m linguagens formalizadas. E isso sugere uma inexorabilidade no
í icscimento de uma idéia, quase com o se essa idéia estivesse se
movendo pela história por si mesma. Mas o que Gõdel não men-
« íonou foi a natureza esmagadoramente particular de sua prova,
Mia rara com binação de elegância e precisão, e a natureza assom-
lnosa do método coordenado descoberto por ele. Ninguém, a não
ser Gõdel, poderia ter injetado aquele magnifico objeto no fluxo do
leinpo, e ninguém sugeriu outra coisa.
De um ponto de vista geral, o teorema de Gõdel demonstra
(|iic algumas coisas são impossíveis. O m atem ático não pode escre­
ver axiomas que governem a aritmética elementar com o um todo,
e ele não pode fazê-lo porque isso não pode ser feito. A lógica reve­
lou uma borda do universo. Outros teoremas se seguiriam nos anos
1930. Vistos com o um todo, representam uma contribuição extra­
ordinária para a história da auto-análise humana, mostrando, no
mínimo, que, ao mesmo tempo em que a lógica não conseguia aten­
der à exigência de certeza, era a própria exigência que devia ser im­
perfeita ou, ao menos, ingênua, e a demonstração de suas imper­
feições muito mais rica e mais vigorosa do que a própria exigência.
I )o ponto de vista da idéia básica de seu livro, o teorema de Gõdel

O ADVENTO DO ALGORITMO 203


fez mais: deu uma descrição natural e convincente de uma classe
de objetos m atem áticos, uma descrição que pela primeira vez levou
o conceito de algoritmo à comunidade de assuntos matemáticos
comuns. Os lógicos já haviam falado de procedimentos m ecânicos,
e haviam mostrado procedimentos m ecânicos em seus trabalhos e,
de uma forma informal e solta, haviam apelado para a idéia de um
procedimento m ecânico na construção de vários programas lógicos,
mas, ao definir a classe de funções recursivas primitivas, Gõdel,
como todos os grandes lógicos, desenterrou seu núcleo lógico e
deu a esse núcleo uma representação m atem ática duradoura.
O trabalho, e a definição que apresentou, reflete a poderos.i
m arca da sensibilidade de Gõdel. É preciso, prático e criterioso.
Apesar de todo o seu poder sem rival como lógico, Gõdel era poi
natureza conservador, preferindo expressar seus pensamentos male
m áticos em uma linguagem familiar contanto que eles pudessem
ser assim expressos, e só se aventurava além dela quando compeli
do por circunstâncias extraordinárias.

E ainda mais notável, então, que a segunda definição de um
procedimento m ecânico viesse de uma personalidade totalmenle
diferente.
Alonzo C hurch foi meu professor em Princeton e, embora eu
tenha consciência de que ele tinha na época mais ou menos a idade
que tenho hoje, ainda penso nele, quando me lembro de 1966, como
se ele tivesse alcançado uma espécie de volume temporal fantástico,
que refletia não tanto sua idade real quanto o fato curioso e inci­
dental de que os movimentos lentos e deliberados de seu corpo
estavam sob o controle do que parecia ser um cérebro meramente
reptiliano, com as funções cerebrais superiores totalmente entregues
à lógica m atem ática e, por meio dessa vantajosa divisão de respon
sabilidades, na qual ele era parte troglodita e parte lógico, ele con

204 D avid B erlin ski


'.('Kiiia espessar o fluxo do tempo tal que os anos para ele eram
décadas para os outros, e as décadas, vidas inteiras.
No trabalho, ele era decidido, teórico, imparcial e preciso,
encarnando completamente o mais puro ideal do pedantismo platô­
nico em seus artigos e em seu magistral livro-texto — que continha
mais do que quatrocentas notas de pé de página, algumas delas
<nm suas próprias notas de rodapé, como tumores secundários —;
na vida diária ele era decidido, teórico, imparcial e preciso tam ­
bém, exibindo no constante vaivém das conversas uma franqueza
<|iic obliterava a distinção entre o que ele fazia e quem ele era, tal que,
estando parado a uma janela, se lhe perguntassem se estava cho­
vendo, ele diria que estava, se estivesse, mas que estava chovendo
do lado de fo ra , fazendo seu desconcertado interlocutor, em geral
uma secretária do departamento, ver nesse zelo arredio unica­
mente as m arcas de uma inextirpável perversão intelectual.
Seus hábitos de trabalho eram lendários. Levantava-se ao meio-
dia, assim diziam, e trabalhava durante o dia todo, a noite toda e a
maior parte da madrugada, sentado rigidamente à sua mesa, escre­
vendo artigos à mão e editando sozinho os artigos submetidos ao
journal o f Symbolic Logic. A essa imensa capacidade de trabalho,
aerescente-se também um poder intelectual que, embora não fosse
de modo algum uma forma de genialidade, representava mesmo
assim um arranjo de correntes elétricas que podiam ser vistas bru-
sulcando em alguma parte abaixo do grande lamaçal cinza e triste
tle sua persistência.
Ele foi casado; teve filhos; deve ter tomado parte, ou pelo menos
ouvido falar, suponho, das ricas cadências dançantes que fazem o
mundo além da lógica matemática tremer e vibrar. Entretanto, em ­
bora possa imaginá-lo a demonstrar alguma bondade casual — abai-
\ando-se lentam ente para pegar um papel para sua secretária ou

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 0 5
aceitando com circunspecta indiferença as desculpas dos alunos ,
não consigo, por meio de meus movimentos mentais, deslocar o
centro de sua paixão da lógica m atem ática para qualquer forma
m eram ente humana de intercâmbio.
Ele não era excêntrico; era simplesmente poderoso.
E n o entanto, agora que avalio de novo seu trabalho, posso v<*i
muito mais claramente que o pedantismo de Church era tanto uma
forma de mimetismo quanto um guarda-roupas natural, porque sua
m ente estava em certo sentido intoxicada por abstrações, domina
da por um ímpeto pòderoso que se refletia em tudo o que fazia para
se livrar dos entulhos do lugar-comum e dos detritos das coisas <•
entrar em contato com um universo que é frugal, limpo, simples,
elegante e profundo.
É só olhar para o cálculo de conversão lambda.

O C Á L C U L O DE CON VERSÃ O

As funções recursivas que Gõdel introduziu nos teoremas da


incompletude dão voz ao conceito de algoritmo; elas encarnam um
aspecto da computabilidade efetiva, a noção que passou como sinais
de fumaça na Leibniz ao século XX de que o raciocínio, que é uma
conquista totalmente humana, efetivamente pode ser demarcado c,
portanto, definido — a razão despida de seu mistério por meio de
uma série de passos m ecânicos. As funções recursivas são m ecâni­
cas: elas vão passo a passo de zero para cima; poderiam ter sido
implementadas por uma máquina em 1931, se houvesse uma máqui­
na para isso. E são muito fáceis de compreender.

206 D avid B erlin ski


~ x

Alonzo Church introduziu seu cálculo de lambda na pequena


comunidade de lógicos em 1936. É uma dessas coisas da matemá-
lica que a princípio parecem despropositadamente complexas e
dcspropositadamente abstratas, sofrendo da maldição da dupla inu-
lilidade. E , no entanto, curiosamente, é melhor que eu diga logo,
seu cálculo tem tanto uma característica prática quanto um propósi-
lo. Tendo sido criado por Church a fim de articular sua visão da
eomputabilidade efetiva, o cálculo acabou muitos anos mais tarde
sendo instrumental no desenvolvimento de várias linguagens de
computador, outro exemplo estranho e perturbador do pensamen-
lo puro precedendo sua concretização na matéria.
Como um reticulado, o cálculo de lambda cruza a si mesmo em
um número indefinido de lugares. E difícil de entender, e difícil de
manipular. Ainda assim, a idéia fundamental é relativamente fácil,
cm especial quando é dada em um contexto informal. Algo é dado —
um conjunto de dados, digamos; ou uma lista, ou um grupo de núme­
ros. Vamos chamar de A. E algo atua sobre os dados. Vamos chamar
de F, tal que FA representa o resultado de algo ativo — esse F —, e
iitliando sobre algo passivo, esse A. O yin e o yang do cálculo assim
se transformam em um velho padrão humano. Isso é o que é cham a­
do de aplicação, uma das duas operações básicas do cálculo.
A seguir, temos a abstração. Suponha que x é uma variável
comum, que varia como as variáveis comuns variam, que designa ora
uma coisa, ora outra; e suponha também que M [x] é uma expressão
maior, que de alguma forma depende do valor de x, como no caso de

x fuma,

onde o sentido da expressão como um todo depende apenas de


(|ucm é x.

O ADVENTO DO ALGORITMO 207


Em termos matemáticos, a mesma relação confusa de idrnh
dade e dependência é revelada quando M[x] retoma sua formn
familiar em uma expressão como

onde o valor e, portanto, a identidade de M depende do valor <•,


portanto, da identidade de x; e eu digo que a relação é confusa
porque em circunstâncias ordinárias é ambígua. É x 2 maior do ((tu*
10? A pergunta só faz sentido quando se sabe a identidade de x. S<*
x é igual a 3, a resposta é não, mas se x é igual a 4, é sim.
Mas, por outro lado, e a questão quanto a se x 2 é sempn*
menor do que x 2 + 1? As variáveis continuam indeterminadas; ma\
não a pergunta, que agora surge inequivocamente como uma inda
gação penetrante que admite uma única resposta óbvia: x 2 é sem
pre menor do que x 2 + 1.
Alguma coisa desandou, alguma perspectiva foi violada, já qiic
a linguagem dos matemáticos revela uma diferença insuspeita enhv
x 2 , considerada como o valor de uma certa função, e x 2 considerada
como a função em si. Estamos tratando, no primeiro caso, do que x ’
denota; mas estamos tratando, no segundo caso, sobre a relação
infinitamente longa entre números que x 2 especifica, qualquer que*
seja x. A diferença é a existente entre coisas e relações. É este segun­
do sentido de x 2 que o cálculo de Church planejou captar.
O lambda da conversão lambda agora entra semiformalmentr
no esquema de Church, a expressão

X x.M [x]1

1. Aqui e no que se segue, o ponto funciona como um sinal de pontuação inven­


tado por mim; senão, os parênteses se multiplicariam despropositadamente.

208 D avid Berlinshi


•li notjindo a relação entre x e M[x] , para variados valores de x,
i il «11K* ^

'Xx.x2

• ■»»!).»iva a relação entre cada número positivo e seu quadrado — a


pmpria relação, note bem, e não qualquer de seus valores. Se pen-
ii mos na relação entre x e x 2 como consistindo de uma lista infini-
i.i dc pares (2, 4; 3, 9; 4, 16; e assim por diante), então é essa lista
»nmn um todo que Tvc.x2 representa. Lambda é um operador de
liisiração, que vai dentro da matriz de uma expressão matem ática
midinária e puxa para fora sua essência abstrata; como o quantifi-
<mlor universal ou o existencial, lambda liga as variáveis que estão
*iub seu controle.
Em um contexto puramente matemático —matemática comum,
ii.ida de extravagante —, a aplicação e a abstração se combinam para
Inrmar um sistema de notação extraordinariamente flexível. Em

(tac.x3)3 = 33 = 27,

ns símbolos dizem que (Xx.x3)3 denota um certo mapa ou relação,


.iquele que neste caso leva 3 ao seu cubo e, no caso seguinte, leva
‘I a seu cubo

(Xx.xi)4 = 4 3 = 64.

A q u ix 3 representa o papel de M, variando por dentro quando


,v varia.
Com o tantas outras coisas que aceitamos como verdadeiras,
os símbolos têm uma estranha vida própria, soluçam e tropeçam

O ADVENTO DO ALGORITMO 209


pela página justo quando se esperava que eles fossem circunspcc
tos, ou ficam parados lá, inertes, quando o que mais queremos e
que pelo amor de Deus eles digam alguma coisa inteligível. E ;i
mesma coisa com os símbolos do cálculo de lambda de Church.
Em primeiro lugar, eles são livres de tipo. O termo é do próprio ló^i
co, e designa uma certa liberdade dentro de um sistema de notaçfío
que ocorre quando as operações do sistema podem ser aplicadas :i
si mesmas sem medo de contradição. O português comum fornece
exemplos comuns de operações livres de tipo, como quando di/e
mos que John acredita que a neve é branca e depois dizemos que
John acredita que ele, John, acredita que a neve é branca, com ;i
indicação de crença anexada a si mesma uma segunda vez, tal que
agora há duas crenças animadamente ricocheteando em um lugar.
Mas se o português comum é livre de tipo em um aspecto, mio
o é em outros, e os vários paradoxos mostram que certas formas de
interação engendram contradição enquanto outras descambam
para a incoerência. No mundo simbólico de Church, a anexação e
ilimitada, tal que depois de F ser aplicado a A, pode ser aplicado
novamente a F, como em FFA.
É esta soberba flexibilidade que faz do cálculo de lambda um
instrumento sutil de definição aritmética. A aplicação amarra <>
cálculo a objetos específicos mas, qualquer que seja a amarra,
esses objetos são funções e não números, tal que

(V W (*))]

denota a fu nção/tal que/opera sobre si mesma. Aplicações pos­


teriores podem servir para amarrar esta função a ainda outra
função —digamos, g, ondeg(x) =.r + 1. Então a expressão Ç\f)\f(f(x))\g

210 D avid B erlin ski


»•specifica a ação dupla de g, tal que

(V )[f(f(x ))]g = gigix)) = g(x + 1) = x + 2.

O português comum traduz o sentido desses símbolos em ter


mos que lembram um antiquado filme de terror:

(A Coisa) [cuja natureza é ser interada]


aplicada à Coisa [cuja natureza é somar 1
a qualquer número dado x] dá x 4- 2.

O padrão invocado nesta formulação puramente verba


admite uma descrição global ainda mais simples, com as operações
ilr aplicação e abstração expressas de um único golpe cruel por
hrs palavras majestosas:

(Es/p ecificação)[Identi(icação]a/plicação

as (rês operações determinando um mundo abstrato, no qual funções


sinalizam umas para as outras contra um pano de fundo que se não
losse por elas seria vazio.
Isso tem a tendência de parecer árido assim como abstrato.
Mesmo assim, o tripleto especificação, identificação e aplicação
l.imbém faz parte de um padrão humano imemorial:
Q uem está ai?
Eu.
Ah.

O ADVENTO DO ALGORITMO 211


U m m u n d o f o r m a l

O cálculo de lambda, cujos elementos eu acabei de examinar, é sim


plesmente um instrumento lógico, um modo de descrever c o í s í i s ;
mas Church imaginou o cálculo como sistema formal, e é apenas
quando as escoras são retiradas do sistema que o dirigível dc
Church decola e plana. Comparado com o cálculo de predicados,
de fato, comparado com todos os outros sistemas formais, o cálculo
de lambda é uma obra-prima de precisão e concisão.
Para começar, há apenas três símbolos

K (, )>

e destes, dois são meros sinais de pontuação, uma concessão ine­


vitável à clareza.
Há, além disso, uma lista infinita de variáveis,

a, b, c,..., x , y9 z, a, b\...9

e os vários dispositivos de notação estão lá apenas para permitir


que o lógico diga o que quiser sem limites.
E não há absolutamente mais nada.
Usando um símbolo (À,), um punhado de variáveis e sua pode­
rosa imaginação, Church criou um universo a partir de quase nada.

As regras de formação do sistema são claras e especificam


não apenas quais seqüências de símbolos primitivos são legítimas
como também quais variáveis são livres e quais são ligadas. A dis-

212 David Berlinski


iinçilo costumeira entre a linguagem do próprio lógico e o sistema
I•»t mal que ele está descrevendo agora está em seu devido lugar. As
h inis em negrito não aparecem no sistema formal. Foram convi-
tl.ulas para a festa a fim de falarem sobre o sistema. A voz que
Implementa as regras de formação é de Church:

1. Uma variável x é uma fórmula bem formada e a ocor­


rência da variável nesta fórmula é livre.
2. Se F e A são fórmulas bem formadas, então (F A ) é
bem formada, e uma ocorrência de uma variável y em
F é livre ou ligada dependendo de se é livre ou liga­
da em F . O mesmo vale para uma variável y em A.
3. Se M é bem formada e contém ao menos uma ocor­
rência livre de x , então (XxM ) é bem formada, e uma
ocorrência de uma variável y, diferente de x , em
ÇkxM) é livre ou ligada em ÇkxM) dependendo de se
é livre ou ligada em M . Todas as ocorrências de x em
ÇkxM) são ligadas.

Essas regras operam por recursividade e, portanto, operam a


pm lir da base para cima, com o lógico, o resoluto e visceral Church,
especificando de modo absoluto uma classe de símbolos —as variá­
veis que ficam sozinhas são bem formadas, ponto final —e depois
especificando o resto das fórmulas bem formadas em termos de
Inrmulas bem formadas já especificadas.
As regras são enfadonhas, mas são precisas. Uma variável so­
zinha é bem formada. Muito bem. E isso significa que

O ADVENTO DO ALGORITMO 213


é uma expressão legítima do cálculo. E lá está ela. Só. É livre c poi

tanto não-ligada, como um copo esperando pacientemente para .vi


enchido.
Se as fórmulas F e A são bem formadas —
Sabemos que F e A são bem formadas?
Não sabemos. Mas se são, então (F A ) também é. Se não, nfm
Como determinamos se F e A são bem formadas?
Avançando.
F é bem formada se suas partes são bem formadas; se não tem

partes, F é bem formada se F é uma variável que está só. Então,

ou F é composta de outras fórmulas G e H , tal que G e H são bem

formadas, ou é composta de uma única variável que está sozinha.


Se nenhuma dessas opções é o caso, F não é bem formada. Neslc
caso, então, FA também não é.
Finalmente, a especificação por meio de lambda resulta cm
uma fórmula bem formada (XxM) apenas no caso em que a própria
M é bem formada. Novamente a recursividade e a v^lha
•* • escadaria
bem conhecida.
Liberdade e servidão prosseguem a passo acelerado. É lamb­
da (Xx) que liga a variável x em M , entrando na matriz da fórmu­
la para agarrar a variável e segurá-la com força. Com (Xjc) prece­
dendo M , (TvcM) alcança uma especificidade de intenção negada
apenas a M , (XxM) se encarregando das operações a seu alcance
a fim de dizer e, portanto estipular, que se está fazendo uma refe­
rência a essa função descrita por M - e a nenhuma outra.
Repare o que é extraordinário em tudo isso: nenhum quan-
tificador, nenhum predicado, não muito do que quer que seja, um
mundo tão frio e esculpido quanto um torso de mármore.

214 David Berlinski


C o n v e r s ã o

() céu simbólico agora está cheio de funções e, portanto, é


um inundo no qual tudo é abstrato e absolutamente nada é con-
•irlo, como se um tribunal se reunisse sem jamais julgar deman-
J.is ou ouvir testemunhas, e os juizes estivessem felicíssimos em
permitir que sua atenção seja desviada de um precedente a outro,
Indo sem problemas de Dinklesbury contra o Estado de C onnecticut,
«|iic* trata de questões de indenização nas leis civis, a Breaburn
•onlra Breaburn, um famoso processo criminal do início do sécu­
lo X V I I I , no qual — mas eu estou divagando. No cálculo de lambda
iniula não existe um mecanismo para desviar o que quer que seja
|mi a lugar algum. O universo é estático. Nada se move. E as fun­
dões? Elas simplesmente estão lá.
É a conversão como operação sobre símbolos que introduz
loiças nesse mundo, objetos formais que ganham o poder de alte­
ia r a si m esm os e se transformar em outros objetos formais, tal
ijiie um universo de relações estáticas lentamente sofre uma trans-
lormação, as abstrações mudando de natureza diante dos olhos
do lógico, quase como se ele estivesse observando uma luminária
lógica.
Há, no todo, três regras de conversão, todas semelhantes em
escopo e efeito, governando como governam a substituição. Dentro
dos limites da substituição, é permitido ao lógico

O ADVENTO DO ALGORITMO 215


1. Substituir qualquer parte M de uma fórmula
bem formada substituindo x por y em M —contanto
que x não seja uma variável livre de M e y não
ocorra em Aí.2

- É a regra número 1 que permite a metamorfose de

'kx.x2

em

Xy.y2.

A regra permite ao lógico certa indeterminação crucial d:i


especificação, tal que a verdade lógica de que 'kx.x2 = 7vc.x2 çíio
depende apenas da escolha de x> mas vale qualquer que seja a v;i
riável.
Se a regra 1 dá conta de uma permuta óbvia de variáveis, :i
regra 2 dá conta do projeto mais amplo de permutar itens maiorcw
do cálculo. Assim, é permitido que o lógico

2. Substitua qualquer parte (ÇkxM)N) de uma fórmul.i


substituindo x por N —contanto que as variáveis lig.i
das de M sejam distintas tanto de x quanto das varkí
veis livres de N.

2. Restrições à substituição das variáveis livres e ligadas estão aqui pela mesm.i
razão pela qual estão presentes no cálculo de predicados — controle de palnn
frório. Com o antes, coloquei as restrições à regra entre parênteses a fim de n;m
desviar a atenção do leitor. Vale a pena mencionar, no entanto, que a defini^'"»
adequada de substituição é uma tarefa intelectual im ensam ente difícil, que qiuis«’
todos os grandes lógicos tentaram sem sucesso em uma época ou outra.

216 D avid Berlinski


M e iV, à medida que aparecem nos limites de ((À,M)N), re­
presentam fórmulas de qualquer grau de complexidade.
Dando uma olhada dentro de (À«M), por enquanto, vamos
mi por que tenha a forma (X x.M x). A variável x é ligada nessa fór­
mula. Ela está dentro dos limites de um operador lambda. No
entanto, x é livre em M . Nenhum operador a liga. Suponha que
í*ssí/ fórmula seja colocada junto a N x, dando ((X xM x)N x). A regra
,1 então diz que dentro de M , x poder ser trocado por N, obtendo-
se (XxM N ).
Vejamos um exemplo concreto, tirado da álgebra elementar.
(Kslou me afastando do sistema formal para dar o exemplo.)
Suponha que M (x) tenha a forma 2*x + 1, e que N (x) = 3 para todo
vnlor de x. O asterisco * indica multiplicação, e inclui o símbolo
t omo um gesto de cordialidade para com o pessoal da informática.
A nplicação e a abstração resultam

(XxM x)Nx = Çkx. 2*x + 1)3 = 7,

.i música verbal dizendo nesse caso que a função específica na


<|iial um número é primeiro multiplicado por 2; depois recebe um
I adicional. Quando aplicada a 3, vai dar 7.
A regra 2 permite uma conveniente compressão adicional do
mmholismo:

((AxM x)N x) = Çhc. 2 *N (x) + 1) = (À*. 2 * 3 + 1),

■mi, o que vem a dar no mesmo,

ÇXxMx)Nx) = M [N].

O ADVENTO DO ALGORITMO 217


A terceira regra na verdade inverte a segunda. Se x foi subst i
tuído por N em M, então é permitido que o lógico

3. Substitua qualquer parte de M por ((XxM )N ) —con


tanto que ((AxM )N ) seja bem formada e as variáveis
ligadas de M sejam distintas tanto de x quanto chi:;
variáveis livres de N.

Transformar uma fórmula A em uma fórmula B por meio dessas


regras constitui uma conversão e, da mesma forma como a gravi
dade é uma força básica entre objetos materiais, a conversão é unia
força básica no cálculo de Church. Nesse aspecto, o cálculo de
lambda não é um sistema dedutivo. Não há esquemas de inferência
no cálculo, não há axiomas e, portanto, não há teoremas. O cálculo
de lambda joga com fórmulas e só contém uma modalidade de ação,
que é a própria conversão, uma fórmula dando lugar a outra cm
uma gélida mas fluida permuta.
Essas regras são bem detalhadas; são difíceis de compreender
e cansativas de usar. Eu não sugeriria que não são. Mas as regras
têm um propósito mais profundo e uma função mais discrimi
natória. Como o próprio Church comenta, “As regras [1 a 3] têm a
importante propriedade de que são efetivas ou 'definidas', isto é, lia
um modo de sempre determinar, dadas duas fórmulas quaisquer A
e B y se A pode ser transformada em B pela aplicação de uma das
regras (e, se este é o caso, qual)”.
Revelou-se que um universo totalmente abstrato está sob o

controle de uma operação mecânica, e a justaposição do que é quin


tessencialmente humano e, portanto, acessível apenas à menle

218 D avid Berlinski


h u m a n a , e aquelas regras mecânicas por meio das quais a energia
c comunicada de fórmula a fórmula é estranha demais e transpõe
um desfiladeiro grande demais para passar despercebida.

M u n d o s d u p l o s

I la uma dualidade no coração das coisas que é impossível de igno-


i .11 e impossível de explicar. A luz é tanto uma onda quanto uma
Iuri ícula. Os seres humanos são tanto espírito quando matéria. O glifo
dos xamãs, as duas cobras, serve também como descrição da hélice
dupla do DNA dos biólogos moleculares. A lógica matemática com-
p.ulilha do mistério dual das coisas, o cálculo de lambda ora é um
•onjunto de símbolos embaralhados pelos dedos gordinhos mas
»erteiros do lógico, ora, à medida que a luz muda, uma abertura
pura um mundo além do mundo dos símbolos. O formalismo do
■úlculo de lambda é projetado para transmitir os movimentos per-
«eptíveis e permitidos em um universo de funções e, portanto,
<M|ucle sol está iluminando um mundo no qual há uma infinidade
di* relações, mas pouquíssimas coisas, exatamente como as mu­
lheres há muito desejam. Uma parte da magia do aparato de Church
r <|ue objetos matemáticos reais e reluzentes podem ser precipita­
dos daquelas funções, outro exemplo de uma misteriosa duplicação
no grande esquema das coisas. As funções retêm sua supremacia
no sistema, mas os objetos são definidos em termos de funções, tal
<|iie uma única classe de entidades abstratas executa virtualmente
iodas as operações que de outra feita caberiam a outros objetos
mnlcmáticos, a operação lembrando a produção industrial na anti­
ga União Soviética, na qual um objeto padronizado era forçado a

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 19
representar inúmeros papéis improváveis: tanque, escova de dentes,
cortador de grama também.
Os números naturais aparecem no esquema de Church poi
meio das seguintes definições. Definições, note bem, nas quais lói
mulas particulares do cálculo foram escolhidas para representar ccr
tos papéis.

1= Xfkxifx)
2 — Xfkx(f(fx))
3= Xfbcififific)))

e assim por diante3.


Essas definições se encontram além das margens do senso
comum. O número 1 foi identificado como uma função. Mas onde
#
fica o número? A identificação do número 1 com o conjunto qu<*
contém apenas o conjunto vazio (1 = { { 0 } } ) tem pelo menos um
certo apelo visual. Olhe dentro dele. Só há uma coisa lá. A definição
de Church parece muito menos intuitiva; à primeira vista —sejamo:.
sinceros —parece incompreensível.
E, no entanto, há um núcleo de senso comum se contorcendo
no contêiner da definição de Church. Os números naturais tem
um poder duplo sobre a nossa imaginação. São em primeiro lug;n
coisas ou coisas semelhantes a coisas. Falar do número 5 é destacm
esse número entre os outros números do mundo. É este sentido nu
mérico que a teoria dos conjuntos capta com eficiência.
Mas os números naturais também são o transbordamento n.i
matemática de vários atos humanos. Um homem levanta um marlc
lo para bater em um prego e depois disso o martelo bate. Uma a ç íío

3. Estou me afastando um pouco do tratamento do próprio Church; mas não faz m;il

220 D avid Berlinski


I•*i írita. Levado pelo impulso de fazê-lo novamente, ele o faz de
. Depois de ter batido no prego cinco vezes, e depois de ter
i m i v o

i.mibém batido em seu dedo cinco vezes, ele desiste. E este é um


h.lrma de descrição, um modo de descrever o que ele fez.
liste sistema sugere por sua vez um sistema. Em vez de dizer
•|iu* esse palerma bateu no prego cinco vezes, poderíamos dizer que
IhifiMi no prego uma vez e depois repetiu o que tinha feito. Com o
luyjro no comando, a repetição dá lugar à iteração, o ato repetitivo
•*|H‘Iliado na linguagem iterativa: B u m ! B u m B u m ! B u m B u m
IIn tu! B u m B u m B u m Bum ! B u m B u m B u m B u m B u m !
Essas concisas batidas fizeram o serviço. Elas descrevem o
•11h* aconteceu. Os parênteses comprimem a notação ao mesmo
irmpo em que lhe dão clareza:

B u m (B u m (B u m (B u m (B u m )))).

Uma coisa foi feita e depois repetida cinco vezes. A natureza


•»'.síMicialmente iterativa da operação é revelada — comece do lado
ilt' dentro e continue batendo.
Bater é, obviamente, irrelevante. A iteração pode facilmente
iiuar sobre funções aritméticas, como quando/(x) = x + 1 é itera­
do cinco vezes:

fW M * ))))),

•laiulo, quando x = 1, o número 6.


No entanto, se bater é irrelevante, então f(x) = x + 1 também
<\ o que amarra a iteração à circunstância muito particular de que a
Iunção f(x) = x -f 1 foi iterada cinco vezes. É a iteração em si que

O ADVENTO DO ALGORITMO 221


conta. Algo está sendo feito a algo. Pouco importa o que está sendo
feito ou a quem.
Alonzo Church agora pode ser visto subindo à abstração. Diga­
mos q u e / é qualquer função e, portanto, qualquer relação. A ite­
ração quíntupla de/

mm
*)))))
é uma expressão que perdeu todas as amarras que a prendiam aos
números e desse modo está nua em sua essência, como diriam os
platônicos. E sua essência é simplesmente iterar-se cinco vezes.
Uma possibilidade inesperada agora é revelada. Um número
pode ser associado à iteração de uma função e tais iterações podem
ser designadas a partir do cálculo de lambda por certas fórmulas.
E isso é precisamente o que a definição de Church dos núrfieros
naturais faz. Uma função arbitrária é selecionada, sua identidade
aritmética interna totalmente indiferente. A expressão \x(fic) serve
para designar essa função e é só para isso que serve. Qualquer que
seja, \x(fic) fez o que fez operando sobre uma variável x. A definição
do número 1 agora se segue: 1 = \/Xx(/x). A expressão Xfkxifx) de­
signa essa função/operando sobre si mesma apenas uma vez. Mas
já que Tocifx) serve simplesmente para designar a função /, o
número 1 também é igual a Xff ou, o que dá no mesmo, 1 = A b ­
usando uma linguagem quase idêntica à linguagem que Church
empregou.
Essa definição representa um triunfo duplo. Algo foi criado
para corresponder a um número natural — uma relação de algum
tipo atuando sobre si mesma apenas uma vez. A identidade da
função não importa, questões quanto ao que ela é sendo substituí­
das por uma declaração do que faz — e o que faz é atuar sobre si

222 D avid B erlin ski


mesma apenas uma vez. Ao mesmo tempo, uma fórmula foi criada
para designar essa relação — a fórmula Xff.
Precisam ente o mesmo padrão de justificativa é válido para os
outros números, os números em geral identificados não em termos
de qualquer objeto familiar, tal como conjuntos, mas em termos da
concãtenação das relações. Essas definições, embora contra-intui-
tivas, têm o efeito libertador de descascar do próprio conceito de
número tudo, menos sua essência.
Adição, divisão, multiplicação e subtração fazem parte desse
mundo exclusivamente como operações de funções sobre funções,
mas com o efeito, que agora começa a permitir que cores penetrem
nos símbolos, de recriar (ou revelar) os objetos comuns de compu­
tação — os números naturais, encarnados nos axiomas de Peano e
em outras partes com uma roupagem, e encarnados no sistema
de C hurch com outra roupagem. Dada essa encarnação dupla, é
fácil, na verdade, olhar para baixo do dirigível de Church que agora
está planando e localizar relações aritméticas comuns passeando
pelo chão.
Os números 1 e 2 já foram definidos em termos do cálculo de
lambda. Se quisermos que as definições façam sentido, devemos
seguir que 1 + 1 = 2 , não apenas no mundo real, onde de fato isso
se dá, mas no mundo onde Xfkx(fic) e Xfkx(jbc) devem de alguma
forma se fundir e formar Xfkx(f(fx)).
A definição de Church da adição tira partido da iteração, no
mínimo porque não há absolutamente mais nada de que tirar par­
tido, e se a definição é surpreendentemente frugal é também sur­
preendentemente elegante. A soma de dois números M e N é sim­
plesmente essa função que foi iterada M + N vezes. Agora há dois
homens batendo pregos. O primeiro bate em seu prego cinco vezes,
o segundo bate em seu prego três vezes, e a balbúrdia interminá-

O ADVENTO DO ALGORITMO 223


vel da bateção de prego acontece sucessivamente. Eles, os dois
homens, juntos, bateram em dois pregos oito vezes, sendo essa soma
facilmente imaginada como uma repetição óctupla de um grande
bum único e primordial.
A idéia que capta a adição entre martelos e pregos a capta
também no cálculo de lambda. A metalinguagem agora está em vigor.
Estou falando sobre fórmulas lá embaixo, e não me locomovendo
entre elas. S e M e N são o mesmo número, sua soma é a fórmula

os símbolos M e N servindo para coletar iterações da função /.


Saindo da metalinguagem para o cálculo em si, essa regra ge­
ral faz valer a decisão que o senso comum exige. É 1 que está sendo
somado a si mesmo. Muito bem. M e N são 1.
Donde

¥(¥((!/)((!/)/)))•

Quando o símbolo definido 1 é substituído pela fórmula que


faz a definição, a fórmula mostrada se torna um item do próprio
cálculo de lambda. E fica claro que esta fórmula é simplesmente
2 = Xp^xififx)) ou, o que vem a dar no mesmo, Xfx(f(fx)) ou Xff.Xff.
Church inventou o cálculo de lambda a fim de articular sua
própria visão de um sistema cujas operações se davam por meios
mecânicos. O computador digital mais primitivo está dormitando
na armadilha do tempo; não eram conhecidas linguagens de pro­
gramação. E no entanto, como tantos dos grandes lógicos, Church
parecia ter uma intuição excepcional quanto ao futuro, uma con­
fiança de que seu elegante e difícil cálculo poderia vir a ser um ins­

224 D avid Berlinski


trumento para máquinas que ele não poderia nem imaginar e uma
inspiração para homens cujas ocupações ele não poderia ter ima­
ginado. Quanto a isto, ele estava correto. O cálculo de lambda encar­
nou em várias linguagens funcionais de computador, seu reticulado
de iterações não sendo mais difícil para um computador do que
qualquer outra operação mecânica.

E s t r e l a s b i n á r i a s

Certas estrelas das profundezas frias do espaço parecem, para astrô­


nomos da Terra, estar ligadas, e o conhecimento de que na verdade
estão separadas é aniquilado pela grande distância delas da Terra.
Geralmente giram uma em torno da outra, com plasma turbulento
passando entre elas, e suas identidades distintas não são muito cla­
ras, tal que às vezes parecem ser duas estrelas e em outras ocasiões
parecem ser um único objeto maciço pulsante.
As estrelas binárias podem ser examinadas do ponto de vista
da lógica matemática assim como da astrofísica, e proporcionam ao
lógico a mesma excitação que proporcionam ao astrofísico. As fun­
ções que podem ser convertidas por lambda compreendem a classe
de funções que podem ser derivadas por meio da conversão lambda
das fórmulas bem formadas do cálculo de lambda. Uma classe de
funções e, portanto, uma estrela. As funções recursivas são fun­
ções matemáticas que podem ser derivadas do núcleo da recursi-
vidade por meios mecânicos. Outra classe de funções e, portanto,
outra estrela.
Ou pelo menos é o que parece. Funções que podem ser con­
vertidas por lambda são abstratas; funções recursivas são concre-

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 2 5
tas. É difícil imaginar uma conexão entre elas. E, no entanto, as
funções que podem ser convertidas por.lambda e as funções recur­
sivas são estrelas binárias, giram uma em torno da outra, fundem
suas identidades, sugerindo o que o senso comum jamais poderia
revelar, que é a profunda conexão entre dois aspectos totalmente
distintos da experiência.
A função recursiva g(x) = x + 1 pega um número e o leva a
outro número. Se x = 1, então g ( l) = 2. Não há um modo simples
de traduzir essa afirmação trivial para o cálculo de lambda; o cál­
culo não contém nada que sugira que os dois itens são iguais.
Se a tradução direta de uma estrela para a outra não é pos­
sível, há, no entanto, um modo pelo q u a l< g (l) = 2 pode ser repre­
sentado no cálculo de lambda. Uma parte dessa tarefa já foi feita.
Os números 1 e 2 já receberam uma interpretação no sistema de
Church como as fórmulas Xff e Xff. Xff.
Agora suponha que uma fórmula b seja anexada a Xff. Estou
dentro do cálculo de lambda aqui, e b.Xff é uma fórmula bem for­
mada do cálculo de lambda.
Uma troca de matéria estelar tem início com uma definição.
O enunciado g ( l) = 2 pode ser representado no cálculo de Church
se Xff. Xff é derivável de b.Xff por meio da conversão lambda. A con­
versão é uma atividade que leva fórmulas a fórmulas; uma função
comum leva números a números. A associação que acabamos de
forjar liga duas atividades por meio da ordem soberana do lógico.
A definição que acabei de dar dá conta apenas do caso em
questão. Para um enunciado mais geral, é necessário subir para a
metalinguagem. Temos a seguir um enunciado completamente geral.
A função f(m ) — r é uma função aritmética comum, bem seme­
lhante a g(x) = x + 1, e m e r são os símbolos comuns da álgebra,
representando vários números. Símbolos em negrito designam

226 D avid Berlins Id


fórmulas no cálculo de lambda. A função f é X-definível apenas no
caso em que existe uma fórmula F no cálculo de lambda tal que se
f(x) = y então r pode ser obtido de F .m por meio da conversão
lambda.
Como no caso de g(x) = x + 1, a conversão foi obrigada a fun­
cionar como um substituto, no cálculo, do artifício da igualdade na
álgebra comum. A diferença nas definições é uma questão apenas
de generalidade.
A fusão agora está para acontecer. O que Church conseguiu
demonstrar em 1936 foi que toda função recursiva é À,-definível e
que, além disso, todas as funções A,-definíveis dos inteiros positivos
são recursivas.
Isto é absolutamente surpreendente. Não tem outro modo de
dizer. A lógica matemática revelou que aquelas estrelas distantes e
distintas estão girando uma em torno da outra e que, ao contrário
das expectativas, estão tão inextricavelmente fundidas que, sacu­
dindo sua cabeça, o lógico só pode dizer que em última análise elas
estão realmente girando em torno de um núcleo fundido comum.

O M O N U M E N T O

Quando chegou à idade de se aposentar por Princeton, em 1967,


Church levantou acampamento e foi para a Universidade da Cali­
fórnia em Los Angeles, tendo a passagem de uma costa para a outra
afetado muito pouco seus hábitos de trabalho ou a extrema esta­
bilidade de sua rotina pessoal. De tempos em tempos, ele dava
uma olhada no cenário filosófico contemporâneo, dando às vezes
sua opinião em argumentos curtos, imponentes e surpreendente-

O ADVENTO DO ALGORITMO 227


mente elegantes. Ele continuou a editar o Journal of Symbolic Logic;
continuou com sua pesquisa, sua inteligência e compreensão dã ló­
gica tão íntegras que pareciam atuar sem ter um gume afiado, sem­
pre em frente como um petroleiro com uma proa quadrada. Só con­
sigo imaginá-lo andando com dificuldade pela quente claridade de
Los Angeles, sua única concessão ao deslocamento geográfico tendo
sido tirar relutantemente o sobretudo que usava em Princeton.
Atravessou com placidez o resto dos anos 1960, e depois os
anos 1970 e 1980; dificilmente se pensa nele como tendo envelhe­
cido, mas estou certo de que envelheceu. Ele trabalhava sém parar.
Então a curiosa notícia de sua morte, na qual o tempo e as
circunstâncias de sua vida o haviam colocado em Hudson, Ohio.
Uma longa doença, que seu filho acompanhou. A casa branca de
sarrafos de madeira típica do Meio-Oeste, cuja frente ampla^dava
para um gramado, assando ao sol de verão. Vaga-lumes à noite e o
cheiro de madressilva no ar úmido, a grande e maciça carcaça en­
colhendo dia a dia, o tempo finalmente tendo alcançado o lógico,
exatamente como eu acho que ele sabia que aconteceria, a inteli­
gência íntegra e disciplinada subindo como fumaça e desaparecen­
do no céu de verão.

228 D avid Berlinski


9

A M Á Q U I N A I M A G I N Á R I A

Kl

ACONTECE E NINGUÉM SABE POR q u ê . Prenúncios de uma idéia flu­


tuam na atmosfera por dias, anos e horas e, então, um dia, em algum
lugar, essas partes dispersas se juntam em uma nuvem carregada
que solta sua densa carga de umidade sobre a terra receptiva.
As partes dispersas da nuvem que se desfez de estalo em
1930 retrospectivamente podem parecer que estavam destinadas a
se manter unidas — uma preocupação com símbolos e simbolismo,
as regras de inferência da lógica, os axiomas da aritmética, a idéia
de uma linguagem universal e, portanto, de uma máquina de cal­
cular universal, o conceito intuitivo de computabilidade efetiva;
essas eram coisas que estavam no ar, mas nunca foi muito claro se
íormariam um todo coerente, ou se continuariam obstinadamente
improdutivas, como nuvens que prometem chuva, mas depois se dis­
solvem em filetes nacarados.

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 2 9
Kurt Gõdel introduziu as funções recursivas no discurso lógico;
e Church o mecanismo do cálculo de lambda. Essas eram abs­
trações matemáticas, suas conexões com o conceito de algoritmo
marcadas por uma cadeia razoavelmente longa e complexa de
definições.
Foi -nessa comunidade de abstrações que Alan Turing intro­
duziu a idéia de uma máquina imaginária, um dispositivo que
transformava várias abstrações em uma única construção brilhan­
temente simples. Tentando surpreender a si mesmo no ato de pen­
sar, ele fez o que apenas a genialidade permite que alguém faça:
ele fez algo do nada.

J o v e m t r i s t e

A vida dos matemáticos tende primeiro a ser imaginada pelos roman­


cistas e depois vivida pelos próprios matemáticos. Não me surpre­
enderia descobrir que Kurt Gõdel foi, na verdade, um personagem
imaginado primeiro por Franz Kafka; excepcionalmente conser­
vador, trabalhador e disciplinado e, portanto, um autêntico ameri­
cano, Alonzo Church foi claramente uma criação de Ayn Rand ou
John dos Passos. Turing era inglês, e não americano, mas há algo
na natureza peculiar de sua personalidade, um certo anseio, talvez,
que nos lembra F. Scott Fitzgerald, quase como se ele fosse um
dos jovens tristes de Fitzgerald.
Ele saiu de Cambridge e foi para Princeton em 1936 para
estudar lógica matemática com Alonzo Church, no mínimo porque
Church já representava, em Princeton, a futura magnitude do assun­
to e, portanto, como um ímã, exercia sua atração sobre lugares tão

230 D avid Berlinski


distantes quanto a Inglaterra. Mas, por mais que a rural Princeton
desse a Turing a excitante oportunidade de assistir ao processo de
criação de um tema, a associação entre Church e Turing deve ter
sido um desses negócios curiosos que envolvem o mau uso de dois
estilos distintos —Turing, distante, muito excitável, franco, acanha­
do e magro; Church, inatingível, conservador, trabalhador, discipli­
nado, ditatorial e gordo.
Turing tinha um cabelo ruivo que caía em seu rosto afável onde
apenas perplexos olhos tristes refletiam uma sombria luz averme­
lhada, um rosto que rematava discretamente um corpo ectomórfico.
Como muitos infelizes desajustados, ele havia se apaixonado por
longas distâncias, caminhando quilômetros e quilômetros pelas
estradas do interior de Nova Jersey num andar deselegante mas
eficiente, batendo na testa de vez em quando para matar um mos­
quito desgarrado.
Era um solitário, obviamente, apartado dos outros homens pelas
circunstâncias de seu nascimento, de seu sotaque, cultura, gostos
c homossexualidade.
Não havia dúvida, desde o início, de que seu talento era inco-
mum, singular até, um talento em parte matemático, em parte lógi­
co, e em parte uma outra coisa distintamente diferente — sendo
essa outra coisa o reflexo de uma habilidade sobrenatural e quase
infalível de esquadrinhar os trabalhos feitos em sua época, e dis­
cernir nesse processo as linhas gerais de algo muito mais simples
do que as coisas que os outros viam.
Esse era o seu dom, o único lugar seguro para onde ele podia
ir sem esforço e sem dúvidas.

O ADVENTO DO ALGORITMO 231


O b s e r v a n d o o p e n s a m e n t o

Uma máquina de Turing é um objeto imaginário com poderes e pro­


priedades reais, e se isso sugere um paradoxo que foi deixado solto
no jardim da lógica matemática, é apenas porque, como os sapos de
verdade em um jardim imaginário, o paradoxo faz parte do quadro e,
portanto, do padrão. Foi, é óbvio, precisamente o objeto imaginário
de Turing que descreveu em elegantes linhas gerais o projeto de um
computador de verdade. Turing testemunhou a concretização de sua
grande idéia na matéria. Brilhante programador, ele depois levantou,
como nos diz o mito, a questão quanto a se computadores de ver­
dade poderiam pensar e, portanto, aprisionar algum poder impalpá­
vel da mente humana na matéria. E se eu digo que isso é um mito,
é só para observar que há um segundo projeto por baixo do primeiro,
como uma pintura a óleo de primeira qualidade descoberta por baixo
de uma afetada paisagem acadêmica.
Em quase todos os seus artigos, Turing apelou em primeiro
lugar para as ações do que ele chamava de “computador', queren­
do se referir, pela descrição, às atividades de um agente humano,
preparado (ou forçado) para manipular um conjunto finito de sím­
bolos de acordo com regras fixas. Muitas pessoas, na realidade,
ganhavam a vida como computadores no mundo que Turing conhe- -
cia: escreventes, como o copista de Melville, escriturários de todos os
tipos, contadores, coletores de impostos, escrivãos, secretários de atas,
almoxarifes, bancários, conferentes, caixas, desenhistas, um batalhão
de pessoas que acordavam cedo e depois passavam o dia atrás de
mesas de madeira onde faziam somas intermináveis ou copiavam
citações ou faziam anotações em plantas baixas ou então desenvol­
viam atividades que eram tão sistemáticas quanto deprimentes.

232 D avid B erlinski


O que Turing imaginou, enquanto tentava pegar de surpresa
a si mesmo pensando, foi uma máquina impalpável que pudesse
fazer o que os computadores humanos faziam, uma coisa surpreen­
dente e totalmente original, no mínimo porque Turing não estava
interessado em nenhuma atividade mental em particular, como a
que poderia estar envolvida na execução de funções aritméticas, mas
sim nos fundamentos da computação humana em si. Foi esta busca
implacável pelos fundamentos que levou Turing à profunda e muito
perturbadora conjectura de que na medida em que os seres humanos
estão ocupados com pensamentos de qualquer tipo, estão agindo
como computadores humanos —a diferença entre uma mulher que
apóia as ancas cansadas sobre o banquinho da caixa registradora a
fim de apertar os números de uma primitiva máquina de calcular
e uma mulher a imaginar e depois a relatar as atividades infini­
tamente divertidas de Mansfield Park sendo no fim uma questão
de detalhes, consciência e dos pequenos floreios das diferenças
irrelevantes.

O projeto para uma máquina de Turing é tanto um projeto


arquitetônico quanto um planejamento de procedimentos. A arquite­
tura descreve as quatro partes da máquina, e estas são comuns a
todas as máquinas de Turing; os procedimentos compreendem as
instruções, e embora sejam escritas no mesmo código e tenham o
mesmo formato, variam de máquina para máquina.

Arquitetura

Uma fita infinitamente longa: A fita é dividida em quadrados


e se estende em duas direções.

O ADVENTO DO ALGORITMO 233


O fato de a fita ser infinitamente longa significa que uma má­
quina de Turing tem uma quantidade infinita de memória; qualquer
que seja a natureza dos cálculos, não vai ficar atrapalhada por falta
de espaço.
Um conjunto finito de símbolos: uma máquina de Turing é
projetada para executar operações absolutamente simples e primi­
tivas. Os requisitos simbólicos são muito modestos. Apenas dois
símbolos são necessários: 0 e 1. Isso é algo que Leibniz teria com­
preendido; algo que ele de fato compreendia.
Uma cabeça de leitura: uma cabeça de leitura tem a capaci­
dade tríplice de (1) ler quadrados um de cada vez; (2) mover-se
para a direita ou para a esquerda um quadrado por vez ou então
não se mover; e (3) inscrever ou apagar símbolos nos quadrados.
A cabeça de leitura é assim dotada de movimento, um olhar aten­
to, e a coceira permanente do editor de tornar tudo muito melhor
reescrevendo o que localiza ou vê.

Cabeça
de leitura

Um conjunto finito de estados: cada estado corresponde a uma


configuração interna da cabeça de leitura de uma máquina de
Turing, e o número de estados é finito. Além de dizer que a cabeça
de leitura tem um número finito de partes e que, portanto, pode
ser configurada e reconfigurada em várias disposições finitas ou

234 D avid Berlinski


estados finitos, o lógico já declinou friamente do convite do leitor
para especificar essas partes.
O que foi dado, então, é uma fita infinita, um conjunto de
símbolos, uma cabeça de leitura com capacidade tríplice, e um
conjunto de estados. Uma máquina de Turing envolve uma ousa­
da simplificação.

P roced im en tos

O comportamento de uma máquina de Turing é controlado


por uma série finita de instruções.
Conforme a natureza das coisas, as instruções sempre são go­
vernadas por seu próprio conteúdo e pelas circunstâncias sob as
quais são dadas, o comando Pule! tendo sentido se dirigido a um
homem ou a um sapo, mas não tendo nenhum sentido se dirigido
a um campanário ou a um paramécio.
No caso de uma máquina de Turing, só há duas circunstân­
cias relevantes. Uma é o estado da cabeça de leitura; a outra, o sím­
bolo que ela está lendo.
De maneira semelhante, só há dois comandos inteligíveis
para uma máquina de Turing. O primeiro instrui a máquina ao que
escrever ou apagar; o segundo, se é para ela se mover um quadra­
do para a direita ou para a esquerda.
Isto significa que cada comando dado a uma máquina de Turing
tem quatro partes, e essas partes são mediadas por uma condicional:

S e a m áqu in a está nesse estado e está lendo esse


sím bolo, en tão ela deve escrever este sím bolo ou esse
sím bolo e se deslocar um quadrado para a esquerda
ou para a direita ou então não se mover.

O ADVENTO DO ALGORITMO 235


O estado e o símbolo resumem as circunstâncias sob as quais a
máquina age; escrever e se mover, o conteúdo de sua ação.
Segue-se que o comportamento de uma máquina de Turing
pode ser controlado e, portanto, governado por um conjunto de
instruções da forma s e-en tã o y cujo antecedente especifica as cir­
cunstâncias da ação e cujo conseqüente especifica seu conteúdo.
Projetada por Turing em meados dos anos 1930, a máquina
de Turing tornou possível, porque tornou plausível, projetar e
depois construir os primeiros computadores digitais de múltiplas
finalidades, já que a máquina imaginária de Turing continha em si
todas as deixas —in p u t , otitpu t , estados, programa fixo —necessárias
para a construção de uma máquina concreta a partir de seu modelo
conceituai. Os avanços tecnológicos que eram necessários para a
construção de fato de um computador digital eram bem mais pro­
saicos, obviamente — um maior conhecim ento de eletrônica, o
desenvolvimento de transistores e de chips integrados, uma nova
familiaridade com metais raros e suas obscuras propriedades, uma
disposição para remexer nos circuitos e se arriscar, e sorté. Não
está totalmente claro se a máquina de Turing provocou o apareci­
mento de sua tecnologia subsidiária, ou se essa tecnologia teria
achado seu caminho para esse cenário de qualquer jeito, mas qual­
quer que seja a metafísica final da questão, a idéia de Turing re­
presentou algum papel na coordenação dos acontecimentos e assim
representou mais uma vez o poder do pensamento puro de dar forma
à matéria para seus propósitos.

236 D avid B erlinski


A ção

Se uma máquina de Turing é radicalmente simples em termos de


design, é radicalmente simples em termos de modo de ação tam­
bém; na Verdade, é tão simples que é difícil imaginar que o dis­
positivo consiga fazer qualquer coisa. É notável, então, que em
certo sentido, uma máquina de Turing seja capaz de executar vir­
tualmente qualquer atividade intelectual especificada de maneira
concisa, sua alarmante competência aparentemente destoando de
sua invejável simplicidade.
Essa é uma afirmação forte e surpreendente, talvez a mais forte
e surpreendente do século; mas antes que esta afirmação possa ser
aprovada, o leitor pode estar querendo uma demonstração da afir­
mação mais modesta de que existe algum a coisa que uma máquina
de Turing pode fazer.
O que se segue é a descrição de uma máquina de Turing que
pode somar quaisquer dois números naturais. Q u aisqu er d ois , note
bem. A capacidade da máquina é ilimitada e neste aspecto se parece
com a mente humana mais do que se parece com os computadores
concretos aos quais deu origem.
Essa máquina é totalmente padrão —saída direto da linha de
produção, na verdade. Ela vem com uma resplandecente fita infini­
ta, uma cabeça de leitura dividida em estados, um único símbolo,
1, e um programa em dez partes. A máquina representa um
número natural n para si mesma como uma seqüência de n + 1
numerais 1 consecutivos, tal que O é l , l é l l e n é n + 1 ocor­
rências do numeral 1. A soma de dois números naturais m + 1 e n
+ 1 é, portanto, (m + n) + 1.

O ADVENTO DO ALGORITMO 237


Uma máquina de Turing para a adição começa a trabalhar
com símbolos j á inscritos em sua fita; seu negócio, afinal, é
resolver problemas, e não propô-los. Eu pedi a uma máquina de
Turing que somasse 1 a si mesmo, oferecendo a ela uma fita cuja
extensão interminável é pontuada por quatro símbolos:

Cabeça
de leitura Fita de entrada —>

O espaço em branco entre os símbolos indica que os números


de cada lado devem ser somados, e isso, também, faz parte do
nosso acordo (estou envolvendo o leitor em uma trama intelectual
que a arquitetura da máquina não espelha). A cabeça de leitura da
máquina está posicionada diretamente sobre o símbolo mais à
esquerda. Ela remexe um pouco nos símbolos e quando acaba de
remexer, o que foi dado a ela surge como o que ela fez. Onde antes
havia duas ocorrências do símbolo que designa 1, depois há apenas
uma ocorrência do símbolo que designa 2.
O programa é simples. A não ser pelo fato de que uma máquina
imaginária está agora fazendo o que desde sempre apenas seres hu­
manos podiam fazer, não há surpresas. O observador humano que está
olhando por sobre meus ombros sem dúvida avistou o fato algébrico
pertinente de que os números r a + l e n + l s e transformam em
(m + n) + 1 apenas no caso em que 1 é somado ao primeiro número
e 2 subtraído do segundo —(m + 1) + 1 + (w + 1) —2 = (ra + w) + 1.
O código da máquina dessa forma se dedica a fazer a máquina somar
um símbolo à fita e apagar dois outros.
Cada linha do programa é dividida em duas partes. A primeira
parte descreve o símbolo que está lendo e o estado em que se

238 D avid Berlinski


encontra; a segunda parte descreve o que a máquina deve fazer e
o estado para o qual deve se mover. O símbolo B indica que um
quadrado está vazio. A ação dessa máquina se subordina a uma
familiar lista de itens a serem conferidos:
MT'

Estado e Sím bolo O que faz e para onde vai


1) Estado 1, 1 M ove-se para a direita, fica no estado 1 confere
2) Estado 1, B Imprime 1, vai para estado 2 confere
3) Estado 2, 1 M ove-se para a direita, fica no estado 2 confere
4) Estado 2, B M ove-se para a esquerda, vai para estado 3 confere
5) Estado 3, 1 Apaga 1, fica no estado 3 confere
6) Estado 3, B M ove-se para a esquerda, vai para estado 4 confere
7) Estado 4, 1 Apaga 1, fica no estado 4 confere
8) Estado 4, B M ove-se para a esquerda, vai para estado 5 confere
9) Estado 5, 1 M ove-se para a esquerda, fica no estado 5 confere
10) Estado 5, B PÁRA confere

A lista de itens a serem conferidos e as instruções que ela


retrata têm uma coerência interna óbvia. A máquina se move para
a direita até descobrir um espaço vazio, onde imprime 1, dessa
forma, com efeito, somando l a m . Promovida para o estado 2, ela
se move para a direita novamente, até que novamente encontra um
espaço em branco. O espaço vazio encontrado ao ir para a direita
é o sinal para a mudança de estado e para dar a meia-volta. Depois
disso ela apaga os dois próximos 1 e deixa seus espaços vazios, dessa
forma subtraindo 2 de n. Depois vai para a esquerda até encontrar
o primeiro espaço vazio e então PARA.
Quando a máquina termina seu trabalho, há três inscrições
contíguas do numeral 1 onde antes havia quatro inscrições sepa­
radas cjo mesmo numeral. Como esperávamos, a máquina deter-

O ADVENTO DO ALGORITMO 239


minou que 1 + 1 = 2 , uma realização que ela representa para si
mesma como (11) + (11) = (111)
Cabeça
<— de leitura Fita de saída —»
1

O leitor inclinado a objetar que, com relação a 1 + 1 = 2, ele


sabia disso o tempo todo, obviamente não percebeu os sinais sutis
de milagre nesta demonstração, porque exatamente o mesmo con­
junto de instruções que estabelecem a soma de 1 mais 1 é capaz de
estabelecer a soma de qu aisqu er dois números de quaisquer ta­
manhos, bastando dez linhas de um código simples para controlar
o infinito.

U ma e s p é c i e de f a r o l

Uma máquina de Turing separa o presente do passado do mesmo


modo decisivo e inalterável como todas as grandes invenções ou
idéias dividem o contínuo temporal — hoje é impossível imaginar
o mundo sem ela, exatamente como é impossível imaginar o mundo
sem Hamlet ou a mecânica newtoniana. O nexo causal que fez o
mundo moderno se estende em uma simples linha das idéias de
Turing diretamente até o agora sempre presente e sempre em movi­
mento. Tanto quanto as instruções genéticas que se diz serem pas­
sadas de geração em geração, certas idéias são capazes de encon­
trar seu caminho para o futuro.
Se a máquina imaginária de Turing representou um papel im­
portante no desenvolvimento da tecnologia, representou um papel

240 David Berlinski


ainda mais importante na história do pensamento, fornecendo um
modelo matemático simples, vívido e muito instigante da velha idéia
de algoritmo. O que quer que seja que uma máquina de Turing faz,
ela o faz de modo eficaz realizando o serviço, se ele pode ser feito.
A princípio isso pode parecer muito distante do conjunto de
interesses de Gõdel e Church. A aparência de distância é enganado­
ra. Gõdel e Church se voltaram para certas funções a fim de especi­
ficar a idéia de computabilidade efetiva e assim dar conteúdo ao
conceito de algoritmo. Uma máquina de Turing leva inputs sim­
bólicos a outputs simbólicos; a conversão de um conjunto de símbo­
los em outro conjunto de símbolos é o registro formal de uma trans­
formação que pode perfeitamente bem expressar uma função
matemática comum.
A máquina de Turing, cujo programa permite que ela conver­
ta 1 1 em 1111, 111 em 11111 e 1111 em 111111, expressou, em
seus cálculos, a função f(x ) = x + 2. A máquina de Turing, cujo pro­
grama eu já descrevi em linhas gerais se ocupou do cálculo da função
f( x , y) = x + y. A conexão entre o que uma máquina de Turing faz
e as funções que ela computa é clara o suficiente para levar a uma
definição. Uma função aritmética comum é computável por uma
máquina de Turing apenas no caso em que existe uma máquina de
Turing que aceite seus argumentos como inputs e emita seus va­
lores sob a forma de outputs.
Com essa definição, uma máquina de Turing agora assume
seu lugar entre as funções recursivas primitivas e as funções que
podem ser convertidas por lambda, já que é projetada para realizar
precisamente a classe de funções que se submetem à autoridade
de um algoritmo. Uma terceira definição de um conceito essencial
foi introduzida. O algoritmo apareceu em termos das funções recur­
sivas primitivas; apareceu novamente em termos de funções que

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 41
podem ser convertidas por lambda; e novamente em termos das
funções computáveis por uma máquina de Turing.
Três definições, três representações, mas apenas uma idéia.

Uma máquina de Turing é um objeto matemático abstrato,


algo que pertence à mesma categoria conceituai que os conjuntos,
grupos, anéis ou ideais no que tange à severidade de seu perfil lógi­
co; mas uma máquina de Turing também é um dispositivo que fa z
algo e, portanto, pertence aos instrumentos de ação, a coisa, con­
tra todas as expectativas, que vem assumir seu lugar em um mundo
onde o fluxo do tempo é desviado por meio de atuação, intenção e
pensamento. Há em tudo isso outra curiosa inversão de padrão,
como quando o veludo é escovado para trás. O objetivo da ciência
matemática ocidental sempre foi conseguir ter acesso à visão di­
vina da criação, os físicos dizendo de modo geral que o universo
pode ser apreendido e, portanto, compreendido apenas em termos
de suas secretas leis matemáticas, a divindade evidentemente tendo
se divertido desde antes do início do tempo dispondo a arquitetu­
ra das coisas a seu próprio modo irritante e inescrutável. A ciência
como grande jornada terá alcançado seu objetivo quando os físicos
discernirem um conjunto único de leis luminosas por meio do qual
tudo possa ser explicado. É uma visão fria e estática, intemporal
em sua austeridade; essa jornada, como os leigos há muito perce­
beram, envolve uma certa perturbação profunda das sensibili­
dades. Uma máquina de Turing não é uma lei da natureza; é uma
coisa: pode ser usada, mas não explica —não pode —coisa alguma;
e nesse sentido, sua criação marca o primeiro passo de um proces­
so de distanciamento histórico.

242 David Berlinski


E nigma

l)eixe-m e falar sobre os muito talentosos. São diferentes de você e


de mim. Eles têm o talento e desfrutam dele desde cedo, e o ta­
lento faz algo a eles, torna-os fracos onde somos fortes, e cínicos
onde somos crédulos, de um modo que, a menos que você tenha
nascido talentoso, é muito difícil de entender. Eles pensam , no
fundo do coração, que são m elhores do que nós porque tivemos
que descobrir as com pensações e os refúgios da vida por nós m es­
mos. Até quando penetram fundo em nosso mundo ou afundam
mais baixo do que nós, ainda pensam que são m elhores do que
nós. Eles são diferentes.
Alan Turing era muito, muito talentoso, e, portanto, muito,
muito diferente; o talento, e, portanto, a diferença, está espelhada
no modo radical como ele mudou a paisagem do pensamento lógico:
onde, antes de seu trabalho, havia apenas os gigantescos picos cober­
tos de nuvens totalm ente inacessíveis criados por Gõdel e C hurch,
depois de seu trabalho há uma abertura na paisagem, as nuvens
frias desapareceram e os picos deram lugar a vales perfumados de
árvores frutíferas em flor. O teorem a da incom pletude de Gõdel é
uma escalada muito difícil, e nós que o olhamos com admiração
também o olhamos com desânimo, mas a máquina de Turing é fácil
de com preender e explica a si própria. O objetivo de explicar a
computabilidade efetiva é cumprido não apenas por sua máquina
como tam bém por nossa apreciação dessa máquina, sendo o efeito
de que a sim plicidade de execução está duas vezes à vista, magi­
cam ente simples, como um truque de prestidigitação, e seu talento
—o de reorganizar o que é difícil e fazer com que pareça com preen­

O ADVENTO DO ALGORITMO 243


sível e inevitável —refletia a calma convicção de uma natureza mais
profunda, capaz de pegar o complexo e ver nele o que era simples
e, portanto, o que era importante.
Turing completou seu grande trabalho em lógica no fim dos
anos 1930. Depois disso, voltou à Inglaterra. Segue-se uma história
ao mesmo tempo curiosa e estranha, que revela novamente sua es­
tranheza, sua capacidade de reduzir o mundo a seus fundamentos.
O mundo agora está em guerra, exércitos retumbantes abrem
caminho pela Europa e Ásia, todos os jovens tristes que haviam se
reunido em Princeton ou Cambridge a fim de pensar seus jovens
pensamentos tristes agora estão vestidos em uniforme cáqui e
marcham pesadamente por praças de armas poeirentas e recebem
ordens de sargentos durões que não sabem absolutamente nada de
lógica matemática, literatura inglesa ou de poesia renascentista.
Você e eu que lidamos com idéias vivemos em um mundo
onde qualquer coisa é mais valorizada do que o artigo com o qual
lidamos; mas um mundo em guerra é um mundo no qual de repente
a inteligência é valorizada, não por sargentos durões, mas por políti­
cos que lhes dão ordens, homens que em tempos de paz nunca
pensariam em nos pagar uma rodada de bebida e que de repente
tocam em nossos ombros fazendo sinais para o barm an com um
jeito desembaraçado e íntimo.
E assim, Alan Turing, que havia passado o tempo em Princeton
deixando seus pensamentos se desenvolverem, viu-se em um mundo
onde exércitos entram em conflito, de novos senhores indiferentes
a seus sonhos, mas ansiosos para usar e explorar o maquinismo
deles. Ele não era mais muito jovem, mas ainda era novo —vinte e
oito anos em 1940 —, ainda semipronto do modo como as pessoas
talentosas nunca terminam realmente de se completar, e essa mudan­
ça radical de circunstâncias nas quais pela primeira vez homens

244 D avid Berlinski


poderosos e determinados estavam dispostos a relevar sua estra­
nheza deve ter parecido a ele prova adicional de que seu talento
era uma forma de proteção, um tipo de isolamento que funciona­
ria em qualquer tempo, quente ou frio.
Ele foi recrutado para trabalhar com a inteligência militar.
O curioso sobre a inteligência militar é que ela tem de ser ao mesmo
tempo transparente e opaca, porque se a inteligência é transparen­
te, não é mais secreta; e se é opaca, não é mais útil. Os homens
que se reúnem em salas apertadas e abafadas e que mandam m e­
morandos uns para os outros com o carimbo de ultra-secreto se
dão ao trabalho de inventar métodos de criptografar que ficam no
limite muito estreito entre o que é útil para um lado e inútil para
o inimigo. E uma das ironias da história que estou contando é que,
durante o tempo em que Alan Turing caminhava pelas estradas vi­
cinais da zona rural de Nova Jersey, ele nunca imaginara que, com
uma girada da roda do destino, seu vivido sonho de incorporar o
processo humano de calcular aos limites de uma máquina poderia
servir a um imenso aspecto prático no qual navios seriam salvos
nos mares ou cidades salvas de bombardeios aéreos.
Em 1941, os alemães eram os senhores da Europa; conduzin­
do suas tropas por sobre um vasto império, o Alto Comando Alemão
dependia em grande parte de uma máquina criptográfica intitula­
da Enigma. Parecida com uma sofisticada máquina de escrever, ela
era composta por uma série de cilindros com catracas tal que cada
letra do teclado, quando pressionada, podia ser codificada por cen ­
tenas de códigos possíveis. Em 1928, o birô polonês de criptografia,
BS4, teve a oportunidade de estudar uma máquina Enigma original
e conseguiu construir um modelo que então entregou à inteligência
britânica. E aqui residia um problema tantalizante. A inteligência
britânica tinha na época a capacidade de detectar mensagens em

O ADVENTO DO ALGORITMO 245


código dos alemães por radioescuta. (E todo mundo também.) O que
eles não tinham era a chave de código que mediasse a máquina e
as mensagens, a chave que inverteria o efeito da codificação e dei­
xaria a mensagem transparente.
Trata-se de um problema combinatório de imensa complexi­
dade, requerendo não tanto perspicácia quanto engenhosidade para
sua solução. Os alemães mudavam a chave de código diariamente, e
então a solução do problema precisava estar disponível em tempo
real para ser de utilidade. Você e eu podemos sentir o tamanho do
problema por meio de uma questão simples: dada uma seqüência de
palavras sem sentido que se sabe ter sentido e uma máquina crip­
tográfica, ler a seqüência de palavras sem sentido rápido o suficiente
para poder agir a partir da informação que ela contém. Mas nós
temos que depender de outras pessoas para sua solução, do círculo
mais externo, além dos mais talentosos, constituído de pessoas que
têm de saber de alguma coisa e do círculo interno, de pessoas
que podem dizer a eles o que eles precisam saber.
Os britânicos atacaram esse problema com o empenho fruto
do desespero. Um time de decodificadores e matemáticos foi
reunido em Bletchley Park. Muitos dos detalhes do trabalho deles
ainda é segredo; mas em meses, Alan Turing, trabalhando a maior
parte do tempo sozinho, resolveu o principal problema criptográfi­
co. Depois disso, comunicações codificadas enviadas pelo Alto
Comando Alemão às suas tropas ficaram acessíveis à inteligência
britânica. Quando Winston Churchill soube que Coventry ia ser
bombardeado, foi forçado a permitir que o bombardeio aconte­
cesse a fim de que os alemães não descobrissem que seu código
havia sido descoberto, um interessante exemplo de trabalho de
informações minando os próprios resultados. Mas, em outros teatros
de guerra, especialmente no Atlântico Norte, as informações que

246 D avid Berlinshi


Turing conseguiu decifrar representaram um papel importantíssi­
mo, muitas vezes, e os aviões de caça britânicos apareciam miste­
riosamente acima de submarinos alemães que estavam subindo à
superfície.
Nossa história não tem a ver com a guerra, mas com um
homem e o modo como seu talento o fez ser diferente dos outros
homens; contudo, depois de certo ponto a história perde a nitidez
do mesmo modo como todas as histórias sobre os muito ricos ou os
muito talentosos.
Turing se aposentou de seus deveres da época da guerra; foi
para o National Physical Laboratory de Londres, e passou a liderar
uma equipe para o design de uma Máquina Automática de Compu­
tação. Depois disso, foi diretor-adjunto do Laboratório de Com­
putação da Universidade de Manchester. O fogo abrasador de seu
talento continuou brilhando. Como Von Neumann nos Estados
Unidos, ele passava com facilidade do pensamento abstrato aos
detalhes concretos, desenvolvendo novas técnicas de programação.
Assim, prosseguiu tateando a partir do que um computador pode­
ria ser até o que um computador viria a ser. Escreveu vários artigos
provocantes sobre morfogênese; escreveu um artigo historicamente
importante sobre inteligência artificial no qual argumentou com
ironia que um computador capaz de tapear um interlocutor huma­
no devia ser considerado inteligente exatamente porque podia tapear
um interlocutor humano.
Ele não escondia sua homossexualidade, imaginando, talvez,
que sua sexualidade adulta não se sobreporia às firmes defesas de
seu talento e assim viria a ser vista pelos outros como uma falha ou
uma idiossincrasia, algo pessoal e, portanto, inofensivo. Nisso ele
estava enganado. Ele nunca realmente compreendeu que, como
todos os homens marcados por um grande e incomum talento, vivia

O ADVENTO DO ALGORITMO 247


em um mundo cheio de inimigos e, ao orgulhosamente deixar de
esconder sua homossexualidade, ele abriu a fenda fatal na armadu­
ra que seu talento lhe proporcionava e aprendeu tarde demais que
sem essa armadura ele estava fadado a viver como os outros homens,
e, portanto, estava condenado por seu destino.
A história fica tenebrosa. Funcionários do governo britânico,
preocupados talvez com falhas na segurança, forçaram Turing a
aceitar uma terapia hormonal que deveria suprimir sua libido. Sua
pele ficou macia; sua voz mudou de registro. O absurdo tratamen­
to só serviu para deprimi-lo e desmoralizá-lo; ele ficou melancóli­
co e, depois de finalmente compreender que seu grande talento
era um dom e não um modo de vida, em 7 de junho de 1954, comeu
uma maçã contendo çianureto e morreu só, com a maçã comida
apenas pela metade ao lado da cama.
Há um último raio de luz que brilha em nossa história. Apesar
do trabalho prático que possa ter feito, Alan Turing era em primeiro
lugar e acima de tudo um grande lógico, e seus talentos mais pro­
fundos só foram compreendidos pelos homens que também tinham
o mesmo talento e sabiam o que significava. O mundo soube que
ele havia morrido, os lógicos, por qu e ele havia morrido, tendo Gõdel
comentado que talvez Turing fosse infeliz porque queria se casar,
mas não podia. Talvez esse comentário indique um grau extra­
ordinário de inocência, ou, o contrário, contenha uma parte da ver­
dade na medida em que Turing sentia-se confiante por ser dife­
rente dos outros e descobriu tarde demais que, a não ser por seu
talento, ele não era diferente em nada.
✓ ✓
E o bastante, sr. Scott. E o bastante.

248 David Berlinski


10

P Ó S - E S C R I T O

PARA O NÃO INICIADO, a lógica parece ser a mais árida das discipli­
nas. As fórmulas e a estranha meticulosidade que exige parecem
um repúdio à espontaneidade e, portanto, à liberdade. Eu enfatizo
que é assim que o assunto p a r e c e ; na verdade, como em toda a
matemática, um rio de vida corre logo abaixo dessa superfície, e as
paixões que envolve são paixões humanas, mais ainda que em ou­
tros ramos da m atem ática na medida em que a lógica está em si
inextricavelmente ligada ao tear da linguagem e ao que a linguagem
pode ou não pode fazer. Quem estuda a vida dos grandes lógicos
não pode deixar de perceber a dolorosa ligação entre o que eles eram
c o que fizeram. Gõdel consumiu boa parte de seu espírito a fim de
obter a energia nervosa necessária para conseguir seus resultados
e, durante todos os anos 1930, ele se viu forçado a repetidam ente
procurar vários sanatórios a fim de recobrar a sanidade. C hurch
viveu como uma parte do próprio cálculo, subordinando-se a seus

O ADVENTO DO ALGORITMO 249


símbolos. Turing viveu na solidão de seu senso radical de simplici­
dade, aceitando no fim que era mais simples morrer do que viver.
E quando se vai acompanhando o assunto na época em que a ló­
gica matemática estava sendo criada como uma disciplina esotérica,
poderosa e perturbadora, os homens que fizeram a disciplina, quase
sem exceção, espelhavam em suas personalidades a dor de sua
paixão, alguns entrando em colapso de exaustão emocional, outros
ficando totalmente loucos, outros, todavia, como Alfred Tarski, se
encouraçando em personalidades blindadas em aço, e ainda outros
encontrando um refúgio medíocre na bebida ou nas drogas.
Estando os lógicos de várias partes do mundo a remexer na
mesma paisagem conceituai, a sistematização do algoritmo acon­
teceu em um período de poucos anos; e se o que Gõdel, Church e
Turing mais espelham é a capacidade da genialidade de comprimir
muito em pouco, a história é ampla o suficiente para englobar ou­
tros talentos e portanto outros homens — Emil Post, por exemplo,
que assumiu seu posto em uma arena competitiva de padrões
insanamente altos e perseverou contra todos os obstáculos, por ser
sua mente vigorosa, alerta, disciplinada e inventiva, mas seu talen­
to fundamental, circunscrito, pois não tinha a suprema combi­
nação de elegância e poder de Gõdel, nem a monumentalidade de
Church, nem o senso de radical simplicidade de Turing. Era bem-
dotado, mas não era grande, contudo gerenciou seu talento com
tanto cuidado que em retrospecto não parece fazer diferença.
Emil Post nasceu na Polônia em 1897 e foi para Nova York
como parte da grande onda de judeus da Europa Oriental que se
moveu lentamente pelo continente europeu e depois cruzou o
Atlântico. Ele havia perdido um braço muito jovem, e portanto
enfrentava o mundo como aleijado e estrangeiro. Tendo sua família
se estabelecido em Nova York, Post participou daquela curiosa,

250 D avid Berlinski


porém típica barganha geracional, na qual seu talento e capacidade
de trabalho serviram para redimir os sacrifícios dos pais. Cursou a
escola secundária Towsend Harris e a Universidade de Columbia,
e há uma energia densa e obstinada em tudo o que ele fez na mate­
mática que reflete os ritmos peculiarmente intensos da cidade.
A vida toda sofreu de distúrbios de humor, sendo o período de
mania causado por excitação intelectual, e a depressão; pela mania,
entretanto, contrastando o homem Post com a Nova Y)rk da primeira
metade deste século — a minha Nova York — fica claro que de
algum modo ele absorveu a palpitação e o brilho da cidade que
rugia ao redor dele, seus pensamentos ora disparavam como o expres­
so IND que chocalha implacavelmente pela Broadway, da Rua 125
para a Rua 59 num rugido indignado, passando direto pelas estações
locais, ora estacionavam como a Sexta Avenida em um domingo
chuvoso, cinza, triste e imóvel, o cheiro de carne enlatada e cerveja
vindo das poucas tabernas ainda abertas.
Ele alcançou a maturidade m atem ática sob a influência do
Principia M ath em atica de Russel e Whitehead, e seu primeiro tra­
balho em lógica, feito quando ainda estava na Universidade de
Princeton, tem um ar inconfundivelmente profético, porque, em
essência, Post havia visto os fatos da incompletude em 1920, dez
;mos antes de Gõdel publicar seu artigo memorável. Mas o que
Post viu, viu em desordem, as linhas de inferência encobertas e
com freqüência confusas, e a ofuscantemente brilhante prova que
forçava essas várias linhas a convergirem estava simplesmente além
do seu alcance e, portanto, além da sua compreensão.
Em 1941, quando as realizações memoráveis dos grandes
homens haviam sido notadas e registradas, Post escreveu uma carta
iiiclizivelmente pungente a Hermann Weyl, então editor do A m erican
lournal o f M athem atics: “É com certa ansiedade", começou ele,

O ADVENTO DO ALGORITMO 251


“que submeto o artigo em anexo, ‘Problemas absolutamente inso­
lúveis e proposições relativamente indecidíveis, relato de uma ante­
cipação', para publicação no A JM ” . Nos parágrafos seguintes, ele pedia
apenas que sua antecipação fosse vista exatamente como era.
A resposta de Weyl foi um modelo de eficiência brutal:
“Tenho poucas dúvidas”, disse ele, “de que vinte anos atrás seu tra­
balho, parcialmente por causa de seu então caráter revolucionário,
não teria o reconhecimento que mereceria. No entanto, não pode­
mos voltar os ponteiros do relógio; neste ínterim, Gõdel, Church e
outros fizeram o que fizeram, e o A m erican Journal não é o local
apropriado para relatos históricos...”.
Mas então Weyl, dando-se conta do que acabara de dizer,
suaviza: “Pessoalmente”, acrescenta ele, permitindo que a máscara
do lógico escapulisse pelo menos por uma vez,, “você pode ficar
aliviado pela certeza de que a maioria dos principais lógicos, pelo
menos neste país, sabe de um modo geral da sua antecipação”.
O drama humano que estas palavras revelam, no qual a
influência de Post é obscurecida pela influência maior de outros
homens, não é toda a história e, portanto, não é toda a vida de Post.
Ele fez um trabalho muito importante em lógica que é genuina­
mente seu, tendo a poderosa máquina de sua indústria continuado
a funcionar pelos anos 1940 e início dos anos 1950. Seu trabalho, -
no que veio a ser conhecido como sistemas de produção de Post,
influenciou profundamente o curso da lingüística moderna. Ele
tinha uma estranha capacidade de antecipar e, ao mesmo tempo que
era incapaz de realizar algumas de suas visões porque outros as rea­
lizavam mais completamente, foram-lhe concedidas outras visões
em outras épocas, e algumas delas ele realizou completamente e
fê-las suas.

252 David Berlinski


Vivendo como todos os lógicos na corte imperial criada por
David Hilbert, Post se preocupava, nos anos 1930, em dar forma e
conteúdo à idéia de um procedimento mecânico. Sua linha de
ataque foi muito semelhante à de Turing: ele pensava em termos
de algo ocupando um lugar na imaginação, e retrospectivamente às
vezes se diz que Turing e Post deram com a mesma idéia ao mesmo
tempo, e o fato de que Turing continua a receber o crédito pelo
que é uma invenção dos dois é prova adicional de que Post estava
fadado a viver à sombra de outros maiores do que ele.
Mas isso não é muito exato. Há uma sutil diferença entre os
dois, e os dois conceberam o futuro por vias e meios diferentes.
Como Turing, Post imaginou uma fita infinita dividida em quadra­
dos e, como Turing novamente, ele pensou em termos de espaço
de símbolos; mas Turing colocou uma cabeça de leitura sobre os
quadrados, dotando a cabeça de um número finito de estados
internos. Não há cabeça de leitura na máquina de Post e em seu
lugar ele pôs para trabalhar um computador humano, compelido a
agir de acordo com uma determinada lista finita de instruções.
Esse computador humano, ou “trab alh ad o rco m o Post o
descreve, é capaz de executar as seguintés atividades, que com­
preendem a totalidade de seus dotes mentais:

(a) Marcar a caixa na qual se encontra (que se presume


estar vazia)
(b) Apagar a marca da caixa na qual se encontra (que se
presume estar marcada)
(c) Mover-se para a caixa à sua direita,
(d) Mover-se para a caixa à sua esquerda,
(e) Determinar se a caixa na qual se encontra está ou
não marcada.

O ADVENTO DO ALGORITMO 253


Além disso, o trabalhador está equipado com um ouvido interno
que lhe permite seguir certas instruções altamente formalizadas.
Estas têm o efeito de impelir o trabalhador. Existe uma instrução
abrangente:

C om ece do ponto de partida, e depois siga as


instruções.

e estas instruções, por sua vez, compelem o trabalhador a ou

(A) Realizar as operações (a), (b), (c) ou (d) ou


(B) Realizar a operação (e), depois do que ele deve nova­
mente
(C) Realizar as operações (a), (b), (c) ou (d) ou
(D) Parar.

Isto se parece muito com uma máquina de Turing, com as


instruções representando o papel de estados; e, de fato, a diferença
entre os dois conceitos é marginal.
Mas há uma curiosa questão de ênfase na máquina de Post
que merece ser comentada. A máquina de Turing é um computa­
dor idealizado, algo que nós podemos ver em retrospecto; e há uma
bela divisão na máquina de Turing entre hardware e software. A fita
e a cabeça de gravação representam o possível hardware —literal­
mente —, enquanto o conjunto de instruções representa o software.
A máquina de Post é totalmente simbólica. O hardware encolheu
e desapareceu em um ponto de fuga. Esse pobre robô, o trabalha­
dor, só está lá para seguir instruções. Nesse aspecto, Post deu forma

254 David Berlinski


a uma antecipação não tanto de um computador digital quanto de
seu program a.
E, no entanto, uma máquina de Turing e uma máquina de
Post são parecidas em termos de capacidade. Isto pode sugerir que
a distinção entre hardware e software é, em alguma medida, uma
ilusão. Uma máquina como geralmente a entendemos pertence ao
mundo da matéria e segue as leis que regulam a matéria em suas
inúmeras modalidades. As máquinas projetadas por Post e Turing
têm uma concretização em um mundo de plásticos, chips de silí­
cio, fios de cobre e circuitos elétricos; e no âmbito do mundo con­
temporâneo, o computador parece tanto uma máquina quanto um
automóvel ou um torno. E, no entanto, estou tentado a dizer, esta
descrição representa um deslocamento de ênfase, uma distorção de
tom. Post e Turing criaram máquinas que respondem a um mundo
de p en sam en to , e não de matéria, e o fato de que quando essas
máquinas são realizadas elas terem de ser realizadas como objetos
materiais representa, mais do que qualquer outra coisa, a inevitá­
vel concessão que a mente faz à matéria em um mundo no qual é
apenas a matéria que tem alguma estabilidade duradoura. A essên­
cia de suas máquinas está em outra parte, em um universo no qual
os símbolos são impulsionados por símbolos de acordo com regras
que são em si expressas em símbolos.
O local onde estas máquinas residem é a mente humana.

De acordo com o testemunho de seus alunos, Emil Post era


um professor extraordinário, tanto exigente quanto correto. E era
um estudioso soberbamente disciplinado, trabalhando com deter­
minação sob condições difíceis — sem a ajuda de secretárias, sem
um escritório de verdade, com responsabilidades infindáveis como

O ADVENTO DO ALGORITMO 25 5
professor e, em casa, pouco espaço e uma filha pequena para atra­
palhar, que fazia o melhor que podia para observar as regras da
casa segundo as quais quando seu pai estava trabalhando na sala,
ela devia ficar quieta. O distúrbio de humor do qual ele sofria não
podia, na primeira metade deste século, ser controlado por medica­
mentos, e assim Post conseguiu ter algum controle sobre sua doença
por meio de hábitos sensatos de trabalho, atenção cuidadosa com
a dieta e as horas de sono, e revigorantes longas caminhadas. Ele
mensurava o tempo para sua atividade de pesquisa em minutos,
anotando seus pensamentos meticulosamente em pequenos diários
de capa de couro, e quando o tempo destinado à pesquisa acabava,
ele se recusava a levar suas idéia adiante temendo perturbar o de­
licado equilíbrio de sua sensibilidade e cair na mania.
Nas ocasiões em que a doença o sobrepujava, a terapia de ele-
trochoque era a única modalidade de tratamento que oferecia a
promessa de alívio, uma explosão de energia elétrica evidentemente
servindo para pôr em ordem sua agitação nervosa, do mesmo modo
como um único grito alto pode às vezes aquietar várias vozes queixo­
sas. Quando, em 1951, a mania saiu fora do controle, Post recorreu
novamente a esse pavoroso mas estranhamente efetivo tratamento,
mas desta vez o choque fez mais do que aquietar sua agitação. Ele
morreu de um fulminante ataque do coração imediatamente depois
do tratamento, tendo o eletrochoque aquietado sua vida junto com
a mania.
Resta uma foto de Post do início dos anos 1950. Post está sen­
tado; meio encurvado. A esposa e a filha estão cada uma de um lado
dele. São mulheres bonitas e alertas. E as duas, embora de frente
para a câmera, transmitem uma extraordinária solicitude física,
uma sensação de ternura. A foto revela tensão. Revela, como tan-

256 David Berlinski


tos desses documentos, algo que vai além da ternura. Revela que
este homem está no centro da vida das duas. Revela que as duas o
amam profundamente. Revela que ele é insubstituível. E revela
algo mais.
Revela que elas estão aterrorizadas.

O ADVENTO DO ALGORITMO 257


1 1

O PAVÃO DA RAZÃO

A IDÉIA DE ALGORITMO HABITAVA a consciência dos matemáticos do


mundo todo pelo menos desde o século XVII; e agora, na terceira
década do século XX, uma idéia que não tem uma descrição precisa
foi contemplada com quatro definições diferentes, como uma mu­
lher atraente mas estranha que recebesse quatro propostas diferentes
de casamento sendo que nunca havia recebido nenhuma. As quatro
definições bem diferentes, é bom lembrar, foram dadas por Gõdel,
Church, Turing e Post. Gõdel havia escrito a respeito de uma deter­
minada classe de funções; Church, sobre um cálculo de conversão
lambda; e Turing e Post haviam imaginado máquinas capazes de
manipular símbolos tirados de um alfabeto finito. O que dá a esta
história uma unidade dramática é o fato de que, pelo fim da década,
havia ficado claro, para o pequeno círculo de lógicos competentes,
que as definições eram, na verdade, equivalentes no sentido de que
definiam um conceito por meio de quatro floreios verbais. As funções

258 David Berlinski


recursivas de Gõdel eram precisamente as funções que podiam ser
realizadas pela conversão lambda; e as operações realizadas por essas
Iunções eram precisamente as que podiam ser executadas por uma
máquina de Turing ou por uma máquina de Post. Os lógicos foram ca­
pazes de primeiro imaginar e depois demonstrar essas equivalências.
E quando isso foi compreendido, o algoritmo finalmente se
1ornou realidade.

C h u r c h PROPÕE
UMA CONJECTURA

O fato de um conceito ter sido definido por quatro definições pare­


cia aos lógicos dos anos 1930 uma circunstância enormemente suges-
(iva. Muitos conceitos lógicos estão ligados muito especificamente
;i determinados sistemas de notação. O que conta como uma infe­
rência válida depende, por exemplo, do sistema formal no qual a
inferência está embutida. Se a srta. M undo Louro é loura, então
alguém é loura. Sem dúvida. E no entanto, se a inferência se res­
tringe ao cálculo de proposições, que trata apenas de conexões entre
sentenças completas, Se a srta. M undo Louro é loura, então alguém
é loura é absorvida em uma única sentença, e a torturante cone­
xão entre a srta. Mundo Louro e a cor de seu cabelo desaparece
totalmente.
O conceito de algoritmo parecia ser totalmente diferente: ele
permanecia o mesmo independentemente da definição, sendo as
equivalências entre as várias definições ainda mais surpreendentes na
medida em que as definições eram tão diferentes. Um conceito indi-
lerente aos detalhes de sua formulação, afirmou Gõdel, é absoluto.

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 59
E ao comentar o conceito para uma platéia de lógicos, ele obser­
vou que o fato de apenas um conceito ter emergido das quatro defi­
nições era de certo modo um “milagre” epistemológico. É uma palavra
estranha para um lógico usar, mas a sensação de milagre que Gõdel
invocou representa o lugar estranho que o conceito de algoritmo
ocupa no catálogo de conceitos matemáticos. Um algoritmo é um
objeto matemático perfeitamente bem definido; mas é também
um artefato humano e, portanto, uma expressão das necessidades
humanas de um modo que a derivada de uma função de valóres
reais ou um grupo fuchsiano não é. A matemática sempre recla­
mou para si o poder totalmente misterioso de criar conceitos ali­
nhados com o mundo real. No caso do algoritmo, esse poder mis­
terioso e básico foi agora recolhido do mundo real e levado para o
mundo da imaginação, tal que, pela primeira vez, a antiqüíssima
habilidade humana de enumerar, calcular e fazer contas se encon­
tra presa dentro dos limites nítidos dos pensamentos que ela
mesma criou.

Sempre que os seres humanos tentaram promover uma conexão


entre o desejo e a ação, voltaram-se para práticas formais, normas
legais, codicilos, receitas, cartas de amor, livros de orações, manuais
de guerra, tabelas de impostos — todos os variados instrumentos -
que coordenam o fluxo da ação de momento a momento, e dessa
forma estendem a rede da consciência humana além do episódico.
Há, mesmo assim, uma considerável diferença entre o con­
ceito puramente humano de efetivamente fazer com que algo seja
realizado e o conceito puramente matemático de computabilidade,
como ele veio a ser definido por Gõdel, Church, Turing e Post.
O conceito humano é mais abrangente, e é impreciso.

260 David Berlinski


Em um artigo de muita importância histórica, Alonzo Church
lentou puxar os vários fios dessas observações e apertá-los no nó
de uma única e dramática conjectura que força uma curiosa con­
cordância entre os dois lados de uma idéia. Por um lado, há a
noção intuitiva de computabilidade efetiva, a classe de atividades
para as quais existe um algoritmo correspondente mas informal.
Por outro lado, as funções recursivas ou o cálculo de conversão
lambda ou as máquinas inventadas por Turing e Post. A concordân­
cia que Church propunha é simples. Na medida em que a matemáti­
ca pode expressar um conceito informal, ela o faz completamente
por meio de uma dessas quatro definições matemáticas equiva­
lentes. Por questões de clareza e de apelo intuitivo, a máquina de
Turing veio a parecer esteticamente mais apropriada para repre­
sentar a visão particular do matemático; e assim essa concordância
tem uma formulação ainda mais simples: O qu e pode ser fe ito e fe ­
tivamente p o d e ser fe ito por um a m áqu in a de Turing.
Esta é a tese de Church. Ela é em si não demonstrável, obvia­
mente, na medida em que associa em uma única figura dois tipos
muito diferentes de experiência, uma humana e informal, a outra ma­
temática e precisa. Post a considerava uma lei da natureza, em
nada diferente das leis da atração gravitacional universal de Newton,
mas leis da natureza são expressas como relações entre quanti­
dades matemáticas; a tese de Church estabelece uma relação entre
algo que não é matemático e algo que é. Na medida em que os
lógicos aceitaram a tese de Church, encontraram provas que a cor­
roboravam em toda parte; ao menos em parte, trata-se de uma
dessas profecias que ocasionam a própria realização.
Qualquer que seja seu status , a tese de Church exerceu uma
poderosa, muito embora limitante, influência sobre a imaginação
dos lógicos, filósofos e psicólogos. E por motivos óbvios. Muitas

O ADVENTO DO ALGORITMO 261


atividades humanas se encaixam no rótulo de computabilidade efe­
tiva: somar, dividir, subtrair e multiplicar os números naturais são
os exemplos didáticos óbvios. Mas, e decidir, planejar, falar uma
língua, dar ouvidos, compreender, tramar, projetar, criar, divertir,
evitar, ver, localizar, lembrar, aconselhar, interpretar?
E apaixonar-se, calcular impostos, nadar quinhentos metros
medley, ler um livro didático, comprar, elaborar leis, cozinhar, tirar
uma pinta, fazer uma campanha política, candidatar-se ou lavar
um cadáver?
Muitas das coisas que fazemos p arecem fragmentar o fluxo do
tempo em segmentos discretos. E já que essas operações são huma­
nas, elas p arecem estar sob o controle de um aparato simbólico, o
algoritmo aparecendo agora como o dispositivo quintessencial que
os seres humanos usam para o domínio do tempo.

A FUNÇÃO G - O INESCRUTÁVEL

m m m m Embora a máquina de Turing tenha sido projetada para


fa z e r algo e, portando, seja da mesma natureza que todos os dis­
positivos que realizam uma tarefa construtiva, a tarefa que realizou
melhor foi uma tarefa que não podia realizar; e se isso sugere um
lugar no qual a fita do pensamento está puxando a si mesma, isto
só é assim porque a história da lógica é uma criação de Juan Luis
Borges, a quem foi concedida a singular habilidade de escrever
histórias que ele nunca escreveu.
Em 1928, o matemático alemão David Hilbert, transmitindo
suas idéias a outros matemáticos em um congresso em Bolonha,
expressou a esperança de que, com o advento do algoritmo, os mate­

262 D avid Berlinski


máticos fossem descobrir um procedimento de decisão para Ioda a
matemática (e dessa forma para toda a vida) tal que, ao chegarem a
uma nova conjectura, eles pudessem determinar mecanicamente,
c‘ com certeza total, se era verdadeira ou não.
O objetivo de Hilbert ainda não foi alcançado, muito embora
alguns de seus seguidores continuem a levar avante sua obra, apa­
rentemente muito relutantes em aceitar o fato, há muito demons­
trado, de que seu objetivo não foi alcançado porque é im possível
alcançá-lo.
Os detalhes do que hoje é chamado de insolubilidade recur­
siva me foram transmitidos em Cambridge, Massachusetts, em um
dia de inverno de 1936, por um estranho que impertinentemente
se dizia chamar Juan Luis Borges e que, embora fosse obviamente
inglês, a julgar por seu temo de lã penteada e pele muito clara, não
tinha nenhuma relação, ou assim ele o afirmou, com o lógico Alan
Turing, que na época se dizia morar em Princeton, Nova Jersey. Toda­
via, fiquei com a impressão de que Turing e Borges eram de alguma
forma ligados, ainda mais após a divulgação, muitos anos depois,
de que o aparecimento de Borges em Cambridge coincidiu com o
desaparecimento inexplicado de Turing de Princeton durante uma
corrida de longa distância.
— Existem tarefas — perguntou Borges, enquanto acendia e
depois apagava um Players sem filtro depois do outro —que estão
além do domínio de um algoritmo?
Essa é certamente, observei, a mesma questão que havia
anteriormente sido levantada em 1257 pelo herético cátaro Rues
de Cervantes, que havia tentado determinar se haveria limitações
à divina competência; mas Cervantes, embora houvesse concebido
a questão, não conseguira dar uma resposta, uma vez que havia
morrido na Inquisição desencadeada por Inocêncio III.

O ADVENTO DO ALGORITMO 263


— É o que freqüentemente se pensa — respondeu Borges. —
No entanto, acontece que, antes de sua morte, Cervantes conseguiu
transmitir suas conclusões para alguns de seus seguidores em
Toulouse, que se encarregaram de registrar seu argumento essen­
cial em occitano. Um resumo de uma tradução árabe do argumen­
to original aparece em uma nota escrita por Gottfried Leibniz para
o jesuíta francês e criptógrafo Jean-Luc Brice. Em 1906, o con­
teúdo de um baú de viagem de propriedade de uma certa Ana
Shpatalkova, uma conhecida bailarina moscovita e d em i-m on d ain e ,
revelou uma versão em russo do argumento original de Cervantes.
Depois disso, sabe-se que versões do argumento circularam na sala
dos professores do Kings College em Cambridge, Inglaterra.
Pensei em comentar essa estranha narrativa, mas Borges ace­
nou com o dedo elegante mas manchado de nicotina como se para
sugerir que qualquer comentário seria supérfluo.
—Quaisquer que fossem os interesses originais de Cervantes —
disse ele —, o programa concebido com a intenção de colocar toda a
matemática sob o controle de algoritmos chegou agora à conclusão
paradoxal de que certos problemas são insolúveis por meios algorít­
micos. A prova desse enigmático, porém profundo, resultado —con­
tinuou ele —, é de uma inesperada mas bem-vinda simplicidade.
—A prova —murmurei.
Borges meneou a mão novamente, desta vez indicando uma
sensação de urgência ou talvez impaciência que até então ele não
expressara.
—O argumento foi comunicado pela primeira vez para o futuro
por Rues de Cervantes. A prova é mais recente.
Fiquei quieto, mas continuei a prestar atenção.
—A máquina imaginária projetada pelo lógico Alan Turing —
disse Borges —, é projetada para calcular funções, e apenas funções
j

264 David Berlinski


f(x) = y que levam de números naturais a números naturais são
consideradas. Os números naturais, observou Leopold Kronecker
em Berlim, são dádivas de Deus, tudo o mais é obra do homem.
“As máquinas de Turing que levam um número a outro
número são agora arrumadas em uma Lista Mestra: temos a
primeira, M 1? a segunda, M2, e a terceira, M 3, e assim por diante
até a 4 6 4 -, M 464, e daí até os vários pontos que, como as estrelas,
estão tremeluzindo além. Cada máquina especifica uma função
a s s o c i a d a a máquina M 23 pegando um número x, por exemplo, e
elevando-o ao quadrado, enquanto a máquina M 143 serve para somar
1 a qualquer número/'
Lembro-me distintamente, ao ouvir essas palavras em Cam-
bridge, de quanto elas prefiguravam uma história que mais tarde eu
iria escrever.
— É aqui —continuou Borges —que uma nova função numér
ca g é introduzida. É uma função que Cervantes sugeriu que mais
tarde seria descrita como inescrutável. Como qualquer outra função,
g leva números a números. Sua natureza secreta —pois, como todos
os aspectos do divino, as funções numéricas têm uma natureza
secreta —é determinada por uma regra simples, embora escondida
por muitos anos de todos menos de um pequeno número de lógi­
cos. Estranhamente, a regra é organizada como um algoritmo.
E aqui Borges escreveu o algoritmo no ar com a ponta dos
dedos:

A fim de determ in ar o valor de g no número x y


prim eiro consulte a Lista Mestra de funções f , /2,

A seguir , considere a função / da lista que corres­


ponde a x.

O ADVENTO DO ALGORITMO 265


E n tão calcule o valor de g em x
Fazendo g(x) = f x(x) + 1.

— Claramente — disse ele, à guisa de explicação —, se x = 0,


então g(10) = f l0{ 10). Pode acontecer, é claro, que em x, f{x ) não
seja definida, como ocorre quando/(x) = x ~ 1, uma fórmula que
cai na incoerência quando x = 0.
Se e s s e é o caso, então o valor de g é 0.
—A função g —observou ele, então —é definida para qualquer
número; mas, curiosamente, na medida em que foi definida muito
explicitamente, nenhum exame da Listra Mestra de funções com­
putáveis basta para revelar a presença de g na lista.
Tinha começado a cair uma neve fina.
Fechando a gola de seu casaco de vicunha, Borges alisou as
sobrancelhas para que elas ficassem achatadas em sua testa.
—A prova prossegue por contradição, a estratégia, como po­
demos recordar, preferida por Santo Tomás de Aquino no Livro Dois
de sua Sum m a C ontra G entiles. Suponha que g estivesse na Lista
Mestra. Ela deve ser, por conseguinte, idêntica a uma função com­
putável/—a décima sétima, digamos. Qualquer que seja o número
x, segue-se novamente queg(x) = f (x). E já queg foi definida para
todos os números, segue-se em particular que g( 17) =/J7( 17). Mas
do algoritmo que define g, segue-se também q u e < g (17) = / í7(17) +
1. Se/ ;7(17) não é definido, então g( 17) = 0. Seja g igual a/J7(17)
+ 1 ou igual a 0, g( 17) não é igual a/ (17). Chegamos a uma con­
tradição.
E logo a seguir, Borges fez uma pausa para me dar tempo de
refletir sobre o que acabara de dizer.
—Entenda —disse ele, finalmente —, a única conclusão consis­
tente para esses fatos é que g não está na Lista Mestra. Portanto, g

266 D avid Berlinski


não é computável e, já que a Lista Mestra contém todas as máquinas
de Turing também, é em particular não computável por qu alqu er
máquina de Turing. É por essa razão, como Rues de Cervantes
compreendeu, que, como a própria divindade, g deve ser conside­
rada inescrutável.
— E foi por essa razão — disse eu, quando a neve começou a
cair mais forte —que Cervantes foi punido?
— Foi razão mais do que suficiente —disse Borges, de maneira
enigmática; depois se afastou do banco do parque no qual estivera
sentado e rapidamente desapareceu nas sombras que se adensavam.
■ IS S M

Só me resta agir como amanuense de Borges e salientar de


modo pedante que o argumento que ele havia relatado é apenas
uma variante do famoso argumento diagonal de Cantor. O que dá
ao argumento seu ar enlouquecedoramente enigmático é apenas o
fato de que a inescrutabilidade foi estabelecida pelo que parece ser
um algoritmo perfeitamente comum —exatamente o que define g,
na verdade. Esta é uma circunstância confusa. Eu me contento em
deixar as coisas como estão, deixando para Borges a tarefa de
desenredar as conseqüências de um argumento que ele não co­
nheceu mas aparentemente compreendeu.
Qualquer que seja a sua natureza, as funções não computáveis
servem para indicar certos limites intelectuais, lugares além dos
quais os artefatos humanos — e o que é um algoritmo senão um
artefato humano? —perdem seu poder de coordenar e controlar os
acontecimentos. A existência desses limites hoje já se tornou um
fato conhecido. As leis da física marcam a fronteira do mundo in­
telectual; além delas, não há nada. A análise poderosa e pertur­
badora proporcionada pela lógica matemática nos anos 1930 sim­

O ADVENTO DO ALGORITMO 267


plesmente nos apresenta limites de outro tipo. Por razões que não
podemos muito bem compreender, são transparentes, dando-nos a
perspectiva torturante de sermos capazes de espiar através deles
sem conseguirmos atravessá-los. Gõdel demonstrou não apenas
que a aritmética era incompleta como também que a sentença que
afirma sua incompletude era v erd ad eira . A existência de funções
inescrutáveis demonstra que o método planejado para ratificar os
resultados do raciocínio matemático ainda não foi ratificado pelo
próprio método.
Há nesses resultados insinuações de arbitrariedade que des­
toam agudamente da história e da própria natureza da ciência; mas
se os resultados a que os lógicos chegaram em meados dos anos
1930 são negativos, são também libertadores em sua capacidade
de soltar, por meio do alicate do paradoxo, as amarras de um certo
sistema de ilusões, e já que o que foi conseguido foi con segu ido ,
quem pode dizer que a luz não é mais pesada do que a escuridão?

268 D avid B erlinski


12

Tem po v e r s u s tempo

O PROCESSO POR MEIO DO QUAL a máquina imaginária de Turing foi


incorporada em computadores cada vez mais eficazes é uma história
que já foi contada dezenas de vezes, ocasionalmente pelos homens
que fizeram o serviço e ocasionalmente por homens que observaram
os homens que fizeram o serviço, e escreveram sobre o que viram.
Uma das estranhezas da história é que ela é bastante enfadonha. Os
primeiros computadores eram lentos e desajeitados, válvulas a vácuo
fazendo a tarefa que mais tarde seria feita por transistores; programas
gravados apareceram no fim dos anos 1940, e uma década depois, os
transistores e os chips foram integrados. Nos quarenta anos seguintes,
os computadores ficaram mais rápidos e melhores e, ao contrário de
todas as expectativas razoáveis, também ficaram mais confiáveis; em­
bora os computadores modernos quebrem, quase nunca falham.
Nos Estados Unidos, a arquitetura do computador digital foi a
princípio influenciada pelo matemático húngaro John von Neumann,

O ADVENTO DO ALGORITMO 269


que, sempre de ternos de três peças como um banqueiro de inves­
timentos, foi um dos intelectos notáveis do século XX, seu cérebro,
por consenso geral, um órgão de surpreendente versatilidade,
capaz de compreender e resolver qualquer problema concebível
com velocidade e precisão quase sobrenaturais. Von Neumann não
tinha a genialidade suprema de Gõdel, a simplicidade imaginativa
radical de Turing e nem mesmo a grandiosidade impassível de
Church, mas compensava por meio de velocidade, amplitude e
técnica matemática a profundidade que lhe faltava, e defendia sua
visão de computação digital com uma combinação de força inte­
lectual e habilidade diplomática que parecia bastante convincente
para os burocratas mais graduados e os generais americanos, infun­
dindo respeito pelos primeiros e adulando os segundos.
Mas tudo isso já sabemos. O que é interessante, e o que nos
assombra, é outra coisa, a nova maneira de ver a experiência que
foi causada pelo advento do algoritmo e, portanto, pelo engenho
humano. Pois é o algoritmo que rege o mundo, insinuando-se em
todo dispositivo, discussão ou diagnose, dando conselhos e to­
mando decisões, afirmando sua presença em todas as transações,
fazendo cálculos atordoantes, armando e apontando mísseis
cru ise , trazendo os dinossauros de volta à vida nos filmes, ou
mostrando J. F. Kennedy cumprimentando Tom Hanks, predizen­
do o tempo e o clima global e, como o cego Tirésias, predizendo a
extinção do universo em um big -cru n ch 1 ou em um desses proces­
sos flácidos nos quais depois de muito tempo as coisas simples­
mente se esvaem.

1 Big-bang ao inverso no tempo (N. da T.)

270 David Berlinski


M undos de n o s s a lavra

m m m m Confrontando o que parecia ser o fato evidente de que as


coisas desmoronam, o físico Ludwig Boltzmann, no século XIX,
inventou a termodinâmica para explicar o que pensava ver; e
depois, confundindo Viena com o universo, desesperou-se com as
predições de sua teoria e tirou a própria vida muito antes que o uni-
verso-como-um-todo tivesse tempo de se esvair em uma desagra­
dável morte térmica. Não creio que Boltzmann tenha considerado
o suicídio como uma profecia que causa a própria realização, seu
embate pessoal com a segunda lei da termodinâmica sendo tanto
um artefato da própria teoria quanto qualquer outra coisa. Existe,
afinal, um número incontável de mundos nos quais as coisas se
organizam para melhor e não para pior. Uma criança nasce; um
livro é feito a partir apenas de símbolos, tinta e imaginação; e se a
entropia do mundo físico está se esgotando, em alguma hora deve
ter aumentado. Existem mundos e mundos, e a física descreve um
deles, mas apenas um deles.
Obras da imaginação —histórias, poemas, pinturas, música —
descrevem os outros; e nos voltamos para elas em busca de consolo.
Contudo, o algoritmo é também uma obra da imaginação, uma
obra de poder ímpar e, na medida em que vem a ser timidamente
aplicado nas ciências sérias, abre à força um novo lugar e dobra o
próprio tempo de novos modos.

É logicamente possível, perguntou certa vez Vladimir


Nabokov, andarmos para trás no tempo e cumprimentarmos cor­
dialmente nosso avô? Não faço a menor idéia, é claro. Só pensar em
aparecer no início de 1850 e dar um tapinha nas costas do velho

O ADVENTO DO ALGORITMO 2 71
me é intelectualmente intolerável. No entanto, toda vez que estive
com Heloise, sempre fui assombrado pela sensação de poder per­
ceber o passado dela no meu futuro, uma circunstância que pare­
cia inevitavelmente envolver uma delicada visão dupla na qual a
verdadeira Heloise, parada na minha frente e batendo o pé de
impaciência, seria justaposta a uma Heloise mais jovem do que ela
mesma, as duas mulheres ocupando espaços amistosos em um
universo no qual o tempo havia de alguma forma dobrado para trás
como um reluzente arco.

Eu havia partido de Nova York naquele outono na nau capitâ­


nia da frota francesa, um elegante paquete com três chaminés ver­
melhas (elas haviam aparecido, as chaminés, em propaganda de
cigarros) e um ar, a despeito de sua primorosa reforma no ano ante­
rior, de ter visto coisas demais e navegado demais. (Algum tempo
depois, a coisa naufragou ignominiosamente em seu ancoradouro
em Nova York, destruída por um incêndio frenético e misterioso.)
As buzinas do navio tocaram pesarosas, um som profundo como o
de uma rã gigante —adeu s, adeus —; as máquinas, que até então ti­
nham estado inativas,"iniciaram um rugido baixo, profundo, vibrante;
as placas de metal no convés tremeram; e em poucos minutos um
cardume de amáveis rebocadores de um vermelho brilhante mano­
braram o monstro até o meio do canal. Uma cortina de nuvens cinza
molhadas caiu entre o navio e o litoral.
Eu dividia a cabina com um taciturno francês e um turbulen­
to cristão másculo e atlético — um conhecido modelo de camisas,
na verdade —que me cumprimentou com um retumbante “Louvado
seja o Senhor” e um convite, que eu imediatamente declinei, de me
juntar a ele para rezar. O quarto beliche na nossa cabina ficou
desocupado, a cama representando de alguma forma uma repri-

272 D avid Berlinski


menda e servindo depois de certo tempo para taciturnamente rece­
ber nossos artigos de toalete, toalhas usadas e cópias de um jornal
de bordo com o título otimista de B o n jo u r m es am isl Um cartaz no
banheiro escrito em três línguas (francês, inglês e italiano) advertia
os passageiros a não beberem água das torneiras. Depois de meu
primeiro banho, em que a água se transformara instantaneamente
de uma composição precisa de água quente e fria em água gelada
do Atlântico Norte, fui avisado com solenidade pelo francês (cujas
mãos acenavam como serpentes de pantomima enquanto proferia
estas afirmações) de que eu me banhara nas águas servidas do navio,
urina, em sua maior parte; a despeito dos olhos juntos que pare­
ciam contas e da testa inclinada, ele falava com a segurança de al­
guém a par de muitos segredos.
Uma borrasca chegou e partiu. O ar adquiriu um brilho denso,
cinza m etálico, o céu se fundindo umidamente no mar. Os estabi­
lizadores do navio, anunciou gravemente um comissário de bordo,
haviam sido estendidos. A mesa havia sido posta para dois. Comi
prodigamente, achando que o primeiro prato era toda a refeição, e
então vomitei prodigamente no convés do meio, expelindo minha
sau ce b ern aise na direção, achei, das Bermudas.
M ais tarde, passeei pelo saguão do navio. No fim do bar, pare­
cendo calma e senhora de si, de lábios rosas e radiante, estava
Heloise. A leve onda perfumada de reconhecim ento que senti não
tinha coisa alguma a ver apenas com a memória: não estou falando
do jardim junto ao terraço, ou dos lilases em flor, ou de uma voz
cheia de mel chamando “Raquel” com pungência e uma sensação
de perda irreparável.
Ela estava talvez com felinos quarenta anos. Tinha tranqüilos
olhos cinza-claros e pesados cabelos acobreados presos em um coque

O ADVENTO DO ALGORITMO 273


com uma presilha de brilhantes; estava vestida com um elegante
tailleur cinza sobre uma blusa de seda verde-limão aberta no pescoço.
Falava com o barm an do navio, que se encontrava no canto do balcão
do bar, com o quadril escorado contra o movimento do navio, polindo
um copo sem parar e meneando a cabeça grande distraidamente de
vez'em quando. A mão dela pousou de leve sobre o braço dele como
se para detê-lo. Ela tinha uma desenvoltura de movimentos que fica
a meio caminho entre agressividade e domínio de si.
Seus olhos se encontraram com os meus e ela sorriu.
Deixei meu canto do bar, fui até ela e a chamei para dançar.
Eu nunca a vira antes. Tudo me era familiar. Seu tamanho e sor­
riso, o modo indolente como se esgueirou para os meus braços, o jeito
de balançar a cintura. A linha do queixo, notei com um sentimento
mudo de desalento, estava começando a pender. Ela usava um per­
fume que desde então aprendi a reconhecer como sendo Chloé.
Esgueirei meu nariz até a depressão quente de seu pescoço;
ela mexeu a cabeça para trás em um discreto gesto tenso; eu podia
sentir o cheiro do pó-de-arroz que ela havia passado nas rugas do
rosto; e por meio de um passo de dança que iniciei, mas não com ­
pletei, consegui apertar seu corpo contra o meu.
— O que você está fazendo? —perguntou ela, realmente atôni
ta, a Heloise da história de Nabokov imaginando quem seria aque­
le estranho que estava andando para a frente ao longo do eixo do
tempo enquanto parecia para si mesmo estar andando para trás.
m m m m

Nem todos os mundos são assim, é claro. No século XIX, a ter­


modinâmica pela primeira vez trouxe ordem intelectual ao que em
certo sentido é a característica mais óbvia de certas experiências.

274 D avid B erlin ski


Km muitos contextos puramente locais, as coisas parecem desmoro­
nar. As cartas do carteador se misturam depois de embaralhadas; o
café fica morno, e, também, o amor; e a delicada estatueta de cristal
não consegue se remontar depois de cair. A desordem avança impla­
cavelmente, em especial nas salas e nas vidas, e os físicos, não menos
do que os romancistas, tendo notado este mundo, estão ansiosos
para explicá-lo. A história não é de forma alguma simples, mas tem
um desenlace simples, como quando várias complexas linhas nar­
rativas convergem em uma passagem de uma história bem cons­
truída. A seta do tempo tem sua explicação em termos de proba­
bilidade, as coisas desmoronando única e simplesmente porque, é
provável, desmoronariam de qualquer maneira.
O exemplo proverbial, e certam ente o dos livros didáticos,
trata do comportamento de um gás ideal, cujas moléculas estão
dentro de uma região fixa e limitada do espaço — uma caixá, diga­
mos. As m oléculas são independentes: o que elas fazem, fazem por
conta própria, e ficam zanzando pela caixa mais ou menos de modo
aleatório.
Imagine um gás desses, composto apenas de dez moléculas,
e imagine também que a caixa na qual as dez moléculas foram colo­
cadas foi dividida em duas metades por uma divisória. Em um dado
instante, apenas uma molécula pode ir do lado direito da caixa para
o esquerdo, ou vice-versa. Qualquer distribuição particular de molé­
culas nos dois lados da divisória é conhecida como configuração.
C om eça então a contagem de tempo; as moléculas se movi­
mentam pela caixa, mudando de configuração aleatoriamente, e
com isso surge a questão da disposição daquelas configurações
depois que o tempo passou. É surpreendente como a intuição fala
alto na análise, a minha pelo menos. Se todas as dez moléculas estão

O ADVENTO DO ALGO RITMO 275


à direita (ou à esquerda) da divisória, a intuição diz —exige —que,
depois de um período decente de tempo, o sistema como um todo
tende a um estado de equilíbrio no qual, grosso m od o, metade das
moléculas estejam em um lado e metade no outro. O que a intui­
ção não consegue fazer é dar conta de si mesma.
Suponha que quando a contagem de tempo começa, as dez
moléculas estejam localizadas no compartimento da direita. Apenas
uma possibilidade prevalece. Uma única molécula pode migrar
para a esquerda, cruzando a divisória e indo parar no lado esquerdo
da caixa. Se no instante zero há dez moléculas no lado direito da
divisória, no instante seguinte de tempo a probabilidade é de dez
em dez de que só haverá nove, a mesma inexorável probabilidade
estabelecendo que tem de haver apenas uma molécula no lado es­
querdo da divisória.
No instante seguinte, as coisas se modificam de novo. Outra
molécula pode migrar para o lado esquerdo, mas, novamente, a
primeira molécula pode ir para o lado direito, esvaziando o com­
partimento da esquerda. Com relação a qualquer molécula do lado
direito, as chances a favor de um movimento para a esquerda são
de nove em dez; com relação à única molécula que está no lado
esquerdo, as chances a favor do inverso são de um em dez.
Pode -se continuar esse exercício por mais uns passos, com
resultados que são tudo menos surpreendentes; e se se continua o
cálculo por muito tempo, o número médio de moléculas em cada
lado da divisória converge para a vizinhança de cinco.
Mas aqui está o ponto interessante, exatamente o ponto em
que o sistema de descrição não consegue ficar coerente. Os cálculos
logo ficam intratáveis, e se o número de moléculas já é grande no
início, esses cálculos ficam impossíveis, mesmo para um compu-

276 David Berlinski


lador de grande porte que possa ficar fazendo cálculos até o fim
dos tempos.

E por essa razão que os físicos se voltam para a simulação a
lim de estimar o comportamento termodinâmico das moléculas
que ficam andando a esmo em uma caixa. Um método simples de
simulação envolve o que é conhecido no ramo como o método
Monte Cario. Ao usar esse método, com os punhos das camisas
discretamente arregaçados, os físicos empregam uma técnica em
duas etapas. Primeiro, geram uma amostra aleatória de possíveis
movimentos das moléculas; e depois assumem que a amostra é de
alguma forma, e por algum motivo, representativa de todo o con­
junto. É introduzido um algoritmo para dar conta dos detalhes, e
como qualquer um que lide ostensivamente apenas com detalhes,
o algoritmo logo está dando conta da parte principal do drama tam­
bém. O algoritmo funciona por meio de uma única suposição bási­
ca: a probabilidade de que qualquer partícula dada vá se mover ou
para a esquerda ou para a direita da divisória é n /N , onde n repre­
senta o número de partículas em qualquer um dos lados da
divisória, e N é o número total de partículas. Aqui delineamos o
algoritmo:

1. TIRE um número aleatório R qualquer de um chapéu (ou de


qualquer outro dispositivo que gere números aleatórios);
2. COMPARE R com n/N\
3. MOVA uma partícula da esquerda para a direita se R é menor
do que n /N ; ou faça o inverso se R é maior; ou não faça
nada se R é igual a n/N.

E, a seguir, mais detalhes:

O ADVENTO DO ALGORITMO 277


PROGRAMA caixa 2
RANDOMIZE
CALL initial(N,tmax) ! input data
CALL move(N,tmax) ! move particles through hole
END

SUB initial(N,tmax)
INPUT prompt “number of particles = N ! try N = 1000
LET tmax = 10*N
SET window -0.1 *tmax,1.1 *tmax,-0.1*N,1.1 .*N
BOX LINES 0,tmax,0,N
PLOT 0,N;
END SUB

SUB move(N.tmax)
LET nl = N ! initially all particles on left side
FOR itime = 1 to tmax
LET prob = nl/N
! generate random number and move particle
IF rnd <= prob then
LET nl = nl - 1
ELSE
LET nl = nl + 1
END IF
PLOT itime, nl;
NEXT itime
END SUB

2. Algoritmo do Programa caixa. Harvey Gould e Jan Tobochnik, An Introduction


to Computer Simulation Methods; Applications to Physical Systems. Reading,
Mass., Addison-Wesley, 1988, vol. 2, p. 487.

278 David Berlinski


O algoritmo agora começa a funcionar, em um universo algo­
rítmico, e novamente chega a resultados que estão em alinhamen­
to com a intuição. Um raciocínio que é primitivo mas convincente
deu prova de que, movendo-se de, acordo com certas leis da proba­
bilidade, partículas imaginárias dentro de uma caixa imaginária
dividida por uma divisória imaginária vão se mover na direção do
equilíbrio quando um algoritmo dá vida a elas.

m M m m Ou uma história dá vida a elas. Uns doze anos depois, ao


completar um corte no qual partes anteriores e posteriores da minha
vida foram habilmente juntadas, atravessei a Rua 87 em Manhattan
na manhã de um dia frio e claro de fim de outono. Eu tinha sido
casado e estava novamente solteiro; e precisava comprar um maço
de cigarros. Andando em minha direção com as passadas vigorosas
e determinadas de uma mulher muito mais jovem, Heloise. Ela
havia crescido talvez dois centímetros; o rosto havia ficado mais
firme; havia perdido aquela levíssima flacidez na linha do queixo;
não usava batom, só brilho labial; e estava de jeans e uma camisa de
flanela vermelha aberta na gola. Segui-a, obviamente, pela Broadway
até a Rua 86 e depois até a West End Avenue; ela entrou exata­
mente no prédio onde eu morava.
Ela era, como me contou duas semanas depois, cantora, sopra­
no lírico, e aluna de uma embusteira gorda que estava então no
ocaso de sua carreira trabalhando como diretora de cena. Ia fazer
um teste para o Metropolitan Opera House em junho; era propen­
sa a ter dor de garganta e amava pandas de pelúcia. Eu disse algu­
ma coisa sincera e solidária e só queria encostar meus lábios nos
contornos daquele delicado osso que ia de seu ombro até o vértice
de sua garganta; mas quando me inclinei, ela recuou; e foram
necessárias quase que duas semanas a mais para conseguir levá-la

O ADVENTO DO ALGORITMO 279


do décimo segundo andar do prédio no qual ambos morávamos
para o meu quarto no décimo andar.
Mais tarde, naquela primavera, fomos de carro de Nova York
até as Montanhas Catskill, ao norte. Viajamos em um carro aluga­
do passando por Oxblood, Katterskill e Phoenicia, velhas cidades
de aparência e características holandesas, caindo aos pedaços,
localizadas nas extremidades indecisas de velhas trilhas de cavalos.
Phoenicia, em particular, consistia de um único conjunto de lojas
de madeira, um posto do correio, a carcaça em decomposição de
um estábulo de ferreiro, um mercado IGO ao lado de um posto de
gasolina (uma bomba, abandonada), a estrada em si passando sobre
um pequeno córrego ameaçador por meio de uma ponte de con­
creto da WPA3. Três ou quatro quilômetros depois de Phoenicia,
à medida que a antiga rodovia subia a montanha, o ar perfumado e
luxuriante, chegamos a um grupo de pequenas cabanas em mau
estado, todas de madeira, piche e um odor fugidio, impalpável, de
esgoto, fossas, sem dúvida; aquelas cabanas se dispersavam ao longo
de um campo de calcário.
Diante de uma enorme cabeça de alce (a coisa olhava fixo
para todo mundo com um único olho acusador de plástico), o dono
daquela propriedade, um sujeito que parecia muito rude, com uma
cabeça pequena quase sem cabelos, olhos pequenos, um nariz bas­
tante adunco e pele parecida com couro, passou um dedo que lem­
brava um bastão sobre os lábios tensos e disse: “É claro que posso
deixar vocês ocuparem uma das cabanas por uns poucos dias,
jovens”. Se ele tinha algum interesse na jovem que estava sentada
no assento da frente do carro, muito constrangida, e a quem eu me
propunha a levar para a cabana assim que conseguisse completar

3. Work Projects Administration. (N. da T.)

280 David Berlinski


nquele odioso ritual, ele não deixou transparecer; pelo resto de
nossa estada, ele foi um modelo de cortesia rural. Assim que rece­
beu o pagamento pela cabana (trinta dólares, acho, uma ninharia),
desapareceu nos fundos da casa, cujo escritório parecia ter sido
um acréscimo posterior —e de onde vinha um cheiro profundo e
gorduroso —e não reapareceu mais.
— Estou tão nervosa —disse Heloise, quando finalmente entra­
mos juntos na cabana. Tudo era ainda mais lúgubre do lado de den-
tro do que parecia do pequeno gramado. Não havia eletricidade,
mas nosso anfitrião havia me oferecido um lampião a querosene, e
não tinha banheiro, uma circunstância que Hank, Hiram ou
I lorace sugeriu que enfrentássemos fazendo um gesto fluido com
;i mão e apontando para o bosque logo adiante. O colchão velho na
cama de ferro havia sido obviamente o refúgio de uma família de
ratos atrevidos. Havia sujeira por todo lado, então fomos até o carro,
jcegamos nossos sacos de dormir e fizemos um colchão improvisado
sobre as molas que rangiam.
Ficamos juntos na pequena cabana escura, com os boloren­
tos odores silvestres ao nosso redor. Heloise estava séria, sensível,
e com perfeito domínio de si.
m m m »

Na termodinâmica, equilíbrio denota um estado em que forças


que puxam da esquerda são contrabalançadas por forças que puxam
da direita, desta forma forçando um sistema de partículas, ou um
par de personagens, a um momento de parada. Os grandes físicos
exigem mais de suas teorias, uma corrente profunda de respeitabi­
lidade metafísica. Não há como negar o fato de que as coisas, mas
não as crianças, tendem a desmoronar; e esse fato, embora expli­
cado em parte por casos inventados, parece ter a ver com o fato

O ADVENTO DO ALGORITMO 281


profundamente misterioso e muito maior de que o tempo tem uma
direção no universo, movendo-se para a frente, se é que se move.
Com a dramática entrada em cena desses fatos, a termodinâmica
vai buscar o conceito de entropia.
O mesmo arranjo de antes, ancorado pelos mesmos estranhos
discordantes —probabilidade, algoritmo, imaginação. Suponha que
só há duas moléculas na caixa, rotuladas de A e B. O tempo está
suspenso, só sendo permitido que se mova quando o físico liberar a
lingíieta que o prende. As moléculas são, para todos os propósitos
práticos, indistinguíveis, diferindo apenas quanto à posição. Há,
como resultado, quatro e apenas quatro configurações acessíveis ao
sistema na caixa. A e B podem ficar juntas no lado direito da divi­
sória ou no esquerdo, ou podem ir uma para cada lado. Essas pos­
sibilidades estão listadas em uma notação que dispensa explicação:
AB; A —B; B —A; BA.
Agora, se A e B estão se movendo aleatoriamente, e, portan­
to, existe uma probabilidade de um em dois de que estejam em um
dos lados da divisória, cada uma dessas quatro possibilidades tem
precisamente a mesma probabilidade, ou seja, uma em quatro.
E no entanto, como Boltzmann percebeu, há um sentido no
qual o mundo representado por essas quatro moléculas, organi­
zadas em quatro configurações possíveis nos limites de uma única
caixa dividida — o universo imaginário todo — dá uma indicaíção
muito sutil de impropriedade descritiva; porque dessas quatro con­
figurações, duas são virtualmente indistinguíveis, porque A e B são
virtualmente idênticas.
Observando o sistema de um ponto de vista m acroscópico , em
que a temperatura, a pressão ou a energia é mensurada, o físico
não tem como distinguir se A - B ou B —A prevalece. Seguindo
Boltzmann, ele assim chega à conclusão radical e inesperada de

282 David Berlinski


<|ue ao mesmo tempo em que o sistema tem quatro microestados
(AB; A — B ; B —A; BA), tem apenas três macroestados (AB, BA
(‘ A — B ou B —A). Essa é uma percepção de requintada agudeza.
O modo como configurações e macroestados variam pode ser
expresso por uma simples observação matemática, de natureza
inteiramente combinatória. Se h á N moléculas para começar, onde
N é 10 ou 10.000, e n representa o número das moléculas que
estão no lado direito da divisória e n * o número das que estão à
esquerda, então o número de configurações que correspondem a
cada macroestado é dado pela distribuição binomial

N!
( n\ X n*\)

A memória, que até então supriu esse pequeno ensaio, agora


supre seu prenúncio. Como tantas fórmulas da matemática ou das
ciências em geral, esta requer atenção antes que possa vibrar com
todas as cores do espectro. Mas vibra. Assim, no caso que eu
mesmo inventei, havia duas moléculas no total, A e B . O fatorial
de um número (denotado por N!) é o produto desse número por
cada um dos números menores do que ele, sendo 0!, por definição,
I. N! portanto é simplesmente 2. O fatorial de n\ é 1. Se n e n * são
ambos 1, N\/(n\ x n*\) = 2, e há duas configurações compatíveis
com o único macroestado democrático. Se A e B são segregados
juntos em um dos lados da divisória, então n = 2 ou n* = 2, e em
qualquer um dos casos, N\/(n\ x n*\) = 1. Há apenas um a confi­
guração compatível com cada um dos outros macroestados.
Vamos usar novamente a imaginação. Aquela caixa até agora
loi só bolas ricocheteando, paredes confinantes e energia aleatória.
O que mais poderia haver? E no entanto, com a obra de outro roman­

O ADVENTO DO ALGORITMO 283


cista sutil e engenhoso a sua disposição, Boltzmann fez outra coisa,
investindo aquela caixa fechada imaginária em uma coisa total­
mente abstrata, capaz de aumentar ou diminuir, capaz de ser
expressa como uma propriedade quantitativa, algo que pertence à
ampla e nobre classe de propriedades que são mensuráveis.
A entropia do sistema.
A relação entre a entropia de um sistema e sua configuração,
Boltzmann expressou por meio do formalismo de uma lei
matemática. Para qualquer estado macroscópico n de um sistema
de N partículas que interagem, a entropia de n é proporcional ao
logaritmo de onde Cln é simplesmente todo o conjunto de con­
figurações compatíveis com n. (Boltzmann escolheu o logaritmo
para tornar mais lentas as descrições do sistema, já que a função
logarítmica cresce lentamente a princípio.)
Em símbolos:

Entropia de n = k log f l n.

Aqui, k é a constante de Boltzmann, um número fixo projeta­


do para simplificar as manipulações matemáticas internas.
A lei sugeriu a Boltzmann uma generalização de grande alcance
de uma relação física limitada. Por um lado, a entropia é uma quan­
tidade que se pode esperar que cresça sem remorso. A desordem
anda a passo acelerado no mínimo porque a desordem pode ser
alcançada de muitas maneiras. Segue-se agora uma generalização
com implicações importantes: embora os exemplos que entraram
na construção da termodinâmica tivessem sido tirados da teoria
dos gases perfeitos, a idéia básica — e crucial — foi expressa pelo
isolamento do sistema de influências externas. Revirando seus
pensamentos, Boltzmann se deu conta de que o próprio universo é

284 David Berlinski


um sistema isolado; afinal, se o universo é tudo o que há, que
inlluência externa poderia afetar seu comportamento? Se a entropia
cresce em sistemas fechados, deve crescer em toda parte também,
incluindo o sol que brilha, o sistema solar, a Via Láctea, as galáxias
:ilém, e, finalmente, toda a vasta estrutura do espaço e do tempo.
I 'Istes também devem tender inexoravelmente para seu estado mais
provável, no qual a entropia se encontra em seu valor máximo, o
universo, no fim do tempo, vazio, imóvel, desinteressante, flácido,
pálido e achatado.

m m m M Naquela noite, ficamos deitados um nos braços do outro,


acordados e depois dormindo, imaginando de tempos em tempos o
<|iie estava fazendo aqueles estranhos barulhos no bosque e nos
campos, e finalmente decidindo que era uma coruja ou outro pás­
saro noturno, ou um inseto com imensas mandíbulas ou um mão-
pelada, ou absolutamente nenhum destes, pelo contrário, algo si­
nistro, um tigre, talvez, ou uma onça-pintada, com perversos olhos
amarelos brilhantes como os de Stalin.
Quando acordamos, o sol já ia alto no céu, e uma mosca muito
irritada estava circundando os sacos de dormir sujos, investindo,
Ioda vez que achava que não estávamos olhando, contra os farelos
de bolinho que haviam sobrado da noite anterior.
Naquela tarde, o tempo ficou úmido; ao anoitecer, grandes
nuvens de tempestade haviam se juntado acima das montanhas; à
noite, choveu regularmente; ficamos os dois constipados, sujos, e,
quando voltamos para Nova York, Heloise segurou minha cabeça
com seus dedos longos e beijou minhas pálpebras com ternura
abstrata.
■ ■ U B

O ADVENTO DO ALGORITMO 285


E no entanto, a relação que Boltzmann propôs entre o número
de configurações latentes em um sistema fechado e seus macroes-
tados é metafísica no sentido de que, para qualquer sistema realís­
tico, simplesmente não há como fisicamente contar as configu­
rações relevantes. Antes do advento do algoritmo, a termodinâmica,
como boa parte da física clássica, exibia notáveis poderes expli­
cativos, mas nenhum esquema concomitante de verificação deta­
lhada. As coisas desmoronam. Dá para ver isso. A desordem sobre­
puja a ordem. Dá para ver isso também; mas a entropia, por mais
que tenha ganhado uma identidade numérica, continua inacessível,
no mínimo porque em sistemas razoavelmente grandes denota uma
quantidade que cresce de um modo que podemos sentir, mas não
ver em detalhes.
Por mais potente que seja um computador — agora ou no
futuro —não é possível lidar diretamente com a entropia: o número
de microestados de um aglomerado de partículas é simplesmente
grande demais. Apenas o mundo real é capaz de simular fielmente
a si mesmo, um fato estranho e perturbador, e que devia ser mais
amplamente compreendido. Mesmo assim, o advento do algoritmo
tornou possível explorar a termodinâmica indiretamente, por meio
de uma inspeção deliberada mas artificial do comportamento
microestático de um sistema de partículas que interagem.
O problema de simular um sistema que não se pode ver não
é trivial —na física ou na arte. Um algoritmo, ou uma história, deve
criar um mundo. E foi um mundo desses que o físico Shang-Keng
Ma criou, baseando sua idéia na antiga noção de recorrência. Um
sistema de moléculas em movimento muda de configuração a toda
hora; mas, não importa o tamanho do sistema, existe —só pode exis-

2 86 D avid Berlinski
1ir — apenas um número finito de configurações. A recorrência é
assim uma característica de qualquer sistema dinâmico finito,
nina configuração qualquer das moléculas em uma caixa fechada
estando fadada a reaparecer no futuro distante, muito distante,
liste fato simples é a base do famoso teorema da recorrência de
l\>incaré, que diz, grosso modoyque, mais cedo ou mais tarde, o que
(|uer que tenha aparecido está fadado a reaparecer, uma perspec­
tiva que deixa alguns de nós com um sentimento indisfarçável de
apreensão.
Foi de Ma a idéia simples, mas muito engenhosa, de medir a
entropia como uma propriedade observável de uma simulação de
computador procurando por coincidências entre microestados não
correlacionados. Deixa-se o tempo digital correr; fica-se à espreita
de possíveis coincidências. Quanto maior o intervalo de tempo
*.cm que aconteçam coincidências, menor o número de microesta-
tlos procurados e, portanto, menor a entropia do sistema. Quanto
maior o número de coincidências, maior o número de m icroesta­
dos procurados, daí, maior a entropia.
Em vez de lidar diretamente com a entropia e, portanto, com
o inundo real, Ma definiu uma quantidade que ele denominou taxa
de coincidência, RM
, de um conjunto de moléculas simuladas.
( !om o físico a postos para mergulhar e tirar uma amostra do fluxo
de tempo simulado, Rn denota a razão entre microestados duplica­
dos e o número total de microestados que foram comparados e
contrastados. Assim, se o físico pega como amostra cem microes-
lados e descobre que dois são iguais, Rwé 2/100.
Usando essa idéia engenhosa, Ma substituiu a lei de Boltz­
mann pela sua, elevando a própria imaginação a um status trans­
cendente:

O ADVENTO DO ALGORITMO 287


Entropia simulada d e n = k log .
Rn

É fácil confundir a relação expressa por essa lei com a que


Boltzmann presumiu ser uma lei da natureza; é fácil, também, achar
que Ma está apenas apresentando um esquema para a solução das
equações da termodinâmica clássica. Mas não é isso. A entropia
simulada é uma propriedade de um mundo simulado. Nos limites
desse mundo, Ma está no comando, sendo absoluto seu controle
sobre o tempo e a decadência. É comum chamar a um mundo desse
tipo de virtual, como se fosse capaz apenas de captar uma pálida imi­
tação das emoções do mundo real; mas não há nada de virtual em
nada disso. Em muitos aspectos, é muito mais acessível do que esse
outro mundo onde vivemos e morremos e que oculta suas partículas
em nuvens de ignorância e encobre até seus processos mais óbvios
em números grandes demais para serem notados. Este mundo é
totalmente acessível, suas leis perfeitamente lúcidas, e os processos
que descreve totalmente subservientes às leis que os descrevem.
Com certas modificações, o algoritmo do programa caixa já
citado vai fazer a simulação a contento. A definição de Ma depende
da especificação de um macroestado muito particular: n. A fim de
simular essa dependência, o número de partículas imaginárias à
esquerda ou à direita da divisória imaginária é mantido constante.
Isto é suficiente para se especificar os estados. Daí em diante, o
sistema evolui por perm uta de partículas, como se seu comporta­
mento dinâmico estivesse se dando em um leilão.
O programa a seguir calcula a entropia de um sistema simu­
lado, com resultados, devo acrescentar, totalmente de acordo com
as predições da termodinâmica.

288 David Berlinski


I ’ROGRAM ENTROPY4
DIM left(10),right(10),micro(0 to 2000)
RANDOMIZE
I Input parameters and choose initial configuration of particles
CALL initial(nl,nr,left,right,micro,nexch)
CALL exchange(nl,nr,nexch,left.right,micro) I exchange particles
CALL output(nexch,micro) I compute coincidence rate entropy
l*ND

SUB initial(nl,nr,leftO,rightO,microO.nexch)
I fix macrostate
IMPUT prompt “total number of particles = “:N
IMPUT prompt “total of particles on the left = “:nl
LET nr = N - nl ! number of particles on the right
LET micro (0) = 0
FOR il = 1 to nl
LET left(il) = il ! list of particle number on left side
LET micro(O) = micro (0) + 2~il ! initial microstate
NEXT il
FOR ir = 1 to nr
LET right(ir) = ir + nf ! list of particle numbers on right side
NEXT ir
INPUT prompt “number of exchange =”: nexch

SUB exchange(nl,nr,nexch,leftO,rightO,microO
! exchange particle number on left corresponding to lindex
! with particle on right corresponding to rindex
FOR iexcg = 1 to nexch
! randomly choose array indexes

4. Programa entropia (linguagem de computador: True BASIC). Harvey Gould e


Jan Tobochnik, An Introduction to Computer Simulation Methods; Applications to
Physical Systems. Reading, Mass., Addison-Wesley, 1988, vol. 2, p. 493.

O ADVENTO DO ALGORITMO 289


LET lindex = int(rnd*nl + 1) ! left index of array
LET rindex = int(rnf*nr + 1) ! right index of array
LET left_particle = left(lindex)
LET right_particle = right(rindex)
LET left(rindex) = right_particle ! new particle number in left array
LET right(rindex) + left_particle ! new particle number in right array
LET micro(iexch) = micro(iexch - 1) + 2y'right_particle
LET micro(iexch) = micro(iexch) - 2~left_particle ! new microstate
NEXT iexch
END SUB

SUB output9nexch,micro0)
! compute coincidence rate anda entropy
LET ncomparisons = nexch*(nexch - 1)/2 ! total number of
comparisons
! compare microstates
FOR iexch = 1 to nexch - 1
FOR jexch = iexch + 1 to nexch
IF micro(iexch) = microflexch) then
LET ncoincidences = ncoincidences + 1 ! number of
coincidences

END IF
NEXT jexch
NEXT iexch
LET rate = ncoincidences/ncomparisons ! coincidence rate
IF rate > 0 then LET S + log(1/rate)
PRINT “estimate of entropy + “,S
END SUB*

A lei de Ma tenciona lançar luz sobre a estrutura microscópi­


ca de um universo em miniatura, que por sua vez tenciona^ser um
substituto da estrutura microscópica do universo em miniatura de

290 D avid Berlinski


Boltzmann. M as essa concordância curiosam ente satisfatória entre
os mundos foi conseguida por meio de suposições que ao mesmo
(empo que parecem razoáveis são, apesar disso, arbitrárias. Introdu­
ziu-se uma cascata de teorias m atem áticas para lidar com a expe­
riência, e nem todas as teorias foram feitas do mesmo tecido. As
experiências que são os objetos de nossas reclam ações, com isera­
ções ou congratulações muito pessoais foram cortadas, arrumadas
(‘ redescritas tal que depois de aparecerem originalmente em uma
história possam mais tarde reaparecer em outra. A fim de con se­
guir fazer qualquer coisa, os físicos foram forçados a depender do
algoritmo, um artefato alheio a quaisquer das atividades que eles
lencionam descrever, com resultados que com prom etem , e com ­
prometem fatalm ente, aquela convicção inocente de que existe
nisso tudo um mundo que aguarda, um sistema de descrição, uma
descrição detalhada da experiência.
Quando os processos físicos não são tanto especificados
quanto imaginados, quem é o dominante e quem o dominado?

m m m m Doze anos depois do beijo de Heloise, com minhas pálpe­


bras ainda queimando, fui parar em São Francisco. A mulher por
quem eu havia cansativam ente cruzado um continente desapare­
cera dois m eses depois de eu ter chegado na Califórnia; um dete­
tive particular chamado Asherfeld a localizou finalm ente em um
local de retiro religioso no Oregon. Eu havia me casado novamente
antes disso , e me divorciado. Minhas ex-esposas (três no total) for­
mavam uma pequena sociedade na qual reclam ações a meu
respeito ricocheteavam pelo continente.
O departam ento de m atem ática de Berkeley havia me convi­
dado a dar uma palestra; precisava organizar meus pensam entos:

O ADVENTO DO A L G O R ITM O 2 91
eu havia andado sem saber por quê de meu apartamento em Pacific
Heights até o lado leste do Parque Golden Gate. O dia estava calmo,
perfeitamente coordenado. O céu estava daquele azul metálico
enlouquecedoramente indefinível característico da Califórnia; a
grama de pleno inverno estava verde, vibrante, e uma procissão in-
comum.de melodramáticas nuvens do tipo cúmulo-nimbo, refu­
giadas perplexas, imagino, do M eio-Oeste, haviam se acumulado
no horizonte. O caminho que atravessa o parque e termina final­
mente numa praia oceânica, local de encontro naquela parte da
cidade de traficantes de drogas adolescentes e cachorros sem rumo
que depositam seus excrementos na areia amarela, estava fechado
para o tráfego. Bem na frente do jardim botânico, a rua ganha um
aneurisma para acomodar uma variedade de ruas secundárias con­
centradas em obliterarem a si mesmas por anastomose. Nos fins de
semana, os patinadores se reúnem ali para se exibir e praticar.
Haviam instalado um imenso conjunto de alto-falantes na calçada
e estavam bombeando um ritmo maniacamente monótono e pesa­
do no ar fresco. Dois jovens negros esguios desenhavam pequenos
loops na trilha, indo de um lado da rua para o outro, patinando de
costas o tempo todo. Um branco de meia-idade ferozmente deter­
minado, compacto, músculos definidos e um ar de intensa concen­
tração como a de um dentista, estava se esforçando para insinuar
seus movimentos um tanto brutos, inevitavelmente desajeitados,
na esfera fluida dos arabescos graciosos dos dois.
Parei para absorver a cena. O dentista patinou até a calçada,
fazendo barulho com seus patins, para entregar a camisa de malha
pingando de suor para uma namorada que carregava uma câmera;
com as mãos formando um quadrado como um diretor de cinema
(os dedões apontados um para o outro e os indicadores para cima),
ele indicou a ela o panorama soberbo que imaginava: o verde lúcido

292 David Berlinski


da grama ao fundo e, no primeiro plano, ele mesmo dançando
como um Nijinsky louco; os dois negros iam de um lado para o
outro como fumaça.
O que mais? Vejamos. Havia uma carrocinha de cachorro-
<|uente depois do círculo de patinadores, um grupo secundário de
rxibicionistas muito mais jovens que faziam truques em bicicletas,
uma jovem imensamente grávida que empurrava um carrinho de
bebê, com um cachorro ofegante andando atrás dela, e um homem
de barba comprida com um papagaio verde no ombro.
Uma garota alta de uns dezoito anos, percebi então, que pare­
cia irritada, estava parada na calçada. Usava short rosa-berrante
iridescente; estava de patins e mexendo com quase todo o torso só
para ficar parada no lugar; tinha cabelo laranja mechado e estava
usando um monte de pancake. Estava obviamente indignada com
alguma coisa, porque estava parada naquela pose instável enquan-
lo lançava uma saraivada de reclamações em uma monótona língua
estrangeira.
O objeto de sua indignação estava agachado junto ao meio-fio.
Era Heloise, é claro, talvez com três quartos da idade da irmã (estou
supondo que esta era a relação entre elas), mas igualmente alta, a
julgar pela impressão que ela dava, mesmo sentada, de suave res-
plandescente comprimento. Estava vestida como a irmã, com short
cor-de-rosa de cetim e uma camiseta apertada; usava uma pulseira
feita com quadrados de porcelana em seu pulso fino e minúsculos
brincos com formato de botões nas orelhas em forma de conchas;
as pernas estavam dobradas em seus delicados joelhos de antílope;
os pés travessos em botas brancas de patins, apareciam por sob as
coxas. O rosto adorável, límpido e totalmente pueril estava contor­
cido em um espasmo de dor insuportável. Os olhos eram cinza, os
cílios de baixo borrados e sujos, os lábios esfolados como pêssegos

O ADVF.NTO DO ALGORITMO 293


descascados, como se ela os estivesse mordendo, a delicada pele
azulada de suas narinas tensas e móveis estava rachada.
Eis o que ela fez (enquanto o tempo engatinhava e depois pa­
rava): sacudiu as mãos diante do rosto, levou-as ao colo, levantou-as
novamente e com um gesto descuidado e emocionado limpou os
olhos borrados, passou a ponta dos dedos pelo cabelo castanho e
levou as mãos novamente ao colo, os ombros caindo como pétalas.
Estava se lamuriando o tempo todo naquela linguagem monó­
tona dela (sueco, creio) e fungando, a lamúria só interrompida de
vez em quando por um novo conjunto de fungadas que sacudiam
os ombros estreitos, e quando a dor atingia algum limiar melodra­
mático interno, ela inspirava forte, com o queixo para cima, levan­
tando os ombros, e girava o cotovelo na depressão da virilha,
apoiando o braço contra o peito, e esbofeteava o ar (e por inferên­
cia, sua irmã) impacientemente com a palma da mão de dedos lon­
gos, o pulso mole.
Aquela irmã impassível, parada indiferente a todo aquele
esplendor cristalino, continuava a tagarelar e a reclamar.
E lá estava eu, parado, com o coração contundido; só queria
dobrar aquela criatura em quatro em meus braços (as pernas dobra­
das, como um veadinho, braços recolhidos) e acalentá-la gentil­
mente e soprar ar quente em seus cabelos sedosos que acompa­
nhavam sua nuca e formavam um dourado halo almiscarado.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, com magnífica irre
levância.
Ela levantou os olhos molhados para mim, confusa por apenas
um instante, e sorriu o mais tímido dos mais frágeis e esboroáveis
dos sorrisos.
Levantou-se, ainda soluçando de indignação, mas agora mais
calma, e depois de dizer algo ofensivo à irmã, começou a patinar

294 David Berlinski


para leste ao longo do caminho, movendo-se com longas passadas
descoordenadas de uma adolescente perturbada.
E nada mais. Fiquei parado na rua observando-a diminuir até
que por meio de algum esquema ou sistema secreto ela conseguiu
se transformar de mulher muito jovem de pernas longas usando
patins em uma mancha a meia distância e depois em palpitante
ponto (cabelo castanho ainda esvoaçando) nos confins mais dis­
tantes da minha linha de visão.
■ ■ SB

Apêndice:
M un dos em c o l i s ã o

() mundo pelo qual o físico tem andado por mais de trezentos anos
sem cansaço torna-se possível pelo grande aparato matemático das
equações diferenciais ordinárias e das equações diferenciais parciais;
nem é preciso dizer, obviamente, que os físicos não conseguem
resolver a maioria das equações diferenciais, e a maioria das equações
diferenciais interessantes não pode ser resolvida analiticamente.
As equações que não podem ser resolvidas analiticamente são
.iiialiticamente intratáveis; as informações que contêm estão enco­
bertas pela catarata de nossa própria incompetência matemática.
I\ um alívio e é também uma advertência descobrir que equações
intratáveis, embora não possam ser resolvidas, podem, não obstante,
*.er simuladas. A questão surge muito claramente mesmo em um
(\'iso simples, que está em todos os livros didáticos. Começa, como
iodos os casos científicos, com uma pergunta de aparência sim­
ples: como se descreve um processo de crescimento uniforme (ou

O ADVENTO DO ALGORITMO 295


decréscimo) —o padrão exemplificado, por exemplo, pelo compor­
tamento de uma colônia de bactérias crescendo em uma placa dc
Petri? Contar é uma estratégia evidente, mas, além de observar
que há mais bactérias agora do que havia antes, ou menos, con­
forme o caso, essa é uma técnica que parece cientificamente infe­
liz porque é cientificamente impossível. Bactérias demais, tempo
de menos.
O que se quer é um esquema descritivo que permita que o
matemático calcule o número de bactérias em algum momento do
futuro (ou do passado: o tempo segue em ambos os sentidos), dados
apenas esse esquema e o número de bactérias existentes no momen­
to. Note que são duas as restrições: esquema e número têm de dar
conta de todo o serviço. Quando o problema é descrito assim,
adquire o aspecto familiar de um problema de valor inicial, repre­
sentado matematicamente por uma equação diferencial ordinária
muito simples:

= A/O)
dt

A expressão/(t) denota uma função e, portanto, um processo,


que mapeia o tempo ao número ou à quantidade de bactérias, tal
que se t é um momento em particular do tempo, f(t) é uma quan­
tidade em particular, a genialidade da notação está em sua habili­
dade de proporcionar uma lista interminavelmente extensa na qual
cada momento do tempo está coordenado a alguma massa ou peso
de bactérias. Sua natureza matemática como função é por enquanto
desconhecida. A expressão A é o nome de um número, chamado
de constante de proporcionalidade, que indica a proporção de bac­
térias que estão se reproduzindo; é um número que permanece
fixo por todo o exercício, tal que, não importa se existem dez ou

296 David Berlinski


dez mil bactérias naquela placa de Petri, apenas uma proporção
fixa delas está se reproduzindo em qualquer instante de tempo.
A expressão df(t)/dt não é bem uma razão, embora assim o
pareça, mas sim uma expressão singular, a derivada da função f(t).
No universo do cálculo, ela serve para denotar a taxa de variação
da própria/com o passar contínuo do tempo e, portanto, é expres­
sa como o limite de uma seqüência de razões na qual a quantidade
cm questão (neste caso, o número de bactérias) é dividida pelo
(empo na medida em que o tempo transcorrido (indicado por Aí)
lende a 0:

4f(t) = ]im f(h)


dt Aí—^0 At

O conceito de limite, embora definido com precisão no cál­


culo por um complexo de delicadas restrições, se refere contudo a
um processo infinito, com o próprio infinito estando no fim de
uma série infinita de passos. A derivada de uma função diz pre­
cisamente a cada instante do tempo com que rapidez ou lentidão
um processo está ocorrendo.
Com esta explicação sobre a mesa, o significado da equação
diferencial que agora segue

= A/(í)
dt

expressa a afirmação de que a taxa de variação d e f(t), o número de


bactérias no instante t, é proporcional, em í, à própria f(t).
E isso tem sentido. A velocidade com que uma colônia de
bactérias vai crescer depende do número absoluto de bactérias à
mão e da porcentagem relativa de bactérias que estão se repro­

O ADVENTO DO ALGORITMO 297


duzindo. Quantas? Quanto? As questões de comércio; as questões
da vida.
As equações são por natureza atos de especificação às cegas;
algo corresponde a alguma condição. A condição, ou condições, é
dada; é o algo que precisa ser encontrado. A especificação às cegas
corresponde ao familiar e nada misterioso processo por meio do
qual uma sentença em que aparece um pronome —Ele fuma —ganha
um selo de especificidade quando o antecedente do pronome c
dramaticamente ou modestamente revelado —Winston Churchill,
digamos, ou um fumante relapso filando um cigarro no banheiro.
A equação diferencial que descreve o crescimento uniforme
admite uma solução simples mas totalmente geral por meio da
função exponencial

f(t) = keAt.

O número e é um número irracional que fica a sotavento da


faixa entre 2 e 3 e representa, como n , um papel estranho e essen­
cialmente inescrutável por toda a matemática; a exponenciação eleva
e a uma potência, neste caso, uma potência especificada pelos
números A e t. A constante k tem uma interpretação como valor
inicial do problema, que consiste na enumeração do número (ou
peso ou massa) de bactérias.
E a indicação de que keAt é a solução procurada da equação
original? Apenas que o cálculo, novamente, estabelece que a
derivada de keÁt não é outra que não Af(t).
A equação diferencial tem o estranho poder de visitar o futuro
(ou o passado, conforme o caso) e ocupa sua posição no panteão
do físico exatamente por essa razão. A variável t tem por valor o tem
po, e, à medida que o tempo corre para trás ou para a frente n;i

298 D avid Berlinshi


imaginação do matemático, keAt dá um relato corrente do aumen­
to ou da diminuição e, portanto, um relato corrente da mudança.

E notável que o controle temporal alcançado pelo que são afi­
nal apenas meramente símbolos seja diferente de tudo o mais na
linguagem ou em suas tradições ou leis; mas, quando bem-sucedi­
da, a especificação às cegas consegue fazer uma análise da expe­
riência que vai além de qualquer predição específica e abarca um
universo de possibilidades que flana discretamente nos bastidores.
Os quatorze símbolos que formam a equação

= Af(t)
at

não dão apenas um severo controle quantitativo sobre a extensão


infinita do tempo: também proporcionam uma avaliação qualitati­
va abrangente e profética das várias maneiras nas quais o tempo
pode se esgotar. Coisas cuja quantidade pode aumentar, afinal,
também podem ter sua quantidade diminuída, ou podem ter sua
quantidade invariável. E essas possibilidades correspondem a uma
•.eparação imaginária do tempo em passado, presente e futuro.
Kl as são, essas possibilidades, estipuladas em virtude do sinal de
A. Positivo, A significa aumento; negativo, A significa diminuição;
e se A = 0, nada acontece, e não há aumento nem diminuição.
Aumento, diminuição e o nada aparecem como gráficos em um sis­
tema de coordenadas cartesianas, cada família de curvas ocupando
uma posição na grande e bela família de funções exponenciais
(veja a figura 12.1).
O futuro agora ganhou um matiz policromático ainda mais
notável do que pode ser imaginado, na medida em que tons vívi­
dos de aumento, diminuição e nada servem para transmitir infor-

O ADVENTO DO ALGORITMO 299


mação não apenas sobre o formato do futuro como também sobre
sua estabilidade. A estabilidade leva a discussão de volta aos esta­
dos, situações ou soluções que modificam sua natureza funda­
mental sob pequenas perturbações.
A equação diferencial que governa o aumento uniforme se­
para o tempo em três fases: duas destas, o aumento e a diminuição,
são estáveis, pequenas perturbações na constante A que governa a
proverbial placa de Petri servindo apenas para mudar a taxa, mas
não a natureza essencial do processo em progresso. A estabilidade
prevalece onde há mudança. A estase é outra coisa. Se A = 0, a menor
variação em seu valor muda, e muda drasticamente, a natureza das
soluções. Algo que estava cochilando tranqüilamente no fluxo do
tempo de repente adquire a capacidade de aumentar ou diminuir.
A visão policromática do universo é uma oferenda dentro de outra
oferenda, como aqueles lindos ovos Fabergé onde há um ovo den­
tro de outro ovo.

A= 0 A < 0

12.1 .Retratos das três fases de —& 1 . = Af(t).


dt

As equações que não podem ser resolvidas analiticamente


podem, todavia, ser simuladas. As técnicas para a simulação analíti-

300 D avid Berlinski


ra variam, mas são todas construídas por meio da invocação de um
nlgoritmo específico para cada caso por técnicas de cálculo pura­
mente numéricas, discretas e finitas. A técnica mais elementar é,
na verdade, derivada do próprio cálculo, motivo pelo qual o cálculo
ó chamado de cálculo.
A integral definida

F = f(x)dx

aparece no cálculo tanto como fonte de uma expressão analítica (F


sendo, é claro, uma função) quanto como um meio de designar a
jírea abaixo de uma curva entre os pontos a e b ; nisto, sua encarnação
geométrica, tem uma identidade como limite de uma seqüência de
somas:

lim A lJ
Aí—>0 í - u a

Os exemplos dos livros didáticos mostram o que isso quer


dizer. A área abaixo da curva é dividida em retângulos e, à medida
que os retângulos vão ficando cada vez menores, a aproximação da
area abaixo da curva vai ficando cada vez melhor. Cada vez melhor?
Isso quer dizer melhor à medida que os intervalos vão ficando cada
vez menores, tal que no limite ela fica perfeita e irrefutável, o li­
mite representando não apenas uma aproximação à área, mas seu
valor real e absoluto (veja a figura 12.2).
Há um preço, é claro, a pagar pela irrefutabilidade matemáti­
ca, assim como há um preço a pagar por tudo. Chega-se ao limite
- estranha a bizarra ressonância dos termos matemáticos —dando-

O ADVENTO DO ALGORITMO 301


12.2. Integração numérica.
;e um número infinito de passos. E necessário fazer concessões à
experiência, ingressar em um universo imaginário, pois quem de
iós consegue correr uma corrida tão longa?
Todavia, a integral

/= J ^ f(x)dx

)ode ser calculada numericamente por meio de um programa sim-


>les, mesmo quando f(t) = e l . E como o leitor deve há muito
empo ter conjecturado, a fórmula para a integração numérica é
implesmente a fórmula para a própria integração, despojada da
>assagem ao limite, tal que

b
F = tjfjtj).
a

02 D avid B erlin ski


O resultado é, obviamente, uma aproximação da área abaixo
da curva, feita com a plena consciência do erro inevitável que
acompanha a aproximação.
A aproximação poder ser melhorada cada vez mais, mas só pode
ser melhorada em um número finito de passos, então continua
dentro do limite mal-assombrado mas humano de técnicas de
cálculo puramente humanas.
O algoritmo a seguir dá conta precisamente desta tarefa de
aproximação:

PROGRAMA integ5
! compute integral of f(x) from x = a to x = b
CALL initial(a,b,h,n)
CALL rectangle(a,b,h,n,area)
CALL output(area)
END

SUB initial(a,b,h,n)
LET a = 0 ! lower limit
LET b = 0.5*pi ! upper limit
INPUT prompt “number of intervals = “: n
LET h = (b - a)/n ! mesh size
END SUB

SUB rectangle(a,b,h,n,area)
DECLARE DEF f

5. Algoritmo para integração numérica. Harvey Gould e Jan Tobochnik, An


Introducion to Com puter Simulation Methods; Applications to Physical Systems.
Reading, M ass., Addison-Wesley, 1988, vol. 2, p. 321.

O ADVENTO DO ALGORITMO 303


LET x = a
FOR i = 0 to n - 1
LET x = x + h
NEXT i
LET area = sum*h
EBD SUB

SUB output(area)
PRINT using “####.#######”: area
END SUB

DEF f(x) = cos(x)*

A mesma técnica basta para dar uma solução numérica para


equações diferenciais ordinárias que não têm solução analítica e
que, portanto, não podemos fazer com que mostrem seu brilho
policromático. Suponha que

é precisamente uma equação dessas, uma afirmação de mudança


na qual nada de acessível corresponde a/fí) — (o y, que está no
lugar d e f(t ) dentro deg(t,y ), por falar nisso, aparecendo mais for­
malmente no lado direito da equação como uma variável).
Tendo a busca por uma resposta analítica sido comprovada-
mente inexeqüível —quero dizer que esta é a suposição que estou
fazendo —, sobra a técnica de integração numérica. Existem muitas
técnicas dessas na literatura, mas a chave para todas elas, obvia­

304 D avid Berlinski


mente, é a aproximação. No cálculo, a derivada corresponde à incli-
n.içao da tangente. A aproximação é construída (ou tramada) com
Klo em mente:

dm
= g(t>y) = / (t; + At) —/(tj) = g(ti, /(ti)) + O (A t)

A despeito das impressões em contrário, não há nada de assus-


Ijidor nos detalhes dessa expressão. Lendo da esquerda para a direi-
Iji, a equação Hiz que três coisas são idênticas. Mas isso já sabemos.
I\n disse isso antes, e você tem a minha palavra. O que vem a seguir
e o símbolo que indica aproximadamente. A derivada da função
f(t), a expressão afirma, pode ser aproximada pelo valor deg(tj,f(tj))
e um termo de erro, que é designado por 0 (A t ).
Mas, pela álgebra elementar, isso é equivalente a dizer que

f(ti + At) «/(O + g(tiyf(ti)) X Aí,

o erro permanecendo o que era e onde estava.


De um ponto de vista matemático, a equação diferencial ori­
ginal, dependente como era do conceito de limite, foi substituí­
da por uma equação de diferenças, na qual a derivada é aproxi­
mada por um quociente de diferenças que não envolve nenhum
limite.
A grande virtude desse procedimento é que ele se presta a ser
implementado por meio de um algoritmo, com cada novo ponto
solução da equação diferencial aproximado pelo valor da tangente
no ponto dado. E assim é o algoritmo ou método de Euler. Eu o
apresento, a seguir numa língua franca de computador facilmente
compreensível:

O ADVENTO DO ALGORITMO 305


COMECE Euler6
DADOS DE ENTRADA xO,yO,xf,h
x : = xO
y : = yo
ENQUANTO (x < xf) FAÇA
y : = y + h * f(x,y)
x := x + h
DADOS DE SAÍDA x, y
FIM DO FAÇA
FIM do Euler

O algoritmo de Euler não é de forma alguma a ferramenta mais


afiada ou a mais eficiente, mas, em casos simples, funciona, e são os
casos simples que emitem a luz mais nítida, porém mais áspera.
Dizer que o algoritmo funciona é dizer que em um período finito de
tempo, e atuando entre dois pontos geométricos, o algoritmo irá
passo a passo gerar uma solução que satisfaz à equação diferencial
original —isso a menos que haja um erro especificado.
Mas a diferença entre uma solução analítica e uma solução
algorítmica de uma equação diferencial ordinária é aguda e inesca-
pável. Uma solução analítica cobre completamente o futuro e o
passado; uma solução algorítmica atua apenas sobre um intervalo
finito de tempo e espaço. Uma solução analítica devolve uma equa­
ção diferencial a um mundo contínuo; uma solução algorítmica, a
um mundo que é discreto. Uma solução analítica é infinita, uma

6. O algoritmo de Euler. Joh n W. Harris e Horst Stockler, H a n d b ook o f M athe-


m atics an d C om p u tation al S cien ce. Nova York, Springer, 1 9 9 8 , p. 6 7 7 .

306 D avid B erlin ski


solução algorítmica, finita. Uma solução analítica proporciona uma
visflo policromática do mundo; uma solução algorítmica, uma visão
monocromática. Questões de estabilidade permanecem não perce­
bidas e não resolvidas.
Essas diferenças não são apenas conceituais; são também prá-
ticas. Uma solução analítica deve ser descoberta; uma solução algo-
i II mica, executada. A solução analítica de uma equação diferencial
envolve uma bem-sucedida especificação às cegas, mas um algoritmo
projeta sua luz humana sobre apenas um intervalo estreito.
O advento do algoritmo trouxe um universo de equações para
d(*ntro dos limites do computador comum. Os físicos que não con­
seguem resolver completamente as equações de campo de Einstein
d;i Relatividade Geral podem, todavia, usar sofisticadas variantes
do algoritmo de Euler para examinar modelos em miniatura do
universo à medida que eles evoluem passo a passo a partir de um
conjunto especificado de condições iniciais. É muito excitante,
obviamente, observar essa aparente habilidade do algoritmo de dar
ri criação uma segunda oportunidade. Mas há um preço a pagar por
<*ssa cintilante formosura. Uma equação diferencial e sua solução
iinalítica pertencem ao mesmo universo de discurso, obedecem às
mesmas regras e gemem e se acasalam pelas mesmas leis. Um algo­
ritmo é uma entidade alienígena neste mundo, discreto, finito, se­
guindo os passos como lhe foi ordenado, sempre trazendo a marca
dc seu criador humano.

O ADVENTO DO ALGORITMO 307


1 3

U m a r t e f a t o da m e n t e

Um M ODO DE PENSAR FAZ SU RGIR um M UN DO. Digam o que dis­


serem, estamos ideologicamente presos às ciências físicas; como
qualquer afiliação ideológica, a nossa envolve comprometimentos
concebidos sem justificativa, comprometimentos esses que deter­
minam as provas, e não o contrário, e isso por meio de um proces­
so psicológico tão difícil de discernir quanto de negar. O maior
desses comprometimentos, e o menos examinado por ser o mais
tenazmente sustentado, é a crença de que o universo não passa de
um sistema de objetos materiais. Além desse sistema —o nada. Um
universo desses pode parecer repugnante para a maioria das pes­
soas, mas muitos cientistas se declararam satisfeitos com um mundo
onde só há átomos e o vazio, e esperam sua futura dissolução em
componentes materiais com alegre niilismo.
Mas uma sensação desconfortável, no entanto, prevalece —há
muito —: a de que a visão de um universo meramente físico ou
material é de certa forma incompleta; não pode englobar os fatos

308 D avid B erlin ski


familiares mas inescapáveis da vida comum. Um homem fala,
emitindo ondas pelo ar. Uma mulher ouve, os minúsculos ossos
delicados do ouvido interno vibrando por afinidade com os torveli­
nhos de sua voz. Uma vez tendo acontecido a troca meramente física,
<> que era som se torna o que foi dito ; aquecidos pelo ímpeto da
comunicação, os sons começam a luzir com significados tal que uma
corrente ondulante no ar pode transmitir um poema lírico, fazer
uma declaração de guerra, ou dizer com terrível finalidade que acabou.
Clompreender sons é algo que todo ser humano faz e que nada mais
pode fazer. Mais de três gerações de físicos matemáticos ficaram
velhas antes que seus sucessores compreendessem a radiação do
corpo negro; a associação entre sons e significados é mais misteriosa
do que qualquer coisa encontrada na física. E nós também estamos
esperando por nossos sucessores.

U ma o r t o d o x i a m o d e r n a

() grande corpo de desenvolvimentos na matemática que como


uma corrente viva informa a física matemática teve um papel
pequeno na explicação ou na descrição da mente humana (ou ani­
mal), por mais que sua existência possa expressar os poderes da
mente e, portanto, apontar para a possibilidade de um enigma. No
entanto, nos últimos tempos, a poderosa e perturbadora imagem
da mente humana como um dispositivo computacional, algo mar­
cado, como o computador digital, pela subordinação de sua rotina
a um sistema formal, deu início a um luminoso mundo novo que
compete com o antigo mundo abstrato e contínuo das ciências
físicas.

O ADVENTO DO ALGORITMO 309


O modelo simples de A. M. Turing de uma máquina de compu­
tar é talvez o maior dos artefatos intelectuais da humanidade, o pro­
tótipo tendo se tornado o próprio ideal platônico em um extraor­
dinário tour de force metafísico. Uma máquina de Turing é um
dispositivo para a manipulação de símbolos, e já que os símbolos
são abstratos,.uma máquina de Turing pode ser realizada em qual­
quer meio no qual símbolos possam ser inscritos.
Símbolos , note bem, e, assim, objetos com suas identidades
conceituais prementes e convincentes.
Essas considerações reforçam a convicção de que uma organi­
zação diferente do mundo está em desenvolvimento, animada por
princípios diferentes dos encontrados nas ciências físicas. O que quer
que um sistema computacional possa ser, é, em certo sentido, um
objeto transcendental, que, como a própria mente humana, transmi­
te por algum meio físico um algo imaterial, talvez informação, a coisa
que é armazenada, gravada, telegrafada, transmitida por fax, comu­
nicada, trocada, o fluido impalpável que penetra as fronteiras e limi­
tes internacionais, a descarga vivificante que robustece a matéria, a
qualidade essencial, metafisicamente falando, que dá forma e con­
teúdo ao mundo animado, o que sobra quando o meio da mensagem
é retirado da mensagem, a mensagem além do meio.
O matemático americano Claude Shannon deu ao conceito
de informação sua forma moderna, dotando a velha idéia familiar
de uma perspicaz estrutura matemática. Sua definição é uma das
pedras fundamentais da abóbada do pensamento moderno. A infor­
mação, percebeu Shannon, é uma propriedade que reside nos sím­
bolos, sua teoria assim confinada desde o início pelo artifício das
palavras. O que Shannon queria era um modo de incorporar a infor­
mação na categoria de propriedades contínuas que, como a massa ou
a distância, podem ser representadas pelos números reais. Shannon

310 D avid B erlin ski


compreendeu que os símbolos funcionam em um universo humano
onde as coisas em si são entrevistas através de uma névoa quente
de confusões e dúvidas, mas que, o que quer que uma mensagem
possa fazer além disso, sua função mais importante é dissipar as
incertezas, “Regozijai-vos, vencemos” deixando claro que um lado
perdeu, o outro ganhou, a conquista finalmente é um fato consu­
mado. Foi por meio desse soberbo insight que Shannon conseguiu
coordenar em um círculo límpido o que os símbolos fazem, a san­
fona das emoções humanas se fechando na dúvida e se abrindo na
certeza, e nos grandes conceitos clássicos da teoria da probabili­
dade. Um simples símbolo binário, sua existência suspensa entre
ilois estados igualmente prováveis (ligado ou desligado, 0 ou 1, sim
ou não), traz latente em si a promessa de reduzir um estado inicial
dc incerteza pela metade. A informação do símbolo, medida em
hitsy é, portanto, meio.
Como a entropia, a informação é uma quantidade temporal,
ligada à passagem do tempo. Antes que eu receba uma mensagem,
cu não sei; depois, eu sei. O tempo deve fluir para que o que está
oculto seja revelado. A definição de informação, e os teoremas a
que ela dá origem, se refere a um mundo no qual o dado revela os
segredos de seus lados a cada jogada, e as moedas, suas faces, e car-
l;is ou e-mails, seus conteúdos perturbadores e obscuros depois de
terem sido enviados e depois de terem sido lidos.
Shannon trabalhava no magnífico laboratório de pesquisa da
llell Telephone, e muito embora ele tenha dado prosseguimento a
suas idéias sem pressão corporativa, no fim ele estava interessado
<•111 levar ordem ao modelo original de comunicação do qual depende
o telefone: alguém fala, alguém ouve, e há algo mais atuando para
transmitir a mensagem entre eles; o telefone, obviamente. A estrutu-
iíi que Shannon imaginou envolvia um emissor e sua fonte, um sinal

O ADVENTO DO ALGORITMO 311


passando entre eles sob a forma de símbolos tirados de um alfabeto
finito e discreto.
Façamos esse alfabeto consistir dos símbolos S ly S 2,..., S n. Os
símbolos são indexados pelos números naturais: o primeiro símbo­
lo, o segundo símbolo, o terceiro e assim por diante. Os símbolos
são enviados de uma fonte por um emissor para um receptor e
assim a um destinatário. Cada símbolo ocorre com uma probabili­
dade a priori fixa. Se há cinco símbolos na mensagem, e cada sím­
bolo é enviado depois de pego aleatoriamente em um chapéu, então
a probabilidade associada a cada um é de um em cinco. Shannon
então definiu em termos de uma fórmula simples a informação que
existe em uma mensagem. Símbolos são dados com probabilidades
fixas. A soma de seus logaritmos é então tomada como a medida
básica de informação.

In form ação = — S log probabilidade Si


i<k

O logaritmo é usado para que os números não explodam inde-


corosamente, e o sinal da soma é invertido para devolver à soma
um número positivo. Mas mesmo sem os detalhes, o significado do
formalismo deve estar claro como a luz de uma vela vista através
de uma névoa fina. A propriedade da informação, que de outra
forma seria recôndita, recebeu uma voz matemática precisa em
termos de umas poucas propriedades matemáticas muito comuns
e óbvias: probabilidade ou sorte, a função logarítmica, adição, estas
atuando por sua vez em um universo sintético de símbolos que
faíscam entre dois lugares.
A definição de Shannon levou a uma teoria matemática rica,
produtiva e única: ele conseguiu demonstrar que nenhuma outra
definição além da dele capta as propriedades intuitivas da infor-

312 D avid B erlin ski


mação, mas o círculo de luz lançado pela definição tem um raio
muito pequeno. Por um lado, a definição não é sensível ao con­
teúdo da mensagem, tratando “Regozijai-vos, vencemos” e “Deu
cjira quando a moeda caiu” como sendo precisamente semelhantes
<*m termos da informação que transmitem (supondo que têm
mesmo grau de incerteza).
Por outro lado, a definição tem sentido apenas como uma
medida da informação transmitida por uma seqüência de símbolos,
hlssas seqüências só existem em uma dimensão linear; e, no entan-
lo, a informação, no sentido amplo que adquiriu como termo geral
ile cultura, tem o propósito de servir como substituto da comple­
xidade de um organismo vivo, uma criatura pulsante em três dimen­
sões de espaço e uma de tempo. Como a vida cruza a barreira
dimensional, passando de uma para quatro dimensões toda vez
(|ue um ovo vira uma galinha ou um chimpanzé, é um imenso mis-
lério, que mal conseguimos expressar, e muito menos resolver.
A invocação de informação representa a segunda perna da con­
jectura de longo alcance sobre a natureza da mente, conjectura esta
(|iie tem três pernas, e que rapidamente está se tornando uma orto­
doxia moderna. É a computação que explica o que a mente faz; e
i\ informação que explica o que ela faz com ela. O que falta ser ex­
plicado é como o organismo que ostenta seus poderes mentais os ad-

quiriu para começo de conversa. E aqui, onde a terceira perna pre­
cisa ser presa ao banquinho do pensamento, que a teoria darwiniana
reapareceu de modo surpreendentemente forte, completando o que
parece ser uma estrutura notavelmente sintética complementando
aquelas outras pernas, que de outra feita seriam instáveis, da compu­
tação e da informação. A mente humana ou animal surgiu por meio
tios antigos dispositivos excêntricos de variação aleatória e seleção
natural. Se há rotinas computacionais poderosas em funciona-

O ADVENTO DO ALGORITMO 313


mento na visão, na fala, locomoção, audição, tato, paladar, memória,
reconhecimento de padrões, corte sexual ou ciúme sexual, então é
porque precisamente tais rotinas, tendo surgido por um acúmulo
de acidentes, se demonstraram valiosas para os organismos que as
possuíam.
No caso do ser humano, a seleção natural teve um papel mais
decisivo durante o longo período de sua existência como caçadores
e coletores, não exatamente macacos, contudo, estranhas criaturas
simiescas, a correr pelas savanas, inspecionando amigavelmente
uns aos outros a procura de pulgas, vivendo vidas que eram, pelo
que me parece, solitárias, pobres, desagradáveis, brutais e curtas,
mas, mesmo assim, vidas de crescente sofisticação —a mão invisí­
vel mas implacável da seleção natural percebia todas as vantagens
dispersas no aparecimento de alguma sub-rotina nova e apoderava-
se dela com rapidez, tal que insensivelmente uma criatura desti­
nada na origem a colher nozes e grunhir de modo ineficiente se
transformou em uma criatura capaz de perguntar ao garçom se o
brie está cremoso, resumindo assim em uma pergunta lúcida dois
pontos divergentes de origem evolutiva.
A plausibilidade da imagem que surge tende a sugerir uma
teoria que está quase completa. O bando anônimo que está sem­
pre descobrindo coisas finalmente está descobrindo coisas.

O ARTEFATO INTELIGENTE

Nos últimos anos de vida, Turing conseguiu, por uma misteriosa


forma de amplificação cósmica, tornar seu diálogo interno parte d;i
conversa geral. Em um artigo publicado em outubro de 1950, ele

314 D avid B erlin ski


pergunta se uma máquina poderia pensar, uma idéia que ele mesmo
havia lançado, e responde com uma afirmativa condicional: Sim,
sc a máquina pode fazer um interlocutor humano acreditar que ela
<• humana. Se não, não.
Esse é o teste de Turing. Representar esse teste se tornou de
fato um ritual recentemente, com uma fila de solenes corajosos
diante de cabinas fechadas com cortinas, tentando determinar a
partir das mensagens enigmáticas impressas que estão recebendo
Meu nome é Berta e estou louca por amor —se Berta é uma máquina
habilmente programada ou se é a própria calorosa Berta que está
.ilrás da cortina, batendo os pés grandes e esperando por uma men­
sagem ou uma massagem.
Quaisquer que sejam os detalhes do teste de Turing, a teoria
romputacional da mente é ambidestra, aplicando-se no lado esquer­
do para máquinas e no direito para seres humanos. O objeto go­
verna nos dois casos um programa ou um algoritmo. E é essa sen­
sação totalmente irreal de ter localizado um aspecto da inteligência
em um conjunto formal de símbolos que dá à teoria um profundo,
mstigante e imensamente perturbador poder. No entanto, a visão
incompleta mas excitante da mente como um objeto computacional
r* em seus efeitos retrógrada em relação aos grandes movimentos
da física matemática. A paisagem conceituai está mudada, o mundo
emergindo agora em um vórtice finito de mundos, números inteiros
nu símbolos, mas não de números reais. Nas ciências físicas, o tempo
e o espaço são representados exatamente por esses números; eles
lem uma estrutura contínua. Um computador reside em um mundo
no qual o tempo é representado pelos inteiros. E os algoritmos
i.nnbém. O tempo perdeu a consistência maleável e segue em frente
em passos inteiros finitos, convulsivos. Uma máquina de Turing é
inerentemente discreta. Seus objetos teóricos fundamentais são sím-

O ADVENTO DO ALGORITMO 3 75
bolos, não elétrons, múons, glúons, quarks ou o espaço e o tempo
curvos. Uma inflexível série de negativas vigora. Não há equações
diferenciais. Nenhuma ligação com o cálculo. Nenhuma simetria
de espaço e tempo que defina mundos. Nenhuma continuação
analítica, como quando as leis da natureza levam o físico do pre­
sente para o futuro. Nenhum milagre quantitativo. Nenhum mila­
gre, a não ser o milagre familiar no qual uma parte do mundo físi­
co fica viva.
Na nova ordem conceituai, a orientação corrente do pensa­
mento é alterada e invertida, como uma corrente animada repenti­
namente por uma mudança de polaridade. Na física matemática,
as coisas vão dissecantemente para baixo na direção dos objetos
fundamentais, suas propriedades e leis fundamentais. O universo
revelado dessa forma não tem sentido , suas leis fundamentais con­
trolam uma vasta mas estéril arena e a coisa como um todo mais
se parece uma pista de boliche iluminada com luz fluorescente,
onde bolas de boliche do tamanho de quarks ficam ricocheteando
umas nas outras na noite monstruosamente quente e úmida. Lá
embaixo, as vozes humanas não podem ser ouvidas.
Talvez. Mas aqui em cima, as coisas são diferentes. Invocando
um rico sistema de significado e interpretação, os seres humanos
se explicam a si mesmos em termos do que desejam e daquilo em
que crêem; os instintos imemoriais de desejo e convicção são sufi­
cientes para criar um mundo. É um mundo suspenso no espaço pelo
palavrório divino de vozes humanas. Uma trilha pelo palavrório c
quase sempre circular, e não dissecante, como quando uma fofocn
de cidade pequena volta envergonhada para quem a começou. Um
homem acredita que brotos de alfafa são cura para herpes; isso sc
reflete no que ele fala, no que faz —comer brotos de alfafa —, se re­
flete naquilo em que crê e no que deseja, cada reflexo explicando

316 David Berlinski


0 anterior, formando uma linha que se dobra sobre si mesma, cir­
cular. O poder do círculo está em sua iluminação, os episódios
incandescentes impregnados de significado —a força que ilumina o
círculo e a coisa que desaparece quando, na morte ou no deses­
pero, o círculo expira. O significado é estranho à física, surgindo
110 mundo em resposta a algo impalpável como o pensamento, um
dar de ombros mental.
Não há como romper o círculo para alcançar um alicerce de
1atos físicos. Não há fatos físicos a serem alcançados. Como pode­
ria haver? Para entrar no círculo, qualquer característica puramente
física do mundo tem de ser interpretada e tem-se que dar signifi­
cado a ela. Uma vez tendo recebido um significado, não é mais uma
característica puramente física do mundo. O círculo conceituai não
c esvaziado ou desocupado na teoria computacional da mente: pelo
contrário, é aumentado, os objetos formais assumem seus lugares
dentro do círculo familiar, como comensais de um casamento con­
vidados a tomar parte na dança nupcial.
Os estados de um computador são representacionais. Levam
consigo uma importância que vai além da física; como as palavras,
representam um papel na economia do significado. E o significado
nparece apenas no olhar reflexivo e interpretativo dos seres humanos.
E exatamente nesse ponto que os psicólogos e os especialis­
tas em informática tendem a esquecer o sutil padrão de desen­
volvimento que há pouco mais de sessenta anos tornou possível o
advento do algoritmo. Um computador é um dispositivo; uma
máquina de Turing, um artefato intelectual, e ambos são governa­
dos pela visão dupla do lógico por meio da qual símbolos são simul­
taneamente despidos e dotados de significado. Do ponto de vista
do computador, o programa que ele executa é em última instância
uma série de símbolos binários, e os símbolos não passam de uma

O ADVENTO DO ALGORITMO 317


seqüência de discretas marcas físicas. Um algoritmo manipula essas
marcas sem dar atenção a seus significados, dessa forma imitando
o lógico em um de seus modos esquizofrênicos.
Mas nenhuma explanação de um algoritmo é completa, nem
sequer coerente, sob o selo de apenas um modo. Para compreender
o que um algoritmo está fazendo, é necessário compreender por
que motivo o está fazendo. E, para isso, os símbolos que foram
despidos de significado devem receber novamente significado.
Isso é evidente no mais simples dos dispositivos, uma calcu­
ladora, digamos. Aperte duas vezes o numeral “2 ” e a máquina dá
um “4 ” em néon. Considerado simplesmente como um objeto físi­
co, a máquina é capaz de ir e vir entre formas, configurações de luz
que ela realiza em virtude do modo como é construída: não é capaz
de mais nada; mas o que torna o charmoso espetáculo de luz uma
resposta é o fato de que alguém foi provocado a fazer uma pergun­
ta. Pergunta e resposta pertencem ao círculo de vozes humanas.
Um processo puramente físico foi investido de importância, aque­
las luzes vermelhas piscantes recebendo forma e conteúdo como
símbolos, representações, de fato, de números. Seja a represen­
tação feita em termos de luz, seja pela modulação da voz de uma
mulher, o processo é o mesmo, uma característica do mundo foi
tornada incandescente.

Se essa questão é evidente no caso da calculadora, é evidente


novamente no caso de complexas estruturas algorítmicas, como
redes neurais, ou redes. Introduzidas inicialmente nos anos 1940
sob o nome genérico de perceptronsy o propósito das redes neurais
era proporcionar um modelo para o próprio sistema nervoso. Críticas
muito eficazes feitas por Marvin Minsky e Seymour Papert pareciam
ter enfiado uma estaca de prata no coração do programa: os per -

318 D avid B erlin ski


i•rjftrons afinal podiam fazer muito pouco de real interesse, mas
<nino um vampiro surpreendentemente robusto, as redes neurais
nos últimos quinze anos voltaram à cena, freqüentemente sob nomes
l oino connectionism ou processamento em paralelo, e podem ser vis-
Ias agora regularmente saindo da cripta como as sombras da noite
que se aproxima.
A idéia de uma rede neural é a própria simplicidade. Embora
sc presuma que a rede real se oculte em alguma parte do cérebro,
uma rede neural eletrônica reside em um computador digital.
( innsiste em uma série de nodos ou processadores muito simples.
<) estado de cada um desses processadores é determinado total­
mente por sinais que ele recebe de outros nodos ou processadores.
Alribui-se certas cargas às trilhas entre os nodos, tal que um sinal
(|iic passe de um nodo a outro possa ter sua intensidade multipli­
cada ou diminuída ao ser intensificado ou diminuído ao passar de
um nodo a outro.
Cada nodo de uma rede neural é capaz de receber sinais car-
i(*gados de vários nodos; tipicamente, o nodo soma seus sinais car-
irgados, e depois os atribui a alguma função, geralmente um sig-
móide (ou com forma de S, como o cólon sigmóide). Uma função
muito comum é a tangente hiperbólica. Tendo recebido sua carga
<le sinais carregados, e depois os somado, cada nodo envia o pacote
para outros nodos por meio de sua função (veja a figura 13.1).
O resultado é, obviamente, uma rede de nodos na qual as várias
cargas determinam, com efeito, a resposta do sistema a inputs e,
portanto, serve como memória do sistema.
Além do trivial — uma única camada de nodos disparando
estupidamente uns para os outros —a configuração de rede neural
mais interessante é aquela na qual os nodos são divididos em
ramadas, com cada nodo capaz de enviar seu sinal apenas para um

O ADVENTO DO ALGORITMO 319


nodo

1 3 .1 —Modelo do neurônio.

nodo acima dele. Estas são estruturas feed-forward. Camadas que


recebem sinal do Desconhecido são camadas de input ; as que trans­
mitem para o Desconhecido, camadas de output; e entre elas, h;í
as camadas ocultas (veja a figura 13.2).
No caso mais simples, a rede é considerada sem se fazer relc*-
rência ao tempo. Os sinais são enviados como inputsy carregados
pelas conexões, somados pelos nodos, tratados brutalmente pelas
funções e depois enviados para cima. O comportamento de redes
como essas pode ser descrito completamente por duas equações.
O sinal de input de um nodo em particular é calculado como ;i
soma das cargas, wi)y atribuídas à trilha entre o nodo j e o nodo z, r
os sinais, yv enviados para ele de outros nodos:

Xi = Ç Wijyj

O sinal de input é então enviado para frente por meio de sim


função particular:

y-, = cr .(Xj)

320 D avid B erlin ski


13.2. Rede neural feed-forward.

O comportamento da rede como um todo pode então ser si­


mulado simplesmente resolvendo essas equações para cada input.
De um ponto de vista matemático — o único que conta, na
verdade —, uma rede neural funciona como uma espécie de proces­
sador de sinais, onde os sinais são números que, por sua vez, são
eonvertidos em outros sinais, e daí em outros números. Assim, antes
<|ue uma rede neural possa ser posta a funcionar, é necessário con­
verter inputs e outputs em uma forma numérica. Depois de fazer
isso, a rede neural funciona, com efeito, convertendo conjuntos es­
pecificados de números em conjuntos especificados de números.
( )s números especificados dessa forma são chamados de vetores e,
portanto, uma rede neural pode ser pensada como um dispositivo
c|iie efetua uma transformação de vetor em vetor.
Embora primitiva, uma rede neural feed-forward simples pode
sc* aproximar de uma função contínua com um grau arbitrário de

O ADVENTO DO ALGORITMO 321


precisão por meio de um aumento do número de seus nodos ocul­
tos. Esse é um resultado ligeiramente maravilhoso, mas não total­
mente inesperado; de um ponto de vista algorítmico, redes neurais
são apenas dispositivos para se computar funções computáveis.
São, portanto, limitadas na margem pela tese de Church. Tudo o
que uma rede neural pode fazer pode ser feito também por uma
máquina de Turing.
Sistemas desse tipo podem ficar mais interessantes e muito
mais flexíveis por técnicas padrão tomadas de empréstimo da teo­
ria de controle por feedback, como quando um erro se propaga para
trás pelo sistema a fim de ajustar suas cargas. E em um sentido
muito natural, tais sistemas podem dar todas as indicações de ficar
cada vez melhores na execução de certas tarefas, tais como reco­
nhecimento de caligrafias ou de padrões, reconhecimento de padrões
de fala, análise gramatical e assim por diante. Em tais sistemas, um
algoritmo de aprendizagem é incorporado ao projeto do sistema.
Não há nada de misterioso aqui; na verdade, apenas um velho truque
técnico (usado em termostatos comuns) no qual o output do sis­
tema é corrigido com relação a uma marca fixa e sua carga auto­
maticamente ajustada até o sistema gradualmente convergir para
um objetivo específico: identificar a caligrafia, distinguir substan­
tivos de advérbios, reconhecer o rosto que se diz ser típico das infiéis
contumazes.
A grande vantagem das redes neurais está na soberba facili­
dade e flexibilidade com que podem ser treinadas (uma escolha inte­
ressante de palavras); dada uma variedade aleatória de fotografias,
algumas de infiéis contumazes e o resto de mulheres comuns, pode-
se ensinar uma rede neural a convergir para os traços da infiel con­
tumaz por meio apenas de exemplos, o processo sendo feito quase
que sem o fornecimento de qualquer especificação de detalhes

322 D avid B erlin ski


pelo duro inspetor de polícia ou sua vítima enfurecida. É fácil
imaginar um algoritmo que execute precisamente essa tarefa. Primei­
ro, as fotografias têm de ser postas em forma digital, e depois apre­
sentadas à rede sob a forma de números. A seguir o algoritmo real­
iza os seguintes passos:

APRESENTA à rede fotografias ao acaso


AVALIA o output
SE a rede erra na identificação de uma foto, ajuste suas cargas
SE não, não faça nada
REPITA até que a rede consiga identificar corretamente as
infiéis contumazes
PARE

Não há dúvida de que há ações intelectuais interessantes e


importantes que podem ser incorporadas em redes neurais, e não
há dúvida também de que seu potencial foi descartado prematura­
mente. No entanto, as redes neurais não estão menos profunda­
mente envolvidas no círculo conceituai do que qualquer outro dis­
positivo computacional. Isso é muito mal compreendido em geral.
Assim, Francisco Varela, biólogo de Harvard, faz uma infeliz dis-
linção entre a teoria cognitiva da mente e a teoria que ele imagina
estar embutida nas redes neurais, uma teoria que ele defende re­
solutamente. A primeira requer, é o que ele crê, mas a segunda não,
um aparato totalmente supererrogatório de símbolos e represen-
hições. As redes neurais não requerem nada disso.
Mas isso é confundir a arquitetura de um sistema com sua
interpretação. Uma rede neural é um dispositivo computacional, que
passa sinais para sinais. E um computador digital também é isso.

O ADVENTO DO ALGORITMO 323


\ arquitetura é um tanto diferente, o computador digital proces-
;ando em série, e uma rede neural processando por meio de pro-
:essamento em paralelo, mas a interpretação simbólica tanto de redes
leurais quanto de computadores não tem coisa alguma a ver com
>eus hardwares; esses estão em outro nível totalmente diferente.
Uma rede neural que aprendeu a reconhecer um padrão fez
ilgo que vai além do que fez. Um padrão só é um padrão em relação
a um esquema de interpretação humana. O input de uma rede neu-
ral pode ser um sinal; e também o output , mas sinais se tornam
símbolos apenas quando a rede chega a algo de interesse humano.
Imagine uma rede neural recebendo fotos ou imagens digitais de
milhares de rostos humanos e treinada para selecionar as carac­
terísticas físicas distintivas associadas a certos tipos criminais.
(Não está absolutamente claro que existam quaisquer característi­
cas físicas associadas ao crime, mas este é um experimento em
pensamento.) Uma rede dessas poderia explicar o fato de que nós
podemos localizar um rosto atormentado de uma infiel contumaz
com apenas uns poucos indícios insuficientes —os ossos acima dos
olhos, rugas tensas e estreitas, lóbulos caídos, um certo olhar dis­
perso. Estas são características que podemos observar, mas não ne­
cessariamente especificar. Mas o que fizemos, nós que conseguimos
distinguir a transviada no meio das mulheres decentes, dignas,
normais, vai consideravelmente além de olhar para uma série de
fotografias e pronunciar o locativo: Veja, um a infiel contumaz.
A fim de identificar uma mulher como uma infiel, temos que falar
sério. Falar sério em português (ou qualquer outra língua), e falar
mostrando constatação e consternação. Estas são atitudes que estão
dentro do círculo conceituai.
O que vale para nós vale também para as redes neurais, o dis­
positivo que converge nas características faciais de um estuprador

324 D avid B erlin ski


em série, um descuidista contumaz ou um jogador compulsivo tendo
leito algo de interesse apenas quando seu output — uma série de
números, afinal —ganha conteúdo como uma representação de um
rosto humano. Sem tal representação, o exercício se resume a uma
Iroca de sinais, os dois sinais sendo parte do universo físico e
ninhos sem significado.
O mesmo vale, é claro, para um computador digital, que é
iipenas um instrumento físico que funciona com pedaços de fios,
('hips de silicone e oscilações de corrente. Um computador mater­
ial não contém símbolos nem representações. Isso, nós damos a
clcy dotando seus estados de significado ou importância. Sem isso,
não há como explicar seu comportamento satisfatoriamente —por
(|ue, por exemplo, quando instado a descobrir a raiz quadrada de
U), ele responde com uma forma que representa o número 6, e não
qualquer outra forma. As leis da física fornecem uma explicação de
seu comportamento que é necessária mas dificilmente suficiente
para dar conta do que ele faz, assim como as leis da química dão
uma explicação para a criação do plástico que é necessária mas não
suficiente para explicar sua existência. Se queremos saber por que
o computador exemplifica um padrão físico em particular, cor­
rentes passando por seus portões lógicos de um modo particular,
então devemos nos voltar para o programa que ele materializa, o
design que implementa e a inteligência que representa.
Tentativas de evitar essas exigências são inúteis. Não tem como
ver em um sistema puramente físico os axiomas de uma estrutura
matemática sem primeiro vê-los lá. Mesmo que por meio de uma
meticulosa demonstração se pudesse mostrar que existe uma mis-
leriosa e primorosa correspondência entre as formas físicas mate­
rializadas por um computador e o sistema numérico da aritmética

O ADVENTO DO ALGORITMO 325


comum que essas formas representam, a demonstração seria irre­
levante. Uma correspondência é algo que seres humanos notam e
depois estabelecem.

E m p r a i a s e s t r a n g e i r a s

A idéia de que a mente humana é essencialmente um dispositivo


computacional se recomenda em virtude de uma pergunta irres­
pondível: o que mais pode ser? Mas por maiores que sejam os
méritos da afirmação, a idéia de que a mente não passa de um dis­
positivo computacional se subordina a um desafio inevitável: se c
esse o caso, quais são precisamente as computações (e, portanto,
os algoritmos) envolvidas?
O ser humano tem crenças, alega ter conhecimentos, é impul­
sionado por desejos ou fica vexado com bobagens, fica sucessiva­
mente zangado, petulante, absorto em si mesmo, é indulgente con­
sigo mesmo ou esquecido; não é apenas a crença e o desejo que
precisam de uma descrição computacional, mas prestar atenção,
notar, descobrir, ter esperança, procurar, escrutinar, xeretar, domi­
nar, aprender, adquirir, exigir: uma pessoa poder estar zangada e ra­
cional ou irracionalmente zangada; pode desejar o que não quer ou
esperar desesperando; sua mente pode estar confusa, lúcida, anu­
viada ou calma; ela pode estar ansiosa, satisfeita, relaxada ou vinga­
tiva, freqüentemente tudo isso ao mesmo tempo; sua lembrança
dos acontecimentos de 1927 pode ser excelente ou dispersa; seus
pensamentos confusos ou coerentes, estar em paz consigo mesma
ou em desarmonia; pode rir do diabo ou atender sua chamada ale­
gremente no celular; pode temer mais a desonra do que a morte,

326 D avid B erlin ski


ou o inverso; pode receber propostas e tomar decisões, uma após a
outra, como uma seqüência de estampidos de um trepa-moleque;
pode optar por meditar sobre a forma de Deus encarnada na corti­
na do box, ou se recolher às lembranças e viver no passado —e sobre
essas coisas que uma pessoa pode fazer, ou os estados no qual pode
ficar, a teoria computacional da mente deve atuar, mostrando em
detalhes exatamente como é que o que os seres humanos fazem no
inundo do pensamento e da ação humanas pode ser captado por
uma função computável ou por certas linhas de código, estas sina­
lizando uma possibilidade de computação ou em processo de ser
executada.

■ ■ ■ ■ Veio-me à mente uma lembrança estranhamente com­


pleta de uma história totalmente sem originalidade. Aconteceu há
mais de vinte anos. Eu dava aulas em uma escola pequena na costa
noroeste que havia conseguido permutar as letras de seu nome de
lal forma que em minhas reminiscências sempre penso nela como
a Universidade de Porco Pungente. Eis uma descrição rápida, não
mais do que um instantâneo: gramados luxuriantes, prédios de tijo­
los vermelhos, nuvens baixas, as águas frias, cinza e encapeladas
do Puget Sound a meia distância, montanhas em outro lado, um
monstro de uma majestade repulsiva —monte Rainier —repentina­
mente assomando no céu em dias claros.
Foi na UPP que conheci o matemático Leo Rubble —um breve
obituário no Journal conta que sua última caminhada fora seguida
de seu primeiro ataque cardíaco, me lembrando que por certo
(empo ele e eu havíamos dividido uma sala no Rummelhart Hall.
líle era baixo e geneticamente fadado a ser balofo, mas, devido a
um programa rígido e inflexível de levantamento de peso, havia

O ADVENTO DO ALGORITMO 327


conseguido mudar a forma de seu torso de tal modo que tinha a
aparência de ter sido feito de um material mais denso do que mús­
culos, molibdênio, talvez. Eu o havia visto levantar mais de 180
quilos.
Certo dia, ele me contou a seguinte história. Pelo que pude
discernir, ela havia entrado na vida dele como um raio repentino de
sol visto através das nuvens; naquela mesma tarde, dirigindo um
pequeno Toyota azul, cruzaram a Tacoma Narrows Bridge e se re­
gistraram em um motel chamado apropriadamente The Narrows1.
Uma enorme cama de casal, com uma colcha de brocado, ocupa­
va quase todo o quarto. Havia o retrato de uma senorita de olhos
tristes na parede, Leo recordava, em vermelho e tons pastel.
Ele a havia percebido desde o primeiro dia de aula. Sua pródi­
ga beleza loura transbordava como água de uma fonte descuidada,
a luz ressaltava os tênues fios de cabelo que lhe contornavam a
têmpora esplêndida; mas ele só a conhecera naquela manhã, quan­
do, com total segurança, ela o havia encurralado em sua sala.
—Você me incomoda —ela lhe havia dito.
E, para mim, Leo acrescentou:
— Dá para imaginar?
Se eu podia imaginar? Todo mundo no campus havia perce­
bido a brilhante beleza loura; ela era talvez uns cinco anos mais
velha do que os outros alunos e casada com um capitão do exérci­
to que trabalhava em uma base ali perto. Seu nome era Ann Preval
e ela incomodava todo mundo, talvez porque a rosa de sua beleza
parecia desabrochar a partir de um pistilo de tristeza e desespero.
Agora, por causa da concatenação de circunstâncias que eu
não conseguia compreender muito bem, Leo Rubble se encontra-

1. Narrow, “estreito” em inglês. (N. do E.)

328 D avid B erlinski


va em uma pequena alcova do quarto do motel que separava o
quarto do banheiro.
Ele me disse que abraçou sua cintura e beijou-lhe os lábios,
com o coração aos saltos.
—Eu a amo — disse ele.
—E eu já o amo — disse ela.
A tarde passou. No caminho de volta para o campus, pas­
saram por camadas baixas de nuvens que haviam coberto Puget
Sound.
Ela não foi à aula na quarta-feira nem na sexta.
—Eu estava pirando —disse-me Leo com uma veemência ter­
rível que é muitas vezes uma desculpa para uma inocência ina­
ceitável. Ele tinha uma esposa, é claro, e uma família, e os entulhos
de sempre de uma carreira acadêmica, e era, também, um matemáti­
co modestamente talentoso numa época em que a topologia dife­
rencial era muito popular, as curvas sinuosas e os vales estreitos do
íissunto tendo acabado possivelmente de deitar os fundamentos
para o que era obviamente uma enorme suscetibilidade. Ele tinha
muito a perder, e embora não estivesse certo disso, acredito que no
fim ele perdeu tudo.
Naquela noite, depois do jantar, ele ficou batucando com os
cledos na mesa irrequieto. Os Rubble moravam ao norte da UPP em
uma ilha coberta de bosques.
—Você está irrequieto, vá dar uma volta, querido — dissera a
esposa, sendo razoável.
—Acho que vou dirigir um pouco por aí.
Uma chuva fina havia começado a cair quando Leo Rubble
cruzou a ponte e chegou à rodovia, a enormidade da traição que ele
estava para cometer sendo deixada clara pela voz de Linda Ronstadt.

O ADVENTO DO ALGORITMO 329


— Ela estava cantando Youre no good— disse ele —, e eu sabia
que ela estava cantando por minha causa.
Anos mais tarde, quando conheci Linda Ronstadt, confirmei
que o homem sobre quem ela estava cantando não se parecia em
nada com Leo Rubble.
Meu pobre Leo só tinha uma idéia muito vaga sobre onde
Ann Preval morava. A informação que ele havia guardado na memória
consistia em uma série de ruas com nomes de árvores — carvalho,
castanheiro, olmo, cedro — e terminava na Monterey, que era um
beco sem saída; ele sabia que o marido dela, o capitão, estava em
vôo de treinamento.
Ele saiu da rodovia na primeira saída para Westwood, que dava
em um bulevar ermo, onde uma Pizza Hut espalhava uma triste luz
no ar nevoento; mais adiante, havia um depósito de carros usados
fechado; e mais à frente, uma oficina de automóveis, aberta. Olhan­
do no mapa, parecera simples, à direita na Carvalho, depois à direi­
ta novamente na Olmo, à esquerda na Castanheiro, e depois à
esquerda na Monterey; mas quando ele acabou de virar onde acha­
va que devia, viu-se de volta no bulevar que dava na rodovia.
Parou na oficina pelo único motivo, acho, de que parecia ser
algo que podia fazer, e abriu o mapa sobre o volante.
Um senhor corpulento — o mecânico ou o dono da oficina,
evidentemente — saiu do interior da oficina e aproximou-se deva­
gar do carro dele.
— Posso ajudar? — perguntou. Tinha um leve tique no rosto,
típico de quem tem mal de Parkinson.
— Estou tentando encontrar uma pessoa —disse Leo Rubble.
O mecânico abriu os braços para indicar que era inútil.
— Ela mora na Travessa Monterey.

330 D avid B erlin ski


—Bulevar ou travessa?
Leo deu de ombros desesperançado; a distinção nunca havia
vindo à tona.
— Ela é loura, tipo escultural. — Fez um desenho no ar para
indicar quanto escultural.
—Loura? Alta?
Leo Rubble meneou a cabeça.
—Ela dirige um Toyota azul pequeno?

—E essa mesmo.
—Ela mora no bulevar, e não na travessa —disse o mecânico,
c o curioso foi que ao dizer isso uma leve impressão de um sorriso
zombeteiro parecia brincar em seu rosto vincado, as rugas fundas
das bochechas agitando-se para cima.
Segurando o topo do mapa com uma das mãos, ele apontou
para o Bulevar Monterey, que, na verdade, ficava logo depois da
Carvalho, Castanheiro e Olmo, mas era perpendicular à Travessa
Monterey.
—Não tem como errar —disse ele, apontando para o caminho
com a ponta do dedo indicador. — Mas não adianta nem tentar —
acrescentou ele, com o mesmo sorriso infinitamente sutil, infinita­
mente zombeteiro, no rosto. —Eu vi quando ela saiu mais cedo.
Leo Rubble dobrou o mapa lentamente e o colocou no assen­
to do carona.
—Quer mais alguma coisa? —perguntou o sujeito.
Leo Rubble disse que não com a cabeça. Depois de permitir
cjLie seu rosto fosse modulado por outro tique, o mecânico foi man­
cando lentamente para seu escritório.
—E o que aconteceu então? —perguntei.
— Nada, não aconteceu nada. Essa é a história. Ela nunca
mais quis sair comigo. Acho que está na Europa.

O ADVENTO DO ALGORITMO 331


Como eu disse: uma historinha estranha. Vamos ver o progra­
mador que pode escrever o código capaz de ver o que Leo Rubble viu.

O QUE NÃO PODE SER ELIMINADO

Vinda do espaço, a luz alcança o olho humano e deposita sua infor­


mação na superfície pontilhada da retina. Imediatamente depois eu
v^ejo o gramado do Golden G ate Park; uma jovem de piercing no
nariz se contorcendo; uma roseira; um cachorrinho ofegante; e
além, uma fila de automóveis se movendo lentam ente na direção
do sol a oeste. Um mundo tridimensional foi transferido para uma
superfície bidimensional e depois retransferido para uma imagem
tridimensional; e este milagre familiar sugere, se é que algo o faz,
a relevância dos algoritmos para as realizações da m ente, a trans­
formação das dimensões sendo precisamente o tipo de atividade
que poderia ser colocada sob o controle de um programa formal,
um sistema de regras ligado às circunstâncias da visão de uma
criatura com dois olhos um tanto assimétricos.
Foi exatamente um trabalho desse tipo que foi feito pelo fale­
cido David Marr no MIT2. O processo da visão tem início, na teo­
ria de Marr, na retina. A luz atinge essa superfície bidimensional,
o padrão resultante refletindo a intensidade da luz em pontos dife­
rentes. Este é o input para o sistema visual do cérebro. Cálculos
então transformam essa configuração de intensidades até o cére­
bro restabelecer uma representação tridimensional a partir do

2. David Marr, Vision. São Francisco, W. H. Freemanm, 1982.

332 D avid B erlin ski


input original. Seus elementos não são letras ou numerais, mas o
que Marr chama de primitivos visuais. Como o nome sugere, esses
primitivos visuais incorporam informação visual de forma atenua­
da, com linhas no lugar de arestas e objetos como cones ou outros
sólidos no lugar do volume. Essas representações tridimensionais
são o output do sistema visual do cérebro.

Dada a imensa sofisticação do trabalho de Marr, uma coisa


deve parecer curiosa aos leitores de seu livro. Não há visão em seu
índice remissivo. E isso é indício de uma dificuldade conceituai
notável, que tem suas origens na natureza ambígua de represen­
tações como objetos físicos e como objetos visuais. Se as represen­
tações são consideradas simplesmente objetos formais, não podem
ser vistas, no mínimo porque objetos formais não têm significado
visual óbvio; de fato, não têm nenhum significado.
As representações então deveriam ser compreendidas como
primitivos visuais que, de fato, designam ou então descrevem o
campo visual? De fato, a linguagem de representações e imagens é
jjcral por todas as ciências cognitivas, a mente guarda as coisas em
vários lugares e baixa a representação quando surge a necessidade.
Mas espere um pouco. Representações? Imagens? Como em
algo visto? Na mente? Mas meu caro doutor, imagens vistas por
(\uem? E quem está fazendo as representações?
A teoria computacional da visão tinha o propósito de dar
conta da visão; tinha, além disso, o propósito de dar conta dela em
termos computacionais e em termos físicos. Mas, evidentemente,
((uando a computação acaba, tendo o sistema visual depositado
uma representação no cérebro, o cérebro é chamado a fazer algo
suspeitosamente parecido com ver. De que outra maneira faz uma
representação ter sentido?

O ADVENTO DO ALGORITMO 333


É, obviamente, totalmente possível que o que é, de um modo
suspeito, parecido com ver não seja ver, mas algo de natureza mais
fraca; e Marr sugere que, ao interpretar uma representação, o cére­
bro reconhece certas características visuais, compara-as com outras
características visuais, e de modo geral realiza várias atividades
cognitivas abaixo do limiar da visão. De acordo com este modo de
ver, ver algo é uma atividade complexa que pode ser decomposta
em partes. Não é necessário dizer que essa elaboração de detalhes
dificilmente é a princípio uma melhoria. Quaisquer que sejam os
aspectos da visão, se são compreendidos em termos estritamente for­
mais, tendem a não ser informativos, o momento mágico no qual um
primitivo visual é reconhecido não mais acessível à computação do
que o momento mágico no qual um primitivo visual é visto. Se não
acessíveis à computação, estes aspectos primitivos da visão devem ser
compreendidos como atividades tão misteriosas como a própria visão.
Uma análise desse tipo pode muito bem ser de grande valor científi­
co, no mínimo porque pode muito bem conseguir explicar um miste­
rioso ato cognitivo em termos de muitos outros misteriosos atos cog­
nitivos. Mas o que não proporciona é uma fuga de um círculo de
conceitos mentais. Estes, parece, continuam inerradicáveis.
Esses problemas reverberam com um hang alto, chato e emba­
raçoso e sua inocência ideológica destoa totalmente da real sofisti­
cação das várias teorias que subvertem; a despeito de todas as afir­
mações em contrário, permanece o fato de que um grupo curioso
e inexplicável de figuras sobrenaturais aparece com regularidade
nas ciências cognitivas ou computacionais, encarregando-se da visão
quando a visão está sendo investigada, ou cheirando os cheiros, ou
dando conta das outras tarefas cognitivas com uma desenvolta e
horripilante familiaridade.

334 D avid B erlin ski


A

E para um velho mal que estou chamando a atenção, um mal


que infesta a psicologia freudiana também —o ego freudiano sendo
uma figura tão assertiva, rebelde e exigente quanto a figura que
devia explicar, tal que, de vez em quando, relatam velhos analistas,
o paciente e seu ego parecem estar rancorosamente disputando a
posse do mesmo terreno mental.

Uma enfermidade teimosa e persistente é um sinal de con­


fusão conceituai e não apenas a marca da falta de cuidado. É a mente
computacional? É. Ela procede por meio da aplicação de regras
definidas? Sim. Muito bem. Considere isto: ao concluir suas com­
putações, a mente irrompe numa consciência do mundo vívida e
encharcada de luz, inteirada de modo vívido e arrebatado do mundo.
Ku abro meus olhos e meus olhos são preenchidos, o simples e
dolorosamente milagroso ato transmite todas as vezes a natureza
dupla da minha experiência. Meus olhos são preenchidos. Existe
um panorama pelo qual eles manifestam uma preferência; mas são
meus olhos que são preenchidos, minhas experiências tendo tanto
um sujeito que experimenta —eu, por acaso —quanto os conteúdos
dessa experiência, a cena e o misterioso estranho que a inspeciona
presos inseparavelmente juntos como fragmentos de uma figura.
Mas se a consciência é inefavelmente dividida e, no entanto,
incfavelmente completa, as computações são pela própria natureza
seqüenciais, uma coisa procedendo da outra, como em uma reação
em cadeia. A persistência na teoria de uma certa confusão embara­
çosa, a mente repentinamente abrindo uma arena na qual imagens
silo meticulosamente examinadas, ou representações misteriosa­
mente forçadas a representar, é prova da imensa dificuldade em
ncomodar a natureza essencial da consciência em qualquer visão
seqüencial ou processual das operações da mente. Se um dos meus

O ADVENTO DO ALGORITMO 335


assistentes sobrenaturais está encarregado de olhar, é difícil ver como
a experiência da visão foi explicada; e se ninguém está olhando para
nada, é difícil ver como a consciência foi acomodada.
Quaisquer que sejam as dificuldades, a maioria dos filósofos
tem permanecido materialista retórico. Como membros de uma con­
fraria, não estão dispostos a confiar suas dúvidas uns aos outros.
Nas reuniões da confraria, cantam músicas que elevam seus espíri­
tos. Ainda assim, é a consciência que está na boca de todos, e não
o materialismo. Muitas pessoas parecem ter concluído que só pre­
cisam abrir os olhos para dar forma a uma reprimenda às opiniões
correntes. E estão certos. Os filósofos estão confusos — por sua
irrelevância, se por nada mais. Uns poucos foram vistos dando uns
chutes discretos no que parece ser o cadáver do dualismo: Levante-
se , seu gordo tolo, eu preciso de você. Usando um argumento descar­
tado prematuramente pelos lógicos, o eminente matemático Roger
Penrose concluiu que a consciência não podia ser computacional3.
Uma reforma da teoria quântica é necessária para colocar as coisas
em ordem, a transmutação do pensamento em ação acontecendo
nos microtúbulos da célula. Nenhum ponto no âmbito das posições
possíveis ficou sem ser expresso. Físicos quânticos não ortodoxos
têm defendido a ubiqüidade da mente por todo o cosmo. Apare­
cendo em toda parte, até os átomos têm seu lugar neste esquema
de coisas4. Um filósofo empreendedor — e quem mais? — concluiu
que o problema da consciência vai ser insolúvel para sempre e,
exibindo sua ignorância majestosamente, descobriu o fundamento
de um sistema filosófico de grande alcance.

3. Roger Penrose, A mente nova do rei, Editora Campus, 1993; e Shadows of the
Mind, Nova York, Oxford University Press, 1994.
4. Nick Herbert, Elemental Mind. Nova York, Plume, 1993.

336 D avid B erlin ski


E eu, tenho algo melhor? Não, é claro que não. Que a última
palavra, então, venha dos gregos: “Você não poderia descobrir os
limites da alma”, escreveu Heráclito, “nem mesmo se você percor­
resse todas as estradas. Tal é a profundidade de sua forma”.

O ADVENTO DO ALGORITMO 337


14

U m m u n d o de m u i t o s d e u s e s

O CÁLCULO E O CORPO DE ANÁLISE MATEMÁTICA ao qual dá origem


é a grande idealização da ciência ocidental e o momento de sua cria­
ção marca uma profunda divisão da experiência humana. De suas
fórmulas complicadas vem o esquema de equação e solução que
torna possíveis as ciências físicas. No entanto, o emprego da mate­
mática nas coisas ou processos enfraquece à medida que nos move­
mos na cadeia intelectual de comando, um fato curioso e incapa-
citante, mas, todavia, incontroverso. Os objetos materiais no nível
quântico podem ser explicados como ondas de probabilidade; a
equação que descreve o processo tem suas raízes no cálculo. A ten­
tativa de discernir na estrutura de objetos biológicos —protozoários,
astros do rock, seres humanos — os delineamentos de um sistema
coerente de pensamento matemático contínuo tem sido um fra­
casso. O milagre da física matemática não se repete, o acordo desta
vez não é fechado.

338 D avid B erlin ski


A paisagem conceituai da biologia é incoerente e inconfundí­
vel, uma cadeia de contrafortes antigos contra os altos picos alpinos
dos matemáticos ao fundo, o biólogo empregando um esquema
incomensuravelmente mais simples do que o adotado pelo físico
matemático. Esse esquema é discreto, finito e combinatório. Nada
da matemática além de contar nos dedos. A biologia molecular
seria compreensível para alguém que não soubesse coisa alguma
de ciência moderna, continuidade ou cálculo, e só soubesse fazer
contas com potências de dez —alguém com diploma de Harvard,
digamos. Os sistemas vivos podem ser compreendidos em termos de
suas partes constitutivas. Destas, há uma quantidade finita. A dis­
secção estando completa, o que sobra é uma molécula mestra, o ADN,
que funciona como um código (embora um código sem um texto
inteligível óbvio por trás), e as proteínas complicadas que ela orga­
niza e controla. Nenhuma magnitude contínua; nenhum número
real; nenhum corpo rico de análise matemática. Nenhuma lei, não
no sentido em que a física contém leis da natureza; nenhum apo­
tegma fantasticamente prenhe, comprimido e quantitativo; nenhum
lugar onde o nó da natureza esteja tão apertado que possa ser toca­
do diretamente por uma fórmula matemática.
A despeito da linguagem freqüentemente vulgar na qual são
expressos, os conceitos que animam a biologia molecular são anti­
gos, familiares, persistentes e obscuros — complexidade, sistema,
informação, código, linguagem, organização. Muitos deles afirmam
uma mensagem já conhecida: uma geração passa e outra geração
vem. Alguns deles podem ser combinados à vontade, como em com­
plexidade organizada ou organização complexa , um exemplo interes­
sante no qual processos combinatórios são expressos por palavras
combinatórias. São freqüentemente mágicos, o A D N em particular
l unciona como uma espécie de demiurgo bioquímico, algo que traz

O ADVENTO DO ALGORITMO 339


um organismo inteiro à vida por um processo semelhante a lançar
um feitiço. Freqüentemente são inconsistentes, o papel atribuído
ao ADN destoando do fato óbvio de que a informação existente no
genoma é inadequada para especificar a totalidade de um organis­
mo complexo. Eles não representam, estes conceitos estranhos e
sedutores, nenhum papel na físico-química ou mesmo na bio­
química. Como um elástico sob tensão, parecem sempre retornar
repentinamente a um modo anterior de descrever a vida, um modo
no qual propósito e objetivo entram proeminentemente em foco.
Que outro modo há de descrever o olho sem mencionar que seu
propósito é ver? Com freqüência parecem assinalar as fronteiras de
nossa própria inadequação intelectual. Em nenhuma parte na natu­
reza jamais observamos forças puramente mecânicas entre mo­
léculas grandes dando origem a estruturas auto-suficientes, estáveis
e autônomas como sapos ou samambaias, algo capaz de prosseguir
como um arco contínuo do princípio ao fim, um objeto físico que
se modifica com o passar do tempo, mas sempre o mesmo objeto,
um conjunto de forças dotando sua identidade de permanência tal
que variações permaneçam limitadas e devolvam inevitavelmente
a figura ao local de onde começou. Nada além de um sistema vivo
exibe essa extraordinária combinação de plasticidade e estabili­
dade, um fato que mal conseguimos descrever e que somos total­
mente incapazes de explicar.
A biologia molecular não é suscetível à grande idealização que
caracteriza as ciências físicas; e mais, parece inversa às suposições
metafísicas mais profundas que as ciências físicas fazem, suposições
que passaram diretamente para a vida da cultura popular. O mundo,
afirmam as ciências físicas quase que em uníssono, é físico e não
espiritual, numinoso ou mental. É um mundo de matéria. O princí­
pio da compensação e a bolha brilhante da consciência são igual-

340 D avid B erlin ski


mente ilusões. A realidade contém apenas átomos e o vazio. Estas
declarações frágeis soam como tiros de rifle; levam as bordas do
coração humano a se enrolarem em desalento antecipado. Mas se
por físico os cientistas se referem a conceitos como os conceitos
encontrados na física, então a conclusão é irresistível, qual seja, a
de que a biologia molecular não é uma ciência física, mas sim uma
disciplina lutando para expressar as propriedades dos sistemas vivos
cm um vocabulário e por meio de um conjunto de conceitos dife­
rentes de tudo o que é necessário em todos os outros lugares.
O monoteísmo intelectual expressa a convicção de que no
fim um sistema magnificamente unificado de teoria e descrição vai
dar conta de todo o universo observável, o grande arco do espaço e
do tempo e o milagre do fígado dos mamíferos, um esquema de
pensamento generoso e poderoso o suficiente para revelar uma
únicã mão por trás da obra variada do mundo. Nos anos 1930 e por
mais um tempo depois, o monoteísmo intelectual foi expresso ofi­
cialmente como um compromisso com a unidade da ciência. Uma
organização ecumênica foi estabelecida para promover sua adoção
como um credo. A fé tem sido propagada por impulsos semelhan­
tes aos que levaram as pessoas do mundo antigo a verem em seus
vários deuses e deusas aspectos de uma divindade única, domi­
nante e inescrutável. E, no entanto, se as instruções dadas devem
contemplar o que é de fato o caso, a conclusão parece irresistível,
a de que um deus, como o sombrio Plutão, rege o submundo quân­
tico; e outro muito diferente, como Pã, talvez, as macromoléculas
biológicas.
Os físicos rejeitam essa visão tolerantemente politeísta, é claro,
mas tudo o que os físicos conseguem dizer é que as leis da física
são fundamentais e no fim tudo vai ficar claro. Isso é o que eles
sempre dizem. É o destino deles dizê-lo. Na verdade, a visão gran-

O ADVENTO DO ALCOKITMO 341


liosa de que todo o conhecimento humano pode ser reduzido à
ísica matemática não é mais levada a sério, mesmo pelos físicos
}ue a levam a sério. “A expectativa última da ciência”, escreveu
Jteven Weinberg, “é que seremos capazes de remontar a expli-
:ação de todos os fenômenos naturais a leis finais e acidentes
íistóricos.” Machiavelli intitulava as conjunturas inexplicáveis do
lestino de fortuna, uma palavra que transmite uma certa zombaria
:ircunspecta. Como pôde a física matemática impregnar o ansioso
:oração humano se a explicação para o modo como as coisas são
envolve um apelo às leis fundamentais da física e a algo parecido
:om um dar de ombros napolitano? A física quiliástica, é o que
parece, entrou no mesmo desfiladeiro deprimente habitado há tanto
tempo pela teoria darwiniana da evolução. As duas teorias apalpam
as ombreiras uma da outra e apertam-se as mãos úmidas lá em­
baixo no escuro.
É aqui, no ponto de encontro da melancolia, das pantomimas
e do mistério, que o algoritmo teve novamente seu advento.

E sse t i p o de h i s t ó r i a

■ ■ ■ ■ Há sonhos nos quais tudo é visto, mas nada é compreen­


dido. Um trem pára em uma estação vazia, resfolegando no ar frio
da manhã. Um relógio solenemente soa a hora. As portas duplas se
abrem para deixar sair um corcunda com olhos negros brilhantes.
Ninguém mais sai do trem, mas, na plataforma, há o cheiro repenti­
no de castanhas assando.
Esta é esse tipo de história. Um biólogo molecular e matemático
da Universidade do Sul da Califórnia, um gentil esquisitão sonhador

342 D avid B erlin ski


de acordo com todos os relatos, concebeu a idéia — mas espere ,
deixe-me explicar o problema primeiro.
Os personagens são um caixeiro-viajante e sete cidades. Pri­
meiro, o caixeiro-viajante: pele pálida, bolsas sob os olhos, terno das
prateleiras da JC Penny, Arthur Allan Waterman, para dar-lhe um
bonito nome, em desacordo com a cabeça de Broderick Crawford
encaixada diretamente acima de seu tronco de Lee J. Cobb. Penso
cm Waterman rispidamente tentando desembolsar artigos de bor­
racha: mangueiras, tampões de ouvido, toucas de banho, presilhas
de nariz, tapetes para chuveiro. (Caixeiros-viajantes parecem ter
desaparecido, mas o modelo da vida real de Waterman ocupa um
armário na mansão da memória; ele era vendedor da Fuller Brush
Company, um refugiado alemão que percorria as ruas da parte
norte de Manhattam, explicando em um inglês indigente — cheio
de sibilos e ditongos malformados —as vantagens de certas cerdas
<* vassouras para donas de casa irlandesas de lábios finos que, dada
;i evidência plausível bem diante delas, haviam chegado à lunática
conclusão de que não apenas todos os judeus eram alemães como
Iodos os alemães eram judeus.)
Partindo de Witten, Iowa, o problema de Waterman, pobre
simplório, era visitar Wittless (assim chamada por causa do miste­
rioso desaparecimento no início dos anos 1900 de uma família
chamada Witt, cujo rastro saindo da cidade desaparecera na neve
da pradaria)1, Grainball City, Sad Sac, Amblot (local de três indús-
Irias de desfolhar espigas de milho) e Waterloo apenas uma vez, e
lerminar a viagem em Wapping Falis.
Por enquanto, Waterman está sentado à mesa de sua cozinha
cm Des Moines, com os artigos de borracha empilhados na ban­

I I.ess designa “sem”, em inglês. (N. do E.)

O ADVENTO DO ALGORITMO 343


zada da pia, tentando, com o lápis com o qual está coçando a ore­
lha, organizar sua viagem e, assim, sua vida. Um cigarro sem filtro
está no cinzeiro, a fumaça faz espirais. O problema tem dois aspec­
tos. O primeiro é puramente teórico. Waterman precisa determi­
nar quantas rotas possíveis podem levá-lo de cidade em cidade. Ele
pára de coçar a orelha e passa a coçar a artéria de sua testa que
está latejando. É o tipo de pergunta que sempre é feita no ensino
médio, e ele era o tipo de estudante (bem parecido comigo, de
fato) que fica sentado imóvel de incompetência em sua carteira
enquanto todos os outros levantam a mão dizendo: “Eu sei, pro­
fessora, eu sei”.
Deixe-me narrar a linha de raciocínio que Waterman e eu não
alcançamos. Se há duas cidades, há 2 x 1 rotas entre elas: o velho vai
e vem; se há três, então há 3 x 2 x 1 = 6 rotas, cada uma delas ligan­
do três cidades, e não duas. Quatro cidades requerem 4 x 3 x 2 x 1 ou
24 rotas, cada uma delas ligando quatro cidades. E cinco cidades...
É possível continuar este exercício indefinidamente, mas o
matemático em nós —o matemático em Waterman e certamente o
matemático em você — deseja uma regra geral que ligue o número
de cidades, qualquer que seja, ao número de rotas. Eu mesmo vou
dar uma regra, maitre prestativo que sou. Se há n cidades — onde
n pode designar qualquer número inteiro, 1, 2, 3, ou 4 .3 2 7 —há n\
rotas entre elas, o mesmo n\ usado como ilustração no capítulo 12
tendo concordado surpreendentemente em fazer um trabalho útil
no mundo diário (como uma modelo de batons lavando pratos).
Com sete cidades nos campos de trigo, há 5 .0 4 0 rotas possíveis de
sete cidades, uma seta faiscante voando de uma cidade a outra na
noite da pradaria.
Mas em oposição ao número de rotas possíveis, Waterman se
levanta para me lembrar, há aquelas que estão de fato a seu dispor.

344 D avid B erlin ski


As rotas possíveis dependem apenas de um mapa mental no qual
as cidades são ligadas pelos olhos da mente. As rotas reais são
diferentes. São as rotas percorridas pelos ônibus rurais amarelos,
com protetores de pneus cobertos de poeira protegendo os pneus
que estão ficando carecas, ou por pontes aéreas com nomes como
Aurora da Pradaria, com comissárias de bordo sorrindo amarelo e
olhando de relance ansiosas para as hélices enquanto guiam seus
cansados encargos pela escada cheia de lama até o interior agouren-
tamente trepidante do avião. São as rotas de verdade —estas rotas
—que interessam a Waterman.
E a nós.

Agora vou adiantar a fita, tirar Waterman de sua cozinha e


levá-lo para o lastimável terminal de ônibus em Witten, um prédio
imponente da era WPA que já não é o mesmo e que cheira a latrinas.
Segurando com dois dedos a sacola que traz dependurada no ombro,
Waterman contempla o quadro de linhas intermunicipais na parede
do terminal, que mostra as ligações entre as cidades, o glifo na inter­
seção entre Wittless (na coluna da esquerda) e Grainball City (na
coluna no topo) significando partida de Wittless, onde o único trailer-
restaurante da cidade é gerenciado por uma garçonete chamada
Doris, para a surpreendentemente próspera Grainball City, cujos
cidadãos estão orgulhosos de ter vendido soja para a Somália. Um
X significa que não há meio de transporte coletivo entre as cidades
(veja a figura 14.1)
O quadro traduz, como todos os documentos deste tipo, a
natureza dura de um mundo no qual as pessoas despertam de um
sono agitado, se vestem no escuro, suas famílias ressonando na noite
de inverno, e vão se arrastando sozinhos pelas ruas escorregadias
por causa do gelo. A questão quanto a se há uma rota que Waterman

O ADVENTO DO ALGORITMO 345


Chegadas

Witten Wittless Grainball City Sad Sac Amblot Waterloo Wapping Falls

Witten
X * X ^3 X ^3
Wittless
X X X *
tft
3artida;

Grainball City
éS X X X g© ^3
Sad Sac
■gS X X X + * X

Amblot '-S 05 X X X X X

Waterloo
X X X * ^3 X X

Wapping Falls
X X * ^3 X X X

14.1. Quadro de meios de transporte intermunicipal para as cidades que Waterman tem que visitar.
possa tomar que com ece em W itten, termine em Wapping Falis, e
permita que ele visite cada uma das cidades restantes apenas uma
vez tem assim uma importância inegável que é negada a problemas
mais abstratos na matemática e na filosofia.
B em y e há?

P e d i n d o para s e r c o m p u t a d o

A questão parece ser sob encomenda para o computador e, portan­


to, parece feita para ser resolvida por um algoritmo. E é muito fácil
escrever um algoritmo que vá resolvê-la:

GERE trajetos aleatórios pelo quadro


RESERVE os trajetos que começam em Witten e terminam
em Wapping Falis
DESCARTE todos os outros trajetos
RESERVE qualquer trajeto que passe exatamente por
sete cidades diferentes
SE nenhum trajeto passa exatamente por sete cidades diferentes
GERE trajetos aleatórios pelo quadro novamente...

Estas seis linhas, que são facilmente expressas em BASIC, de


rato servem para resolver o problema de Waterman, mas há algo
;laramente irritante sobre as instruções que dão. Gere trajetos
ileatórios pelo quadro?

O ADVENTO DO AL GO R ITM O 347


Quer dizer, por exemplo, pegar o nome das cidades em um
chapéu?
É isso que eu estou falando e parece de fato ser uma tarefa
estranhamente indisciplinada para um computador, sugerindo um
traço insuspeito de frivolidade em um amigo até então conhecido
por sua sobriedade incontestável. O programa pode dar uma
solução satisfatória para o problema de Waterman logo da primeira
vez que se pegar um nome de cidade; mas o próprio Waterman é
tão capaz quanto qualquer pessoa de pegar nomes em um chapéu;
e o que é pior —muito pior —é o fato sombrio de que não há como
se saber com certeza se os trajetos aleatórios que se pega não vão
demorar uma eternidade para levar o pobre Waterman centrifuga-
mente até Grainball City e não para outro lugar qualquer, ou forçar
Waterman a ficar indo em círculos entre Sad Sac e Wittless, ou até
enviar Waterman inexoravelmente para Amblot, de onde, da janela
de seu hotel, ele pode observar frustrado os sombrios contornos
das indústrias locais de desfolhar milho.
Essas circunstâncias têm um ar curiosamente moderno, i\
despeito da profissão antiquada de Waterman. A relação entre
rotas e cidades é perigosamente instável. À medida que cidades
são acrescentadas ao quadro de Waterman, o número de rotas
entre elas cresce desmedidamente. (Na verdade, de acordo com a
fórmula de Sterling, n\ é assintoticamente igual a (n /e )n ^Í2nn e,
portanto, exponencial em n .) É a inflação combinatória , uma espé­
cie de prima cômica da inflação cósmica que os astrofísicos acre­
ditam ter inflado o universo imediatamente após o big-bang.
Como seria de esperar, este problema e os problemas que lhe
são cognatos são de interesse excepcional para os especialistas em
informática, e a análise deles desemboca no que no momentó é o
problema mais profundo na teoria algorítmica. Os teóricos da infor­

348 D avid B erlin ski


mática, como todas as outras pessoas, organizam seus interesses
lazendo listas. Neste caso, a lista contém apenas dois itens e dá ao
leórico uma visão panorâmica dos problemas possíveis. Um proble­
ma que pode ser resolvido em tempo polinomial pertence ao que é
chamado de classe de complexidade P (polinomial); e pertence a ela
se sua solução pode ser encontrada em um número finito de passos.
A idéia envolvida é simples.
Uma função polinomial é da forma

f(x ) = anx + an.?~\ +...+ajX + a0

Um especialista em informática precisa de uns dez passos


para expressar o problema de Waterman. O problema está segura­
mente em P se existe um limite para a função/(x) — um número
íilém do qual f(x ) não passa —tal que sua solução pode ser alcança­
da em não mais do que f(x ) passos. Se, por exemplo, são neces­
sários 10 passos para se expressar o problema e 103 passos para se
rncontrar sua solução, o problema é polinomialmente limitado
(pelo polinómio a3 = 1.000).
Na classe de complexidade N P (não-polinomial), por outro
lado, estão os problemas cujas soluções podem ser verificadas, mas
não necessariamente encontradas em tempo polinomial. O problema
dc Waterman claramente pertence a esta classe. É fácil checar se ele
lem uma solução caso ele tenha um esquema de trajetos. O esque­
ma proposto de fato leva Waterman de Witten a Wapping Falis
passando apenas uma vez pelas cidades restantes? É só olhar! Se
leva, o esquema é uma solução. Se não, não. A parte difícil é encon-
Irar o esquema certo em primeiro lugar; isso pode levar um tempão.
É a relação entre P e N P que é de grande interesse con-
ccitual e prático. Claramente, P denota os problemas tratáveis do

O ADVENTO DO ALGORITMO 349


mundo, e NP os problemas que não são tratáveis; e o que os teóri­
cos e todo o resto do mundo gostariam de saber é se existe algum
método para reduzir problemas intratáveis àqueles que são tratáveis.
Como dizem os teóricos, no fim das contas, P = NP? Problemas
cujas soluções podem ser facilmente verificadas podem ser reduzi­
dos a problemas cujas soluções podem ser facilmente encontradas?
Por enquanto, ninguém sabe.
Estas são as preocupações dos teóricos. Mas pense bem. Water-
man precisa dar conta de apenas sete cidades. As companhias aéreas
modernas coordenam horários de centenas de vôos. Mesmo os maio­
res e mais poderosos computadores são incapazes de lidar com
números desse tamanho.
Não há, que saibamos, como evitar a inflação combinatória ou
como reduzir cada problema NP a um que seja P. É o degrau baixo
no jardim que faz tropeçar o homem e a máquina. O degrau baixo não
é inevitável, como a morte ou os impostos. Uma criancinha esper­
ta começando a andar, fazendo gu-gu em um bercinho em Seul ou
Calcutá, sonhando em se tornar um figurão em 2 0 2 0, pode ter a
solução para o problema na ponta de seus terminais nervosos em
botão. Por enquanto, este degrau, como a Oprah Winfrey2, sim­
plesmente está lá, irritante e inescapável.
Mas existe uma coisa quase tão boa. Velocidade e tamanho são
freqüentemente substitutos para a esperteza, e se ninguém con­
segue descobrir como se resolve os problemas diretamente, tal que
o computador ingira os dados e cuspa a solução de imediato em
tempo polinomial limitado, pode ser que seja possível, afirma a vov.
solar do senso comum, examinar as buscas aleatórias necessárias

2. Famosa apresentadora de televisão norte-americana. (N. do E.)

350 D avid B erlin ski


rapidamente por meio de técnicas computacionais que fazem
muitas buscas aleatórias ao mesmo tempo.
É aqui que o que é familiar se funde no improvável, como em
um sonho; pois o que Leonard Adelman fez foi codificar o proble­
ma de Waterman na engrenagem da biologia molecular, permitin­
do que o maquinário antigo e inteligente da vida se ocupasse de
seus casos práticos.

V ida l i t e r á r i a

Muitas vezes acontece um avanço científico simplesmente por­


que alguém percebeu o óbvio. (Esta é uma observação obviamente
interesseira.)
Cem anos atrás, era possível imaginar que um organismo vivo
podia ser decomposto em estruturas bastante simples, organismos
compostos de órgãos, órgãos compostos de tecidos, tecidos de célu­
las; e células, que os biólogos do século XIX freqüentemente imagi­
navam como glóbulos nacarados, pequenas pérolas com nenhum
Ufau de complexidade interna em particular ou de monta. Mas por
que ir tão longe no passado quando, ainda recentemente, em 1955,
o sr. Redenheffer, quando não estava no ginásio onde era treinador
de voleibol das garotas do ensino médio, dava um curso intitulado
Análise do Sangue e da Urina no qual os micróbios padrão —
1'lscherichia choli , Streptococcus pyogenes e outros do tipo — eram
discutidos como se fossem gotículas gelatinosas com apenas umas
poucas partes móveis, facilmente classificadas pelas manchas que
produziam ou pelas doenças que causavam. Hoje sabemos que, no

O ADVENTO DO ALCORITMO 351


nível molecular, os sistemas vivos são fantasticamente complexos,
os glóbulos de Redenheffer brasões luminosos adornados com jóias.
Vistos sob microscópios pouco potentes, as células bactéria
nas se parecem de fato com uma gota de gelatina, brilhantes, nada
interessantes e viscosas - pressionando gentilmente a palma da
mão sobre meus olhos, posso imaginar o sr. Redenheffer encurva
do desajeitadamente sobre o microscópio, a gravata caindo no fras
co de amostras. Mas quando o poder do microscópio é aumentado
tal que a bioquímica da célula fica palpável, um mundo novo em
folha e brilhante aparece, o limo nada mais era do que a cobertura
incidental e descuidadamente arquitetada que a célula jogou sobre
si mesma para ocultar de olhos abelhudos o complexo maquinário
bioquímico que acontece debaixo da tenda, lindo como um balé de
Balanchine é lindo, e infinitamente mais misterioso. A bioquímica
tem uma natureza admiravelmente abstrata e literária, tal que o
pobre sr. Redenheffer, tivesse ele olhado com mais cuidado poi
aquele microscópio, poderia ter visto, respondendo ao seu olhar da
lâmina manchada, uma mensagem, algum significado, algum sinal
secreto de inteligência.
A organização da célula bacteriana é, de fato, como um mara
vilhoso mistério de Sherlock Holmes no qual gradualmente o sober
bamente anoréxico Holmies discerne que os movimentos brilhante:,
da célula provêm de uma fonte central. A magistral molécula que o
sr. Redenheffer não viu e não podia imaginar —ele morreu em 1956,
seu obituário revela a muitos atônitos alunos do ensino médio que
ele havia servido na SS e descera de pára-quedas na França ocupa
da —está viva e trepidante de informações, o local onde o plano
corporal de um organismo é escrito. É o DNA, obviamente, o grande
espectro molecular.

352 David Berlinski


O DNA é uma hélice dupla, isto todo mundo sabe, a imagem tão
l.imiliar quanto a Marilyn Monroe, dois filamentos distintos liga­
dos um ao outro por uma sucessão de degraus, tal que a molécula
parece com uma escada comum vista debaixo d agua, os fila­
mentos curvos e ondulantes. A informação é armazenada em cada
hliimento por meio de quatro bases —A (adenina), T (timina), G
(^uanina) e C (citosina), que são por natureza substâncias quími­
cas {bases, obviamente, e, portanto doadores de prótons), mas fun­
cionam como símbolos, os instrumentos por meio dos quais uma
mensagem genética é transmitida. As bases são agrupadas em
iripletos semelhantes a palavras: A G C , CTA, T G C , CG A , A G C.
I\ destes agrupamentos existem sessenta e quatro.
Agora dê um passo atrás —por favor. O ato fundamental de
criação biológica, o mais significativo dos mistérios úmidos ao
longo da grande variedade de mistérios úmidos, é a construção de
um organismo a partir de uma única célula. Olhe de trás para a
frente para que as coisas apareçam invertidas (estou dando minha
própria perspectiva): Viagra descartado, cabelo de volta, pele reju­
venescida, aquele casamento infeliz zunindo de volta no tempo,
dentes sem jaqueta, lembranças de uma radiante jovem correndo
por um campo de lilases, uma bicicleta com pneus cheios, joelhos
.linda com pele, groselha e tardes em New Hampshire; mas onde
.1 memória desaparece em um vislumbre do sol do meio-dia visto
de um berço no inverno, o drama biológico apenas começa, porque
;i criatura rosada, gorducha e arrulhante que se demora no início
da jornada, cuja existência estou agora inferindo, a que improvavel­
mente reage a qui gachinha, chegou ao mundo como resultado de
uma espetacular aventura de nove meses, uma aventura que tem
início em um ponto do tamanho da cabeça de um alfinete e que se
transforma, por meio de repetidas divisões celulares controladas,

O ADVENTO DO ALGORITMO 353


em um organismo de estruturas ramificadas e intricadamente coor­
denadas, estas organizadas em sistemas, os sistemas por sua ve/,
animados e controlados por um rico aparato bioquímico, o proces­
so de criação biológico diferente de tudo o que é visto em qualquer
parte do universo, estranho mas sedutoramente familiar, porque,
quando os detalhes são descartados, o milagre revelado parece afim
de milagres de outro tipo, aqueles nos quais algo é lido e, como
resultado, algo é compreendido; algo é exigido e, como resultado,
algo é feito; algo é perguntado e, como resultado, algo é realizado.
O plano por meio do qual esta espetacular construção de
nove meses é orquestrada reside no DNA. Este é o dogma corrente
(o que é motivo insuficiente, eu acrescentaria, para achar que é ver­
dadeiro). Plano é a palavra apropriada, pois enquanto o resultado
do drama é uma surpresa, a criança se revelando se parecer com
o irmão da mãe e com a tia-avó (cabelo ruivo, orelhas grandes e
proeminentes), o processo em si procede inexoravelmente de um
estado ao seguinte, e processos desse tipo, que são combinatórios
(as células se dividem), finitos (terminam na nobre e adorável criatu­
ra que tem o meu nome) e discretos (células são células), parece­
riam ser essencialmente de natureza algorítmica, o algoritmo agora
aparecendo e marcando seu aparecimento dentro das próprias
entranhas da vida em si.
Agora, se o DNA funciona como o algoritmo do crescimento da
vida, outro grupo de moléculas — as proteínas — compõe o seu
estafe; é aí que a mensagem genética é expressa. O que não é uma
surpresa. A resolução de cada organismo em seus componentes
bioquímicos revela precisamente a mesma plataforma: criaturas
vivas são construídas a partir de proteínas, que estão para a formi­
ga, o rato-do-mato e a toupeira como os tijolos para os prédios.

354 David Berlinski


As proteínas são moléculas complexas, compostas por sua vez
de vários aminoácidos. Existem vinte aminoácidos no total, e a
maioria das proteínas são cadeias de cerca de 250 resíduos de
comprimento. (Um resíduo é um aminoácido do qual a água foi
retirada, deixando um invólucro seco.) Isso permite à vida o luxo
de escolher a partir de mais de 20250 proteínas possíveis, a multi­
plicação das possibilidades outro exemplo de inflação combinatória,
como quando as rotas crescem explosivamente entre as cidades,
ou as frases se acumulam nas línguas naturais.
Ainda está faltando uma modalidade literária na equação.
Temos uma biblioteca, uma biblioteca que armazena informação e,
muito longe, onde o organismo vive, pode-se ver para que propósi­
to é usada a informação, um algoritmo inacessível ostensivamente
orquestrando o negócio todo. Mas por si só, um universo bioquími­
co, o dos ácidos nucléicos, não tem nada a ver com o outro uni­
verso, o das proteínas. E no entanto, a mensagem escrita em um é
expressa no outro. O que se quer, obviamente, é um código. Um
código significando um meio de transporte de um mundo ao outro.
E o que é necessário, a vida fornece sob a forma do código genético ,
que serve para associar a cada tripleto nucléico um aminoácido
correspondente (veja a figura 14.2).

E aqui que os segredos da criação são parcialmente revelados,
porque o código mostra como tripletos em uma molécula de DNA
são emparelhados, e emparelhados diretamente, com certos aminoá­
cidos, o código genético servindo para interpretar um comando
em uma linguagem e assim estabelecer que seja expresso em outra.
O código funciona por meio do mais simples dos estratagemas. O DNA
é lido, tripleto por tripleto, tal que a ordem dos tripletos induz uma
ordem correspondente nos aminoácidos, até que o aparato genéti­
co seja esvaziado de toda a sua mensagem e um universo de pro­

O ADVENTO DO ALGORITMO 355


teínas esteja formado. Como o quadro de linhas intermunicipais, qu<*
é uma pálida imitação do fogo central da criação, o código genéti­
co realiza uma rede associativa de possibilidades. É quase univer­
sal, o quadro que controla sutilmente a vida de todos os seres vivos;
e é quase coextensivo com a própria vida, a mensagem e seu sig­
nificado tendo surgido uns quatro bilhões de anos atrás.
Há nas criaturas vivas dois universos incorporados em dois
conjuntos de cadeias. O significado é inscrito em moléculas e, assim,
há algo que lê e algo que é lido; mas elas são, as cadeias, mais fe­
cundas do que os romances mais fecundos, pois enquanto Anna
Karenina de Tolstoi só pode sugerir a mulher, seu cabelo preto
preso em coque —a mesma mensagem, com o mesmo significado -
quando lida pelos agentes bioquímicos certos, pode trazer a mu­
lher à vida vibrando e reclamando, a leitura agora devolvida ao
lugar a que tem direito enquanto ato supremo de criação.
Reinando pesaroso sobre suas pipetas e frascos malcheirosos,
seu estranho chino cor de laranja torto e a gravata manchada de
amarelo brilhante, seria isto algo que o sr. Redenheffer poderia ter
previsto?

A VOZ DA ETERNIDADE

O DNA é uma molécula envolvida na criação, aqueles tripletos


armazenando informação e depois liberando o que armazenaram;
mas o DNA é também uma molécula destinada à imortalidade, o
design da molécula talhado para permitir que avance para o futuro.
O mecanismo é simples, lúcido, irresistível, extraordinário. Na trans­
crição, a molécula se volta para fora para controlar as proteínas. N;i

356 David Berlinski


segunda letra

U C A G

UUU UCU' UAU UGU ' u


phe tyr cys
UUC. UCC U AC. UGC. c
u ser
UUA UCA UAA stop UGA stop A
leu
UUG. U CG . UAG stop UGG trp G

CUU CCIT CAU CGU U


his
CUC CCC CAC. CGC C
c leu pro arg
CUA CCA CAA' CGA A
gin

terceira letra
CUG. CCG. CAG. CGG. G

AUU ' ACU AAU ' AGU ' U


asn ser
AUC ile ACC AAC . AGC . C
A
r\ thr
AUA . ACA AAA ' AGA A
lys arg
AUG met ACG . AAG . AGG . G

GUU GCU GAU GGU U


asp
GUC GCC GAC. GGC C
G vai ala giy
GUA GCA GAA ' GGA A
glu
GUG. GCG. GAG. GGG. G

14.2. O código genético. Os aminoácidos representados pelos sessenta


c quatro tripletos possíveis, ou códons, do mARN. Os códons do ARN
podem ser diretamente ligados aos códons do DNA por regras de empa-
wlhamento de bases, mas são os códons do ARN que são diretamente
traduzidos durante a síntese de proteínas. Aqui, U é uracila, que subs­
titui o T (timina) do DNA no ARN. Helena Curtis, Invitation to
lliology, 4- edição. (Nova York: Worth Publishers, 1985): 194.

O ADVENTO DO ALGORITMO 357


14.3. Hélice do DNA . 14.4. DNA achatado exihindo
os pares de bases.

replicação, é a estrutura interna do DNA que transmite segredos,


não de uma molécula para outra, mas do passado para o futuro.
O ADN tem dois filamentos e cada um deles em uma única
molécula é um sistema de armazenamento de informações. Um
esquema de atração química atua entre os filamentos; de fato, tem
de haver algum esquema atuando para que os filamentos perma­
neçam presos um ao outro. As laterais de uma escada de madeira
comum são mantidas juntas por meio dos tirantes intervenientes.
O sistema como um todo é totalmente mecânico. No caso do DNA,

358 David Berlinski


o esquema é totalmente químico. As bases em cada filamento são
emparelhadas tal que A é atraído pela T, e C pela G. Quando digo
íitraído, quero dizer que existe uma força de atração entre A e T , e
entre C e G, mas não entre A e G. É essa força que une os pares
de bases. A ligação entre os pares de bases forma a ponte entre os
filamentos e faz com que a espiral dupla se assemelhe a uma esca­
da (veja as figuras 14.3 e 14.4).
Em algum ponto na vida de uma célula, o DNA é dividido tal
que, em vez de uma única escada, dois filamentos separados podem
ser encontrados ondulando gentilmente como copas de algas mari­
nhas, a ligação entre os pares de bases rompida. Como nas histórias
antigas nas quais os seres humanos originalmente eram hermafrodi­
tas, cada filamento se encontra saudosamente incompleto, as bases
insatisfeitas por não estarem ligadas. Com o tempo, as bases atraem
antagonistas químicos do caldo ambiente no qual estão nadando,
tal que, se um filamento em particular de DNA contém primeiro A
e depois C, a atividade química, e apenas a atividade química, leva
um T errante a migrar para A, o mesmo valendo para G, que se
move para C, tal que, no fim, o filamento que estava só ganha seu
conjunto completo de pares de bases complementares. Onde havia
apenas um filamento de DNA, agora há dois. Nua, mas viva, a mo­
lécula prossegue corcoveando e deslizando futuro adentro.

S l M, MAS

l)eixe-me perguntar algo. Não há realmente nenhuma razão para


que os símbolos bioquímicos, tanto quanto as palavras em uma lín­
gua natural pudessem, como um farol, ter seu foco mudado, uma

O ADVENTO DO ALGORITMO 359


seqüência em particular de bases — C-A -G -A -C -T, digamos — re­
presentando uma cidade em vez de dois aminoácidos, não é? Estou
fechando a cortina de uma ligação entre um Leonard Adelman
tomando sol no ensolarado sul da Califórnia e Arthur Allan W ater­
man batendo os pés e congelando na frente do quadro de linhas
interm unicipais na hiperbórea W itten.
Símbolos são símbolos, certo? E se símbolos são símbolos, então
cada uma das sete cidades na rota de W aterm an pode receber um
nome bioquím ico único:

W itten = ACGATC
W ittless = C G C TC A
Grainball City = TTGACC
Sad Sac - AGCATA
Amblot - AG AC CA
W aterloo = TACAGG
Wapping Falis = TTGAAT

E ste esquem a serve para associar sete plácidas cidades do


M eio -O este a um conjunto, que em outras ocasiões se ocupam
de outras coisas, de bases bioquím icas, uma conexão improvável
estabelecida entre formas muito diferentes de vida. M as o esque­
ma faz mais do que isso. Sugere tam bém um sistema secundário
por meio do qual trajetos entre cidades podem também ser repre­
sentados bioquim icam ente, o trajeto entre W itten e W ittless for­
mado pelo truque de juntar as últimas três letras do símbolo químico
para W itten às primeiras três letras do símbolo químico para W ittless:
assim, A TC C G C , um nome secreto, mas, no entanto, sensato,
designando o trajeto feito por um ônibus interurbano amarelo.
A codificação não passa de outro truque conveniente, que pode sei

36 0 D avid B erlin ski


Chegadas

Witten Wittles Grainball City Sad Sac Am bot Waterloo Wapping Falls
ACGATC CGCTCA TTGACC AGCATA AGACCA TACAGG TTGAAT

Witten T enW it T enG rain T enA mb T enWap


ACGATC X ATCCGC ATCTTG X ATCAGA X ATCTTU

Wittless LessW it LessG rain LessSad LessWap


X X X
CGCTCA TCAACG TCATTG TCAAGC TCATTG
Partida:

Grainball C ity C ityW it C ityW it C ityWat C ityWap


X X X
TTGACC ACCACG ACCCGC ACCAGG ACCTTG

Sad Sac SacW it SacA mb SacWat


X x X X
AGCATA ATAACG ATAAGA ATATAC

Amblot BlotW it BlotW it


AGACCA CCAACG CCACGC x X X X X

Waterloo LooSad LooA mb


TACAGG X X X AGGAGC AGGAGA X X

Wapping Falls FallsG rain FallsSad


TTGAAT X X AATTTG AATAGC X X X

14.5. Quadro de linhas intermunicipais com os nomes em inglês e os nomes químicos para indicar as rotas.
também realizado por meio dos próprios nomes das cidades, o mes­
mo trajeto entre Witten e Wittless designado por TenWit em letras
do alfabeto.
Uma modesta embaralhada é suficiente para provocar uma
reconfiguração do próprio quadro de linhas intermunicipais (veja a
figura 14.5).
E com a reconfiguração completa, o primeiro passo em um
curioso processo de subversão intelectual foi dado.

E x p l i c a ç õ e s na
HORA DO ALMOÇO

■ ■ ■ ■ Estou explicando tudo isto para a minha editora e para a


minha agente. —É óbvio, certo? —digo, cheio de expectativa.
—Bem, é —diz minha editora, dubiamente. Ela é uma mulher
bonita de tez rosada.
Estamos almoçando em um restaurante de São Francisco cha­
mado O Gingado da Jessica, um desses lugares estranhos onde a
atenção do cliente é desviada da comida razoavelmente maravi­
lhosa pelo serviço, que oscila entre a intimidade e o descaso.
—Você está dizendo que não recebeu o guisado de cebola? -
pergunta nossa garçonete, examinando atentamente os restos nos
pratos, suas tatuagens azul-escuras ao sol do meio-dia. —Puxa!
Minha agente levanta o adorável rosto e segura o queixo entre
o dedão e o dedo indicador. — É tudo muito interessante, mas o
que significa?
— Significa — diz minha editora, com firmeza — que não ha
nenhuma diferença entre nomes comuns e o que quer que eles

362 David Berlinski


sejam, os elementos químicos. São ambos símbolos. É o que você
está dizendo, não é, David? Por que estou perguntando? É claro
que é o que você está dizendo.
Era mesmo o que eu estava dizendo —parece que fui afastado
com uma cotovelada de meu livro pelas minhas heroínas —, mas o
(|ue é extraordinário (estou tentando me livrar dessas observações)
não é tanto o sistema de símbolos quanto a descoberta de um
esquema algorítmico em praias estrangeiras.
Digo: —Acho que foi Leibniz quem comentou que um bom
simbolismo é um auxílio inestimável para o pensamento.
—Isso é eocatamente —diz minha agente, com dramaticidade —,
mas exatamente, o tipo de coisa que não deve botar no livro. Quer
dizer, quem vai saber quem é esse Leibniz?
Minha editora inclina a faca na direção do prato. —Acho que
o que Susan quer dizer —diz ela —, é que seus leitores vão realmente
(|ucrer saber se o experimento funcionou.
—Ah, sim, funcionou muito bem. Achei que tinha deixado
isso claro.
— Não para mim —disse minha editora. —Funcionou como?
Seus leitores vão querer saber se esse Edelweiss realmente resolveu
o problema. Quer dizer, tem esses nomes bioquímicos e tal, mas e daí?
Eu digo: —É aí que eu ia chegar. Propor os símbolos foi real­
mente tudo o que foi necessário para resolver o problema.
—Mas você tem de explicar isso para seus leitores, David.
—Você tem de explicar para nós.
Parece que tenho de explicar para todo mundo.

Deixei o pobre Waterman parado na frente do quadro de linhas


inlermunicipais; o que ele pode ver e o que deveríamos perceber é
«|ue o quadro concatena pares de cidades e apenas pares de cidades.

O ADVENTO DO ALGORITMO 363


O que ele precisa é de uma concatenação que vá além dos pares de
cidades e englobe sete cidades no total; essa informação crucial o
quadro não dá diretamente. Mas o que Waterman —e qualquer outra
pessoa —pode fazer é checar qualquer concatenação proposta de sete
cidades e ver se satisfaz aos requisitos dele. Uma concatenação entre
sete cidades tem uma forma simbólica simples: consiste dos nomes
das sete cidades. Witten —Wittless — Grainball City — Sad Sac —
Waterloo—Amblot —Wapping Falis é um exemplo óbvio. Mas Witten
— Grainball City — Sad Sac — Waterloo — Wittless — Amblot —
Wapping Falis também é. Assim como várias variantes dessas con-
catenações; qualquer concatenação que vá de Witten a Wapping
Falis serve, contanto que conecte as outras cidades de um modo que
torne possível que Waterman visite cada uma apenas uma vez.
O quadro diz a Waterman se existe conexão entre pares de
cidades. Há uma linha de ônibus entre Witten e Wittless; e uma
linha aérea entre Witten e Grainball City. Por outro lado, não há
nenhum meio público de transporte que leve de Witten a Sad Sac.
Estes são fatos da vida. No quadro original (veja a figura 14.1), a
existência de um trajeto entre Witten e Wittless é marcada por um
glifo que representa ônibus. O quadro reconfigurado usa a língua
inglesa e letras bioquímicas para indicar os trajetos entre pares espe­
cíficos de cidades (veja a figura 14.5). Mas se uma conexão entre
pares de cidades pode ser indicada por uma fusão d£ seus nomes
comuns em inglês, pode ser indicada também por uma fusão de
seus nomes bioquímicos padrão.

—Como assim? —pergunta minha editora.


—Bem, temos esses nomes para as cidades, não é? E temos um
modo de representar trajetos entre cidades. Estou falando daque­
le negócio com a última sílaba e a primeira sílaba, certo?

364 David Berlinski


As duas meneiam a cabeça afirmativamente.
—Dê-nos um exemplo —pede minha agente, em dúvida.
—TenWit. Já expliquei isso.
—Preciso que explique de novo.
— Podemos também expressar TenWit em termos bioquími­
cos, certo?
— Eu estou acompanhando —diz minha agente —, mas temo
por seus leitores.
—Não, eles vão entender, acredite. O equivalente bioquímico
de TenWit é simplesmente ATCCGC — as três últimas letras de
ACGATC e as três primeiras letras de CGCTCA. Não se esqueça
que ACGATC representa Witten e CGCTCA representa Wittless.
Quer dizer, olhe para o quadro.
—Bem, sim —diz minha agente, franzindo o nariz.
—Agora, para ir de Wittless para Grainball City é a mesmíssi­
ma coisa. O quadro diz que tem uma linha de ônibus entre as
cidades, certo?
Um forte “certo”— vindo tanto de minha agente quanto de
minha editora.
—Então, em vez do símbolo para ônibus, poderíamos também
escrever LessGrain, certo? *
Outro “certo” duplo.
— E em vez de LessGrain, poderíamos também escrever
TCATTG, certo?
Silêncio.
— Não, não, é fácil, CGCTCA é apenas o nome bioquímico
de Wittless e TTGACC o nome bioquímico de Grainball City,
então o trajeto entre as duas é apenas os três últimos símbolos de
CGCTCA e os primeiros três símbolos de TTGACC.

O ADVENTO DO ALGORITMO 365


Minha editora fica segurando o garfo no ar e diz: —Mas isso
é muito óbvio, David.
—Muito óbvio —acrescenta minha agente.

T onel de g r u d e

No coração da vida há um mistério no qual substâncias bioquími­


cas se transformam em símbolos e símbolos adquirem uma identi­
dade como substâncias bioquímicas. No esquema que acabei de
delineàr, CGCTCA é puramente um símbolo — representa algo,
como todos os símbolos. Acontece que CGCTCA representa uma
cidade em particular. Mas CGCTCA também é um objeto físico,
que assume seu lugar entre os outros objetos físicos do mundo e,
portanto, sujeito às forças e regularidades que dão forma à matéria
em todas as suas formas. É este aspecto duplo entre símbolos como
símbolos e símbolos como coisas que, como uma linha vermelha
esticada na areia branca, é a marca do algoritmo, a corrente de sua
vida. E é este aspecto duplo que serve também para oferecer ao meu
pobre Waterman um esquema para a solução de seus problemas.
Agora devemos permitir que os símbolos se afastem do hori­
zonte de eventos. O que fica em seu lugar é um grande tonel de
grude, o grude consistindo de várias substâncias bioquímicas.
Incluídos no grude estão todos os trajetos bioquímicos entre as
cidades. Todos eles, note bem. Esses trajetos bioquímicos podem
ser facilmente preparados no laboratório usando-se técnicas bio­
químicas muito comuns.
O que mais tem o grude? Outros nucleotídeos, obviamente,
com suas propriedades de sempre. E entre essas propriedades, há

366 David Berlinski


uma que é crucial. Pares de bases se ligam umas às outras, tal que,
como na própria vida, o tonel de grude contém pares de bases que,
sob certas circunstâncias, se atraem fortemente e seguram firme.

■ ■ ■ ■ —Hum, sim —diz minha editora —, mas o que isso tem a


ver com passar pelas sete cidades?
—Tudo —digo eu, com firmeza.
—Isso você tem que explicar, David —diz minha agente, que es­
tava lançando olhares para o carrinho de sobremesas com o que
me parecia ser um óbvio desejo.
—Olhe, é na verdade muito simples, mas é também meio difí­
cil de perceber. Suponha que você tenha um trajeto entre Witten
e Wittless, certo?
As duas disseram que sim com a cabeça.
—E suponha que você também tenha um trajeto entre Wittless
e Grainball City.
— Está bem, estou supondo — diz minha agente, que havia
virado a cara com decisão para os doces.
—O que você precisa agora —o que Waterman precisa a seguir
—é de uma tala entre esses dois trajetos.
*
—Uma tala?
—Um modo de juntar trajetos.
—Por que precisamos disso?
— Porque se esse tonel de grude puder formar uma tala que
conecte sete cidades, e cada uma dessas cidades for distinta, então,
quando a tala for lida ela vai ser a solução do problema de Waterman.
(Gostaria de ter a capacidade literária de evocar o milagre que
estou mencionando de modo tão casual, o mesmo sugerido pela
leitura de uma cadeia de substâncias químicas.)

O ADVENTO DO ALGORITMO 367


/
Continuo mesmo assim em prosa simples: —E isso o que eu
quero dizer com tala. É muito simples. O trajeto de Witten a Wittless
é TenWit ou ATCCGC. E o trajeto de Wittless a Grainball City é
LessGrain, ou TCATTG.
—Você já disse isso, David —diz minha agente.
—Eu sei, só quero me certificar de que está claro.
—Certamente está —acrescenta minha editora.
—Tudo bem, se está claro, então, o próximo passo deve estar
claro, também. O que precisamos fazer é formar uma tala de TenWit
a LessGrain.
— Por que precisamos fazer isso? — perguntam as duas ao
mesmo tempo.
—Porque se pudermos ir de TenWit para LessGrain, então po­
demos dizer a Waterman que existe um trajeto de Witten a Wittless
e depois de Wittless a Grainball City.
—Então você está dizendo —diz bruscamente minha agente —
que precisamos ligar Witt a Less por uma tala. Quer dizer, uma tala
entre Witt e Less é apenas outro modo de dizer que temos um tra­
jeto entre Wittless e Grainball City.
—Certo.
—Mas Waterman precisa de um trajeto entre sete cidades —diz
minha editora. —Quer dizer, se você pudesse ligar por meio de uma
tala Wittless a Grainball City, elas são apenas duas cidades, certo?
—Está certo. Mas é um começo.
Minha editora e minha agente estão encarapitadas na beira
de suas cadeiras, mulheres charmosas esperando que eu continue
com a história.
■ ■ ■ ■

368 David Berlinski


E é no tonel de grude que a história continua, porque o que
o tonel de grude consegue fazer —o que já tinha feito, na verdade —
é formar trajetos entre trajetos por meio de nada mais complicado do
que os mecanismos de atração e repulsão. Pares de bases se atraem,
essa é a natureza deles. E, dentro do tonel, os vários trajetos pos­
síveis entre trajetos se formam por meio exatamente dessa atração.
O trajeto entre Witten e Wittless é ATCCGC; o trajeto de Wittless
a Grainball City é TCATTG. Para ligar esses trajetos por meio de
uma tala, C G C deve ser ligado a TCA por uma tala. Essa ligação
pode ser conseguida por uma substância bioquímica com seis
nucleotídeos de comprimento, cujos primeiros seis nucleotídeos se
ligam a C G C , e cujos três nucleotídeos seguintes se ligam a TCA.
De fato, G CGA GT é precisamente tal seqüência. Você deve por­
tanto imaginar ATCCGC e TCATTG flutuando a esmo no tonel de
grude. Ao encontrar por acaso a seqüência GCGAGT, eles se jun­
tam e formam um bloco, devido ao fato de que GCGAGT mantém
as duas seqüências juntas, como um gancho:

Tala
GCGAGT

ATCCGCTCATTG
dois trajetos

À medida que várias substâncias químicas vagueiam pelo


grude, a ligação ocorre por acaso, e a formação de talas também, mas
o importante e misterioso é que isso de fato ocorre. Depois que o
processo começa, ele continua. Trajetos são formados entre traje­
tos, e, depois, trajetos entre os trajetos resultantes, até que no fim
o tanque de grude produziu uma quantidade incontável de trajetos
entre cidades, incluindo incontáveis trajetos entre sete cidades.

O ADVENTO DO ALGORITMO 369


■ ■ ■ ■ —Não tem nada de complicado nisso —disse eu. —Não é
astronáutica.
— Este é exatamente, mas exatamente, o tom que você tem
que evitar —diz minha agente.
Ela está sentada, meio sem fôlego, uma mulher delicada com
cabelos escuros macios e olhar pensativo.
—Exatamente —acrescenta minha editora, de imediato.
—Entende, o que Adelman compreendeu, e esta é realmente
a parte engenhosa, ele compreendeu que tudo de que ele precisa­
va era reunir as cidades e os trajetos entre elas e as bases que se
ligam aos trajetos.
—Como está tudo por aqui, gente? —pergunta o jovem de uns
vinte e poucos anos usando calça de algodão sarjado e camisa bran­
ca que parece estar se fazendo passar por maître. Dizemos “tudo
bem” em uníssono. Ele meneia a cabeça e se afasta.
—Então a química assumiu o controle, as substâncias quími­
cas meio que tropeçando umas nas outras, construindo trajetos
cada vez mais longos.
—E você está dizendo que isso funcionou}
—Ah, sim. Quer dizer, levou uma semana, mas, no fim, Adel­
man conseguiu achar o trajeto certo, aquele que ia de Witten para
Wapping Falis e passava apenas uma vez por cada uma das cidades
da rota dele.
Nossa garçonete reaparece para perguntar pela sobremesa. —
Que tal o pudim de pão? —pergunta minha editora. —Eu adoro pu­
dim de pão.
—Está meio massudo —disse a garçonete.

370 David Berlinski


Meamos sentados mais alguns minutos, esperando pela conta.
Vindos da clarabóia, longos raios de luz do sol da Califórnia se
espalham pelo chão.
—Como o Adelman encontrou o trajeto certo?
*
—E fácil. Lembra o que eu disse sobre problemas desse tipo?
Que é fácil checar uma solução, mas que é difícil encontrá-la?
O grude produziu um lote inteiro de soluções possíveis. Tudo o que
Adelman teve que fazer foi, por assim dizer, filtrar o grude para ver
se havia uma solução que atendia ao critério de Waterman. Ele usou
bioquímica padrão para procurar entre os trajetos e ver se algum
deles ia de Witten até Wapping Falis passando por todas as outras
cidades apenas uma vez. Levou uma semana, mas encontrou.
—Gostei mesmo do seu Arthur Allen Waterman —disse final­
mente minha editora. —Esse Edelweiss de quem você fica falando,
ele precisa ser melhor trabalhado. Não acho que ele esteja pronto.
—Eu nem consigo vê-lo —concordou minha agente.
Que podia eu dizer? Eu o via como um homem franzino de
altura mediana; fartos cabelos ruivo-claros, rareando na frente, pen­
teados para trás; larga testa bronzeada —ele é, afinal, da Universidade
do Sul da Califórnia —, rosto de traços finos marcados; apenas os
olhos azul-claros irrequietos sugerindo, por falta de profundidade,
soturno descontentamento.
—Você está inventado isso, David, ou você conhece o sujeito?
—Bem, mais ou menos inventando.
— Mais ou menos?
— Mais para mais.
— Mais, quanto?
—Totalmente.

O ADVENTO DO ALGORITMO 371


T o d o a q u e l e g r u d e

Em algum lugar, em algum laboratório, deve ter realmente existido


um tonel de grude bioquímico, as longas moléculas bioquímicas
tropeçando umas nas outras cabum, cabum , até que, finalmente,
por meio do acaso e das leis da química, o trajeto certo se formou,
aquele que Adelman poderia discernir por meio de seu engenhoso
código que representava uma rota de sete cidades de Witten até
Wapping Falis.
Foi o grude, suponho, que inflamou minha imaginação —e a
imaginação de todo mundo também. O experimento de Adelman
foi relatado amplamente, e, como muitos outros experimentos
biológicos, todo mundo apreciou seu sucesso sem entender muito
bem sua importância.
Nada no grude mudou o básico da situação, é óbvio. O grude
conseguiu implementar o mesmo algoritmo que um computador
poderia ter usado, mas o algoritmo continuou resolutamente não-
determinístico, o grude procurando aleatoriamente, exatamente
como o algoritmo requeria. Não, e não foi surpreendente que o
grude conseguisse resolver o problema. Há, afinal, 1023 moléculas
em uma única colher de sopa de água, e estamos falando aqui de
um tonel de grude. Foi imensamente engenhoso, sem dúvida, por
parte de Adelman, reconhecer a rica ainda que latente capacidade
de certas substâncias bioquímicas de armazenar informação, mas
o que havia no experimento que parecia estranho, desorientador e
perturbador?
A dissolução de categorias estabelecidas, talvez, uma certa
mudança de expectativas; não, não, mais do que isso, foi o apare­

372 David Berlinski


cimento de inteligência em praias estrangeiras que parecia deixar o
órgão da intuição palpitando. O obscuro e misterioso grude tem
feito parte de nossa imaginação coletiva por muitos anos, o tipo de
coisa que aparece nos filmes onde um cientista olha atento para
dentro de uma pipeta e exclama para seu assistente: "Meu Deus,
está crescendo!”. Mas, na universidade, Adelman de fato fez o
grude fazer algo e assim revelou que, naquele fantástico mundo
molecular, ordens podem ser dadas e obedecidas, o bruxuleio de
prontidão no grude sugerindo que, sempre que previsível, reações
organizadas são possíveis, e também as computações, e a inteligên­
cia, e a mente.
Mas a metáfora sugere mais do que poderia significar e, no
fim, a mente que é evidente no grude é a que ricocheteia de volta
para Adelman. E assim um velho mistério familiar volta a assom­
brar a cena. Como consegue a inteligência influenciar a matéria?
Como?

O ADVENTO DO ALGORITMO 373


15

A V I A - C r ÚCIS DAS PALAVRAS

P o r ENQUANTO, ESTAMOS TODOS ESPERANDO que os portões do tem­


po se abram. A era heróica de explorações científicas parece estar
no fim, as grandes questões duradouras resolvidas, a natureza física
da realidade compreendida. Inspecionando o universo do local
onde o espaço e o tempo são curvos até a arena das partículas ele­
mentares, o físico só vê matéria em uma de suas formas. Tudo o mais
é um aspecto da matéria ou uma ilusão. Uma visão nada inspiradora.
E poucos foram inspirados por ela. “Quanto mais o universo parece
compreensível”, escreveu com azedume Steven Weinberg, “mais pa­
rece sem sentido.” Talvez seja por essa razão que as pessoas comuns
vêem o pensamento científico francamente com aversão. No entan­
to, ao mesmo tempo em que se diz que o sistema está concluído,
faltando apenas os detalhes a ser colocados nos devidos lugares, um
sistema delicado de subversão está funcionando. A mesma tecnolo­
gia tornada possível pelas ciências mina os alicerces do edifício, com-

374 David Berlinski


promete seus princípios, altera sua forma e a impressão que ela dá,
transmitindo a mensagem imemorial de que a terra é mais per­
fumada do que parecia vista do mar.

OS VAMPIROS

Sepultadas em um século, certas questões às vezes surgem no li­


miar de outro, sua vitalidade lunática estranhamente intacta, como
um dos vampiros haitianos, cabelos esvoaçando e olhos prateados
chamejantes. A complexidade, como o reverendo William Paley
observou no século XVIII, é uma propriedade das coisas, tão notá­
vel quanto suas formas ou massas; mas a complexidade, prosseguiu
ele observando, é também uma propriedade que requer uma expli-
cação, algum esquema de explicação. As estruturas simples for­
madas pela ação das ondas ao longo de uma praia —dunas típicas,
cavernas marítimas, o padrão brilhante da própria espuma perecí­
vel —podem ser explicadas por uma despreocupada invocação do
ar, da água e do vento; mas as coisas que nos interessam e nos
fascinam são diferentes. As leis da matéria e as leis do acaso, estas,
Paley parecia sugerir, controlam o comportamento dos objetos
materiais comuns; mas nada na natureza sugere o aparecimento de
um artefato complicado. Diferentemente das coisas que são sim­
ples, os objetos complexos são logicamente singulares e, portanto,
são logicamente inesperados.
Ao escrever sobre a complexidade, Paley deu exemplos que
ele tinha à mão —mormente um relógio de bolso; mas esse relógio,
cujo bisel ainda brilha depois de todos esses anos, Paley puxou para
o outro lado da vasta pança como ato de desorientação calculada.

O ADVENTO DO ALGORITMO 375


O alvo de seu argumento engenhoso era outro, o mundo dos
artefatos biológicos: a câmara secreta da orquídea, a sucessão de
processos bioquímicos que impede que o sangue jorre do corpo
depois de um corte. Estes, também, são complexos, infinitamente
mais complexos do que um relógio, e com estes extraordinários
objetos agora à disposição das ciências biológicas para ser disseca­
dos, precisamente o mesmo padrão inferencial que vai de um artefa­
to humano complexo às particularidades de seu design vai dos arte­
fatos biológicos complexos às particularidades de seus designs.
Qual, então, é a origem de sua complexidade? Esta é a per­
gunta de Paley.
E a nossa também.

J a r d i m das b i f u r c a ç õ e s

QUE SE RAMIFICAM

Ao desenvolver sua argumentação, Paley estabeleceu — ele ten­


cionava estabelecer —uma conexão entre complexidade e design e,
portanto, entre complexidade e inteligência. Seja registrado no
papel, seja gravado em código de computador, um design é, afinal,
o transbordamento da própria inteligência, seu registro na matéria.
Propriedade biológica ampla e geral, a inteligência é exibida em graus
variados por tudo o que vive. É a inteligência que mergulha a criatu­
ra viva no tempo, permitindo que o gato e a barata vislumbrem o
futuro e se lembrem do passado. O humilde paramécio é inteligente,
aprendendo gradualmente a responder a choques elétricos, mesmo
sem um cérebro, e muito menos um sistema nervoso. Mas como

376 David Berlinski


muitas outras propriedades psicológicas, a inteligência permanece
indefinível sem nenhum conjunto público de circunstâncias para
as quais se possa apontar com a intenção de dizer: “A í está, é isso
o que é a inteligência, ou com o que a inteligência se parece”.
Geralmente não se pensa o solo pedregoso entre conceitos
mentais e conceitos matemáticos como eflorescente, mas, na idéia
de algoritmo, a matemática moderna oferece um testemunho
favorável exatamente à idéia de inteligência. Como quase tudo na
matemática, os algoritmos surgem de uma antiga e enrugada classe
de artefatos humanos, coisas tão familiares na memória coletiva
que passam despercebidas. Hoje, as idéias elaboradas por Godel,
Church, Turing e Post passaram a fazer parte do corpo da matemáti­
ca, onde temas e sonhos e definições estão todos enclausurados,
mas a idéia essencial de um algoritmo irrompe resplandecente de
todos os computadores digitais, o desdobrar da genialidade tendo
se transferido inexoravelmente do teorema da incompletude de
Gõdel para Space Invaders VII crepitando em um Atari —uma pro­
gressão que sugere algo tão melancólico quanto exuberante sobre
a nossa cultura.
O computador é uma máquina e, portanto, pertence à classe
de coisas da natureza que fazem algo; mas o computador é também
um dispositivo que se divide em muitos aspectos, símbolos inseri­
dos no software à esquerda, o hardware necessário para ler, armaze­
nar e manipular o software à direita. Essa divisão de trabalho é
única entre os artefatos humanos: sugere a mente imersa no cére­
bro, a alma dentro do corpo, a presença do espírito na matéria. Um
algoritmo é assim um artefato ambidestro, residindo no coração da
inteligência artificial e da inteligência humana. A ciência da compu-
lação e a teoria computacional da mente apelam precisamente

O ADVENTO DO ALGORITMO 377


para o mesmo jardim de bifurcações que se ramificam para expli­
car o que os computadores fazem, ou o que os homens podem
fazer ou o que, na maré do tempo, eles fizeram.

Um algoritmo é um esquema para a manipulação de símbo­


los, mas dizer isso é dizer apenas* o que um algoritmo faz. Os sím­
bolos fazem mais do que permitir serem usados; eles estão lá pani
oferecer suas reflexões ao mundo. São instrumentos que trans­
mitem informação.
A mais geral das mercadorias intercambiáveis, a informação,
se tornou algo que é despachado, organizado, exibido, enviado,
armazenado, guardado, manipulado, despendido, comprado, ven­
dido e trocado. É, acredito, o primeiro objeto inteiramente abstra­
to a ter se tornado um artigo de troca, como se uma das formas
platônicas viesse a se tornar objeto de oferta pública. O esplendi­
damente reptiliano Richard Dawkins escreveu que a vida é um rio
de informações, que se origina no Éden, quase como se uma enchen­
te digital houvesse se esvaziado em seu ponto de origem. Em algu­
ma parte do Meio-Oeste americano, um físico defendeu uma visão
da reencarnação na qual os seres humanos podem esperar voltar
para suas atividades depois da morte se baseando numa simulação
em um gigantesco computador.
A promoção da informação de conceito informal parà estrela
da matemática, feita por Claude Shannon, serviu para esclarecer
um conceito difícil; serviu para outro propósito também, qual seja,
permitir que a própria complexidade fosse levada para a comu­
nidade mais ampla de propriedades que são fundamentais porque
são mensuráveis. A idéia essencial se deve ecumenicamente ao
matemático russo Andrei Kolmogorov e a Gregory Chaitin, ameri­
cano, aluno do City College na época que fez a descoberta (o espíri­

378 David Berlinski


to de Emil Post sem dúvida agindo ectoplasmicamente). O foco
do interesse deles era uma cadeia de símbolos. Linhas de código de
computador e, portanto, inevitavelmente, algoritmos, são exemplos
óbvios, mas, descendo sérias um largo lance de escada, cabelos pre­
tos penteados para trás e presos em prendedores de brilhantes,
Anna Karenina e Madame Bovary no fim se reduzem a uma cadeia
de símbolos, as mulheres arrebatadoras desaparecem nas palavras
e, portanto, nos símbolos, que as descrevem.
Em cenários semelhantes, Kolmogorov e Chaitin simultanea­
mente observaram uma corrente solidária correndo entre a aleato-
riedade e a complexidade. Um quadro de Jackson Pollock é com­
plexo no sentido de que nada a não ser o próprio quadro comunica
o que o quadro em si comunica. Olhando para aquelas curiosa­
mente irresistíveis, variadas, agressivamente aleatórias pinceladas
e vergastadas, faltam^me as palavras —a mim, entre todas as pessoasl
A fim de descrever o quadro, tenho que mostrá-lo. Esta é uma
idéia extraordinária, que capta algo há muito percebido, mas nunca
realmente especificado. A complexidade das coisas está associada às
particularidades de suas descrições. Um quadro de Andy Warhol, só
para comparar, se subordina a uma fórmula verbal banal: é só encher
a tela de alto a baixo com essas latas de tinta, Andy. Vamos lá.
Um objeto é complexo se não existe outro modo, além de
apresentar o objeto, de comunicar o que o objeto comunica; é sim­
ples na medida em que não é complexo. Isto equivale a ficar den­
tro do círculo retórico. Em vez de quadros, o matemático lida com
seqüências binárias — cadeias de Os e ls. Uma cadeia é simples,
afirmaram Chaitin e Kolmogorov, se pode ser gerada por um pro­
grama de computador (e, portanto, por um algoritmo) significativa­
mente mais curto do que a própria cadeia, e é complexa nos outros
casos, a aleatoriedade de outrora emergindo como uma medida

O ADVENTO DO ALGORITMO 379


simples e sólida da complexidade. Certas cadeias de símbolos podem
ser expressas, e expressas completamente, por cadeias que são mais
curtas do que elas; elas têm alguma flexibilidade. Uma cadeia de
dez Hs (HHHHHHHHHH) é um exemplo. Ela pode ser substi­
tuída pelo comando, dado a um computador, digamos, de impri­
mir a letra H dez vezes. O comando é mais curto do que a cadeia.
Cadeias que têm pouca ou nenhuma flexibilidade são o que são.
Não há esquema disponível para sua compressão. O exemplo óbvio
são cadeias aleatórias —HTTH H TH H H T, digamos, que eu gerei
jogando uma moeda dez vezes. Kolmogorov e Chaitin identifica­
ram a complexidade de uma cadeia com o comprimento do coman­
do mais curto de computador capaz de gerar a cadeia. Isso devolve
a discussão à idéia de informação, que funciona nessa discussão (e
em toda parte) como um objeto gravitacional maciço que exerce
uma influência enorme sobre todos os outros objetos de seu campo
conceituai.
O que dá a essa manobra definidora sua dramaticidade é uma
redução dupla. A informação que reside nas coisas vem a ser repre­
sentada por cadeias de dígitos binários, e a descrição controladora
das cadeias por um programa de computador. Mas um programa
de computador pode por sua vez ser descrito como uma cadeia de
símbolos. Os conteúdos familiares do universo foram agora removi­
dos de modo que, aleatoriedade, complexidade, simplicidade e infor­
mação se movimentam sobre um poço de cadeias que se contor­
cem, coisas implacáveis como as cobras.
Até certo ponto, o conceito de complexidade serve para explicar
a grande irrelevância que encobre as ciências matemáticas. As leis
da natureza constituem um punhado de símbolos espalhados des­
cuidadamente pelas páginas de um texto, uma seqüência concisa de
símbolos controlando a extensa estrutura da criação. Essas afirma-

380 David Berlinski


tivas comprimidas e gnósticas se referem às estruturas em grande
escala do espaço e do tempo, ao que está longe e distante, e aos bam-
boleantes fundamentos do mundo quântico. É em meio ao muito
grande e ao muito pequeno que a complexidade afrouxou seu con­
trole. A geometria do espaço e do tempo é simples o suficiente
para ser estudada e, também, o mundo quântico. E, no entanto, a
maioria das cadeias e, portanto, a maioria das coisas, é complexa,
e não simples. Não podem ser transmitidas mais simplesmente. São
o que são. Continuam não sendo suscetíveis à compressão. E esse
é um fato matemático indubitável facilmente demonstrável. É um
fato que explica por que as ciências matemáticas sempre têm de
se afastar do óbvio e do comum, o matemático e o físico como
garimpeiros revirando toneladas de solo arável para encontrar ape­
nas uns poucos gramas de ouro.
Por outro lado, é a complexidade do mundo que é humana­
mente intrigante. As estruturas mais interessantes de todas podem
ser encontradas aqui , neste planeta que gira em silêncio, outro fato
irresistível, e um fato que explica por que tantos de nós estamos pre­
parados para tratar aquelas variadas viagens de descoberta mostradas
nos canais de TV educativa com considerável indiferença. Afinal, o
que vemos quando ficamos procurando por outros programas porque
alguns canais repetem a programação? Estrelas resplandecendo
sombrias no céu noturno, as luas de Júpiter, pendentes como tes­
tículos, nuvens de poeira cósmica, uma imensidão de espaço, a
frugal mas irritante trilha sonora sugerindo apenas o chiado infer­
nal da radiação de fundo.
Vivemos dentro dos limites de nossa própria tela, como uma
mosca presa dentro de uma tela de Pollock. O futuro que espera­
mos é muito mais curto do que o futuro predizível das ciências mate­
máticas. A complexidade está em toda parte, seja criada ou plane­

O ADVENTO DO ALGORITMO 381


jada, e a compressão é difícil de ser conseguida — na verdade, o
mundo humano não pode ser comprimido. O máximo que podemos
fazer, com a exceção de uns poucos princípios morais ou aforis­
mos, é assistir ao desdobrar do panorama, surpresos como sempre
com o fluxo complexo, turbulento e insuspeito das coisas, o exces­
sivo mas fascinante processo da vida.
A definição de complexidade algorítmica parece fazer a dis­
cussão girar em círculos, a complexidade das coisas explicada por um
apelo à inteligência, e a inteligência explicada, ou pelo menos mos­
trada, por um apelo a uma comunidade de conceitos —algoritmos,
símbolos, informação — nos quais uma definição de complexidade
foi inculcada. Na verdade, mais do que me mover sem rumo em um
círculo, estou descendo lentamente em espiral, explicando a com­
plexidade das coisas apelando para a complexidade das cadeias.
Explicar é, talvez, a palavra errada, dramaticamente inflada. Nada
foi explicado com base no que acabamos de concluir. A aliança
entre a complexidade e a inteligência que Paley viu através de um
vidro escuro —essa continua valendo; mas a espiral descendente só
fez o que as espirais descendentes podem fazer, qual seja, levar
uma questão para baixo.

U ma e s t a ç ã o da v i a - c r ú c i s

A biologia molecular revelou que, além de qualquer outra coisa


que possa ser, uma criatura viva é também um sistema combi­
natório, sua organização controlada por um texto estranho, oculto e
obscuro, escrito em um código bioquímico. É um algoritmo que
está no sussurrante coração da vida, transportando informações de

382 David Berlinski


um conjunto de símbolos (os ácidos nucléicos) para outro (as pro­
teínas). Um algoritmo? De que outra forma descrever o intrica-
mento de transcrição, tradução e replicação se não por um apelo a
um algoritmo? Quanto a isto, de que outro modo chamar a quan­
tidade armazenada nas macromoléculas senão de informação? E se
as macromoléculas armazenam informações, funcionam em certo
sentido como símbolos.
Estamos nos movendo nos velhos círculos familiares. Apesar
disso, a biologia molecular dá a primeira resposta clara e resso­
nante à pergunta de Paley. A complexidade dos artefatos humanos,
as coisas que os seres humanos fazem, encontram sua explicação na
inteligência humana. A inteligência responsável pela construção
de artefatos complexos — relógios, computadores, campanhas mi­
litares, orçamento federal, este livro —encontra sua explicação na
biologia. Isso pode soar como se estivéssemos explicando o con­
teúdo de uma conversa apelando para o conteúdo de outra, e talvez
seja isso, mas, no mínimo, a biologia molecular representa um lugar
mais para baixo na espiral do que o lugar de onde começamos, a des­
cida dando a impressão de progresso no mínimo porque dá a impres­
são de movimento.
Por mais revigorante que seja ver o padrão de algoritmo, infor­
mação e símbolo aparecer e reaparecer, especialmente no nível da
biologia molecular, é importante lembrar, no mínimo por ser tão
(reqüentemente esquecido, que em grande medida não temos ne­
nhuma idéia de como o padrão é amplificado. A explicação da
complexidade proporcionada pela biologia ainda é em grande parte
protocolar. Uma criatura viva é, afinal, um objeto tridimensional
roncreto, complexo e autônomo, algo ou alguém capaz de cuidar
da própria vida; pertence a um mundo próprio —nosso mundo, por
acaso, o mundo no qual animais caçam e correm, coçam-se ao sol,

O ADVENTO DO ALGORITMO 383


bocejam, vão aonde querem. Os artefatos algoritmo, informação e
símbolo são abstratos e unidimensionais, inteiramente estáticos;
pertencem a um universo muito diferente de formas simbólicas.
No coração da biologia molecular, um grande mistério está vivida-
mente em evidência, na medida em que essas formas simbólicas
criam um organismo, controlam sua morfologia e desenvolvimen­
to, e introduzem uma cópia de si próprias no futuro. A transação
oculta um processo nunca visto entre objetos meramente físicos,
embora um processo característico do mundo no qual ordens são
dadas e obedecidas, perguntas feitas e respondidas, promessas
feitas e mantidas. Nesse mundo, onde os computadores zumbem
e os seres humanos cuidam uns dos outros, a inteligência é sem­
pre relativa à própria inteligência, sistemas de símbolos ganhando
pontos por ter ganhado pontos. Isso não é um paradoxo. É sim­
plesmente o modo como as coisas são. Duzentos anos atrás, o bió­
logo suíço Charles Bonnet —contemporâneo de Paley —pediu uma
descrição do “mecanismo que irá controlar a formação do cérebro,
do coração, do pulmão e dos outros órgãos”. Uma descrição em ter­
mos de mecanismo ainda não está disponível. A informação passa
do genoma para o organismo. Algo é dado e algo é lido; algo orde­
nado e algo feito. Mas quem exatamente está lendo e quem está
executando as ordens, isso não está claro.

O LUGAR LIMPO E FRESCO

Os conceitos de algoritmo, informação e símbolo estão no sussur­


rante coração da vida. Como eles se promovem a organismo é uma
parte do mistério geral por meio do qual a inteligência alcança seus

384 David Berlinski


efeitos. Mas como exatamente, no esquema das coisas, esses
soberbos instrumentos simbólicos surgiram? Por que deve haver
macromoléculas complexas informacionais? Estamos olhando
mais para baixo agora, na direção das leis da física.
Pensa-se que a teoria da evolução de Darwin dá uma expli­
cação puramente materialista para a emergência e o desenvolvi­
mento da vida; mas mesmo que essa afirmação extravagante e tola
seja aceita em seu significado manifesto, ninguém sugere que teo­
rias da evolução são em qualquer sentido uma resposta funda­
mental à pergunta de Paley. É muito fácil imaginar um universo
como a superfície de Júpiter, uma enorme quantidade de gases fla­
mejantes, quente demais ou insubstancial demais para a emergên­
cia ou o florescimento da vida. Há no universo em que habitamos
uma relação muito aconchegante entre a estrutura fundamental
das coisas e nossa própria emergência barulhenta em cena, algo
comentado por todos os físicos. A teoria da evolução é apenas outra
estação da via-crúcis, um lugar para o qual a complexidade foi trans­
ferida e de onde deve ser transferida novamente.
As leis fundamentais da física descrevem o lugar limpo e fres­
co de onde a complexidade do mundo surge. O que mais, além
dessas leis, subsiste? Elas prometem uma simplicidade radical em
dois sentidos. Nos últimos vinte e cinco anos, os físicos se deram
conta de que as teorias de variação podem sempre ser expressas
em termos da conservação de certas quantidades. Onde há con­
servação, há simetria. O movimento de um triângulo comum no
espaço preserva três simetrias de rotação, os vértices do triângulo
simplesmente mudando de posição até o vértice de cima estar de
volta no lugar de onde partiu. E preserva três simetrias de reflexão
também, como quando o triângulo é refletido em torno da altura.
Uma teoria de como o triângulo muda de posição no espaço é ao

O A D V II N T O DO ALGORITMO 3 8 5
mesmo tempo —ambas são a mesma coisa —uma teoria das quan­
tidades conservadas pelo triângulo à medida que ele é girado ou
refletido. O objeto apropriado para a descrição do triângulo é uma
estrutura que exibe a simetria requerida, são os grupos. As leis fun­
damentais da física —a província das teorias de calibre —alcançam
seus efeitos apelando para as simetrias. E dessa forma o físico estu­
da um domínio que se tornou simples porque se tornou simétrico.
Essa percepção de simplicidade é uma percepção da simplicidade
das coisas; seja ela descrita totalmente pelas leis da natureza ou não,
a simetria é uma propriedade objetiva do mundo real.
As leis da natureza são radicalmente simples em outro senti­
do. São simples em termos de estrutura, exibindo uma formosura
de forma matemática e uma concisão de expressão que em si não
podem ser aperfeiçoadas a favor de nada mais formoso ou mais
conciso. Representam o caroço duro no qual o mundo da matéria
foi comprimido. Isso é para devolver a discussão aos símbolos e à
informação, a via-crúcis das palavras lançando uma estranha mas
esclarecedora luz vermelha sobre as leis da física.
As leis fundamentais da física captam os padrões do mundo
captando a atuação de suas simetrias. Onde há padrão e simetria,
há espaço para a compressão, e onde há espaço para a compressão,
leis fundamentais por meio das quais o espaço é comprimido. No
porão conceituai, não é possível nenhuma explicação adicional. As
leis fundamentais são simples no sentido de que são mcompres-
síveis; é por essa razão que são curtas —espantosamente curtas no
sentido de que podem ser programadas em apenas umas poucas
paginas de código de computador.
*
E com as leis fundamentais da física que finalmente a per­
gunta de Paley chega a um fim; é o lugar onde a pergunta de Paley
tem que chegar a um fim se não quisermos ficar infinitamente

386 David Berlinski


exaustos, indo de um conjunto de fatos complicados para outro. É
portanto crucial que sejam simples, aquelas leis, tal que, ao exa­
minar o que dizem, o físico não seja mais tentado a pedir uma des­
crição da complexidade delas. Como a mente de Deus, elas têm de
explicar a si mesmas. Ao mesmo tempo, têm de ser completas,
explicando tudo que é complexo. Senão, qual é sua utilidade? E, fi­
nalmente, as leis fundamentais têm de ser materiais, dando uma
descrição do espírito e da substância, da forma e da função, de
todos os aspectos insubstanciais da realidade, em termos (meta­
foricamente) de átomos e do vazio. Senão, não seriam leis funda­
mentais da física.

A ESCADARIA INFERENCIAL

Triagem é uma expressão da medicina de guerra. Depois que o pro­


jétil explodiu, o médico duro, mas humano, separa as vítimas entre
aquelas que não vão, as que vão, e as que talvez consigam sobreviver.
As leis fundamentais da física deviam dar um esquema das coisas
ao mesmo tempo materialista, completo e simples. Mas hoje sabe­
mos, ou pelo menos suspeitamos, que o materialismo não vai con­
seguir. E não é simplesmente porque foi dada a palavra aos símbo­
los na geração do universo. Cá entre nós, a física está simplesmente
crivada de entidades não materiais: funções, forças, campos, obje­
tos abstratos de todos os tipos, ondas de probabilidade, o vácuo
quântico, entropia e energias e, recentemente, cordas e branes que
vibram de modo misterioso.
Resta a completude e a simplicidade. A complctude é, obvia­
mente, crucial, pois sem ela não existe nenhuma resposta convin­

O ADVENTO DO ALCOHITMO 387


cente à pergunta de Paley. De que adiantaria se as leis da física
explicassem as complexidades da tectônica das placas, mas não a
formação dos ribossomos? Sem a completude, não iria o universo
se desmembrar em reinos separados regidos por deuses distintos,
exatamente como, cofiando barbas untadas e trançadas, os antigos

sacerdotes predisseram? E uma visão que está em questão. Em parte


metafísica em sua expressão, mas em parte religiosa em seus impul­
sos, as leis fundamentais da física funcionam na imaginação popu­
lar como demiurgos potentes e cheios de poder criativo. E se eles
são potentes e cheios de poder criativo, é melhor que prossigam
com todo esse negócio de criação, deixando os detalhes para os tra­
balhadores de meio expediente.
O que falta ser completado para isso, a mais dramática das
visões a luzir inquebrantavelmente, é a construção da escadaria infe-
rencial que leva das leis da física ao mundo que está ao nosso redor,
corrupto, parcial, fragmentado, abagunçado, assimétrico, mas nosso
—amado e insubstituível.
Ninguém espera que as leis da física por si só expliquem tudo.
“A expectativa última da ciência”, admite Steven Weinberg (estou
citando-o pela segunda vez), “é que seremos capazes de remontar
as explicações para todos os fenômenos naturais transformando-os
em leis finais e acidentes históricos.” Por que não dar aos acidentes
históricos seu nome correto? —acaso. O mundo e tudo o que há
nele, o Weinberg ligeiramente revisto poderia ter escrito, surgiu
por meio das leis da física e do acaso.
Um arrepio de premonição pode agora ser sentido percorren­
do a sala. “Não conseguimos ver”, escreveu Richard Feynman em
seus notáveis seminários de física, “se a equação de Schrõdinger [a
lei fundamental da mecânica quântica] contém sapos, composi­
tores ou moralidade.”

388 David Berlinski


Não conseguimos ver? Estas são palavras sinistras. Sem a visão,
não há nenhuma visão secular ou sagrada, e não há nenhuma esca­
daria inferencial, apenas uma afirmação grande, úmida e descom-
promissada.
E uma afirmação, além do mais, que outros acharam dúbia.
“A formação de um corpo humano dentro do período geológico”,
comentou Kurt Gödel com o lógico Hao Wang, “por meio das leis
da física (ou quaisquer outras leis de natureza semelhante), a partir
de uma distribuição aleatória de partículas elementares e o campo,
é tão improvável quanto a separação casual da atmosfera em seus
componentes.”
Essa é uma frase meio enigmática. Deixe-me explicar. Quando
Gödel falou de “campo” ele se referia, obviamente, ao campo quân­
tico; a equação de Schrödinger tem o controle. E ao invocar uma
“distribuição aleatória de partículas elementares”, Gödel queria
confinar sua discussão a padrões típicos ou genéricos — o acaso,
novamente.
Sob a ação das leis fundamentais e do acaso, Gödel estava
convencido, não se poderia esperar que surgisse qualquer forma de
complexidade. Isso não é um argumento, obviamente; funciona
apenas como uma afirmação, embora uma afirmação feita com a
autoridade da genialidade de Gödel; mas é uma afirmação que tem
um estranho poder profético, antecipando, como o faz, um argu­
mento específico contemporâneo.
“A complexidade dos corpos vivos”, prosseguiu Gödel, Hao
Wang escutando sem comentar, “tem de estar presente ou no mate­
rial [do qual se derivam] ou nas leis [que governam sua formação].”
Aqui, Gödel parecia estar afirmando sem argumentar que a com­
plexidade é sujeita a um princípio de conservação, como a energia ou
o momento angular. Agora, todo corpo humano é derivado de outro

O ADVENTO DO A L G O HI T MO 389
corpo humano; a complexidade é, na reprodução, transferida de
uma estrutura similar a outra. A complexidade imediata do corpo
humano está dessa forma presente na matéria da qual é derivada;
mas na teoria de Darwin, os seres humanos como espécie são, por
um processo de variação aleatória e seleção natural, derivados de
estruturas menos complicádas, o processo se afunilando até o rico
panorama da vida orgânica penetrar em um ponto inorgânico e,
portanto, relativamente simples. A origem da complexidade, assim,
está —tem de estar —nas leis da matéria e, portanto, nas leis da físi­
ca. O acaso, se ele representa qualquer papel, representa um papel
apenas subsidiário.
Nessas inferências casuais, Gõdel estava até certo ponto
refazendo uma versão da prova teleológica da existência de Deus.
A complexidade manifesta das criaturas vivas sugeriu a William
Paley um criador inexoravelmente providencial. Suprima a teleolo-
gia da prova e surge uma conexão entre a complexidade e uma
forma de inteligência. Suprimindo mais outra coisa, uma conexão
entre complexidade e as leis da física.
E aqui temos a parte engenhosa, oculta e subversiva. As leis da
física são simples porque são curtas; funcionam, só podem fun­
cionar, para abreviar ou comprimir as coisas que exibem um padrão
ou que são ricas em simetria. Não ganham nada comprimindo
cadeias que são ao mesmo tempo longas e complexas —cadeias de
números aleatórios, por exemplo, o legítimo registro deixado pelo
acaso no universo. Mas os ácidos nucléicos e as proteínas são pre­
cisamente tais cadeias. A complexidade e a aleatoriedade são indis­
tinguíveis. Não fazemos a menor idéia de como surgiram; cheias de
uma perturbadora energia maníaca, parecem desprovidas de padrão.
São o que são. Seu aparecimento por meio do acaso é impossível;

390 David Berlinski


sua geração a partir das leis simples da física descartada simples­
mente porque as leis simples da física são, de fato, simples.
Gõdel escreveu muito antes que a estrutura do código genéti­
co estivesse totalmente compreendida, mas o tempo tem sido seu
amigo fiel (nisso como em muitas outras coisas). Ao discorrer em
grande estilo sobre a biologia, Gõdel optou por expressar suas dúvi­
das em uma escala cósmica, seu ceticismo valioso tanto pela aguda
capacidade sugestiva quanto por tudo o mais; mas a grande per­
gunta de Gõdel sobre a descoberta da vida em um mundo de matéria
tem uma voz interna na própria biologia, indício interessante de que
questões de design e complexidade são independentes de escala.
Os sistemas vivos alcançaram um grau notável de complexidade
num período muito curto de tempo, estruturas como o processo de
coagulação, o sistema imunológico ou a linguagem humana suge­
rindo acima de tudo um processo de cuidadosa coordenação e
design inteligente.

Poderia parecer que, a fim de preservar a escadaria inferen-


cial, fosse o caso de se transigir quanto à simplicidade das leis da
natureza. O acaso sozinho não consegue fazer o que se supunha
que o acaso por si só faria. Roger Penrose argumentou, tomando
por base a termodinâmica, que o universo começou em um estado
muito incomum, no qual a entropia era baixa e o nível de organi­
zação alto. As coisas têm se deteriorado desde então, uma proposição
para a qual cada um de nós tem provas esmagadoras. Isso serve
novamente para explicar o aparecimento da complexidade no grande
palco do mundo por meio de um subterfúgio intelectual; o argu­
mento essencialmente se resume à afirmação de que não é neces­
sária nenhuma explicação no mínimo porque a complexidade das
coisas estava lá o tempo todo.

O ADVENTO DO ALCOUITMO 391


É melhor falar francamente — é intelectualmente mais ho­
nesto —que ou a simplicidade ou a escadaria inferencial devem ser
abandonadas. Se a simplicidade vai se juntar ao materialismo no
Valhalla, como, então, as leis da física deram uma resposta final à
pergunta de Paley?

O ALGORITMO ASSUME
O COMANDO

Embora os físicos tenham certeza de que mecânica quântica dá


uma explicação completa para a natureza da ligação química (e,
portanto, para toda a química), eles têm certeza de muitas coisas
que podem não estar certas; e só fizeram os cálculos para o átomo
de hidrogênio e o de hélio. A mecânica quântica foi, obviamente,
criada antes do advento do computador. É uma teoria soberba-
mente linear; suas equações admitem solução exata. Mas além dos
sistemas mais simples, surge uma selva computacional —mangues,
pântanos, umas coisas horripilantes que se arrastam pela macega,
ansiosas para travar conversa com os físicos (e todos nós).
Ei, caras, esperem.
As leis fundamentais da física estão no controle dos objetos
físicos fundamentais, dando instruções aos quarJzs e mandando nos
glúons. O matemático ainda domina o mundo quântico elementar.
Mas além de seu domínio natural, a influência das leis fundamen­
tais é transmitida apenas pela interpretação.
À medida que sistemas complexos de partículas são estuda­
dos, equações têm de ser introduzidas para cada partícula, as equa­
ções, junto com suas temíveis interações, estabelecidas e depois

392 David Berlinski


resolvidas. Não há esperança de fazer isto analiticamente; as difi­
culdades tendem a se acumular exponencialmente. São necessários
computadores muito potentes. O conteúdo das leis fundamentais
da física é relativo — tem de ser relativo — aos sistemas computa­
cionais necessários para interpretá-las. Daí o advento do algoritmo;
daí sua importância; daí a mudança que ocasionou.
Há uma imensa diferença entre o caráter das leis fundamen­
tais, por um lado, e as computações necessárias para insuflar vida
nelas, por outro. Lei e computação têm naturezas muito diferentes,
propriedades muito diferentes. As leis são infinitas e contínuas e,
portanto, fazem parte da grande tradição de descrição matemática
que está ligada em última instância ao cálculo.
Computações algorítmicas não são infinitas nem contínuas,
mas sim finitas e discretas. Não fornecem nenhuma profunda função
matemática que explique qualquer coisa na natureza; especificam
apenas séries de números, e a conversão desses números em um
padrão é uma questão a ser decidida pelos matemáticos.
Se a lei descreve o coração oculto das coisas, uma simulação
dá apenas uma série de instantâneos estilizados, análogos à sucessão
de stills que os tablóides de Nova York costumavam publicar, a
mulher, com a saia retorcida, caindo da janela do sexto andar, depois
passando pelo terceiro andar, um olhar de medo em seu rosto des­
figurado, finalmente caindo no capô de um carro, mulher e capô
amassados. A falta de continuidade nos dois esquemas torna qual­
quer interpolação entre fotos ou simulações uma deliberada con­
jectura. Os instantâneos, é bom lembrar, não fornecem indícios de
que a mulher está caindo ; vemos as fotos, e negligenciamos a con­
tribuição que nós fazemos para a interpretação delas.

O ADVENTO DO ALCIOltITMO 393


Esquemas computacionais aparecem em qualquer descrição
da escadaria inferencial; os conceitos de algoritmo, informação e
símbolo apareceram de novo. São como o sol, que se eleva nova­
mente todo dia; mas eles servem para soar uma voz implacavelmente
humana. A expectativa entre os físicos, é óbvio, é de que esses con­
ceitos representam um papel meramente subsidiário, a escadaria
inferencial sendo construída essencialmente por meio das leis fun­
damentais da física; mas a questão quanto a quem vai ser o domi­
nante e quem o dominado nesse negócio está longe de estar clara.
Na medida em que as leis fundamentais da física funcionam
como premissas para um argumento metafísico grandioso no qual
o universo tem de aparecer como sua conclusão, alguma especifi­
cação dos três conceitos funciona como premissa adicional. Sem
essas premissas, as leis da física ficaram simplesmente sentadas ao
sol, mudas, inglórias e sem revelar nada. Uma terceira revisão
da afirmação memorável de Steven Weinberg está agora à vista: o
melhor que se pode esperar, o maior desejo da ciência, é uma
explicação de todos os fenômenos naturais com base nas leis fun­
damentais da física e no acaso e em um monte de esquemas
computacionais, algoritmos, linguagens especializadas de com­
putação, técnicas para integração numérica, imensos programas
prontos (como o Mathematica ou o Maple), computação gráfica,
métodos de interpolação, atalhos teórico-computacíonais, e nos
melhores esforços dos matemáticos e físicos em converter os dados
da simulação em padrões coerentes, engenhosamente revelando
simetrias e narrativas contínuas.
Uma certa expectativa radiante pode ser agora observada
murchando. Quanto maior a contribuição de um algoritmo, menos
convincente a visão de uma escadaria inferencial. Temos um dilema
destrutivo. Sem os três conceitos, as leis fundamentais da física

394 David Berlinski


são incompletas; mas com os conceitos, não são mais simples. Era
para a escadaria inferencial ter levado das leis da física àquela
impressão de inteligência por meio da qual a complexidade é expli­
cada; se a inteligência é necessária para construir a própria escadaria,
por que nos darmos ao trabalho de subi-la? Os enunciados pro­
fundamente simples que deviam ter redimido o mundo têm de re­
dimi-lo por meio exatamente dos conceitos que deveriam redimir.
Um algoritmo é, afinal, um artefato inteligente.
Sempre suspeitamos, e agora sabemos, que, ao mesmo tempo
em que existem coisas que são simples e coisas que são complexas
na natureza, a rica variedade de coisas não é derivada de nada sim­
ples, ou, se é derivada de algo simples, não é derivada disso com­
pletamente. A complexidade pode ser transferida; pode ser deslo­
cada de teorias para os fatos e de volta para as teorias. Pode ser
localizada em cálculos por computador, as leis fundamentais man­
tidas simples, ou pode ser expressa em uma variedade de princípios
e leis à custa da idéia de completude; mas, em última instância, as
coisas são como são simplesmente porque são o que são.

O CARDEAL NA HORA
DO JANTAR

■ ■ ■ ■ O jantar terminara. A baixela havia sito tirada, cada peça


com o timbre azul e verde do Vaticano, e também a toalha de mesa.
A sala brilhava com uma luz vermelha suave que vinha dos círios
canelados nas paredes. A cálida névoa azulada dos charutos cubanos
pré-revolução que estávamos todos fumando ia subindo, formando
uma pequena nuvem, e depois era levada embora pelo eficiente

O ADVENTO DO ALGORITMO 395


mas discreto sistema dé ventilação da sala. O cardeal deslocou os
amplos quadris debaixo de sua túnica vermelha, para aliviar, como
ele observou, a dor flamejante no nervo ciático que ia de seus
quadris até os tornozelos. Deu um gole no Benedictine que um
criado havia colocado à sua frente; umas gotas de valeriana haviam
sido misturadas para aliviar o desconforto em suas costas. Deu para
eu ver a grande onda de sonolência que o invadiu, mas, com um ato
de disciplina mental que eu imaginava os anos haviam transforma­
do em hábito, ele resistiu ao impulso de fechar os olhos.
— Meu caro Professore Dottore — disse ele, suavemente, me­
neando a cabeça na direção de um homem alto que estava senta­
do na outra extremidade da mesa —, é agora que o senhor deve nos
contar como o mundo começou.
O professore dottorey que era, na verdade, um poderoso e
muito conhecido físico da Universidade de Turim, limpou a gar­
ganta e começou a falar com uma voz suave de tenor. Ele havia
claramente se preparado de antemão e disse o que tinha a dizer em
um alemão rebuscado e antiquado que não combinava em nada
com o dialeto vienense que o cardeal (e todos os outros) falava.
—Como o senhor sabe, Eminência —disse ele —, foi a física
matemática que encarnou o mais amplo e generoso gesto intelec­
tual dos últimos quinhentos anos.
O cardeal meneou a cabeça de modo grave, indicando um
“certamente que sim”.
—No esquema que desenvolve, são atribuídos números reais
a magnitudes contínuas. Tempo e espaço recebem um esqueleto
quantitativo. — O professore dottore fez uma pausa para olhar os
homens que estavam sentados ao redor da mesa, colocou as mãos
sobre a mesa à sua frente e pressionou-as para baixo; percebi um
tanto surpreso que elas estavam ligeiramente trêmulas.

396 David Berlinski


Ele disse: —O método de investigação que foi desenvolvido é
característico e engenhoso, e nele as coisas e os processos são des­
critos por equações matemáticas. Permitiu que estudássemos o
universo do big-bang ao fim do tempo.
— Muito elegantemente colocado — disse o cardeal —, mas
tenho a impressão de que a relatividade geral e a mecânica quân­
tica ainda estão em conflito. Estas são as duas grandes visões da
sua ciência, no ?
O professore dottore assentiu vigorosamente.
—O senhor está correto, Eminência —disse ele. —Na relativi­
dade geral, o espaço e o tempo estão fundidos em uma variedade.
A matéria deforma o espaço e o tempo, e o espaço e o tempo influ­
enciam o comportamento da matéria.
—E a outra —perguntou o cardeal —, a mecânica quântica?
—Em certos aspectos é um assunto obscuro, Eminência.
— A mecânica quântica é em certos aspectos um assunto
obscuro? Ainda bem que o senhor não se confessa, meu caro amigo.
Vários dos homens ao redor da mesa saudaram esse gracejo
com risinhos guturais.
—Figura de linguagem, Eminência —disse o 'professóre dottore.
—Em vez de partículas, há ondas de probabilidade, que se arremes­
sam por todo o espaço.
—Ah — disse o cardeal, que, em sua época de estudante em
Verona, havia de fato estudado mecânica quântica com um físico
que havia estudado com Enrico Fermi. — Eu me lembro. Ondas se
comportam como partículas e partículas se comportam como ondas,
e fótons solitários que passam por uma fenda interferem com eles
mesmos.
—Correto —disse o professore dottore.

O ADVENTO DO ALGORITMO 397


—Extraordinário. E pensar que há quem ridicularize nossa pobre
Igreja por causa do milagre da transubstanciação. —O cardeal fez
uma pausa para se recompor e então sorriu. —Duas disciplinas total­
mente diferentes, no ? E mesmo assim o senhor assume que por
trás de tudo o universo é simples.
—Estamos buscando, Eminência, a teoria unificada definitiva.
—E quando a encontrarem?
— Os aspectos físicos da realidade estarão subordinados a
uma única lei da natureza.
— E essa grandiosa teoria, o que ela vai nos ensinar sobre o
universo, seu significado?
O professore dottore enfiou o dedo indicador por baixo do
colarinho para afrouxá-lo.
—Quanto mais o universo parece compreensível, Eminência
—disse o professore dottore —mais ele parece não ter significado.
— E o senhor está convencido de que ele parece compreen­
sível? —perguntou o cardeal. Ele não parecia mais estar nem um
pouco sonolento.
O professore dottore deu um sorriso indulgente.
—Evidentemente —disse ele —existem as leis da física.
O cardeal colocou seus pesados antebraços de camponês
sobre a mesa à sua frente.
—Se o universo é compreensível, certamente isso é prova de
que não é totalmente desprovido de significado, no? Um universo
sem significado não seria compreensível.
O professore dottore por um instante olhou para baixo, para
suas mãos. Quando levantou os olhos, disse:
—Perdoe-me, Eminência, mas por que deveria ter um signifi­
cado?

398 David Berlinski


—Meu caro Dottore —disse o cardeal —, nosso problema não
é por que o universo tem um significado, mas se ele tem um sig­
nificado. Certamente podemos concordar em deixar o porquê das
coisas em outras mãos. — E aqui o cardeal apontou astutamente
para o teto ornamentado da sala de jantar.
O professore dottore deu de ombros; ele parecia talvez um
tanto vexado, mas sua irritação havia aumentado sua autocon­
fiança e quando falou novamente, falou em um tom de voz calmo
e claro e as mãos haviam parado de tremer.
—Pelo que podemos ver, Eminência, o universo é apenas um
sistema físico. E nada mais.
—Um sistema físico —disse o cardeal —, totalmente explicado
pelas leis da matéria.
—Totalmente, eminência.
O cardeal de novo meneou sua pesada cabeça.
— E esse sistema —disse ele —, como apareceu?
O professore dottore então olhou diretamente para o outro lado
da mesa, onde o cardeal estava sentado.
—Estou certo de que Vossa Eminência sabe a resposta —disse
ele, hesitante.
—Sim, obviamente, mas os outros —disse o cardeal, mostran­
do com um gesto amplo de sua grossa mão os homens sentados à
mesa, seu anel refletindo a luz.
O professore dottore meneou vigorosamente a cabeça, como se
para dizer que entendia a necessidade de uma explicação, dado
que muitos dos homens à mesa eram especialistas de outras áreas.
— A teoria corrente — disse ele —é de que o universo surgi
repentinamente uns quinze bilhões de anos atrás.
—O big-bang —disse o cardeal, com a mais leve sugestão em
seu tom de voz de que estava dizendo um disparate.

O ADVENTO 1)0 ALT. O K I T M O 399


— É o que tudo sugere, Eminência, os dados, nossas teorias,
tudo.
—Sim —disse o cardeal —, mas o que havia antes do big-bang?
Estou perguntando por não saber.
—Nada.
—Nada ?
—Nada.
— Mas meu caro Professore Dottore, isto certamente aflige o
intelecto, no? Não há nada por toda uma eternidade e, então —puf
—existe algo.
O professore dottore sacudiu a cabeça vigorosamente.
—Não, não, Eminência —disse ele. —Não havia uma eternida­
de antes, isso é um engano.
—Ah —disse o cardeal —a eternidade é um engano.
—Estou falando apenas de ciência, Eminência —disse o profes-
sore dottore à guisa de desculpas. —O espaço e o tempo foram cria­
dos juntos com o universo. Não possuem uma existência anterior.
—Então não há um tempo antes desse big-bang do qual o se­
nhor fala?
—Parece difícil de entender, Eminência, mas, da mesma forma
como não existe um lugar ao norte do pólo norte, não há um tempo
anterior ao big-bang.
— Então, não existe coisa alguma que explique 'a criação do
universo. — O cardeal gesticulou com a mão apontando para as
paredes da sala, pejadas de adoráveis tapeçarias de seda em tons
de cálido escarlate. —Tudo isto, esta magnificência —disse ele —,
A

apenas aconteceu por acaso? E nisso que o senhor acredita?


— Não, Eminência — disse o professore dottore —, eu acredito
que, em última análise, as leis da física explicam a existência do
mundo.

400 David Berlinski


O cardeal deslocou seu considerável volume para trás, tal que
conseguisse tirar os antebraços da mesa e repousá-los sobre os
braços de madeira esculpida de sua cadeira.
— Isto o senhor deve explicar para mim —disse ele. —As leis
da física, elas são símbolos, no? Coisas pensadas pelo homem?
— Bem, sim — disse o professore dottore —, em certo sentido,
isso está certo. Símbolos matemáticos. Mas não são feitos pelo
homem.
—Por quem, então?
—Quer dizer —disse o professore dottore —, não são feitos. Eles
simplesmente são o que são.
—Ah —disse o cardeal, expirando um jato de ar sobre o beiço
espesso. — São o que são.
O professore dottore deu de ombros como se para dizer que era
impotente perante os fatos.
— Mas, sejam o que sejam — disse o cardeal —, não são obje­
tos físicos, estas leis, no?
—As leis da física não existem no espaço e no tempo. Elas
descrevem o mundo, não estão no mundo.
— Perdoe-me — disse o cardeal —, pensei ter ouvido o senhor
dizer que tudo o que há no mundo podia ser explicado pelo com­
portamento da matéria, nó? Parece que o senhor queria dizer tudo
o que há no mundo exceto a razão de sua existência.
—Eminência, todas as cadeias de explicações devem chegar a
um fim.
—Não é conveniente que suas explicações cheguem a um fim
antes que sejam instadas a explicar um mistério dos grandes?
O professore dottore deu de ombros novamente. Como todos
nós, ele havia sido avisado de que o cardeal era um homem de
poderes retóricos impressionantes, e ele era, imagino, ainda católi­
co o suficiente para não querer insistir.

O ADVENTO DO ALGORITMO 401


— Parece-me —disse o cardeal, dando outro gole em seu Bene-
dictine misturado com valeriana — que se o senhor levasse a sério
esta busca do senhor —e aqui ele fez uma pausa para enfatizar o que
queria dizer, tal que todos ao redor da mesa ficaram em suspenso
esperando —, o senhor estaria procurando por leis que no fim expli­
cassem a si mesmas assim como a tudo o mais.
O professore dottore levantou os olhos com atenção, mas não
disse nada. Nem os outros. A fumaça azulada de charuto conti­
nuava a subir, o momento de tensão se adensou e depois se dis­
sipou, e então o cardeal, com um pigarro, disse algo em seu próprio
dialeto italiano para os que estavam sentados perto dele, que le­
vantaram as mãos e riram; mas, por não falar italiano, não entendi
o que ele disse.
■ ■ ■ ■

E então eles se reuniram junto aos portões do tempo, os vivos


e os mortos e os ansiosos para nascer. Há um nevoeiro frio e cinza.
Os antigos contam histórias de por que o tempo teve início e como
o espaço ficou curvo. Os ponteiros compridos e finos do grande
relógio, que mede os milênios em vez dos minutos, se aproximam
lentamente da meia-noite. Os lógicos se reuniram. Aristóteles está
lá, e Abelardo, e Frege e Cantor, ainda de roupa branca de hospi­
tal. Peano e Hilbert estão conversando; Russel está olhando fixo
para Gõdel, e Gõdel está olhando fixo para o nada. Church se
levantou; Turing se inclina para recuperar o fôlego, e Post dá tapi-
nhas em suas costas. Então, quando o grande portão se abre, Leibniz
finalmente aparece, sua peruca exuberante esvoaçando à brisa da
tarde, os braços esticados em direção ao paraíso, e à medida que a
música inunda o ar, começa a dançar a lenta dança imponente
cujos ritmos exprimem o que foi, o que é, e o que pode vir a ser.

402 D avid B erlinski


E pílogo

A IDÉIA DE ORDEM EM KEY W E S T 1

Wallace Stevens

Ela cantava além do gênio do oceano.


A água não formava mente ou voz,
Como um corpo todo corpo, agitando
As mangas ocas; essa mímica, no entanto,
Era um grito constante, constantemente um grito
Que não era nosso, embora o entendêssemos,
Inumano, do verdadeiro oceano.

O mar não era máscara. Nem ela.


O canto e a água não eram contraponto
Ainda que ela ouvisse o que cantava,
Pois que seu canto era palavra por palavra.

1. Tradução de Paulo Henriques Britto em antologia de Wallace Stevens, Poemas.


São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

O ADVENTO DO ALGORITMO 4 0 3
Talvez em cada frase sua transpirasse
Água rangente, vento resfolegante;
M as não era mar nem ela que ouvíamos.

Pois era ela a autora de seu canto.


O mar, com seu capuz eterno e gestos trágicos,
Não era mais do que um cenário para seu canto.
E perguntam os: de quem é esse espírito?
Sabendo que era aquele que buscávam os,
Q ue era preciso perguntá-lo ouvindo o canto.

S e fosse só a escura voz do mar


A se elevar, m esm o com a cor de m uitas ondas;
O u só a voz exterior do céu
E nuvem, de coral murado em água,
Ainda que clara, seria ar profundo,
Fala arquejante de ar, som estival
A repetir-se num verão sem fim,
Só som. M as era mais que isso,
M ais que a voz dela até, e as nossas, entre
M ergulhos sem sentido de água e vento,
D istâncias teatrais, som bras de bronze
Am ontoadas no horizonte, atm osferas
M ontanhosas de céu e mar.

Era a voz dela


Q u e aguçava o céu ao máximo ao morrer.
Ela m edia-lhe da solidão a hora.
Ela era a única artífice do mundo
Em que cantava. E, ao cantar, o mar,

404 D av id B erlin sk i
Fosse o que fosse antes, se tornava
O ser do canto dela, a criadora. E nós,
Ao vê-la esplêndida e sozinha, compreendemos
Que nunca houve para ela outro mundo
Senão aquele que, ao cantar, ela criava.

Ramon Fernandez, me diga, se souber,


Por quê, ao fim do canto, quando íamos
Rumo à cidade, por que as luzes vítreas,
As luzes das traineiras ancoradas,
Pensas no ar do entardecer, predominavam
A noite e parcelavam todo o mar, fixando
Regiões feéricas, pólos de fogo,
Dispondo, aprofundando, enfeitiçando a noite.

Ah, pálido Ramon, abençoado ímpeto


De ordem, ânsia do criador de ordenar
Palavras do mar, de portais fragrantes,
Estrelados, de nós mesmos, nossa origem,
Em espectrais demarcações, sons mais pungentes.

O ADVENTO DO ALGORITMO 405


A g r a d e c im e n t o s

I »•»’<1’AIUA DE AGRADECER À MINHA EDITORA, Jane Isay, e à minha


c*t Susan Ginsburg, por terem sugerido a idéia deste livro.
i .Msiiiriji dc agradecer a Rachel Myers por ter me incitado deli-
•'iil.mirntc, mas com alguma firmeza, a me livrar do que eu havia
iHo primeiro e melhorá-lo. Certas partes dos últimos dois capi-
11tl<íipareceram em uma forma preliminar em Com mentary e
h n h r s ASAP. Sou grato a esses periódicos por terem me dado a
•»(Muiunidade de explorar certos temas e idéias.
“C er ta n o it e , t e n d o ch eg ad o tarde ao n o r t e da

N o r u eg a , d eparei em m eu quarto d e h o t el co m um

d a q u e l e s s o b e r b o s pr o g r a m a s d e c iê n c ia da BBC NOS

QUAIS CIENTISTAS DISCORREM SOBRE SEUS TRABALHOS. VÁ­

RIOS COSMÓLOGOS ESTAVAM DISCUTINDO AS ORIGENS DO

UNIVERSO. É O QUE ELES SEMPRE DISCUTEM, E AS DIS­

CUSSÕES SÃO SEMPRE FASCINANTES, EMBORA INCONCLUSI­

VAS. Em SEUS ARGUMENTOS, PREVALECE ISAAC N e VVTON,

CUJA INTELIGÊNCIA PROFUNDA, PODEROSA, CONVINCENTE

SUBMETE CADA VONTADE À SUA PRÓPRIA. E ENTÃO UMA

OBSERVAÇÃO CURIOSA. ‘EXISTEM RECEITAS*, DISSE UM COS-

MÓLOGO, ‘EQUAÇÕES QUE PARECEM REGER O MUNDO.’

R e c e i t a s ? E q u a ç õ e s ? A l g o r it m o s ? ”

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